maria joão estorninho - estudos de direito da alimentação

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ESTUDOS DE DIREITO DA ALIMENTAÇÃO Maria João Estorninho (coord.)

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O trabalho discute o direito à alimentação como direito fundamental, no quadro de um direito a uma existência condigna, inerente à dignidade da pessoa humana e ao direito à vida.

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  • ESTUDOS DEDIREITO DA ALIMENTAO

    Maria Joo Estorninho (coord.)

  • Organizao de Carla Amado Gomes e Tiago AntunesCom o patrocnio da Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento

  • ESTUDOS DE

    DIREITO DA ALIMENTAO

    Maria Joo Estorninho (coord.)

  • Edio:

    www.icjp.pt

    Setembro de 2013

    ISBN: 978-989-97834-5-4

    Alameda da Universidade

    1649-014 Lisboa

    e-mail: [email protected]

  • Estudos de direito alimentar

    3

    NDICE

    Nota prvia

    Maria Joo Estorninho

    Globalizao e Sociedade de Risco:

    contribuies introdutrias para o estudo da segurana alimentar

    Paulo Rogrio Marques de Carvalho

    Fins (ou FIM) do Estado na Sociedade Contempornea do Sculo XXI

    Ramonilson Alves Gomes

    O Direito Fundamental Alimentao e sua Proteo Jurdico-Internacional

    Osvaldo Carvalho

    Segurana Alimentar: do Direito Europeu ao Direito Nacional

    a transferncia dos Poderes de Deciso

    Sara Santos Costa

    Os Procedimentos Decisrios no Direito Segurana Alimentar

    no Espao Eurocomunitrio

    Maurcio Zanotelli

    Organismos geneticamente modificados: algumas questes jurdicas

    Melissa Morgato

    Informao e organismos geneticamente modificados na Unio Europia:

    consideraes sobre a importncia da rotulagem

    Izabel Cristina da Silva Sampaio

    A responsabilidade civil do produtor de alimentos defeituosos e do Estado, enquanto

    rgo de controle, vigilncia e fiscalizao

    Cesar Augusto Mimoso Ruiz Abreu

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    4

  • Estudos de Direito Alimentar

    5

    NOTA PRVIA

    Em Direito Administrativo da Alimentao (MARIA JOO ESTORNINHO, AAFDL, 2013),

    partiu-se do direito alimentao como direito fundamental, no quadro de um direito a uma

    existncia condigna, inerente dignidade da pessoa humana e ao direito vida e procurou-se

    traar uma introduo ao Direito da Alimentao, comeando-se por caraterizar o Direito Ad-

    ministrativo da Alimentao (Parte I), descrevendo-se depois os mecanismos europeus e inter-

    nacionais de proteo do direito alimentao (Parte II) e, finalmente, percorrendo-se os ins-

    trumentos jurdico-administrativos existentes no nosso ordenamento jurdico para enfrentar

    os (atuais e difceis) desafios no campo dos alimentos e da alimentao.

    Na sociedade de risco em que vivemos, h muito que se reconhece que a segurana

    alimentar e a sade pblica s podem ser eficazmente protegidas atravs da cooperao cien-

    tfica internacional, num quadro de pluralismo legal global. As novas respostas do Direito da

    Alimentao, escala europeia e global, assentam numa teia de entidades de regulao em

    rede e numa lgica preventiva que, partindo de uma avaliao cientfica de riscos, se traduz

    em novas exigncias procedimentais e em novos parmetros decisrios.

    A crise econmica em geral, a diminuio do poder de compra das famlias e o desem-

    prego, em particular, exigem novos instrumentos de garantia do direito alimentao - food

    security -, ao nvel das polticas alimentares, das polticas de educao, dos programas de coo-

    perao e de ajuda alimentar, do combate pobreza e fome.

    Em contexto de crise, exigem-se tambm cautelas especiais do ponto de vista das

    questes de higiene, salubridade e inocuidade dos alimentos. Nesta vertente - food safety -, as

    autoridades competentes devem estar atentas ao cumprimento das normas que garantem a

    segurana dos alimentos, prevenindo os riscos para a sade pblica (bem assim como a fraude

    econmica). Especialmente importantes so os sistemas de rastreabilidade ao longo da cadeia

    alimentar e a efetividade dos sistemas de controlo e de aplicao de sanes em caso de pre-

    varicao.

    Nos ltimos dois anos letivos, numa lgica de investigao aplicada ao ensino, ensai-

    ou-se a autonomizao curricular do estudo do Direito da Alimentao, no quadro das regn-

    cias que tive o gosto de assumir da disciplina de Direito Administrativo, no Curso de Doutora-

    mento em Cincias Jurdico-Polticas da Faculdade de Direito de Lisboa.

    Procurando promover a publicao de obras que espelhem a atualidade das temticas

    escolhidas e a diversidade e a originalidade das abordagens adotadas e possam contribuir para

    a difuso dos resultados da atividade de investigao desenvolvida na Faculdade de Direito de

    Lisboa, este e-book rene alguns dos trabalhos que resultaram dos referidos seminrios do

    Curso de Doutoramento.

    A todos os Doutorandos que participam nesta obra, os meus sinceros parabns!

    Maria Joo Estorninho

    Lisboa, setembro de 2013

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    6

  • Estudos de Direito Alimentar

    7

    GLOBALIZAO E SOCIEDADE DE RISCO : CONTRIBUIES INTRODUTRIAS PARA O ESTUDO

    DA SEGURANA ALIMENTAR

    Paulo Rogrio Marques de Carvalho1

    Nota introdutria

    O estudo tem como objetivo uma investigao panormica sobre globalizao e socie-

    dade de risco, como via introdutria para extrair os primeiros elementos de sistematizao da

    problemtica do risco e segurana alimentar. Com esse objetivo, o artigo quebra alguns requi-

    sitos formais da realizao de um trabalho acadmico. No h portanto que se falar em intro-

    duo e concluso, quando o trabalho j por si s uma introduo do tema objeto desta obra

    coletiva.

    O estudo iniciar com a tentativa no exaustiva de fragmentar trs dimenses indisso-

    civeis da globalizao (econmica, jurdico-poltica e sociocultural) para em seguida propor

    um conceito multidimensal desta, que no se restrinja a uma perspectiva unicamente

    econmica de cunho neoliberal, mas que sobretudo a reconhea enquanto fase histrica e de

    mudana de paradigmas de seus sujeitos, espao e tempo.

    A segunda fase do estudo analisa o risco enquanto objeto isolado de investigao, num

    contexto da globalizao, em que o sujeito contemporneo busca a preveno dos perigos

    como forma de antecipar e gerir riscos. Nesta fase, apresenta-se a perspectiva de sociedade de

    risco numa modernidade reflexiva sistematizada por Ulrich Beck.

    Por fim, o relatrio concludo com uma Introduo, extraindo do panorama da globa-

    lizao e da sociedade de risco os conceitos embrionrios de Segurana Alimentar que sero

    aprofundadas no estudo dos demais pesquisadores desta obra.

    1. As dimenses da globalizao

    O atual panorama sociopoltico internacional encontra-se num momento de mudana do

    paradigma da sociedade nacional para a sociedade global. O conceito de globalizao2 coeou

    1 Advogado, Professor Titular e Coordenador no Curso de Direito da Faculdade 7 de Setembro (Cear-Brasil), Bacha-

    rel magna cum laude pela Universidade Federal do Cear (UFC-Brasil), ps-graduado em Direito do Trabalho (Uni-versidade de Lisboa), Mestre em Direito (UFC-Brasil), Doutorando em Direito na Universidade de Lisboa, com resi-dncia de investigao acadmica na Universit di Roma La Sapienza.

    2 Na dcada de setenta, era comum a utilizao de expresses como internacionalizao e interdependncia mun-dial a caracterizar o processo crescente de unificao econmica mundial na poca. A terminologia empregada quanto ao termo globalizao no unssona entre os estudiosos. Predominam os termos globalizao ou globalismo, de cunho mais saxo, difundido na doutrina norte-americana e inglesa, e mundializao com pre-dominncia na doutrina francesa. Franois Chesnais sustenta que o termo mundializao do capital o mais ade-quado para caracterizar o momento histrico atual (CHESNAIS, Franois. A Mundializao do Capital. So Paulo: Xam, 1996, p 13). H ainda autores que preferem utilizar-se do termo planetarizao . Nesse sentido, cita-se Pierre Levy (LEVY, P. A Conexo Planetria: o mercado, o ciberespao, a conscincia. So Paulo: Editora 34, 2001) e o

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    8

    a ser empregado em meados da dcada de oitenta, como estgio mais maduro e uniforme do

    processo de transnacionalizao.

    A problemtica em uma pretensa sistematizao conceitual de referido fenmeno est

    no seu carter pluridimensional, dotado de inmeros aspectos de fluidez e assimetria. Assim, a

    investigao cientfica do tema impe o desafio epistemolgico em delimitar sistematicamente

    o fenmeno, sem que isso resulte numa falsa imagem de um mundo homogneo e integrado

    em torno dele. Por isso, investigar esse fenmeno torna-se instigante exatamente pela aparen-

    te incoerncia das dimenses da globalizao em seus traos ambivalentes de integrao e

    fragmentao social.

    A ideia de interdependncia entre os diversos povos mundiais est intrnseca evoluo

    histrica. O ponto de partida para anlise do fenmeno do mundo globalizado no est na

    interconexo das economias entre os pases, mas na unidade desses em um s corpo conver-

    gente. Por essa perspectiva histrica, arrisca-se falar numa pr-histria da globalizao.

    Argemiro J. Brum 3 vislumbra um embrio globalizante, h mais de dois mil anos, no do-

    mnio de Roma sobre a maior parte da Europa, da costa africana e do oriente prximo, banha-

    das pelo Mediterrneo. Jos Eduardo Faria4 trata a questo sob outra perspectiva histrica, a

    partir dos fortes impactos no sculo XV, com a expanso ultramarina de Portugal e Espanha 5

    atravs do desenvolvimento da cartografia, o domnio das tcnicas de navegao, a evoluo

    do conhecimento cientfico, as novas formas manufatureiras desenvolvidas no norte da Itlia

    no sculo XVI, a formao de um sistema internacional de pagamentos baseado em letras de

    cmbio, o estabelecimento de rotas globais de comrcio, a explorao sistemtica do ouro e

    da prata nas Amricas e o incio de um amplo e complexo processo de colonizao e expanso

    territorial, com a chegada da civilizao europeia aos extremos da sia e na Amrica e a for-

    mao de estruturas decisrias dotadas de uma capacidade organizacional para controlar o

    meio social e poltico que se realizava a acumulao de capital em escala mundial.

    A intercambiabilidade internacional em si no elemento preponderante a caracterizar

    o fenmeno globalizante. A busca de uma sistematizao histrica para o fenmeno da globa-

    lizao deve partir do resultado da Segunda Guerra Mundial, com o fim da oposio capitalis-

    mo versus socialismo, em que o primeiro se imps como sistema poltico-econmico a recep-

    cionar a nova ordem mundial, provocando o processo de internacionalizao econmica.

    Marc Auge (AUG, M. No-Lugares: Introduo a uma antropologia da supermodernidade, traduo de Maria Lcia Pereira. Campinas: Papirus,1994). Octavio Ianni analisa a profuso de metforas utilizadas pelos diversos autores a caracterizar o termo: primeira revoluo industrial (Alexandre King), terceira onda (Alvin Toffler), sociedade informtica (Adam Schaff), sociedade ambica (Kenichi Ohmae), aldeia global(Mc Luhan), entre outras (IANNI, Octavio. Teorias da Globalizao. 2 ed, ed. Civilizao brasileira, 1996, p.13-44. 3 BRUM, Argemiro J. Desenvolvimento econmico brasileiro.21 ed. Petrpolis-Rj/Iju-RS: Vozes/ Uniju ed, 2000,

    p.72. 4

    FARIA, Jos Eduardo. O direito na economia globalizada.So Paulo, Malheiros,2000, p. 60

    5 Neste sentido, Joo Carlos Loureiro defende a existncia histrica de duas globalizaes: a expanso martima de

    Portugal de Espanha e a atual ( em LOUREIRO, Joo Carlos. Jovens e famlia, Estudos (2004/3), p. 489-537).

    Defendendo a existncia de trs globalizaes, NUNES, Antnio Avels. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Lis-

    boa: Ed. Caminho, 2003, p. 77-78

  • Estudos de Direito Alimentar

    9

    A partir da dcada de setenta, o mundo sofre pontuais mudanas comerciais, financei-

    ras, tecnolgicas, resultantes da crise do padro monetrio mundial e dos choques de petr-

    leo, entre outros fatores, que resultaram em uma nova arquitetura institucional6 para essa

    economia emergente, somados a uma mutao sociolgica de redimensionamento do espao

    e do tempo.

    Para melhor entender o processo de globalizao, necessria uma breve anlise sobre

    as mltiplas dimenses desse processo. Nesse sentido, a globalizao ser analisada por trs

    dimenses: econmico-financeira, jurdico-poltica e sociocultural.7

    1.1- Dimenso econmico-financeira.

    Aps a Segunda Guerra Mundial, o mundo comea um processo intenso e generalizado

    de internacionalizao do capital. Octvio Ianni8 iguala a histria da globalizao histria do

    capitalismo. Segundo o socilogo, a globalizao , portanto, fruto da lgica do sistema capita-

    lista e oriunda de trs pocas histricas. Em uma primeira fase, h a mercantilizao das foras

    produtivas com a evoluo de um sistema local para um modo de produo capitalista nacio-

    nal. Na segunda fase, o sistema nacional se internacionaliza, ou seja, ultrapassa fronteiras,

    instituindo a criao de sistemas mundiais. Numa terceira fase, surge o capitalismo em um

    perfil global, em que se redimensiona o papel dos Estados-Nao e potencializam-se centros

    de deciso dispersos em empresas e conglomerados.

    Com o fim da Segunda Guerra, os Estados Unidos descumpre unilateralmente o acordo

    de Bretton Woods (1971-1973), quebrando a paridade do ouro e do dlar, que passa a ser

    utilizado como moeda-reserva no padro monetrio internacional. Assim, desordena o sistema

    de regulao atravs de cmbios flutuantes9 e gera abertura dos mercados internos das eco-

    nomias desenvolvidas aos produtos industrializados do terceiro mundo. Surge uma nova geo-

    6Juan Tugores Ques caracteriza a nova ordem econmica ps-guerra atravs de trs instituies internacionais,

    frutos de novo panorama: num plano financeiro, o Fundo Monetrio Internacional (FMI); no plano desenvolvimen-tista, o Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD); e no plano mercantil, o Acordo Geral de Tarifas e Comrcio (GATT), gnese da Organizao Mundial do Comrcio (OMC).TUGORES QUES, Juan. Economia internacional e integracin econmica. 2 ed.Madrid: Mc Graw-Hill,1995.p. 64. 7 A diviso proposta apenas para fins metodolgicos. possvel verificar mltiplas dimenses do fenmeno. Viera

    Liszt pontua cinco dimenses: econmica, poltica, social, ambiental e cultural. (VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globaliza-o.4 ed.Rio de Janeiro: Record, 2000, p.81-100) EDUARDO VIOLA reconhece treze dimenses: militar, poltica, econmico-produtiva, financeira, comunicacional cultural, religiosa, interpessoal-afetiva, cientfico-tecnolgica, populacional-migratria, esportiva, ecolgico-ambiental, epidemiolgica, criminal-policial e poltica. (VIOLA, Eduar-do.A multidimensionalidade da globalizao, as foras sociais transnacionais e seu impacto na poltica ambiental do Brasil In: FERREIRA, L. e VIOLA.Incertezas de sustentabilidade na Globalizao.Campinas: ed da Unicamp, 1996.p.15-91) 8

    IANNI, Octvio. A sociedade global. 5 ed.Rio de janeiro: civilizao brasileira, 1997. 9 Jos Eduardo Faria pontua tambm como os choques do petrleo de 1973/1974 e 1978/1979. Resultando, pela

    acumulao de seus efeitos, num aumento de cinco vezes o valor real do barril, eles desnivelaram subitamente os preos relativos dos bens e servios; provocaram uma crise generalizada de lucratividade e diminuram drasticamente os nveis de acumulao; acentuaram os desequilbrios comercias; alteraram as direes dos fluxos do sistema financeiro; potencializaram a instabilidade das taxas de cmbio e de juros; levaram ao descontrole repentino dos balanos de pagamentos; agravaram ao descontrole repentino dos balanos de pagamento; agravaram ainda mais o j expressivo endividamento externo dos pases em desenvolvimento; provocaram aumento da inflao nas economias industrializadas; frearam o ritmo de crescimento dos pases desenvolvidos; e, por fim, acabaram paralisando temporariamente os mercados FARIA, Jos Eduardo. ob cit.p 63-64.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    10

    grafia econmica10, impulsionada pelas polticas de liberalizao e privatizao, aplicadas pelos

    governos de Margareth Thatcher (1979) e Ronald Reagan (1982), com o enfraquecimento do

    modelo social-democrata do Welfare State11 e surgimento de um modelo ps-keynesiano neo-

    liberal.

    Na segunda metade do sculo XX, mostrava-se em evidncia os efeitos da evoluo tc-

    nico-cientfica, principalmente nas tecnologias ligadas a telecomunicaes e transportes que

    resultaram no surgimento de uma nova era da informao12. As relaes econmicas refletem

    a evoluo crescente da tecnologia, consistente no processo de produo industrial para com-

    petio de um mercado de ordem transnacional com consumidores de uma sociedade infor-

    matizada 13 libertados da especializao unilateral de uma produo local com pleno acesso a

    produtos globais, gerando o que se chama de economia-mundo14.

    Os conglomerados empresariais passaram a lidar com a inadequao das economias na-

    cionais para compensar as modificaes do ciclo de rotao de capital com a enorme demanda

    que o novo delineamento de fluxo de informaes gerou. Assim, a produo fragmentada

    geograficamente para nvel mundial, recebendo assim os benefcios de cada mercado local,

    que passou a ser acessvel por esse sistema evoludo de comunicao. A ideia da fbrica glo-

    bal ou do shopping center global uma metfora comumente utilizada para se referir

    generalizao do processo de produo decorrente da internacionalizao do capital e a nova

    diviso internacional do trabalho compatvel com essa transnacionalizao das atividades in-

    dustriais.

    A chamada globalizao financeira forma um complexo indissocivel com a globalizao

    econmica, visto que o setor financeiro teve como gnese o prprio setor produtivo. Assim,

    esse vis da globalizao evidencia a revoluo financeira global 15, no papel de finanas

    enquanto indstria autnoma, ou seja, como uma atividade competitiva que no se limita s

    fronteiras nacionais, estimulando no s os crescentes fenmenos de operaes internacionais

    de aquisies e fuses como tambm a desintermediao financeira, que permitiu a realizao

    10

    Eduardo Viola sistematiza que a globalizao econmico-produtiva diferencia os pases em sete tipos: Desenvolvidos (com estrutura produtiva, alta atratividade de corporaes transnacionais e capital financeiro e governabilidade altas, como pases da OCDE, Coria do Sul, Taiwan, Singapura, Hong Kong e Israel); Superpotncias ( EUA, alm das caracterstica acima, com grande poderio militar); Continentais (territrio e populao grande, renda per capta mdia, dividindo os com grande poderio militar, como a Rssia e China, e os com mdio poderio militar, como o Brasil); Emergentes (alto dinamismo econmico,renda per capta mdia e alta atratividade de corporaes transnacionais, como Tailndia, Indonsia, Filipinas, Brunei, frica dos Sul, Mxico,Chile, Argentina); Estagnados (baixo dinamismo econmico, renda per capta mdia ou baixa e pouca atratividade de corporaes transnacionais e capital financeiro, como Iugoslvia, Ucrnia, Armnia, Lbano e Egito); Extremamente pobres ( nenhum dinamismo econmico, baixa renda per capta, nenhuma atratividade de corporaes transnacionais e capital financeiro, como grande parte da frica, Bangladesh e Haiti) e, por fim, os excludos politicamente (pases em situao de guerra civil e/ou economia autrquica e/ou fundamentalismo religioso e/ou estados terroristas, como a Gergia, Arglia, Iraque, Ira, Alfagenisto, Coria do Norte).VIOLA, Eduardo.ob cit., p. 19-20. 11 Neste sentido, CHESNAIS, Franois.ob cit., p.32-34. 12

    Sobre o assunto, CASTELLS, Manuel. O fim do Milnio-Vol III A Era da informao: Economia, Sociedade e Cultu-ra. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007. 13

    SCHAFF, Adam. A Sociedade Informtica: as consequncias sociais da segunda revoluo industrial. 3a. ed. So Paulo: Editora da UNESP, p.71, 1992. 14

    FARIAS, Jos Eduard.ob cit. p. 87.Jos Eduardo Faria informa em nota de rodap que originalmente o termo eco-nomia mundo de Fernand Braudel, sendo difundido por Wallerstein com um carter mais sociolgico, 2000. 15

    Expresso utilizada por Giovanni Arrigui, baseado nos entendimentos de Robert Gilpin e Andrew Water em ARRI-GUI, Giovanni. O longo sculo XX. Rio de Janeiro: contraponto editora Ltda ,So Paulo: editora Unesp,p 309, 1996.

  • Estudos de Direito Alimentar

    11

    de operaes diretamente pelos grupos industriais, atravs de ttulos inseridos nos mercados

    financeiros internacionais.

    Inobstante tenha sido evidenciado um conjunto de crises econmico- financeiras, no

    se pode afirmar que esse um fenmeno tpico da globalizao. Marx16 foi quem primeiro

    defendeu o conceito sistmico de crise, de modo que essa existiria quando uma estrutura so-

    cial no apresenta suficientes possibilidades de resoluo de um problema para manuteno

    da existncia de um sistema. Para Marx, as premissas capitalistas de concorrncia e anarquia

    de produo conduziria o capitalismo a uma crise permanente.

    O estudo das crises objeto de anlise clssico nas cincias poltico-econmicas, que

    acolheram um arcabouo de teorias que buscaram dogmatizar os fatores que causam uma

    crise econmica. As primeiras tentativas de justificativa de uma crise econmica eram oriun-

    das de uma cultura fisiocrata que as fundamentava a partir de fenmenos da natureza que,

    embora pudessem justificar contextos histricos e espaciais especficos, no refletiam os ml-

    tiplos fatores que geram as crises econmicas que, embora dotadas de uma regularidade his-

    trica, acontecem em intervalos de tempo imprecisos.

    O economista sovitico Nicolai Kondratiev assinalava que as crises obedeciam ciclos in-

    tercalados com grandes depresses. Mantendo os estudos de Kondratiev, o austraco Joseph

    Schumpeter17 associava esses ciclos s inovaes tecnolgicas. A doutrina de Jean-Baptiste

    Say18 e sua lei de mercado (loi des dbouches) propugna que a oferta cria a procura, na sua

    tentativa de uma teoria que negue uma super-produo geral dos produtos, contestada histo-

    ricamente com a Crise de 29. As teorias do sub-consumo de Sismondi19, Rodbertus20 e Marx21

    explicavam a crise sob o foco da ausncia de consumo, fruto da pobreza da classe operria.

    Observa-se que, assim como as teorias da super-produo, que enxergavam nesta a causa da

    crise econmica, os tericos do sub-consumo enfrentam muito mais o efeito que uma causa da

    crise. Diante da relao embrionria entre consumo e produo como reflexos de uma mesma

    dinmica, Charles Gide22, Edwin Seligman23 e Bouniatian24 enquadram-se no conjunto de teri-

    cos da supercapitalizao, defendendo a dificuldade de valorizao do mercado, pelo capital

    acumulado.

    16

    MARX, Karl. O Capital. Traduo de Reginaldo Santana. 3 Ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1980.

    17 SCHUMPETER, Joseph. Ciclos econmicos, analisis terico, histrico y estadstico del processo capitalista. Zara-

    gosa: Editorial Universidade de Zaragoza, 2003.

    18 SAY, Jean Baptiste. Cours complet dconomie politique pratique. Paris: Chamerot, 1828-1829, 6 v.

    19 SISMONDI, Sismondi. tudes sur leconomie politique.Bruxelles: Socit typographique, 1837.

    20 RODBERTUS,Karl. Le capital, Paris: Giard eT Brire, 1904.

    21 MARX, Karl. ob.cit, 1980.

    22 GIDE, Charles. Cours deconomie politique.10ed. Paris: Recueil Sirey, 1930.

    23 SELIGMAN, Edwin. Prncipes dconomique.Paris: Giard, 1927.

    24 BOUNIATIAN, Mntor. Les crisis conomiques.Paris: Cercle de La librairie, 1930.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    12

    De fato, as crises econmicas so dotadas de historicidade, podendo se verificar a per-

    manncia delas no decorrer da histria25, visto que so inerentes ao sistema capitalista. pos-

    svel estabelecer uma evoluo das crises financeiras26 a partir do fim do sculo XIX atravs de

    quatro grandes perodos: i) Fim do sculo XIX at I Guerra Mundial: o perfil da crise do padro-

    ouro, caracterizado por cmbios fixos e livre circulao internacional de capitais; ii) Perodo

    entre as duas guerras mundiais: tentativa de retorno aos cmbios fixos e liberalizao de capi-

    tais que culminou com a grande Depresso dos anos 1930, a maior de todas as crises; iii) O

    perodo de Bretton Woods: caracterizado por cmbios fixos ajustveis e restrio livre circu-

    lao internacional de capitais; iiii) Perodo Ps-1973: caracterizado por cmbios flutuantes e

    progressiva liberalizao da circulao internacional de capitais. Com exceo da particularida-

    de da crise de 1930, possvel extrair alguns elementos comuns27 a elas: a) a liberalizao do

    poder poltico de algumas prticas do sistema bancrio, com o objetivo de contribuio para

    polticas sociais; b) a criao de bolhas de crdito; c) polticas monetrias ou oramentais ex-

    pansionistas ajudando a alimentar a bolha

    Em tempos da crise econmica atual, na busca de identificao dos elementos caracte-

    rizadores da sociedade contempornea, assim como a sociedade do risco de Ulrich Beck28, a

    sociedade precria de Castel29, Paugam30 e Sennet31 e a modernidade lquida de Bau-

    man32, Antnio Casimiro Ferreira constri a perspectiva de uma sociedade da austeridade33,

    defendendo a superao de uma fase histrica ps-consenso de Washington, reflexos da crise

    do Estado-providncia (chamada pelo autor de ps-Estado-providncia), caracterizada pela

    desestatizao, mercantilizao do Estado com indexao da lgica do social lgica mercantil

    e recontratualizao da cidadania.

    A crise financeira faz surgir um Estado de austeridade com reconfigurao do Estado e

    da separao de poderes, superao de polticas pblicas e gestacionrias pela valorizao de

    PECs e Memorandos, indexao do econmico e do social lgica da austeridade. Para o au-

    tor, o atual significado de austeridade um modelo poltico econmico punitivo em relao

    aos indivduos, orientado pela crena de que os excessos do passado devem ser reparados

    25

    Sucessivamente, verificaram-se crises econmicas em 1907, 1914, 1921, 1929, 1939, 1949,

    1960,1971,1979,1984,1990,1993,1998, 2003 e 2008 enumeradas por MARTNEZ, Soares. Economia Poltica, 11

    ed. Coimbra:Almedina,2010, p. 818-819.

    26 AMARAL, Luciano. Crises financeiras:histria e actualidades. Revista de Relaes Internacionais Vol 23, Setembro:

    2009, p. 119- 140.

    27 Neste sentido, AMARAL, Luciano. Ob. cit. p, 119-140.

    28 BECK, Ulrich. The risk society: toward a new modernity, Londres: Sage, 1992.

    29 CASTEL, Robert , Linsecurit sociale Quest qutre protg?. ditions du Seuil et La Republique ds Ides, 2003.

    30PAUGAM, Serge, Repenser la solidarit. Lpport des sciences sociales. Paris, Press Universitaires de France, 2007.

    31 SENNET, Richard , A corroso do carcter: As consequncias pessoais do trabalho no novo capitalismo. Editora

    Terramar, 2001.

    32 BAUMAN, Zygmmunt (2001). Modernidade lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

    33 FERREIRA, Antnio Casimiro. Sociedade da austeridade e direito do trabalho de exceo. Porto: Vida Econmica,

    2012.

  • Estudos de Direito Alimentar

    13

    pelo sacrifcio presente e futuro, enquanto procede implementao de um arrojado projeto

    de eroso dos direitos sociais e de liberalizao econmica da sociedade34.

    O fato da ideia da globalizao ter tido origem histrica na fase de internacionalizao

    do capitalismo resultou em uma concepo de grande parte de doutrinadores limitao do

    mbito conceitual do fenmeno dimenso econmica deste. Paul Hirst35 defende a inexistn-

    cia de um cenrio com uma nova economia global recm-aparecida e virtualmente ingovern-

    vel e a manuteno de uma economia dominada pelos trs maiores blocos de riqueza formada

    pela Europa, Japo e Amrica do Norte. O economista ingls alega ainda que os investimentos

    estrangeiros se concentram ou na mencionada trade ou em alguns pases em desenvolvimen-

    to e em regies de grandes pases, como na costa da China. Por fim, defende que no h em-

    presas transnacionais, mas sim multinacionais fortemente vinculadas ao pas sede. Nesse sen-

    tido, o conceito de globalizao em sua dimenso econmica uma mera criao ideolgica

    para legitimar a atual ordem internacional.

    2.2 - Dimenso jurdico-poltica.

    A partir do incio da dcada de 80, diante da conjuntura antes contextualizada, verificou-

    se uma metamorfose no sistema de ordenao da sociedade, ou seja, o panorama poltico

    mundial remodela-se aos ditames da dimenso econmico-financeira da Globalizao, num

    entrelaamento.

    A globalizao poltica , portanto, fruto da crise atual da concepo do Estado en-

    quanto mecanismo de regulao social. Andr-Nel Roth analisa as quatro rupturas da atuali-

    dade no tocante definio de polticas pblicas estatais: a capacidade estatal de garantir a

    segurana dos cidados e a integridade territorial; a mundializao da economia; a internacio-

    nalizao do Estado atravs das organizaes internacionais e o direito internacional. Segundo

    Roth, todas essas rupturas tm como consequncia uma perda da soberania e da autonomia

    dos Estados nacionais na formulao de polticas internas. No plano externo, sua ao no

    permite resolver a crise como impotente.36

    Pode-se falar em uma internacionalizao da poltica interna e em uma internaliza-

    o da poltica internacional. Nesse sentido, as entidades transnacionais, ou organizaes

    internacionais, tornam-se o maior reflexo institucional desta dimenso da globalizao, com

    um destaque37 para o papel desempenhado pela Organizao das Naes Unidas, a partir de

    34

    FERREIRA, Antnio Casimiro. Ob. Cit. p, 13.

    35 HIRST, Paul. Globalizao: Mito ou realidade? In: FIORI, Jos Lus.Globalizao: O Fato e o Mito.Rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p.102-103. 36 ROTH, Andr-Nel. O Direito em Crise: fim do Estado moderno ? In FARIA, Jos Eduardo.Direito e Globalizao econmica:implicaes e perspectivas.So Paulo, Malheiros, 1996, p. 18-19. 37 O movimento geracional de organizaes sociais foi paulatino na proporo da necessidade de criar dilogos de um denominador comum no plano internacional decorrente de sensibilidades diversas. Assim, o Sculo XX registra o nascimento da Unio Internacional de Telecomunicaes (UIT), em 1932, Organizao Meteorolgica Mundial (OMM), em 1941, a Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura (FAO ou OAA),em 1943, Fundo Monetrio Internacional (FMI), em 1944, Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura (UNES-CO), em 1945, Organizao Internacional do Trabalho (OIT), tornando-se organismo da ONU em 1946, Organizao Mundial de Sade (OMS) e o Grupo do Banco Mundial, formado pelo Banco Internacional para Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD), Associao Internacional de Desenvolvimento (AID) e Sociedade Financeira Internacional (SFI), todos em 1946, Organizao da Aviao Civil (OACI), em 1947, Unio Postal Universal (UPU),em 1948, Agncia

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    14

    1945, criando pautas de polticas universais a serem internalizados pelos direitos nacionais,

    refletindo a criao de um espao internacional interessado conjuntamente na proteo dos

    Direitos Humanos, principalmente com a noo de responsabilidade compartilhada entre insti-

    tuies pblicas e privadas e o surgimento de novos sujeitos do Direito Internacional alm dos

    Estados, como as organizaes no-governamentais de mbito transnacional. A concepo

    fundamental dos Direitos Humanos , por conseguinte, oriunda de um consenso internacional

    do que seria uma conscincia universal a todos os povos, a partir de um princpio de solidarie-

    dade tica.

    A globalizao econmico-financeira gerou um progressivo processo de desterritorializa-

    o do planeta, ou seja, um desestmulo a qualquer entrave fronteirio livre circulao do

    capital. Em um outro plano, o Estado ainda se encontra preso defesa de seu territrio e naci-

    onalidade, reflexo de um nacionalismo atrelado aos valores do Estado-nao. Dessa maneira,

    surgem dois movimentos convergentes: a mundializao do capital e a regionalizao dos pa-

    ses, no intuito de conciliar seus interesses com o novo panorama da economia mundial.

    O Estado passa a ter exigncias polticas e econmicas que ultrapassam suas fronteiras

    geogrficas e jurdicas, gerando uma constitucionalizao do Direito Internacional e uma inter-

    nacionalizao do Direito Constitucional. O transnacionalismo, expresso que surge originari-

    amente com a proliferao de instituies que legitimam consensos internacionais, toma outra

    dimenso com os progressivos processos de integrao regional38, como forma de alinhar a

    capacidade econmica e poltica dos Estados.

    Gottfried Haberler39 analisa a evoluo do processo integrativo mundial atravs das on-

    das de integrao. A gnese desse processo (primeira onda) remonta Primeira Revoluo

    Industrial na Inglaterra e ao final do sculo XIX na Revoluo jacobina Francesa, seguidas pelo

    zollverein alemo40 e o Rissorgimento italiano. Nessa fase, a Inglaterra adotou uma poltica

    baseada na diminuio das barreiras de comrcio, sendo contrrio poltica alem de expan-

    Internacional de Energia Atmica (AIEA), em 1954, a Organizao Intergovernamental Martima Consultiva (IMCO), em 1958, e a Organizao das Naes Unidas para Desenvolvimento Industrial (UNIDO) em 1965. Vale mencionar, ainda nesse contexto, o Acordo Geral de Tarifas e Comrcio (GAAT) que, inobstante no se tratar de uma organiza-o internacional possui inmeros vnculos com a ONU.

    38 A dcada de oitenta, com mais preciso, foi conhecida pela concretizao desses processos de integrao em todo o mundo. Com o Ato nico Europeu de 1986, surgia a Comunidade Econmica Europia com pretenses a concretizar-se como mercado comum em 1993. Surgia ainda o NAFTA (North American Free Trade Agreement ) , o Acordo de Livre Comrcio da Amrica do Norte, formado pelos estados Unidos, Canad e Mxico com a finalidade de remover as restries impostas ao comrcio de bens e servios, estimulando o investimento nas reas de tecno-logia e criando mecanismo de proteo ao direito de propriedade intelectual. Tambm de considervel repercusso tem-se a formao do bloco dos Tigres Asiticos, formado por Coria do Sul, Formosa (Taiwan), Hong Kong e Singa-pura com posterior integrao da Malsia, Tailndia e Indonsia, que conquistou aos poucos os mercados consumi-dores, ocupando inclusive hoje grande destaque no ranking mundial. Vale mencionar tambm que, em 1983, com o encontro de Aruska, foi reativada a Comunidade Econmica da frica Oriental, com a participao do Qunia, Tan-znia e Uganda. Ainda na frica, grande importncia teve a criao da Organizao Africana e Malagashe de Coope-rao Econmica, com os blocos da Unio Alfandegria Austral Africana, formada por frica do Sul, Lesotho, Botsu-ana, Suazilndia e Nambia e a Comunidade de Desenvolvimento da frica Austral , com a frica do Sul, Angola, Botsuana, Lesotho, Mauricio, Malawi, Moambique, Nambia, Suazilndia, Tanznia, Zmbia e Zimbabu. Igualmen-te se menciona a Comunidade do Caribe CARICOM, surgida em 1973, com o Tratado de Chaguaramas, que, aos poucos, passou a desenvolver parceiras com o NAFTA e a Unio Europia. O Mercado Comum Centro americano, por sua vez formado por Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicargua, na dcada de 80, recebeu gran-des incentivos da ONU, com o Plano de Cooperao Econmica para a Amrica Central.

    39 HABERLER, Gottfried (1996) Integration and Growth of the World Economy in Historical Perspective. In: Jen-sen,FB & Walter, Ingo(eds).Reading in international Economic Relations, New Tork, The Ronal Press Co. 40 Unio de 36 Estados alemes, liderados pela Prssia, na construo de uma Unio Aduaneia.

  • Estudos de Direito Alimentar

    15

    so da unio aduaneira. A segunda onda data da Segunda Revoluo Industrial, em que a

    Inglaterra e os Estados Unidos passam a implementar uma poltica protecionista. A terceira

    onda resulta do momento histrico de reconstruo mundial, aps a Segunda Guerra, com

    nfase nas instituies de Bretton Woods. Segundo o professor belga, o mundo encontra-se

    em sua quarta onda da integrao caracterizado pela revoluo tecnolgica. Adriano Morei-

    ra41 pontua dois objetivos dessa integrao: otimizar a capacidade econmica e aumentar o

    potencial poltico na balana internacional dos poderes. Assim, utilizando a expresso de Karl

    Deutsh, ao propor pr-condies de viabilizao de um processo integrativo, o autor refere-se

    a um paradigma sociocultural da integrao como uma assimilao social dos povos envol-

    vidos, mtuo respeito pelos sistemas culturais, objectivos internacionais coincidentes e bom

    apoio do poder poltico pela comunidade de cada unidade poltica 42.

    Inobstante tenha evidenciado-se uma progressiva redefinio dos fins do Estado, obser-

    vou-se tambm a redefinio dos fins da atividade administrativa. Sabe-se que a Revoluo

    Francesa, como resposta crise do absolutismo, resultou em uma concepo de um Estado

    que deveria intervir minimamente na esfera social. Trata-se do chamado Estado Liberal, que

    surge com as revolues burguesas dos sculos XVII e XIX, fortemente limitado pelo princpio

    da legalidade.

    Com o advento da Revoluo Industrial, a partir das Constituies do Mxico (1917) e de

    Weimar (1919), o Estado abandona seu papel de um Estado-aparato na sociedade e assume

    uma postura ativa, como instrumento de modificao social e agente de desenvolvimento e

    justia social. Os ditames da dimenso econmico-financeiro da globalizao econmica, fragi-

    liza alguns pilares do estado-nao. Se a tica do Estado encontrava-se sob a doutrina keynesi-

    ana do bem-estar social, agora o Estado curva-se s exigncias da economia mundial. A prpria

    internacionalizao do capital, com a formao dos j analisados espaos globais de produo,

    diminui por si s o potencial estatal de controle da economia, atravs de uma poltica monet-

    ria ou fiscal. A viso neoliberal redimensiona o contexto de Estado e, por conseguinte, a pr-

    pria dogmtica do Direito. Diante desse dinamismo ps-moderno, na busca por resultados que

    satisfaam as conflitantes carncias sociais e de mercado, o Direito reflete um fenmeno de

    publicizao do Direito privado e privatizao do Direito Pblico.

    O Estado absorve a busca pela eficincia to caracterstica das relaes privadas e, por

    conseguinte, redimensiona-se ao business style do setor privado, criando uma tendncia cha-

    mada de nova administrao pblica, caracterizada por uma pretensa evoluo de um Es-

    tado-coordenador, com planificao indicativa, ao Estado-gestor, com planificao impera-

    tiva. Assim, pretende-se incluir no mbito dogmtico da administrao pblica princpios da

    administrao privada, querendo introduzir sistemtica poltica das naes o pensamento

    porteriano, que tornou-se comum no comeo dos anos 80, utilizando-se de princpios do mar-

    keting e da administrao e adequando-os poltica econmica das naes43.

    41 MOREIRA, Adriano.(1999).Teoria das Relaes Internacionais.3 ed.Coimbra Almedina,1999,p. 492-493. 42 MOREIRA, Adriano.ob cit. p.494. 43

    Michael Porter tem sua teoria baseada na casustica, utilizando como referncia empresas - na sua maioria, ame-ricanas- e valendo-se do pensamento indutivo para aplicao na dinmica das naes. Omar Aktouf critica o pen-samento porteriano principalmente por utilizar-se do microeconmico para calcar o macroeconmico. Ademais, as realidades empresariais e estatais so completamente distintas, porque a primeira se baseia na lgica do balano e a segunda na lgica oramentria. A viso porteriana, portanto, a da economia como deseja os dominantes. Essa busca da eficincia e do resultado o que mais caracteriza o pensamento da modernidade. Normalmente, a busca

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    16

    1.3 - Dimenso sociocultural

    J afirmava Octavio Ianni, o planeta Terra o territrio da humanidade44. A globaliza-

    o atinge o modo de pensar e agir da sociedade, que absorve um padro de conduta domi-

    nante no imaginrio coletivo, assim nasce o chamado bazar cultural mundializado 45. O neo-

    liberalismo incorporado no subconsciente do homem contemporneo, por isso Fredic Ja-

    menson trata-o como cultura do dinheiro, em que o cultural se dissolve no econmico e o

    econmico no cultural46. O desenvolvimento da tecnologia resultou na mundializao dos

    meios de comunicao e o capitalismo organizou-se para produo de uma mercadoria padro-

    nizada, hbil a ser fruda por qualquer cidado do geomorfismo da aldeia global de Mc

    Luhan47.

    A dimenso sociocultural da globalizao manifesta-se nos mais diversos setores48.

    Num primeiro aspecto, o que se chama de globalizao cultural, tornou-se originalmente a

    predominncia de uma globalizao ocidental ou, mais especificadamente, de um centro difu-

    sor norte-americano projetado na cultura mundial com ares de uma nova modernidade cultu-

    ral. O relatrio de Desenvolvimento Humano de 200449 preocupou-se em investigar caminhos

    para garantia de uma liberdade cultural num mundo diversificado, atravs de uma sociedade

    inclusiva e diversificada culturalmente, ou seja, a tutela da livre escolha pessoal pelo tipo de

    vida que escolheram viver. Hoje, j possvel tambm perceber movimentos hegemnicos e

    contra-hegemnicos no processo de globalizao, com manifestaes de um localismo globali-

    zado e um globalismo localizado50.

    A unidade comunicativa da era da informao, com a unio da sociedade, economia e

    cultura, pela tecnologia, redefine as relaes produtivas de poder e experincia, de modo que

    as escolhas contemporneas acabam por ser direcionadas por quem detm os lucros da eco-

    nomia informacional.

    inconstante da eficincia era caracterstica nsita dinmica do setor privado. O setor pblico era qualificado pelo teor da burocracia, o que, com o tempo, resultou em uma acepo pejorativa a esse termo. AKTOUF, Omar. Ps-globalizao, administrao e racionalidade econmica. So Paulo: ed. Atlas, 2004. 44

    IANNI, Octavio. Globalizao e Diversidade In: FERREIRA E VIOLA, FERREIRA, L. e VIOLA.Incertezas de sustentabili-dade na Globalizao.Campinas: ed da Unicamp, 1996.p. 93. 45

    Expresso oriunda do global shopping mall de R. Barnet e J. Cavannagh utilizada por FRANOIS CHESNAIS ( CHESNAIS, Franois.ob cit. p. 40). 46

    JAMESON, Fredric. A Cultura do Dinheiro: ensaios sobre a globalizao. 2 ed. Petrpolis RJ:Vozes, 2001. 47

    Clssica expresso de Mc Luhan na criao de uma teoria de cultura mundial, entendida como cultura de massa, mercado de bens culturais, universo de signos e smbolos, linguagens e significados que povoam o modo pelo qual uns e outros situam-se no mundo, ou pensam,imagina, sentem e agem. In IANNI, Octavio(1996).ob cit. p. 93. 48

    Eduardo Viola, por exemplo, sistematiza a autonomia de uma dimenso comunicacional-cultural, religiosa, cient-fico-tcnica, epistemolgica e populacional-migratria, esportiva e ainda uma dimenso interpessoal-afetiva da globalizao, caracterizada como expanso das novas formas de relaes profissionais, de amizades e amorosa, caracterizadas pela autoreflexividade, interculturalidade, transnacionalidade, multilingismo, tendncia androge-nia, mobilidade geogrfica, alta contratualidade e desenvolvimento das sete dimenses da inteligncia in VIOLA, Eduardo.ob cit. p 21. 49

    ONU. Relatrio para o desenvolvimento humano- diversidade cultural num mundo diversificado.Programa das Naes unidas para o desenvolvimento ( PNUD).Net.Lisboa,2004.Disponvel em:http://www.pnud.org.br/rdh..Acesso em 20 de maio de 2012. 50

    Neste sentido, SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalizao e as Cincias Sociais, p. 72 e ss.

  • Estudos de Direito Alimentar

    17

    A dimenso sociocultural da globalizao estampa um processo contemporneo de li-

    quidez do tempo51, redimensionamento do espao52, redistribuio social do sexo53 e a trans-

    mutao de um imaginrio subjetivo54 baseado na trade da razo, do trabalho e do futuro

    para um hedonismo contemporneo individualista baseado na emoo, no cio e no presen-

    te.

    A investigao da dimenso sociocultural evidencia a contradio do processo de globa-

    lizao econmica que, enquanto globaliza, exclui55, ou melhor, gera o binmio universalizao

    versus marginalizao, de modo que o crescimento econmico no foi diretamente proporcio-

    nal ao acesso a novos padres de consumo. Assim, a globalizao econmica trouxe um com-

    plexo processo de dumping social, com ameaas cotidianas proteo social e ao direito do

    trabalho enquanto patrimnio fundamental historicamente conquistado.

    De fato, a desigualdade e a excluso so aspectos dominantes na globalizao e cada

    vez mais v-se aumentar a separao entre ricos e pobres. Essa foi inclusive uma das conclu-

    ses do relatrio produzido pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    (PNUD)56, em 12 de julho de 1999. Segundo o relatrio, os mercados so protagonistas do

    processo e assim os benefcios e as oportunidades no tm sido divididos igualmente, de mo-

    do que o mercado somente torna cidados mundiais aqueles que podem pagar por isso. A

    metodologia do Relatrio d-se atravs do ndice de Desenvolvimento Humano, idealizado

    pelo economista Amartua Sem. Ainda segundo o relatrio, o nmero de pessoas que vive com

    U$ 1 ou menos cresceu no mundo, de modo que a riqueza est sendo criada, mas no vem

    sendo distribuda. A quinta parte da populao do mundo que vive nos pases de maior renda

    detm hoje 86% do PIB mundial, 82% dos mercados de exportao, 68% do investimento dire-

    51

    BAUMAN, Zygmmunt. Modernidade lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

    52 AUG, Marc. No-Lugares: Introduo a uma antropologia da supermodernidade, traduo de Maria Lcia Perei-

    ra. Campinas: Papirus, 1994.

    53 BAUMAN, Zygmmunt. O mal-estar da Ps-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,1998.

    54 MAFFESOLI, Michel. A Contemplao do mundo. Porto Alegre, Artes e Ofcios,1995.

    55 Gerald B. Rogers, diretor da equipe tcnica multidisciplinar da OIT, analisa o conceito de excluso sob o prisma de trs sociedades: Solidariedade: o modelo de sociedade no qual a integrao a norma e a excluso a ruptura do vnculo entre o indivduo e a sociedade. Pressupe um ncleo de valores compartilhados, uma ordem social que o ponto de referncia universal, uma estrutura institucional que se organiza em torno da integrao. Neste mode-lo, o conceito de excluso claro e, em sociedades nas quais a ideologia social predominante desse tipo (por exemplo, Frana), o vocabulrio da excluso parece particularmente natural para caracterizar uma participao social inadequada. Especializao: no outro extremo, encontra-se a sociedade que consiste unicamente na soma dos interesses e comportamentos individuais. Neste modelo, as excluses so de responsabilidade dos excludos ou resultado de falhas nos mercados ou em outras instituies sociais. Os indivduos decidem sua participao nas variadas dimenses da sociedade e, ao mesmo tempo, define as dimenses em que no participam, se auto-excluindo. Neste modelo, por conseguinte, o conceito de excluso muito mais fraco que no modelo solidrio. Monoplio: um terceiro paradigma considera que a sociedade est segmentada em uma hierarquia definida pelo controle dos recursos econmicos e sociais. Os includos em cada segmento social protegem seus territrios contra os excludos, levantando barreiras e restringindo acessos, mas promovem a solidariedade dentro do grupo. O resultado uma cascata de excluses e incluses, que tem contedo distinto em diferentes nveis da sociedade. Em RODGERS, Gerald. B. Globalizao e excluso: quo da Amrica latina? In: VIGEVANI, Tullo e Lorenzetti. Globalizao e integrao regional: atitudes sindicais e impactos sociais, So Paulo:Ltr, 1998, p. 116-117. 56

    ONU. Relatrio para o desenvolvimento humano- Globalizao com uma face humana.Programa das Naes unidas para o desenvolvimento (PNUD).Net.Lisboa,1999.Disponvel em:http://www.pnud.org.br/rdh..Acesso em 20 de maio de 2012.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    18

    to e 74% das linhas telefnicas. Por outro lado, a quinta parte que vive nos pases mais pobres

    detm apenas 1% de cada um desses indicadores.

    Dessa maneira, a globalizao social torna-se muito mais uma diretriz do fenmeno do

    que propriamente uma decorrncia, visto que nem todos so considerados cidados a partici-

    par da aldeia global. Surge, nesse sentido, a sociedade global como novo objeto de estudo

    da sociologia. Nesse sentido, enftico o entendimento de Octavio Ianni57, de que este um

    momento epistemolgico fundamental, mudando o paradigma clssico de investigao,

    fundado na reflexo sobre a sociedade nacional, para a reflexo sobre a sociedade global, de

    modo que o conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional no suficiente para escla-

    recer a configurao e os movimentos de uma realidade que j sempre internacional, multi-

    nacional, transnacional, mundial ou propriamente global. Ainda, segundo o autor, a sociedade

    nacional, embora ainda tenha vigncia, no d conta, nem emprica, nem metodologicamente

    nem histrica ou teoricamente, de toda a realidade em que estamos inseridos.

    2. Por uma concepo multidimensional da globalizao.

    As concepes econmico-financeira, poltica e sociocultural so manifestaes desse

    corpo uno e assimtrico que a globalizao, que deve ser entendida primeiramente como um

    fenmeno histrico. No trata-se nem de teorias nem de fases. No so teorias da globaliza-

    o, porque elas no so excludentes entre si mas, ao contrrio, so indissociveis. No so

    fases da globalizao, porque uma no pressupe a superao da anterior e trat-las assim

    daria uma errnea percepo de que todas elas foram atingidas, o que no o caso da globali-

    zao social, verificada uma grande massa populacional que nunca se sentiram includas neste

    processo.

    Dessa maneira, uma anlise da questo deve diferenar a globalizao enquanto fato e

    enquanto valor. A conjuntura de interdependncia de pases, sociedades e pessoas uma evo-

    luo histrica irreversvel. incuo, portanto, o movimento contra essa globalizao-fato.

    Ocorre que, em paralelo e associado a esse fato, criou-se um determinismo social, sob a ms-

    cara de modernidade inevitvel, de uma poltica internacional neoliberal como nica via de

    efetivao desse movimento globalizante. A perspectiva multidimensional da globalizao

    coaduna-se com um movimento que distingue a globalizao de um globalismo economicis-

    ta58, persistindo na defesa de uma fase histrica que caminha rumo a uma democracia

    econmica, social, poltica e cultural. Assim, a poltica estatal no estaria subordinada poltica

    dos interesses econmicos, sem a efetivao de medidas que viabilizem o equilbrio do custo

    social ocasionada pela liberalizao dos fluxos de capital. Segundo Beck59, o globalismo seria a

    ditadura neoliberal do mercado mundial que destri os alicerces do auto-desenvolvimento

    democrtico.

    57

    IANNI, Octvio.ob cit., p.191.

    58 Diferenciando Globalizao e globalismo, BECK, Ulrich. O que Globalizao? Equvocos do Globalismo Respostas

    . Globalizao. Traduo Andr Carone, So Paulo: Paz e Terra,1999

    59 BECK, Ulrich. ob. cit., p. 23.

  • Estudos de Direito Alimentar

    19

    Em sentido contrrio, Francis Fukuyama 60, considera a globalizao no como uma im-

    posio ideolgica, mas como um fenmeno real e observvel que confunde-se com a supre-

    macia dos princpios de economia do mercado a exemplo do modelo norte-americano. Sua

    perspectiva, ao defender o suposto fim da histria e o tempo do ltimo homem, resulta em

    uma concepo do neoliberalismo como consequncia lgica e histrica da globalizao. A

    indissociabilidade sistmica dos mbitos conceituais de globalizao e neoliberalismo resulta,

    por conseguinte, numa concepo ineficaz da globalizao restrita sua dimenso econmica.

    A concepo multidimensional de globalizao supera a unidimensionalidade do globalismo,

    inserindo o Estado num contexto ps-nacional, com interferncia dos atores transnacionais.

    A ideologia neoliberal tem gnese representativa nas reunies da Societ du Mont Pl-

    rin, na Sua, a partir de 1947, com reunies de pensadores representados por Friedrich Hayek

    que, na busca por criticar a ascenso keynesianista, reelaborava o velho modelo de liberalismo

    gerado pela escola clssica da economia proveniente das teses de Adam Smith e da escola

    austraca de economia em direo a modelos de superplanificao econmica e miniaturiza-

    o do Estado, que so as razes tericas do neoliberalismo.

    Com o rompimento do compromisso assumido pelos EUA em Bretton Woods e a conse-

    qente adoo do sistema de cmbios flutuantes em todo o mundo, a corrente neoliberal

    passou a ser empregada como caminho para o desemprego 61, visando combater os princ-

    pios do Estado do bem-estar social, com a teorizao sistmica de absentesmo estatal e da

    liberdade contratual como vias para o desenvolvimento.

    Nesse contexto, a irmandade dos bancos centrais (James Tobin) colou-se ortodoxia

    monetarista, na esperana de encontrar nas suas receitas instrumentos de defesa perante as

    presses polticas dos governos, o que favoreceu o processo de ascenso do monetarismo62.

    Hayek parte do pressuposto da impossibilidade de teorizao de um conhecimento econmi-

    co, visto a impossibilidade de sistematizao desse por qualquer indivduo, predominando a

    fonte da superioridade da ordem de mercado. Visando proporcionar uma atividade estatal que

    no se curve aos ditames dito incontrolveis, surge nos anos trinta na Alemanha a chamada

    escola de Freiburg, ou escola ordo-liberal, cujos maiores representantes foram Walter Euc-

    ken, Hans Grossmann-Doerth, Franz Bhm e Hans Joachim Mestmcker. Eucken e Bhm pre-

    vm uma interveno mnima estatal em prol do bem estar coletivo, de modo que est nsito

    ordem privada a autocoordenao e o autocontrole, devendo o Direito garantir ambas

    condies63.

    60

    FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York, Free Press, 1992. 61 Nesse sentido, o artigo de HAYEK (HAYEK, Friedrich. Inflation: the path to unemployment In: Inflation.Causes, consequences and cures, IEA the institute of economic affairs, Reading 14, Londres,1974,p. 115-120). Quanto questo do desemprego, a tese monetarista era adepta da teoria do desemprego voluntrio, ou seja, o emprego sempre existe para aqueles que procuram e aceitam trabalhar por um salrio mas baixo, em decorrncia disso o sindicalismo seria um entrave ao desenvolvimento econmico, como resistncia institucional aos salrios nominais. 62 NUNES, Antnio Jos Avels. Neoliberalismo e Direitos humanos.Rio de Janeiro, So Paulo: Renovar, 2003, p10. 63 SALOMO FILHO,Calixto. Globalizao e teoria econmica In: SUNDFELD, Carlos Ari e Vieira.Direito Global. So Paulo: Max Limonad, 1999,p 259-268. Calixto Salomo Filho vislumbra na escola alem de Freiburg os maiores crticos da concepo monetarista, identificando nos monoplios e cartis da Alemanha um dos grandes motivos do fracasso econmico da Repblica de Weimar. Segundo o autor, so duas as crticas ao pensamento neoclssico: a primeira(...) referente aos pressupostos econmicos da definio de bem-estar do consumidor, que so, segundo esses doutrinadores,meramente tericos, insusceptveis de ocorrer na realidade. A segunda(..) relativa ao prprio conceito de concorrncia para os representantes da escola de Freiburg no possvel atribuir ao direito concorren-cial qualquer tipo de objetivo econmico predeterminado, como a eficincia, por exemplo. Isso porque o sistema

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    20

    Na busca de uma estabilidade monetria, o pensamento monetarista foi fundamento

    dos governos de Thacher e Reagan e consequente amadurecimento de um mito da globaliza-

    o enquanto hegemonia imutvel da doutrina neoliberal, apenas sob a viso parcial de uma

    de suas dimenses.

    O desafio, portanto, dos estudos sobre a globalizao no mais de encontrar meios pa-

    ra sua superao, mas de encontrar medidas para sua adequao aos valores legtimos a se-

    rem absorvidas pela sociedade, transgredindo de um foco baseado no homem-consumidor

    para o homem-indivduo, em uma perspectiva humanista e universalista. O homem que j

    cidado do mundo agora precisa que o sistema o absorva atravs de uma cidadania globali-

    zada. Trata-se da superao da unidimensionalidade da globalizao, baseada numa viso eco-

    nomicista, para uma racionalidade solidarista do fenmeno, reiterando o papel do Estado nes-

    ta funo, sem declinar pelas vias tericas64 da teoria do Estado sem Estado ou do Estado

    ps estatal, reduzindoo ao nvel jurdico.

    Boaventura de Sousa Santos65 defende a evoluo de uma tica liberal individualista,

    atravs do princpio de responsabilidade, enfatizando na construo de um futuro atravs da

    participao e da solidariedade. Segundo o autor, quanto mais vasto for o domnio da poltica,

    maior ser a liberdade. Nesse sentido, o homem deve reafirmar suas razes e, atravs delas,

    projetar-se para o mundo. Jrgen Habermas66 defende a cidadania democrtica enquanto

    valor universal.

    Para Will Kymlicka67, mesmo numa perspectiva liberal, ao defender o que chamou de

    multicultural citizenship, a questo da cidadania foi influenciada por trs acontecimentos

    histricos: a unificao alem, a liberao dos Estados da Europa Centro-Oriental e os conflitos

    de nacionalidade, irrompendo em toda a Europa oriental; a formao histrica da Unio Euro-

    pia, esclarecendo as relaes entre Estado-Nao e democracia, cujos processos democrti-

    cos que se desenvolveram juntamente com o Estado-Nao ficam aqum da forma supranaci-

    onal assumida pela integrao europia; e, por fim, os fluxos migratrios das regies pobres

    do sul e leste europeu assumiram cada vez mais relevncia. Essas migraes exacerbam os

    conflitos entre os princpios universais das democracias constitucionais e as reivindicaes

    particulares das comunidades para preservar a integridade de seus estilos habituais de vida.

    H, portanto, uma tenso entre o universalismo de uma comunidade legal igualitria e o parti-

    concorrencial no um sistema cujos efeitos, todos eles, possam ser previstos e aqueles desejveis selecionados, de modo a orientar a feitura e aplicao da lei. Salomo enfatiza que a base terica do pensamento neoliberal tambm distorcida. O pensamento de Hayek, segundo o autor, possui duas vertentes: uma primeira fase enquan-to escola austraca de economia em que HAYEK no prope uma teoria social e apenas critica as bases da teoria que viam no Estado o engenheiro socioeconmico por excelncia; uma segunda vertente seria a viso de Hayek no campo jurdico, atravs da escola ordo-liberal de Freiburg que, segundo o autor, no possui uma dimenso neo-liberal, tendo um cunho mais intervencionista.

    64 Referindo-se s doutrinas de Robert Christian Van Ooyen, de uma doutrina do Estado ps-Estatal e de Melossi e

    Bob Jessop da teoria do Estado sem Estado, LOUREIRO, Joo Carlos. Adeus ao Estado Social ? A segurana so-

    cial entre o crocodilo da Economia e a medusa da ideologia dos Direitos Adquiridos. Coimbra: Coimbra edito-

    ra, 2010, p. 84 e seguintes.

    65 SANTOS, Boaventura de Sousa. Crtica da Razo Indolente. So Paulo, Ed. Cortez, 2000, p. 113.

    66 HABERMAS,Jrgen. O Estado-nao europeu frente aos desafios da globalizao, Novos Estudos, So Paulo,

    n.43., nov./1995, p.94 67

    KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights. Oxford, Claredon Press, 1995.

  • Estudos de Direito Alimentar

    21

    cularismo de uma comunidade cultural originria que s ser resolvida atravs de uma pers-

    pectiva cosmopolita de nao de cidados.

    Dessa maneira, a perspectiva multidimensional da globalizao possui como pilar de

    sustentao a proteo da cidadania global, ou seja, os aproveitamentos da globalizao-

    fato para o desenvolvimento apoiado em bases slidas de justia social e do desenvolvimento

    humano 68.

    3. A globalizao e a sociedade de risco

    A tentativa de uma sistematizao analtica da globalizao pode incorrer numa falha

    epistemolgica que no condiz com a rapidez e mutabilidade do fenmeno em anlise. As

    teorias de investigao da globalizao no podem ser estticas, de modo a criar amarras con-

    ceituais a um fenmeno assimtrico e imprevisvel, numa falsa aparncia de incompatibilidade

    com os pilares de justificao estrita da cincia.

    So necessrios conceitos dotados de flexibilidade, capazes de readaptaes constantes

    s mutaes fenomenolgicas para assim lidar com a simbiose das dimenses da globalizao.

    Primeiramente, necessrio investigar que novas categorias norteiam essa ruptura da moder-

    nidade para, assim, investigarmos os fenmenos decorrentes dela.

    Ulrich Beck diferencia elementos de uma nova modernidade atravs da reinveno da

    civilizao industrial, a partir do seu conceito de modernizao reflexiva. Reflexiva no pela

    reflexo, mas pela autoconfrontao. A modernizao simples (ou ortodoxa) caracterizada

    pela descontextualizao e recontextualizao das formas sociais tradicionais pelas formas

    industriais, baseada no conflito sobre a distribuio de bens (goods), como rendimento, em-

    prego, segurana social. A modernizao reflexiva seria a modernizao da modernizao, a

    partir de descontextualizaes e recontextualizaes latentes, imanentes e no intencionadas

    das formas sociais industriais em um outro tipo de modernidade, baseada no conflito de dis-

    tribuio dos riscos que acompanham a produo daqueles bens (bads).

    Assim, a sociedade de risco (risikogesellschaft) essa fase da ps-modernidade em que

    se predominam as ameaas produzidas no caminho da sociedade industrial. tambm uma

    sociedade que tem gerado profundas incertezas no plano da cognio e consequente inse-

    gurana no plano do bem-estar social69.

    O risco70 est onipresente na histria da humanidade, desde a antiguidade, interpretado

    com carter teolgico, onde as catstrofes naturais ou epidmicas eram justificadas como

    68 O j mencionado Relatrio do Desenvolvimento Humano da ONU (1999) enftico ao afirmar que os aspectos humanos foram deixados de lado, na viso estreita da globalizao, baseada apenas nos aspectos financeiros, que tm prevalecido at agora, sendo esse o maior desafio da mundializao: Os mercados competitivos podem ser a melhor garantia de produo eficiente, mas no do desenvolvimento humano.(ONU. Relatrio para o desenvolvi-mento humano- Globalizao com uma face humana.Programa das Naes unidas para o desenvolvimento (PNUD).Net.Lisboa,1999.Disponvel em:http://www.pnud.org.br/rdh..Acesso em 20 de maio de 2012).

    69 BECK, Ulrich(2007). Vivere nella societ del rischio globale, Rivista del Diritto della Sicurezza Sociale, p.1-27.

    70 A prpria origem etimolgica da palavra Risco controversa. A palavra tem origem no francs RISQUE, do Italiano

    risco ou RISCHIO, o perigo ligado a um atividade, do Latim RISICUM, s vezes tida como escolho que pode fender o casco de uma embarcao, mas mais provavelmente do Grego bizantino RIZIKON, soldo obtido por um merce-nrio, derivado do rabe RIZQ, rao diria.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    22

    vontade divina com prevenes decorrentes da f 71 ou nos fundos mutualistas de preveno

    de acidentes, na Idade Mdia. A definio de risco enquanto previsibilidade sistematizada de

    um evento fruto da teoria das probalidades de origem francesa no sculo XVII, passando a

    ser redimensionado ps-Segunda Guerra Mundial como forma de lidar com questes epidemi-

    olgicas e ambientais.

    Embora resultante de aes humanas, o risco ps-moderno evidencia-se involuntaria-

    mente, com a dificuldade de deteco de sua fonte originria, visto que ele no pode ser deli-

    mitado no espao e no tempo redimensionados pela globalizao. Esses novos riscos trans-

    fronteirios e transgeracionais passam a ser uma categoria abstrata percebida globalmente

    atravs da catica teia de comunicao global que gera a disponibilidade de informao.

    Num primeiro momento, os riscos da modernidade reflexiva podem apresentar-se to

    abstratos72 que, por vezes, passiveis de gerar uma incredulidade ou indiferena social quanto a

    eventuais perdas futuras, at que esses manifestem-se como sintomas ou catstrofes. De uma

    ou outra maneira, a ausncia e incoerncia das informaes podem suscitar medos exagera-

    dos em relao ao risco. Assim, o problema do risco passa da indiferena histeria.

    A investigao do risco passou a ser objeto de anlise da sociologia 73, com importante

    sistematizao por Luhmann74, que distingue o risco e o perigo, como diferenas que se com-

    plementam. S h de se falar em risco quando os danos decorrem de uma deciso, de modo

    que o perigo existe em situaes em que os danos so incontrolveis. Ou seja, se a causa da

    perda externa, ou ambiental, enquadra-se no conceito de perigo. Quando se vincula concei-

    tualmente risco deciso, verifica-se a chance de escolhas entre as alternativas possveis.

    Dessa maneira, insere-se a sociedade como sujeito ativo no processo decisrio de en-

    frentamento dos perigos ao invs de render-se passivamente s consequncias imprevisveis

    do devir. Ademais, os conceitos de risco e perigo interligam-se de modo que uma mesma ao

    pode ser um risco para um e um perigo para outro, sendo que a essncia epistemolgica da

    diferenciao entre risco e perigo no est nem na ao, nem no sujeito, mas na conscincia

    de um dano hipottico. Quando um sujeito, por exemplo, dirige alcoolizado, gera um risco

    para si e um perigo para os pedestres e demais condutores. Como afirma Luhmann, o cancro

    um perigo para o no fumante e um risco para o fumante voluntrio. Em todos esses exem-

    plos, o sujeito assume para si conscientemente o risco por um dano hipottico.

    A questo se agrava, principalmente, quando estudada sob o prisma dos pases em de-

    senvolvimento, nos casos em que a globalizao econmica transmuta o processo de cognos-

    cibilidade social que dificulta a percepo dos riscos em razo da ignorncia, confuso e mani-

    71

    Sobre origens histrias de controle de risco, Oppenheim L. Ancient Mesopotamia. Chicago: University of Chicago Press, 1977.; Theys J. La socite vulnrable. In: Fabiani J-L, Theys J, eds. La socit vulnerable valuer et matriser les risques. Paris: Presses de Lcole Normale Suprieure;1987; Covello VT, Mumpower J. Risk Analysis and Risk Management: An Historical Perspective Risk Analysis. 1985 ; Douglas,1987) 72

    ADAM, Barbara, LOON,Joos Van; BECK,Urich. The risk society and Beyond. Critical issues for social theory, Sage Publicatins, LD: London, 2000, pp.2 e 24. 73

    Sobre o risco, BONSS, Wolfgang. Vom Risiko. Unsicherheit und Ungewissheit in der Moderne. Hamburger: Ham-burg edition, 2005. 74

    LUHMANN, Niklas. Risk: a sociological theory. New York: Aldine de Gruyter, 1993.

  • Estudos de Direito Alimentar

    23

    pulao75 das mltiplas informaes disponveis. Em outras palavras, o sujeito contemporneo

    assume para si o risco de uma escolha que no necessariamente foi sua.

    O campo da escolha do risco pelo sujeito investigado pela perspectiva culturalstica

    do risco, que define a seleo do sujeito pelo risco que pretende ou no enfrentar a partir dos

    aspectos culturais deste. Ou seja, o risco culturalmente definido, embora seja impossvel

    para o sujeito poder conhecer toda a gama de variedade de riscos a que suscetvel, inclusive

    porque a distribuio do risco nas classes sociais no homognea. Douglas e Wildavsky76

    sistematizam uma diferenciao entre a sujeio voluntria e a sujeio imposta em relao ao

    risco. Para os autores, os riscos involuntrios (impostos por um ente externo, pessoa, entida-

    de, instituio) so mais suscetveis de serem alvo de rejeio pelo sujeito, em contraposio

    aos riscos que decorrem da liberdade de escolha do sujeito, que resultam em limites mais

    abrangentes de tolerncia e aceitabilidade social.

    Sem diminuio da importncia da teoria culturalista do risco, no se deve simplificar a

    complexidade do risco social limitando sua origem ao aspecto cultural. Conforme previamente

    analisado, a globalizao multidimensional suscita anlises multidimensionais do risco. A men-

    surao do risco sempre trar incertezas epistemolgicas, decorrentes da falta de conheci-

    mento cientfico sobre determinado aspecto do sistema. Esse campo nebuloso onde reside o

    elo conflituoso entre comunidade social e comunidade cientfica e a temida ameaa da tecno-

    cracia, o imprio do saber tecnocientfico.

    Para isso, surge o conceito de democracia tcnica77 como uma rede sociotcnica en-

    quanto espao democrtico de negociao entre os diversos atores sociais, mesmo que parti-

    cipem de horizontes cognitivos diversos, numa coproduo de saberes e reformulaes de

    demandas. Habermas 78 enfrenta o problema da relao entre democracia, mercado e a dispo-

    sio tcnica dos sujeitos que controlam o saber tecnocientfico, a partir da preservao do

    interesse pblico. A necessidade de preservao do interesse pblico lana as bases da ideia

    de socializao do risco.

    As formas antigas de solidariedade79, arcaicas e corporativistas, estavam dissociadas da

    noo de reparao, restringindo-se ideia de socorro, como nas caixas de previdncia exis-

    tentes na Idade Mdia, ou com fundamento no auxlio mtuo entre os homens pela caridade,

    com o advento do Cristianismo. Mesmo a responsabilidade do poder pblico, igualmente de

    origem antiga, estava ligada a noo de socorro, como eram os casos dos pagamentos relati-

    vos s guerras, que no possuam o condo de reparao. Com a Revoluo Francesa, e suas

    premissas baseadas na igualdade, e o conceito de solidariedade redefine-se, surgindo os pri-

    75

    SANTOS, Milton. Por uma outra globalizao - do pensamento nico conscincia universal. So Paulo: Record, 2000. 76

    DOUGLAS, M.; WILDAVSKY, A. B. Risk and Culture: An essay on the selection of technical and environmental dan-gers. Berkeley: University of California Press, 1982. 77 CALLON, Michel, LASCOUMES ,Pierre, BARTHE ,Yannick. Agir dans un monde incertain. Essai sur la dmocratie technique, Paris:Le Seuil (collection "La couleur des ides"), 2002. 78 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. II, 1997.

    79 Sobre a evoluo da socializao do risco, VARELLA, Marcelo Dias (coord.). Responsabilidade e socializao do

    risco. Trad. Michels Abes. Conselho de Estado da Frana. Braslia: UniCEUB, 2006.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    24

    meiros elementos sistematizados de responsabilidade das pessoas pblicas e indenizao por

    danos, que no eram favor estatal mais uma dvida deste perante os cidados.

    Com o desenvolvimento do clculo de probabilidades e a mutualizao de clculos atua-

    riais comea a se construir os preceitos de uma solidariedade abstrata e alheia s antigas pre-

    missas de solidariedade coorporativista, ligadas a um grupo delimitado, seja familiar, profis-

    sional ou religioso. A Lei francesa de 09 de abril de 1898 marca um avano no tratamento dos

    riscos sociais ao tratar sobre a responsabilidade por acidente de trabalho e versando sobre

    uma responsabilidade sem culpa como uma forma de absorver os custos sociais de uma

    atividade. Em 1946, a construo de uma seguridade social desconecta o sistema de solidarie-

    dade ao de responsabilidade. Assim, a socializao do risco era administrada pelo Estado em

    prol do interesse pblico e advm da noo de responsabilidade sem culpa. O Estado perma-

    nece, ento, com a funo de gestor do risco socializado.

    Introduo ao estudo da segurana alimentar num contexto multidimensional de globaliza-

    o e sociedade de risco

    O objetivo de estudo apresentar um panorama contextual para inserir a problemtica

    do risco alimentar, uma das emergentes pautas redimensionadas pelos novos caminhos epis-

    temolgicos de investigao da globalizao.

    O conceito de Segurana Alimentar tem origem na literatura americana, que diferencia

    os termos food safety e food security. O primeiro um conceito que surgiu na dcada de 70 e

    busca investigar a garantia do alimento de no causar dano ao consumidor, seja por perigos

    biolgicos, qumicos ou fsicos. Na dcada de oitenta, resolve-se o problema da produo e

    intensifica-se a dificuldade de acesso ao alimento (food safet). O comeo da dcada de noven-

    ta cenrio para incorporao da noo de qualidade do alimento e introduz-se o risco no

    apenas de contaminao acidental dos alimentos (preocupao tpica do sistema de food safe-

    ty), mas tambm da contaminao intencional dos alimentos. Surge assim o conceito de Food

    biosecurity, que inclui os problemas na (in)segurana alimentar no campo da biotecnologia e

    da engenharia gentica80.

    Para isso necessrio pontuar que novas questes surgem a partir da convergncia

    entre o risco da modernidade reflexiva e a crise alimentar, pelo uso intensivo da tecnologia na

    alimentao, enquadrado por Beck como riscos tecnolgicos (que incluem os riscos biotec-

    nolgicos, qumicos e alimentares).

    Entre os desafios da interveno do poder pblico nas regras jurdicas sobre alimentos

    surge a problemtica dos Organismos Geneticamente Modificados, quando a tecnologia que-

    bra barreiras, antes inatingveis, do cdigo gentico alimentar, para melhorar as suas caracte-

    80

    Sobre o assunto, GULLINO, Maria Lodovica; FLETCHER, Jacqueline; GAMLIEL, Abraham; Stack, James Peter.Crop

    biosecurity: assuring our global food suply. Dordrecht: Springer Science + Business Media B.V, 2008.

  • Estudos de Direito Alimentar

    25

    rsticas81, com a potencialidade de criao de novos riscos ambientais, dotados de uma tutela

    social e jurdica prpria82.

    O objetivo deste tpico enquadrar os conceitos expostos de Globalizao e Risco no

    estudo que foi densificado durante o semestre, extraindo premissas embrionrias para a inves-

    tigao sobre a Segurana Alimentar.

    a) O Risco Alimentar como fruto de uma problemtica da globalizao multidimensional

    Observou-se, neste trabalho, os efeitos de uma concepo multidimensional da globali-

    zao, que deve acompanhar a anlise de seus fenmenos. O estudo da segurana alimentar

    deve ser realizado sob a perspectiva do alimento enquanto produto e incremento do comrcio

    internacional decorrente da globalizao econmico-financeira, intercmbio cultural e propa-

    gao dos perigos sanitrios e sujeitos tica neoliberal baseada na livre concorrncia.

    O controle na distribuio de alimento e a imposio de regras mnimas no seu feitio im-

    pem uma via crucis de enfrentamento poderosa competitividade da indstria alimentar, de

    modo que os preceitos de segurana alimentar no podem ficar dimensionados lgica com-

    petitiva do globalismo econmico.

    Deve-se ressaltar o papel do consumidor no panorama da globalizao sociocultural,

    com exigncias globais a refletir padres de consumo mundiais, com fcil acesso e dissemina-

    o das informaes, destacando-se a fora das redes sociais online na contemporaneidade,

    como forma de divulgar contedos, potencialidades danosas e disseminar o medo ou a indife-

    rena em relao ao risco alimentar.

    A sociedade informatizada e o excesso de informaes sobre o risco alimentar tambm

    interferem no processo de cognoscibilidade social destes, de modo que a ignorncia contem-

    pornea no advm necessariamente da ausncia de informaes, mas do excesso destas,

    potencializando a confuso e manipulao dos mltiplos dados relacionadas aos diversos g-

    neros alimentares.

    O processo de escolha do sujeito contemporneo no campo alimentar tem uma peculia-

    ridade: aparenta ser uma escolha genuna do sujeito e assim o processo torna-se menos sus-

    cetvel de rejeio por este. Enquanto ao consumidor apresentado, a todo tempo, um con-

    junto de novos alimentos (novel food)83, a desinformao em matria de segurana alimentar

    continua a ser fruto no apenas do excesso de alimentos disponveis, mas tambm do excesso

    de informao.

    b) A Segurana Alimentar por uma perspectiva ps-moderna de risco

    Observou-se a dificuldade de deteco da fonte originria do risco diante do redimensi-

    onamento do espao e do tempo, decorrente da globalizao. Como fruto disso, o risco ali-

    mentar um risco transfronteirio captado pelo catico sistema de informao contempor-

    81

    Sobre as geraes dos OGM, ESTORNINHO, Maria Joo. Ob. cit. p. 25-27.

    82 Para a produo deste trabalho, os Organismos Geneticamente Modificados e a Segurana Alimentar foi investi-

    gado pela acadmica Melissa Cabrini Morgato.

    83 ESTORNINHO, Maria Joo. Ob cit. p, 17-27.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    26

    neo. O risco alimentar da modernidade reflexiva to abstrato e aparentemente inatingvel

    que poder ter dois efeitos ambivalentes: a indiferena ou a histeria social.

    Inicialmente, a ausncia de identificao desse risco pode gerar uma indiferena social,

    at que este se mostre estampado numa perda presente ou ou mediatizao de uma grande

    catstrofe. Um exemplo evidente disso foi a doena da vaca louca (cientificamente conheci-

    da como Bovine Spongiform Encephalopathy - encefalopatia bovina espongiforme), que surgiu

    no Reino Unido, em 1986, e disseminou-se para outros pases da Comunidade Europeia, em

    razo da ausncia de controle da reciclagem de carne, ossos, sangue e vsceras usados na fa-

    bricao de rao animal. Um outro exemplo midiatizado foi a gripe aviria84, causada pelo

    vrus H5N1, que infectou pessoas no Vietn, Tailndia, Indonsia e Camboja; e infectou aves

    em Laos, China, Turquia, Inglaterra, Alemanha, Grcia e, mais recentemente, foi identificada

    em aves migratrias do Canad.

    O mesmo fenmeno ainda poder ter o efeito inverso. O produto global , por natureza,

    um produto multinacional. A rao, o cultivo, o maquinrio, a distribuio, a divulgao, a

    venda, o consumo e, por consequente, o risco, podem pertencer a origens nacionais diversas.

    Assim, todos so vulnerveis a produtos e riscos sem fonte prpria e de responsabilidades

    compartilhadas e indeterminadas. A percepo disso pode gerar um sentimento social ambiva-

    lente indiferena: a histeria. Assim, esse sentimento faz parte da realidade contempornea,

    onde o excesso e a incoerncia das informaes podem suscitar medos exagerados em relao

    ao risco.

    O combate dos comportamentos extremos que oscilam entre a indiferena e a histeria

    d-se atravs de processos decisrios de cunho institucional, cooperativo e internacional. Por

    uma perspectiva sociolgica, Lhumann diferenciou risco e perigo, de modo que o primeiro

    existe quando os danos decorrem de uma deciso e o perigo existe em situaes em que os

    danos so incontrolveis. Por essa perspectiva no existe um perigo alimentar, visto que

    este no fruto de agentes externos, mas sim um risco alimentar, em razo dos danos se-

    rem frutos de uma deciso.

    Vale mencionar que o Cdigo Alimentar prope uma diferenciao entre perigo e risco,

    sendo o perigo (hazard) o agente biolgico, qumico ou fsico, ou propriedade do alimento com

    potencial de causar efeito adverso sade. J o risco (risk) ocorre em funo da probabilidade

    da ocorrncia de um efeito adverso sade e da gravidade desse efeito, causado por um peri-

    go ou perigos existentes no alimento.

    A anlise de risco um processo composto de trs componentes: avaliao, gesto e

    comunicao dos riscos85. A avaliao dos riscos (risk assessment) um processo que compre-

    ende a identificao do perigo (hazard information), a caracterizao do perigo (dose-reponse

    evaluation), a avaliao da exposio (exposure assessment) e a caracterizao do risco (risk

    characterization). A gesto do risco consiste na ponderao de alternativas polticas em razo

    84

    Sobre o assunto, GIBBS, W. Waut; SOARES, Christine. espera da pandemia. Scientific American Brasil, Dezem-

    bro/05, 2005, p. 64.

    85 Sobre o assunto, ESTORNINHO, Maria Joo. Ob cit. p. 72-73; FROTA, Mrio. Segurana Alimentar: Comunicao

    dos Riscos, afloramento do direito informao. Revista Portuguesa de Direito do Consumo, no. 35, Setembro

    de 2003, p. 66-78 ; FINDLEY, Roger ; FARBER, Daniel. Environmental Law, St Paul,MN: Thomson/West, 2004.

  • Estudos de Direito Alimentar

    27

    da avaliao dos riscos ou outros fatores legtimos, onde ser necessrio selecionar a via apro-

    priada de preveno e controle, com consulta das partes interessadas. A comunicao dos

    riscos a informao criteriosa dos riscos e perigos num dilogo interativo com o consumi-

    dor86.

    c) A natureza transfronteiria do risco alimentar:

    A transnacionalizao incrementa o modo de produzir, distribuir e consumir o alimento.

    Diante da multidimensionalidade da globalizao, verifica-se que a anlise do risco no pode

    se restringir a uma poltica de instituies fragmentadas, inbeis a lidar com um o risco trans-

    fronteirio.

    Assim, o Direito nacional ter que atuar atravs de um sistema cooperativo internacio-

    nal que reflita a facilidade de circulao do produto. O pluralismo legal impe assim que a se-

    gurana alimentar seja objeto de uma regulao em rede, por uma poltica global, sendo pano-

    rama portanto de uma zona cinzenta de elo do Direito e da Poltica Internacional.

    Neste contexto, em matria de Segurana Alimentar, o Programa Conjunto da Organiza-

    o das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO) e da Organizao Mundial da

    Sade (OMS) foi criado, em 1962, com a finalidade de proteger a sade da populao, alm de

    assegurar prticas equitativas do comrcio regional e internacional de alimentos, que so a

    institucionalizao internacional dessa problemtica.

    A Conveno sobre Diversidade Biolgica e o Protocolo de Cartagena introduziram tam-

    bm um quadro de pluralismo global institucionalizado pelo Direito Europeu, com destaque

    para a criao da Autoridade Europeia da Segurana Alimentar (AESA). Em relao segurana

    alimentar, em matria de OGM, foi apresentada na agenda poltica europeia um sistema de

    rastreabilidade conhecido como do campo mesa (from farm to table)87, permitindo acesso

    a informaes especficas relativas a toda a cadeia produtiva do alimento, com sistema de

    indicadores nicos88.

    O carter transfronteirio do risco alimentar, por sua vez, traz ainda inmeros desafios

    no campo da responsabilidade, tanto pelos operadores econmicos responsveis pela cadeia

    alimentar, como do Estado enquanto rgo de controle, vigilncia e fiscalizao, necessitando

    readequaes das concepes de solidariedade e de partilha da responsabilidade89.

    d) O risco alimentar como risco ambiental intergeracional

    O risco alimentar como risco ambiental deve ser visto como uma relao intergeracio-

    nal, de modo que os sintomas de uma cadeia alimentar, muitas vezes, s ser refletida em

    geraes futuras. Assim, aplica-se s investigaes dos Organismos Geneticamente Modific-

    86

    Neste trabalho coletivo, o sistema de anlise de risco na Unio Europia e em Portugal foi investigada pela aca-

    dmica Mariana Vanucci Vasconcelos.

    87 Sobre a matria, Regumento(CE) n. 1830/2003 do parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de dezembro de

    2003.

    88 Neste trabalho, a rede de intervenientes sobre a Segurana Alimentar foi investigada pela aluna Sara Raquel da

    Silva Santos Costa.

    89 Neste trabalho, a responsabilidade civil do produtor de alimentos defeituosos e do Estado foi investigada pelo

    acadmico Csar Augusto Mimoso Ruiz Abreu.

  • Instituto de Cincias Jurdico-Polticas

    28

    veis o princpio da preveno e princpio da equidade intergeracional do direito ambiental, na

    busca de medidas efetivas e proporcionais de combate ao risco alimentar.

    Enquanto risco ambiental, juridicamente, o princpio da precauo do Direito Ambiental,

    na busca de permitir a adoo de medidas que visam reduzir um perigo potencial, acaba por

    ser um norte terico para esta perspectiva, visto que as anlises ambientais devem ser vistas

    em perspectiva de efeitos de curto e longo prazo. Nos casos dos problemas envolvendo segu-

    rana alimentar isso evidente, em razo de um conjunto de particularidades90 que a questo

    suscita, como os efeitos cumulados de autorizaes sucessivas, o carter alergnico dos OGM,

    a transferncia de marcadores genricos a antibiticos, o fenmeno do outcrossing, a perda da

    biodiversidade pela reduo de espectro de plantas, entre outros fenmenos particulares em

    que o sintoma dificilmente refletir o tempo exato da causa.

    Contudo, o uso do princpio da precauo dever exigir algumas ponderaes. Voltando

    ao caso da vaca louca, inicialmente, a tese defendida, no final dos anos oitenta, foi que o

    incio da doena de Creutzfeldt-Jacob decorreu da mudana no processo de fabricao de fari-

    nhas base de carnes usadas na alimentao dos animais, que se deu com a finalidade de evi-

    tar ou limitar o uso de solventes, fontes de poluio e de acidentes de trabalho. Com o tempo,

    o relatrio da Comisso Britnica de Inqurito, de outubro de 2000, concluiu que o processo

    de fabricao tambm no teria impedido a difuso da doena. Ou seja, no final dos a