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Maria Rita C. Jobim Silveira A Revista Civilização Brasileira: Um Veículo de Resistência Intelectual Dissertação de mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientadora: Prof. Dra. Pina Maria Arnoldi Coco Rio de Janeiro, março de 2007

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Maria Rita C. Jobim Silveira

A Revista Civilização Brasileira: Um Veículo de Resistência Intelectual

Dissertação de mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Orientadora: Prof. Dra. Pina Maria Arnoldi Coco

Rio de Janeiro, março de 2007

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Maria Rita C. Jobim Silveira

A Revista Civilização Brasileira: Um Veículo de Resistência Intelectual

Dissertação de mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Aprovada pela comissão examinadora abaixo assinada.

Prof. Dra. Pina Maria Arnoldi Coco Orientadora

Departamento de Letras, PUC-Rio

Prof. Dra. Rosana Kohl Bines Departamento de Letras, PUC-Rio

Prof. Dra. Maura Ribeiro Sardinha Escola de Comunicação, UFRJ

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do

Centro de Teologia e Ciências Humanas, PUC-Rio

Rio de Janeiro, 29 de março de 2007

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou

parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da

universidade.

Maria Rita Collor Jobim Silveira

Graduou-se em Comunicação Social com habilitação em Produção Editorial na

Escola de Comunicação da UFRJ e em Letras, com habilitação em Licenciatura

Português e Literaturas de Língua Portuguesa na PUC-Rio, em 2004. Trabalha

desde 2004 no departamento editorial na Jorge Zahar Editor.

Ficha Catalográfica

CDD: 800

Silveira, Maria Rita C. Jobim A Revista Civilização Brasileira : um veículo

de resistência intelectual / Maria Rita C. Jobim Silveira ; orientadora: Pina Maria Arnoldi Coco. – 2007. 134 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Revista Civilização Brasileira. 3. Editora Civilização Brasileira. 4. Silveira, Enio. 5. Ditadura. 6. Resistência intelectual. I. Coco, Pina Maria Arnoldi. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Ao meu pai, presença cada vez mais viva dentro

de mim, sem o qual nada disto seria possível;

À minha mãe, que foi muitas vezes mais decidida

e confiante nos meus projetos do que eu mesma,

minha principal incentivadora no mestrado;

Ao Herlon, meu companheiro de todas as horas,

que sempre me deu a força e o impulso para

seguir em frente.

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Agradecimentos

Colaboraram muito para este trabalho, de maneiras diferentes mas igualmente

importantes, pessoas muito queridas. Agradeço imensamente o carinho e a paciência

que tiveram. Em especial, agradeço à minha madrinha Maysa, que me incentivou e

apoiou de todas as maneiras possíveis, e a Maura Sardinha, que me orientou durante a

graduação na ECO-UFRJ e continua me apoiando desde então. Esta dissertação e

todo o meu curso de mestrado não poderiam ter sido realizados não fosse o incentivo

de toda a equipe da Jorge Zahar Editor, especialmente Cristina e Mariana, que

toleraram minhas ausências e permitiram que eu me dividisse entre o trabalho e as

aulas. Do mesmo modo, minha orientadora Pina Coco foi especialmente

compreensiva e me deu todo o apoio e a liberdade de que eu precisava para conciliar

essas duas ocupações.

Agradeço também imensamente a Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder,

Moacir Werneck de Castro, Ferreira Gullar e Eunice Duarte, que me deram um pouco

de seu tempo e partilharam comigo as experiências de uma época que não vivi. Por

fim, um agradecimento especial ao poeta Moacyr Felix, que sempre contribuiu para

guardar e engrandecer a memória de Ênio Silveira, de quem foi amigo e companheiro

por toda a vida, e que mesmo sem o saber foi fundamental para a realização deste

trabalho.

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Resumo A Revista Civilização Brasileira: um veículo de resistência intelectual

A Revista Civilização Brasileira, publicada de 1965 a 1968, foi um dos mais

importantes veículos de resistência intelectual contra a ditadura militar. A análise de

suas características gerais e de alguns de seus principais artigos literários demonstra a

ousadia na livre manifestação de idéias contrárias ao governo. Um breve histórico dos

eventos que levaram ao Golpe de 1964 e dos primeiros anos do regime oferece o

quadro para que se possa avaliar o destaque e a relevância da Revista naquele

contexto político, social e ideológico. Um resumo da atuação da Editora Civilização

Brasileira permite que se compreenda sua linha editorial e como pensava o homem

que a dirigia, o editor Ênio Silveira. Com essa pesquisa, destaca-se a importância da

Revista, ressaltando seu papel na resistência intelectual e na abertura para novos

valores literários.

Palavras-chave Revista Civilização Brasileira; Editora Civilização Brasileira; Ênio Silveira;

ditadura; resistência intelectual.

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Abstract

The Revista Civilização Brasileira: a periodical of intellectual resistance

Published between 1965 and 1968, the Revista Civilização Brasileira was one

of the most important publications that offered intellectual resistance to the

dictatorship installed in Brazil. The analysis of its main features and of some of its

literary articles shows the boldness of the editors in exposing ideas contrary to those

imposed by the military government. The main events of the period, which led to the

military coup of 1964 and defined the new regime’s course, are briefly exposed, in

order to consider the relevance of the publication within that historical and political

context. In addition, the history of the publishing house responsible for the periodical

is also considered, allowing one to understand its editorial line and the ideological

position of its publisher, Ênio Silveira. This research brings into light the importance

of the publication, stressing its role in the intellectual resistance against political

oppression and in presenting new literary values.

Key words Revista Civilização Brasileira; Editora Civilização Brasileira; Ênio Silveira;

dictatorial regime; intellectual resistance.

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Sumário 1. Introdução 12

2. O País 16

2.1. Antes do país, o mundo 16

2.2. Antes do Golpe 20

2.3. O Golpe 26

2.4. Depois do Golpe 29

3. A Editora 42

3.1. A fundação e a Companhia Editora Nacional 42

3.2. Ênio Silveira 43

3.3. Vulgarizando o livro 45

3.4. Arejamento de idéias 47

3.5. O feijão e o sonho 51

3.6. A repressão 52

3.7. O albatroz 57

4. A Revista 61

4.1. O objeto 61

4.2. Direção e Conselho de Redação 66

4.3. Editoriais 68

4.4. Cadernos Especiais 75

4.5. Matérias não-assinadas 77

4.6. História da História Nova 82

4.7. Arte e cultura 88

4.8. Assuntos internacionais 90

4.9. A amplitude temática 92

4.10. A importância da RCB 92

5. Literatura e crítica literária 97

5.1. Panoramas de 1964: estabelecendo princípios 98

5.2. O momento literário 103

5.3. Artigos e ensaios 110

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5.4. Poesia 113

5.5. Notas de leitura 116

6. Conclusão 119

7. Referências 122

8. Anexos 124

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Lista de anexos

1. Bilhete do presidente Castello Branco sobre a prisão do editor Ênio

Silveira

2. A primeira página do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1968: o AI-5

3. Notas sobre a RCB no Correio da Manhã

4. Poema de Thiago de Mello para Joel Rufino dos Santos

5. Exemplos de publicidade na RCB

6. Questionário “Poetas falam de poesia”

7. Capa da RCB n.01: o primeiro modelo

8. Capa da RCB n.13: modernização dos elementos gráficos

9. Exemplos das charges de Jaguar na RCB

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Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace, un andaluz tan claro, tan rico de aventura.

Yo canto su elegancia con palabras que gimen y recuerdo una brisa triste por los olivos.

Frederico García Lorca

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1 Introdução

Escrever esta dissertação não foi tarefa fácil. Ela é a retomada de um

trabalho iniciado durante a graduação em Comunicação Social/ Produção editorial

na ECO-UFRJ e concluído em 2004. Agora, aprofundando e ampliando o estudo

realizado, é necessário reconhecer que ainda há muito a ser explorado: o assunto é

tão rico que permite múltiplas abordagens, sem se esgotar. O tema pelo qual me

decidi naquela época, e que decidi manter como foco durante o mestrado, a

Revista Civilização Brasileira, é absolutamente fascinante, mas a pesquisa sobre

ele envolveu inúmeras dificuldades. A maior delas, certamente, foi o contato com

uma história que me é particularmente tocante, pois envolve a figura de meu pai,

falecido há onze anos. Sim, porque quem estava à frente da Revista Civilização

Brasileira era o editor Ênio Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira,

empresa que adotou uma linha especialmente combativa e atuante no período da

ditadura militar.

Houve momentos em que me senti assustada pela figura paterna,

amedrontada por uma aparição espectral que, paradoxalmente, era também o que

me movia a seguir em frente. Essa mesma imagem, porém, indicava o trabalho a

ser feito na tentativa de registrar uma parte do passado político e cultural deste

país, recolhendo dados, fatos e impressões que não deixassem cair no

esquecimento uma atividade editorial extremamente séria e comprometida com os

ideais de um homem.

Esse homem, que conheci bem no convívio doméstico, não se me havia

revelado, senão pelo que me chegava através de terceiros, em sua complexa e

apaixonante atividade profissional. Minha pesquisa para este trabalho foi,

portanto, uma maneira de me aproximar, de certa forma, de um lado de meu pai

que eu não conhecia. Com isso, inevitavelmente, o sentimento de sua perda volta

de modo cruel e pungente. Foi impossível evitar os insistentes pensamentos em

que se manifestava o desejo de tê-lo ao meu lado e de contar com sua ajuda e sua

orientação. Lendo os vários números da Revista, foram muitos os momentos em

que tive de interromper o trabalho porque meus olhos se enchiam de lágrimas ao

ver ali, revelando-se nas páginas amareladas que se esfarelavam sob o contato dos

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meus dedos, traços do pai com quem gostaria de ter convivido mais e do brasileiro

que admiro por sua atividade editorial e sua postura política. E havia também,

naquelas páginas, traços de um Brasil passado, de características conjunturais e

estruturais tão determinantes na formação do que somos hoje como povo, como

sociedade. Ali estavam, portanto, traços do que me forma como indivíduo, num

plano pessoal e familiar, e do que me forma como cidadã, num plano cultural e

coletivo.

A Revista Civilização Brasileira foi possivelmente a publicação periódica

mais significativa no período que vai de 1965 a 1968. O Brasil vivia, após o

primeiro ano do Golpe, uma atmosfera política de incerteza e de repressão

crescentes. Notícias de torturas começavam a aparecer nos jornais, ainda não

totalmente calados pela censura. No embate de forças dentro da estrutura militar, a

linha dura ganhava cada vez mais espaço. A Editora Civilização Brasileira

caracterizou-se então como “ponto de encontro” de intelectuais de esquerda – de

todos os matizes de esquerda. Era uma espécie de quartel-general da resistência,

ao lado do jornal Correio da Manhã. Sua produção fervilhava, e chegou a lançar

mais de um livro por dia útil. (FERREIRA, 1992, p.54)

A importância da Revista pode ser atestada pela análise de seu conteúdo,

pelo depoimento de intelectuais que a acompanharam de perto, pela repercussão

na imprensa e mesmo pela repressão que o governo militar julgou necessário

impor sobre ela. Com a promulgação do Ato Institucional número 5, o AI-5, os

editores foram obrigados a encerrar a publicação da Revista. Dez anos depois,

porém, sob o nome de Encontros com a Civilização Brasileira, a publicação é

retomada, indo até o início da abertura, na década de 80.

Este trabalho trata exclusivamente da Revista Civilização Brasileira, não

abordando sua retomada em Encontros. Essa concentração foi imposta por

limitações de tempo e de espaço. A dissertação tem, portanto, um foco específico

e um caráter eminentemente descritivo. Isso se justifica pela necessidade de

resgatar e trazer de volta à memória os traços físicos e de conteúdo que

configuram o periódico, antes de proceder a uma análise mais aprofundada.

Portanto, o que se faz aqui é iniciar um caminho, apontando possibilidades e

abrindo espaço para futuros estudos.

Para se compreender a importância da Revista, porém, é fundamental

compreender a situação política, social e econômica do Brasil nos anos de 1965 a

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1968. Em função isso, o trabalho se inicia com um resumo das circunstâncias

nacionais e internacionais que tornaram possível o Golpe de 64 e das suas

conseqüências mais imediatas.

Em seguida, e também com intuito de situar o leitor, há uma síntese da

história da Editora Civilização Brasileira – como surgiu, como se desenvolveu, o

que marca sua linha editorial. São traços que ajudam a compreender a ideologia

por trás da Revista e que contribuem para que se tenha uma noção da coragem e

da coerência de Ênio Silveira e das pessoas que trabalhavam a seu lado.

O terceiro capítulo, dedicado à Revista propriamente dita, faz uma síntese de

suas características físicas e uma breve análise de seu conteúdo, considerando as

diversas seções em que se dividia o periódico e os vários temas por ele abordados.

Fica patente a constante preocupação em manter uma linha aberta a vozes

discordantes do governo e críticas à situação que o país vivia então, mas sem

sectarismos partidários ou ideológicos. A polifonia resultante mostra o vigor do

pensamento de esquerda da década de 1960 no Brasil e no mundo, bem como a

mobilização dos intelectuais em defesa da liberdade de pensamento e de

expressão.

O último capítulo aborda especificamente a seção de literatura e crítica

literária da RCB, com o intuito de avaliar como a produção literária do país, tão

significativa naquele momento, se espelhava nas páginas do veículo em questão.

A grande discussão que dominava o meio artístico era a polêmica do engajamento

versus alienação. Isso fica bastante evidente no modo como os colaboradores da

Revista manifestavam-se sobre obras ficcionais, ensaísticas ou poéticas, fossem

nacionais ou estrangeiras. O espaço dedicado a assuntos do mundo editorial e

literário era considerável, o que é coerente com a posição do Conselho de

Redação e especialmente do editor Ênio Silveira em relação ao livro, visto como

instrumento de arejamento e enriquecimento das idéias e, portanto, como forma de

conscientização e libertação.

O resgate histórico feito nos dois primeiros capítulos não é só um modo de

introduzir o tema principal. Mais do que isso, revela a preocupação de renovar na

memória de hoje as marcas de um passado que não devemos esquecer. Na

introdução de A era dos extremos, Eric Hobsbawn chama a atenção para essa

estratégia do esquecimento que caracteriza a nossa época:

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“A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.” (HOBSBAWN, 1995, p.13)

É com a esperança de poder fazer uma pausa nesse “presente contínuo” e

restabelecer um vínculo com a experiência de gerações passadas que escrevi esta

dissertação. Que possamos nos reconhecer hoje em função do que fomos ontem.

A história pública de nosso país faz parte, inevitavelmente, da história particular

de cada um de nós. Conhecê-la em seus diferentes aspectos é, portanto, uma

maneira de conhecer melhor a nós mesmos. Não é, porém, um simples exercício

de auto-análise. Mais profundo do que isso, é um mergulho mesmo nas fundações

de nossa sociedade atual, ou, por que não, nas bases desta civilização brasileira

em que vivemos.

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O País

“O grande drama do Brasil é que ele não conhece a si mesmo.”

Glauber Rocha

Há quarenta anos, o Brasil ingressava em um período de ditadura militar

que marcaria sua história para sempre. O Golpe de 64 – que muitos insistiam em

chamar de “Revolução” – instaurou no país um governo militar que escondia

inúmeros conflitos e contradições profundas por trás da fachada de ordem e

hierarquia das Forças Armadas. Alternando momentos de endurecimento e de

abrandamento da repressão civil, o novo regime terminou no início da década de

1980, com um saldo assustador de pessoas cassadas, presas, torturadas,

desaparecidas ou exiladas.

2.1. Antes do país, o mundo

Para se compreender os acontecimentos que culminaram no Golpe de 1964

no Brasil, e a situação que daí decorreu, é preciso considerar como se configurava

o mundo na década de 1960. Em linhas gerais, pode-se dizer que o globo se

dividia em dois grandes blocos: o de países simpáticos ao comunismo, alinhados

sob a bandeira soviética, e o de países contrários a ele, tendo os Estados Unidos

no papel principal.

O confronto entre essas duas superpotências – Estados Unidos e União

Soviética – tornou-se, imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, uma

espécie de Terceira Guerra: a Guerra Fria. Baseados no medo mútuo e na firme

crença de que o inimigo poderia atacar a qualquer momento, os dois lados

embarcaram em uma sanha armamentista. Durante cerca de quarenta anos, a

possibilidade de um ataque destruidor pareceu diária e concreta.

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Por que fazer uma volta tão grande no tempo para se falar do Brasil da

década de 60? Por uma razão muito simples. A Guerra Fria definiu os novos

contornos do mundo, dividindo-o em dois grandes blocos. Nesse precário

equilíbrio de forças, cada pólo tentava conseguir mais adeptos para o seu lado. O

resto do mundo tornou-se então uma grande zona de influência disputada pelas

duas superpotências. A Doutrina Truman, adotada pelos Estados Unidos em

março de 1947, deixava essa intenção bem clara: “(...) a política dos Estados

Unidos deve ser a de apoiar os povos livres que resistem a tentativas de

subjugação por minorias armadas ou por pressões de fora”. (HOBSBAWN, 1995,

p.226) Nesse jogo, o inimigo era pintado com as cores mais feias possíveis. Todas

as estratégias de dominação eram postas em prática para garantir mais “aliados”.

E o Brasil, sem dúvida, foi um dos países envolvidos nessa disputa. O “monstro

vermelho” do comunismo, que comia criancinhas e queria ver o fim de toda

liberdade e de tudo o que se considerava bom e justo, era uma imagem

constantemente usada para garantir a influência norte-americana no cenário

político e econômico brasileiro. Em 1964: Golpe ou Contragolpe?, o historiador

Hélio Silva aponta a conexão entre o Golpe dos militares brasileiros e a Guerra

Fria:

“Depois da Segunda Guerra Mundial e da bipolarização do poder, marcada pela divergência fundamental entre duas potências, não era mais admissível, no mundo capitalista, um sistema de segurança que não tivesse como último elemento de apoio o poder militar dos Estados Unidos. (...) A hegemonia de uma superpotência exige esferas de influência que são também sistemas de dominação econômica, porque segurança e desenvolvimento constituem teses inseparáveis. (...) Março de 64 é um episódio da guerra fria”. (SILVA, 1975, pp.33-34)

A interferência norte-americana nos rumos sociais e políticos do Brasil é

inegável. Sua participação no Golpe de 64 foi bastante ativa. Há registros

indicando que o presidente Lyndon Johnson manteve-se constantemente

informado pela embaixada americana a respeito dos acontecimentos que levaram

à deposição de João Goulart. Todos os esforços para manter o novo regime dentro

dos limites mínimos da aparência de legalidade foram coordenados por agentes

norte-americanos, a fim de que os EUA pudessem reconhecer o novo governo

como legítimo tão logo fosse possível.

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A política de Goulart feria frontalmente os interesses americanos, como se

verá mais adiante. As vantagens de instaurar no poder forças de direita que se

alinhassem política e economicamente aos Estados Unidos eram enormes. O

Departamento de Estado dos EUA chegou a programar o envio de auxílio para as

tropas revolucionárias. O porta-aviões Forrestal aportaria perto de Santos e

disponibilizaria armas e combustível no caso de haver resistência. O plano ficou

conhecido como Operação Brother Sam.

No livro A ditadura envergonhada, o jornalista Elio Gaspari relata em

detalhes a participação americana no processo de instauração da ditadura militar

no Brasil: “O governo americano estava pronto para se meter abertamente na crise

brasileira caso estalasse uma guerra civil.” (GASPARI, 2002, p.101) O presidente

Johnson, em uma conversa telefônica com o subsecretário de Estado George Ball,

chegou a afirmar: “Acho que devemos tomar todas as medidas que pudermos e

estar preparados para fazer tudo que for preciso, exatamente como faríamos no

Panamá – desde que seja viável. [...] Eu seria a favor de que a gente se arrisque

um pouco”. (Id., ibid.)

Muito antes de Gaspari apresentar essa farta documentação ao público,

porém, o historiador Hélio Silva já denunciava, com base em informações “de

fonte reservada”, a extensão da participação norte-americana nos preparativos

pré-Golpe:

“No trabalho pessoal de pesquisa, obtive a informação, de fonte reservada, de que elementos destacados do movimento haviam sido procurados por um estranho personagem, que se dizia grego e representante de um organismo internacional de combate ao comunismo, logo identificado como a CIA. Oferecia armas e tudo o que fosse necessário. Em prosseguimento, teria havido novos contatos, já com o adido militar norte-americano, o então coronel Vernon Walters e, finalmente, com o próprio Embaixador Lincoln Gordon. Às vésperas da revolução, uma esquadra americana estava em condições de alcançar a costa brasileira para eventual auxílio dos revolucionários, sob a motivação de prestar assistência aos súditos norte-americanos e aos interesses americanos, como foi feito, mais tarde, em São Domingos. Tais entendimentos foram feitos sob a declaração de que não se tratava de intromissão em nossa política interna, mas de apoio ao combate ao comunismo”. (SILVA, 1975, p.27)

Tratando do papel dos Estados Unidos na instalação das ditaduras latino-

americanas, o escritor Otto Maria Carpeaux não economizava no tom crítico e

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irônico em suas crônicas no Correio da Manhã, reunidas, em 1965, no livro A

batalha da América Latina, publicado pela Civilização Brasileira. Em uma delas,

“Inferno, XXIII”, comenta a notícia de que os representantes dos EUA, na

Conferência Interamericana no Rio de Janeiro, proporiam “uma resolução contra

os golpes militares e outros”. Afirma então Carpeaux:

“É do domínio público que alguns dêsses golpes – só falamos de tempos recentes – foram diretamente instigados pelo govêrno dos Estados Unidos (...). Também é do domínio público que nenhum dos govêrnos oriundos de golpes poderia manter-se no poder durante 24 horas, se os Estados Unidos lhe retirassem seu apoio. Os golpes militares – e outros, como diz a notícia – e a existência de govêrnos golpistas na América Latina são, portanto, de responsabilidade do govêrno norte-americano. Provas suplementares são os abundantes favores econômicos concedidos pelos govêrnos golpistas a firmas particulares norte-americanas, espécie de pagamento às custas do país golpeado”. (CARPEAUX, 1965, p.61)

Em outras crônicas, Carpeaux mencionava a frase do Subsecretário de

Estado para Assuntos Interamericanos, sr. Thomas C. Mann, que afirmava: “A

estabilidade é mais importante que a democracia.” (Id., p.98) Corajoso, Carpeaux

iniciou assim outro de seus textos: “O intervencionismo dos Estados Unidos é,

sem favor, a maior tolice político-diplomática dos últimos tempos.” E terminava:

“Chega de tolices. Aviso para o presidente Lyndon Johnson e não sòmente para o

presidente Lyndon Johnson: não se governa nações com a mentalidade de um

delegado de polícia política.” (Id., pp.152-153)

O embaixador americano no Brasil, sr. Lincoln Gordon, foi outra peça-

chave nas manobras que levaram à deposição de Goulart. Em O golpe começou

em Washington, também publicado pela Civilização Brasileira em 1965, Edmar

Morel afirma que Gordon, “o mais ativo de todos os embaixadores ianques que já

passaram pelo Brasil”, “embarcou, nessa ocasião [quando se discutia a compra da

empresa americana Bond and Share, que já havia sido encampada pelo Rio

Grande do Sul], para os Estados Unidos e, dentro de um plano previamente

estabelecido, declarou que o nosso governo era dominado por comunistas (...)”.

(MOREL, 1965)

A compra da Bond and Share, empresa do grupo American Foreign Power,

por um preço que se revelou depois excessivo (US$135 milhões, quando o valor

estimado por uma comissão técnica brasileira era de US$57 milhões) é mais uma

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prova da subserviência brasileira à pressão e aos interesses dos Estados Unidos, e

exemplifica os “favores econômicos” mencionados por Carpeaux.

A participação americana no Golpe foi importantíssima, mas é fundamental

que fique bem claro que não foi por sua causa que se deu o levante. Os Estados

Unidos apenas se aproveitaram de uma situação que lhes era favorável. Foram

coadjuvantes, deixando os papéis principais para militares brasileiros de altas

patentes. A motivação para o Golpe vem de fatores diversos, e é fruto da

complexidade de um país de dimensões continentais dividido entre o agrário e o

urbano, o moderno e o arcaico. É isso que se verá a seguir.

2.2. Antes do Golpe O presidente deposto, João Goulart, assumira o cargo em 1961, após a

renúncia do presidente Jânio Quadros, que governara por apenas sete meses.

Nessa época, o Brasil viveria o primeiro ensaio de Golpe. Jango, como era

conhecido o vice-presidente eleito após o fim do mandato de Juscelino

Kubitschek, estava em visita oficial à China na ocasião da renúncia. Seu regresso

foi ameaçado pelo que ficou conhecido como “Operação Mosquito”, que setores

radicais da Aeronáutica estariam organizando com vistas a derrubar o avião em

que o vice-presidente viajava para tomar posse em Brasília. Os ministros militares

recusavam-se a deixá-lo assumir. O país inteiro viveu dias de angústia diante do

impasse, que foi solucionado com a alteração da Constituição para permitir a

implantação do parlamentarismo. João Goulart assumiria como um fantoche. O

poder ficaria nas mãos do primeiro-ministro, o mineiro Tancredo Neves, e do

Congresso.

É preciso esclarecer que nesse período as eleições para presidente e para

vice eram independentes, ou seja, não havia uma chapa unificada. Por isso foi

possível haver, na história do Brasil, um presidente e um vice tão diferentes

quanto Jânio Quadros e João Goulart. Jânio era um demagogo, que seguiu a onda

de moralização populista usando a vassoura como símbolo de campanha. Seu

lema era “varrer a corrupção” e o “lixo” ideológico do país. Jango fazia parte do

que os eleitores de Jânio consideravam “lixo”.

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Eleito com mais de cinco milhões e meio de votos, o maior índice de

aprovação conseguido até então por um presidente brasileiro, Jânio teve uma

atuação breve e pitoresca à frente da nação. Algumas de suas medidas que

mereceram destaque nos jornais da época foram a proibição das brigas de galos, o

veto aos maiôs nos concursos de beleza e a exigência de que as corridas de

cavalos se realizassem apenas aos domingos. Além de causar surpresa com essas

medidas, Jânio conseguiu desagradar a direita que o apoiava ao reatar as relações

diplomáticas com a União Soviética e ao conceder a Ordem do Cruzeiro do Sul a

Ernesto “Che” Guevara. Os motivos de sua renúncia nunca foram suficientemente

esclarecidos. Há a tese de que fazia parte de uma trama para retornar ao cargo

com poderes absolutos. Evidentemente, isso não se confirmou. De qualquer

forma, Jânio se dizia incapaz de governar sem ter o apoio do Congresso. Chegou a

afirmar: “Não posso governar este País com um Congresso de imorais.” (Jornal

do Brasil, 27 ago. 1961, p.1)

O fato é que sua renúncia levou o país à iminência de uma guerra civil. Se

uma parcela de radicais de direita tentava impedir o regresso e a posse de Jango,

as forças legalistas, especialmente as concentradas no Rio Grande do Sul e

representadas pelo governador daquele estado, Leonel Brizola, prometiam lutar

para que o vice-presidente assumisse como previa a lei. Como já se disse, a

solução do embate pela legalidade foi a adoção do sistema parlamentarista, que

acalmava um pouco os ânimos exaltados dos que temiam a figura de João Goulart

por sua identificação com a esquerda e com o que indistintamente se chamava de

“o perigo comunista”.

Goulart fora ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, mas um

manifesto de coronéis o tirara do cargo em 1954. Suas realizações como ministro

incluíam o aumento de cem por cento do salário mínimo e a reorganização dos

sindicatos para aumentar a influência do governo sobre a classe operária. Nas

eleições presidenciais de 1960, candidatou-se a vice na chapa do marechal

Henrique Teixeira Lott, pela coligação PTB-PSD (Partido Trabalhista Brasileiro e

Partido Social Democrata). Lott perdeu por uma enorme diferença de votos, mas

seu vice foi eleito. Surgia então a dupla Jan-Jan (Jânio-Jango). Se ambos eram

populistas, Jango era mais consistentemente de esquerda e isso assustava a elite. O

golpe parlamentarista imposto a Jango durou pouco. Ele se aliou às esquerdas e

conseguiu realizar, em janeiro de 1963, um plebiscito sobre a volta do

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presidencialismo. Ganhou com 9,5 milhões de votos contra 2 milhões dados ao

parlamentarismo.

Tendo os poderes presidenciais nas mãos, Goulart deu início a um governo

de certa forma contraditório. Se por um lado procurava aliar-se ao movimento

sindical e aos setores reformistas, por outro tentava impor uma política de

contenção salarial para estabilizar a economia, segundo a orientação do FMI. Seus

projetos de reformas de base, porém, custaram-lhe o aumento das forças de

oposição. Goulart perdeu o apoio da burguesia quando começou a lançar as bases

para realizar a reforma agrária e implementou uma lei regulando a remessa de

lucros para o exterior. Limitou o capital estrangeiro, nacionalizou empresas de

comunicação e reviu concessões para a exploração de minério. Com isso, atraiu a

ira das forças estrangeiras, principalmente as norte-americanas, que cortaram

crédito para o Brasil e interromperam as negociações da dívida externa.

A agitação política era crescente, com greves e outras manifestações

públicas. A sociedade polarizava-se e dividia-se em siglas: à esquerda, apoiando o

presidente, a UNE (União Nacional dos Estudantes), a CGT (Comando Geral dos

Trabalhadores) e as Ligas Camponesas; à direita, o IPES (Instituto de Pesquisa e

Estudos Sociais), o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e a TFP

(Tradição, Família e Propriedade), organizações criadas entre 1950 e 1960 para

defender os valores “liberais”, “modernizadores” e “democráticos” no país. Eram

órgãos que representavam os interesses dos setores industriais e financeiros e que

se colocavam frontalmente contra a política econômica e social de Jango. O

Congresso, de maioria conservadora, bloqueava as iniciativas reformistas do

presidente. Goulart, porém, parecia cultivar o choque, o que permitia supor que

desejava atropelar o processo de sucessão e alterar a Constituição para permitir

que concorresse à reeleição. (GASPARI, 2002, p.49)

“A agitação manifestada nas greves, nas reivindicações de direitos, de salários que tumultuaram a gestão Jango Goulart denunciava o conflito profundo que existia entre as massas urbanas, sem estruturação definida e com lideranças populistas, e a estrutura de poder que ainda controlava o Estado. Enquanto os líderes populistas reivindicavam rápida modernização do País, (...) a classe dominante tradicional usou a pressão populista como espantalho para submeter ao seu controle os novos grupos patrimoniais, surgidos com a industrialização. É este conflito de poder que ocupa o centro da luta política e torna impraticável a execução de qualquer programa por parte dos dirigentes. A existência desse conflito fundamental ameaça, por

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fim, o próprio funcionamento das instituições básicas em que se apóia o poder. Assim, a intervenção militar teria de ocorrer, mais cedo ou mais tarde, dependendo das condições mais ou menos favoráveis ao golpe”. (SILVA, 1975, pp.26-27)

A crise agravava-se. No dia 13 de março de 1964, Goulart provocou a

oposição realizando um grande comício no Rio de Janeiro, em frente à Central do

Brasil, ao lado do Ministério da Guerra. No palanque, em companhia de sua bela

esposa, a Sra. Maria Teresa Goulart, e diante de cerca de 130 mil pessoas, Jango

anunciou a desapropriação de terras ociosas às margens de rodovias e açudes

federais e a encampação das refinarias particulares de petróleo.

A resposta das forças conservadoras foi rápida. No dia 19 de março, em São

Paulo, realizou-se a famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade,

reunindo cerca de 200 mil pessoas. Organizado por grupos de direita e pelos

setores conservadores da Igreja Católica, esse tipo de Marcha depois se repetiu em

outras cidades brasileiras. Defendendo as “instituições democráticas” e

repudiando o avanço do comunismo em solo nacional, os manifestantes

carregavam faixas ameaçadoras e irônicas como “Tá chegando a hora de Jango ir

embora” e “Vermelho bom, só batom”. (GASPARI, 2002, p.49)

Sobre as condições sociais que preparam o terreno para o golpe da direita, o

historiador Hélio Silva, em sua perspicaz análise do Golpe, afirma:

“Março de 64 não se esgota na ação militar. Há toda a mobilização de uma sociedade, de suas forças progressistas e conservadoras, na conquista de novos horizontes ou na defesa de seus direitos e privilégios. Antes do levante de 31 de março, há estruturação de forças econômicas e sociais, nas campanhas do IBAD, do IBES [sic] e do GAP, para a constituição de um Congresso que votasse as suas leis, e a formação de uma mentalidade, conformada em suas doutrinas. A essa preparação, que custou trabalho, inteligência e dinheiro, seguiu-se larga preparação da opinião pública, através da utilização dos meios de comunicação de massas, imprensa, rádio, televisão, culminando nas maciças demonstrações das Marchas da Família”. (SILVA, 1975, p.34)

Algumas crises militares, ainda que de pequeno porte, haviam contribuído

para levar a situação a esses termos. Em maio de 1963, o governador do Rio

Grande do Sul, Leonel Brizola, ofendera o general Antonio Carlos Murici,

comandante da Infantaria Divisionária da 7ª. Divisão de Infantaria de Natal, em

um discurso extremamente violento proferido no Rio Grande do Norte. No dia

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seguinte, oficiais de todo o país enviaram telegramas ao ministro da Guerra,

general Amauri Kruel, expressando sua solidariedade a Murici. Era um ótimo

incremento à conspiração antigovernista que começava a se fortalecer.

Em setembro do mesmo ano ocorreu, em Brasília, a Revolta dos Sargentos.

Controlado em poucas horas, o movimento de cerca de quinhentos sargentos que

protestavam contra uma decisão do Superior Tribunal Federal serviu apenas para

reforçar, junto à alta oficialidade, o sentimento de repúdio ao que consideravam

uma baderna promovida pelos centros sindicais. Afinal, a insurreição dos

sargentos representava uma ameaça à rígida ordem hierárquica mantida pela

instituição militar como um de seus principais pilares. Mesmo militares aliados ao

governo viam com maus olhos esse tipo de agitação.

A chamada Revolta dos Marinheiros, já em março de 1964, foi talvez,

dessas pequenas “crises militares”, a mais significativa. Teve início durante a

Semana Santa, quando o presidente descansava em sua fazenda em São Borja, no

Rio Grande do Sul. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, mandara prender doze

graduados que haviam transformado a Associação de Marinheiros e Fuzileiros

Navais em uma organização monitorada pelo PCB. Reunidos no Sindicato dos

Metalúrgicos do Rio de Janeiro, os marinheiros exigiam a suspensão da punição.

Por quatro dias recusaram-se a abandonar o lugar, e chegaram a receber o reforço

de uma tropa de fuzileiros que, enviada para desalojá-los, acabou por se unir aos

rebelados. O líder da rebelião era o marinheiro José Anselmo dos Santos,

nacionalmente conhecido como Cabo Anselmo. (Tudo indica que o Cabo

Anselmo fosse um agente infiltrado da CIA, inclusive o tratamento privilegiado

que recebeu quando foi preso, logo após o Golpe. No entanto, o cabo afirma que

só mudou de lado depois de 1971.) A solução dada pelo governo à crise provocou

a hostilidade dos oficiais de todas as armas, indignados pela afronta à disciplina

militar: os rebelados foram anistiados e o ministro Sílvio Mota foi substituído pelo

almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues, um oficial da reserva próximo do

Partido Comunista.

A oficialidade, a essa altura, era contida por apenas um tênue fio de

legalidade. Esse fio foi rompido quando João Goulart compareceu, na noite de 30

de março de 1964, a uma cerimônia que comemorava o aniversário da associação

de subtenentes e sargentos da Polícia Militar, no Automóvel Clube do Rio de

Janeiro. Os oficiais esperavam que Goulart repreendesse os subalternos. O que

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aconteceu foi exatamente o contrário. Num discurso inflamado, Jango criticou os

que insistiam em estimular a crise entre o governo e as Forças Armadas:

“(...) Quem fala em disciplina, senhores sargentos, quem a alardeia, quem procura intrigar o presidente da república com as Forças Armadas em nome da disciplina, são os mesmos que, em 61, em nome da disciplina e da pretensa ordem e legalidade que eles diziam defender, prenderam milhares de sargentos. (...) Se os sargentos me perguntassem – estas são as minhas últimas palavras – donde surgiram tantos recursos para campanha tão poderosa, para mobilização tão violenta contra o governo, eu diria, simplesmente, sargentos brasileiros, que tudo isto vem do dinheiro dos profissionais da remessa ilícita de lucros que recentemente regulamentei através de uma lei. É do dinheiro maculado pelo interesse enorme do petróleo internacional.” E terminava de modo quase panfletário: “Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos o Congresso fechado. Ao contrário, queremos o Congresso aberto. Queremos apenas que os congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares. (...)”

(GASPARI, 2002, pp.63-65)

A ida do presidente ao Automóvel Clube e o tom de seu discurso

constituíram uma provocação de tal ordem às altas patentes militares que é quase

impossível imaginar que Jango não intencionasse o agravamento da crise. Na

agenda presidencial, uma série de manifestos estava já programada para os

próximos dias, em outras cidades importantes do país. O que Jango planejava era

uma espécie de “contra-golpe”. Contando com o apoio de seu dispositivo militar e

das forças sindicais, pretendia pressionar o Congresso para aprovar um pacote de

reformas e a mudança nas regras da sucessão presidencial. Àquela altura, estava

claro que haveria um golpe, só não se sabia de que lado viria. (Id., p.51)

O grande problema foi que o dispositivo militar com que Goulart contava

estava se esfacelando aos poucos. Diante da pressão de nomes influentes da alta

oficialidade, pouco a pouco os militares simpáticos ao governo foram mudando de

lado. A situação era extremamente tensa; qualquer posição era bastante arriscada,

uma vez que, às vésperas do Golpe, ainda não se podia prever as conseqüências

que este teria. Manter-se aliado ao governo poderia significar a sujeição a penas

diversas quando este fosse derrotado. Por outro lado, se o governo vencesse e as

forças conspiratórias fossem reprimidas, o papel de traidor também não seria nada

agradável. Muitos esperaram em cima do muro o quanto puderam. Por total

inércia do presidente, as forças legalistas não conseguiram se organizar a tempo, e

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quando viram, já era quase impossível reunir apoio suficiente para combater as

manobras “revolucionárias”.

Laurence Hallewell, em seu extenso trabalho sobre o livro no Brasil, faz um

excelente resumo da situação:

“Quer devido a pressões externas – os Estados Unidos estavam inquietos, não apenas com a política externa independente do Brasil, mas ainda mais com a perspectiva iminente de um atraso de pagamento de sua dívida externa –, quer à inépcia do governo, quer ainda porque Goulart considerasse que o estabelecimento do caos fosse uma preliminar necessária a um golpe que ele próprio estava planejando, o fato é que o país atingira no início de 1964 um tal estado de desespero que tornava inevitável a ocorrência de mudanças políticas radicais.” (HALLEWELL, 1985, p.462)

2.3. O Golpe Um dos principais articulistas do Golpe de Abril foi o chefe do Estado

Maior do Exército, general Humberto de Alencar Castello Branco, ao lado dos

generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Castello Branco assinava a

Circular Reservada enviada no dia 20 de março de 1964 a todos os oficiais do

Exército, alertando para o perigo que as novas medidas presidenciais

representavam. Essa circular fazia parte da intensa campanha para desmoralizar o

presidente e preparar os espíritos para a “revolução”.

O primeiro passo concreto no sentido da derrubada de Jango, porém, foi

dado em Minas Gerais. Naquele estado, o poder civil, nas mãos do governador e

banqueiro José de Magalhães Pinto, estava em estreita harmonia e articulação com

os generais que planejavam a insurreição. Eles eram Carlos Luiz Guedes,

comandante da Infantaria Divisionária/4, e Olympio Mourão Filho, da 4a. Região

Militar e da 4a. Divisão de Infantaria. Ambos já estavam a ponto de serem

removidos de seus cargos e relegados a atividades menos expressivas.

Precisavam, portanto, agir rapidamente. E foi o que Mourão fez: na madrugada de

30 para 31 de março, pôs suas tropas em marcha na direção do Rio de Janeiro e de

Brasília. Sua precipitação chegou a assustar o general Castello Branco, que, por

telefone, ainda tentou conter o movimento. Mas já era tarde. Mourão já conseguira

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o apoio do general Antonio Carlos Muricy. As tropas mineiras se concentrariam

na divisa de Rio e Juiz de Fora esperando o levante fluminense.

A precipitação de Mourão, de fato, possibilitou uma tentativa de

resistência por parte de dispositivo militar fiel ao governo. Tropas foram enviadas

do Rio de Janeiro e de Petrópolis para enfrentar as tropas rebeldes na divisa com

Juiz de Fora. Por um momento, os conspiradores pareciam recuar. O general

Guedes demorava em mostrar alguma ação efetiva em Belo Horizonte, de modo

que Mourão decidiu continuar a agir sem esperar por ele.

Os oficiais ainda ligados a Jango pressionavam-no a lançar um manifesto

expressando seu repúdio à ameaça “comuno-sindical” de modo a reconquistar a

confiança das Forças Armadas. (GASPARI, 2002, p.76) Em suma, queriam uma

declaração do presidente garantindo que se afastaria da esquerda e daria uma

decisiva guinada à direita. A alternativa de Jango seria ele mesmo realizar seu

golpe, fechando o Congresso e aliando-se às forças sindicais e às tropas não

graduadas, expurgando uma parte da oficialidade. Jango vacilou e as forças

esquerdistas não se manifestaram. Em uma última tentativa, na noite do dia 31 de

março, o general Amauri Kruel, então comandante do II Exército, em São Paulo,

telefonou para o presidente pedindo-lhe que rompesse com a esquerda. Goulart

afirmou que ceder às exigências feitas equivaleria a capitular e a tornar-se um

mero “presidente decorativo”. Encerrou a conversa num tom dramático:

“General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”. (Id., p.88)

Kruel relutava em trair o presidente, e declarava-se “fiel à Constituição”,

mas queria livrar a pátria do “jugo vermelho” pressionando Goulart a se afastar da

esquerda. (Id., p.90) Não conseguiu, e pouco a pouco toda a base militar do

governo foi mudando de posição. As tropas enviadas para combater os rebeldes

em Juiz de Fora haviam mudado de lado e se associado aos que deviam reprimir.

Assustado, Jango decidiu deixar o Rio de Janeiro e voar para Brasília. Lá,

percebeu que contava com ainda menos apoio, e foi então para Porto Alegre. Dali

seguiria para sua fazenda, em São Borja, e desta para o exílio no Uruguai.

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Antes mesmo de Goulart deixar o solo nacional, o presidente do Congresso,

senador Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República.

Como presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli foi empossado em

caráter provisório. Enquanto isso, a vanguarda da rebelião debatia para decidir

quem assumiria o cargo. O general Arthur da Costa e Silva expediu um

comunicado em que se auto-intitulava “Comandante do Exército Nacional”.

Evidentemente, desejava também assumir o comando do país, mas teve de ceder à

indicação dos líderes civis e militares do movimento, que optaram pelo general

Castello Branco. Costa e Silva acabou por assumir a pasta de ministro da Guerra.

Como se pode perceber, o movimento revolucionário não tinha linhas bem

definidas de governo, não tinha um planejamento coerente, unificado. Isso fica

claro na breve mas esclarecedora análise que o historiador Celso Castro faz do

movimento e de sua falta de organização:

“A falta de resistência ao golpe não deve ser vista como resultado da derrota diante de uma bem-articulada conspiração militar. Foi clara a falta de organização e coordenação entre os militares golpistas. Mais do que uma conspiração única, centralizada e estruturada, a imagem mais fidedigna é a de “ilhas de conspiração”, com grupos unidos ideologicamente pela rejeição da política pré-1964, mas com baixo grau de articulação entre si. Não havia um projeto de governo bem definido, além da necessidade de se fazer uma “limpeza” nas instituições e recuperar a economia.” (CASTRO, in http://www.cpdoc.fgv.br, em 30 jul. 2004)

Nas páginas do Correio da Manhã começava a aparecer o esboço de alguma

resistência. Eram, por exemplo, as crônicas de Carlos Heitor Cony, depois

reunidas no livro O ato e o fato, publicado pela editora Civilização Brasileira

ainda em 1964. No dia 2 de abril, relatava ele a movimentação nas ruas e o apoio

da população de classe média aos rebeldes:

“Nessa altura, há confusão na Avenida nossa Senhora de Copacabana, pois ninguém sabe ao certo o que significa ‘aderir aos rebeldes’. A confusão é rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural tendência da humana espécie é aderir. (...) Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível pára perto do ‘Six’ e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva. (...) Recolho-me ao sossego e sinto na bôca um gôsto azêdo de covardia”. (CONY, 1964, pp.2-3)

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2.4. Depois do Golpe Uma das primeiras providências tomadas pelo novo governo militar foi

fazer o expurgo dos que se colocavam contra ele. Esse era um dos poucos pontos

em que os novos líderes concordavam. De resto, reinavam inúmeras divergências,

e a proclamada unidade militar ainda estava longe de ser atingida (se é que em

algum momento o foi).

Depois da reunião dos civis e militares que constituíam a cúpula do novo

regime, em que se vetou o nome de Costa e Silva para a presidência, Castello

Branco foi eleito para o cargo pelo Congresso. Sua promessa foi de “entregar, ao

iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo em

eleições livres, uma nação coesa”. (apud GASPARI, 2002, p.125) O que entregou,

e apenas em 1967, foi “uma nação dividida a um sucessor eleito por 295 pessoas”.

(Id., ibid.)

O Ato Institucional publicado então não foi numerado, pois se supunha que

seria o único. Como se sabe, não o foi. Com onze artigos, o Ato limitava os

poderes do Congresso e do Judiciário, expandindo os do Executivo. Garantia

ainda ao novo presidente um prazo de sessenta dias para cassar mandatos e

cancelar direitos políticos por dez anos e de seis meses para demitir funcionários

públicos civis ou militares.

Comentando o Ato Institucional, Cony escreveu e publicou no Correio da

Manhã a crônica “O Ato e o Fato”. Dizia:

“E assim é que o Alto Comando Revolucionário, sentindo que suas raízes não são profundas, impotente para realizar alguma coisa de útil à Nação – pois tirante a deposição do sr. João Goulart não há conteúdo nem forma no movimento militar – optou pela tirania. Lendo o preâmbulo do Ato tive repugnância pelos seus redatores. (...) Foi simples e tiranicamente imposto a uma Nação perplexa, sem armas e sem líderes para a reação. Foi desprezivelmente imposto a um Congresso emasculado”. (CONY, 1964, pp.15-16)

E concluía, comparando a situação brasileira com a da Argentina:

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“(...) os militares da Argentina não escondem seus apetites. Não usam o terço ou a bandeira do anticomunismo para justificarem a tirania. Lembro de passagem o óbvio. Depois de Mussolini, depois de Hitler, invocar o anticomunismo para impor uma ditadura é tolice. A história é por demais recente, e nem vale a pena repeti-la aqui”. (Id., p.16)

Cerca de cinco mil pessoas foram presas nas semanas seguintes à deposição

de Goulart. Um dos primeiros a serem detidos foi o governador de Pernambuco,

Miguel Arraes. Centenas passaram pelas embaixadas latino-americanas em busca

de asilo político. Dentre os primeiros a se exilarem, evidentemente, estavam

Jango e Leonel Brizola. Quase quatrocentas pessoas tiveram seus mandatos

cassados ou seus direitos políticos suspensos. Dentre elas, o editor Ênio Silveira.

O número de mortes não foi muito alto, mas os sinais de violência eram

inequívocos. No dia 2 de abril, o líder comunista Gregório Bezerra, aos 64 anos,

foi amarrado seminu à traseira de um jipe e foi arrastado pelas ruas dos bairros

pobres do Recife. Em seguida foi espancado e jogado na prisão. O vice-almirante

Cândido da Costa Aragão, um dos líderes da Revolta dos Marinheiros, foi preso e

brutalmente torturado, como revela uma carta de sua filha Dilma Aragão,

publicada na coluna de Cony no Correio da Manhã:

“Grita dentro de mim a repugnância pelos homens, ao ver como a maldade, o ódio e a ferocidade fizeram de meu pai um trapo humano. (...) Vale lembrar que meu pai é um vice-almirante que perdeu a batalha. Encontrei-o relegado a uma condição tão deprimente que só um verme cheio de peçonha mereceria ter. (...) Senhores que mandam no momento em minha terra, peço-lhes de joelhos, não clemência, mas justiça. (...) Libertem meu pobre pai da deplorável condição física. Martirizem-no menos, para que ele possa readquirir a saúde mental. O espectro de homem que vi chora e ri desordenadamente e não consegue articular duas frases sequer, no mesmo assunto. O desespero me faz pedir, por esmola, que cobrem o crime (político) de um ser humano, mas na condição de seres humanos (...)”. (ARAGÃO in CONY, 1964, p.99)

Se as citações são longas e muitas, é porque a angústia e o desespero de

quem viveu aquela época também o foram. Os relatos feitos imediatamente após o

Golpe, no período de medo e incerteza que a ele se seguiu, dão conta, de modo

muito vívido e claro, da opressão que se abateu sobre a população.

Foi também no prefácio ao livro O ato e o fato de Cony que o editor Ênio

Silveira expressou sua visão sobre o governo instaurado pela “Revolução”. Em

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uma breve análise da conjuntura nacional e internacional que levou ao Golpe,

Ênio fazia questão de frisar:

“Em primeiro lugar, não nos esqueçamos de que se acaba de escrever, em nossas costas, um novo capítulo da Guerra Fria. Os setores mais decididos do imperialismo americano (...) entenderam que no Brasil se poderia estar jogando uma cartada decisiva contra seus interesses em todo o Continente. (...) Era indispensável, portanto, que se acabasse logo com essa brincadeira de emancipação nacional, tão perigosa e pouco pedagógica quanto uma granada em mãos de criança”. (SILVEIRA in CONY, 1964, p.XII.)

Fossem quais fossem as motivações que levaram ao Golpe, o resultado era

já visível e indiscutível. O Ato Institucional dava amplos poderes para que o Alto

Comando Revolucionário agisse como bem entendesse. A violência que se

espalhou pelo país não foi, ao contrário do que alguns líderes militares da época

queriam fazer acreditar, um surto provocado pelo calor do momento, justificado

pelo fato de que não se “faz uma omelete sem quebrar os ovos”, como disse o

general Golbery do Couto e Silva vinte anos depois, ao analisar os eventos desses

primeiros dias. (apud GASPARI, 2002, p.133) Os ovos continuaram sendo

quebrados durante longas décadas. Com maior ou menor grau de intensidade, a

violência oficial (ou extra-oficial, mas garantida pela inércia do governo em

reprimi-la) sempre agiu no sentido de coibir e reprimir qualquer manifestação que

se opusesse ao novo regime ou que parecesse defender valores “subversivos”.

A tortura passou a ser um método comum de investigação. As funções

militares confundiam-se com as policiais. Os inúmeros Inquéritos Policiais

Militares (IPMs) abertos em todo o país contribuíam para a grandiosa tarefa de

“acabar com a corrupção e a subversão”. Evidentemente, a luta contra a corrupção

durou bem menos do que a outra...

O presidente Castello Branco, porém, desejava conter os excessos e

normalizar a vida política. Segundo ele, as cassações levavam a um clima “pior

do que a Inquisição”, e cada ação fora da lei significava um retrocesso na

aprovação da opinião pública e do exterior. E completava, desabafando: “Não sou

somente presidente de expurgos e prisões”. (Id., p.136)

E não era mesmo. Em maio de 1965, o editor Ênio Silveira, que cometera o

grave crime de ter recebido o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, para

um almoço em sua casa, foi preso e envolvido no que ficou conhecido como o

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“IPM da Feijoada”. Um manifesto de repúdio à prisão do editor foi assinado por

cerca de mil pessoas ligadas à área cultural. Sobre a questão, o presidente Castello

enviou ao general Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, um bilhete

manuscrito. Nele, perguntava:

“Por que a prisão do Ênio? Só para depor? A repercussão é contrária a nós, em grande escala. O resultado está sendo absolutamente negativo. (...) Há como que uma preocupação em mostrar ‘que se pode prender’. Isso nos rebaixa. (...) Apreensão de livros. Nunca se fez isso no Brasil. (...) Os resultados são os piores possíveis contra nós. É mesmo um terror cultural”.1 (apud GASPARI, 2002, p.231)

Na área cultural, existia ainda certa liberdade para manifestações

oposicionistas, o que seria totalmente reprimido após 1968. Os jornais ainda

podiam publicar crônicas como as de Carlos Heitor Cony, que criticavam

abertamente o novo regime e ridicularizavam os líderes militares, ou como as de

Otto Maria Carpeaux, que faziam uma dura análise da política externa brasileira e

da interferência norte-americana nas decisões políticas e econômicas de toda a

América Latina. Sobre a atuação dos intelectuais e da cultura de modo geral no

período imediatamente após o Golpe, diz Heloísa Buarque de Hollanda:

“O efeito principal do golpe militar em relação ao processo cultural não se localizou, num primeiro momento, no impedimento da circulação das produções teóricas e culturais de esquerda. Ao contrário, como mostra [Roberto] Schwarz, no período imediatamente posterior aos acontecimentos de 64, ‘apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país’. (...) Mas se a circulação do ideário e das manifestações culturais patrocinadas pela esquerda não é impedida, ela será, todavia, bloqueada em seu acesso às classes populares (...)”. (HOLLANDA, 1980, p.30)

Castello desejava limitar os poderes excepcionais que o Ato Institucional

lhe conferia. Encontrava, porém, a resistência de um setor das Forças Armadas

que exigia o endurecimento. Eram os ultrarevolucionários, que ficaram

conhecidos como “linha dura”. O medo de perder sua base militar impedia o

presidente de agir de modo mais eficaz para a liberalização do país. Instauraram-

1 Ver ANEXO.

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se aí as bases da desordem que faria o país passar por dez anos da ditadura mais

radical, a que foi imposta pelo AI-5. Embora Castello Branco fosse razoavelmente

liberal e desejasse a abertura, sua incapacidade de agir contra a pressão da

extrema-direita e contra a anarquia que tomava conta dos quartéis foi decisiva

para conduzir o Brasil aos rumos que tomou. Ao não reagir diante das denúncias

de torturas por todo o país, o governo endossava esse tipo de procedimento.

Um dos mecanismos surgidos no governo de Castello que contribuíram

mais efetivamente para o clima de terror e de caça às bruxas em que o país se viu

mergulhado foi o Serviço Nacional de Informações, o SNI. Fundado pelo general

Golbery, era um serviço de inteligência destinado a garantir a segurança nacional.

Nas palavras do próprio Golbery, seria “uma CIA voltada para dentro”. (apud

GASPARI, 2002, p.154) Nas palavras do Correio da Manhã, era “um ministério

de polícia política, instituição típica do Estado policial e incompatível com o

regime democrático”. (Id., p.157) De fato, o Serviço contava com agentes

infiltrados em grupos de esquerda, grampeava ligações telefônicas e recolhia em

seus arquivos todo tipo de informação considerado útil no combate à subversão.

Exerceu um papel decisivo em muitas das manobras políticas realizadas pelo

governo durante o longo período ditatorial, mas sempre na sombra, no silêncio.

Se os Estados Unidos emprestaram seus serviços aos dirigentes da nova

ordem e à direita de modo geral, os países comunistas também decidiram

participar do cenário nacional brasileiro ajudando as forças de resistência. Há

registro de vários planos de reação engendrados por especialistas de Cuba. O

governo de Fidel Castro forneceu dinheiro, armas e treinamento para os líderes de

movimentos “anti-revolucionários”, que se rebelavam contra o novo regime. A

União Soviética e a China também tiveram participações semelhantes.

O Partido Comunista Brasileiro, na ilegalidade desde 1947, viveu nesses

anos um racha radical: de um lado, os que defendiam a guerrilha e a resistência

armada; de outro, os “moderados”, que ainda acreditavam na mobilização das

massas como a melhor forma de preparar a insurreição. Os diferentes matizes de

vermelho começavam a aparecer, e a esquerda brasileira foi se dividindo, de tal

maneira que todas as tentativas de reação fracassaram por falta de um

planejamento articulado e de uma organização mais eficaz.

Entre ataques terroristas de grupos de direita e de esquerda, sob pressão das

forças mais conservadoras dos círculos militares, o presidente Castello Branco

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teve de ceder e apresentar à Nação um novo Ato Institucional. O AI-2,

promulgado em outubro de 1965, garantia a posição de Castello diante dos

radicais, mas extinguia os partidos políticos, tornava todas as eleições indiretas e

restringia ainda mais a liberdade civil. Era a consolidação da “Revolução” em

termos ditatoriais.

Seis meses depois, em março de 1967, Castello passava o país para as mãos

de seu sucessor, o general Arthur da Costa e Silva, eleito indiretamente pelo

Congresso. Tudo indica que Castello se tornaria um dos fortes opositores da

caminhada em direção a uma ditadura cada vez mais escancarada, para usar o

termo escolhido pelo jornalista Elio Gaspari como título do segundo livro de sua

série sobre os anos militares no Brasil. Castello havia iniciado a articulação de um

movimento contra o poder excessivo do governo quando o avião em que viajava

pelo interior do Ceará sofreu um acidente. O ex-presidente morreu na hora, e com

ele qualquer chance expressiva de impedir o crescente ditatorialismo em que

mergulhava o país.

A indicação de Costa e Silva para a Presidência era um avanço da linha

dura. Dono de uma figura caricatural e de uma fama de inculto e de despreparado,

o novo presidente aproveitara-se das exigências das alas radicais para minar a

autoridade de seu antecessor. Prometia aos militares a continuidade do regime, e

aos políticos a abertura. Logo no início de seu governo, porém, os choques entre

civis e militares se radicalizaram. A linha de frente desses embates era constituída

pelos estudantes.

Em 28 de março de 1968, quando Costa e Silva acabara de completar um

ano na Presidência, o confronto entre uma tropa da Polícia Militar e estudantes

que pediam reformas no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, resultou na

morte do jovem Edson Luís de Lima Souto, de dezessete anos. Foi o estopim para

a guerra. Com medo de que os militares sumissem com o corpo, os estudantes

carregaram-no até a Assembléia Legislativa. O tumulto era enorme. Durante a

noite, a notícia se espalhou. Os teatros suspenderam suas apresentações e

convidaram os espectadores a acompanharem os artistas ao velório. A Cinelândia

foi-se enchendo. O velório transformou-se em comício, com uma longa seqüência

de discursos dos líderes estudantis.

No dia seguinte, os cinemas da praça anunciavam filmes cujos títulos eram

significativos: “A noite dos generais”, “À queima-roupa” e “Coração de luto”.

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(VENTURA, 1988, p.97) As faixas e cartazes exibidos pela multidão eram

também provocadores: “Bala mata fome?”, “Os velhos no poder, os jovens no

caixão”, “Mataram um estudante. E se fosse um filho seu?”. (Id., p.102) De fato, a

morte de Edson Luís foi um acontecimento que provocou a revolta de muitos que

antes haviam apoiado o regime. A classe média começava a se voltar contra os

que tinha ajudado a instalar no poder.

Pouco depois das quatro da tarde, o caixão com o corpo de Edson Luís

descia as escadas da Assembléia. Iniciava-se o cortejo que o levaria até o

Cemitério São João Batista. No caminho, flores eram jogadas dos edifícios, lenços

brancos acenados das janelas. A escritora Ana Maria Machado relembra a cena:

“A cidade inteira se comovia e reclamava pela vida de um menino. O céu

escurecia, estava anoitecendo; logo, as luzes iam-se acender. Mas não se

acenderam.” (MACHADO in VENTURA, 1988, p.102) As luzes não se

acenderam naquele dia, nem se acenderiam nos dez anos seguintes. O povo

improvisou tochas com jornais, os moradores desceram com velas, os carros

acendiam os faróis. Com essa iluminação, ao som do Hino Nacional entoado pela

multidão, Edson Luís foi sepultado.

Nos dias seguintes, os estudantes e a polícia se enfrentariam várias vezes

nas ruas do Rio de Janeiro, apesar das articulações feitas pelos líderes estudantis,

representantes dos religiosos e políticos para garantir a segurança antes e depois

das missas em homenagem a Edson. A maior delas foi realizada na Igreja da

Candelária, na quinta-feira, dia 04 de abril. Foi celebrada pelo bispo-auxiliar do

Rio, D. José de Castro Pinto, e mais quinze padres. A igreja estava

completamente tomada por pessoas de todos os matizes políticos e religiosos. Ao

final da liturgia, pouco após a comunhão, começaram a se ouvir os ruídos dos

cascos de cavalos do lado de fora. As ordens militares, os motores das viaturas e o

avião que sobrevoava o local produziam em conjunto uma sonoplastia de guerra.

Os padres tentaram acalmar a assistência inquieta. A ordem era que ninguém

saísse: os padres sairiam primeiro. Enfrentando a fúria dos militares que haviam

tomado a praça e que encurralavam e ameaçavam os que deixavam a igreja, os

padres deram-se as mãos e fizeram uma corrente para proteger a multidão que

saía da missa. Ainda assim, pouco depois de todos se dispersarem, alguns grupos

menores foram perseguidos, espancados e presos.

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Soube-se muito depois que o ódio dos policiais fora acrescido pelo de um

grupo à paisana que recebera ordens para seqüestrar, espancar e instaurar o caos e

o pânico: era o caso Para-Sar, ou “Operação Mata-Estudante”, como denunciava o

Correio da Manhã. Comandada pelo brigadeiro João Paulo Burnier, a tropa de

pára-quedistas havia sido encarregada de executar quem se atrevesse a jogar, do

alto dos prédios, objetos na polícia. E mais: havia um plano para seqüestrar e

atirar em alto-mar dezenas de personalidades da vida política nacional, dentre elas

o ex-governador Carlos Lacerda, os ex-presidentes Jânio Quadros e Juscelino

Kubitschek, D. Hélder Câmara e o editor Ênio Silveira.2 A intenção ofensiva do

Para-Sar incluía também a explosão de um gasômetro na Avenida Brasil em plena

hora do rush e a destruição da represa de Ribeirão das Lajes. Morreriam cerca de

100 mil pessoas. A responsabilidade pelos atentados seria atribuída aos

comunistas, e ao destacamento do Para-Sar, que já estaria a postos para o

salvamento, caberia o papel de herói.

Esse sinistro plano terrorista só não foi levado a cabo porque a coragem de

um homem o impediu: o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido

como Sérgio Macaco, recusou-se a cumprir as ordens e denunciou o brigadeiro

Burnier aos seus superiores, inclusive ao ministro da Aeronáutica. Foi aberta uma

sindicância para investigar a frustrada operação. Todas as denúncias feitas pelo

capitão Sérgio foram comprovadas pelos outros participantes da reunião em que o

brigadeiro expusera seu plano. No entanto, não houve nenhuma medida punitiva

contra ele. Quem pagou o preço mais alto foi o capitão Sérgio. Transferido para o

Recife, julgado e absolvido pelo Superior Tribunal Militar, poderia ter sido

anistiado, mas recusou-se: “Eu não posso ser anistiado pelo crime que evitei”.

(apud VENTURA, 1988, p.217) Viveu sempre perseguido, ameaçado e

discriminado, sendo chamado de louco por seus inimigos. Em um mundo

hipócrita e hierarquizado como aquele, a palavra do brigadeiro valeu mais que a

do capitão.

A inclusão de Lacerda, Juscelino e Ênio na lista dos que deveriam ser

jogados em alto-mar pelos agentes do Para-Sar tem sua razão na Frente Ampla.

Criada em 1966 como uma forma de oposição política unificada, incluía pessoas

dos mais diferentes estilos e das mais díspares ideologias, unidas apenas por seu

2 Para os primeiros nomes, VENTURA, 1988, pp.215-216. Para a inclusão do editor Ênio Silveira na lista, HALLEWELL, 1985, p.490.

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repúdio à ditadura. Suas mais expressivas figuras políticas eram Lacerda, que

passara de correligionário do Golpe a seu forte opositor, e os ex-presidentes

Juscelino Kubitschek e João Goulart, dois inimigos históricos do ex-governador

carioca. Em uma entrevista para a “Memória da imprensa carioca”, o jornalista

Helio Fernandes relata:

“A idéia da Frente Ampla não foi minha, eu somente cedi a casa para os primeiros encontros e ali se reuniram o brigadeiro Teixeira, o Wilson Fadun [sic], o Renato Archer, o Ênio Silveira, que era diretor da editora Civilização Brasileira e o Carlos Lacerda. Gente que nunca havia se entendido, ali se deram magnificamente bem”. (FERNANDES, 2002)

A Frente Ampla foi declarada ilegal em 05 de abril de 1968. Nesse mês, o

governo de Costa e Silva já sofria enormes pressões para editar o Ato

Institucional-5, limitando ainda mais a liberdade civil e expandindo os poderes

dos militares e do Executivo. O presidente resistiu até dezembro, quando, no dia

13, uma sexta-feira, o AI-5 enfim foi editado, lançando o país em uma de suas

épocas mais cruéis e repressoras.

Antes disso, porém, o povo organizado ainda fazia sua última tentativa de

conquistar a liberalização do regime pacificamente. No dia 20 de junho, os

estudantes ocuparam a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na

Praia Vermelha. Havia sido marcada pela UNE e pela UME uma assembléia da

Universidade para a manhã daquele dia. Desde cedo, porém, notou-se uma intensa

movimentação de policiais do lado de fora, cercando o campus. Entre os vários

oradores que discursaram naquela manhã estava o líder estudantil Vladimir

Palmeira. Foi ele quem propôs que os estudantes invadissem a reitoria, onde

estava se reunindo o Conselho Universitário, e exigissem que os professores

descessem. Essa quebra na hierarquia representou também uma ruptura nos

padrões educacionais tradicionais e conservadores. “Queríamos quebrar a

dominação dos catedráticos e arejar a universidade”, diz Vladimir. (apud

VENTURA, 1988, p.139)

Reunidos todos no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, professores

e alunos discutiam quando chegou a notícia de que alguns estudantes haviam sido

presos do lado de fora. O reitor Clementino Fraga Filho foi pedir a retirada do

dispositivo policial. Apenas no final da tarde, depois de muitas negociações, o

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reitor conseguiu a garantia do governador Negrão de Lima de que as tropas seriam

retiradas e de que a saída pacífica dos estudantes estava assegurada. O que

aconteceu, porém, foi um massacre. No dia seguinte, o cronista Carlinhos de

Oliveira narrava as cenas que chocaram a opinião pública:

“Os cariocas amanheceram hoje com as mãos trêmulas; no café da manhã, os jornais lhes serviram fotografias hediondas. Moças e rapazes deitados de bruços, com a cara enfiada na grama; moças forçadas a andar de quatro diante de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a um muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude, mas deitados de bruços”. (Id., p.138)

Levados para o campo do Botafogo, próximo à Universidade, os estudantes

tiveram de suportar essas e outras humilhações. Soldados urinavam sobre os

corpos deitados na grama, passavam os cassetetes entre as pernas das moças. A

revolta provocada por esses atos fez com que a opinião pública se voltasse

definitivamente contra Costa e Silva. Fez com que o dia seguinte ficasse

conhecido como “sexta-feira sangrenta”, devido ao número de enfrentamentos

entre civis e militares que aconteceram nas ruas do Rio. Fez com que a população

se mobilizasse para realizar uma das maiores passeatas contrárias ao governo: a

Passeata dos Cem Mil. E fez também com que o presidente cedesse às pressões

para lançar mão de um Ato de força para reprimir o clima de crescente

descontentamento e rebeldia.

Há divergências quanto aos números relativos à Passeata. O Jornal do

Brasil de 27 de junho de 1968 fala em 60 mil pessoas. O ex-líder estudantil

Vladimir Palmeira fala em 300 mil. O fato é que ela passou para a história como a

Passeata dos Cem Mil. Autorizada pelas autoridades, reuniu artistas, intelectuais,

donas-de-casa, jornalistas, advogados, padres, médicos, garis, motoristas,

professores e estudantes. A concentração foi na Cinelândia, em frente à

Assembléia Legislativa. Vários líderes se revezaram em inflamados discursos. A

multidão carregava cartazes e faixas, e gritava palavras de ordem. Quando a

Passeata começou de fato, seguindo pela Avenida Rio Branco em direção à

Candelária, papéis picados começaram a cair dos edifícios. De braços dados, em

fileiras que ocupavam toda a largura da rua, milhares de pessoas desfilavam

pacificamente. Só havia um conflito entre as palavras de ordem: os moderados ou

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reformistas gritavam “só o povo organizado derruba a ditadura”. Os mais radicais,

ou revolucionários, respondiam “só o povo armado derruba a ditadura”.

Ao final, decidiu-se formar uma comitiva para reivindicar no Planalto a

libertação dos estudantes presos nas últimas manifestações. Depois de muitas

negociações, o presidente concordou em recebê-los. Na data marcada para o

encontro, porém, houve um impasse: os estudantes Franklin Martins e Marcos

Medeiros, escolhidos como representantes de sua classe, não estavam usando

ternos, o que feria o protocolo de Presidência. Por pouco a reunião não é

cancelada. Resolvido o problema protocolar, deu-se outro: a impulsividade dos

estudantes impediu que o diálogo fosse muito longe. Diante da resistência do

presidente em ceder às exigências do grupo, Marcos Medeiros intimou-o: “Escuta

aqui, professor, eu quero saber o seguinte: o senhor vai ou não vai soltar os nossos

companheiros?”. (Id., p.179) O presidente encerrou a reunião imediatamente e

retirou-se da sala.

Os atentados de direita, dirigidos principalmente contra os teatros que

apresentavam espetáculos considerados subversivos – como a peça “Roda Viva”,

de Chico Buarque, em uma montagem agressiva e provocadora de José Celso

Martinez Corrêa – continuavam. A guerrilha esquerdista tentava encontrar seu

caminho, fosse nas frentes rurais, fosse nas urbanas. Assaltos a bancos para

financiar o movimento tornaram-se comuns. Os guerrilheiros preparavam-se para

a ação escondidos em pequenos apartamentos, os “aparelhos”. Eram caçados pela

polícia política, que funcionava com base nas delações recebidas e nas

informações conseguidas a custa da tortura de presos. Os agentes dos órgãos de

informação infiltravam-se em todos os grupos. Vivia-se, cada vez mais, um clima

de medo e de paranóia.

No final de setembro, duas músicas disputavam o Festival da Canção

daquele ano: “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, e

“Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim. A primeira tornou-se um dos hinos do

movimento estudantil. A segunda ganhou o festival, mas foi vaiada pelo público

durante 23 minutos seguidos. Sendo mais panfletária, a música de Vandré estava

mais de acordo com os ânimos exaltados que queriam manifestar de forma clara e

direta seu repúdio à repressão e à ditadura. A crítica mais lírica e sutil de Chico e

Tom parecia quase uma manifestação artística alienada, crime imperdoável àquela

altura dos acontecimentos.

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Em outubro, a UNE resolveu organizar clandestinamente seu congresso

nacional. A cidade escolhida como sede foi a pequena Ibiúna, no interior de São

Paulo. O sítio Murundu, um pouco distante da cidade, era o local onde os

estudantes acampariam e fariam suas assembléias. Evidentemente, o movimento

de cerca de quatro mil jovens em uma cidadezinha acostumada à calma e à

tranqüilidade não passaria desapercebido. Seja por qual motivo fosse, o fato é que

a polícia invadiu o sítio no dia 12 de outubro e prendeu algo entre 750 e 1250

participantes do congresso. O movimento estudantil se esfacelava: as principais

lideranças foram presas ou, quando puderam, partiram para o exílio.

Antes disso, no final de agosto, a polícia invadira a Universidade de

Brasília, agredindo alunos e professores, inclusive alguns professores estrangeiros

que ali estavam como convidados. A repercussão foi péssima. Na Câmara, o

jovem deputado Márcio Moreira Alves juntou-se aos outros políticos indignados

com o acontecimento e proferiu um discurso que custaria muito caro ao país. De

modo um tanto ingênuo, Marcito, como era conhecido, conclamou o povo a

manifestar seu repúdio não comparecendo às paradas militares no sete de

setembro. Além disso, exortou as moças a recusarem qualquer tipo de namoro

com os integrantes das Forças Armadas, numa espécie de greve de sexo inspirada

na peça “Lisístrata”, de Aristófanes, que estava sendo encenada em São Paulo. O

deputado ainda acusava o exército de ser um “valhacouto de torturadores”.

(GASPARI, 2002, p.316)

Foi o pretexto necessário para a linha dura aumentar a pressão sobre Costa e

Silva. Os militares interessados em aumentar o poder ditatorial do governo

transformaram a crise em algo muito maior do que realmente foi. O discurso de

Marcio Moreira Alves não despertara maior atenção da imprensa. No entanto, o

ministro do Exército, general Aurélio de Lyra Tavares e o chefe do Gabinete

Civil, general Jayme Portella, empenharam-se em protestar contra a ofensa e a

humilhação a que todas as Forças Armadas haviam sido submetidas.

Pressionado, o governo pediu à Câmara licença para processar o deputado.

Era mais do que esperado que a Câmara negasse o pedido, uma vez que a

imunidade parlamentar garante a inviolabilidade das palavras e das opiniões de

deputados e senadores. Com a recusa, o choque entre o Executivo e o Legislativo

seria inevitável. Parece ser justamente isso o que a cúpula dos militares desejava.

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No dia 12 de dezembro, realizou-se a votação na Câmara que rejeitou por

uma diferença de oitenta votos a licença para se processar Márcio Moreira Alves.

O país estava à beira de um segundo golpe. Os chefes militares sugeriam inclusive

a deposição de Costa e Silva, caso ele não tomasse medidas radicais. Ele tomou.

No dia 13 de dezembro, em uma reunião com todos os seus ministros e com

o vice-presidente Pedro Aleixo, o presidente leu o texto do AI-5 apresentado por

Gama e Silva, ministro da Justiça, e ouviu as considerações de cada um dos

presentes. Costa e Silva não parecia satisfeito com a radicalização da ditadura, e

provavelmente esperava encontrar resistências que lhe permitissem adiar a decisão

ou alterar o conteúdo do Ato. No entanto, apenas o vice-presidente manifestou-se

contra, afirmando que se aquilo que haviam acabado de ler fosse aprovado, não

restaria nada da Constituição, “que é antes de tudo um instrumento de garantia dos

direitos da pessoa humana”. (Id., p.334)

Não houve jeito. Horas depois, Gama e Silva lia o texto aprovado diante das

câmeras de TV. O Congresso era fechado por tempo indeterminado, as cassações

e suspensões dos direitos políticos eram novamente autorizadas, a liberdade de

expressão e de reunião era cerceada. Um dos piores artigos do Ato era o que

eliminava a garantia de habeas corpus em casos de crimes políticos. Os meios de

comunicação foram invadidos pelos censores. Inúmeros livros foram apreendidos.

Sem alternativas, a oposição passou a ver a luta armada como único caminho

possível. O terror se instaurava, e não tinha prazo para terminar.

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3 A Editora

3.1. A fundação e a Companhia Editora Nacional

As datas relativas ao início da Editora Civilização Brasileira são imprecisas.

O editor Ênio Silveira afirmava que sua fundação foi em 1932. Outras fontes,

porém, afirmam que essa é a data em que a Editora foi comprada por Octalles

Marcondes Ferreira, passando a fazer parte do então poderoso grupo da

Companhia Editora Nacional. O fato é que foi entre o final da década de 1920 e o

início da década seguinte, no Rio de Janeiro, que o poeta Ribeiro Couto,

juntamente com o escritor integralista Gustavo Barroso e o jornalista Hildebrando

de Lima, irmão do poeta Jorge de Lima, juntaram-se para criar a Civilização

Brasileira. Seu objetivo era agitar o meio cultural do país, ainda muito preso aos

padrões franceses e à vida editorial portuguesa.

A editora não teve inicialmente muito sucesso, possivelmente devido ao fato

de ser administrada por intelectuais que não sabiam lidar bem com o mercado ou

não se dedicavam o bastante ao empreendimento. Ribeiro Couto era também

diplomata, e passava muito tempo fora do Brasil. Sua obra poética já era editada

pela Companhia Editora Nacional, de propriedade de Monteiro Lobato e Octalles

Marcondes Ferreira. Ribeiro Couto então vendeu sua parte na Civilização a

Octalles. Alguns anos depois, Gustavo Barroso, perseguido por motivos políticos,

teve de deixar o país, indo para Portugal. Antes de partir, vendeu sua parte a um

irmão de Octalles, Fenício. Em pouco tempo, os irmãos acabaram comprando

todas as ações.

A Companhia Editora Nacional (CEN), estabelecida em São Paulo, já era

então uma empresa bastante lucrativa e com uma importante fatia do mercado

editorial. Atuava principalmente no setor de livros didáticos, historicamente muito

lucrativo. Apesar da grande experiência acumulada e da “operacionalidade de

Octalles”, (FELIX, 1998, p.44) a Editora Civilização Brasileira continuou não

tendo grande sucesso comercial. A administração à distância dificultava a

obtenção de melhores resultados. A casa chegou a publicar, em meados da década

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de 1930, a coleção completa das obras de Joaquim Nabuco e títulos de autores

importantes, como José de Alencar, Balzac, Vitor Hugo, Dostoievski, Dumas,

Gorki e Zola. Estima-se que cerca de trezentos mil exemplares tenham sido

produzidos nesse período (apenas para efeitos de comparação, a CEN produziu

então cerca de um milhão e setecentos mil exemplares). (HALLEWELL, 1985,

p.278) O livro de maior sucesso em termos de vendas, porém, foi o Pequeno

Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, que teve inúmeras reedições e

revisões, inclusive sob a coordenação de Aurélio Buarque de Holanda.

Octalles chegou a usar o nome Civilização Brasileira também em uma filial

aberta em Lisboa, que funcionou por cerca de dez anos. O comércio livreiro entre

Brasil e Portugal estava então em fase de transformação. O Brasil sempre fora o

maior comprador, e a venda ultramarina de livros brasileiros havia sido, durante

muitos anos, praticamente inexpressiva. A situação, na década de 30, começava a

se alterar, em função da queda na taxa de câmbio. O livro brasileiro invadiu

Portugal, chegando mesmo a assustar as editoras daquele país. Octalles parece ter

sido um dos primeiros editores brasileiros a perceber o movimento e a lançar-se

nesse empreendimento. (Id., pp.278-280)

3.2. Ênio Silveira Ênio Silveira começou a trabalhar na Companhia Editora Nacional quando

ainda era estudante de Sociologia em São Paulo, no início da década de 1940. A

partir daí sua história começa a se aproximar da história da Editora Civilização

Brasileira. Sua vida pessoal está de tal forma ligada à vida da editora que muitas

vezes é impossível separá-las. Grande contador de casos, Ênio narrava os

episódios que marcaram esse caminho de forma inesquecível. Um deles é o seu

encontro com Monteiro Lobato, que lhe apresentaria a Octalles e lhe ofereceria o

emprego na CEN.

Ênio tinha dezoito anos quando sua amiga Leonor Aguiar, mulher muito

culta e bem mais velha que ele, o convidou para ir uma tarde a sua casa a fim de

conhecer Lobato. Ênio chegou e encontrou a porta aberta, com um bilhete: “entre

e feche a porta por dentro”. Uma vez dentro da casa, Ênio chamou pela amiga,

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que lhe respondeu do banheiro, pedindo-lhe que fosse até lá. Constrangido, Ênio

foi até o banheiro, onde deparou-se com Monteiro Lobato nu dentro da banheira,

tendo as costas vigorosamente esfregadas por Leonor. Aos poucos, a canhestra

situação foi dando lugar a uma amigável conversa, e Ênio saiu dali com uma

indicação para falar com Octalles. E uma vaga na Companhia Editora Nacional,

que acabou se tornando sua “universidade aberta”. (FERREIRA, 1992, p.30)

Durante o período em que trabalhou na CEN, Ênio teve contato com vários

escritores e intelectuais, tornando-se amigo de muitos deles. Foi também durante

esse período que conheceu e se casou com sua primeira esposa, Cleo Marcondes

Ferreira, filha de Octalles. Pouco depois de se casar, Ênio foi para os Estados

Unidos, onde fez um curso de editoração na Universidade de Colúmbia e

trabalhou na Editora Alfred A. Knopf. Ali conheceu importantes autores

americanos e aprendeu novas técnicas editoriais, principalmente quanto à

divulgação dos livros. Já havia então desistido de seguir o caminho da Sociologia

e decidido adotar a atividade editorial como profissão.

Foi também nos Estados Unidos que Ênio aprofundou sua posição

ideológica marxista, que já cultivava desde o Brasil. Sua posição política era

contrária à de seu sogro, mas isso não havia interferido em suas relações. Octalles

tivera uma conversa franca e direta com o genro a esse respeito:

“Olha, Ênio, tenho informações de que você tem ligações com a esquerda. Quero lhe dizer que não sou de esquerda, até pessoalmente sou contra a esquerda, mas respeito o seu direito de ser, com uma condição: a editora não tem linha política, e eu queria que você assumisse comigo o compromisso de em nenhum momento tentar, direta ou indiretamente, interferir politicamente na editora.” (Id., p.31)

Ênio cumprira o acordo.

Voltando dos Estados Unidos, Ênio foi morar em uma casa que havia

mandado construir, planejada especialmente pra abrigar adequadamente seus

livros. Ali, ele e Cleo tiveram seu primeiro filho. Poucos anos depois, no início da

década de 50, Octalles o chamou novamente para uma importante conversa.

Falou-lhe sobre a Editora Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro, e sobre a má

fase que a empresa atravessava. Octalles desconfiava inclusive de desvios da

gerência local. Havia dois caminhos possíveis a seguir: fechar a empresa ou tentar

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desenvolvê-la. Octalles queria investir na segunda opção, e queria que Ênio fosse

o encarregado pela tarefa.

Superando um preconceito paulista segundo o qual o Rio de Janeiro é um

lugar onde não se trabalha, Ênio mudou-se com a mulher e o filho pequeno com o

compromisso de ficar por apenas seis meses. Esse tempo, porém, foi suficiente

para que se apaixonasse pela editora e pelas possibilidades que ela lhe oferecia. A

Companhia Editora Nacional estava cada vez mais voltada para o livro didático. A

editora que então mais publicava autores brasileiros era a José Olympio, mas, nas

palavras de Ênio, “embora a figura de José Olympio fosse uma figura

extremamente respeitável e fundamental para a história do livro no Brasil, havia

uma panela da editora José Olympio, alguns autores entravam, outros não

entravam (...)”. (Id., p.52) Ênio percebeu então que essa era uma “vasta área de

manobra” em que poderia atuar como editor.

Dois anos depois, Ênio vendia sua casa em São Paulo e mudava-se

definitivamente para o Rio de Janeiro. Com o dinheiro da venda, comprou as

ações de Fenício, irmão de Octalles. A editora vivia então um período de rápida

expansão, chegando a publicar vinte livros por mês, ou seja, mais de um livro por

dia útil. (Id., p.54) Alguns livros alcançaram grande sucesso, como O velho e o

mar, de Ernest Hemingway, que teve uma tiragem inicial de vinte mil exemplares.

3.3. Vulgarizando o livro Um dos fatores que contribuíram para o sucesso da editora foi a postura de

Ênio de não sacralizar o livro, mas, ao contrário, de desmistificá-lo e popularizá-

lo. Foi ele quem introduziu no Brasil a brochura aparada. Antes disso as páginas

vinham fechadas, e o leitor precisava abri-las com uma espátula. Ênio também

empregou propaganda maciça na venda dos livros, utilizando inclusive outdoors,

o que não era muito comum na época. Investiu em livros de bolso, livros feitos em

papel-jornal, para serem vendidos a preços bem acessíveis nas bancas de jornal.

Essas atitudes provocaram um certo choque entre os mais conservadores. A

reação do editor José Olympio é bastante significativa: “Mas você está

transformando o livro num objeto vulgar”. Ao que Ênio teria respondido: “Mas

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ele é, enquanto objeto, um objeto, e quanto mais vulgar melhor para os editores,

se você quer saber; e quanto mais vulgar melhor para os leitores”. (Id., p.155)

Ênio defendia que o livro não fosse um objeto de consumo apenas para a elite. O

acesso a ele deveria ser democratizado, como uma forma de impulsionar o

processo cultural brasileiro.

Essa visão de Ênio é expressa com clareza e força em um discurso proferido

por ele em 1966, em homenagem a seu colega de trabalho e companheiro de lutas

Mário da Silva Brito:

“Acreditávamos no Brasil, acreditávamos nas imensas possibilidades de nosso povo avançar rumo à plena realização, desde que fossem eliminados de seu caminho os empecilhos tradicionais – miséria, fome, doenças, incultura – resultantes da exploração cruel a que sempre esteve submetido, tanto pelas classes dominantes nacionais como pelas potências imperialistas que, por sua vez, as controlavam. Para alcançar a eliminação desses empecilhos, púnhamos (e ainda pomos) muita fé na eficiência dessa arma branca, silenciosa e paciente, que é o livro. A despeito da eterna perseguição que em todas as épocas e sociedades sempre lhe movem as forças do obscurantismo e da prepotência, ele é instrumento capaz de revolver o mundo e levar os homens a repensá-lo criadoramente. Convencidos disso, agimos.” (HALLEWELL, 1985, p.449)

O lema da Civilização Brasileira, “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal

vê”, sintetiza a ideologia da editora: é preciso facilitar o acesso ao livro e

incentivar a leitura para que o povo seja capaz de, falando, ouvindo e vendo, lutar

contra as forças que o oprimem.

Entre 1952 e 1958, Ênio foi presidente do Sindicato Nacional dos Editores

de Livros, o SNEL, onde contribuía ativamente para o desenvolvimento da classe.

Dentre outras coisas, foi responsável pela publicação do Boletim Bibliográfico

Brasileiro, única publicação regular do setor entre 1952 e 1967. (Id., p.444)

Junto com a expansão da editora, porém, começaram a surgir divergências

ideológicas entre Ênio e seu agora sócio Octalles. Alguns livros que Ênio desejava

editar eram vetados pelos conselheiros de Octalles em São Paulo. Havia realmente

um movimento na direção da publicação de certos autores marxistas que

incomodava Octalles. Para resolver o impasse, Ênio foi então, aos poucos,

comprando as ações de seu sócio.

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As diferenças que separavam a editora de Octalles e a Civilização Brasileira

foram mencionadas por Barbosa Lima Sobrinho no discurso com que recebeu

Ênio Silveira como membro do Pen Club do Brasil, em agosto de 1991:

“Na verdade, entre a Companhia Editora Nacional, de Octalles, e a Civilização Brasileira havia uma grande distância, uma preocupada com o passado, outra orientada para o futuro. Uma direitista, outra apaixonadamente esquerdista, não medindo sacrifícios para a defesa de suas idéias”. (FELIX, 1998, p.398)

O próprio Octalles confirmava isso: “Eu sou um editor tradicional, gosto de

conservar nossa tradição cultural. Já o Ênio é um editor de vanguarda, sempre

pronto a lançar novas idéias”. (HALLEWELL, 1985, p.453)

3.4. Arejamento de idéias Quando se tornou acionista majoritário, Ênio pode publicar livremente

autores “que repensassem criativamente o processo social, político e econômico

brasileiro”, (FERREIRA, 1992, p.56) fossem eles marxistas ou não. A

independência ideológica e partidária sempre foi uma das marcas da Civilização

Brasileira. Tanto que ao ouvir representantes do Partido Comunista Brasileiro

referirem-se à Civilização como “nossa editora”, Ênio reagiu afirmando

resolutamente que a editora não pertencia ao Partido. E chegou mesmo a enfrentar

Luís Carlos Prestes quando ele manifestou seu desagrado por um determinado

título lançado pela Civilização. Um autor lançado pela editora que exemplifica o

não-alinhamento à doutrinação do Partido é o trotskista Isaac Deutscher, de quem

a Civilização publicou toda a obra. Ênio resumia assim a linha editorial de sua

empresa:

“(...) era uma editora com uma linha de esquerda, não exclusivamente, ortodoxamente de esquerda, mas sobretudo e ortodoxamente numa linha não partidária. Porque eu não queria de maneira nenhuma ser submetido a limitações e restrições partidárias que me poderiam tolher todo esse desejo de contribuir para o arejamento dos espíritos no Brasil”. (Id., p.62)

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E esse arejamento era realmente necessário. A juventude brasileira era

cerceada, limitada culturalmente. E respondeu com muito entusiasmo quando

passou a ter acesso a pensadores de suma importância internacional. Jovens

marxistas, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, foram se

aproximando da editora e passaram a colaborar muito com ela – inclusive na

pioneira tradução da obra de Gramsci no Brasil. Ainda antes do Golpe, a

Civilização publicou a primeira versão completa de O Capital, de Marx, em

português. E lançou a coleção “Retratos do Brasil”, que Ênio considerava uma

espécie de “Brasiliana viva”, pois era mais voltada para os problemas atuais do

país naquela época, enquanto a coleção editada pela CEN era dedicada à

importante preservação e publicação de documentos do passado.

O catálogo da editora era então voltado principalmente para a área de

ciências humanas, mas contemplava também largamente a produção ficcional e

poética do Brasil e do mundo. Além disso, havia títulos variados, sobre temas

como filosofia, psicologia popular, educação sexual, ioga e zen-budismo. Em O

livro no Brasil, Laurence Hallewell aponta a característica da editora de temperar

seus lançamentos de alta qualidade – mas nem sempre grande rendimento

financeiro – com best-sellers de venda garantida, especialmente no campo das

traduções de ficção estrangeira. Destaca alguns títulos significativos: dentre os

ingleses, ia de Agatha Christie, Daphne DuMaurier e Ian Fleming a George Eliot,

Aldous Huxley, D.H. Lawrence, Gaham Greene e George Orwell. Dos

americanos, publicou autores fundamentais como T.S. Eliot, William Faulkner, F.

Scott Fitzgerald, Henry James, Norman Mailer, Tennessee Williams e Ernest

Hemingway. Valorizou obras hispano-americanas tradicionalmente desprezadas

pelas editoras, como as de Alejo Carpentier, Julio Cortázar e Ernesto Sábato. De

Kafka a Molière, de Brecht a Oscar Wilde, de Sartre a Tchecov e Tolstoi. De

Lolita, de Nabokov, a Ulisses, de Joyce (em monumental tradução de Antônio

Houaiss). (HALLEWELL, 1985, pp.447-448) O jornalista Zuenir Ventura resume

assim o caráter das publicações da Civilização Brasileira no período que vai de

1964 a 1968, considerado por muitos um dos mais férteis da indústria editorial

brasileira:

“A Civilização Brasileira, investindo na qualidade, era capaz de audácias como o lançamento de O capital – em edição integral e pela primeira vez

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em língua portuguesa – e de Ulisses, de James Joyce, numa portentosa tradução de Antônio Houaiss. A editora não temia, além disso, alternar um pacote de quatro Norman Mailer com a memorável trilogia sobre Trotsky, de Isaac Deutscher”. (VENTURA, 1988, p.54)

O editor Ênio Silveira, comentando o catálogo da Civilização, afirmava:

“O nosso catálogo era bastante eclético, mas de um modo geral ele se situava numa linha ideológica bem marcada, sobretudo com os estudos brasileiros, que eram sempre transformadores da realidade, num sentido que a classe dominante e seus porta-vozes não queriam que fossem. Ou seja, se você perguntar se a Civilização Brasileira ajudou a encaminhar um projeto, uma utopia socialista no Brasil? Respondo que sim, sem sombra de dúvidas. E isso eles achavam mais perigoso que qualquer plataforma política ou, na fase final, pós-64, mais perigoso que um assalto a banco”. (FERREIRA, 1992, p.93)

A Civilização Brasileira foi responsável por coleções importantíssimas para

a análise da conjuntura sociopolítica do país. A já mencionada “Retratos do

Brasil”, iniciada em 1960, incluía títulos provocadores, como Radiografia de

novembro, de Bento Munhoz da Rocha, que tratava da tentativa empreendida por

Carlos Lacerda em 1954 para impedir a posse do presidente Juscelino Kubitschek.

Alguns outros títulos da coleção eram Política externa independente, de San

Thiago Dantas, O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil, de

Moniz Bandeira e outros, e Assim marcha a família: onze dramáticos flagrantes da

chamada sociedade cristã e democrática..., de José Louzeiro.

Em 1962, a Civilização lançou os polêmicos “Cadernos do Povo

Brasileiro”, que traziam o seguinte texto de capa: “Os grandes problemas de nosso

país são estudados nesta série com clareza e sem qualquer sectarismo: seu

objetivo principal é o de informar: somente quando bem informado é que o povo

consegue emancipar-se”. (HALLEWELL, 1985, pp.451-452) O orientador da

série, composta por folhetos populares, era Álvaro Vieira Pinto, um dos principais

pesquisadores do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), instituição de

orientação esquerdista financiada pelo governo de João Goulart e depois

radicalmente perseguida pelos militares. Hallewell julga necessário dar uma

relação completa dos títulos da coleção para que se possa avaliar com precisão sua

natureza. Aqui, porém, vão apenas alguns exemplos: Que são as ligas

camponesas?, de Francisco Julião; Quem é o povo no Brasil?, de Nelson Werneck

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Sodré; Quem faz as leis no Brasil?, de Osny Duarte Pereira; Por que os ricos não

fazem greve?, de Álvaro Vieira Pinto; O que é a reforma agrária?, de Paulo

Schilling; Como atua o imperialismo ianque?, de Sylvio Monteiro; e Desde

quando somos nacionalistas?, de Barbosa Lima Sobrinho. Sobre os “Cadernos”,

Ênio comentava:

“Foi uma coleção, se se quiser, engajada, mas não necessariamente. Apesar do partido querer utilizar a coisa como instrumento de propaganda política, ainda assim a coleção não era partidária. (...) Essa coleção começou pouco antes do golpe e permaneceu durante o golpe, ma foi logo terminada, porque, quando eles descobriram, fizeram parar. Apreenderam vários livros e prenderam alguns autores. Mas este livro [Por que os ricos não fazem greve?], em especial, chegou a ter três tiragens consecutivas, alcançou cem mil exemplares. Era vendido muito barato.” (FERREIRA, 1992, pp.90-91)

No prefácio ao livro de Jalusa Barcellos, CPC da UNE: uma história de

paixão e consciência, Ênio ressalta a parceria que se estabeleceu entre a editora e

o CPC no que diz respeito à distribuição dos Cadernos. E acrescenta: “Com

tiragens de 20 mil exemplares, muito significativas em 1963, esses pequenos

volumes eram lidos e discutidos em centros acadêmicos, debatidos no e com o

CPC, e exerceram significativo papel conscientizador”. (SILVEIRA, 1994, p.12)

Além dos volumes regulares, a coleção lançou três títulos extras, os famosos

“Violão de rua: poemas para a liberdade”. Como uma subcoleção dentro dos

“Cadernos”, os três volumes de “Violão de rua” lançaram no mercado jovens

poetas como Affonso Romano de Sant’Anna e José Carlos Capinam, ao lado de

outros já consagrados, como Vinicius de Moraes, Moacyr Felix e Ferreira Gullar.

A ideologia que orientava a publicação é resumida nas palavras do poeta Moacyr

Felix, um dos organizadores da coleção: “O artista que pratica sua arte situando

seu pensamento e sua atividade criativa exclusivamente em função da própria arte

é apenas a pobre vítima de um logro tanto histórico quanto existencial”.

(http://www.culturapara.com.br/rbarata/ruylivro.htm) E mais:

“Violão de rua é um gesto resultante da poesia encarada como forma de conhecimento do mundo e servindo, portanto, ao esforço para uma tomada de consciência das realidades últimas que nos definem dentro deste mesmo mundo; (...) obra participante mas não partidária, pretende ser mais um solavanco nas torres de marfim de uma estética puramente formal, conservadora e reacionária (...). Violão de rua almejará ser a utilização, em termos de estética, de temas reais, baseada na certeza de que tudo aquilo que é verdadeiro serve ao povo, de que o uso

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apaixonado de uma verdade é o instrumento por excelência da humanização da vida”. (FELIX, 1980, pp.145-146)

Affonso Romano, no livro Música popular e moderna poesia brasileira,

assim se refere à série:

“Tentativa de manter uma posição de vanguarda sem comprometimento com o formalismo estético. Utilização de todas as formas poéticas, inclusive as folclóricas e populares. Poesia ideológica e humanista. Poetização dos temas históricos, fatos jornalísticos e episódios da vida política brasileira. Heterogeneidade de seus membros, arrolando poetas de todas as tendências e gerações. Desinteresse pelo aspecto visual e gráfico do poema. Exploração do aspecto sonoro do verso através do teatro popular e apresentação pública de textos. Crença de que o poeta deve participar ativamente do processo histórico.” (http://www.culturapara.com.br/rbarata/ruylivro.htm)

À ousadia nos títulos, Ênio juntava modernas técnicas na apresentação

gráfica do livro. Contando com o trabalho do capista Eugênio Hirsch, que dizia de

si mesmo “eu não vim para agradar, vim para agredir”, a Civilização Brasileira

revolucionou a indústria editorial brasileira quanto ao aspecto gráfico. Diz

Hallewell:

“O aspecto do moderno livro brasileiro, de qualquer editora, ajusta-se basicamente ao estilo adotado pela Civilização Brasileira em meados da década de sessenta. As capas passaram a ser desenhos ocupando toda a altura e largura do volume, em quatro cores, quase sempre com o registro do devido crédito ao artista no verso da página de rosto. O projeto tipográfico finalmente atualizou-se segundo o melhor costume moderno: particularmente os espaços em branco passaram a ser utilizados mais generosa e atraentemente do que até então, e um esforço real foi dedicado à elaboração do lay-out pelo menos da página de rosto. (…) De muitas maneiras, as inovações representaram um rompimento final com padrões e práticas oriundos da França e a adoção de métodos norte-americanos”. (HALLEWELL, 1985, p.454)

3.5. O feijão e o sonho A atividade editorial, mais do que qualquer outra atividade empresarial, é

forçada a se equilibrar constantemente entre o que Ênio Silveira gostava de

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chamar, citando o romance de Orígenes Lessa, “o feijão e o sonho”. Como

empresa, precisa ser economicamente viável, ser um negócio rentável. Como

instrumento de difusão cultural, precisa seguir uma ideologia, muitas vezes

utópica. O editor deve saber conciliar uma boa administração financeira e uma

perspicaz visão de mercado sem abrir mão de seus valores fundamentais, ainda

que estes lhe custem certa redução nos lucros. “O contraponto feijão/sonho é o

que dá a justa medida da qualidade de um editor”. (FERREIRA, 1992, p.97)

Manter-se rigorosamente dentro dos limites da ética e da retidão nas relações

humanas é um grande desafio, e há inúmeros exemplos que comprovam a

dificuldade de muitos empresários em vencê-lo. Sobre sua postura ética, dizia

Ênio:

“Não é justo que num país de subnutridos ou desnutridos, sendo eu um homem amparado por uma solidez familiar, amparado por uma solidez biológica, de alimentação adequada, de estudo adequado, de conforto e dos prazeres da vida, e tendo nas mãos uma arma de cultura, disseminadora de cultura, a utilize impropriamente. Sempre tive uma auto-imposta visão ética da minha profissão de editor. Acho que ser editor num país como o Brasil, em qualquer lugar do mundo eu diria, mas particularmente num país como o Brasil, impõe a obrigação de querer transformar esta sociedade, melhorá-la, aprimorá-la. Tudo o que pude fazer como editor foi nesse sentido. Sem medir sacrifícios e sem me subordinar cem por cento ao feijão. Eu talvez tenha, fazendo uma autocrítica, freqüentemente me deixado dominar mais pelo sonho do que pelo feijão (...)”. (Id., pp.99-100)

Não é verdadeira, porém, a imagem de “Dom Quixote da literatura” que

muitos queriam impor a Ênio. Embora muitas vezes empreendesse negócios de

rentabilidade incerta em função de valores éticos e morais, Ênio não ignorava a

necessidade de investir em livros que pudessem dar um retorno financeiro maior.

3.6. A repressão A Civilização Brasileira foi uma das editoras mais perseguidas durante a

ditadura militar. Sua linha editorial voltada para a publicação de obras e autores

considerados “subversivos” lhe valeu rigorosos enfrentamentos com a censura e a

política repressiva dos generais. Logo após o Golpe de 1964, o editor Ênio

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Silveira teve seu nome incluído em uma das primeiras listas de pessoas que

tiveram seus direitos políticos cassados. Os livros da Civilização Brasileira

passaram a ser apreendidos nas gráficas ou mesmo nas livrarias. A pressão para

que os livreiros não comprassem mais livros dessa editora era enorme, e muitos,

intimidados, deixaram de encomendar livros da Civilização. Sobre essa apreensão

de livros que se abateu sobre o país, diz Hallewell:

“Milhares de livros foram sumariamente confiscados de livrarias e de editoras pelas mais diversas razões: por falarem do comunismo (mesmo que fosse contra), porque o autor era persona non grata do regime, por serem traduções do russo, ou simplesmente porque tinham capas vermelhas. Muitos policiais se contentavam com qualquer coisa que tivesse a marca da Civilização Brasileira (...)”. (HALLEWELL, 1985, p.483)

Muitas apreensões viraram motivo de piada, dada a incapacidade dos

agentes da lei de reconhecerem o que era ou não subversivo, o que os levava a

confiscar obras que não tinham qualquer relação com o comunismo ou a esquerda.

“Só parece ter escapado o Livro Vermelho dos Telefones”, (Id., ibid.) dizia um

editorial do Jornal do Brasil em janeiro de 1966.

A editora Civilização Brasileira logo se tornou, ao lado do jornal Correio

da Manhã, um dos principais núcleos de resistência e oposição à ditadura. Sua

livraria, no Centro, tornou-se um ponto de encontro dos intelectuais de esquerda.

Ali se encontravam pessoas como Leandro Konder, Moacyr Felix, Ferreira Gullar,

Carlos Heitor Cony, Antônio Callado, Antônio Houaiss, Nelson Werneck Sodré e

Paulo Francis. Eunice Duarte, que trabalhou por cerca de dez anos ao lado de Ênio

na editora, afirma que a Civilização tornou-se um importante centro de discussão.

A movimentação nos corredores era intensa, e o clima de agitação permanente

fazia com que a editora fosse uma espécie de caixa de ressonância onde se refletia

o clima do país.3

A Civilização publicou, em meados de 1964, um dos primeiros relatos

sobre o Golpe de abril: Os idos de março e a queda em abril, de Alberto Dines.

Em 1965, lançou Até quarta, Isabela, uma reunião de cartas escritas na prisão

pelo líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Foi também nessa época que

se publicaram importantes periódicos em que opiniões contrárias ao governo eram

3 Depoimento de Eunice Duarte à autora.

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veiculadas. A revista de comentário político Reunião, que saía quinzenalmente,

circulou apenas por poucos meses. O Ato Institucional no. 2, de outubro de 1965,

limitou de tal forma as liberdades civis que fez com que muitos revendedores se

intimidassem e deixassem de trabalhar com ela. A Paz e Terra, revista que reunia

o pensamento progressista cristão, era dirigida por Waldo César. Mais tarde se

consolidaria como uma nova editora, passando a lançar também títulos

importantes. O historiador José Honório Rodrigues coordenou, para a Civilização,

a revista Política Externa Independente, que teve poucos números. O mais

importante periódico desse momento, porém, foi sem dúvida a Revista Civilização

Brasileira, que chegou a ter tiragens de vinte mil exemplares. O terceiro capítulo

desta monografia tratará sobre ela em detalhes.

Os periódicos e os livros francamente em oposição ao regime publicados

pela editora e a postura combativa de Ênio Silveira fizeram com que ele se

tornasse alvo de uma forte perseguição. Sua primeira prisão ocorreu logo após o

Golpe. Os militares queriam interrogá-lo sobre a origem de seus bens, uma vez

que não acreditavam ser possível se obter algum lucro, no Brasil, com a

publicação de livros sobre política e ciências sociais. Com essa prisão, a editora

sofreu um tremendo golpe financeiro: pouco tempo antes, Ênio havia acertado

com o Banco Nacional a compra de duzentas toneladas de papel da Finlândia. A

encomenda já havia sido feita quando veio o Golpe e, logo depois, a prisão de

Ênio. O banco mudou de idéia quanto ao financiamento da compra, sob a

justificativa de que “as condições haviam mudado e certamente não poderia levar

adiante o acordo”. (FERREIRA, 1992, p.66) Ênio teve de se desfazer de uma

parte significativa de seu patrimônio para arcar com as despesas.

Pouco mais de um ano depois, em maio de 1965, Ênio foi indiciado no que

ficou conhecido como o “IPM da feijoada”. Tratava-se da alegação de que o

editor tivesse auxiliado o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, em sua fuga

do país. O que Ênio na realidade fizera fora oferecer ao governador um almoço

em sua casa, pouco ante de Arraes se refugiar na embaixada da Argélia. A famosa

feijoada servida, à qual compareceram inúmeros intelectuais de esquerda, amigos

de Arraes, causou a Ênio cerca da vinte dias de prisão.

As apreensões de livros da editora e as várias prisões de Ênio tiveram um

enorme peso sobre as finanças da Civilização. Um dos golpes mais duros, porém,

está relacionado à Companhia Editora Nacional, e aconteceu antes mesmo do

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Golpe. A Civilização continuava sendo a representante de vendas da CEN no Rio

de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. Como já se disse, o catálogo da CEN era

voltado principalmente para o setor de livros didáticos. Diversas ordens religiosas,

responsáveis por colégios espalhados por todo o país, começaram a enviar cartas

para Octalles afirmando que “havia uma contradição básica entre as organizações

educacionais da Igreja Católica” e o fato da CEN ser representada pela editora de

um “notório comunista”, o senhor Ênio Silveira. Diante dessa contradição, seus

colégios suspenderiam a compra dos livros didáticos da CEN. Como única

solução possível para o impasse, Ênio se propôs a abrir mão da representação da

CEN, o que significava a perda de um ganho seguro em um momento em que a

editora se via atacada por todos os lados. Octalles ainda relutou, tentando

encontrar outros caminhos, mas não havia saída. A Civilização deixou de

representar a CEN e perdeu cerca de 40% de sua renda estável.

Outro dos fortes golpes financeiros que a editora sofreu foi a apreensão

dos originais, do material de gráfica (fotolitos, filmes etc.) e da tiragem inicial de

cinco mil exemplares do primeiro volume de uma tradução da obra de Lênin feita

por Álvaro Vieira Pinto. Ênio pagou ao tradutor e à gráfica conforme o

combinado, mas não pode vender um exemplar sequer. Ao todo, mais de trinta

títulos da editora foram apreendidos. “Eles invadiam nosso depósito, iam às

livrarias, recolhiam os livros e sumiam com eles. (...) Foi um período terrível. Nós

éramos atacados de todas as maneiras possíveis e imagináveis, cerceados:

intimidação a livreiros e gráficos, apreensão de livros”. (Id., p.71)

Um exemplo da pressão exercida contra as gráficas é o processo que foi

movido contra Felix Cohen Zaide, dono da Gráfica Lux. A gráfica era responsável

pela impressão de parte do catálogo da Civilização, o que inclui todos os números

da Revista Civilização Brasileira.

Contribuíram também para a crítica situação financeira em que a editora

mergulhou ao longo da ditadura o corte de créditos e a proibição de negociar com

instituições públicas, especialmente com o Banco do Brasil. Não tendo outra

opção, Ênio foi obrigado a pedir concordata em 1966. Depois de vender grande

parte de seu patrimônio pessoal e de lutar ferozmente para saldar as dívidas,

conseguiu reequilibrar, por algum tempo, as finanças da editora. Uma carta sua a

Glauber Rocha, de 25 de novembro de 1975, mostra a precária situação em que a

empresa se encontrava. Ênio respondia a um pedido de ajuda financeira

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(adiantamentos a serem pagos por originais que Glauber enviaria para publicação)

feito pelo cineasta, então exilado na Europa. Diz Ênio:

“Como seu amigo e admirador há tão longo tempo, é evidente que procurarei ajudá-lo. Não tenho condições, entretanto, de o fazer na medida de suas necessidades e com a urgência reclamada. Se você é um exilado na Europa, lembre-se de que também o sou, aqui dentro. Preso e processado tantas vezes, sofro agora os reflexos econômicos que minha condição de paria me traz: o establishment não me topa e poucos são os banqueiros que querem financiar a Civilização, tida e havida por eles como permanentemente consorciada com o ‘inimigo’... Vivemos, pois, um dia-a-dia de riscos, e a simples sobrevivência já constitui feito heróico.” (ROCHA, 1997, p.542)

Depois de algumas considerações práticas sobre as propostas enviadas por

Glauber e sua adequação ao mercado editorial brasileiro, Ênio termina com uma

mensagem que dá o tom de seu posicionamento: “Aguardo essas providências

para verificar como, quando e de que forma poderei ajudá-lo. Até lá, agüente as

pontas, que a luta mal começou...” (Id., p.543)

Ainda sobre esses problemas financeiros, diz Hallewell:

“Já em meados de 1970 a recusa de crédito bancário fora eficiente o bastante para obrigá-lo a levantar capital de giro por meio de vultosas liquidações, até mesmo de obras como o Dicionário das artes plásticas no Brasil, de Roberto Pontual, livro de referência absolutamente não polêmico (porém caro), publicado apenas um ano antes, e que em circunstâncias normais teria tido uma vendagem firme e garantida por vários anos”. (HALLEWELL, 1985, p.497)

A fúria dos militares e dos grupos de extrema-direita, porém, ia além do

simples corte de créditos. Na madrugada do dia 14 de outubro de 1968, Ênio

Silveira estava em casa, dormindo, quando recebeu o telefonema do senhor que

fazia a segurança da livraria da editora, na rua Sete de Setembro. O antigo

sargento, expulso do exército por ser de esquerda, estava apavorado: haviam

colocado uma bomba na livraria e metade da fachada tinha vindo abaixo. Ênio

correu para o local e ficou petrificado diante da cena: quase cinqüenta cabeças

espalhadas pelo chão diante dos escombros. Um instante depois, porém, percebeu

o que de fato acontecera: uma loja de perucas, ao lado da livraria, fora também

atingida pela explosão, e os manequins haviam se espalhado pela calçada.

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Esse seria apenas o primeiro atentado. Em novembro de 1970, um

misterioso incêndio arrasaria novamente a livraria e os escritórios centrais da

editora. Três anos antes, em janeiro de 1967, a livraria Freitas Bastos, vizinha à

Civilização, sofrera um incêndio muito parecido, cujas causas nunca foram

descobertas. Muitos acreditam que a Freitas Bastos foi incendiada, por engano,

pelo mesmo grupo que, em 1970, atingiu o alvo certo – a Civilização Brasileira.

O editor Ênio Silveira foi preso sete vezes durante a ditadura. Uma delas

foi no dia de seu aniversário, quando Ênio reunira alguns amigos em sua casa.

Armados com metralhadoras, os soldados invadiram o apartamento, prenderam

Ênio e perguntaram por outros intelectuais também sob ordem de prisão. Um

deles era o escritor Antônio Callado, que chegava justamente naquele momento à

festa. Em inglês, Ênio advertiu o amigo, que não foi reconhecido pelos policiais e

conseguiu assim se livrar da prisão. Em dezembro de 1968, logo após a

publicação do AI-5, Ênio foi preso novamente. Em maio de 1970, Ênio foi detido

por ter publicado, em 1965, o livro Brasil – guerra quente na América Latina, de

João Maia Neto. No final de outubro do mesmo ano, Ênio foi preso pela sexta vez,

sob a mira de duas metralhadoras, sem qualquer justificativa. Sua liberação, dez

dias depois, também nunca foi explicada.

Em uma de suas prisões, Ênio perguntou ao coronel Gerson de Pina por

que havia tanto ódio contra a Civilização Brasileira. A resposta dá uma medida da

importância do livro como instrumento de difusão cultural e do destaque que Ênio

alcançara nessa área:

“Porque você é uma das mais eficientes armas de sabotagem de nossos princípios de vida. Uma editora (...) é uma arma perigosíssima, que você arma silenciosa e constantemente. Por isso é que você foi preso. Você é mais perigoso pra nós que um sujeito que está assaltando um banco”. (FERREIRA, 1992, p.94)

3.7. O Albatroz Durante a década de 70, Ênio foi sendo absolvido das acusações que

pesavam contra ele. Possivelmente as autoridades se sentiram um pouco

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constrangidas pelo fato de a imprensa e a Anistia Internacional estarem dando

publicidade ao caso. Apesar das dificuldades cada vez maiores, a editora

continuava lançando títulos importantes na oposição ao regime: A origem da

família, da propriedade privada e do estado, de Engels, em tradução de Leandro

Konder (1974); O golpe de ’64: a imprensa disse “não”, de Thereza Cesário

Alvim (1979); Fazenda modelo, de Chico Buarque (1974); Bar Don Juan, de

Antônio Callado (1972 – antes, em 1967, a Civilização havia lançado, do mesmo

autor, o romance Quarup).

A ação oficial contra os clássicos do socialismo teórico foi abrandada na

década de 70. A repressão estava mais voltada para obras que fizessem críticas

diretas à situação do país. Assim, a Civilização pode vender cerca de 50 mil

exemplares de O Capital no Brasil e mais cerca de 20 mil em Portugal (que estava

sob o impacto da recente Revolução dos Cravos, de 1974). (HALLEWELL, 1985,

p.498) Foi também em meados de 1970 que a Civilização passou a investir na

venda de livros pelo Correio, o que chegou a representar 5% de seu total de

vendas.

Em 1978, com o abrandamento da censura, Ênio pode relançar a Revista

Civilização Brasileira, agora sob o nome Encontros com a Civilização Brasileira.

Esse novo periódico também teve enorme sucesso, tendo 29 números publicados

entre julho de 1978 e janeiro de 1982. Com o início da abertura, certos temas

deixaram de ser tabu. Sobre esse momento, Ênio comentou, em seu discurso de

posse no Pen Club do Brasil, em agosto de 1991:

“Mas, por um desses paradoxos que tornam ainda mais confusa a história de certas pessoas e de determinadas nações, a restauração da ordem democrática, ou, melhor dito, da ‘aparência democrática’, tornou como que redundante ou supérflua nossa atitude de partisans editoriais. Exaurida por anos de luta, que lhe consumiram o modesto patrimônio material a duras penas amealhado, a Civilização Brasileira e eu mesmo nos demos conta de que estávamos agonizando, em termos empresariais, ao chegar à praia depois da tempestade. Seríamos como o albatroz do famoso poema de Baudelaire?” (FELIX, 1998, p.78)

O ímpeto combativo da Civilização Brasileira parece ter abrandado um

pouco nesse período do início da abertura, possivelmente em função de problemas

de saúde vividos por Ênio Silveira:

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“E também fiz minha própria história fantástica. Tive uma isquemia cerebral, fiquei totalmente paralítico do lado esquerdo. Um quadro de isquemia provocado por tensão nervosa. De repente eu fiquei paralítico e não pude falar direito durante três meses. Tive que reaprender a andar (...). Isso aconteceu como subproduto do golpe”. (Id., ibid.)

Apesar de ter conseguido sair da concordata e saldar algumas dívidas com

a liquidação de títulos importantes e com a venda de patrimônio pessoal, Ênio

continuava com uma empresa combalida nas mãos. Procurou então se associar

com outras editoras, mas não apareceram muitas propostas. Por fim, em 1985,

Ênio entrou em contato com o empresário português Manuel Bulhosa, um

banqueiro milionário que já havia comprado a editora Difel, de São Paulo.

Interessado em expandir seus negócios no Brasil, Bulhosa comprou 80% da

Civilização Brasileira, tendo firmado o acordo de não desvirtuar sua linha

editorial. Bulhosa declarou-se grande admirador de Ênio – embora não

concordasse com suas idéias políticas –, e lhe pediu que continuasse como diretor

da empresa. De fato, Bulhosa cumpriu o acordo, e nunca vetou, por razões

ideológicas, sequer um título proposto por Ênio. Algum tempo depois, Ênio

vendeu a Bulhosa os vinte por cento das ações da editora que lhe restavam.

“Sou muito grato ao Bulhosa pelo simples fato de ele ter mantido a Civilização Brasileira. Não importa que eu seja hoje, de uma empresa que foi minha, um mero assessor. O importante é que a empresa continua atuando. Ele, absolutamente capitalista, recomeçou a empresa, que agora está novamente estável, está se reerguendo financeiramente. E eu continuo com muita liberdade”. (Id., p.81)

Por mais de dez anos, até a sua morte, Ênio continuou como diretor da

civilização e como conselheiro da Bertrand – grande editora de Bulhosa em

Portugal, que depois inaugurou aqui a Bertrand Brasil – e da Difel. Em 1996,

pouco depois da morte de Ênio, Bulhosa vendeu o grupo BCD (Bertrand,

Civilização e Difel) para o poderoso grupo Record. Parece que o empresário

português mantinha suas editoras no Brasil como uma espécie de deferência

especial ao editor que tanto admirava. Hoje a Civilização Brasileira funciona

como um selo dentro do grupo Record, relançando importantes títulos do antigo

catálogo e incorporando novos autores.

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Para concluir, mais uma citação de Laurence Hallewell. Embora longo, o

trecho sintetiza a importância do editor Ênio Silveira e de sua empresa, a editora

Civilização Brasileira, como pólos de resistência e coragem política, difusão

cultural, modernização e democratização do livro no Brasil:

“Pelo menos de igual importância, para o desenvolvimento da indústria editorial brasileira, foi o exemplo dado por Ênio Silveira na administração de sua própria empresa, a Civilização Brasileira. Sua contribuição em métodos administrativos, publicidade, produção gráfica e política editorial foi, no conjunto, quase tão importante, em seu tempo, quanto haviam sido as inovações de Monteiro Lobato.

Como Lobato, Ênio Silveira é um radical; mas, enquanto Lobato virtualmente abandonou a atividade editorial para dedicar-se a suas campanhas políticas, a política de Ênio Silveira encontrou expressão em seu trabalho editorial – a ponto de pôr em risco a própria existência de seu negócio durante os primeiros anos após a revolução de 1964.

O autor em desacordo com um régime que tema ultrapassar os limites da tolerância oficial pode freqüentemente imitar Victor Hugo ou Karl Marx, fugindo para o estrangeiro para disseminar suas idéias malquistas a partir do abrigo seguro do exílio. Um editor não tem essa opção: ou calará sua crítica, ou se exporá, e seu negócio, a enorme variedade de sanções de que dispõe o Estado moderno. E enquanto o autor perseguido tem quase que assegurada a simpatia do público, o editor que tomba, vítima das formas mais insidiosas de pressão governamental (tais como restrição de crédito ou tributação injusta) pode ver sua própria ruína popularmente atribuída a mera inépcia comercial. Contudo, aparecem ocasionalmente homens dispostos a correr esse risco por suas convicções. Ênio Silveira manteve-se fiel a uma política editorial que pôs à prova os limites de tolerância de todos os governos, desde Castello Branco até Geisel. Como resultado disso, sofreu contínuos prejuízos financeiros e dilapidação de patrimônio, repetidas prisões e pelo menos uma tentativa de assassinato”. (HALLEWELL, 1985, p.445)

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4 A Revista

A Revista Civilização Brasileira (RCB) teve vinte e dois números

publicados entre março de 1965 e dezembro de 1968. Sua importância como

núcleo de resistência intelectual à crescente opressão da ditadura militar é

destacada por todos os que viveram a época. Estudar esse periódico, analisando

seu conteúdo e fazendo uma breve síntese de suas características físicas é,

portanto, uma forma de recuperar uma parte significativa da memória do nosso

país. É uma tentativa de descobrir o que aquelas páginas amareladas contêm e

como podem contribuir, nos dias atuais, com exemplos de dignidade, coragem e

coerência. Aqui, se fará uma abordagem mais geral da Revista e de suas diversas

seções. O capítulo seguinte será dedicado a uma análise mais detalhada sobre o

conteúdo de literatura e de crítica literária presente na publicação.

4.1. O objeto No formato de 14 x 21cm e com uma média de 300 páginas por volume, a

RCB assemelha-se, visualmente, a um livro. Sua periodicidade bimensal, porém, e

seu conteúdo altamente diversificado e ligado às questões mais prementes da

época em que era publicada fazem dela um periódico no sentido clássico. Seu

preço sofreu pequenas alterações ao longo dos números, em função da alta

inflação e das mudanças no sistema monetário do período. Os números de 1 a 4

custavam CR$1500. O número 5-6 custava CR$2000.4 O número 7 traz também

impresso na capa o preço de CR$2000, mas um carimbo se sobrepõe indicando a

alteração: CR$3000, valor que se manterá até o número 11-12. A partir daí muda

4 Algumas vezes, dois números da Revista foram publicados em um só volume. As razões para isso nem sempre ficam claras, mas era comum haver atrasos em função de problemas financeiros ou de dificuldades na reunião dos artigos e das colaborações. Em muitas ocasiões as dificuldades eram impostas pela repressão política, direta ou indiretamente (ver, por exemplo, o comentário ao editorial do n.5-6, mais adiante).

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a moeda, e passa-se a trabalhar com valores em cruzeiros novos.5 Os volumes 13 a

17 custam NCr$3,00, o volume 18 custa NCr$4,00 e os dois últimos, 19-20 e 21-

22, custam NCr$5,00.

Todos os números foram impressos na Companhia Gráfica Lux, de

propriedade de Felix Cohen Zaide. Como já se disse no capítulo anterior, Zaide

foi perseguido por ser um dos principais fornecedores de serviços gráficos à

Editora Civilização Brasileira. Vendida nas livrarias ou podendo ser adquirida por

assinatura – inclusive no exterior –, a Revista chegou a ter, em alguns números, a

impressionante tiragem de 20 mil exemplares, esgotados rapidamente. É

interessante notar, quanto à tiragem, que não há uma indicação precisa a esse

respeito nos exemplares da Revista. O número 2, porém, traz uma pequena nota

introdutória que expressa a alegria dos editores por ter a tiragem de 10 mil

exemplares do número 1 se esgotado em apenas 25 dias. Duas notas na seção

literária do Correio da Manhã confirmam esse espantoso sucesso inicial: na

primeira, de 04 de abril de 1965, José Condé afirmava: “Quinze dias após o

lançamento da Revista Civilização Brasileira, seis mil exemplares – dos dez mil

distribuídos no Rio e em São Paulo – já tinham sido vendidos, o que atesta o êxito

absoluto da nova publicação idealizada e dirigida por Ênio Silveira”. A segunda,

de 27 de maio, anuncia o lançamento do segundo número, e destaca: “o primeiro,

de 10 mil exemplares, teve a edição esgotada em vinte e cinco dias”. (CONDÉ,

1965) (ver ANEXO). No número 5-6, outra nota da direção da Revista

mencionava a tiragem de 20 mil exemplares:

“Plataforma para o debate e a exposição livre de idéias, a REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA – apesar de todas as dificuldades que o próprio quadro cultural de nossa Pátria já oferecia ao seu progresso – alcançou a partir do segundo número a tiragem de 20.000 exemplares, cifra expressiva em qualquer parte do mundo para uma revista do gênero”. (RCB, n.5-6, p.3)

Mais adiante, na mesma nota, mencionava-se a existência de assinantes no

exterior: “(...) aqui estamos de novo em contacto com nossos leitores que, hoje, já

incluem centenas de assinantes em vários países da Europa e América, inclusive

nos Estados Unidos”. (Id., p.3)

5 Em fevereiro de 1967, a moeda mudou do cruzeiro para o cruzeiro novo, com o corte de três zeros (CR$1000 = NCr$1,00).

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Não é tão difícil compreender o sucesso da RCB. A ditadura implantada

com o Golpe de 64 ainda não tinha calado a voz da imprensa e da

intelectualidade, como o faria a partir de dezembro de 1968, embora já começasse

a exercer uma forte pressão sobre os que se manifestavam contra o regime. O

clima pesava com as denúncias cada vez mais freqüentes de tortura, com os

exílios forçados, com as cassações. Os fatos ainda eram muito recentes, e os

rumos, incertos. A tensão e a inquietação levaram a um movimento de intensa

análise da situação, em termos políticos, econômicos e culturais. Expor as

relações de poder – nacionais e internacionais – que levaram ao Golpe era uma

forma de tentar compreendê-lo, e de organizar uma reação. Os intelectuais de

esquerda – e é necessário frisar mais uma vez: não apenas os marxistas ortodoxos,

mas de todos os matizes da esquerda – encontraram na RCB um veículo de

expressão e livre debate de suas idéias. Laurence Hallewell atribui parte de seu

êxito inicial a uma relação entre a RCB e a extinta Revista Brasiliense: “Parte do

êxito da Revista, talvez fosse devida ao fato de que ela veio preencher a lacuna

deixada pelo desaparecimento da Revista Brasiliense. Esta era algo semelhante,

porém mais tradicionalmente uma revista marxista ortodoxa, fundada por Caio

Prado Júnior em 1955 e que saiu pela última vez em fevereiro de 1964”.

(HALLEWELL, 1985, p.486) Seja pelo motivo que fosse, o fato é que a

intelectualidade nacional – e parte da internacional também – estava ávida por um

espaço em que fossem discutidos com coerência e clareza, sem sectarismos, os

rumos que o país vinha tomando. Mais se falará, adiante, sobre as características

ideológicas da RCB, o que ajudará a compreender melhor esse sucesso de vendas.

Quanto à capa, a RCB teve dois padrões. O primeiro, que vigorou até o

número 11-12, trazia o desenho de um homem rústico e forte, com um grande

chapéu de palha na cabeça e um peixe na mão. Alguns traços retos completavam a

imagem vazada em branco contra um fundo que variava de cor a cada edição (ver

ANEXO). O tom geral era de simplicidade e economia; o resultado enxuto e, de

certa forma, duro, apontava para uma identificação com a dureza daqueles

tempos, com a simplicidade do povo e com a força dos trabalhadores. Além do

desenho e dos traços, essas primeiras capas traziam em destaque, além do nome

da revista (todo em letras minúsculas), alguns autores e artigos. O preço e o

número completavam o conjunto. A partir do número 13, porém, a composição da

capa foi alterada. O desenho deu lugar a uma divisão em cinco retângulos. Nos

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dois quadros superiores, o nome da revista, acompanhado do preço e do número, e

o símbolo da editora, em grande destaque. Imediatamente abaixo, um dos quadros

destacava alguns artigos e seus respectivos autores e o outro trazia uma imagem

em duas cores relacionada a um dos temas destacados. O retângulo inferior, que

ocupava toda a largura da revista, trazia também uma imagem, que podia ser

inclusive uma ampliação da que viera no quadro acima. Essa imagem, que

predominava na distribuição gráfica dos elementos visuais, dava o tom geral da

capa, indicando algum tema importante abordado na Revista. Com essa alteração,

as capas passaram a ser mais modernas e dinâmicas, contando com maior força e

impacto visual. O curioso é que, embora a Editora Civilização Brasileira tivesse o

hábito de indicar o capista de seus livros, o responsável pelas capas da Revista

não é mencionado. Os depoimentos colhidos, de pessoas que colaboraram e

trabalharam de perto na elaboração de diversos números, também não

acrescentaram nenhuma informação a esse respeito. Eunice Duarte, assistente de

Ênio Silveira na Editora por cerca de dez anos, afirma ter a lembrança de que o

próprio editor idealizava as capas e algum funcionário da casa simplesmente as

executava. Seja como for, as capas da Revista funcionavam como uma vitrine ou

janela para o seu interior.

As ilustrações internas eram poucas. Raros artigos eram acompanhados por

algumas fotografias, sempre em preto e branco e impressas em um caderno com

papel especial. Um exemplo são as imagens que acompanham a entrevista

concedida pelo artista plástico Ivan Serpa ao poeta Ferreira Gullar, no número 2,

intitulada “O artista já não pode fechar-se em si mesmo”. As fotografias mostram

o artista e alguns de seus quadros. Outras matérias ilustradas com fotos são, por

exemplo, o artigo de Mário Barata sobre o fotógrafo Fernando Goldgaber

(número 3) e uma entrevista do escultor paraibano Fernando Jackson Ribeiro a

Ferreira Gullar, intitulada “Eu não sei para que serve a minha arte”, publicada no

número 1.

As ilustrações que aparecem com maior freqüência, em quase todos os

números, são as charges do cartunista Jaguar. Sem estar relacionadas a matérias

específicas, as charges criticavam, com humor e ironia, diversos aspectos da

realidade social, política e cultural do país e do mundo. Com seu traço

contestador e irreverente, Jaguar “colocava o dedo na ferida”, não poupando nem

mesmo o meio intelectual. O número de charges publicadas em cada edição da

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Revista era irregular, assim como sua distribuição pelas páginas. Com isso, os

desenhos de Jaguar pontuavam as reflexões mais profundas contidas nos artigos

com seu humor ácido, e ajudavam a reconstruir dentro da Revista o clima geral

em que vivia a sociedade brasileira na época. (ver ANEXO)

Além das fotografias e das charges, inúmeros anúncios publicitários eram

intercalados com os artigos. Todos, entretanto, voltados para a indústria editorial

ou fonográfica. Anúncios dos Discos Festa6 dividiam espaço com os que

apresentavam lançamentos de editoras como a Zahar, a José Olympio, a

Brasiliense, a Companhia Editora Nacional, a Paz e Terra e, é claro, a própria

Civilização Brasileira (ver ANEXO). Na sua maioria, os livros anunciados

tratavam de temas sociológicos, históricos ou políticos, de modo geral

contribuindo para a conscientização a respeito dos fatores relevantes implicados

na configuração política e social do mundo na segunda metade da década de 60.

Títulos significativos, que podem exemplificar essa tendência, são O Capital, de

Marx, O poder jovem, de Arthur José Poerner, as biografias de Trotski e de Lênin,

além de outros que tratavam da Guerra do Vietnã, das revoluções na América

Latina, do movimento estudantil, da Rússia e do nazismo. Em todos os números

da Revista, as contracapas e a quarta capa eram sempre dedicadas à publicidade.

As primeiras páginas da Revista eram sempre ocupadas pelo “Roteiro”,

chamado de “Índice” a partir do número 13.7 Até o número 10, o “Roteiro”

agrupava os artigos em categorias que indicavam os principais temas sobre os

quais se debruçava a Revista. Eram elas: Política Nacional, Política Internacional,

Economia, Literatura, Cinema, Teatro, Artes Plásticas, Música, Documentário,

Problemas Culturais e Filosóficos, Ciência e Tecnologia, Cultura Popular, Direito,

Problemas Sociais e Políticos, História e Notas de Leitura. Evidentemente, nem

todos os números traziam artigos em todas as categorias, de modo que

eventualmente alguma delas não era publicada. Do número 11-12 em diante,

porém, esse agrupamento por categorias foi eliminado. O “Roteiro” ou “Índice”

passou a listar apenas os títulos dos artigos e os nomes dos autores, sem fazer

qualquer divisão temática. Isso provavelmente se explica por uma diminuição no

número de contribuições ou por dificuldades financeiras que impuseram uma

6 Produtora de altíssima qualidade cultural, de propriedade de Irineu Garcia, em parceria com o poeta Thiago de Mello. 7 Em alguns números posteriores, essas duas nomenclaturas convivem ou se alternam.

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redução no tamanho da Revista. Com menos artigos, uma divisão em blocos

temáticos não era mais necessária. É preciso lembrar que houve um processo de

endurecimento do regime ditatorial contra as manifestações da oposição, e que

isso tornou o trabalho dos editores e dos colaboradores da RCB mais difícil e

arriscado.

4.2. Direção e Conselho de Redação Possivelmente também por problemas com a repressão, o quadro com os

nomes dos integrantes do Conselho de Redação da Revista deixou de ser

publicado a partir do número 5-6. Até o número 4, figurava como diretor

responsável o editor Ênio Silveira e como secretário o filósofo Roland Corbisier.

Como integrantes do Conselho, Alex Viany, Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Cid

Silveira, Dias Gomes, Edison Carneiro, Ferreira Gullar, Haiti Moussatché, M.

Cavalcanti Proença, Moacyr Felix, Moacir Werneck de Castro, Nelson Lins e

Barros, Nelson Werneck Sodré, Octavio Ianni, Paulo Francis e Oswaldo Gusmão.

Abaixo da lista dos nomes, uma nota advertia que as matérias não-assinadas eram

de responsabilidade do Conselho de Redação. No entanto, o jornalista Moacir

Werneck de Castro (cujo nome inclusive não consta do Conselho de Redação

publicado no número 4) afirmou em depoimento para este trabalho que o

Conselho não tinha uma participação efetiva nas decisões e na seleção de material

para a Revista. Muitas vezes os nomes que ali constavam haviam sido incluídos

por uma questão de cortesia ou de amizade. “Não haveria nem tempo para sentar

e discutir entre todos o que ia ou não ser publicado”.8 Eunice Duarte, em seu

depoimento, confirmou esse distanciamento. Segundo ela, apenas Paulo Francis,

Ênio Silveira, Moacyr Felix e ela própria estavam envolvidos diretamente na

produção da RCB. As contribuições chegavam espontaneamente (quase nunca se

encomendava uma matéria ou artigo a alguém), eram analisadas e alocadas nos

diferentes números publicados.

8 Depoimento de Moacir Werneck de Castro à autora.

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Há uma quebra na periodicidade da Revista após o número 4, publicado em

setembro de 65. O número 5, que deveria sair em novembro, sai apenas em março

de 66, junto com o número 6. Esse volume, que não traz mais a relação dos nomes

do Conselho de Redação, aponta como diretor responsável M. Cavalcanti Proença,

e como secretário, Moacyr Felix. Essas alterações, somadas ao atraso na

publicação, podem indicar que a Revista passara por alguns problemas com o

regime. De fato, a nota da direção que abre o volume afirma:

“Pretendendo manter-se em postura crítica diante de fatos, personalidades, correntes de pensamento e passageiras configurações políticas, é compreensível que [a RCB] tenha sido obrigada a suportar as incompreensões e violências com que esse legítimo direito democrático costuma ser enfrentado, em todos os quadrantes, por autoridades que se julguem detentoras da verdade única e inquestionável. (...) Lamentamos a quebra involuntária de periodicidade, mas esclarecemos que o atraso na publicação deste número, que se deve à soma de circunstâncias políticas que têm mantido em sobressalto a Nação e nos obrigaram a diversas modificações estruturais e administrativas, não significa qualquer alteração em nossa linha de conduta”. (RCB, n.5-6, p.3)

Laurence Hallewell, em O livro no Brasil, destaca a importância da Revista

e afirma, sobre a alteração da Direção no número 5-6: “Em outubro de 1965,

pressões do governo Castello Branco obrigaram Ênio Silveira a retirar-se da

direção nominal tanto da Revista como da editora para evitar que houvesse uma

ação oficial direta contra elas. Naquela altura ele já fora preso três vezes”.

(HALLEWELL, 1985, p.486) Carlos Nelson Coutinho afirma também que o

afastamento de Ênio foi mais para poupar a Revista do que para preservar a si

próprio. “Ele nunca se preocupou em não se expor”.9 Para a então ingrata tarefa

de se expor e assumir os riscos da direção da editora ofereceu-se, num gesto de

extrema generosidade, coragem e dignidade, o historiador Hélio Silva. Ênio

Silveira foi grato a ele por toda a vida.

A direção indicada no número 5-6 permanece inalterada até o número 8, de

julho de 66. O número 9-10 é lançado apenas em novembro desse ano. A nova

quebra de periodicidade não é explicada, mas a alteração na direção sim: M.

Cavalcanti Proença falecera, sendo substituído no cargo de diretor responsável

por Moacyr Felix. Como secretário, assume o dramaturgo Dias Gomes. O texto

9 Depoimento de Carlos Nelson Coutinho à autora.

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editorial, intitulado “Duas perdas irreparáveis”, lamenta a morte de Proença e

também a do compositor Nelson Lins e Barros, responsável pela seção de música

da RCB. Diz o texto: “Vivemos em profunda tristeza, nos dias que correm,

quando – além do panorama sombrio que nos cerca – somos atingidos, todos nós

que participamos da REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, por duas perdas

irreparáveis (...)”. (RCB, n.9-10, p.3) No mesmo número, um belo texto de Carlos

Drummond de Andrade em homenagem a M.Cavalcanti Proença é publicado,

bem como um de Sérgio Cabral em homenagem a Nelson Lins e Barros. Até o

último número, em dezembro de 68, Moacyr Felix e Dias Gomes permaneceriam

como diretor responsável e secretário, respectivamente.

4.3. Editoriais Nem todos os números da Revista traziam editoriais, que, quando

apareciam, eram sempre bastante diversificados quanto ao tema e à forma. O

primeiro editorial, intitulado “Princípios e propósitos”, apresenta a Revista e

estabelece sua linha ideológica. Por sua importância para a compreensão do

periódico como um todo, será aqui analisado em detalhes.

O texto inicia-se com uma breve consideração sobre a História como um

processo de contínuo desafio, em que as conseqüentes vitórias ou derrotas levam

a novos desafios. Em seguida, passa a colocar uma série de questões sobre a

capacidade do povo brasileiro de superar “as forças que se opõem ao

desenvolvimento do País, numa linha democrática e independente” e de

“abandonar formulações meramente especulativas e, através do estudo objetivo de

todas as componentes da realidade nacional, equacionar e depois resolver seus

graves problemas”. Como resposta a essas provocadoras indagações, uma

categórica afirmação: “Cremos que sim”. E mais: a tarefa de “estudar em seus

mínimos pormenores a complexidade da vida brasileira” recai principalmente

sobre os intelectuais. Um princípio básico, porém, deve servir como ponto de

união entre todos os estudiosos: o de que “sem liberdade no mais amplo sentido

não será possível retirar a Nação e seu povo do limbo em que se encontram”.

(RCB, n.1, p.3)

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Há uma consideração sobre o golpe de abril e seu impacto no projeto

intelectual de superação das dificuldades brasileiras que merece ser destacada,

pois aponta, de certa forma, para a relação entre cultura e repressão: “O golpe de

abril, sendo mero episódio da crise crônica em que nos encontramos, certamente

dificulta, mas por isso mesmo estimula, abre novas perspectivas e torna inadiável

a tarefa que lhes cabe [aos intelectuais] executar”. (Id., ibid.)

A RCB surge então, com esses propósitos definidos, pretendendo ser o

veículo de divulgação sobre os estudos e as pesquisas acerca da realidade nacional

e um grande fórum de debates. Ressalva-se que a publicação “fugirá

deliberadamente ao gratuito, porque acredita indispensável um alto índice de

objetividade aos trabalhos que acolher em suas páginas”. Não se ocupará,

portanto, de “faits divers”, mas apenas daquilo que tenha conteúdo e sentido e que

“se insira no processo da revolução brasileira”. (Id., pp.3-4)

Uma idéia é mencionada várias vezes ao longo do texto: a de que a Revista

não se prenderá a limitações partidárias ou individualistas, buscando sempre

amplitude de visão. Isso é reafirmado sempre com bastante força e clareza: “(...) a

REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA não será orientada por qualquer partido ou

concepção sectária”. (Id., p.4) No entanto, os editores julgam necessário ressaltar

que essa atitude de ampla aceitação e de rejeição ao sectarismo não deve ser

tomada como sinal de que se publicarão todos os tipos de pensamento:

“É preciso deixar bem claro que [a Revista] não somente repudiará como abertamente combaterá tudo aquilo que admitir como válida ou moralmente correta a presente estrutura sócio-econômica do Brasil, ou entender como inevitável e até mesmo necessária a submissão dos interesses nacionais ao das grandes potências, sejam elas quais forem”. (Id., ibid.)

A partir dessa afirmação, passa-se a considerar o espaço a ser dado para as

contribuições estrangeiras. Afirma-se que serão acolhidas todas as manifestações

e expressões internacionais que “contribuam para a melhoria da condição

humana”, sem que isso resulte numa limitação imposta por “um nacionalismo

sentimentalóide e estreito”. O editorial aproveita para criticar mais uma vez os

rumos da política nacional, afirmando que a Revista “por certo não cairá nos

esquemas geopolíticos, nos planejamentos estratégicos continentais que o State

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Department e o Pentágono idealizam e que certas figuras da política nacional

executam”. (Id., ibid.)

Encerrando o texto, uma última reafirmação do princípio de abertura e

liberdade, e uma mensagem de esperança:

“Não nos fixaremos, portanto, em posições ou postulações herméticas. Há um mundo em movimento em torno de nós, o futuro se nos afigura auspicioso e queremos participar desse estado dinâmico e alcançar dias melhores para o Brasil e a humanidade”. (Id., ibid.)

Pode-se, portanto, resumir a orientação da RCB em dois princípios básicos e

em um propósito principal: os princípios de liberdade – ou democracia – e de

crença num futuro melhor e o propósito de ser um espaço para o estudo e o debate

profundo das questões brasileiras, sempre voltados para a superação das

desigualdades sociais e do atraso em que o País se encontrava – e se encontra

ainda hoje. De fato, ao longo de todos os números se poderá observar a coerência

mantida em relação a essas postulações iniciais.

O segundo número da Revista traz, em lugar do editorial, a reprodução de

uma entrevista concedida pelo marechal Henrique Teixeira Lott ao Correio da

Manhã. Uma pequena nota introdutória explica que o texto preparado pela

Direção para abrir o volume – em que se manifestava “o júbilo pela extraordinária

acolhida que teve nossa Revista em todo o País”, tendo a primeira edição, com

tiragem de 10 mil exemplares, se esgotado em apenas 25 dias, como já foi dito

aqui – foi substituído pela entrevista do marechal Lott por ser ela “uma síntese

precisa de tudo aquilo que desejaríamos dizer”. E o que diz Lott, ou pelo menos o

tom geral do que ele afirma, está de certa forma resumido no parágrafo inicial de

sua fala:

“Só é legal o Poder que emana do povo e que em seu nome é exercido; a autoridade não será legítima se não se basear nesse princípio. É por esse motivo que as ditaduras só se mantêm pela violência e pela corrupção. A mais frágil das ditaduras é, exatamente, a ditadura militar porque de um lado contribui para impopularizar as Forças Armadas e de outro as contamina com o micróbio da corrupção”. (RCB, n.2, p.3)

Mais adiante, quase ao final da entrevista, afirma:

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“Não é compreensível falar-se em Democracia sem plena liberdade de reunião, de pensamento e de imprensa, sem liberdade sindical, sem liberdade de cátedra, sem liberdade nas universidades e nas organizações estudantis”. (Id., p.4)

Com isso, pode-se dizer que os dois primeiros números da Revista abrem

seus volumes com manifestações abertamente contrárias ao regime instalado pelo

Golpe de 64. O mesmo tom, evidentemente, se manterá nos artigos que os

compõem. Nos números 3 e 4, no entanto, essa oposição ao governo militar se

fará de forma ainda mais direta: o editor da Revista – e dono da Editora

Civilização Brasileira – Ênio Silveira dirige-se diretamente ao presidente Castello

Branco em suas duas famosas “Epístolas ao marechal”, a primeira intitulada

“Sobre o ‘Delito de opinião’”, e a segunda, “Sobre a vara de marmelo”. Com uma

linguagem fina e irônica, Ênio começa sua primeira carta mencionando o livro

The Presidential Papers, do escritor americano Norman Mailer. Nele, Mailer

reuniu as cartas que ele mesmo escrevera ao Presidente John F. Kennedy e que

publicara nas revistas com as quais colaborava. Nessa correspondência unilateral,

Mailer analisava e desenvolvia temas os mais variados: de política externa (com

uma crítica à invasão de Cuba e ao vergonhoso episódio da Baía de los Cochinos)

a delinqüência juvenil nos Estados Unidos, passando inclusive pelo campeonato

mundial de boxe. A premissa de que parte Mailer – e de que Ênio Silveira se

apropria – é a de que “o exercício de um mandato presidencial freqüentemente

aliena da realidade do dia-a-dia quem dele se desincumba”, (RCB, n.3, p.3) e que

essa visão externa e desinteressada pode ser muito útil para a tomada de decisões

importantes.

Foi a partir da leitura do livro de Mailer que Ênio teve duas idéias: primeiro,

a de editar o livro em português (o que fez em 1966); segundo, a de fazer o

mesmo que o norte-americano, e passar a estabelecer uma correspondência

“igualmente unilateral, igualmente voluntária, igualmente audaciosa” com o

Presidente. Ênio pede desculpas pelo tratamento pouco protocolar, mas justifica-o

pelo desejo de estabelecer “um tom menos rígido, menos palaciano, mais

coloquial, de cidadão para cidadão”. É preciso esclarecer que Ênio não omite um

detalhe importante: só tivera chance de ler o livro de Mailer poucas semanas

antes, quando se encontrava preso “por obra e graça do Cel. Intendente Gerson de

Pina” no Quartel do I Batalhão da polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Ênio

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segue com sua sutil ironia ao afirmar que hoje tem a impressão – que antes não

tinha – “de que o Senhor deseja – como eu – a felicidade da Pátria”. No entanto,

não compreende por que o Presidente parece ser um adepto do monólogo.

Reconhece que dificilmente o marechal encontrará tempo ou interesse para lê-lo,

ele que é “hoje um dos 486 brasileiros que o seu governo considera indesejáveis

para o trato público da coisa pública”. “Além disso, o Senhor poderia argumentar

que eu não sou Norman Mailer; mas o Senhor também não é John Fitzgerald

Kennedy (...)”. (Id., p.4) Ênio reafirma então seu desejo de escrever, mesmo que

não seja lido, ao menos para fazer uma catarse. E essa catarse se inicia com uma

auto-apresentação, uma espécie de resumo biográfico. A opção por essa estratégia

justifica-se por lhe parecer

“(...) perfeitamente normal que o Senhor não tenha a mínima idéia de quem – ou do que – eu seja. Tomo, por isso, liberdade de lhe dar um breve retrato pessoal, cuja utilidade adiante se verá, e que, caso lhe falte outro destino, poderá completar as fichas do Conselho de Segurança Nacional e do SNI”. (Id., p.5)

De sua trajetória pessoal, Ênio passa a uma consideração da situação

política e social do país, fazendo uma sucinta mas aguda análise das conjunturas

que levaram ao Golpe. No caminho, faz uma espécie de autocrítica a respeito da

atuação da esquerda no contexto pré-64. Por fim, chega ao ponto principal da

epístola: a liberdade de expressão. Afirma que, por mais contraditório que tenha

sido o governo de João Goulart, pelo menos um ponto brilhante há de ficar para a

história: o de que foi um dos períodos em que o país experimentou maior

liberdade de opinião. Questiona então diretamente o Presidente:

“Gostaria que o Senhor se perguntasse, com a firmeza de atitudes que dizem ser característica marcante de seu temperamento, se os historiadores isentos, no futuro, poderão ter conceito semelhante quando se dedicarem à análise do seu governo (...). Por melhores que sejam suas intenções pessoais, Senhor Marechal, por mais que lhe pareçam inevitáveis alguns momentos de violência no curso de uma ‘revolução’ (não sei porque é que insistem em denominar assim, de modo sociologicamente incorreto, o movimento insurrecional vitorioso em 1o de abril), sua honestidade intrínseca não lhe permitirá esperar resposta afirmativa àquela pergunta”. (Id., p.8)

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Ênio lista então uma série de violências que continuam a ser praticadas, um

ano e quatro meses após o Golpe: prisões, inquéritos intermináveis, apreensões de

livros etc. Todos motivados pelo que se convencionou chamar, indistintamente,

de “delitos de opinião” ou de crime de subversão. E esclarece o que é um

subversivo naquele contexto político: “Subversivo é quem deseja a modificação

pacífica da estrutura sócio-econômica nacional; subversivo é quem tenha

defendido um governo legitimamente constituído, que não-subversivos

derrubaram (...)”. (Id., p.9) Depois de apontar mais contradições e violências do

novo regime, Ênio conclui:

“O chamado ‘delito de opinião’, Senhor Marechal, é o crime que devemos todos praticar diariamente, sejam quais forem os riscos. Se deixarmos de ser ‘criminosos’, nesse campo, seremos inocentes... e carneiros. Pedindo-lhe desculpas por ter abusado de seu tempo e de sua paciência, Senhor Marechal, subscrevo-me, Atenciosamente, Ênio Silveira”. (Id., p.11)

A epístola seguinte, no número 4 da Revista, intitula-se “Sobre a vara de

marmelo”. Nela, Ênio retoma a linha iniciada na carta anterior. Faz uma nova

análise do Golpe, a que se acrescentam considerações sobre as contradições

internas das Forças Armadas e sobre a falta de posição ideológica da maioria dos

indivíduos que as compõem. Critica o tom do discurso proferido pelo Presidente,

em que este afirma, a respeito das eleições estaduais que se aproximam, que

“jamais admitiremos que qualquer parcela do poder seja usada para fins

inconfessáveis e capazes de comprometer a continuidade da Revolução”. (RCB,

n.4, p.5) Esse trecho, diz Ênio, revela o acordo tácito feito entre o governos e as

cúpulas partidárias: “brinquem à vontade, meninos, mas não perturbem o sono de

Sua Excelência”. (Id., ibid.) Ênio destaca ainda a pressão exercida pelos grupos de

extrema direita sobre as decisões presidenciais, e o quanto isso é prejudicial para a

Nação. Depois de considerar o papel das Forças Armadas, passa a analisar as

estratégias econômicas de submissão ao imperialismo norte-americano, e é duro

ao chamar a atenção do marechal para a responsabilidade que tem nas mãos:

“A História irá julgar aqueles que, como o Senhor, tiveram nas mãos uma imensa parcela de responsabilidade pelo encaminhamento (ou desencaminhamento) dos interesses de todo um povo. (...) Ainda há possibilidade de o Senhor deixar de lado a vara de marmelo e os preconceitos e (...) estender as mãos aos verdadeiros representantes do povo

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brasileiro para esse trabalho de recuperação nacional que não pode ser adiado nem mais um minuto e requer o devotamento de todos, acima de paixões e rancores”. (Id., p.8)

O editorial do número 5-6, como já foi dito, traz duas notas da Direção. A

primeira, mais longa, reafirma os princípios e propósitos da Revista diante dos

ataques que tem sofrido e menciona a expressiva quantidade de 20 mil exemplares

vendidos. A segunda, bastante curta, trata de mais um episódio do debate acerca

da série História Nova do Brasil travado nas páginas da Revista. Constata o

recebimento de uma carta do Prof. Américo Jacobina Lacombe endereçada à

Direção da RCB. A carta é uma resposta ao artigo de Nelson Werneck Sodré

publicado no número 4. A nota, porém, afirma que por falta de espaço o texto de

Lacombe será publicado em outro número da Revista. De fato, essa publicação

acontece no número 8.10

Os dois números seguintes, o 7 e o 8, não apresentam editoriais. No número

9-10, como já se disse, o editorial é dedicado a M. Cavalcanti Proença e Nelson

Lins e Barros, que haviam falecido. O número 11-12 não traz propriamente um

editorial, mas sim um texto não-assinado intitulado “O trono de Macbeth”. Nele,

faz-se uma análise do Golpe de abril, de suas causas e conseqüências, e apontam-

se os caminhos possíveis que se abrem diante do segundo marechal a assumir a

Presidência. Iniciando-se com a epígrafe “Fear not, till the Birman Wood do come

to Dunsinane!”, o texto conclui:

“Se a situação que vivemos nos traz à lembrança a história de Macbeth, é bom não esquecer que a profecia das bruxas foi cumprida até o fim: as florestas de Birman acabaram chegando a Dunsinane. Ao longo da história, o povo acaba sempre derrubando o muro de todos os castelos que se transformaram em Bastilhas”. (RCB, n.11-12, p.10)

O número 13 traz o editorial “Dois anos de RCB”, em que se faz um

balanço da publicação. Reafirmando a importância de lutar constantemente pela

verdade, sem a qual “a função do intelectual perde sua capacidade criadora e

desce ao nível dos atos em que o homem avilta em si a humanidade inteira”, a

Direção reconhece que houve “tropeços, dúvidas e erros” ao longo do caminho.

(RCB, n.13, p.3) Seu constante alento, porém, foi “o manifesto apoio das camadas 10 Os detalhes do debate a respeito da série História Nova do Brasil são apresentados na seção intitulada “Histórias da História Nova”, mais adiante.

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sociais mais lúcidas do nosso País”, o que se comprova pela excepcional tiragem e

pela repercussão nacional e internacional da Revista. Por fim, reafirmando os

princípios de abertura e de não-sectarismo, encerra:

“(...) nossa finalidade maior, aquela que fundamentalmente nos justifica, é a de nos esforçarmos em ser uma publicação para todas as expressões do pensamento em que se representam verdadeiramente as forças vivas da atual História brasileira, aquelas que ora lutam por uma real emancipação econômica e cultural do nosso povo, e por sua integração, como destino soberanamente assumido, numa humanidade que busca libertar-se cada vez mais de todos os sistemas de opressão ou de exploração do homem pelo homem”. (Id., p.4)

Esse é o último editorial publicado nos volumes regulares. Os números

seguintes contarão com algumas matérias não-assinadas: textos ou documentos de

responsabilidade da Direção, que já haviam aparecido nos números anteriores e

que serão comentados brevemente a seguir. Antes, porém, um breve mas

importante comentário sobre os Cadernos Especiais lançados pela RCB.

4.4. Cadernos Especiais Foram três os Cadernos Especiais lançados pela RCB, todos sob a direção

de Moacyr Felix e Dias Gomes. O primeiro, de novembro de 1967, é inteiramente

dedicado à análise dos cinqüenta anos da Revolução Russa. Traz uma

apresentação em que se afirma a intenção dos Cadernos Especiais: analisar

monograficamente temas e problemas da atualidade brasileira e internacional.

Mais uma vez, são reafirmados os princípios de independência intelectual e de

busca da verdade. E se anunciam os temas dos próximos números especiais:

“Teatro e realidade brasileira” e “Função e responsabilidade do intelectual no

mundo moderno”. Por fim, a Direção agradece a Cid Silveira e a Luís Mário

Gazzaneo, responsáveis pela coordenação e por valiosas colaborações na edição

do primeiro número especial. Dos inúmeros intelectuais cujas reflexões foram

incluídas nesse número, destacam-se, dentre os estrangeiros, Isaac Deutscher,

Roger Garaudy, Georg Lukács, Leon Trotski e Lênin. Dentre os brasileiros, o

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jovem marxista Carlos Nelson Coutinho e o histórico comunista Astrojildo

Pereira.

O segundo número, tratando do teatro brasileiro, sai em julho de 1968. A

nota de abertura apresenta o volume e seu objetivo de traçar um panorama do

novo teatro como parte “refletida e refletora de nossa realidade”, e já adverte para

o grande número de polêmicas que os artigos contêm, pela diversidade de visão

de alguns articulistas e entrevistados. Participam dessa grande discussão, expondo

as mais diversas e por vezes contraditórias opiniões, personalidades do mundo

artístico e teatral como Dias Gomes, Luiz Carlos Maciel, Oduvaldo Vianna Filho,

Anatol Rosenfeld, Flávio Rangel, Cacilda Becker, Tite de Lemos, Ferreira Gullar

e Augusto Boal.

O terceiro Caderno Especial, de setembro de 1968, no entanto, não segue o

tema inicialmente planejado e exposto na nota de abertura do número 1. As

circunstâncias históricas o forçam a abordar um assunto mais premente: a invasão

da Tchecoslováquia ocorrida no mês anterior. A nota de abertura afirma que a

Revista não tem “a pretensão nem a possibilidade de fazer a cobertura jornalística

desse processo político em pleno desenvolvimento que é a crise deflagrada pelos

eventos na Tchecoslováquia”, (RCB, Caderno Especial n.2, p.3) mas deseja

contribuir de forma crítica e consciente para a discussão do acontecimento.

“Assim, depois de fixar sua posição no editorial, oferece à leitura de todos os

progressistas brasileiros um documentário que lhes permitirá estudar em

profundidade as origens dessa crise e meditar sobre suas conseqüências (...)”. (Id.,

ibid.) A posição fixada pela Direção no editorial intitulado “A crise no mundo

socialista” deixa claro seu repúdio à ocupação soviética, e indica que esse fato

apenas contribuirá para o agravamento da crise que já se percebia nos países

socialistas. Um farto documentário, incluindo manifestos e relatos sobre as

condições de vida – políticas, econômicas, sociais e culturais – na

Tchecoslováquia e no mundo socialista como um todo, faz desse Caderno

Especial um importante retrato histórico sobre os acontecimentos internacionais

de agosto. A publicação desse número provocou um grande descontentamento no

Partido Comunista Brasileiro, o que levou o Comitê a interpelar o editor Ênio

Silveira. Sempre fiel a sua máxima de não submeter a editora a nenhum tipo de

pressão ideológica, entre retratar-se ou reafirmar os princípios nos quais

acreditava, optou por desligar-se oficialmente do Partido.

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O número prometido sobre a função e a responsabilidade dos intelectuais no

mundo moderno acaba nunca sendo realizado.

4.5. Matérias não-assinadas Quase todos os números da Revista trazem matérias não-assinadas, e seria

cansativo abordá-las aqui individualmente. Vale, porém, um comentário geral,

com destaque para algumas delas. No número 1, fazem um balanço das

“Condições e perspectivas da política brasileira”, da política externa independente

e do terrorismo cultural, além de comentar um editorial d’O Estado de São Paulo

que demonstra o ultraconservadorismo daquele jornal.

No número 2, além da já citada reprodução da entrevista concedida pelo

marechal Lott ao Correio da Manhã, há uma análise sobre o plano econômico do

governo e seu impacto sobre a indústria nacional. No número 3 é publicado um

manifesto de professores americanos contra a invasão de São Domingos pelo

exército dos Estados Unidos, além de um artigo intitulado “Investigações e

debates sobre um ‘delito de opinião’”, em que se transcreve um ofício expedido

contra a Editora Civilização Brasileira por um Inquérito Policial-Militar

instaurado para investigar a atuação da empresa. Ao ofício, segue-se uma vasta

documentação, assim apresentada pela RCB:

“Por se tratar de documentação curiosa, ilustrativa da fase tragicômica por que vem passando a vida brasileira a partir do golpe de 1o de abril, transcrevemos a seguir o despacho do Juiz Antônio de Castro Assumpção (...), o recurso do Promotor Sérgio Demoro Hamilton, o despacho do Procurador-Geral do Estado da Guanabara (...) e – finalmente – as razões do advogado Heleno Cláudio Fragoso interpostas no recurso criminal submetido ao Supremo Tribunal Federal”. (RCB, n.3, p.323)

Ainda na linha de “Documentário”, a Revista traz uma seleção de artigos

publicados em diversos jornais a respeito da prisão do editor Ênio Silveira no caso

que ficou conhecido como “IPM da Feijoada”. A eles acrescenta-se um manifesto

assinado por 600 intelectuais pedindo a libertação do editor e o pedido de habeas

corpus impetrado pelo advogado Heleno Fragoso.

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A partir do número 4, os documentos jurídicos serão apresentados em uma

nova seção, especialmente dedicada ao Direito e apresentada por Cândido de

Oliveira Neto, que ocupara a pasta da Justiça no governo Goulart. Em seu texto

inicial, o advogado afirma estar a vida jurídica do Brasil “com febre de 40 graus, à

beira do delírio”. (RCB, n.4, p.357) E explica que a seção será dedicada a realçar

trabalhos de grandes advogados em favor de causas públicas e terá como ponto de

honra a defesa, “o mais intransigente possível”, do Supremo Tribunal Federal. Ali

serão publicados mandados de segurança, despachos, pareceres e certidões

relativos às causas de liberdade de expressão, tais como o acórdão unânime do

STF em favor do editor Ênio Silveira (n.7), a apelação do advogado Nelson

Hungria da sentença contra Carlos Heitor Cony (n.8) e o mandado de segurança

impetrado pela Editora Civilização Brasileira contra o Departamento Federal de

Segurança Pública (n.7).

Inúmeras matérias não-assinadas são reproduções de artigos ou documentos

estrangeiros que adquirem relevância diante da instabilidade do quadro político e

econômico internacional. Além do já citado manifesto de professores americanos

contra a invasão de São Domingos (n.3), há também um manifesto do Comitê do

Dia do Vietnã, que reúne estudantes e professores dos Estados Unidos em uma

organização contrária à intervenção norte-americana no sudeste asiático (n.4);

uma carta do presidente da República Democrática do Vietnã, Ho Chi Min, em

agradecimento ao apoio manifestado pelo cientista norte-americano Linus Pauling

e por oito detentores do Prêmio Nobel da Paz à causa da pacificação (n.5-6); uma

carta do professor americano Warren Ambrose, que presenciou a invasão policial

à Universidade de Buenos Aires, experimentando pessoalmente a violência e a

brutalidade dos regimes autoritários na América Latina (n.11-12); a reprodução de

um colóquio publicado pela revista francesa Democratie Nouvelle sobre a

revolução na China (n.13); a reprodução de um artigo publicado no jornal

Granma, de Havana, sobre o movimento negro nos Estados Unidos (n.18), além

de inúmeros outros artigos sobre a Guerra do Vietnã, questões soviéticas e outros

assuntos que dominavam o cenário internacional.

Dentre as matérias não-assinadas que tratam de assuntos nacionais, deve-se

destacar o questionário proposto pela RCB a personalidades da vida pública

nacional (n.7, de maio de 1966), em que nomes como o dos governadores

Magalhães Pinto (de Minas Gerais), João Agripino (da Paraíba) e Adhemar de

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Barros (de São Paulo), dos generais Mourão Filho, Pery Bevilacqua e Cordeiro de

Farias, do senador Daniel Krieger, dos deputados Saturnino Braga e Adauto

Cardoso e do marechal Eurico Gaspar Dutra, dentre outros, respondiam a quinze

perguntas bastante provocadoras sobre o quadro geral da política brasileira. A

primeira delas, apenas para que se tenha noção do tom que orientava o

questionário, era a seguinte: “Considerando a vigência dos Atos Institucionais,

caracteriza como democrático o regime vigente no Brasil?” (RCB, n.7, p.17)

Outras versavam sobre o rumo das eleições indiretas, a política externa, o papel

das Forças Armadas, a censura e o movimento estudantil, sempre no mesmo tom

direto e franco, quase agressivo. A lista das personalidades a quem se remeteu o

questionário é precedida pela reprodução da carta assinada pelo diretor da RCB,

na época o professor M. Cavalcanti Proença, enviada a cada uma delas. Nela, o

diretor explica as razões que levaram a Revista a formular o questionário, sendo a

principal delas o desejo de “esclarecer nosso povo sobre o que se passa nesta hora

incerta, a fim de que ele possa marchar com quem ou com aquilo que mais de

perto estejam em sintonia com seus legítimos reclamos”. (Id., pp.15-16)

Evidentemente, não se poderia examinar aqui todas as respostas. A do marechal

Gaspar Dutra, porém, merece ser citada pelo que revela em sua estratégia de nada

revelar: em carta endereçada ao diretor da RCB, o marechal louva o

empreendimento democrático mas reconhece que deve, entretanto,

“dizer que uma longa vida pública e as atitudes francas e positivas por mim sempre assumidas, no passado e no presente, autorizam-me a dispensar-me de considerar, explicitamente, cada uma daquelas perguntas, todas de antemão respondidas pela posição que sempre mantive como cidadão e como soldado”. (Id., p.19)

O leitor que se lembrar das medidas de Dutra como ministro da Guerra

durante o Estado Novo e, mais tarde, como Presidente (1946-1951) – dentre as

quais se inclui o fechamento do PCB e o rompimento das relações democráticas

com a União Soviética, num alinhamento total com os interesses norte-

americanos –, certamente poderá imaginar quais seriam as respostas do marechal.

Outro que se exime de responder ao questionário é o governador Magalhães

Pinto, que afirma estar, naquele momento, apenas examinando a situação, “para

ter uma idéia exata do que ocorre em nosso País”. E completa: “prefiro estar

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discretamente no meu canto, de onde procuro examinar os acontecimentos com

isenção (...)”. (Id., p.53)

Para compreender a primeira pergunta do questionário, mencionada acima,

acerca da “vigência dos Atos Institucionais”, é preciso lembrar que o AI-2 havia

sido editado em outubro de 1965 e o AI-3 em fevereiro de 1966. A RCB de março

de 1966 (n.5-6) formulou importantes considerações sobre esses Atos. O artigo

intitulado “O problema da sucessão” tratava da questão das eleições indiretas para

a Presidência estipuladas pelo Ato de outubro. (Deve-se ter em mente que, em

1965, o último número da Revista saiu em setembro, antes, portanto, da edição do

AI-2). E ressaltava a preocupação formal do governo em manter as aparências de

democracia. Na realidade, porém, a extinção dos partidos políticos e a recusa em

permitir as eleições diretas apontavam para outros caminhos. A necessidade de

continuar mantendo uma aparência democrática decorreria da “consciência de que

acabaremos por retornar à normalidade”. (RCB, n.5-6, p.7) Essa consciência

preocuparia os encarregados da sucessão pois todos

“responderão, amanhã, diante da consulta popular, pelas suas posições de hoje. Se fosse possível eleições sem eleitorado (...), tudo teria acerto. Mas aí acabaria a possibilidade de obedecer ao formalismo democrático. Seria declarar, positivamente, que o povo nada tem a ver com o poder e com a escolha de seus detentores. Isso é possível por algum tempo – não é possível para sempre”. (Id., ibid.)

Uma nota ao final do artigo esclarece que o texto já estava pronto quando

foi editado o AI-3, mas que esse novo Ato não altera nem invalida a análise ali

feita, apenas comprova a hipótese da opção pelo aberto autoritarismo: “o poder

majestático escolheu o caminho de negar, ostensivamente, a consulta popular – e

caracterizou-se a si próprio”. (Id., p.8)

Os dois Atos são reproduzidos na íntegra ao final do volume. Uma

inteligente estratégia é empregada para ressaltar suas características autoritárias e

antidemocráticas: a publicação, em páginas que antecedem imediatamente a

reprodução dos Atos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da lei que

cria o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana no Brasil, de março de

1964, assinada pelo presidente João Goulart. O efeito que se cria através dessa

aproximação é de uma estranha e incômoda ironia. Os artigos XX e XXI da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, estabelecem que todo

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homem “tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas” e de “tomar

parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes

livremente escolhidos”. (Id., p.346) O AI-2, por outro lado, no artigo 15, permite

ao Presidente da República suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos

por um prazo de dez anos, bem como cassar mandatos legislativos federais,

estaduais ou municipais. (Id., p.359) A Declaração Universal assegura ainda que

“a vontade do povo será a base para a autoridade do governo; esta vontade será

expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto

secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”. (Id., p.347) O

AI-3, porém, em seu primeiro artigo, estabelece que as eleições estaduais se darão

de forma indireta, através das Assembléias Legislativas, “em sessão pública e

votação nominal”. (Id., p.368) Com isso, fica patente o desrespeito à Declaração

Universal que faz parte das bases da ONU e da qual o Brasil é signatário.

Outro desrespeito patente aos direitos humanos foi a violência cometida pela

polícia contra os estudantes que se reuniam em assembléia pacífica na Faculdade

de Medicina, no Rio de Janeiro, no dia 23 de setembro de 1966. Estranhamente,11

é na RCB de número 8, de julho desse mesmo ano, que se publica a carta anônima

da mãe de uma estudante envolvida no confronto com a polícia. Com medo de se

identificar, a remetente da carta, que fora às portas da faculdade para dar apoio à

filha “sem jamais pensar em dissuadi-la (...), por julgar a causa estudantil

absolutamente justa”, (RCB, n.8, p.309) relata seu horror diante da chegada de

cada vez mais tropas fortemente armadas. Entre palavrões e ameaças de

“arrebentar esses filhinhos de papai rico, que estão lá dentro bem aquecidos e

alimentados”, (Id., p.310) os policiais militares cercaram a faculdade naquela

madrugada. Os quase mil policiais preparavam-se para uma guerra, quando na

realidade o que enfrentariam era um grupo de seiscentos jovens desarmados,

sendo quase metade deles moças. Apesar da tentativa dos mediadores de encontrar

uma saída pacífica para o impasse, os soldados invadiram a faculdade e

espancaram os estudantes, diante da visão aterrorizada de seus pais. O relato dessa

mãe que viveu horas de angústia diante da barbárie é forte e comovente, e expõe a

covardia de um sistema que só sabia se impor pela violência.

11 O fato de um evento ocorrido em setembro ser comentado na edição de julho do mesmo ano não é explicado. Pode-se atribuir a atrasos na publicação ou a outros problemas de periodicidade.

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4.6. História da História Nova Outro tipo de violência usado pelo novo sistema para se impor foi, como já

se disse, a apreensão de livros, na maioria das vezes sem qualquer justificativa.

Um desses casos de perseguição – aos livros e a seus autores – foi o que se abateu

sobre a coleção História Nova do Brasil. Sob a coordenação de Nelson Werneck

Sodré, os jovens professores Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de Melo,

Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Uchôa Cavalcanti Neto e Rubem César

Fernandes – alguns deles recém-formados – produziram uma coleção didática que

abordava os fatos históricos sob uma nova perspectiva. Nas palavras do próprio

Sodré, o objetivo era

“(...) proporcionar aos professores de nível médio (...) textos que lhes permitissem fugir à rotina dos compêndios didáticos adotados, ampliando as perspectivas da História e proporcionando, mais do que conhecimentos, um método capaz de, ainda no nível médio, mostrar aos jovens as verdadeiras razões históricas dos acontecimentos (...)”. (RCB, n.3, p.30)

Em março de 1964 o Ministério da Educação e Cultura do governo João

Goulart publicou os primeiros cinco números. Outros três estavam em fase de

composição, e mais dois estavam ainda sendo escritos. Após o Golpe, porém, os

livros foram acusados de conter idéias sectárias e subversivas e de estarem a

serviço da propagação do comunismo. Os livros foram apreendidos e os autores

presos para responderem a inquérito.

A RCB deu um espaço privilegiado em suas páginas para a exposição desse

caso e para o debate que daí surgiu. O primeiro artigo a tratar do tema foi o de

Nelson Werneck Sodré, publicado no número 3, intitulado “História da História

Nova”. Nele, o historiador afirma que “o poder de coação deriva da

clandestinidade com que se exerce”. (RCB, n.3, p.27) Por isso a necessidade de

“mostrar os bastidores da coação e do terrorismo”. (Id., ibid.) Segundo ele, “os

IPM em curso não resistem à luz do público”, e desnudá-los seria destruí-los.

Com essa intenção, passa a relatar brevemente as atividades do ISEB, órgão em

que a coleção foi idealizada e produzida. Em seguida, destaca o papel da imprensa

e dos supostos analistas dos volumes da História Nova, decisivo para que a

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coleção fosse tachada como um veículo de divulgação das idéias comunistas.

Possivelmente, pouquíssimos dos que criticavam haviam de fato lido as obras.

Tratava-se da utilização da “conhecida e rotineira técnica nazista de repetir tantas

vezes a mentira que ela acabe passando por verdade”. (Id., p.31) Dentre as

mentiras que se divulgavam, uma em especial foi propagada nos quartéis,

ajudando a acirrar os ânimos dos militares contra a publicação: a de que os livros

ultrajavam a figura de Duque de Caxias e infamavam as tradições do Exército.

Sodré foi preso no fim de maio sem qualquer acusação formal, e foi liberado

– também sem explicação – em fins de julho. Dentre os inúmeros interrogatórios a

que foi submetido, muitos tratavam do “caso História Nova”. Já em liberdade,

voltou a dedicar-se a suas atividades como escritor. Seus colegas, co-autores da

polêmica coleção, porém, estavam em situação muito difícil, agravada pela

suspensão dos direitos autorais relativos à obra. Conseguiram então que uma

editora particular – a Brasiliense, de São Paulo – a publicasse. Embora se

soubesse que não se tratava de uma obra perfeita – os próprios autores

reconheciam isso no prefácio, solicitando a contribuição crítica dos leitores para o

seu aperfeiçoamento em edições posteriores – os livros vendiam bem. É provável

que parte dessa venda fosse estimulada pelo escândalo que envolvia os títulos.

Quando a edição estava próxima de se esgotar, os livros foram novamente

apreendidos. O mandado de busca e apreensão, assinado pelo coronel Gerson de

Pina, mostrava que se havia esquecido que os livros “não tratavam das Ligas

Camponesas, dos Grupos de Onze, do CGT, mas da descoberta do Brasil, da

expansão açucareira, da Abolição (...)”.(Id., p.35)

Já se estava então em março de 1965, quando as forças da direita radical

exigiam o endurecimento do regime. No mês de maio, um dos co-autores da

coleção, Maurício Martins de Melo, foi chamado a depor no IPM do ISEB. Não

voltou para casa; seus pais e seu advogado não tiveram acesso a ele, e sequer

foram informados do local onde se encontrava preso. Caracterizava-se uma

espécie de seqüestro, pela qual passaram também Pedro Alcântara Figueira e Joel

Rufino dos Santos. Por sua obra ‘subversiva’, esses historiadores foram

submetidos às brutalidades e à violência policial. Sodré relata, ainda nesse

primeiro artigo publicado na RCB sobre o tema, as circunstâncias em que foi

tomado o depoimento de Maurício Martins de Melo. Levado para uma sala onde

se encontravam o major Bonecker, responsável pelo inquérito, o escrivão e um

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homem não identificado, alto e forte em seus trajes esportivos, Maurício ouviu do

major: “Maurício, este é o Maciste. A especialidade dele é o ‘telefone’. Você sabe

o que é ‘telefone’, não sabe?”. (Id., p.39) Em seguida, o acusado teve de assistir

ao major ditando para o escrivão as perguntas e as respostas do suposto

interrogatório. Os três presos, diz Nelson Werneck Sodré, perderam peso

espantosamente, são mantidos separados e incomunicáveis por longos períodos e

sofrem todo tipo de violência e humilhação. Finalizando esse primeiro relato dos

episódios da história da História Nova, diz Sodré:

“O que está em jogo não é a minha pessoa, nem mesmo os efeitos que, sobre a minha família, a ‘guerra psicológica’ possa ter causado. O que está em jogo não é mesmo a sorte de três jovens professores cujo crime foi ter escrito comigo uma História Nova do Brasil. O que está em jogo é a sorte da cultura brasileira. Antes de terminar, um depoimento pessoal: a intelectualidade e as demais camadas do povo brasileiro não julguem o Exército por alguns encarregados de IPMs e por indivíduos que se fazem passar por oficiais. Acontece que sou militar e conheço a minha gente: os soldados do Brasil, os autênticos, estão tão envergonhados disso tudo quanto o nosso povo. É claro que esta narrativa vai continuar”. (Id., p.40)

E continua: no número seguinte da Revista, Sodré continua o relato no

artigo intitulado “História da História Nova (II)”. Nele, trata ainda da prisão de

três co-autores da coleção, e da veiculação, através da imprensa, da notícia de que

os acusados seriam mantidos na prisão até que seu “mentor espiritual”, o próprio

Sodré, se apresentasse para depor. No entanto, Sodré não recebeu, em momento

algum, intimação para comparecer novamente diante das autoridades responsáveis

por esse IPM. E menciona ainda a afirmação do major Bonecker de que pretendia

conseguir informações importantes dos presos empregando o que ele mesmo

chamou de “tratamento psicológico”. Esses dois “aspectos novos da

arbitrariedade” são comentados por Sodré:

“No que diz respeito àquele [o condicionamento da libertação dos professores presos a seu depoimento], só me restava esclarecer o óbvio: que estava pronto a depor, à disposição de quem pretendesse ouvir-me. Condicionar a libertação dos professores ao meu depoimento e não tomar esse depoimento foi, entretanto, o que os responsáveis fizeram. (...) Quanto ao segundo aspecto, o do ‘tratamento psicológico’ para conseguir ‘informações altamente comprometedoras’ a meu respeito, começaram a surgir e circular, realmente, boatos inquietantes”. (RCB, n.4, pp.71-72)

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Sodré menciona então as cartas que os presos conseguiram fazer chegar ao

Correio da Manhã e que, publicadas por aquele jornal, revelam as torturas a que

estavam sendo submetidos. Evidentemente, fontes do Exército posteriormente

desmentiram o conteúdo das cartas, alegando que continham inúmeras mentiras

destinadas a comover a opinião pública. Por fim, após a colocação de todos os

empecilhos possíveis para retardar o julgamento dos habeas corpus pelo Supremo

Tribunal Federal, os três professores foram soltos. Pouco depois, porém, foram

novamente intimados a depor, sem que fosse permitido a seus advogados

acompanhá-los. Depois disso, dois deles escolheram o exílio. Para Sodré, “o que

importa destacar, nessa longa novela, é o fato de ter sido apreendido um livro, de

terem sido presos cidadãos por terem escrito esse livro; de ser o fato de escrever

um livro tido como crime e objeto de apuração através de Inquérito Policial

Militar”. (Id., p.77)

Entretanto, esse segundo artigo de Sodré traz ainda o que ele chama de

“resposta a uma infâmia”. (Id., p.78) Trata-se de um extenso e minucioso

comentário a respeito do parecer de que foi relator o professor Américo Jacobina

Lacombe. Esse parecer, publicado pela Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, afirmava que a História Nova, “além de deformar a

mentalidade juvenil com conceitos errôneos e falsos, abomina e despreza tudo

quanto aprendemos na maneira de interpretar a História. Amesquinha o culto

cívico e deslustra os mais memoráveis fatos da nacionalidade”. (Id., p.79) Sodré

acusa Lacombe de mentir e de distorcer fatos e trechos dos livros. E ironiza o

trabalho do relator, agradecendo-lhe por ter atendido ao pedido feito pelos autores

no prefácio: Lacombe, com sua “penosa exegese” da obra, apontou falhas e

deslizes que devem ser corrigidos em próximas edições.

Antes de finalizar, Sodré avalia a repercussão da História Nova com

bastante lucidez:

“Os autores da História Nova sabiam, ao escrevê-la, que seriam combatidos pela historiografia oficial e particularmente pela cátedra universitária (...). Esqueceram apenas uma coisa: chocar-se-iam também com o negócio do livro didático, uma das mais antigas, articuladas e superadas organizações existentes no país. Pisamos, realmente, em calos demais, e estamos pagando por isso”. (Id., p.82)

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Os parágrafos finais de Sodré são emocionantes pelo que têm de humildade

e de autocrítica. Pede perdão a seus leitores pelo tom exaltado e panfletário que

foi obrigado a adotar, tão distante do que lhe é habitual. Afirma que valoriza a

crítica e a divergência, mas que se sentiu ferido pela infâmia e pela covardia do

parecer de Lacombe:

“No momento em que autores de uma obra, boa ou má, conhecem o exílio, a prisão, os IPMs, as campanhas maciças de descrédito, vivem [sic] professores, escritores, intelectuais contra eles, é que me parece o essencial do problema. (...) O que me desconcerta é ter de me envergonhar por eles. Lacombe escreveu sua infâmia numa revista lida por trinta pessoas; eu lhe respondo em outra lida por cem mil pessoas. Não voltarei, pois, ao assunto”. (Id., p.83)

Um pouco adiante, porém, reconhece que as circunstâncias podem obrigá-lo

a retomar a discussão, ainda que a contragosto. E termina: “No mais, perdoem-me

pelo que não desejava escrever e escrevi – por me ter posto no nível daqueles que

se infamam quando pretendem infamar a outrem, por ter de descer em vez de

ascender. Isso também é um sinal dos tempos”. (Id., p.84)

Ainda no número 4 da Revista, publica-se o mandado de segurança

impetrado pela Editora Brasiliense contra o encarregado do IPM-ISEB. Assinado

pelos advogados Cândido de Oliveira Neto, Cândido de Oliveira Bisneto e Aldo

Lins e Silva, o documento ocupa as últimas vinte páginas do volume, e constitui

mais um capítulo na história da violência contra a História Nova. Outro desses

capítulos, mais belo e esperançoso, é o poema de Thiago de Mello “Estrela de

esmeralda e rebeldia para o companheiro Joel Rufino dos Santos”, publicado no

número 3 (ver ANEXO). O poeta termina assim sua mensagem:

“Pode ser que o major diga que não. Pode o major golpear teu rosto jovem, erguer o punho torpe da impostura. Mas contra a primavera dessa estrela não poderá jamais nenhum major”. (RCB, n.3, p.130)

O número 5-6 da Revista traz a já citada nota da Direção em que se acusa o

recebimento da carta de Américo Jacobina Lacombe em resposta ao artigo de

Nelson Werneck Sodré publicado no número 4. A Direção avisa que, por falta de

espaço, a carta será publicada em momento oportuno. Isso só acontece em julho

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de 1966, no número 8 da Revista. O artigo “Ecos da história da História Nova”

traz uma explicação por parte da Revista, a fim de contextualizar o leitor para que

se possa melhor compreender o texto de Lacombe. Nesse breve histórico, a

Revista resume o artigo de Sodré que Lacombe vem contestar. E resume também

o conteúdo do parecer de que Lacombe foi relator. O mais importante, porém, é

que esse texto introdutório, assinado M.C.P. – M. Cavalcanti Proença –,

acrescenta um fato novo ao debate: as conclusões do parecer do IHGB foram

usadas na denúncia feita pelo Procurador Geral da Justiça Militar, em transcrição

literal, como prova de que a coleção História Nova deveria ser apreendida e seus

autores processados. E mais: demonstra que o texto do parecer foi redigido e

aprovado já durante o governo militar, e não na administração anterior, como se

quer fazer acreditar. Encerrando a apresentação, o diretor da Revista “hipoteca a

sua solidariedade a Nelson Werneck Sodré pelo ardor e hombridade com que

defendeu seus companheiros de equipe” (RCB, n.8, p.316) e cita Rui Barbosa para

definir um determinado tipo, fazendo uma crítica com destino certo: “Cortesão

das vitórias ganhas, bravo no desarmamento dos desarmados, fujão das situações

arriscadas, inimigo das causas vencidas e lacaio das triunfantes”. (Id., ibid.) A

carta de Lacombe se inicia logo após essa citação. Nela, o historiador se diz

violentamente agredido pelo artigo de Sodré publicado no número 4 da RCB.

Reafirma as conclusões de seu aparecer, esclarecendo os pontos que considerou

mal interpretados ou propositadamente desvirtuados pelo “General Sodré”. Volta

a chamar a atenção para os erros de informação contidos nos volumes da coleção

em questão. E conclui afirmando:

“Se dele divergi e apontei erros que, a meu ver, invalidam a obra, jamais concluí por qualquer recomendação contrária à livre manifestação ou ao livre debate de idéias (...). Sou de todo estranho às conseqüências de ordem política ou judiciária, ou qualquer outra, que a edição dos citados livros hajam [sic], por ventura, provocado (...). Sustento o direito, dele e meu, de escrevermos e nos criticarmos livremente. Como discípulo de Rui Barbosa entendo que o direito negado ao adversário virtualmente cessa de existir para nós”. (Id., p.318)

A RCB traz ainda, no número 11-12, a reprodução da denúncia do

Procurador Geral Eraldo Gueiros Leite, em que o Sr. Américo Jacobina Lacombe

é indicado como testemunha de acusação contra os responsáveis pela História

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Nova do Brasil. Com isso, completa-se o conjunto de documentos apresentados

como parte da polêmica, e marca-se, mais uma vez, a posição da Revista,

decididamente contra os abusos e violências cometidos contra a livre expressão de

idéias.

4.7. Arte e cultura As discussões políticas, sociais e econômicas sobre o Brasil e o mundo que

se travavam nas páginas da Revista dividiam espaço com questões culturais não

menos polêmicas. A RCB tinha seções específicas dedicadas aos diferentes tipos

de manifestações artísticas e culturais. Além do espaço dado à literatura, a ser

comentado em mais detalhes no capítulo subseqüente, havia uma forte

preocupação em recolher e repensar o momento cultural brasileiro e internacional,

avaliando-o criticamente. O clima de efervescência do mundo artístico na segunda

metade da década de 60 – dividido entre o engajamento e a alienação, o retorno às

raízes populares e o experimentalismo da vanguarda – era reproduzido em artigos,

debates e entrevistas.

O número 1 já deixava evidente essa intenção provocadora. Na seção de

cinema, um debate reuniu os cineastas Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e

Glauber Rocha em torno de questionamentos sobre as origens, as ambições e as

perspectivas do Cinema Novo. Dividindo com ele a seção, um artigo de Roberto

Schwarz sobre o filme “8 ½”, de Fellini. Na seção de teatro, além de um balanço

sobre o que foi produzido em 1964, um artigo de Paulo Francis apontando novos

rumos para os autores. Sobre as artes plásticas, o provocador artigo “Por que

parou a arte brasileira”, de Ferreira Gullar, e uma entrevista do poeta com o

escultor paraibano Fernando Jackson Ribeiro, intitulada “Não sei para que serve

minha arte”.

Os números seguintes mantêm essa linha, apresentando matérias como a

entrevista concedida pelo pintor Ivan Serpa a Ferreira Gullar intitulada “O artista

já não pode fechar-se em si mesmo” (n.2); a continuação do debate sobre o

Cinema Novo, agora com as contribuições de Gustavo Dahl, Carlos Diegues,

David Neves e Paulo César Saraceni (n.2); dois ensaios de Brecht (“O mundo

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atual pode ser reproduzido pelo teatro?” e “Teatro de diversão ou teatro

pedagógico”, ambos no n.3); um “confronto” sobre Música Popular Brasileira,

com entrevistas de Edu Lobo, José Ramos Tinhorão e Luís Carlos Vinhas (n.3); o

contundente artigo-manifesto de Glauber Rocha sobre o Cinema Novo, “Uma

estética da fome” (n.3); um artigo de Rogério Duarte sobre o Desenho Industrial

(n.4); um texto de Dias Gomes sobre sua peça O berço do herói e sobre os

problemas que teve de enfrentar com os censores (n.4); “O bicho que o bicho

deu”, de Luiz Carlos Maciel, sobre a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho

come, de Ferreira Gullar e Oduvaldo Vianna Filho, encenada pelo Grupo Opinião

(n.7), dentre muitas outras. Evidentemente, seria impossível comentar, mesmo que

brevemente, cada uma delas, e resultaria cansativo continuar a enumerá-las. Essa

resumida amostragem, porém, já oferece uma visão, ainda que rápida e

superficial, de como a arte e a cultura ocupavam um importante espaço não só nas

páginas da RCB, mas também no cenário político e social instaurado com o novo

regime. A arte, com seu caráter contestador e libertário, passou a ser uma das mais

eficientes formas de expressar a resistência à ditadura, de se manifestar contra os

abusos do poder e de lutar pela liberdade e pela democracia.

Além dos debates divididos por áreas artísticas, inúmeros artigos sobre

temas culturais mais amplos eram publicados na seção “Problemas culturais e

filosóficos” ou, posteriormente, fora de qualquer seção, quando o “Roteiro”

deixou de ser assim dividido. Alguns exemplos são “Tragédia e tragicomédia do

artista no capitalismo”, de Georg Lukács (n.2); “A formação dos intelectuais”, de

Antonio Gramsci (n.5-6); “Cinco maneiras de dizer a verdade”, de Bertolt Brecht

(n.5-6), e “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter

Benjamin (n.19-20). Mais uma vez, esgotar a lista seria impossível. O que importa

é destacar a preocupação da Revista em oferecer a seus leitores uma visão crítica

acerca das manifestações e dos problemas culturais, instigando a reflexão e a

conscientização sobre os temas que lhes são subjacentes.

Sobre o espaço dedicado aos temas culturais pela RCB, diz Marcelo Ridenti

em seu livro sobre os artistas e a revolução:

“A Revista Civilização Brasileira dava especial destaque aos temas culturais, expressando o florescimento artístico em curso. A cada número, eram dedicadas cerca de cem páginas ou até mais – por volta de um terço da

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revista – a questões de cultura em sentido estrito, especialmente a brasileira”. (RIDENTI, 2000, p.133)

Reunindo em seus diversos volumes temas polêmicos e extremamente

contemporâneos e nomes de grande destaque no cenário artístico nacional e

mundial, a RCB tornou-se, novamente, portadora das vozes de uma geração,

retrato vivo de uma época que não se acabou de todo. Por isso, apesar de

contemplar obras e eventos de um período histórico específico, continua

despertando o interesse de novos leitores e se provando bastante atual. Muitas das

questões levantadas e discutidas em suas páginas permanecem ainda hoje,

motivando debates e discussões. Por trás das críticas e apreciações aparentemente

circunstanciais, estavam ocultos conceitos fundamentais sobre arte e cultura e

reflexões profundas e permanentes sobre os rumos da humanidade.

4.8. Assuntos internacionais Embora dedicada primordialmente à discussão dos temas e dos interesses

nacionais, a RCB não se furtou a lançar um olhar crítico sobre acontecimentos

mundiais. A seção “Notas internacionais”, publicada no número 9-10, apresentava

breves mas pertinentes comentários sobre eventos internacionais recentes. São

textos mais datados, que muitas vezes oferecem dificuldades de compreensão ao

leitor que não estiver familiarizado com os nomes e os fatos mencionados. Bem

redigidas, essas notas curtas e irônicas constituem uma aguda crítica aos

desmandos e às injustiças praticados em uma época tão turbulenta. Um belo

exemplo é a nota intitulada “Liberdade, liberdade” (numa alusão à peça de Flávio

Rangel e Millôr Fernandes):

“As entrevistas concedidas no México pelo Padre Lage e pelo Sr. Francisco Julião ao correspondente do Nouvel Observateur foram divulgados em tradução castelhana pelo periódico Columna 10 (Buenos Aires). Não poderão ser publicadas nos dois países da língua materna dos entrevistados,

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pois em Portugal reina Salazar e no Brasil reina – segundo informa o marechal Castelo Branco – a liberdade de imprensa”.12 (RCB, n.9-10, p.55)

O artigo “Assim vai o mundo”, publicado no número 7 e que Otto Maria

Carpeaux assinou somente com suas iniciais, tratou também, em pequenas notas,

sobre assuntos diversos: a carta de Ho Chi Min ao Papa Paulo VI, a influência

britânica na economia de Moçambique, o fim da NATO... Era uma forma de estar

em sintonia com os recentes e inquietantes acontecimentos que sacudiam o mundo

em meados da década de 60. A RCB, ao publicar esses comentários, arriscava-se a

enveredar pelo caminho dos faits divers que, desde o início, em seu primeiro

editorial, repudiou. No entanto, a possibilidade de contribuir para o

enriquecimento do livre debate nacional acerca das questões políticas, econômicas

e sociais certamente pesou na decisão de incluir essas notas.

Os assuntos internacionais tinham, de fato, grande espaço dentro da Revista.

Basta que se veja o número – e a expressividade – de seus colaboradores

estrangeiros: Georg Lukács, Linus Pauling, Jean-Paul Sartre, Lucien Sève, Gérard

Lebrun, Bertolt Brecht, Roger Garaudy, Antonio Gramsci, Pier Paolo Pasolini e

muitos outros que tiveram artigos traduzidos e publicados, fossem eles produzidos

especialmente para a RCB ou não. Esses artigos tratavam não só de política e

economia, mas também de ciências e questões culturais. Exerceram, portanto, um

importante papel na abertura da intelectualidade brasileira para outras correntes de

pensamento, e ofereceram à juventude de então novos caminhos para o debate. É

nesse sentido que se destaca a importância da RCB como divulgadora, no Brasil,

de pensadores e teorias de extrema relevância internacional, muitas vezes ainda

inéditos no país.

Um dos acontecimentos internacionais que mais destaque mereceu em um

só número da Revista – não se incluindo, é claro, os Cadernos Especiais dedicados

à revolução soviética e à invasão da Tchecoslováquia – foi a rebelião dos

estudantes franceses. O número 19-20, de maio-agosto de 68, traz uma vasta

coleção de artigos de autores estrangeiros (Sartre, Garaudy, Lefebvre...) e

brasileiros (Hélio Pellegrino, Ignácio Rangel, Paulo Francis...) sobre o tema, de

modo a oferecer vários ângulos de interpretação.

12 Padre Lage defendia a teoria de que separar a Igreja de Cristo e a doutrina de Marx era um grande equívoco; foi um dos inspiradores da Teologia da Libertação. Francisco Julião era o líder das Ligas Camponesas e um dos maiores defensores da reforma agrária no Brasil.

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4.9. A amplitude temática Como se pode ver pelo exposto até aqui, a Revista caracterizava-se por uma

enorme amplitude temática. Em cada um de seus volumes, inúmeros e variados

temas eram abordados por diferentes autores. Além das seções analisadas

brevemente acima, há outras igualmente importantes: a de economia, a de ciência

e tecnologia, a de cultura popular etc.. Por limitações de espaço, será impossível

comentar cada uma delas isoladamente.

A abertura para diversas áreas e temas é coerente com a proposta expressa

no editorial do número 1, “Princípios e propósitos”. Ali se estabelece o não-

sectarismo e o princípio máximo de liberdade de pensamento – desde que esse

pensamento não compactue com a ordem política, econômica e social então

vigente no país. Carlos Nelson Coutinho, que esteve sempre próximo de Ênio

Silveira na Editora e também na Revista, vê uma sintonia entre essa abertura e a

ideologia marxista, que prega uma visão totalizante e revisionista da realidade.13

4.10. A importância da RCB A simples apresentação, brevemente comentada, dos aspectos aqui

apontados já seria suficiente para demonstrar a importância da Revista Civilização

Brasileira como veículo de resistência intelectual nos anos em que foi publicada.

O lugar de destaque que ocupava pode ser confirmado pela expressividade de seus

colaboradores, pela rápida venda de tiragens indiscutivelmente grandes para

periódicos do gênero, pela relevância dos debates que se travavam em suas

páginas e pela repercussão que provocava.

O jornalista Zuenir Ventura, no livro 1968: o ano que não terminou,

comenta o sucesso da Revista e aponta a curiosidade pelas idéias teóricas como

uma possível explicação para ele:

13 Depoimento de Carlos Nelson Coutinho à autora.

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“Mas independentemente do uso instrumental que os jovens revolucionários procuravam fazer de alguns autores, havia uma natural curiosidade pelas idéias teóricas, o que explica o sucesso da Revista Civilização Brasileira, que de 65 a 69 [sic] foi o pólo de concentração da intelectualidade de esquerda. Ali se travaram debates entre a esquerda reformista e a esquerda revolucionária. Através de suas páginas, tomou-se contato com Walter Benjamin, Louis Althusser, Eric Hobsbauwn [sic], Adorno, Juliet Mitchell, entre outros. Nela colaboravam intelectuais como Alceu Amoroso Lima, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Nelson Werneck Sodré”. (VENTURA, 1988, p.55)

Essa curiosidade teórica era uma maneira de a juventude tentar embasar

seus impulsos revolucionários, apoiando-os em uma teoria mais sólida. Aliada à

relativa permissividade dos primeiros anos pós-Golpe, resultou em uma espécie de

boom editorial. A cumplicidade que aquela geração tinha com a leitura foi outro

fator importante para o sucesso editorial: “Lia-se como hoje se vê televisão”. (Id.,

ibid.)

Ênio Silveira, comentando a Revista, ressaltava sua enorme importância

dentro do conjunto de produções da Civilização Brasileira:

“Quanto aos projetos que desenvolvemos, a Revista Civilização Brasileira foi um capítulo à parte. Dentro da editora nós decidimos fazer uma revista, que enquanto tal, não era muito rentável, eu não estava preocupado que fosse algo rentável (...). Esta revista felizmente foi crescendo muito. Quando Sartre esteve aqui, eu mostrei a ele a revista, onde havia até um trabalho dele, que nós tínhamos publicado com autorização, e ele disse: – Que tiragem tem a revista? Naquele momento a Revista Civilização Brasileira que era um livro, um livro de duzentas, trezentas páginas, num formato de livro, 14 x 21 cm, com trezentas páginas em papel jornal, com pouca espessura, mas trezentas páginas! Eu disse a ele que na época a revista tinha uma tiragem de trinta mil. Ele quase desmaiou. (...) Bom, mas a revista foi um sucesso, novamente no sentido de agitar, sem querer doutrinar e sem estar a serviço de partido (...)”. (FERREIRA, 1992, p.85)

Em seu discurso de posse no Pen Club do Brasil, em 20 de agosto de 1991,

mais uma vez Ênio destaca, dentre suas realizações profissionais, a publicação da

RCB:

“Marco refulgente dessa fase foi a edição da Revista Civilização Brasileira (...). Considerada nos meios culturais e universitários do Brasil e do mundo inteiro como um padrão de dignidade da intelligentsia brasileira diante das forças do obscurantismo, essa publicação (...) constituiu um dos maiores

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galardões de minha carreira e marcará para todo o sempre a presença da editora na história cultural do país. Um grupo corajoso e abnegado de intelectuais dignos desse nome e de sua missão social me ajudou a conquistá-lo, mas a um deles, em particular, o Brasil e eu nunca teremos suficientes palavras de agradecimento e louvor pelo admirável trabalho que realizou com sua dedicação admirável e comovente modéstia: o poeta Moacyr Felix (...)”. (FELIX, 1998, p.78)

De fato, o poeta Moacyr Felix foi o grande companheiro de Ênio Silveira,

não só na coordenação da série “Violão de rua”, da RCB ou, posteriormente, da

Encontros com a Civilização Brasileira, mas trabalhando incansavelmente a seu

lado na editora. O professor e poeta Carlos Lima destaca o fundamental papel

exercido por Moacyr Felix, especialmente e, relação à Revista e a Encontros, “que

foram e são trincheiras da Inteligência nacional contra os autoritarismos e contra

as estruturações sociopolítico-econômicas que nos deformam como indivíduo e

como povo; nessas páginas continuaremos reaprendendo a cultura da resistência”.

(Id., p.425)

A leitura da Revista faz com que se perceba não só o que foi a resistência

intelectual a todas as formas de opressão mas também dá mostras de como essa

resistência pode continuar a ser, e de como se faz necessária nos dias atuais. É,

portanto, não só uma leitura que se volta para o passado, mas algo que pode

esclarecer e desvendar o presente. É por isso que qualquer trabalho sobre a

Revista jamais a esgotará: suas possibilidades de releituras e atualizações e os

diversos ângulos que oferece a quem quiser se debruçar sobre ela tornam-na um

assunto praticamente inesgotável. “Apesar das contribuições esparsas, ainda está

por ser escrito um trabalho definitivo sobre a história da RCB, sem dúvida a mais

influente do período nos meios políticos, artísticos e intelectuais de esquerda”.

(RIDENTI, 2000, p.133) Possivelmente, um trabalho definitivo ainda levará

muito tempo para surgir, se é que surgirá.

Deve-se ressaltar também o destaque dado à Revista no livro de Marcelo

Ridenti, Em busca do povo brasileiro. Tratando sobre o engajamento dos artistas e

intelectuais, principalmente nas décadas de 60 e 70, o autor recolhe depoimentos

importantes sobre a RCB e sobre o papel agitador que desempenhava. Carlos

Nelson Coutinho resgata essa importância, naqueles primeiros anos pós-Golpe:

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“É um período muito rico na produção, na publicação e na difusão entre nós de autores marxistas, digamos, não-ortodoxos. Ao mesmo tempo, se cria, já em 65, um instrumento extremamente fundamental para a agregação dos intelectuais nessa época: a Revista Civilização Brasileira, que venceu vinte e dois números, de 65 a 68, quando ela foi obrigada a ser extinta pelo AI-5. Na RCB publicaram todos os intelectuais significativos da época. E todos eles numa posição crítica à ditadura”. (COUTINHO apud RIDENTI, 2000. p.131)

O poeta Ferreira Gullar faz coro:

“A resistência à ditadura na área cultural começa com o antigo CPC da UNE, o qual se agrupa no Opinião, por um lado. E o outro lado na Civilização Brasileira. O Ênio Silveira cria a Revista Civilização Brasileira, reúne um grupo de intelectuais, entre os quais eu também, Moacyr Felix, Dias Gomes, Cavalcanti Proença, Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré. Depois se amplia, tem outras pessoas, o Leandro Konder, o Carlos Nelson Coutinho”. (GULLAR apud RIDENTI, 2000. p.131)

O filósofo Leandro Konder chama a atenção para o fato de que a RCB foi

uma das primeiras iniciativas regulares contra o governo militar. Segundo ele, a

RCB “quebrou a inércia da esquerda”, e “alimentou focos de resistência”.14 Além

disso, não havia, na época, outra revista que atuasse nessa linha com tamanha

relevância. A falta de concorrência valorizava ainda mais a existência da RCB.

Em um de seus depoimentos, o poeta Moacyr Felix lembra que a Revista

Paz e Terra – que, posteriormente, desenvolveu-se na editora Paz e Terra – surgiu

como um dos frutos da RCB. Voltada para o público cristão progressista, a Paz e

Terra teve também enorme sucesso.

“Tivemos que fazer, porque eles queriam uma série de idéias deles. A RCB ficou muito marcada como socialista, aberta, mas dentro de uma linha materialista. Nós queríamos mostrar que colaborávamos também com eles, dentro de qualquer linha de humanismo. Lutou pela liberdade, pela humanização da vida, contra a alienação, tem consciência de que este mundo está desumanizado, quer um mundo qualitativamente transformado num mundo melhor? Estamos de acordo, vamos expor suas teorias. [...] Fizemos a Revista Paz e Terra, depois a editora Paz e Terra, com mais de cem livros publicados (...)”.(FELIX apud RIDENTI, 2000. p.134)

Já relatando a parte mais prática de produção da própria RCB, os seus

bastidores, diz Moacyr Felix:

14 Depoimento de Leandro Konder à autora.

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“Logo que foi aberta a Revista Civilização, houve uma reunião de intelectuais. (...) Paulo Francis queria tudo em termos jornalísticos, quatro, cinco laudas. Eu falei: ‘Ao contrário, quero tudo em ensaios, meditação, é uma revista de conscientização.’ Todas as revistas eram armadas assim: chegavam aqueles artigos todos, a gente pedia, eu tirava de livros, de revistas estrangeiras, artigos nacionais. A intelectualidade brasileira toda colaborava na Revista Civilização. [...] Eu lia aqueles artigos, subia, no fim do dia, e dizia: ‘Ênio, este aqui é bom.’ (...) Neguei muita coisa que vinha sectária, dogmática, boba. (...) Ela foi o maior sucesso possível”. (Id., p.132)

Moacyr respondia a uma observação feita no trabalho de Carlos Guilherme

Mota, Ideologia da cultura brasileira, em que o autor afirma que a Revista passou

por diferentes fases de acordo com as variadas orientações políticas dos

intelectuais que a conduziam. Segundo Mota, a Revista teria passado por períodos

de maior radicalização ou de preponderância de linhas de pensamento

progressistas e por outros de maior conservadorismo, com uma linha mais fechada

e voltada para o passado, em análises ultrapassadas e populistas sobre a realidade

nacional. Essa fase mais “serena” teria ganhado força a partir de 1967. A

diminuição do número de textos editoriais e panfletários seria uma prova dessa

maior serenidade, assim como a inclusão de textos de Marcuse e Adorno.

(MOTA, 1977, pp.206-208)

Seja ou não verdade que a RCB passou por momentos variáveis quanto à

orientação político-filosófica, é inegável que a publicação manteve-se sempre fiel

a suas linhas mestras e a seus princípios fundamentais. É inegável, também, que

sua contribuição para o livre debate de idéias e para o quadro cultural brasileiro –

de então e de agora – é inestimável. Resta muito a descobrir.

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5 Literatura e crítica literária

Sendo um periódico publicado por uma editora de livros, a Revista

Civilização Brasileira, naturalmente, dava muito espaço em suas páginas a

matérias e artigos relacionados a literatura. Sem dúvida, isso se alinhava com o

propósito geral do periódico, já tantas vezes comentado neste trabalho. Comentar,

analisar e criticar a produção literária era uma forma de estimular o pensamento

“vivo e atuante”, contribuindo para uma reestruturação das condições sociais e

econômicas brasileiras, na luta por liberdade e justiça. Se um dos princípios

norteadores da RCB era dar espaço àquilo que “de uma ou de outra maneira se

insira no processo da revolução brasileira” (RCB, n.1, p.4), a literatura não podia

ser deixada de lado.

Além disso, outro princípio básico da RCB manifestou-se também

vivamente nas páginas dedicadas à literatura: a abertura para a produção

intelectual estrangeira, sem se deixar tolher por um “nacionalismo sentimentalóide

e estreito”. (Id., ibid) Assim é que tantas traduções, e mesmo obras ainda não

publicadas no Brasil, são comentadas e avaliadas, como se verá adiante.

Todos os números da Revista trazem uma seção intitulada “Literatura” – até

o número 11-12, quando a divisão em seções deixa de existir. Ainda assim, essa

área de interesse continua sempre presente, não havendo um número sequer da

RCB que não a explorasse. Pela quantidade e variedade de artigos, matérias e

resenhas literárias publicados, bem como pelo número de poemas incluídos, será

impossível comentar cada um deles separadamente. O que se fará aqui será apenas

uma análise das linhas gerais que orientavam e davam o tom desses textos. Com

isso, se poderá compreender a ideologia que os informava e a opção editorial por

trás deles.

Como ficará claro pela exposição a seguir, muitos dos livros resenhados ou

analisados na RCB não eram obras ficcionais, tratando-se sim de ensaios e outras

produções teóricas das áreas de ciências sociais, história, economia e política.

Nelson Werneck Sodré, responsável pela seção literária da Revista, comenta essa

característica, sugerindo razões para tal. E, com aguda ironia, ressalta ainda o fato

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de que a produção específica sobre a situação política brasileira partia

majoritariamente daqueles contra o Golpe, ou seja, de intelectuais de esquerda:

“Persiste, e por boas e sólidas razões, o interesse pelo livro político, e particularmente tudo o que se prende à situação atual do país, aquela que derivou do golpe de abril. Apareceram alguns depoimentos interessantes, entre os quais, infelizmente, não é ainda possível situar aquele que deveria estar sendo preparado para constituir a versão oficial, uma espécie de ‘livro branco’; anunciado, não veio à luz. Que razões motivam esse atraso, não se sabe. Isso cria a aparente singularidade de ficarem as forças dominantes indefesas; e diante de livros que a criticam e que aparecem em impressionante sucessão. Será assim tão extrema a carência de autores, do outro lado, ou será mesmo carência de razões?”

5.1. Panoramas de 1964: estabelecendo princípios Para iniciar a análise do tipo de abordagem da produção literária levada a

cabo pela RCB, é necessária uma leitura atenta dos dois artigos sobre o tema

publicado em seu número inaugural. Nesse primeiro volume, um artigo de Nelson

Werneck Sodré intitulado “Prosa brasileira em 1964: balanço literário” dá

algumas pistas das diretrizes que serão adotadas. Sodré começa o artigo

explicando a opção por inaugurar a seção literária da Revista com um balanço do

ano anterior. Apontando as desvantagens desse modo exposição, procura

diferenciar seu texto dos outros balanços “que vêm aparecendo” (e cuja maior

precariedade, segundo ele, “está na ausência de perspectivas, no sentido de que

confundem, na massa informativa, as proporções, juntando o ruim, o razoável e o

excelente no mesmo plano”). Sodré reconhece as dificuldades inerentes à

atividade de “ajuizar”, mas enfatiza a maturidade que a literatura brasileira já

alcançou e que a permite distanciar-se do “provincianismo literário que se

caracteriza, particularmente, pelo destaque imerecido a pessoas da simpatia de

quem escreve, e omissão propositada das que não estão nessa graça”. (RCB, n.1,

p.146) Com isso, a Revista firma novamente seu compromisso com o não-

sectarismo, princípio já expresso em seu editorial de abertura, reforçando a opção

pela liberdade de pensamento e pela recusa de parti pris de qualquer espécie.

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Por que, então, optar por um balanço da produção literária de 1964, dadas as

dificuldades que a forma “balanço” apresenta? A justificativa de Sodré é que isso

permite “de maneira ampla, estabelecer as conexões necessárias com o que se

vinha fazendo”. E mais: permitia também avaliar o impacto do Golpe de abril na

produção literária nacional. Isso fica bem claro na página seguinte, quando se

desenha um breve panorama da atividade intelectual no ano que acabara:

“Cabe dizer, por fim, o óbvio: 1964 foi um ano perturbado e a literatura brasileira sofreu, como todas as atividades, as conseqüências do golpe que interrompeu a vigência da normalidade democrática em nosso país. Escritores e editores foram presos, submetidos a curiosos e caracterizados IPMs; outros emigraram; terceiros estão foragidos, não se sabe deles. É claro que livros foram queimados em praça pública, e livrarias, comerciais e particulares, foram invadidas, vasculhadas e depredadas. (...) Foi um ano negro, não apenas para a literatura, mas para a cultura brasileira. A safra teria de ressentir-se disso, e assim aconteceu, realmente. Não foi das mais ricas, por isso mesmo, nem em quantidade nem em qualidade. O processo de desenvolvimento da criação artística, em nosso país, que vinha em aceleração, padeceu, este ano, sérias perturbações. (...) É preciso acrescentar, finalmente, que os intelectuais brasileiros souberam enfrentar bem a contingência: as surpresas negativas foram poucas, muito raras mesmo, e de importância reduzida; as positivas foram muitas, e confortadoras; gente que não tinha posição, ou pouco se importava em frisá-la, destacou-se, participou, acordou.” (Id., p.147)

É interessante o julgamento que o autor faz sobre a reação dos intelectuais

ao Golpe; esse é um assunto controverso que, como se viu no capítulo anterior,

mereceu bastante espaço na Revista.

Sodré passa em seguida a comentar as traduções publicadas em 1964, e

destaca que nunca se traduziu tanto em nosso país. Segundo ele, as traduções não

só apresentam excelente qualidade como também abarcam um amplo horizonte de

obras. Dentre outros, menciona William Faulkner e F. Scott Fizgerald como

autores que se tornaram disponíveis ao público brasileiro. No entanto, diz Sodré,

em 1964 interrompeu-se o movimento que vinha colocando à disposição do

público bons poetas e dramaturgos ingleses, franceses e alemães. Por outro lado, e

confirmando o que já se disse acima, o ensaio – e especialmente o ensaio político

– ganhou maior espaço. Sodré destaca, nesse campo, a atuação das editoras Zahar

e Civilização Brasileira, que combinaram qualidade e pertinência de conteúdo

com sucesso de público.

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Quanto à ficção – que para Sodré é o gênero “que indica a maturidade de

uma literatura” (Id., p.150), associando e vinculando autores e leitores –, é

abordada em um apanhado que junta conto, romance e novela. Nos contos, Sodré

destaca dois autores: Clarice Lispector, com A legião estrangeira, e Dalton

Trevisan, com diversos livros, dentre os quais Cemitério de elefantes e O vampiro

de Curitiba. A análise de cada um desses autores é muito breve, e segue uma linha

mais da impressão pessoal que da crítica literária atrelada a alguma escola ou

corrente teórica. O mesmo acontece em relação aos romances e novelas:

destacam-se José Cândido de Carvalho, com O coronel e o lobisomem

(amplamente louvado como “não apenas ... um grande romance de determinado

ano, mas ... um dos acontecimentos da ficção brasileira moderna”, por saber

“fundir as experiências de linguagem com o todo da ficção” – Id., p.151); Carlos

Heitor Cony, com Antes, o verão (no qual o autor “revela acentuado

amadurecimento em sua arte ficcionista” – Id., ibid); e Clarice Lispector, com A

paixão segundo G.H. (embora Sodré hesite em afirmar, como a autora, tratar-se de

um romance). Outras obras são comentadas com menos destaque, merecendo

apenas uma ou duas linhas cada. Segundo Sodré, o ano foi muito pobre para a

ficção.

O balanço volta então a tratar dos ensaios, agora brasileiros, e apenas

aponta, sem desenvolver, um questionamento sobre as especificidades desse

gênero e os limites de sua inserção no campo da literatura. O fato é que o espaço

para esse gênero no mercado encontrava-se então bastante ampliado, o que o faz

merecedor de quatro páginas de comentários – bem mais do que o espaço

dedicado a traduções e a ficção. São mencionados diversos livros e autores,

muitos dos quais voltados para “temas palpitantes da fase atual”: Francisco

Mangabeira e a questão do petróleo, Antônio Callado com Tempo de Arraes,

Hélio Silva e seu Sangue na areia de Copacabana, Osny Duarte Pereira e sua

contribuição à coleção “Cadernos do povo brasileiro”, intitulada Que é

Constituição?... Depois de contemplar ensaios biográficos e históricos, Sodré

comenta alguns ensaios de natureza literária: de Guilherme Figueiredo, As

excelências ou Como entrar para a Academia, “um retrato bastante fiel da vida

literária brasileira” (Id., p.155); A luta literária, do “talentoso Fausto Cunha”; O

romance, teoria e crítica, de Adolfo Casais Monteiro; O relógio e o quadrante, de

Álvaro Lins; e, de Clóvis Moura, Introdução ao pensamento de Euclides da

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Cunha. Há outros livros comentados, e essa breve listagem tem por objetivo

apenas ilustrar a seleção feita por Sodré.

Sob o abrangente subtítulo “Outros gêneros”, Sodré comenta a fraca

publicação de peças de teatro em livro, as poucas obras de caráter memorialístico,

e as “indefectíveis antologias” que, “valendo-se do interesse do público, aparecem

aos montes (...) com a queda de qualidade inevitável” (Id., p.157). Por fim, em

uma última subdivisão intitulada “Crônica política”, Sodré comenta a expansão

desse gênero dadas as circunstâncias vividas no país. Nesse campo, os autores que

mais se destacaram foram Alceu Amoroso Lima e Carlos Heitor Cony. O

primeiro, cujas críticas publicadas na imprensa diária vinham de muito tempo e

prosseguiram depois de abril, reuniu-as no volume Revolução, reação ou reforma,

que Sodré caracteriza como “um dos livros de maior importância entre os que se

ocupam da política brasileira atual, escrito com muita clareza, da parte de um

homem de posição definida, inequívoca, enraizada em bases filosóficas, um

acontecimento, em suma, e um dos sintomas mais eloqüentes dos tempos que

estamos vivendo” (Id., p.159). Quanto a Cony, “habitualmente avesso à política,

pelo menos no sentido vulgar”, tornou-se “um dos mais destacados cronistas

políticos do país” (Id., ibid). Seu livro O ato e o fato teve enorme sucesso de

público e despertou “iras desenfreadas” em função da coragem e da lucidez com

que o autor expõe os aspectos mais variados – e cruéis – do Golpe. Sodré

menciona ainda como relevantes a publicação de Hay gobierno?, em que os

chargistas Jaguar, Claudius e Fortuna reuniram suas bem-humoradas críticas à

“abrilada”, e 1º de abril, estórias para a história, em que Mário Lago recolhe

episódios das primeiras prisões políticas efetuadas após o Golpe.

No parágrafo de conclusão, Sodré desculpa-se por eventuais omissões e

reconhece que, apesar de seu esforço, certamente há deficiências. Menos uma:

“não colocamos melhor o livro do compadre, por ser do compadre”. As linhas

finais revelam um tom melancólico e pungente: “Fizemos pouco ou fizemos

muito, em 1964. Fizemos o que era possível.” (Id., p.160)

Nesse mesmo número 1 da Revista, segue-se ao artigo de Sodré outro longo

panorama, intitulado “Poesia brasileira, 1964” e assinado por M. Cavalcanti

Proença. Na conversa preliminar com que Proença inicia seu texto, uma discussão

fundamental para a poesia da época – e, em especial, para o modo como esta se

configurará nas páginas da RCB, em todos os seus volumes – é delineada: a

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questão do engajamento político. Citando Sartre, Proença diferencia o

engajamento, que significa “estar em situação com a sua época”, do populismo,

que, segundo o pensador francês, descende dos “últimos realistas, e [é] ainda uma

tentativa de tirar o corpo fora”. Proença endossa a opinião de Sartre de que não é

mais possível tirar o corpo fora, e de que a alienação é em si uma tomada de

posição. Ressaltando que esse tipo de engajamento (a que chama de “engajamento

filosófico”) “confere ao artista a liberdade de escolher o destino que deseja para si

e para todos os homens” e que nada tem a ver com um engajamento partidário ou

de interesse material (estes sim limitadores e empobrecedores, pois forçam o

artista a abrir mão de sua liberdade criadora), Proença faz uma crítica bastante

dura:

“[A] busca de uma liberdade de criação artística, levada ao extremo do desligamento do mundo externo, resulta em outro engajamento, o da evasão, de alheamento, de erradicação, tudo isso levando artistas de importância e , às vezes, com um belo passado, a encaixar a máscara do tédio, para que não lhes possamos ver as rugas do ressentimento ou as contraturas do medo. (...) Em latim, para máscara, e para títere, se diz: larva.” (Id., p.161-2)

Assim como Nelson Werneck Sodré, Proença se propõe a abordar em seu

artigo apenas as obras publicadas no ano de 1964. Tendo esse conjunto em mente,

ressalta a herança modernista como traço comum, e a liberdade de expressão

estética como conquista inalienável. Comenta a inexistência de escolas ou

conjuntos de princípios coletivos, constatando a manifestação de artistas

individuais e de grande diversidade formal e temática. “O próprio concretismo

torna aparentados os seus adeptos apenas pelo aspecto gráfico, e não pela

convergência temática.” (Id., p.162)

Apesar dessa diversidade, porém, Proença identifica uma tendência de

aproximação dos poetas em torno de um sentimento de nacionalidade, de um novo

idealismo “que tornará superados os que ainda se deixarem ficar rochapiteando, a

cantar o céu azul e as nuvens mais brancas”, bem como os que, “à falta de

Portugal”, procurarem outras metrópoles para incensar (Id., p.163). Explicitando

sua visão política, Proença diz sobre essa última postura: “Como a poesia não se

dissocia da vida, este sentimento de um mínimo de poetas é máximo nos atuais

detentores da situação política no Brasil, cuja revolução é retrovolução.” (Id., ibid)

Mas a maioria dos poetas não partilha essa visão, e encontra-se apenas no traço

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comum do engajamento que se manifesta em inconformismo, e assim Proença

destaca, por exemplo, Cassiano Ricardo, que dentre os modernistas ainda em

atividade é o que mais tem buscado a renovação constante e as novas formas de se

expressar, o grupo da revista Práxis e seus avanços teóricos, a releitura de

Sousândrade feita pelos irmãos Campos e o tom polêmico encontrado na reedição

de Oswald de Andrade. Dentre as novidades, Proença se detém sobre

Proclamação do barro, de Fernando Mendes Viana, Estação Central, de Ledo

Ivo, Cantigas de acordar mulher, de Geir Campos, além de Luiz Paiva de Castro,

Moacyr Felix, Mauro Mota e alguns outros, sempre citando muitos versos e dando

brevíssimas impressões pessoais sobre a qualidade da poesia. Analisa ainda a

produção do Grupo Ptyx, “todos muito jovens, buscando, em principal, a

originalidade. E, porque essa busca é milenária, recaímos no uso indiscriminado

de minúsculas, nos jogos de palavras, nos trocadilhos, nas erudições acotovelando

populismos” (Id., p.169).

Mais do que considerar aqui a opinião de Proença a respeito de cada uma

das obras e artistas mencionados, o que interessa é perceber a visão de poesia que

informa sua crítica, os elementos que ele valoriza. Sem dúvida, o maior deles é a

preocupação com o mundo, o “engajamento filosófico”, seguido de perto pela

experimentação e pelo apuro formal. Os últimos, porém, são considerados vazios

sem o primeiro. Como se verá mais adiante, toda a produção poética publicada nas

páginas da RCB orienta-se mais por este do que por aqueles, ainda que

explorando as liberdades formais já conquistadas.

5.2. O momento literário Voltemos, porém, a Nelson Werneck Sodré. No número 2 da RCB, em

artigo intitulado “Notas de crítica” – equivalente ao que, a partir do número

seguinte, se chamará “O momento literário” –, Sodré apresenta a proposta que

orienta a seção literária, sob sua responsabilidade. De certa forma, está também

apresentando, mais uma vez, as características que marcam a Revista:

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“Dentro do critério de discutir a forma de fazer esta revista, e cada uma de suas seções, chegamos a algumas decisões provisórias, mas restam ainda muitas questões abertas. De sorte que a fisionomia da seção literária permanecerá ainda fluida por algum tempo, talvez sempre, e isso poderá ser um bem. Há consenso em alguns pontos, embora tudo seja permanentemente debatido: é preciso fazer crítica dos livros editados recentemente, e não apenas a resenha informativa; é preciso acompanhar a atividade literária em seu desenvolvimento e, por isso, as formas definitivas são postas de lado; é preciso insistir na variedade, muito mais do que na uniformidade. De sorte que a seção será algo novo, mas ainda não definido – uma conseqüência de seu processo. A cada número, pois, corresponderão alterações”. (RCB, n.2, p.155)

Com esse caráter aberto e mutável, condizente com os princípios

norteadores do periódico, a seção realmente passou por inúmeras modificações.

Foi publicada em quase todos os números da Revista, com poucas exceções – nos

números 11-12 e 13, a seção não foi publicada, sem qualquer explicação. Quando

a seção é retomada, no número 14, Sodré inicia com uma breve menção ao tempo

afastado: “Por motivos que não vem ao caso mencionar, andei ausente desta

seção.” (RCB, n.14, p.171) Na verdade, ele “andou ausente” da Revista como um

todo, e não apenas da seção literária: sempre tão presente e ativo colaborador,

Sodré não teve qualquer outro artigo publicado nesses dois números.

No número 2, em que aparece pela primeira vez como tal, a seção divide-se

em quatro partes: livros políticos, onde novamente têm destaque as obras sobre a

situação do país após o Golpe; ensaios, em que se destaca o peso das traduções e

das reedições, mais do que de lançamentos; ficção, onde sobressaem as traduções

de Dublinenses, de Joyce, de peças de Aristófanes e de uma nova edição de contos

de Hemingway, além de, no campo da produção nacional, a peça O berço do

herói, de Dias Gomes, e a coletânea de contos Os dez mandamentos; e, por fim,

sob o subtítulo de revistas, comentam-se alguns periódicos, mas sobretudo faz-se

uma análise do importante papel a ser desempenhado pelas revistas culturais no

Brasil. (Id., pp.155-169)

No número 3, nova ressalva sobre o formato ainda não definitivo da seção:

“Diz o ditado que o homem põe e Deus dispõe, pretendendo frizar [sic] que as coisas acontecem de forma muito diferente do que o homem planeja. Isso tem acontecido com esta revista e, particularmente, com a sua seção literária. Claro que temos planejado muito, pensado em iniciativas interessantes, armado algumas, iniciado outras. E a realidade nos tem

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colocado, intransigentemente, na situação de executar sempre o imprevisto, o tópico, o que o instante exige, pondo de parte tudo aquilo que ficou antes pensado, planejado ou esboçado. (...) As boas iniciativas em que pensamos, entretanto, ficam transferidas, mas não esquecidas. (...) No fundamental – fazer uma seção literária séria, isenta de injunções, movimentada, crítica – continuamos, e nem poderia deixar de ser assim, fiéis aos planos estabelecidos. Na forma, surgiram variações. (...) A fisionomia definitiva desta seção, pois, – tanto quanto o possa ser algum dia – está longe de ter sido atingida.” (RCB, n.3, p.111)

Sodré dedica-se então principalmente a comentar os últimos abusos de

poder e atos de violência do Governo. Os títulos das partes em que o texto se

divide, se comparados aos do número anterior, mostrarão bem o caráter dos fatos

que impuseram mudanças contingenciais à seção: universidade (sobre as torturas

e o terror nas universidades brasileiras), tortura de estudantes, apreensão de

livros e terror em Portugal. É como se os acontecimentos recentes não deixassem

espaço para a literatura, e o crítico fosse forçado a afastar os olhos dos livros para

encarar a realidade. Só no fim da seção é que Sodré dedica alguns parágrafos aos

últimos lançamentos, iniciando a análise com uma frase cheia de sarcasmo e

muito significativa: “Pois é: ainda se edita no Brasil, e ainda se escreve”. (RCB,

n.3, p.115)

No número 4, Sodré, com notável modéstia, expõe as criticas que sofreu de

seus colegas no Conselho de Redação: parecia haver um desejo geral de que a

seção se ocupasse menos dos lançamentos recentes, o que resultava em uma

espécie de extensa lista de resenhas, e passasse a fazer análises mais profundas de

autores e obras individuais. Outra idéia era que a seção se dedicasse a uma

“desmistificação literária”, “reduzindo às devidas proporções os falsos valores que

ocupam a área das letras brasileiras, e não só das letras”. (RCB, n.4, p.175) Sodré

reconhece a procedência dessas críticas, mas justifica a predominância de textos

que fazem apenas resenha de livros afirmando: “(...) a resenha, mais informativa

do que crítica, pretendia atender à parte do público (...) que, por viver em outros

centros que não Rio e São Paulo, precisam [sic] ser informados a respeito do

movimento editorial. Note-se que as resenhas, aqui, não são simples arrolamentos,

mas têm pretendido, dentro de seus limites, exercer seleção, discriminar valores,

destacar o importante”. (Id., p.176) Sodré ainda ressalta que, a partir daquele

volume, certas mudanças seriam introduzidas, como por exemplo a inclusão de

um ensaio crítico de Carlos Nelson Coutinho que demonstraria a maior qualidade

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e profundidade de análise pretendidas. Tal ensaio, no entanto, só é publicado no

número seguinte, sendo intitulado “Uma análise estrutural dos romances de

Graciliano Ramos” (comentado com mais detalhes adiante).

De fato, a seção continuou a seguir, de modo geral, essa linha de resenhas,

apresentando obras selecionadas de diversos gêneros, sempre precedidas por um

comentário mais amplo sobre a situação da literatura no quadro político e social

específico que se vivia então, uma espécie de balanço da produção literária em

tempos de terror e obscurantismo. Muitas vezes, a literatura era deixada de lado

para se comentarem os últimos abusos policiais ou os últimos desmandos da

política.

Mais interessante e útil do que fazer um extenso levantamento das obras e

dos autores resenhados por Sodré é reproduzir alguns desses trechos em que a

ironia fina e a penetrante inteligência do crítico se voltavam para a situação do

país como um todo, revelando o contexto em que a literatura do período estava

inserida e propiciando uma visão muito mais abrangente de suas características.

Certamente, eles dizem mais sobre a produção literária da época do que uma ou

outra frase isolada sobre determinado lançamento.

Assim, por exemplo, no número 5-6, de março de 1966, Sodré comenta a

tentativa de impor a mediocridade como norma, inclusive pelo controle dos meios

de divulgação: “chega a ser grotesco o esforço em impingir criaturas omissas

como geniais, em glorificar a mediocridade e, por tais processos, indicar um

caminho, o da passividade, o do conformismo, o da neutralidade artística, o da

omissão diante dos problemas”. (RCB, n.5-6, p.101)

No número seguinte, há uma nova menção à mediocridade reinante, ao

conformismo premiado. No entanto, a situação negativa que o país enfrenta – e

seus inevitáveis reflexos na área literária e cultural – é encarada de forma um

pouco mais otimista. O trecho abre a seção publicada em maio de 1966 e chama a

atenção para a efervescência cultural que, paradoxalmente, dominou as décadas de

60 e 70, apesar da repressão imposta pelo governo militar:

“O momento literário brasileiro, condicionado, como não podia deixar de ser, ao conjunto nacional, apresenta-se refletindo diretamente as conseqüências do que vem ocorrendo no País. Observadores superficiais, que se sensibilizam diante dos fatos correntes, e são incapazes de tirar deles as conclusões mais profundas, verificam apenas, e com natural pessimismo,

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o lado negativo, o esforço do obscurantismo para impedir o desenvolvimento da cultura nacional. Esse esforço, operado por meios cirúrgicos e brutais, de início, e concretizado em inquéritos, cassações, demissões de mestres, exílio de intelectuais, prisões, apreensões de livros, etc., toma, a partir do ano em curso, forma organizada, pela valorização sistemática da mediocridade, pela glorificação do conformismo, pela premiação dos passivos ou dos renegados ou dos corrompidos. Mas este é um dos lados do problema, e não é o único. Seria cego aquele que não observasse, também, o extraordinário esforço da cultura nacional para sobreviver, a unidade hoje existente entre os intelectuais em defesa das liberdades e, especificamente, a criação, com trabalhos de mérito, no teatro, no cinema, na ficção, no ensaio, nas ciências. Ao lado disso, a vigorosa luta estudantil, marcada por episódios diários, a que é indispensável conceder toda atenção e que revela a pujança das gerações mais jovens e sua inconformação com a estupidez erigida em norma cultural. A realidade sempre se compõe dos dois aspectos; ver um deles, apenas, é ver mal e parcialmente.” (RCB, n.7, pp.159-60)

Pouco adiante, Sodré segue na mesma linha ao iniciar um pequeno balanço

da produção literária do ano anterior comentando novamente: “Não se opera o

retorno à idade da pedra apenas pelo uso de instrumentos físicos de coação. Há

um nível que, quando atingido pela cultura, não admite retorno.” E ainda: “O

travesti cultural, embora revestido de autoridade formal, desperta apenas o riso.”

(Id., p.160)

É interessante comentar duas idéias que aí aparecem e que são recorrentes

nos textos de Nelson Werneck Sodré para a seção de literatura da RCB: a de que a

cultura é de fato um meio eficiente e poderoso de resistência à brutalidade e à

estupidez impostas pelo regime ditatorial e a de que os pseudo-intelectuais,

elevados à categoria de mestres não pelo valor de sua obra, mas pelo conformismo

e pelo alinhamento em relação à ordem vigente, não passam de “renegados” que o

tempo e a história saberão reduzir a seu lugar de mediocridade e irrelevância no

plano cultural nacional. Veja-se, por exemplo, o contraste exposto no número 9-

10 entre a dificuldade de divulgação “que entorpece o movimento literário

brasileiro” e

“os falsos valores que continuam impunes, alardeando o que não possuem, gozando dos favores da publicidade organizada, (...) escribas capazes de provar que o branco é preto, fazendo reportagens para revistas caras, coloridas e de circulação garantida, apregoando qualidades de outros, que apregoam as suas, e todos entoando o coro de louvações à mediocridade, porque assim é preciso: que seria deles se não fosse a mediocridade? Esses escritores “apolíticos”, capazes de louvar qualquer coisa, têm boa imprensa,

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e recebem louvações pelo comportamento manso (...). O mais, é lama que as enxurradas hão de carregar, com seus títulos, suas medalhinhas, seus livrinhos, suas revistinhas, e tudo que por aí anda, a fingir de cultura (...).” (RCB, n.9-10, pp.114-5)

Fica evidente que a oposição aí explicitada é não apenas entre “engajados” e

“alienados”; vai além, envolvendo intelectuais sérios, “que têm algo a dizer e não

encontram lugar e oportunidade”, em contraste com os “corrompidos”,

“renegados”, “vendidos”.

Em julho de 1966, no número 8 da Revista, Sodré mantém o otimismo:

“Apesar dos esforços para colocar o livro fora da lei e do escasso poder aquisitivo de nossa gente, o movimento editorial persiste, teimosamente, em fornecer a teimosas criaturas que procuram enriquecer os seus conhecimentos número crescente de obras importantes.” (RCB, n.8, p.147)

Em seguida, ressalta que nunca houve no país tanto desejo de conhecer e

discutir novas idéias, o que leva os editores a publicarem não apenas o que terá

garantia de vendas como também obras importantes que contribuam

qualitativamente para o clima de debate reinante e para a liberdade ao menos no

plano intelectual.

Já alguns meses depois, o crítico parece abalado, desanimado pela

dificuldade que envolve a produção literária brasileira. Ele então “compreende o

drama terrível dessa dificuldade de divulgação que abafa revelações, que oculta

talentos, que impede a renovação de valores”. (RCB, n.9-10, p.114) E aponta os

problemas enfrentados pelas editoras: “O mercado editorial denuncia os efeitos

desastrosos da política econômica e financeira: livros caros, vendendo pouso, as

editoras não subsidiadas em dificuldades, autores que não conseguem ser

publicados.” (Id., p.115)

O tom otimista de Sodré parece definitivamente deixado pra trás em

setembro de 1967, mais de um ano depois de ele ter insistido em que a realidade é

composta de dois lados, e que ver apenas um deles é ver mal e parcialmente.

Agora, os pontos positivos que antes destacara parecem ter se esmaecido:

“Depois da fase inicial de unidade, que sucedeu à implantação da ditadura, os intelectuais – que resistiram bem naquela fase – dispersaram-se e permitiram que fosse colocado em primeiro plano o que os divide e não o

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que os une. (...) É lamentável verificar (...) que, no campo dos intelectuais, a luta seja desenvolvida entre partidários das diversas tendências, e não contra a ditadura.” (RCB, n.15, p.214)

È importante retomar as críticas feitas pelo Conselho de Redação da RCB à

organização da seção literária a cargo de Sodré. Conforme já ficava bastante claro

no número 4, de setembro de 1965, o Conselho desejava que a seção fosse mais

crítica, fazendo análises mais profundas de determinadas obras, em vez de

meramente informativa. Sodré argumentava então que a informação se fazia

extremamente necessária naquele momento, em que a circulação das novidades no

meio cultural e literário era muito restrita. A mesma crítica se repete em julho de

1967, no número 14. Dessa vez, ainda que fazendo a mesma objeção e ressaltando

que a informação que a seção literária até ali vinha fornecendo era não meramente

quantitativa, como a que por vezes se fazia disponível em outros veículos, mas

sim qualitativa, agregando à seleção de título e autores um sério juízo de valor,

Sodré cede. A partir desse número, além de um balanço mais amplo dos últimos

lançamentos, a seção passa a ter uma parte intitulada “Nota crítica”, que se ocupa

em maior profundidade de apenas um ou dois títulos.

De fato, a seção permaneceu com esse formato nos números seguintes, com

algumas poucas variações circunstanciais. Chama atenção a preocupação de

sempre dedicar espaço a livros de ficção e de não-ficção, estrangeiros e nacionais,

bem como a revistas e outros periódicos. Era uma maneira de abarcar o conjunto

da produção literária do período, uma vez ser impossível comentá-la em sua

totalidade. Manteve-se sempre também a opção por abrir a seção com um

comentário geral sobre a situação do país, indo além dos limites estritos do meio

literário. Fica evidente a compreensão dos diferentes meios como inter-

relacionados: não se pode falar de literatura sem se considerar a política, a

economia, a educação, os movimentos sociais. Esse espaço de abertura era

utilizado por Sodré para comentar e denunciar os abusos do poder ditatorial,

fazendo questão de relatar os últimos desmandos, a hipocrisia, a crueldade, a

violência.

No último número da Revista, Sodré faz uma observação em que prevê que

os tempos hão de mudar. Denuncia o endurecimento do regime e a escalada da

violência, mas, com o habitual otimismo, deixa espaço para a possibilidade –

remota – de que haja uma mudança para melhor:

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“Um dos problemas de quem escreve em revista de periodicidade larga, como esta, consiste na desatualidade permanente de seus pronunciamentos, decorrente do fluxo natural do tempo, de um lado, e do ritmo velocíssimo com que os processos se desenvolvem, em nossa época. Não é possível prever, pois, qual o clima em que viveremos quando estas linhas estiverem sendo lidas (...). Escrevo em outubro, serei lido provavelmente em dezembro, e talvez em dezembro a fase histórica seja outra, quem sabe? O que é possível assegurar, sem sombra de dúvida, (...) é que vivemos uma fase muito difícil, em nosso País, agora, quando a violência foi erigida em sistema e parece não encontrar limitações. Estamos, realmente, sendo apresentados a alguma coisa que não conhecíamos (...), alguma coisa de radicalmente novo: o terrorismo político. (...) Presumíamos que a nossa provação seria profunda e, provavelmente, longa; não poderíamos presumir que, tão depressa, assumisse as formas que vai assumindo. Não sabemos o que estará marcando o quadro em dezembro, e resta-nos a esperança e a confiança de que, em qualquer dezembro, na perspectiva, viveremos tempos melhores.” (RCB, n.21-22, pp.195-6)

Como se sabe, passariam-se ainda muitos dezembros antes que a situação

melhorasse. Naquele dezembro específico foi promulgado o AI-5, e de fato a fase

histórica passou a ser outra, ainda mais dura. A Revista, como muitos outros

veículos, sentiu o golpe na pele; não pôde continuar a ser publicada.

5.3. Artigos e ensaios A seção literária assinada por Sodré, porém, não era a única forma de se

abordar a literatura na Revista. Possivelmente para atender ao desejo do Conselho

de Redação de ver realizada uma crítica mais profunda e uma abordagem mais

detalhada de algumas obras importantes, publicavam-se também inúmeros artigos

sobre os mais variados temas – e com as mais diferentes visões – do mundo

literário. Evidentemente, será impossível comentar todos eles aqui.

Vale começar com um ensaio que Nelson Werneck Sodré menciona em sua

seção, e que claramente responde ao desejo do Conselho. Trata-se de “Uma

análise estrutural dos romances de Graciliano Ramos”, de Carlos Nelson

Coutinho. É muito relevante que, mais do que o objeto de análise (a obra de

Graciliano Ramos), seja o método empregado para fazer tal análise o que torna o

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ensaio de Coutinho merecedor de tanto destaque na Revista. De fato, o método é

explicitado já no título do texto: a proposta é fazer uma “descrição das estruturas

significativas inerentes à sua obra e a relação entre estas estruturas e a realidade

social brasileira”. (RCB, n.5-6, p.107) Coutinho segue o materialismo dialético

que norteia as obras de Georg Lukács e Lucien Goldmann, fazendo uma crítica

marxista-estruturalista. Quer, portanto, não apenas compreender a obra de

Graciliano em seu significado interno mas também explicitar a estrutura mais

ampla em que ela se insere – e da qual ela é “ao mesmo tempo, um produto e um

fator estruturante”. (Id., p.108) Antes de iniciar a análise, Coutinho faz questão de

afirmar o caráter hipotético de seu ensaio – que deriva, segundo ele mesmo diz,

não da modéstia do autor, mas da adoção da dialética como princípio

metodológico, o que faz com que o estudo só possa ter suas afirmações

comprovadas à luz de uma leitura mais ampla, posterior, que o insira na

perspectiva da relação entre o todo e as partes que o compõem. Em nota, Coutinho

ainda afirma a igualdade, a seus olhos, entre marxismo e estruturalismo genético.

O ensaio procede então a uma longa análise da obra de Graciliano, em que

sobressai a preocupação de vê-la inserida no contexto da realidade brasileira.

É significativo que o primeiro artigo publicado na RCB a empreender uma

crítica literária de fôlego, extensa e profunda, tenha optado pelo método

estruturalista e por essa abordagem marxista. Outros estruturalistas foram

publicados em números posteriores, como Lucien Goldmann, com o artigo

“Materialismo dialético e história da literatura” (RCB, n.11-12, pp.108- 125), com

tradução do próprio Carlos Nelson Coutinho. Nesse ensaio, escrito em 1947, o

filósofo e sociólogo romeno-francês defende o materialismo histórico tentando

desfazer equívocos comuns divulgados pelos críticos desse método. Um dos

principais deles é confundir a análise marxista que leva em conta a influência de

fatores econômicos e sociais sobre a criação literária com um tipo de crítica que

explica a obra em função da biografia do autor e do meio social em que ele viveu.

Goldmann afirma que a literatura deve ser vista como a “expressão de uma visão

de mundo”, mas que, longe de se prender apenas a uma análise material das

condições de mundo em que a obra se insere, o materialismo dialético deve

considerar a obra em seus diversos aspectos, não só em sua relação social mas

também em sua lógica interna, no plano estético. Com isso, Goldmann rebate

também o argumento daqueles que enxergam a crítica marxista como

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essencialmente política e materialista, “fechada aos valores do espírito”. (Id.,

p.109)

Seguindo uma linha semelhante, o artigo de Georg Lukács publicado no

número 13 enfoca mais especificamente a polêmica entre arte engajada e arte

livre. Intitulado “Arte livre ou arte dirigida?”, o texto foi originalmente publicado

em setembro de 1948, e questiona a colocação do problema com base em duas

concepções estéticas tão radicais e antagônicas: ou a arte é vista como

“propaganda”, perdendo portanto seu valor propriamente artístico, ou como

“alienada”, distante da realidade, “arte pela arte”, encerrada em torres de marfim.

Mais uma vez, como no texto de Goldmann, trata-se da necessidade de conciliar

liberdade artística e criadora com a inserção do autor e da obra no mundo

material, social e econômico em que ele se insere e no qual repercute. É

interessante destacar a charge de Jaguar publicada imediatamente após o fim do

texto, que mostra um poeta sendo hipnotizado e manipulado, qual uma marionete,

por um homem grande, gordo, de rosto grotesco (ver ANEXOS).

Já no número seguinte, porém, a RCB abre espaço para uma voz dissonante.

Em “O estruturalismo é o ópio dos literatos”, Otto Maria Carpeaux questiona e

critica esse método de análise literária, entendendo-o mais como ideário político.

(RCB, n.14, pp.245-250) Mais uma vez, uma charge de jaguar fecha o texto.

Intitulada “Estruturalismo”, mostra a ironia do cartunista dirigida a intelectuais

que adotam esse método inclusive em suas criações poéticas (ver ANEXOS).

Os artigos sobre literatura na RCB, porém, eram bastante variados, e não se

limitavam a discussões teóricas sobre abordagens e metodologias de crítica.

Incluíam algumas entrevistas e muitos ensaios sobre obras ou autores específicos:

“Do sertão à pancada do mar”, de M. Cavalcanti Proença, em que se trata da obra

Os sertões, de Euclides da Cunha, a propósito do centenário de nascimento do

autor; “Marinetti em São Paulo”, de Mario da Silva Brito, sobre a estética futurista

e sua “antropofagização” pelo grupo modernista paulista; “James, um profeta

sofisticado”, de Antônio Callado, em que o escritor brasileiro comenta

brevemente a vida e a obra de Henry James; “O misticismo popular na obra de

Dias Gomes”, de Anatol Rosenfeld, em que o crítico alemão radicado no Brasil

analisa as peças O pagador de promessas e A revolução dos beatos; “A travessia

de Cony”, de Paulo Francis, sobre o recém-lançado romance de Carlos Heitor

Cony, e ainda muitos outros.

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Vale comentar a interessante iniciativa de João Antônio ao realizar uma

análise do novo romance urbano que começava a ganhar força na década de 1960,

contando com a participação de expoentes do gênero. “Inquérito: o romance

urbano” é publicado no número 7 da RCB, de maio de 1966. Após uma

introdução em que analisa a herança da geração de 30 e sua consolidação do

romance regionalista nordestino, João Antônio – ele próprio já um autor de

destaque com Malagueta, perus e bacanaço, publicado em 1963 pela Civilização

Brasileira – reproduz as respostas de seis novos escritores a uma série de dezoito

perguntas sobre o processo de criação literária, as características do romance

brasileiro e do romance urbano em particular, a profissionalização do escritor, a

relação entre autor e editor e o mercado de literatura no Brasil. Os “depoentes”

desse inquérito são: Carlos Heitor Cony, Sylvan Paezzo, João Martins, Esdras do

Nascimento, Thereza Cristina e José Agrippino de Paula. Embora nem todos

tenham seguido carreiras proeminentes na literatura nacional, tinham em comum o

fato de estarem se destacando na produção literária do período. E mais, como diz

João Antônio ao apresentá-los: “congregam uma só tônica grata ao romance

brasileiro – a principal preocupação é o homem na cidade grande, a fixação de

seus desvãos e seus múltiplos matizes”. (RCB, n.7, p.194)

Percebe-se portanto, nos artigos sobre literatura na RCB, uma grande

variedade de temas e abordagens, de obras e de autores analisados, bem como de

colaboradores responsáveis pelos textos – brasileiros e estrangeiros, críticos já

estabelecidos e reconhecidos ao lado de novos escritores e intelectuais. Ou seja,

nesse espaço continuava vigente a opção por diversidade e abertura expressa nos

princípios norteadores da Revista. De modo geral, nesses artigos, a prosa ficcional

ganha mais espaço do que a poesia ou a prosa ensaística, mas isso é de certa forma

compensado pela publicação de poemas e a abordagem de obras políticas,

econômicas e sociológicas na seção “Notas de leitura”, como se verá a seguir.

5.4. Poesia Com apenas uma exceção – o número 16, de novembro-dezembro de 1967 –

todos os números da Revista Civilização Brasileira trouxeram ao menos um

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poema publicado em suas páginas. Alguns poetas eram assim apresentados ao

público pela primeira vez. Outros, mais ou menos conhecidos, contribuíam com

obras inéditas ou mesmo já publicadas anteriormente. Geir Campos, Ferreira

Gullar, Thiago de Mello, José Carlos Capinam, Moacyr Felix, o argentino Mario

Trejo, o uruguaio Mario Benedetti, Fernando Py, José Godoy Garcia e muitos

outros mostraram ali suas criações poéticas.

Um traço comum a quase todos os poemas era a flagrante opção pela

estética engajada, sendo dedicados a temas políticos e sociais. No primeiro

número, o poeta Moacyr Felix, integrante do Conselho de Redação e o principal

responsável pela seleção de poemas, publica o seu “Recado ao poeta e seus

problemas”, em que se dirige a Carlos Drummond de Andrade e confessa: “muitas

vezes afastei daqui o construtor de versos/ e artesão de domingos ocos, o

marceneiro de esquifes/ onde a palavra só cabe transformada em coisa/

desligada/do antiqüíssimo sangue da vida em que se anima”. (RCB, n.1, p.178)

Fica a evidente opção pela poesia como reflexo da vida, mais do que como arte de

lapidar palavras; o conteúdo social tem primazia sobre a técnica.

É essa a tônica geral da maioria dos outros poemas. Como “Aos que vão

nascer”, de Bertolt Brecht, em tradução de Geir Campos: “Realmente, eu vivo

num tempo sombrio./ A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem

ruga/ demonstra insensibilidade. Quem está rindo/ é porque não recebeu ainda/ a

notícia terrível.” (RCB, n.2, p.170) No mesmo número, quatro poemas de Ferreira

Gullar são reproduzidos: “O açúcar” (“Em usinas escuras,/ homens de vida

amarga/ e dura,/ produziram este açúcar/ branco e puro/ com que adoço meu café

esta manhã em Ipanema”), “Maio 1964” (Mas quantos amigos presos!/ quantos

em cárceres escuros/ onde a tarde fede a urina e terror”), “Agosto 1964” (“Digo

adeus à ilusão,/ mas não ao mundo. Mas não à vida,/ meu reduto e meu reino”) e

“Dois e dois, quatro” (“Como dois e dois são quatro/ sei que ávida vale a pena/

embora o pão seja caro/ e a liberdade, pequena”). Em todos, a mesma opção fica

patente.

Presos às circunstâncias que os cercam, os poetas são como que impelidos a

adotar uma linguagem de denúncia, de solidariedade, de luta. Bastam alguns

títulos para comprová-lo: “Estrela de esmeralda e rebeldia para o companheiro

Joel Rufino dos Santos”, de Thiago de Mello (aqui reproduzido nos ANEXOS);

“Colóquio dos violentos”, de Joaquim Cardozo; “1964”, de Renata Pallotini; “A

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pedra não é a estrada, e a estrada não é a fome”, de Oswaldino Marques... Há,

inclusive, poemas agrupados sob temas comuns, como em “Cinco poemas que

falam do Vietnam”, reunindo escritos de Barbara Beidler, Moniz Bandeira, Eliseu

Maia, Isnard M. Vieira e Moacyr Felix.

Este é também o responsável pelo texto de apresentação de outra seqüência

de depoimentos, semelhante à que realizará depois João Antônio em relação ao

romance urbano. Aqui, sob o título “Poetas falam de poesia”, Olga Werneck faz

uma série de perguntas a respeito do conceito e do papel da poesia, do acesso que

o povo tem a esse tipo de produção literária, da poesia oral, da inspiração e da

relação forma-conteúdo (ver a lista completa em ANEXOS). A pesquisa foi

apresentada nos números 2, 3 e 4, e dentre os escritores que responderam ao

questionário estão Aníbal Machado (falecido pouco tempo depois), Joaquim

Cardozo, Vinicius de Moraes, Geir Campos, Affonso Romano de Sant’Anna,

Ferreira Gullar e Moacyr Felix.

Na introdução à seção, afirma Felix: “Atravessamos um período em que a

fundamental necessidade de indagar-se emergiu para o primeiro plano da vida

brasileira”. (RCB, n.2, p.173) Os poetas, “que exercem diariamente o difícil ofício

de moer seu coração entre as palavras”, têm o dever de indagar-se sobre si

mesmos e sobre sua atividade a fim de saber se contribuem ou não, e de que

modo, para a “consciência coletiva ou o conjunto de aspirações, de sentimentos e

de idéias do grupo social de que fazem parte (...)”. (Id., ibid.) Assim, valorizando

o engajamento como forma de expressão da liberdade (segundo Felix, o

engajamento é “situação necessária e prévia para a inteireza de quaisquer dos atos

que o homem realiza dentro de sua essencial condicionalidade histórica,

incluindo, e sobretudo, os atos de conhecimento”), a seção idealizada e

concretizada por Olga Werneck reúne os depoimentos de “alguns autorizados

nomes de gerações e de situações diferentes”. (Id., p.175) As respostas publicadas

formam um panorama da poesia brasileira daqueles anos, mostrando como a

pensavam e a encaravam seus próprios criadores. Constituem, portanto, um

relevante documento histórico-literário e uma valiosa fonte para os estudantes e

todos os interessados em literatura.

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5.5. Notas de leitura No número 7, de maio de 1966, aparece pela primeira vez a seção “Notas de

leitura”. A partir daí ela será freqüente, quase sempre ao final do volume. Como o

nome indica, reúne observações críticas a respeito de obras literárias, abordando

os mais diferentes gêneros, autores e temas. Essas curtas resenhas são assinadas

por personalidades do meio cultural, como Roberto Pontual, Otto Maria

Carpeaux, Esdras do Nascimento, Leandro Konder, Thereza Cesário Alvim,

Antônio Callado, Ferreira Gullar, Edison Carneiro, Luiz Carlos Maciel, Luiz

Costa Lima, João Antônio e muitos outros. Tratando tanto dos lançamentos

recentes quanto de obras mais antigas ou mesmo inéditas no Brasil, a seção adota

um caráter mais opinativo do que propriamente informativo, e, de certa forma,

complementa o trabalho de Nelson Werneck Sodré em seus comentários às

novidades do mercado editorial brasileiro.

Como são muitas as resenhas (cerca de 130 no total), será inviável fazer

aqui uma análise pormenorizada delas. A menção de apenas alguns títulos, porém,

já dará uma idéia da diversidade abarcada: Numa terra estranha, romance do

norte-americano James Baldwin publicado pela editora Globo, é analisado por

Esdras do Nascimento; A arte de ser mulher, uma coletânea de artigos publicados

na revista Cláudia pela psicóloga Carmem da Silva, é analisado por Thereza

Cesário Alvim; O teatro épico, de Anatol Rosenfeld, ganha uma análise de Dias

Gomes; Dialettica del concreto, uma abordagem da filosofia marxista pelo crítico

e filósofo tcheco Karel Kosic, é lido na tradução italiana por Leandro Konder; A

necessidade da arte, livro de Ernst Fischer publicado pela Zahar Editores, é

resenhado por Ferreira Gullar; por fim, História da minha vida, a autobiografia de

Charles Chaplin publicada pela José Olympio, é apresentada sob a crítica de Paulo

Francis. E isso é apenas uma seleção dentre as resenhas publicadas no número 7.

Vale ressaltar apenas um dos livros citados acima foi publicado pela editora

Civilização Brasileira, embora outros dois títulos resenhados mas não incluídos na

lista também o fossem. Isso de certa forma aponta uma tendência que se

confirmará nos números seguintes: há uma certa preponderância de livros da

Civilização Brasileira resenhados na seção, mas isso não impede de modo alguma

a inclusão de obras lançadas por outras, e variadas, editoras.

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Dentre os livros de poesia comentados, destacam-se A luta corporal e

outros poemas, de Ferreira Gullar, e A educação pela pedra, de João Cabral de

Melo Neto, ambos analisados por Roberto Pontual; A canção do amor armado, de

Thiago de Mello, e Um poeta na cidade e no tempo, de Moacyr Felix, analisados

por Otto Maria Carpeaux (sobressai, na segunda dessas resenhas, a frase: “O

problema não é saber quando a grande poesia é engajada, mas quando a poesia

engajada é grande.” – RCB, n.9-10, p.346); Poemário da Silva Brito, uma

coletânea de poemas de Mário da Silva Brito publicada pela Civilização

Brasileira, comentada por Ferreira Gullar (e aqui cabe um parênteses: embora

elogie a obra do poeta, Gullar critica a edição em determinados pontos,

questionando a seleção feita e lamentando a falta de informação a respeito da data

dos poemas, por exemplo; isso mostra que, mesmo publicada por essa editora, a

RCB consistia num espaço de livre expressão crítica) e Quatro quartetos, de T.S.

Eliot, analisado por Octávio Mora.

Com uma lista resumida dos livros de ficção resenhados, fica evidente a

grande força da produção do período: Os ratos, de Dionélio Machado, na análise

de Esdras do Nascimento; Pensão Riso da noite, de José Conde, analisado por

Fausto Cunha; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, na leitura de Salim

Miguel; Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, novamente por Esdras

do Nascimento; Tutaméia, de Guimarães Rosa, por Roberto Pontual; 64 D.C.,

uma coletânea de contos de Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Hermano

Alves, Marques Rebelo e Sérgio Porto, por Luiz Fernando Cardoso, e O enterro

da caftina, de Marcos Rey, por João Antônio são alguns exemplos das novidades

em terreno nacional.

Dentre os estrangeiros, o já mencionado James Baldwin foi acompanhado

por escritores como Herman Hesse e Jean-Paul Sartre. Mas era mesmo na área de

não-ficção que a presença de autores internacionais se fazia mais forte,

especialmente de intelectuais de várias correntes de esquerda: Lucien Goldmann,

Reuben Osborn, Antonio Gramsci, Roger Garaudy, Georg Lukács, Louis

Althusser e Henri Lefebvre são alguns dos que tiveram obras comentadas.

A não-ficção nacional também mereceu enorme destaque, com obras nas

áreas de sociologia, história, economia, política e artes (especialmente cinema e

teatro). Celso Furtado, Luiz Carlos Maciel, Luiz Costa Lima, Cândido Mendes,

Fernando Gasparian, José Honório Rodrigues, Nelson Werneck Sodré, Osny

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Duarte Pereira e Hélio Silva são alguns dos nomes que se misturam aos já citados

Leandro Konder, Roberto Pontual e Otto Maria Carpeaux como autores de

resenhas e também de obras resenhadas.

O simples elencar desses intelectuais, se não é suficiente para dar conta da

riqueza de suas obras e de seu pensamento, já é o bastante para comprovar a

importância da Revista Civilização Brasileira no plano intelectual brasileiro. No

período imediatamente posterior ao golpe, a reunião de pensadores desse quilate e

a exposição de suas idéias era uma forma de contestar o regime de força instalado,

de defender a livre manifestação de idéias e de insistir em um projeto político-

social que passava necessariamente pela conscientização do povo a respeito dos

problemas enfrentados pelo país e das características da inserção deste no

contexto internacional.

A diversidade de idéias, obras, temas, gêneros e autores presentes nas

páginas dedicadas à literatura na RCB e a liberdade de expressão sempre

comprovada nos textos publicados reforçam o caráter aberto e democrático da

Revista, em perfeita consonância com os princípios e propósitos explicitados em

seus editoriais.

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6 Conclusão

A Revista Civilização Brasileira foi um veículo extremamente importante

na expressão de idéias contrárias ao regime ditatorial imposto pelo Golpe de 64.

Sua postura combativa reuniu diversos intelectuais de esquerda, com o

compromisso da luta pela liberdade e pela justiça. Regida pelos princípios do livre

pensamento e do não-sectarismo, abrigou em suas páginas representantes de

diversos matizes de esquerda, sem se restringir ideologicamente. A única

exigência era a de que todas as idéias ali expostas fossem orientadas,

coerentemente, no sentido de condenar a situação política, econômica e social do

Brasil que se vivia então. Em seus vinte e dois números, a Revista reúne artigos e

matérias que fazem uma análise crítica de temas polêmicos e atuais, oferecendo ao

público a possibilidade de abertura e de aprofundamento teórico. A cultura e a arte

passavam por uma fase de grande efervescência, e isso se refletia nas páginas da

RCB. Assim, pode-se dizer que ler a Revista Civilização Brasileira é como

vasculhar um baú em que se guardam, intocadas, memórias de um passado que

não acabou, pois que nos constitui ainda hoje como povo e como Nação.

A Revista Civilização Brasileira atuou na brecha que existia nos primeiros

anos da ditadura militar, reunindo e organizando o pensamento intelectual de

esquerda. Sua existência marcou a época, e faz parte da experiência dos que

viveram aqueles anos. A Editora Civilização Brasileira, responsável por sua

publicação, já era reconhecida desde antes do Golpe como um importante centro

de divulgação de obras marxistas e revolucionárias, em todos os sentidos da

palavra – exceto o que queriam por força lhe impor os militares da ‘Revolução de

abril’. A linha editorial que a casa seguia é bastante significativa para a

compreensão dos princípios que a norteavam. O peso que dava aos títulos das

ciências sociais e da nova ficção nacional e internacional é uma mostra de sua

orientação e de seus objetivos: a abertura e a renovação do mercado editorial

brasileiro, a democratização do acesso à cultura, o incentivo à leitura, a crença no

livro como objeto capaz de transformar o mundo. Ênio Silveira, dono da editora

nos seus anos de maior importância e produtividade, foi preso inúmeras vezes

durante a ditadura por sua postura franca e combativa, por sua coragem e

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tenacidade na luta contra os desmandos do poder. É impossível dissociar sua

figura da imagem da Civilização Brasileira.

A descrição das características gerais da Revista e, em mais detalhes, de

algumas de suas principais matérias revela a coerência de sua linha editorial com a

visão de mundo manifestada pela editora em outras publicações. Uma breve

análise de conteúdo mostra que este seguia a orientação geral dos princípios e

propósitos explicitados nos editoriais: abertura para idéias contrárias ao regime

mas não alinhadas sob uma única ótica, amplitude temática e discussão de

assuntos que pudessem contribuir para uma revisão dos rumos do país – políticos,

sociais, econômicos – na tentativa de promover a superação das dificuldades

históricas e contingenciais que impediam (e impedem) a igualdade e a justiça

social.

Por fim, em uma análise mais detalhada da seção de literatura e crítica

literária, destaca-se a importância da literatura na concepção de resistência

intelectual expressa pela RCB. As características dos artigos literários corroboram

a opção geral da Revista, sendo totalmente coerentes com seus princípios e

propósitos: amplitude temática, liberdade de expressão, não-sectarismo etc.

Evidentemente, pela opção eminentemente descritiva que se fez neste

trabalho e pelas limitações típicas de uma dissertação de mestrado, foi impossível

examinar a fundo todos os textos que compõem a Revista, ou mesmo mencionar

tudo o que mereceria ser lembrado. Além disso, essa viagem ao passado através

das páginas da RCB é, necessariamente, envolta em motivações subjetivas, que

passam igualmente pelo intelectual e pelo emocional, e que estão sujeitas, desse

modo, a inúmeros desvios e turbulências no caminho. A opção por determinados

artigos e autores em detrimento de outros não foi orientada por critérios objetivos,

mas apenas pelo impacto causado por sua leitura. É claro que esse impacto está

condicionado a diversas variáveis: o leitor, o momento, a intenção... Uma segunda

leitura jamais será igual à primeira. É por isso que o que se propôs, mais do que

esgotar o assunto em uma análise minuciosa de cada um dos elementos que

compõem a Revista, foi a simples recuperação de uma parte importante do

passado coletivo da Nação. A partir daí, está aberto o caminho para que novos

leitores se debrucem sobre a coleção desses volumes e descubram novos rumos,

novas possibilidades interpretativas, novas sutilezas. Não se fez aqui uma análise

do discurso ou um estudo estilístico. Tampouco o olhar que orientou esta leitura

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foi o do historiador preocupado em determinar fatos e datas precisas. O caminho

percorrido, como já se disse, é inegavelmente subjetivo. Não poderia ser de outra

forma.

A conclusão, coerente com os princípios da Revista, é aberta e convida a

novas reflexões. O que fica evidente, depois de concluída a pesquisa, é o quanto

ainda há a pesquisar. E mais: o quão atuais são os temas discutidos nos vinte e

dois números da RCB, o quanto ainda pode deles ser aproveitado, o quanto ainda

pode ser extraído como lições de coragem e ousadia, de coerência e dignidade, de

ética e de compromisso com as causas coletivas. Essas lições, em um tempo como

o de hoje, em que reinam a individualidade e o egoísmo, a omissão e a apatia, a

cumplicidade com as injustiças e a desonestidade, são mais do que apenas ecos de

um passado histórico: são chaves que apontam para a possibilidade de um futuro

mais justo e menos desigual, baseado no respeito e na tolerância entre os seres

humanos.

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Depoimentos

Eunice Duarte

Carlos Nelson Coutinho

Ferreira Gullar

Leandro Konder

Moacir Werneck de Castro

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