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Maria Clara da Silva Machado O motivo da fonte que surge do Templo ou do Trono de Deus: Uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 Tese de Doutorado Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia. Orientadora: Drª Maria de Lourdes Corrêa Lima Rio de Janeiro, 29 de julho de 2008

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Maria Clara da Silva Machado

O motivo da fonte que surge do Templo ou do Trono de Deus:

Uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientadora: Drª Maria de Lourdes Corrêa Lima

Rio de Janeiro, 29 de julho de 2008

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Maria Clara da Silva Machado

O motivo da fonte que surge do Templo ou do Trono de Deus: Uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª Maria de Lourdes Correa Lima Orientadora

Departamento de Teologia – PUC – Rio

Prof. Isidoro Mazzarolo Departamento de Teologia – PUC – Rio

Prof. Ludovicus Garmus

Departamento de Teologia – PUC – Rio

Prof. Pedro Paulo Alves dos Santos Universidade Estácio de Sá

Prof. Paulo Severino da Silva Filho

Seminário Teológico Presbiteriano Simonton

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências

Humanas – PUC – Rio

Rio de Janeiro, 29 de julho de2008.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora.

Maria Clara da Silva Machado

Graduou-se em Pedagogia no Centro de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Isabel em 1993. Pós-graduou-se em Psicopedagogia Latu Sensu no mesmo Instituto em 1995. Graduou-se em Teologia no Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro em 1998. Concluiu o Mestrado em Teologia Bíblica 2001.

Ficha Catalográfica

Machado, Maria Clara da Silva O motivo da fonte que surge do Templo ou do trono de Deus: uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 / Maria Clara da Silva Machado; orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima. –2008. 302 f; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 de julho de 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Intertextualidade. 3. Apocalíptica. 4. Literatura profética. 5. Releitura cristã do Antigo Testamento. I. Lima, Maria de Lourdes Corrêa. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

CDD: 200

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A meus pais e alunos.

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Agradecimentos

Ao Deus Uno e Trino que no mistério de seu amor nos redimiu pelo sangue de seu

Filho, o Cordeiro Imolado.

À Bem-aventurada Virgem Maria, sob o título de Nossa Senhora de Fátima que

sempre foi a minha segurança, particularmente, nestes anos de confecção da tese.

A Dom Romer que durante tantos anos foi responsável pelos estudos teológicos na

Arquidiocese do Rio de Janeiro, o meu agradecimento mais sincero por jamais ter me

permitido desanimar, ao contrário, sempre me impulsionou a caminhar um pouco

mais adiante.

À professora Doutora Maria de Lourdes Corrêa Lima, mais do que um

agradecimento, o meu reconhecimento por sua fineza nas correções, encorajamento

nos períodos de cansaço, solidez na condução deste trabalho e principalmente por sua

amizade.

Aos meus queridos alunos e demais amigos, que comigo rezaram, sofreram e se

alegraram nas diversas etapas de elaboração deste trabalho.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela

bolsa recebida, sem a qual esta empreitada não teria viabilidade.

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RESUMO

Machado, Maria Clara da Silva. O motivo da fonte que surge do Templo ou do trono de Deus: uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. Rio de Janeiro, 2008. 302p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A pesquisa exegética sempre indicou um alto índice de referências a

diversos textos vétero-testamentários no livro do Apocalipse. Dentre eles, destacam-

se os textos de Ezequiel. A presença de textos do Antigo Testamento no Novo

Testamento vem sendo analisada nos últimos anos sob a perspectiva da

intertextualidade.

A presente tese tem por escopo analisar Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 focalizando

de modo particular o motivo da fonte de água que surge do Templo ou do trono de

Deus. A perspectiva intertextual permitirá perceber melhor o modo como Ap 22,1-5

trabalhou este motivo de Ez 47,1-12. Outros textos vétero-testamentários, apontados

ao longo da pesquisa, contribuirão para verificar a relevância de Ez 47,1-12 na

formulação de Ap 22,1-5.

Palavras-chaves

Intertextualidade, apocalíptica, literatura profética, releitura cristã do Antigo

Testamento, Livro do Apocalipse, Livro de Ezequiel.

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ABSTRACT

Machado, Maria Clara da Silva. O motivo da fonte que surge do Templo ou do trono de Deus: uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. Rio de Janeiro, 2008. 302p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The exegetical research has always indicated a high quantity of references to

Old Testament texts present in the Book of Apocalypse. Among them the text of

Ezekiel is specially relevant. The presence of Old Testament texts in the New

Testament has been analyzed in the last years under the perspective of intertextuality.

This dissertation has its focus on Apocalypse 22,1-5 and Ezekiel 47,1-12,

specially the reason for the source of water which comes from the Temple or the

throne of God. The intertextual perspective will allow a better understanding of the

manner in which Apocalypse 22,1-5 worked this aspect from Ezekiel 47,1-12. Other

Old Testament texts, signaled during the research, will contribute for the importance

of Ezekiel 47,1-12 in the formulation of Apocalypse 22,1-5.

Keywords

Intertextuality, apocalyptical, prophetic literature, Christian rereading of the

Old Testament, Book of Apocalypse, Book of Ezekiel.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1. O uso do Antigo Testamento no livro do Apocalipse: perspectivas 13

2. O Apocalipse e a utilização do Antigo Testamento 13

3. Roteiro e método 15

CAPÍTULO I

1. Status quaestionis 17

1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse 19

1.1.1 Autores que não aceitam a relação 20

1.1.2 Autores que aceitam a relação 20

1.2 As relações dos livros proféticos e de Daniel com o Apocalipse 32

1.2.1 As relações com Isaías, Jeremias e Daniel 33

1.2.2 A dependência para com Ezequiel 41

1.3 As diversas abordagens para o tratamento da relação entre o Antigo

Testamento, as tradições judaicas e o Apocalipse 55

1.3.1 Na linha da exegese tradicional 55

1.3.2 Na linha da intertextualidade 63

2. Escopo e hipótese 84

2.1 Objeto de estudo: a relação de Apocalipse com Ezequiel 84

2.2 Hipótese de trabalho 85

3. Metodologia 86

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CAPÍTULO II

2. Ap 22,1-5: o texto, sua delimitação, estrutura e aspectos semânticos 88

2.1 O texto: tradução e notas 88

2.2 Delimitação da unidade 98

2.3 A estrutura do texto 102

2.3.1 As seções 102

2.4 Ap 22,1-5: aspectos semânticos 108

2.4.1 Ap 22,1-3a 109

2.4.2 Ap 22,3b-5 136

Capítulo III

3. Análise de Ez 47,1-12 159

3.1 Tradução e notas filológicas 159

3.2 Delimitação da unidade 193

3.3 Estrutura do texto 194

3.3.1 As seções 195

3.4 Ez 47,1-12: Aspectos semânticos 201

3.4.1 Primeira seção: v.1-7 202

3.4.2 A segunda seção: v. 8-12 218

Capítulo IV

4. Intertextualidade entre Apocalipse e Ezequiel 229

4.1 Análise das relações intertextuais entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 229

4.2 Contatos em linha de continuidade e descontinuidade 239

4.3 Conclusões 244

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Conclusão

1. Síntese da pesquisa 251

1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse 251

1.2 O estudo de Ap 22,1-5 253

1.3 O estudo de Ez 47,1-12 254

1.4 Análise intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 255

2. Conclusões e resultados da pesquisa 257

3. Perspectivas abertas 258

Referências Bibliográficas 274

Excurso

1. Análise de dados 288

2.A intertextualidade de Zc 14,8 e Jl 4,8 em linha de continuidade com

Ap 22, 1-5 298

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AUSS Andrews University Seminary Studies

BAR Biblical Archaeology Review

BJRL Bulletin of the John Rylands University Library of

Manchester

BSW Biblical Studies on the WEB

BTr Bible Translator

BZ Biblische Zeitschrift

CBQ Catholic Biblical Quarterly

CTM Concordia Theological Monthly

EstB Estudios Bíblicos

ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses

ExpT Expository Times

GLAT Grande Lessico del’Antico Testamento. Brescia: Paidéia.

GLNT Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paidéia.

Interp Interpretation

JBL Journal of Biblical Literature

JETS Journal of the Evangelical Theological Society

JournTheolStud, Journal of Theological Studies

JSNT Journal for the Study of the New Testament

JSNT Suppl. Journal for the Study of the New Testament-

Supplement Series

Neot Neotestamentica

NewTestStud New Testament Student

NRTh Nouvelle Revue Théologique

Or Orientalia

PEGLBS Proceedings, Eastern Great Lakes and Midwest Biblical

Societies

ProtoBib Protokolle zur Bibel

RB Revue Biblique

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RevThom Revue Thomiste

RivB Rivista Biblica

RivLtg Rivista Liturgica

RSR Recherches de Science Religieuse

ZAH Zeitschrift für Althebraistik

ZAW Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft

ZNW Zeitschrifit für die neutestamentliche Wissenschaft

ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche

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Introdução

1. O uso do Antigo Testamento no livro do Apocalipse: perspectivas

O livro do Apocalipse tem causado, ao longo dos tempos, um certo

desconforto àqueles que o investigam. De fato, o autor do Apocalipse recorre a um

estilo literário ímpar em todo o Novo Testamento e a um simbolismo que fizeram

desta obra literária um objeto reverenciado e magnífico.

O recurso que o autor neotestamentário fez dos textos vétero-testamentários

causaram, nos primeiros anos da pesquisa, conclusões que oscilavam entre a

inexistência de uma sinalização da parte do autor neotestamentário de que um texto

antigo estava sendo utilizado, ausência de citação formal, até ao livre-arbítrio do

mesmo autor, ao recorrer a textos antigos para melhor comunicar a teologia de sua

obra.

Esta liberalidade do autor do Apocalipse causou, nas diversas abordagens

propostas para o estudo deste livro, muitas lacunas. Por esta razão, a partir de 1989,

muitos exegetas passaram a aplicar uma nova perspectiva para a compreensão do uso

de textos bíblicos antigos no texto do Apocalipse: a intertextualidade.

A intertextualidade é uma abordagem moderna de investigação literária que

vem ganhando espaço quando despontam relações interliterárias no campo da criação

e da leitura.

2 O Apocalipse e a utilização do Antigo Testamento

Muitos exegetas ao observarem o uso que o autor neotestamentário faz dos

textos vétero-testamentários detectaram um manuseio criterioso. Os textos usados em

uma determinada seção do Apocalipse teriam passado por uma seleção objetiva.

Por esta razão, foi necessário explicar o modo como o Antigo Testamento

foi utilizado pelo Apocalipse. Neste nosso trabalho, particularmente, foi enfocado o

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uso que o Apocalipse faz de textos proféticos1. Dentre estas muitas conexões com os

escritos proféticos, aqui, serão analisadas, de modo particular, as relações com a

profecia de Ezequiel, tendo em vista que as pesquisas sobre uma possível

dependência literária do Apocalipse com relação a Ezequiel assumiram uma

relevância nas últimas décadas do século passado. Um de seus expoentes é Vanhoye,

exegeta que marcou a pesquisa ao estabelecer critérios para decodificar o modo como

o texto de Ezequiel foi assumido pelo Apocalipse.

O modo meticuloso com que o autor sagrado usou os textos de Ezequiel

converteu-se no foco do trabalho de Goulder2 (enfoque litúrgico), de Vogelgesang3

(democratização e desmistificação) e de Ruiz4 (em linha mais hermenêutica). Moyise5

segue seus antecessores quando diz que a intenção do autor é a grande responsável

pelas mudanças impostas ao texto de Ezequiel no Apocalipse. Seu principal viés de

trabalho é o procedimento intertextual, e este se tornará útil para compreender o

modo como o autor do Apocalipse tomou os textos do Antigo Testamento e os

aplicou ao Novo Testamento. Nos últimos tempos, a obra de Kowalski6 tem

influenciado bastante a compreensão do uso que o Apocalipse faz do texto de

Ezequiel.

A motivação para a opção de nosso estudo repousar em Ap 2,1-5 e Ez 47,1-

12 decorre do fato de a última seção de Ap 20-22 estar ligada a Ez 37-48, e à

semelhança dos demais textos, possuir uma forte presença cristológica. Nesta

perícope, a presença da profecia de Ezequiel é bem testemunhada nos vv 1-2, mas

não de modo absoluto. Sendo assim, analisaremos, sob a forma de Excurso, outros 1 Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell’ Apocalisse”, Lateranum 48 (1982) 125-137; BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John. Lanham: University Press of America, 1984. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation: Visionary Antecedents and Their Development, JSNT Sup, 93. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1994; MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth. The Meaning and Function of the Old Testament in Revelation 21.1-22.5. JSNTSup 238. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2003. 2 Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies” NewTestStud, v. 27, 342-367, 1981. 3 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge, Harvard University, 1985. 4 Cf. RUIZ, J.-P., Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation o f Prophetic Language in Revelation 16,17-19,10. New York, Peter Lang, 1989. 5 Cf. MOYISE, S., The Language of the Old Testament in the Apocalypse. JournStudNT, v.76, 1999. 6 KOWALSKI, B. Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der Offenbarung des Johannes. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 2004.

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textos que se encontram simultaneamente presentes, especialmente: Gn 2,9; Jl 4, 18;

Zc 13,1; 14,8.

A presença de liames textuais entre Ez 47,1-12 e Ap 22,1-5 foi apontada por

muitos estudiosos7. Os métodos por eles empregados, em suas várias formas de

abordagem, convergem sempre para a presença dos textos vétero-testamentários no

texto do Apocalipse. Entretanto, não cogitam a questão sobre a causa da escolha de

um determinado texto mais antigo, em detrimento de todos os demais. Coube a

Moyise fazer uma aproximação entre os textos do Apocalipse e aqueles do Antigo

Testamento, sob a perspectiva da intertextualidade modificando, assim, as formas de

investigação anteriores.

A aplicação da abordagem intertextual possibilitará precisar a existência de

contatos intertextuais entre os textos propostos para o estudo e, ao mesmo tempo,

detectar se estes se apresentam em linha de continuidade ou descontinuidade.

3. Roteiro e método

O estudo desenvolve-se em três fases:

• revisão bibliográfica sobre a perspectiva da intertextualidade e sua aplicação

aos textos bíblicos, com particular atenção ao Apocalipse e sua relação com os

escritos proféticos, com ênfase em Ezequiel;

• estudo exegético de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12;

• aplicação da abordagem intertextual.

7 Cf. BRIGHTON, L. A., Revelation. Saint Louis, Concordia Publishing House, 1999, 622-630; GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, NewTestStud, v. 27, 342-367, 1981; KISTEMAKER, S. J., Revelation, Michigan, Baker, 2002, 579-583; MATHEWDSON, D., A New Heaven and a New Earth. The Meaning and Function of the Old Testament in Revelation 21.1-22.5, JSNTSup 238. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2003, 186-187; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation. Grand Rapids, Michigan/Cambridge: Eerdmans, 1998, 379-401; OSBORNE,G. R. Revelation. Michigan, Baker Academic, 2004, 768-776; SMALLEY, S. S., The Revelation to John. London: InterVarsity Press, 2005, 561-565; THOMAS, R. L., Revelation 8-22. Chicago, Moody Press, 1995, 455-492;. VANHOYE, A., ‘L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’ Apocalypse, Biblica, v. 43, 436-476, 1962; VANNI, U., Apocalisse e Antico Testamento. Uma Sinossi. Roma, Pontificio Istituto Biblico, 2000, 277-280; VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge, Harvard University, 1985.

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No primeiro capítulo, apresenta-se o estado da questão, com a exposição do

pensamento dos principais estudiosos do Apocalipse. Para tanto, usou-se um duplo

critério: abarcar as grandes linhas de pensamento desta matéria e recolher as

contribuições mais significativas em cada uma das diferentes perspectivas de

abordagem do tema.

No segundo capítulo, o estudo de Ap 22,1-5 terá como parâmetro o Método-

Histórico-Crítico. Sendo assim, inicia-se com a análise de crítica textual e filológica,

seguido do estudo da delimitação do texto e de sua constituição. Na análise

semântica, especial atenção será dada a alguns termos que constituem o cerne da

perícope.

O terceiro capítulo, dedicado ao texto de Ez 47,1-12, do mesmo modo,

seguirá o Método-Histórico-Crítico, e, por conseguinte, partirá da crítica textual e

filológica. Na seqüência teremos a análise da delimitação e constituição do texto e a

análise semântica, onde os termos mais relevantes receberão atenção especial.

Por fim, no quarto capítulo, serão estabelecidas as possíveis relações

intertextuais entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. Para tanto, serão aplicados os critérios a

que se chegou no capítulo primeiro. Uma averiguação sobre estas relações haverá de

levar em conta, em primeiro lugar, se, de fato, o autor do Apocalipse fez uso destes

textos vétero-testamentários e, em segundo lugar, como os utilizou. Para tanto,

partiremos dos estudos sobre as inter-relações entre os textos, abrindo também para o

horizonte dos livros em seu conjunto.

Sendo o nosso objetivo uma avaliação atinente às inter-relações entre Ap

22,1-5 e Ez 47,1-12, o foco desta etapa estará em diagnosticar como ocorrem os

possíveis aspectos intertextuais que, eventualmente, se fizerem presentes entre os

textos. Avaliar se estes permanecem em linha de continuidade semântica e teológica

com o texto anterior ou se se encontram em via de descontinuidade. Nos dois casos, a

investigação dos elementos que geraram estas alterações se faz necessária, posto que

estas poderão ter implementado, ou não, uma mudança de perspectiva no novo texto.

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CAPÍTULO I

1. Status quaestionis

A presença de textos vétero-testamentários no Apocalipse provocou, no

último século, inúmeros questionamentos e tentativas de melhor elucidar o meio

utilizado pelo autor sagrado para apropriar-se do material mais antigo no novo texto.

As primeiras teses apontam para os conceitos de reminiscências, referências,

ecos, midrash, adaptação e alusão. Estes métodos de utilização de antigos textos em

novos textos possuem características próprias impondo uma maior ou menor

fidelidade ao contexto do texto antecedente. Isto, contudo, sem retirar do autor

sagrado a liberdade no momento de empregá-los em um novo texto.

Nos últimos tempos, a tese da intertextualidade vem recebendo especial

atenção por parte dos estudiosos do Novo Testamento8. Por meio dela, percebe-se

8 Cf. BARRETT, C. K., “The Interpretation of the Old Testament in the New.” In Cambridge History of the Bible, 1. Ackroyd, P. - Evans, C. (ed.), Cambridge, Cambridge University Press, 1970, 372-411; BEALE, G. K., The Right Doctrine from the Wrong Texts? Essays on the Use of the Old Testament in the New. Grand Rapids, Baker Books, 1994; “The Use of the Old Testament in Revelation”. In It Is Written: Scripture Citing Scripture. Carson - Williamson (ed.), 318-336; BRATCHER, R. G., The Old Testament Quotations in the New Testament. London, United Bible Societies, 1987; BRAUN, H., “Das Alten Testament im Neuen Testament”, ZTK 59 (1962) 16-31; BRAWLEY, R. L., “Contextuality, Intertextuality, and the Hendiadic Relationship of Promise and Law in Galatians”, ZNW (2002) 99-119; BRUCE, F. F., The New Testament Development of Old Testament Themes. Grand Rapids. William B. Eerdmans, 1968; DALY-DENTON, M., David in the Fourth Gospel. The Johannine Reception of the Psalms. Leiden, Brill, 2000; DEELEY, M., “Ezechiel”s Shepherd and John”s Jesus. A case Study in the Appropriation of Biblical Texts”. In Early Christian Interpretation of the Scriptures of Israel. Investigations and Proposals. Evans, C. A. – Sanders, J. A. (ed.). JSNTSup. 148. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997, 252-265; EFIRD, J. (ed.), The Use of the Old Testament in the New and Other Essays: Studies in Honor of William Franklin Stinespring. Durham, Duke University Press, 1972; FERRELL, J., The Old Testament in the Book of Revelation. Michigan, Baker Book House, 1972; HANSON, A. T., “John”s Use of Scripture” in The Gospel and the Scriptures of Israel. Evans, C. A., - Sanders, J. A., (ed.). JSNTSup. 104. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994, 358-379; KEESMAAT, S. C., “Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8, 14-30”, JSNT 54 (1994) 29-56; LINDARS, B., “The Place of the Old Testament in the Formation of New Testament Theology”, NewTestStud. 23 (1976-7) 59-78; MORITZ, T., A Profound Mystery: The use of the Old Testament in Ephesians. Leiden, E. J. Brill, 1996; MOYISE, S., “The Language of the Old Testament in the Apocalypse” JournStudNT 76 (1999) 97-113; The Old Testament in the New. London, Continnum.2001; OESCH, J., “Intertextuelle Untersuchungen zum Bezug von Offg 21,1-22,5 auf alttestamentliche Prätexte”, ProtoBib 8 (1999) 41-74; POPKES, W., “James and scripture: an exercise in intertextuality”, NewTestStud 45 (1999) 213-229; PORTER, S. E., “The Use of the Old Testament in the New Testament. A Brief Comment on Method and Terminology.” In Early Christian Interpretation of the Scriptures of Israel. Investigations and Proposals. Evans, C. A. – Sanders, J. A.

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que mais do que uma simples fonte onde o novo texto obtém elementos para compor

o seu texto. O texto antecedente se apresenta em processo e o novo texto poderia

retomar o texto que lhe precede e estabelecer um novo alcance teológico. Este, sem

dúvida, seria o grande critério para a reinterpretação de um texto: a teologia enquanto

etapa da Revelação.

A perspectiva intertextual na pesquisa exegética gera, além das novas

possibilidades de compreensão do modo pelo qual o autor do Apocalipse usou o

Antigo Testamento, uma melhor percepção da função do leitor. A este caberia

detectar a presença de um texto “sobreposto” a um outro texto, formando um novo

texto, criando assim um colóquio entre textos.

Tal colóquio poderia ir além do âmbito da Sagrada Escritura e assumir textos

que pertencem à literatura judaica9. Entretanto, nesta literatura, de forma particular,

perceberíamos a autoridade do autor sobre o texto precedente, pois se serve deles,

sem destes tornar-se servo. Novamente o escopo teológico do novo texto exerceria

função de leme, direcionando, com segurança, o novo significado dado aos termos e

símbolos contidos nos textos mais antigos.

(ed.), JSNTSup 148, 1997; SCHUCHARD, B. G., Scripture Within Scripture: The Interrelationship of Form and Function in the Explicit Old Testament Citations in the Gospel of John. Atlanta, Scholars Press, 1992; STENDAHL, K., The School of St. Matthew and its Use of the Old Testament. Philadelphia, Fortress Press, 1968; VANHOYE, A., Old Testament Priests and the New Testament. Petersham, St Bede”s, 1986. 9 Cf. NOBILE, M., “La “Nuova Gerusalemme” in un documento di Qumran e in Apocalisse 21. Genesi di una teologia”. In Atti del VI Simposio di Efeso su S. Giovanni Apostolo. Padovese, L. (ed.). Roma, Pontificio Ateneo Antonianum, 1996; BRIGGS, R. A., Jewish Temple Imagery in the Book of Revelation. New York, 1999; ARCARI, L., “Apocalisse di Giovanni e apocalittica ‘danielico-storica’” del I sec. e V: prospettive per una “nuova” ipotesi”, Vetera Christianorum 39, (2002) 115-132; CORSANI, B., L” Apocalisse e l”apocalittica del Nuevo Testamento. Bologna, EDB, 1997; COURT, J. M., The Book of Revelation and the Johannine Apocalyptic tradition. JSNT Suppl. 190. Sheffield, Sheffield Academic Press, 2000; SCHÜSSLER FIORENZA, E., “Apocalyptic and Gnosis in the Book of Revelation and Paul”, JBL 92 (1973) 565-581; HURTADO, L. W., “Revelation 4-5 in the Light of Jewish Apocalyptic Analogies”, JSNT 25 (1985) 105-124; LAMBRECHT, J., “The Book of Revelation and Apocalyptic in the New Testament”, ETL 55 (1979) 391-397; ROSSO U. L., “Dalla “Nuova Gerusalemme” alla “Gerusalemme Celeste”. Contributo per la comprensione dell”Apocalittica”, Henoch 8 (1981) 69-80; ROWLAND, C., “The Visions of God in Apocalyptic Literature” JSJ 10 (1979) 137-154; SMITH, C., “The Structure of the Book of Revelation in Light of Apocalyptic Literary Conventions”, Novum Testamentum 36 (1994), 373-393; VANNI, U., “L” Apocalisse di Giovanni tra apocalittica giudaica e apocalittica cristiana.” In Apocalittica e liturgia del compimento. Terrin, A. N., Padova, 2000, p. 283-309; COLLINS, A. Y., The Combat Myth in the Book of Revelation. Missoula, Montana, Scholars Press, 1976; “The History-of-Religions Approach to Apocalypticism and the “Angel of the Waters” (Rev 16,4-7)” CBQ 39 (1977) 367-381; “The Book of Revelation”. The Encyclopedia of Apocalypticism. In J. J. Collins (ed.). New York, Continuum, 1998, 391-392.

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No caso específico do uso da profecia de Ezequiel pelo autor do Apocalipse,

algumas teses possuem ênfases diversas: modo de utilização, caráter litúrgico,

democratização de textos anteriores e intertextualidade.

Para tanto, seria necessário perpassar algumas etapas que auxiliariam na

identificação da utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse (1.1). Para

isso é preciso apresentar os autores que não aceitam esta relação (1.1.1) e os que a

aceitam (1.1.2). Em um segundo momento, serão analisados os textos vétero-

testamentários relacionados com o Apocalipse (1.2), as relações com os textos de

Jeremias, Isaías e Daniel (1.2.1) e a dependência de Ezequiel (1.2.2). As diversas

abordagens para o tratamento da relação entre o Apocalipse e o Antigo Testamento

(1.3) seguirão, por primeiro, a linha da exegese tradicional (1.3.1) e, num segundo

momento, a linha da intertextualidade (1.3.2).

No interior das diversas seções deste capítulo, os autores, preferencialmente,

estarão expostos cronologicamente, a fim de facilitar a percepção da origem e do

desdobramento da pesquisa em cada época.

1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse

A relação entre os textos vétero-testamentários e o livro do Apocalipse foi

detectada já nos primeiros séculos da Igreja por Dionísio de Alexandria10, que a

classificava como apropriação inexata, barbarismo e solecismo. Delimitando nosso

trabalho ao último século, podemos ver que a pesquisa tem se inclinado para a

consideração da presença dos textos vétero-testamentários no neotestamentário como

correta.

Uma questão, porém, se impõe: o modo como o autor neotestamentário

absorveu e utilizou os textos do Antigo Testamento. Estaria ele vinculado ao contexto

anterior ou o escopo teológico do novo texto exerceria uma mudança de significado

para o texto antecedente? O texto antecedente seria o Texto Hebraico ou a versão

grega da LXX? O autor neotestamentário teria recorrido aos dois testemunhos

textuais ou apenas a um deles? A resposta não foi formulada facilmente. Após um

10 Cf. EUSEBIUS, Ecclesiastical History, 7.25. Hendrickson Publishers; 1998.

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momento, onde foi prestigiado o uso exclusivo do Texto Hebraico ou da LXX,

sucedeu a tese da intenção do autor sagrado. Assim, caberia ao autor a escolha deste

ou daquele texto segundo o seu escopo teológico. O autor usaria com liberdade o

material disponível.

1.1.1. Os autores que não aceitam essa relação

Com sistemática freqüência, o livro do Apocalipse recorre ao Antigo

Testamento, estabelecendo vínculos complexos e intensos. Estes estão de tal modo

evidenciados que uma linha de investigação, cujo escopo fosse ignorar esta evidência,

colocar-se-ia em lugar de pouca relevância.

1.1.2. Autores que aceitam a relação

a) As diversas compreensões de como se dá a relação

O texto do livro do Apocalipse é considerado pela pesquisa como o texto

neotestamentário que mais utiliza os textos vétero-testamentários11. Estas relações

entre o seu texto e textos antecedentes são tidas como certas no atual momento da

investigação científica12. Há, contudo, divergências quanto ao uso que o autor do

Apocalipse13 faz deste material: seria uma citação, uma alusão, uma reminiscência

ou um eco?

11 As indicações do Novum Testamentum Graece apontam para um total de 959 relações entre o Apocalipse e os textos do Antigo Testamento. Cf. NESTLE ALAND, Novum Testamentum Graece. 27ª Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 2001. 12 Cf. VANNI, U., Apocalisse e Antico Testamento. Una Sinossi. Roma, Pontificio Istituto Biblico, 2000. 13 A questão sobre a autoria do Apocalipse vem sendo alvo de constantes pesquisas nos últimos tempos. Como esta não é o centro de nosso trabalho, não tomaremos posição por uma ou outra linha de pesquisa. Sendo assim, ao dirigirmo-nos ao autor, usaremos tão somente a nomenclatura “autor” sem nomeá-lo. De modo bastante sintético apresentamos três linhas de pesquisa em voga sobre a autoria: O. Böcher, que questiona a identidade histórica do autor do Ap. Cf. BÖCHER, O., Die Johannesapokalypse. Darmstad, 1988. Contendo vasta bibliografia sobre a questão. J. Becker, por sua vez, interpretou o nome João como um pseudônimo. Cf. BECKER, J., “Pseudonymität der Johannesapokalypse und Verfasserfrage”, BZ 13 (1969) 101-121. Sua tese, entretanto, não foi bem aceita pela crítica. A tese de uma escola joanéia como autora deste documento têm vigorado nos últimos anos. Contudo, autores como a de S. S. Smalley indicam que João, o apóstolo, o discípulo amado, escreveu ambos os documentos: o Quarto Evangelho e o Apocalipse. Seu argumento tem por base as semelhanças entre os

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Os primeiros passos em direção a um trabalho para detectar a presença de

citações, reprodução de um texto antigo precedido de uma estrutura introdutória, ou

reminiscências, recurso a elementos de um texto antecedente, de textos vétero-

testamentários nos diversos corpora do Novo Testamento, foram abordados no início

do século passado por Hühn14 e Dittmar15, abrindo caminho para posteriores estudos

mais específicos.

Na opinião de Henry Barclay Swete16, as relações entre os textos do Antigo

Testamento e o livro do Apocalipse não deveriam ser classificadas como citação

formal, pois carecem de fórmulas introdutórias que informam ao leitor a presença de

textos antigos dentro de um texto mais moderno. Sendo assim, adota a terminologia

“referência”, onde o autor do novo texto recorre a termos ou frases de contextos

antigos sem identificá-los. Esta “referência” poderia ser detectada por meio de duas

formas. A primeira delas seria o uso isolado de elementos comuns do Antigo

Testamento. Por elementos comuns, Swete entende o uso de palavras soltas e frases

sem um contexto particular. Este emprego desprovido de formalidades torna-se

possível graças à intimidade que o autor sagrado possui com a linguagem e os textos

do Antigo Testamento. A segunda forma seria o contexto específico das referências a

textos do Antigo Testamento, referências estas combinadas de diferentes contextos,

de diferentes livros do Antigo Testamento ou de diferentes seções dentro de um

mesmo livro do Antigo Testamento.

dois documentos, a saber, os motivos do Êxodo-Moisés, cristologia (palavras de Jesus, Cordeiro, Filho do homem, glorificado e morto), idéias escatológicas além de ambos os documentos utilizarem antigas tradições exegéticas. Cf. SMALLEY, S. S., “John”s Revelation and John”s Community” BJRL 69 (1987) 549-571. Segue a mesma tendência, OSBORNE, G. R., Revelation. Baker Exegetical Commentary on the New Testament. Michigan, Baker Academic, 2004, 2-6. Beale crê na possibilidade de João desejar ser identificado com um grupo de antigos profetas do cristianismo primitivo. A hipótese de Beale carece, contudo, de argumentos sólidos. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation. Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, 1999, 36. 14 Hühn, enumerou 453 reminiscências no Apocalipse, destas, 130 pertencem ao livro do profeta Ezequiel. Esta estatística possui um valor relativo porque Hühn reúne todos os textos de Ezequiel sob um único parâmetro, sem distinguir aquelas mais exatas de outras onde o autor sagrado usa expressões comuns a toda a Escritura (peste, fome, guerra). Cf. HÜHN, E., Die Alttestamenttlichen Citate und Reminiscenzen im Neuen Testament. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1900. 15 Dittmar segue uma linha de investigação que prestigia as citações. Por esta razão, encontra poucos exemplares no texto do Apocalipse. Cf. DITTMAR, W., Vetus Testamentum in Novo. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1903. 16 Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, London, 1911.

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O escopo do emprego destas referências textuais estaria voltado para uma teia

de imagens, simbolismos e níveis de vocabulário cujo resultado é um “mosaico”, do

qual o autor participa de forma consciente, dominando o material disponível e

produzindo uma literatura original17, de estilo “simples e natural”18.

A liberdade do autor é percebida também por Charles19, mas as relações

textuais estabelecidas pelo autor sagrado não seriam as de referências e sim as de

alusões20. Com elas, o leitor seria remetido a textos mais antigos quando estivesse

lendo o novo texto. Seu objetivo final seria o de trasladar e adaptar o material do

Antigo Testamento para o seu intento teológico. O manejo do material do Antigo

Testamento seria, portanto, totalmente independente, proporcionando ao material

antigo a aquisição de um novo contexto com a produção de um novo matiz

interpretativo.

Albert Vanhoye21, que tem como centro da pesquisa as relações entre o

Apocalipse e textos vétero-testamentários com o livro do profeta Ezequiel, afirma que

o autor do Apocalipse toma por empréstimo diversos textos22, usando-os com

liberalidade. Sendo delicada a definição de um empréstimo, Vanhoye propõe que esta

forma de utilização seja classificada em quatro categorias: double utilisation23,

17 Por exemplo: Ap 11,18 e Sl 98; Ap 16,16 e Zc 12,11. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. João, cliv-clv. 18 São exemplos deste modelo: Ap 1,13-16 baseado sobre Ezequiel e Daniel; Ap 4,2-8 sobre Isaías e Ezequiel e Zacarias; Ap 7 sobre Isaías; Ap 16 sobre Êxodo; Ap 18 sobre oráculos proféticos contra Tiro e Babilônia; Ap 21-22 sobre Isaías e Ezequiel. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, cliii. 19 Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, I, Edinburgh, T&T Clark, 1920, lxviii-lxxxii. 20 A identificação destas alusões segue o seguinte critério: alusão clara, alusão provável e alusão possível. Alusão clara é a quase identificação do texto com sua fonte do Antigo Testamento; alusão provável quando há pouca aproximação entre os textos, embora apresente idéias presentes no Antigo Testamento ou a estrutura destas; a alusão possível contém uma linguagem similar a da sua fonte, ecoando seus conceitos ou seus escritos. Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, lxvi. 21 Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, Biblica 43 (1962) 436-476. 22 O termo empréstimo é usado por Vanhoye com a finalidade de mostrar a independência do autor do Apocalipse sobre o material do qual dispõe. Com efeito, ele não se escraviza reproduzindo exatamente os textos inspiradores, antes transforma-os e eleva-os, dilata ou restringe temas, imagens ou sentidos segundo o seu escopo teológico. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 462-464. 23 As double utilisation estão presentes em Ap 5,1; 10,8-10 e Ez 2, 8-3,3; Ap 17,4; 18,6 e Jr 51,7; Ap 11,1; 21,10 e Ez 40-48. No primeiro caso, a visão inaugural de Ez 2,8-3,3 insere-se no contexto de visão inaugural de Ap 5,1 onde o visionário de Patmos deve ouvir, e o centro da atenção encontra-se

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utilização de textos do Antigo Testamento em um novo contexto; unidade da obra do

Apocalipse24, que se apresenta de forma sintética em contraposição à tendência da

literatura apocalíptica de ampliar e expandir25; universalismo, a promessa de

salvação agora é um fato para toda a raça humana; e combinação de textos do Antigo

Testamento26, onde várias fontes vétero-testamentárias são utilizadas

simultaneamente para melhor indicar o seu cumprimento.

A fidelidade ao contexto e aos significados dos textos do Antigo Testamento

presentes no Apocalipse foi proposta por Schüssler Fiorenza27 como via de

compreensão das relações entre o Antigo Testamento e o Apocalipse. Por

conseqüência, a autora classifica o estilo do autor do Apocalipse como antológico, ou

seja, um estilo que reúne sem um critério rígido textos de diversos contextos,

tomando os textos do Antigo Testamento sem interpretá-los, apenas recorrendo às

suas imagens, frases, bem como à linguagem militar com vistas à sua teologia.

no Cordeiro que assume o livro, mas em Ap 10,8-10 o sentido aproxima-se mais daquele de Ezequiel, já que o anjo ordena que o livro seja devorado pelo autor do livro do Ap, aproximando-se mais de seu contexto original. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 462-463. A tese de double utilisation já havia sido proposta por Cerfaux e Cambier que haviam constatado no processo redacional do autor do Apocalipse utilizações posteriores e retomadas em um novo contexto de certas visões do AT. Cf. CERFAUX, L., et CAMBIER, J., L”Apocalypse de S. Jean lue aux chrétiens. Paris, 1955, 69.88. 24 A profecia de Ezequiel é rica em desenvolvimentos e descrições minuciosas já o Apocalipse prima pela concisão e precisão como se pode perceber em Ap 4,2; 10,1 e Ez 1,28; Ap 4,2-11 e Ez 1,4-28; Ap 18,9-19 e Ez 26,15-18; 27,2-36; Ap 21,10-27; 22,1-5 e Ez 40-48.; Ap 21,22 e Ez 48,15-16.30-35. O Apocalipse torna-se assim, mais sóbrio do que o texto sobre o qual está firmado. Esta estrutura e organização coerente das imagens do Apocalipse oferecem ao livro uma coesa unidade. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 463-464. 25 O termo está em plena sintonia com o Antigo Testamento, mas, deve ser entendido com a marca do espírito cristão, que revela o seu cumprimento. O autor sagrado, embora sendo profundamente fiel a linha dos antigos profetas, os supera porque o universalismo, outrora promessa, é agora fato. A Cruz redime toda a raça humana de todas as épocas, de todos os povos. Por exemplo: Ez 3,11 o profeta recebe a ordem de pregar aos exilados; Ap 10,11 a missão é direcionada a todos os povos, línguas, nações e reis. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 467. 26 Uma outra característica do trabalho do autor do Apocalipse é a combinação de várias fontes vétero-testamentárias. Uma das ilustrações é a cena do trono em Ap 4 onde encontram-se além dos textos de Ezequiel, textos de Isaías, Êxodo e Daniel. Ap 22 possui esta mesma estrutura, embora o texto de base seja considerado aquele de Ezequiel, é tida por certa a presença de outros textos vétero-testamentários como Gn 2,9; Zc 14,8; 14,11. O objetivo do autor neotestamentário parece ser aquele de procurar textos que se completam ou então que se corrigem mutuamente de maneira que se possa experimentar com maior fidelidade o seu cumprimento. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 467-468. 27 Cf. SCHÜSSLER FIORENZA, E., The Book of Revelation: Justice and Judgment. Philadelphia, Fortress, 1985, 135.

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A questão da fidelidade ao contexto do Antigo Testamento, na opinião de

Beale28, é estéril em função do modo como o autor do Apocalipse utiliza o material

vétero-testamentário, a saber: as citações são de natureza informal29; o espírito

profético do autor do Apocalipse lhe confere autoridade sobre o Antigo

Testamento30; o autor sagrado era hábil na literatura grega pagã, porém seus leitores

não dominavam totalmente o contexto das alusões por falta de um conhecimento

prévio ou necessidade de uma nova leitura; por fim, não há evidências de que o autor

esteja interpretando conscientemente os textos que cita31.

Na visão de Beale, temos vários níveis de aplicação contextual que oscilam do

consciente até o inconsciente32. Beale entende que as relações entre o Apocalipse e o

Antigo Testamento poderiam constituir um midrash de Daniel 2 e 7. Este seria o livro

mais influente dentre todos os textos utilizados pelo Apocalipse33.

A existência das relações entre Antigo Testamento e Apocalipse foi tratada

por Moyise34 como alusão, isto é, os textos vétero-testamentários teriam sido

incorporados ao novo texto. Esta integração se daria de tal forma que o texto mais

antigo estaria em diálogo com o novo texto e nele encontraria um novo significado,

transformando o último livro do Novo Testamento em uma obra ímpar. Nele, textos

estariam em contínuo diálogo de maneira que, ao estar em contato com o texto

produzido pelo autor do Apocalipse, seria necessário possuir memória dos textos

vétero-testamentários para bem compreender o texto atual. Este diálogo entre textos,

proposto por Moyise, atenuaria a questão do contexto dos textos do Antigo 28 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation. 77. 29 As citações informais são entendidas por Beale em sentido antológico, sem critério. Sua aplicação origina um novo pensamento distanciado do contexto inicial, mas permite intercessões. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 81. 30 Na opinião de Beale, o espírito profético dá suporte ao estilo apocalíptico e exclui a necessidade de uma autoridade a ser recorrida como avalista. As citações decorrentes estão, por conseguinte dissociadas de uma interpretação contextual do Antigo Testamento. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 81. 31 É o que Beale depreende das relações entre Ez 43,2 e Ap 1,15; Ez 37,3 e Ap 7,14; Ez 37,10b e Ap 11,11 dentre outros textos. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 84-85. 32 Os níveis de aplicação contextual são: contexto literário, histórico e temático. O autor sagrado pode ter usado um ou mais contextos. Para Beale, a maior incidência se deu no literário e temático, raramente encontraríamos uma aplicação contextual de nível histórico. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 85-86. 33 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John. Lanham, University Press of America, 1984. 34 Cf. MOYISE, S.; The Old Testament in the Book of Revelation. JSNTSup, 115. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995, 63.

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Testamento presentes no âmbito do Novo Testamento, pois considera que o autor

sagrado construiu uma ponte entre os dois contextos, dando origem a uma interação

que perpassa todo o livro.

A classificação das relações entre os textos como adaptações foi sugerida por

Fekkes35. Assim, não haveria oposição entre o estilo profético e a atividade exegética

do autor do Apocalipse, posto que seu estilo antológico não é contextualizar com

absoluta fidelidade o texto antigo, mas adaptá-lo. Tal procedimento, assinala Hays36,

não seria uma exclusividade do último livro do Novo Testamento. Os autores do

Evangelho de Mateus, de Paulo e da Carta aos Hebreus de igual maneira teriam

modificado textos do Antigo Testamento para uma nova situação no Novo

Testamento, visando mostrar o cumprimento destes, tendo consciência do contexto

original deles.

Em síntese:

As teses propostas para responder à questão sobre a presença de textos vétero-

testamentários no último livro do Novo Testamento concordam em dois pontos: a

inexistência de uma citação formal no Apocalipse e a liberdade do autor ao manipular

o material segundo o seu escopo teológico.

Encontram-se divergências, porém, quanto à definição a ser dada ao meio para

realizar esta utilização de textos. Hühn e Dittmar classificam os textos vétero-

testamentários presentes no Apocalipse como citações ou reminiscências; Swete,

referências; Charles, alusões; Vanhoye, doublé utilisation, unidade da obra,

universalismo e combinação de textos; Schüssler Fiorenza, fidelidade ao contexto e

ao significado do texto antecedente; Beale, midrash; Moyise, alusões; Fekkes e Hays,

adaptação. Este elenco variado se deve à ausência de uma definição clara, capaz de

precisar o que é uma alusão, uma citação, um midrash ou uma reminiscência37.

35 Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation: Visionary Antecedents and Their Development. Journal for the Study of the New Testament Supplement 93. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994, 286-290. 36 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul. Yale, Yale University Press, 1989. 37 Cf. PAULIEN, J., “Elusive Allusions: The Problematic Use of the Old Testament in Revelation”, Biblical Research 33 (1988) 37-53.

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O contexto dos textos vétero-testamentários, de igual modo, traria oscilações

entre os pesquisadores, pois para uns o contexto do Antigo Testamento teria sido

observado, não havendo interpretação destes (Fiorenza); para outros, o texto vétero-

testamentário teria sido interpretado, logo não haveria fidelidade contextual (Moyise);

outros ainda preferem dizer que o autor oscila entre a consciência e a inconsciência

ao recorrer a um texto vétero-testamentário (Beale).

Poder-se-ia dizer que os dois principais pólos da pesquisa possuem valores,

posto que, em alguns textos, o autor sagrado mantém o contexto original dos textos

utilizados enquanto em outros executa seu trabalho com liberdade modificando seu

contexto e significado. As questões de fundo seriam: por que o autor sagrado assim se

comporta? O que desejaria ele provocar no seu leitor ao compor este tipo de texto?

A tese de Moyise sobre um diálogo entre textos, que gera uma nova

compreensão de temas, símbolos e contextos, parece possuir uma abertura para

detectar as diversas nuances do processo criacional do autor do Apocalipse. Esta, de

fato, estaria em sintonia com a liberdade do autor sempre destacada na maior parte

das pesquisas.

b) As teses acerca do tipo de texto que terá sido utilizado

Tendo como ponto de convergência entre os pesquisadores o uso de textos

vétero-testamentários no livro do Ap, impõe-se o problema do tipo de texto utilizado

pelo autor sagrado: teria ele recorrido ao Texto Hebraico ou a LXX? Sua

identificação não parece, contudo, de fácil solução em decorrência do estilo do autor.

De fato, este opta por uma metodologia nem sempre clara para empregar os textos

vétero-testamentários.

A pesquisa de Swete indica que o autor do livro do Apocalipse utilizou a

versão da LXX e mantém com esta uma relação de dependência38. Embora não

descarte o conhecimento da língua hebraica pelo autor neotestamentário, é cético

sobre o uso direto do Texto Hebraico.

38 No início do século passado, Swete apresentou uma minuciosa tabela de textos com 278, de um total de 404, versículos ou frases do Apocalipse que possuem contatos com os textos vétero-testamentários bastante próximos dos textos gregos concluindo que estes seriam sua fonte.Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, cliv-clv.

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Na visão de Charles, entretanto, o texto do Apocalipse estaria baseado

diretamente no Texto Hebraico do Antigo Testamento, mas com mostras de uma

evidente influência da LXX, conseqüência de uma versão grega posterior dos textos

do Antigo Testamento39.

Segundo Charles, o autor sagrado teria realizado algumas traduções do Texto

Hebraico40, o que justificaria a presença de solecismos e hebraísmos41 no texto

neotestamentário. Charles compreende os casos de solecismos como originados no

fato do autor do Apocalipse pensar em hebraico e escrever em grego e por ser ele

mesmo o responsável pelas traduções de suas fontes, que estavam em seu original no

hebraico, dificultando, assim, o seu trabalho com a nova língua. Já no caso de

hebraísmo, Charles destaca a necessidade de identificar como a LXX recebeu a

tradução do Texto Hebraico e qual o seu significado nas línguas modernas42. Em

39 Charles segue de perto o pensamento de J. Gwynn concordando com a existência de um Ur-Teodocião e negando a presença da LXX referindo-se ao Antigo Testamento nos seguintes textos: Ap 1,17 e Is 48,12; Ap 3,7 e Is 22, 3.9c e Is 60,14; Ap 15,3-4 e Jer 10,7; Ap 1,6; 5,10 e Ex 19,6. Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, I, lxviii-lxxxii. Sobre o Ur-Teodociâo veja: Cf. GWYNN, J., “Theodotion”. In A Dictionary of Christian Biography. William Smith & Henry Ware (ed.). London, John Murray, 1877-1887, 4: 970-979; JELLICOE, S., The Septuagint and Modern Study. Oxford, Oxford Press, 1968. Do mesmo autor, Studies in the Septuagint: Origins, Recensions, and Interpretations: Selected Essays with a Prolegomenon. New York, Ktav, 1974; TOV, E., “Jewish Greek Scriptures” in Early Judaism and Its Modern Interpreters. Robert A. Kraft & George W. E. Nickelsburg (ed.). Philadelphia, Atlanta Scholars Press, 1986; SCHMIDT, D., “Semitisms and Septuagintalisms in the Book of Revelation”, NewTestStud 37 (1991) 592-603; HARL, M. - DORIVAL, G. – MUNNICH, O., La Bible grecque des Septante. Paris, Edition du Cerf, 1994 ; http://arts-sciences.cua.edu/ecs/jdk/LXX/index.htm 40 Na introdução de seu comentário Charles oferece uma Short Grammar of the Apocalypse. Trabalho minucioso que indica onde encontrar as traduções realizadas pelo autor do Apocalipse. 41A presença de solecismos já havia sido detectada por Dionísio de Alexandria que considerou a existência dos textos do Antigo Testamento no texto grego do Apocalipse como inexatidão, barbarismos e solecismos. Cf. EUSEBIUS, Ecclesiastical History, 7.25. Beale estabelece uma criteriosa distinção entre “semitismo” e “hebraísmo”. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 103-105. Vale destacar que os solecismos oferecem ao texto uma fisionomia única, um estilo inimitável. Uma pesquisa bastante apurada sobre o tema pode ser encontrada em ROBERTSON, A. T., A Grammar of the Greek New Testament the Light of Historical Research. New York, 1914. Contreras Molina propõe que o autor sagrado tem a nítida intenção de escrever empregando os solecismos, barbarismos e hebraísmos, pois teria em vista a sua mensagem teológica. Também o manejo dos tempos verbais, presente, passado e futuro, estariam em função desta mensagem e de realçar o simbolismo empregado. Sua finalidade seria o desligar-se do determinismo do tempo e implantar um tempo “metahistórico”, um tempo, que distante do tempo histórico, atinge todo o tempo. Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura Cristológica del Apocalipsis. Salamanca, Sigueme, 1991, 17-18. 42 Obviamente Charles não se preocupa com a totalidade das línguas modernas, antes com a sua língua pátria: The Greek text needs at times to be translated into Hebrew in order to discover its

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função destes hebraísmos, muitas traduções deficientes teriam sido feitas desde o

segundo século até os nossos dias.

A questão do tipo de texto utilizado também foi o centro da atenção de

Vanhoye43. Este, porém, dedica especial atenção ao texto de Ezequiel, pois das

sessenta e quatro vezes que o texto é citado no Novo Testamento, quarenta e quatro

estão no Apocalipse.

Vanhoye considera a pesquisa de Swete carente de um estudo das demais

traduções gregas, assim como de um confronto com o Texto Massorético44. Para

Vanhoye, Swete trabalha com uma grande familiaridade com as versões gregas do

Antigo Testamento, mais do que numa comparação atenta com o Texto

Massorético45. Em um outro extremo da pesquisa estaria Charles, que aceitaria a

utilização do Texto Hebraico sem cogitar a versão grega da LXX.

Tendo como objetivo uma melhor identificação do texto usado, Vanhoye, em

um primeiro momento, apresenta um estudo de textos que indicariam uma

aproximação com a LXX, e outros com os Textos Massoréticos46. O texto de Ap

18,21 é considerado a citação mais exata e nele estaria ausente a versão da LXX. Em

um segundo momento, examina a presença de alguns textos de Ezequiel no

Apocalipse sob o título de “citations exactes” 47 ou “citations presque exactes” 48.

meaning and render it correctly in English. Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, cxliv-cxlviii. 43 Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 436. 44 Vanhoye não segue o pensamento de Swete que entende ser o texto do Apocalipse um trabalho parafraseado do texto da LXX. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 443. 45 Nesta linha de pensamento encontra-se o comentário de Lucien Cerfaux e Jules Cambier. Segundo este estudo, o autor do Apocalipse teria tido acesso a um texto grego da versão da LXX. “Nous nous sommes persuadés que S. Jean lisait un texte grec voisin de celui des LXX; c” est pourquoi nous avons traduit régulièrement le texte grec de l” Ancien Testament plutôt que le texte hébreu; les exceptions seront indiquées”. Cf. CERFAUX, L., et CAMBIER, J., L”Apocalypse de S. Jean lue aux chrétiens, 7. 46 Textos que se inclinariam para uma utilização do texto da LXX: Ap 1,13 e Ez 9,11; Ap 2,7 e Ez 31,9; Ap 6,8 e Ez 5,12; Ap 9,21 e Ez 43,9; Ap 10,9 e Ez 2,8; 3,3; Ap 11,11 e Ez 37,5.10; Ap 11,13 e Ez 38,19-23; Ap 22,1-2 e Ez 47,1-12. Textos que possuem maior aproximação com o Texto Massorético: Ap 1,15 e Ez 43,2; Ap 4,7 e Ez 10,14; Ap 18,1 e Ez 43,2; Ap 18,18 e Ez 27,32; Ap 18,9.11.15.19 e Ez 27,31b; Ap 18,21 e Ez 26,21; Ap 22, 2 e Ez 47,12. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 445-448. 47 As “citations exactes” tem por característica a concordância entre um texto da LXX e o Texto Massorético. Por exemplo: Ap 10,10 e Ez 3,3. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 448-449.

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Na visão de L.P. Trudinger,49 existem afinidades com as versões gregas, das

quais decorreriam algumas referências ao Antigo Testamento, mas ele atenua a

importância desta evidência pondo em debate uma tradução direta de um texto

aramaico para algumas seções de Daniel sem distanciar-se da presença do Texto

Hebraico. Investiga ainda o uso de textos do Targum no Apocalipse50, evidenciando

o conhecimento destas obras pelo autor sagrado como também o seu emprego51.

O reconhecimento de algumas referências ao Antigo Testamento na versão da

LXX explicaria a procedência das divergências existentes no texto neotestamentário.

Assim, inclinar-se-ia para uma mostra da pouca afinidade entre o autor sagrado e o

texto grego. Esta pouca afinidade poderia indicar uma independência com relação a

LXX nos textos de Ezequiel e Daniel, posto que não se encontram citações deste

material, antes palavras elaboradas pelo autor sagrado.

A retomada do caminho de uma análise restrita ao Texto Hebraico e sua

versão grega da LXX foi percorrido por Gangemi52. Este classificaria a utilização do

Texto Hebraico ou da LXX como “ad litteram”53: textos que mencionariam

48 No caso das “citations presque exactes”, a influência da LXX parece mais acentuada: Ap 7,14 e Ez 37,3; Ap 11,11 e Ez 37,10; Ap 18,19 e Ez 27,30; Ap 18,21 e Ez 26,21. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 449-450. 49 Cf. TRUDINGER, L.P., The Text of the Old Testament in the Book of Revelation. ThD Dissertação, Boston University, 1963. Um sumário desta obra pode ser encontrado em: “Some Observations Concerning the Text of the Old Testament in the book of Revelation”, JTS 17 (1966) 82-88. 50 Segundo Trudinger, o uso do Targum explicaria melhor texto como Ap 1,4 que, além de Ex 3,14 e da LXX, teriam recorrido ao Targum Deut 32,39. Mais à frente em Ap 18,22 ligado a LXX e ao Texto Massorético de Ez 26,13 a expressão “harpas” vincular-se-ia ao próprio instrumento, já no Targum se explicita a ação sofrida pelo instrumento “jogando as suas harpas”. Um outro exemplo está em Ap 21,3 onde nem o texto da LXX nem o Texto Massorético de Ez 37,27 explicam de maneira contundente o uso que o autor sagrado faz deste texto. A melhor solução seria um recurso ao Targum ou a Lv 26,12. Cf. TRUDINGER, L.P., The Text of the Old Testament in the Book of Revelation, 122. 51 Smalley entende que o autor sagrado pertence à sociedade greco-romana, portanto, teve acesso tanto às idéias proto-gnósticas e textos mágicos, quer oriundos do judaísmo ou do universo greco-romano. Presume ainda, que o autor possuía familiaridade com a literatura clássica. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John. London, InterVarsity Press, 2005, 8-9. 52 Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di Giovanni” (2a. parte), Euntes Docete 27 (1974) 311-339. 53 Textos citados ad litteram: Ap 1,17; 2,8 e 22,13 estariam relacionados com Is 41,4; 44,6 e 48,12. Os dois últimos textos na visão de Gangemi, se correspondem perfeitamente do ponto de vista literário contendo acentos também sobre a teologia. O primeiro embora possua diversidade quanto às expressões possui afinidades quanto ao conteúdo. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di Giovanni”, 114.

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claramente o Texto Hebraico, “quasi ad litteram”54: textos que não possuem a

mesma clareza e aqueles utilizados com sentido: escassos de uma precisão dos

elementos literários utilizados. Haveria, contudo, uma certa probabilidade da

utilização do Texto Hebraico, embora não sejam raros os elementos para propor a

utilização da LXX.

Prosseguindo na linha de dilatação de textos que teriam influenciado o texto

do Apocalipse temos Gregory K. Beale55. O autor propõe, para o caso específico do

uso do texto de Daniel, o aramaico56, além da presença da literatura Qumrânica sobre

Daniel, da apocalíptica judaica de 1 Enoc, Testamento de Josefo, 4 Esdras e 2 Baruc.

Com relação ao uso da Bíblia Grega nas citações de Daniel no Apocalipse, o autor

inclinar-se-ia para o emprego do texto de Teodocião em detrimento da LXX57.

Distanciando-se das teses antecedentes temos Moyise. Este recorre ao estilo

particular do autor do Apocalipse, que não usa citações diretas, mas preserva sua

estrutura textual, a linguagem e o vocabulário do Antigo Testamento para demonstrar

que o autor sagrado recorreu tanto à fonte grega como à semita. Uma dependência

exclusiva pareceria pouco provável. Seria possível, todavia, que textos tivessem sido

interligados com vistas a uma finalidade teológica58. A este ato de interligar textos,

Moyise denomina intertextualidade59.

A intertextualidade, na pesquisa de Mario Cimosa60, é vista como um

instrumento que corroboraria a presença de textos da LXX no texto do Apocalipse,

quando este pode ser verossimilmente demonstrado. Sua hipótese estaria sustentada

nos estudos dos Padres da Igreja e também em estudos contemporâneos que vêem na

54 Textos quasi ad litteram: Ap 1,16 e Is 49,2; Ap 7,16 e Is 49,10; Ap 14,3 e Is 42,10; Ap 21,10 e Is 52,1; Ap 21,5 e Is 43,19. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di Giovanni”, 115. 55 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John. Lanham, University Press of America, 1984. 56 A tese do uso de um texto aramaico pode ser encontrada também em Jean-Pierre Ruiz. Cf. RUIZ, J.-P., Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic Language in Revelation 16,17-19,10. Frankfurt am Main, Bern, New York, Paris, Peter Lang, 1989. 57 Cf. BEALE, G. K., “A Reconsideration of the Text of Daniel in the Apocalypse”, Biblica 67 (1986) 539-543. 58 Cf. MOYISE, S., The Old Testament in the Book of Revelation, 108-138. 59 Não entraremos em detalhes sobre a nomenclatura “intertextualidade” neste momento. 60 Cf. CIMOSA, M., “L” autore dell” Apocalisse ha usato la Bibbia Greca?” 63-94. In Bosetti, E., & Colacrai, Apokalipsis. Percosi nell” Apocalisse di Giovanni. Assisi, Cittadella Editrice, 2005, 66.

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LXX algo mais que uma simples versão, considerando-a uma etapa do progresso

lingüístico da Revelação que terá seu ápice no Novo Testamento.

Em síntese:

A trajetória da pesquisa sobre o tipo de texto a que recorre o autor do

Apocalipse poderia ser apresentada em três momentos distintos. O primeiro é aquele

de polarização: ou o autor tomou o Texto Hebraico (Charles) ou a LXX (Swete). A

presença do Texto Hebraico justificaria os solecismos e hebraísmos presentes no

texto, pois o autor estaria pensando em hebraico e escrevendo em grego. Esta

ocorrência hoje é facilmente explicada e compreendida como um recurso do próprio

autor sagrado para dar ênfase ao seu escopo teológico. Quanto a LXX, teria apenas

um valor secundário.

Os textos analisados são considerados por Vanhoye como incapazes de

testemunharem totalmente a favor da LXX, embora não possuam elementos para uma

total negação de uma dependência desta. De fato, ele constatou que elas reproduzem

também o Texto Hebraico sob o aspecto de dependência vocabular. No entanto,

quando se examinam as reminiscências, encontram-se constantes divergências da

tradução da LXX, e estas fazem pensar em modificações intencionais. Logo, o autor

do Apocalipse não reproduz exatamente o texto que utiliza, não se torna escravo

diante dos textos sobre os quais se inspira. Antes, quando utiliza um texto, o faz com

criatividade, adaptando o material do qual se apropria61.

Vanhoye segue as pesquisas anteriores, mas considera a presença do Texto

Hebraico sem excluir totalmente a LXX. A ausência de citações formais e a liberdade

com que se desloca o autor do Apocalipse geraria a dificuldade na precisão de uma ou

outra tradição textual. A opção dentre elas estaria vinculada à necessidade teológica

do autor, que, conhecendo bem as tradições e a elas recorrendo, mantém suas

estruturas ou as subordina segundo a sua intenção autoral. Deste modo, alguns textos

tenderiam para o Texto Hebraico enquanto outros para a LXX.

Na opinião de Vanhoye, a questão resulta de difícil solução, uma vez que o

autor do Apocalipse não apresenta citações formais, além do fato deste modificar com

61 "En résume, il nous apparaît qu”aucun des indices invoqués en faveur d”une utilisation du texte grec d”Ézéchiel ne s”impose de façon incontestable". Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 460.

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liberdade os textos utilizados ou de combiná-los com outros textos impedindo uma

precisão na identificação da fonte. Deste modo, um texto evocado como argumento

favorável à presença da LXX pode também servir como objeção.

Gangemi partilha da tese de intenção do autor, mas tende para o Texto

Hebraico, sem, contudo, invalidar a LXX.

Em um segundo momento, encontram-se as teses de Trudinger e Beale, que

propõem a abertura para a análise de outros textos que exerceriam influência sobre o

texto do Apocalipse, tais como o texto aramaico de Daniel, os Targumim, a literatura

Qumrânica, a apocalíptica judaica, dentre outros. A respeito do texto grego, entendem

que teria sua origem no texto de Teodocião e não na LXX.

Em um terceiro momento, encontra-se a tese de Moyise. Este abordaria a

questão do recurso ao Texto Hebraico ou a LXX, como um emprego segundo a

necessidade do autor. Cada livro do Antigo Testamento presente no Apocalipse

sofreu uma intervenção diferente em função do escopo teológico do autor sagrado. A

metodologia intertextual proposta por Moyise, como também a literária, levam o

autor a inclinar-se, contudo, para o texto grego.

Entretanto, esta preferência pelo texto grego não seria uma novidade. Esta

hipótese remonta aos Padres da Igreja, que viam na versão da LXX um progresso na

linguagem da revelação bíblica que terá o seu auge no Novo Testamento e no uso que

alguns autores farão da Bíblia Grega, que é, em última instância, o texto do Antigo

Testamento utilizado.

1.2. As relações dos livros proféticos e de Daniel com o Apocalipse

O interesse pela pesquisa analítica do modo como os textos proféticos foram

usados no Apocalipse vem tornando-se cada vez maior nos últimos tempos62. Ao que

62 Dado o escopo de nosso trabalho, nos restringiremos ao estudo de alguns textos proféticos e do livro de Daniel no Apocalipse. Todavia, outros trabalhos dedicam-se a compreender a presença de outros textos vétero-testamentários no Apocalipse: FEUILLET, A., “Le Cantique des Cantiques et L” Apocalypse. Étude de deux réminescences du Cantique dans l”Apocalypse johannique”, RSR 49 (1961) 321-353; “La mystique nuptiale et la réponse de l”homme à l”amour divin d”après Ap 3,20 et Ct 5,2-5”, Carmel 41 (1986) 2-14; ATKINSON, K., An Intertextual Study of the Psalms of Solomon: Pseudepigrapha. Lewiston, The Edwin Mellen Press, 2001; MOYISE, S., The Psalms in the New Testament. London, New York, T&T Clark, 2004.

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tudo indica, o autor sagrado recorre às imagens, figuras, expressões do Antigo

Testamento, de maneira pessoal e independente, dando um significado diverso e

desfrutando do material antigo para construir algo novo. Em alguns momentos,

porém, este uso criaria uma série de contatos intimamente ligados a outros textos, o

que acarretaria inúmeras dificuldades na interpretação do Apocalipse.

Os vínculos entre textos levariam a crer que a chave para elucidar este livro

estaria na compreensão do modo pelo qual os textos vétero-testamentários foram

tomados no último livro do Novo Testamento e postos em conexão. Os maiores

estudos dedicaram-se, sobretudo, a uma análise da relação do Apocalipse com Daniel,

Isaías, Jeremias e Ezequiel. Este último receberá, de nossa parte, especial atenção em

decorrência de sua importância para o livro do Apocalipse. Passamos, pois, a

observar, de maneira sintética, alguns textos utilizados pelo autor do Apocalipse.

1.2.1. As relações com Isaías, Jeremias e Daniel

a) as relações com Isaías

A presença do texto do Dêutero-Isaías no Apocalipse foi abordada por Attilio

Gangemi63 e é classificada em diversos tipos: ad litteram64, quasi ad litteram65,

utilização com sentido, simples alusão ou reminiscência. Haveria ainda o recurso a

elementos e alusões genéricas de índole temática.

63 Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell”Apocalisse di Giovanni” (1a. parte) Euntes Docete 27 (1974) 109-144. O número de citações de Isaías no Apocalipse na visão de Gangemi, não seria excessivo, uma vez que seriam encontradas apenas 27 citações. 64 Os textos citados ad litteram são encontrados em Ap 1,17; 2,8; 22,13 e relacionados com Is 41,4; 44,6 e 48,12. Os dois últimos textos, na opinião de Gangemi, correspondem perfeitamente do ponto de vista literário e com acentos também sobre a teologia, o primeiro embora possuindo diversidade quanto às expressões possui afinidades quanto ao conteúdo. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di Giovanni”, 112-113. 65 Os textos quasi ad litteram propostos são: Ap 1,16 e Is 49,2; Ap 7,16 e Is 49,10; Ap 14,3 e Is 42,10; Ap 21,10 e Is 52,1; Ap 21,5 e Is 43,19. Nesta seção, Gangemi observa que surpreende o emprego de expressões idênticas existindo, porém, diferenças quanto à perspectiva de cada autor. O autor do Apocalipse introduziria algumas alterações com relação ao Texto Hebraico sem que isto modifique substancialmente o texto seja do ponto de vista terminológico, como também da construção das frases, esta mutação seria conseqüência do novo contexto onde o texto encontra-se aplicado. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell”Apocalisse di Giovanni”, 114-115.

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Os textos ad litteram e quasi ad litteram possuiriam expressões estreitas com

o texto deuteroisaiano; as possíveis diferenças detectadas teriam sua origem na

intenção do autor neotestamentário.

Os textos utilizados com sentido66 teriam sofrido mudanças terminológicas

ou estruturais introduzidas pelo autor, que os modelaria com maior liberdade. A

simples alusão ou possível reminiscência são textos nos quais o autor do Apocalipse

apenas alude mais ou menos claramente a alguns textos deuteroisaianos67.

Gangemi considera que o autor do Apocalipse usa o dêutero-Isaías, em alguns

momentos, como uma imagem de fundo, ou seja, o texto que serviria como orientação

para a composição do cenário é aquele de Isaías, embora existam relações com outros

textos, conforme procurou evidenciar com o estudo de Ap 5,6-1068. Um outro

recurso na utilização do dêutero-Isaías seriam os elementos isolados e a temática69,

extraídos do deuteroisaiano e reelaborados no texto do Apocalipse.

A presença dos textos do deuteroisaiano no Apocalipse poderia ser entendida

ainda como afinidades de ordem literária e temática, conforme Benito Marconcini70.

66 Para tanto são propostos os seguintes textos: Ap 6,12 e Is 50,3; Ap 12,12 e Is 44,23; 49,13; Ap 18,7.8 e Is 47,7-9; Ap 21,27 e Is 52,1; Ap 22,17 e Is 55,1. 67 Respectivamente: Ap 21,2 e Is 49,18; 54,5; Ap 1,5 e Is 55,4; 43,9-12; 44,8; Ap 3,9 e Is 43,4; Ap 3,18 e Is 55,1; Ap 12,14 e Is 40,31. 68 Gangemi conclui que esta perícope recebeu influência do texto do deuteroisaiano bem como do Êxodo. Os pressupostos de Gangemi decorrem da necessidade do autor do Apocalipse possuir uma idéia de fundo que suprisse a carência da descrição do Êxodo. Assumindo o texto do dêutero-Isaías como texto base de Ap 5,6-10, todos os elementos do Êxodo presentes nesta perícope deveriam ser retomados a partir do dêtero-Isaías. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di Giovanni”, 133-144. O tema central desta perícope é a figura do avrni,on. Dois autores destacaram-se na pesquisa sobre a origem do termo avrni,on no Apocalipse: J. Comblin, que defende a tese do termo estar vinculado a Is 53,7ss sem negar a relação deste com o cordeiro pascal do Êxodo e um vínculo com a apocalíptica. Holtz, por sua vez, prefere ligá-lo ao contexto do Êxodo, sem admitir um vínculo com a apocalíptica. Cf. COMBLIN, P., Le Christ dans l”Apocalypse. Paris, Desclée, 1965; HOLTZ, T., Die Christologie der Apokalypse des Johannes. Zweite, Akademie-Verlag-Berlin, 1962. 69 Gangemi propõe cinco temas presentes no Apocalipse cujo pressuposto seria a temática tratada no texto deuteroisaiano: a transcendência de Deus, presente nos textos de Is 41,5; 44,6; 48,12b e Ap 1,7; 2,8; 22,13. O tema da redenção e do servo tratado em Is 41,8-14; 43,1-3, 45,16-18; 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12 e Ap 1,16; 2,12; 19,15. O juízo contra Babilônia em Is 43,14; 48,14.20; e Ap 12,9; 13,2; 17-18. A salvação tema caro a Isaías 43,11; 45,17; 40,29; 41,18.19; 42,14-16; 43,1.2; 44,3-4; 49,9.13; 52,1-7; 54,3-5 é tratado no Ap como libertação da tribulação, como se vê em Ap 7,16-17. O fazer novas todas as coisas: a Nova Jerusalém teria seu amparo temático em Is 43,19; 42,9; 43,19; 48,6; 41,22; 42,2 o autor do Apocalipse recorre exatamente ao mesmo tema: fazer novas todas as coisas em Ap 21,4-5. 70 Segundo o autor, as relações entre o Apocalipse e Isaías seriam detectadas a partir dos seguintes critérios: interpretação e enriquecimento. A utilização que o Apocalipse faz de Isaías poderia ser entendida a partir de cinco citações literais, onde a referência textual identifica-se com o contexto. Em

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Ambos os textos são trabalhos literários destinados a comunidades sofredoras: o IIº

Isaías foi dirigido aos exilados e o Apocalipse a cristãos que padeciam com a

perseguição.

A presença do texto de Isaías no Apocalipse foi estudada recentemente por J.

Fekkes71. Este autor buscaria dar validade às alusões de Isaías presentes em Ap 21,1-

22,5 classificando-as em três níveis: certeza virtual, probabilidade/possibilidade e

improvável/duvidoso72. Fekkes deseja também determinar qual foi a estratégia do

autor sagrado quando alude a um texto de Isaías e de sua tradição histórica. Ao final

de sua pesquisa, conclui que o autor sagrado selecionou textos conscientemente e

com propósito claro. O uso, porém, não se encontraria limitado pelo Antigo

Testamento; antes, o Apocalipse o transcenderia. Esta transcendência poderia ser

encontrada também em qualquer outra fonte da qual o Apocalipse tenha recebido

alguma influência.

b) as relações com Jeremias

O texto de Jeremias e suas relações com o Apocalipse foi alvo da pesquisa de

Giovanni Deiana73. Este autor visaria evidenciar especialmente as divergências,

afinidades e os novos significados assumidos pelas citações do texto vétero-

um caso especifico o texto de Isaías foi elaborado com uma maior liberdade de construção fazendo com que a relação entre os dois textos torne-se tênue o que resulta em um texto composto seja pela união de novos textos extraídos de Isaías, seja pela introdução de motivos tomados de outros livros. Cf. MARCONCINI, B., “L” utilizzazione del TM nelle citazioni isaiane dell” Apocalisse”, RivB 24 (1976) 113-136. 71 Fekkes propõe para análise os seguintes textos: experiência visionária: Is 6,1-4; títulos cristológicos: Is 11,4-10; 22,22; 44,6; 65,15. Escatologia de julgamento: dia do Senhor: Is 2,19; 34,4; 63,1-3; oráculos sobre as nações: Is 13,21; 21,9; 23,8.17; 34,9-14; 47,7-9. Escatologia de salvação oráculos de salvação: Is 65,15; 61, 10; 60,14; 49,10; 25,8; oráculos sobre a Nova Jerusalém Is 52,1; 54,11-12; 60,1-3.5.11.19. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation. Visionary Antecedents and their Development. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994. Do mesmo autor “His Bride Has Prepared Herself: Revelation 19-21 and Isaian Nuptial Imagery”, JBL 109 (1990) 269-287. 72 Nomenclatura semelhante pode ser encontrada no material de Attilio Gangemi sobre Isaías: ad litteram, Ap 1,17; 2,8 22,13 com Is 41,4; 44,6 e 48,12; quasi ad litteram: Ap 1,16 e Is 49,2; Ap 7,16 e Is 49,10; Ap 14,3 e Is 42,10; Ap 21,10 e Is 52,1; Ap 21,5 e Is 43,19. 73 Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, Lateranum 48 (1982) 125-137.

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testamentário no Apocalipse. A interpretação do Apocalipse dependeria de uma boa

compreensão dos textos antigos e sua função no novo texto74.

A afinidade de expressão seria um exemplo destas alterações encontrado em

Ap 7,17 e Jr 2,13. Neste texto, as semelhanças materiais e dessemelhanças tornariam

pouco provável a dependência direta do texto jeremiano. Deste modo, seria mais

pertinente classificá-lo como uma livre referência75. O tema comum estaria presente

em Ap 7,17c e Jr 31,16. Este tema comum, contudo, seria bastante reduzido, tornando

difícil a identificação da fonte usada pelo autor do Apocalipse. De fato, a mesma

imagem pode ser encontrada em Is 2576.

Em decorrência da escassez de termos literários e da existência da mesma

imagem de Ap 11,5 e Jr 5,14 em 2Rs 1,10, Deiana levantou a hipótese de uma fusão

de muitos textos vétero-testamentários pelo autor do Apocalipse77. Esta fusão

tomaria a imagem, transformando-a e recorrendo a outros textos vétero-

testamentários, de modo que tornaria impossível a verificação precisa de sua fonte

literária.

Uma real influência de Jeremias sobre o texto de Apocalipse encontrar-se-ia

em Ap 2,23 e Jr 11,20; 17,10, cujo vocabulário, de fato, pertenceria ao patrimônio

literário de Jeremias. As divergências estariam vinculadas ao gênero literário distinto

das duas obras78. Devido a estas divergências, não se poderia falar de citação

propriamente dita em Ap 2,23, mas, somente de uma reprodução quase literal79.

A partir dos estudos destes exemplos, Deiana conclui que os textos analisados

permitiriam falar apenas de uma referência, que possui um sentido mais genérico do 74 Textos propostos para a análise: Jr 1,10; 25,30 e Ap 10,11; Jr 2,13; 31,10; 31,16 e Ap 7,17; Jr 5,14 e Ap 11,5; Jr 11,20; 17,10 e Ap 2,2; Jr 4,29 e Ap 6,15; Jr 16,19 e Ap 15,4; Jr 10,7 e Ap 15,3b-4a. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 126. 75 A reminiscência entre Ap 7,17 e Jer 2,13 já teria sido detectada anteriormente por Nestle, Merck e Dittmar e considerada autêntica. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 130. 76 Deiana considera que o texto de Is 25 pareceria mais pertinente do que o de Jeremias onde são encontrados apenas contatos através de vocábulos empregados. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 130. 77 Aqui Deiana propõe que o autor do Apocalipse teria feito uma fusão de textos vétero-testamentários. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 131. 78 Sendo o texto de Jeremias oriundo de um contexto poético, teria sofrido uma simplificação pelo autor do Apocalipse para inseri-lo no ritmo da sua obra. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 133. 79 Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 133.

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que aquele de citação, pois o autor do Apocalipse usa o Antigo Testamento de

maneira livre, transformando-o com o auxílio de outros textos vétero-testamentários,

de tal forma que a identificação torna-se difícil.

c) as relações com Daniel

São tratadas particularmente por G. K. Beale80, que observa mais atentamente

os textos de Ap 1; 4-5; 13 e 17 e sua relação com Daniel81. A referência a este texto,

contudo, não seria padronizada, incorrendo em alterações exclusivas de Daniel,

classificadas como referência prioritária82, enquanto em outros momentos os textos

de Daniel seriam denominados como secundários83 ou admitindo contatos84. Quanto

ao uso do material de Daniel, este poderia ser classificado em três categorias: clara

alusão, provável alusão com variações redacionais e possível alusão ou eco85.

A presença de alguns temas comuns entre o Apocalipse e Daniel, tais como

julgamento das nações perversas, o poder absoluto de Deus e a recompensa de Deus

àquele que permanecer fiel apesar dos sofrimentos, forneceria instrumentos para

concluir que o tema do julgamento escatológico cósmico estaria baseado em

Daniel86.

80 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 159. 81 Para Beale a influência da tradição histórica de Daniel poderia ser encontrada na literatura Qumrânica, na apocalíptica judaica de 1 Enoc, no Testamento de Josefo, 4 Esdras e 2Baruc, além do Apocalipse. 82 Em Ap 1,7, Beale detecta uma referência a Dn 7,13 que, embora esteja combinada com Zc 12,10-12 não recebe sua atenção. Beale ignora que esta mesma combinação já tenha ocorrido em Mt 24,30 e venha a ser, possivelmente, a referência prioritária do texto. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 154-156. 83 Encontramos em Ap 1,13 a presença de Dn 10,5, a presença de Ez 9,2.11, por sua vez, é considerada de menor valor. 84 Em Ap 1,14b-15a a imagem derivada de Dn 10,6 retorna, porém agora, Beale considera que acompanhada de Ez 1,7. Do mesmo modo, Ap 1,15b alude a Dn 3,26, mas possui como ligação íntima a cena de Ez 1,24 e 43,2. 85 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 43. 86 Beale fundamenta seu argumento na hipótese da presença de alusões de Dn 2,28-29 em Ap 1,1; 1,19; 4,1; 22,6. Em Ap 1,1, Beale entende que o autor do Apocalipse usa uma alusão que porta o contexto escatológico de Dn 2. Sendo assim, Ap 1,19.20 e seus contatos com Dn 2,45 reforçariam a tese de uma estrutura baseada em Dn e na “escatologia realizada”. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 277-285.

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Numerosas referências e similaridades de termos poderiam ser detectadas

entre Ap 1 e Dn 7 e 10. A densidade destas alusões em Ap 1,12-20 levou Beale a

propor que Ap 1,8-20 seja um midrash de Dn 7 e 10. A perícope de Ap 1,1-6 seria

uma introdução a este midrash que teria na figura do Filho do Homem o seu cerne87.

Deste modo, a presença de Dn 7 em Ap 1 não poderia ser classificada como aleatória,

e sim, teria uma implicação teológica bastante precisa: servir à Cristologia88.

A busca para uma justificativa para a presença das referências a Ezequiel e a

Zacarias em Ap 1 seria explicada pela ação do autor sagrado, que teria tomado o

cuidado de “enxertar” neste “midrash de Daniel” temas afins que teriam sido atraídos

pelo texto de Dn 7, 9-2789. A esta “atração” Beale denomina magnetismo

hermenêutico90.

Ap 13 é considerado por Beale como a perícope que mais recebeu influência

de Daniel. Constata semelhanças entre Dn 7,3-6 e a visão das quatro bestas, em Ap

13,1-8 e em Ap 13,11-17. A estrutura de Ap 13 estaria baseada em Dn 7, pautando-se

em um “esquema de autorização”91. Beale, contudo, não desconsidera a presença

através do “magnetismo hermenêutico” 92.

Existem, segundo Beale, semelhanças que favorecem identificação da

presença de Dn 7 em Ap 17. O texto seria um exemplo claro da influência de Daniel

87 Beale argumenta que Ap 1,1-6 serve de introdução ao midrash do Ap. Este teria por cerne a figura de Filho do Homem introduzido no v. 7. Para dar suporte a esta tese, Beale apresenta uma tabela com a estrutura de Ap 1 e Dn 7. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 171. As perícopes Ap 1,7 e Dn 7,13 e Ap 4-5, foram analisadas particularmente por Turibio Cuadrado. A presença de Daniel no texto do Apocalipse, contudo, não seria exclusiva como entende Beale. Cf. TORIBIO CUADRADO, J. F., “La recepcíon de Dn 7,13 en Ap 1,7”, Mayéutica 18 (1992) 9-56; “Apocalipsis 4-5. Díptico litúrgico de creación y redención”, Mayéutica 22 (1996) 9-65. 88 O texto de Dn 7 e 10 foi empregado como sentido de interpretação e cumprimento da profecia de Dn 7, esta estaria realizada com a ressurreição de Cristo. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 177. 89 A mesma definição foi empregada em Ap 4-5, onde a influência de Ez 1-2 estaria restrita a Ap 4,1 e 5,1 dissolvendo-se a partir de 5,2. A presença de Is 6, nesta seção, não recebe atenção da parte de Beale. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 183-184. 90 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 174. 91 Sobre a questão da influência do livro de Daniel na formação da estrutura do Apocalipse ver: BEALE, G. K., “The Influence of Daniel Upon the Structure Theology of John”s Apocalypse” JETS 27 (1984) 413-423. 92 Cf. BEALE, The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 245.

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sobre o Apocalipse93. Apesar de uma inegável presença de outros textos do Antigo

Testamento nesta seção, Beale prefere optar por uma base da estrutura vinculada a Dn

7.

Observando os textos de Dn 1,19; 2, 28-29.45 e comparando-os com Ap 4,1 e

Ap 22, 6, Beale julga que se encontrariam afinidades literárias capazes de aproximar

o Apocalipse do texto de Daniel. Ap 22,6, que serviria como conclusão, recordaria a

mesma frase de Dn 2,28.

A influência de Daniel sobre a estrutura do Apocalipse, na visão de Beale,

possuiria elementos que atingiriam a totalidade da obra e influenciariam igualmente

sua teologia. Partindo destas observações, Beale convenceu-se de que o Apocalipse

depende mais de Daniel do que de qualquer outra obra do Antigo Testamento.

Tendo como pressuposto que o Apocalipse seria uma reinterpretação de um

fato antigo marcante aplicado ao momento histórico vigente com vistas a estimular os

que padecem uma perseguição, Beale crê ser o Apocalipse um midrash de Daniel.

Em síntese

As teses apresentadas convergem quando tratam do tema do manejo dos

textos mais antigos pelo autor sagrado: ele age com liberdade. Os textos usados em

uma determinada seção do Apocalipse foram selecionados, não pertencem a um

subjetivismo da parte do autor.

Esta seleção primorosa estaria ligada à intenção teológica, particularmente, a

serviço de uma cristologia. Seriam utilizados particularmente os textos proféticos e o

livro de Daniel. Os usos poderiam ter uma ênfase mais acentuada ou não de acordo

com o próprio interesse do autor sagrado por determinado tema contido em um

determinado livro.

De modo geral, as teses seguem o critério literal e lingüístico, cujo objetivo

seria o de identificar se a presença do texto ocorre em forma de citação literal ou

quase literal, conforme Gangemi, ou segundo Fekkes, possibilidade/probabilidade,

93 Com relação ao texto de Ap 17, Beale observa que os vv. 1-4 derivam diretamente de Dn 7 já 5-16a são classificados como uma provável alusão ao texto de Daniel, posto que, muitos são os termos que indicam a existência de semelhanças que favorecem a presença de Dn 7 em Ap 17. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 265-267.

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improvável/duvidoso. Embora este critério fosse capaz de responder à questão sobre a

fonte que inspirou o autor sagrado quando confeccionou uma seção, não o seria na

resposta à questão da motivação para a presença deste texto específico naquela seção.

Quando a dependência não ocorre de forma clara, como acenou Deiana, a

identificação do texto subjacente tornar-se-ia muito mais difícil, pois, em muitos

casos, o autor sagrado teria recorrido a textos que possuiriam contatos com outros

textos. Sendo assim, seriam melhor entendidos através de uma fusão de textos, cujo

objetivo seria a transformação da imagem considerando as nuances presentes ao

longo da Escritura.

Um outro ponto de convergência estaria no conhecimento dos materiais que o

autor sagrado usou para confeccionar o seu texto, sem o qual a compreensão do

mesmo tornar-se-ia extremamente laboriosa. Sobre o modo como o autor sagrado

usou o material mais antigo, a categoria da reinterpretação de textos tem recebido

maior apoio dos três autores.

Beale possui uma linha de trabalho peculiar. Ele concentrou-se sobre os

capítulos 1; 4-5; 13 e 17 do Apocalipse e desta análise tira conclusões que considera

válidos para todo o livro. O pressuposto desta conclusão pode ser encontrado no

modo como Beale usa o termo “midrash”, considerado por alguns autores destituído

de uma precisão. Dentre eles encontramos Wright e Adela Yarbro Collins.

Wright define um midrash como um texto que se obtém a partir de um

primeiro texto e somente por meio deste existiria o segundo94. Sendo assim, o

midrash retiraria do autor sagrado a autonomia sobre a fonte que utiliza e criaria um

impasse diante dos demais textos a que recorreu o autor neotestamentário. O midrash

dá ao texto passado mais ênfase. O novo texto, ao reler o antigo, fica “aprisionado”

em seu universo próprio sem grandes passos criativos. Com esta caracterização, o

midrash traria uma limitação para o autor do Apocalipse, seu horizonte de trabalho 94 Cf. WRIGHT, A.G., “The Literary Genre Midrash”, CBQ 28 (1966), 105-138. Ver também: LE DEAUT, R., “A propos d” une definition du midrash”, Biblica 50 (1969) 395-413; PORTON, G. G., “Defining Midrash”. In The Study of Ancient Judaism. Midrash, Mishnah, Siddur. (ed.) NEUSNER, J., New York, KTAV, 1981, 55-92; STRACK, H, L., & STEMBERGER, G., Einleitung in Talmud und Midrasch, 7. München, C. H. Beck, 19827; NEUSNER, J, Midrash in Context. Exegesis in Formative Judaism. Philadelphia, Fortress Press, 1983, 197-207. Longa e específica literature foi compilada por HAAS, Lee, “Bibliography on Midrash”. in The Study of Ancient Judaism. I. Mishnah, Midrash, Siddur. NEUSNER, J., (ed.) Atlanta, Atlanta Scholars Press, 1992, 193.

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estaria cerceado pela fronteira do texto utilizado, neste caso o de Daniel, colocando-o

em confronto com a tese de Beale de liberdade do autor diante da fonte a ser

utilizada. O autor sagrado, de fato, vai além de uma releitura, ele interpreta os textos

do Antigo Testamento à luz do Mistério Pascal. Desta forma, sua leitura supera o

próprio horizonte onde sua fonte se encontra.

A crítica mais enfática ao trabalho de Beale pertenceria a Adela Yarbro

Collins95. Segundo a autora, a tese de Beale sobre o uso de Dn 7 em Ap 4-5 estaria

mais na linha de mera suposição, de uma visão parcial, sem constituir uma real linha

de pesquisa. De fato, Beale parte do princípio que o autor sagrado tem como intenção

produzir uma releitura, logo, um midrash, do livro de Daniel. Ao mesmo tempo

defende que o novo texto possua elementos de criatividade.

Um dado não muito preciso é o “magnetismo hermenêutico” usado para

justificar a presença de outros textos interagindo na perícope, como ocorre com Ez 1-

2 em Ap 4-5. A defesa de uma dependência de Dn 7 pode ser um excesso tendo em

vista que numerosos textos vétero-testamentários exercem influência sobre textos

onde, também, Daniel se faz presente, mas não de modo exclusivo.

Não fica claro por que Beale não recorreu aos trabalhos de Vanhoye e às suas

hipóteses para a presença de textos ezequielianos nesta seção. O mesmo ocorre em

Ap 17-18, nos quais, novamente não há uma alusão aos trabalhos de Boismard e

Vanhoye, que já haviam indicado a presença de Ez e outros textos do Antigo

Testamento nestes textos com expressiva correspondência.

Sobre a forma como determinado texto é empregado temos três distinções:

clara dependência, provável alusão e possível alusão. No entanto, ao longo de seu

trabalho utiliza com freqüência os termos influência e dependência quase como

sinônimos. Em um comentário posterior, Beale reafirma sua tese e a aprofunda ainda

mais classificando a presença de Daniel no Apocalipse como um protótipo de

estrutura seguido por este livro neotestamentário como uma sincronia de paralelos96.

95 Cf. COLLINS, A. Y., “Introduction: Early Christian Apocalypticism”, Semeia 36 (1986) 1-11. 96 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 87.

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1.2.2 A dependência para com Ezequiel

De acordo com o The Greek New Testament, encontram-se no Novo

Testamento 138 alusões ao texto de Ezequiel. Destas, 84 estão no Apocalipse. Além

do índice acentuado, impressiona o modo como o autor sagrado mantém a mesma

ordem das cinco seções do livro profético em seu material: Ez 1 e Ap 4; Ez 9-10 e Ap

7-8; Ez 16 e 23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap 18; Ez 37-48 e Ap 20-2297. Estas

características geraram, na segunda metade do último século, vários estudos com

perspectivas que vão desde a análise da intenção do autor até ao diálogo de um texto

com outro texto e com as diversas tradições judaicas contemporâneas à confecção do

Apocalipse.

A presença da profecia de Ezequiel no Apocalipse foi estudada

particularmente por Albert Vanhoye98. Este recorre a uma abordagem que prestigia a

intenção do autor para analisar os casos de citações explícitas, leves retoques e

“utilisations d’ensembles”.

As chamadas “citações explícitas” testemunhariam Ezequiel textualmente99.

Os leves retoques100 seriam utilizações mais livres do texto. O autor do Apocalipse

teria acrescentado detalhes ao texto de Ezequiel. Há ainda alguns casos de palavras

soltas que conduzem a uma tênue citação. Este procedimento indicaria uma grande

criatividade do autor neotestamentário ao trabalhar o texto de Ezequiel, selecionando

temas e expressões que melhor serviam ao seu intento redacional101.

As “utilisations d’ensembles”102 permitiriam uma melhor apreciação da

influência de Ezequiel sobre o autor do Apocalipse, já que nesta modalidade

97 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece. 27a. 98 Cf. VANHOYE, A., "L” utilisation du livre d”Ézéchiel dans l” Apocalypse", 436-476. 99 Respectivamente: Ap 1,15 e Ez 43,2; Ap 10,10 e Ez 3,3; Ap 18,1 e Ez 43,2. Nestas citações duas pertencem a Ez 43,2 e ambas estão em um contexto de epifania. 100 Por exemplo: Ap 7,14 e Ez 37,3; Ap 11,11 e Ez 37,10; Ap 18,19 e Ez 27,30; Ap 18,21 e Ez 26,21. 101 Expressões que remetem ao patrimônio lingüístico de Ez: Ap 17,1.4; 16.23, o julgamento da grande prostituta recorreria ao vocabulário de Ez 16 e 23 adotando os termos “prostituta”, “se prostituir”, “prostituição”, “impureza”, “abominação”. O vocábulo “sangue” de Ap 17,6 evocaria o sangue da infidelidade de Ez 16,38; 23,45 dentre outros. O termo taça de Ap 17,4 e Ez 23,31-33 possuiria diferença de sentido com relação à taça de Ez. 102 As utilisations d”ensembles são: Ap 4,1-8 a visão celeste, inspirado em Ez 1,10; Ap 5,1 e de forma breve Ap 10,1-4.8-11 episódio do livro que deve ser engolido utilizaria Ez 2,8-3,3; Ap 17,1-6.15-18 quando descreve a grande prostituta inspirar-se-ia em Ez 16 e 23 com suas acusações contra a

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encontraríamos mais do que correspondência verbal e citações exatas; haveria

também uma dependência temática.

A dependência, contudo, não tornaria o autor do Apocalipse servo do texto de

Ezequiel. De fato, ele não reproduziria exatamente o material no qual se inspira, o

que tornaria raros os casos de citações. Os textos seriam reelaborados, colocados em

contato com outros textos do Antigo Testamento, mas mantendo a ênfase em

Ezequiel103.

Ap 4,1 indicaria uma maior presença do texto do profeta Ezequiel. Nele o

autor do Apocalipse teria conservado a mesma estrutura visionária do texto

antecedente. Já Ap 20,8 e Ez 38 e 39 testemunharia um conhecimento penetrante dos

profetas antigos e uma perfeita familiaridade com o modo com que se expressaram.

Esta forma de trabalhar os textos mais antigos teria conferido ao Apocalipse

uma coesão em sua estrutura. Tal condição estaria ligada ao fato de o autor tomar

cada texto antigo com uma intenção redacional precisa e não como um aglomerado de

textos justapostos. Há uma linha de pensamento do início ao fim da obra104.

Por fim, Vanhoye conclui que o autor sagrado combinou diversos textos

vétero-testamentários em um único texto, comprovando a admirável habilidade e

intimidade que possuía com os textos do Antigo Testamento.

Vanhoye estuda o recurso ao texto de Ezequiel a partir dos seguintes capítulos

do Ap: Ap 4,1-8 e Ez 1,10; Ap 5,1; 10,1-4.8-11 e Ez 2,8-3,3; Ap 17,1-6.15-18 e Ez

16 e 23; Ap 18,9-19 e Ez 26 e 27; Ap 19,17-21 e Ez 39,4.17-20; Ap 20,8-9 e Ez 38-

39; Ap 11,1-2 e Ap 21,10-27 e Ez 40-48; Ap 22,1-2 e Ez 47.

prostituição de Jerusalém; Ap 18,9-19, lamentações causadas pela queda de Babilônia, ecoam as lamentações provocadas pela queda de Tiro de Ez 26 e 27; Ap 19,17-21 o festim das aves de rapina e da besta após a derrota de Gog corresponderia a Ez 39,4.17-20; Ap 20,8-9 evocaria de modo sintético a invasão de Gog e sua derrota de Ez 38-39; Ap 11,1-2 e Ap 21,10-27 usam duas vezes as medidas do Templo e da Nova Cidade de Ez 40-48; Ap 22,1-2 o rio de água viva estaria inspirado na torrente do Templo de Ez 47. Cf. VANHOYE, A., "L” utilisation du livre d” Êzéchiel dans l”Apocalypse", 440-441. 103 Como ocorreria em Ap 17,4. O texto principal seria aquele de Ez 23,31, mas Jr 51,7 possuiria contato íntimo pelo vocabulário. Cf. Vanhoye, A., "L” utilisation du livre d” Êzéchiel dans l”Apocalypse", 442. 104 Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 466.

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Uma outra proposta é a de M. D. Goulder105. O autor parte do pressuposto de

uma clara sistematização no uso da profecia, tendo em vista que o Apocalipse

seguiria o esboço traçado por Ezequiel. Para tanto, propõe um distanciamento da

análise literária106 e uma aproximação com a explicação litúrgica107, além do

alinhamento entre o Apocalipse e o calendário judaico108.

O padrão das referências de Ezequiel no Apocalipse indicaria mais que uma

acidental similaridade entre os dois textos; o autor do Apocalipse, ao tomá-las, tê-las-

ia tornado mais explícitas.

A explicação litúrgica preconiza a possibilidade de o autor do texto

neotestamentário ter ouvido as passagens de Ezequiel e as ter interpretado em

perspectiva litúrgica. Estas, ao serem introduzidas no texto do Apocalipse, sofreriam

um desenvolvimento em semanas litúrgicas sucessivas. O principal foco deste

desenvolvimento seria conduzir a uma interpretação de suas visões direcionando-as

105 Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies”, NewTestStud 27 (1981) 342-367. 106 De acordo com o estudo de Goulder, a análise literária contemplaria a possibilidade do material do Ap ter sido composto a partir de um uso aparente e limitado ao texto de Ez. Esta hipótese foi posteriormente classificada como implausível pelo próprio pesquisador. 107 Sobre a índole litúrgica do Apocalipse ver: CABANISS, A., “A Note on the Liturgy of the Apocalypse”, Interp 7 (1953) 78-86; SHEPHERD, M. H., The Pascal Liturgy and the Apocalypse. London, 1960; GRASSI, J. A. “The Liturgy of Revelation”, The Bibel Today 24 (1986) 30-37; VANNI, U., L” Apocalisse, Una Assemblea liturgica interpreta la storia. Brescia, Qiqaion, 1988; do mesmo autor, “Liturgical dialogue as a literary form in the book of Revelation”, NewTestStud. 37 (1991) 348-372; “L” annuncio e l” ascolto della Parola di Dio nel contexto della liturgia: la prospettiva dell”Apocalisse”, RivLtg 70 (1983) 659-670; PRIGENT, P., Apocalypse et Liturgie. Paris, Lausanne, 1981; JÖRNS, K.-P., “Proklamation und Akklamation: Die antiphonische Grundordnung des frühchristlichen Gottesdienstes nach der Johannesoffenbarung”. In BECKER, H., - KACZYNSKI, R., (ed.) Liturgie und Dichtung, I, St. Ottillien, 1983; COTHENET, E., “La liturgie dans Apocalypse”. In Exégèse et Liturgie, Paris, 1988; RUIZ, J.-P., “Betwixt and Between on the Lord”s Day: Liturgy and the Apocalypse”. In LOVERING, R. H. Jr., SBL Seminar. Papers 31, Atlanta, 1992; VOORTMAN, T. C., and J. A. Du RAND, “The Worship of God and the Lamb: Exploring the Liturgical Setting of the Apocalypse of John”, Ekklesiastikos Pharos 80 (1998)56-67; NUSCA, R. A., “Liturgia e Apocalisse. Alcuni aspetti della questione”. In Bosetti, E., Colacrai, A., Apokalypsis. Percorsi nell” Apocalisse di Giovanni. Assisi, Cittadella Editrice, 2005. 108 Gounder oferece um gráfico onde dispõe em colunas o calendário das festas judaicas, o Apocalipse e Ezequiel. As leituras dos textos estariam intimamente ligadas entre si e com o período das festas judaicas. Esta linearidade tornou-se possível pelo caráter aglutinador da liturgia. Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 353-360. Este tema foi ainda aprofundado por Goulder um outro trabalho. Cf. GOULDER, M. D., The Evangelist”s Calendar. London, SPCK, 1978.

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para a adoração109. Desta forma, Ezequiel teria função primordial na arquitetura

litúrgica do Apocalipse.

A característica principal da hipótese litúrgica estaria no fato de ambos os

livros, Ezequiel e Apocalipse, necessitarem serem lidos ciclicamente, ou seja, quem

lê um texto, deveria fazê-lo do ponto onde parou o anterior110. O alicerce desta tese

encontra-se na divisão do Apocalipse em perícopes de redação litúrgicas que

poderiam ser acomodadas à estrutura da profecia de Ezequiel.

Goulder dedica especial atenção aos seguintes textos: Ap 4 e Ez 1; Ap 5 e Ez

2-3,15; Ap 6,1-8 e Ez 5; Ap 6,9 e Ez 6; Ap 6,12-7,1 e Ez 7; Ap 7,2-8 e Ez 9; Ap 8,1-5

e Ez 10; Ap 10,1-7 e Ez 12; Ap 10,8-11 e Ez 2,1-3.15; Ap 11,1s e Ez 40,41-43; Ap

11,8 e Ez 16, 43-63; Ap 14,6-12 e Ez 23,31-35; Ap 17,1-6 e Ez 23,16; Ap 18,9-24 e

Ez 26-27; Ap 20,7-10 e Ez 38; Ap 21 e Ez 40-48; Ap 22,1s e Ez 47.

A dependência literária do Apocalipse em relação a Ezequiel, segundo Jeffrey

Marshall Vogelgesang111, poderia ser demonstrável através; das seguintes

situações112: o uso de motivos inspirados em Ezequiel; o uso de material de Ezequiel

que não aparece em outro texto judaico; de semelhanças verbais entre os textos,

indicando mais do que um simples reconhecimento do texto de Ezequiel; e o

seguimento da ordem de Ezequiel na macro-estrutura do Apocalipse113. Por fim,

109 A hipótese litúrgica pode ser assim sintetizada: Ez 1-10 (11) e Ap 4,1-8,5 onde possuiria um tipo de correlação característica de uma harmonização de discursos litúrgicos. Ap 1 (1,10), sugere que a visão do autor neotestamentário ocorre “no dia do Senhor”, ou seja dentro de um contexto litúrgico. Por último, Ap 1,3 é proposto como um exemplo claro de que a intenção do autor é que o seu livro seja lido em um ambiente litúrgico. Este, de fato, seria, na opinião de Goulder o Sitz im Leben de todo o Novo Testamento. Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 349-350. 110 Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 350. 111 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge, Harvard University, 1985. 112 A tese de Vogelgesang pode ser apresentada em quatro pontos essenciais: dependência Apocalipse em relação a Ezequiel; a Nova Jerusalém: Ap 21-22 e Ez 40-48; visão do Trono de Deus: Ap 4 e Ez 1; abertura dos selos: Ap 1; 5; 10 e Ez 1,28b-3,14. 113 Vogelgesang entende que as semelhanças encontradas entre os dois livros tornam evidentes as relações entre os dois textos. Esta hipótese é sustentada pelo resultado de certos problemas exegéticos como: Ap 4,6b; 5,6 e Ez 1,5 no que se refere à fonte em Ezequiel e as relações entre textos que seguem a mesma ordem. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 24-58; 65-66.

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Vogelgesang propõe que os textos utilizados pelo Apocalipse seriam apresentados à

luz das tradições apocalípticas114.

Partindo da hipótese de uma dependência do Apocalipse com relação a

Ezequiel, Vogelgesang sugere os textos de Ez 1,1-3,14 e Ap 1,4-5,10 e Ap 21-22 de

Ez 37; 40-48 para análise.

A Nova Jerusalém de Ap 21-22 e Ez 40-48, além de uma dependência literária

percebida através das semelhanças entre os dois textos, levaria a uma mudança

desconcertante: a figura do Templo central em Ez 40-48 encontrar-se-ia ausente no

Apocalipse, lá estaria a Nova Jerusalém, a Cidade Santa115. Esta reorientação teria

uma probabilidade mínima de ser acidental. A questão seria compreender por que o

autor sagrado desconsiderou o símbolo do Templo em sua descrição da Nova

Jerusalém116.

114 O texto de Ezequiel foi considerado como aquele que tem maior caráter apocalíptico dentre as fontes usadas pelo Apocalipse. Muito embora o autor sagrado distancie-se intencionalmente destas tradições. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 150-170. 115 São seis os exemplos de transformações apresentados por Vogelgesang: a) Ap 21,13 descreve as direções dos portões da cidade considerando o Texto Hebraico de Ez 42,16-19, onde o Templo é descrito. b) Ap 21,1 descreve a cidade como o lugar da glória de Deus, enquanto em Ez 43,5 a glória de Deus enche o Templo. c) Ap 21,14 descreve as fundações das muralhas da cidade, ao passo que Ez 41,8 menciona as fundações das câmaras laterais do Templo. d) Ap 21,15-17 é a cidade que foi medida, enquanto em Ez 40,3ss, são as várias partes do Templo. e) Ap 21,14-15.17.18-19 descreve as muralhas da cidade, enquanto Ez 40-48 toda menção de muralhas recorre ao Templo. f) Enquanto o limite entre o sagrado e o profano é estabelecido pelo Templo e suas muralhas em Ez 42,20; 43,8; 44,1-23; em Ap 21,27 e 22,14-15, a cidade, com suas muralhas e portões estarão sempre abertas, mas nada de profano ou impuro entrará nela. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 76-78. 116 A resposta encontra-se baseada em dez pontos: a) Ap 21,3 refere-se a Ez 37,26-27, porém modifica de modo significativo sua fonte; b) Ap 21,10; 22-1-2 modifica a perspectiva de Ez 40,2 situando a Nova Jerusalém em uma planície e não mais sobre o Monte Sião, por esta razão, Vogelgesang interpreta esta modificação como um sinal da “democratizaçao” que o autor neotestamentário faz de Ezequiel, tornando a cidade accessível; c) Ap 21,11 e outros textos indicam que toda a cidade desce da glória de Deus como um brilhante com todo esplendor, considerando que a glória de Deus retorna ao templo de Ez 43; d) Ap 21,16-17 apresenta a cidade com dimensões substancialmente maiores do que aquelas da cidade de Ezequiel. Vogelgesang observa que as medidas da Jerusalém Celeste correspondem à dimensão do mundo helenista.; e) Ap 21,12.17-18 e Ez 42,40; 43,8 o autor sagrado transformou a função que inspirou Ezequiel ao conceber a Nova Jerusalém; f) Ap 21,19-20 ecoa Ez 28,13, quando aborda a descrição das jóias do rei de Tiro, mas sem alterar o seu significado; g) Ap 21,3 transfere a inspiração do Templo de Ezequiel para a Nova Jerusalém; h) Vogelgesang argumenta que o autor sagrado altera o ambiente campestre de Ez 40-48 para um ambiente urbano em Ap 21,9-22,5; i) o autor sagrado emprega os modelos das cidades Helenistas e Romanas em acréscimo a Ez 40-48, na formulação de sua idéia de Nova Jerusalém; j) a Nova

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A conseqüência desta reorientação teria como objetivo uma “democratização”

do privilégio que Ezequiel aplicou tão somente a Israel. Esta releitura traria uma

universalização da visão de Ezequiel da Nova Jerusalém e um radical

redirecionamento de Ez 40-48.

Esta democratização poderia ser encontrada também em Ap 4. Nesta seção, a

dependência literária de Ez 1 estaria em diálogo com uma série de outros textos e

outras tradições literárias recebendo, também destas, suas inspirações. A

democratização aliada a uma desmistificação na experiência revelatória introduzida

pelo autor do Apocalipse dar-lhe-iam uma maior sobriedade.

Com este pressuposto, Vogelgesang faz um reexame detalhado da

reinterpretação de Ez 1 em Ap 4, considerando que os procedimentos utilizados

seriam variados: condensação, ecleticismo, abreviação, concretização e simplificação

e consciente alteração de matizes de detalhes117.

Vogelgesang demonstra especial atenção com relação ao modo de utilização e

o impacto da literatura merkabah118 e hekhalot119 no Apocalipse. O autor sagrado

compreenderia bem estas tradições e possuiria acesso a elas. No entanto, teria

imposto a estas alterações deliberadas120. Sendo assim, o emprego das tradições

merkabah e da profecia de Ezequiel estariam de acordo com o conceito de

democratização proposto por Vogelgesang.

Jerusalém é apresenta como a “Babilônia redimida”. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 73-113. 117 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 169-187. 118A tradição merkabah (trabalho ou feito) é uma antiga prática mística de ascensão celestial associada à visão de Ezequiel da carruagem divina e do Trono da Glória no céu. Cf. UNTERMAN, A., Dictionary of Jewish Lore & Legend. London, Thames and Hudson, 1991. Traduzido por Paulo Geiger, Dicionário Judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 20032, 160. Vale destacar que com a tese de uma “democratização” da merkabah o autor do Apocalipse distancia-se dos desvios desta tradição que entendia uma proximidade entre este mundo e a esfera transcendente. Diverge também quanto à acessibilidade ao Trono divino por meio de jejuns e outras práticas. 119 A respeito desta literatura ver: HALPERIN, D. J., The Faces of Chariot. Early Jewish Responses to Ezekiel”s Vision. In Texte und Studien zum Antiken Judentum 16; MOHR, J. C. B., SIEBECK, P., 1988. Ver também “Merkabah Midrash in the Septuagint”, JBL 101 (1982) 351-363. 120 Exemplo desta tradição apocalíptica merkabah pode ser encontrado em Ap 4,1; 1Enoc 14,16; Ascensão de Isaías 6,9 no entanto, com uma distinção, o visionário possui o privilégio exclusivo de ver aquilo que a porta oculta, na visão do autor sagrado, a porta permanece aberta facultando acesso a todos (cf. Ap 21,25). Já a tradição apocalíptica merkabah o autor crê que a simplificação do cosmos foi consciente da parte do autor sagrado tendo como finalidade pôr em evidência a distância entre o mundo humano e divino. Pode-se ainda dizer que o autor sagrado distancia-se desta tradição por mostrar o acesso ao trono destituído de obstrução. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 263-277.

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Estas alterações seriam o ponto chave para a compreensão do gênero

apocalíptico presente neste último livro do Novo Testamento121. O Apocalipse seria

um livro “anti-apocalíptico”122 tendo em vista as transformações deliberadas deste

gênero aplicadas pelo seu autor. A mensagem tornar-se-ia mais abrangente,

universalmente acessível e inteligível para todos os que tivessem contato com a

mensagem contida no livro. A motivação desta mudança estaria na Cristologia

encontrada em Ap 1; 5; 10 e nos contatos com Ez 1,28b-3,14, dentre outros123.

A alteração da linguagem profética na perícope de Ap 16,17-19,10, despertou

o interesse de Jean-Pierre Ruiz124. Segundo este autor, neste texto, ocorreria uma

mudança na linguagem profética do texto fonte: a metáfora da prostituta, da besta e

de Babilônia.

A terminologia cúltica, fórmulas litúrgicas e hinos doxológicos formariam

uma tríplice sustentação para o trabalho de Ruiz. O Apocalipse deveria ser lido e

compreendido na liturgia da Igreja, por ser este o seu ambiente vital por excelência.

A contribuição de Ruiz está na figura e no papel do leitor-ouvinte. Este seria

responsável por interpretar o que é lido no Apocalipse dentro do contexto litúrgico. O

leitor estabeleceria um diálogo com o texto e com o texto dentro do texto. Será a

partir deste diálogo entre o texto e seus intérpretes que o sentido polissêmico e

profundo das palavras do texto virão a lume.

Sendo assim, se antes o texto de Ezequiel era compreendido sob uma

perspectiva, agora há uma nova forma para ler e compreender esta profecia. O leitor

passaria a ser o fator determinante do significado de um texto. No campo metafórico,

este diálogo com o texto e com o texto dentro do texto, tornar-se-ia ainda mais

fecundo. A não percepção deste diálogo entre textos causaria uma perda da

121 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 282-300. 122 Quando Vogelgesang descreve o Apocalipse como um livro “anti-apocalíptico” refere-se à transformação deliberadamente imposta a este gênero para significar uma nova mensagem, contrária ao que o gênero apocalíptico, normalmente, significa. 123 Neste ponto, Vogelgesang discorda de Beale que considera este contexto baseado sobre a estrutura de Daniel. Para o autor, porém, os textos de Ezequiel e Daniel adquirem novo significado que os tornam mais aquecíveis. Esta mesma tese já foi proposta por Adela Yarbro Collins que considera estes textos carentes de uma melhor explanação. 124 Cf. RUIZ, Jean-Pierre, Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation o f Prophetic Language in Revelation 16,17-19,10. Frankfurt; New York, Peter Lang 1989.

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compreensão do texto final. Portanto, a chave hermenêutica do Apocalipse seria dada

à comunidade, aos leitores-ouvintes, os legítimos intérpretes do texto.

A pesquisa de Steve Moyise125 sobre o Apocalipse caracteriza-se pela

mudança de método de trabalho. Até o presente momento, a pesquisa dedicara-se a

uma abordagem que prestigiava mais a exegese, Moyise propõe uma metodologia

cuja ênfase encontra-se na hermenêutica, a intertextualidade126. A teoria da

intertextualidade foi empregada como um recurso para melhor compreender o modo

pelo qual o autor sagrado se apropria dos elementos do Antigo Testamento e os aplica

em um outro contexto literário, dando-lhes novos significados ou nova compreensão.

Os novos significados teriam sua origem na intenção autoral e no leitor. O

autor do Apocalipse, ao transplantar o texto de Ezequiel para o Apocalipse, não o

teria feito como um decalque. O texto teria sofrido um processo de reelaboração.

Com este procedimento, o conceito dependência literária tornar-se-ia livre de uma

visão escravizante e concederia ao autor sagrado uma independência para transformar

significados e imagens.

A transformação de significados de um texto foi estudada a partir dos c. 4-5,

onde o Cristo é apresentado simultaneamente como um Leão e um Cordeiro. Esta

imagem seria chave para compreender a hermenêutica de substituição elaborada pelo

autor do Apocalipse. O leitor seria convidado a estabelecer uma substituição de uma

idéia pela outra.

A hermenêutica de substituição, segundo Moyise, poderia ser observada em

Ap 4 quando este recorre a muitos textos vétero-testamentários da visão do Trono (cf.

1Rs 22; Is 6; Ez 1; Dn 7), a tradições de Qumran e do misticismo da merkabah127,

mas o recurso a Ezequiel predominaria nesta visão.

Esta hermenêutica de substituição ocorreria principalmente em Ap 5,5-6, onde

o Cristo foi comparado a um Leão e a um Cordeiro. Por isso, a partir da composição

do Apocalipse, nos textos antigos onde anteriormente se lia leão, agora, dever-se-ia 125 Cf. MOYISE, S., The Old Testament in the Book of Revelation. 126 Não entraremos em detalhes sobre esta nomenclatura neste momento. No terceiro ponto deste primeiro capítulo teremos um espaço próprio para esta análise. 127 Moyise ressalta semelhanças entre estas tradições e Ez 1, porém com notáveis mudanças. As rodas que Ezequiel contempla poderiam estar aproximas à carruagem de fogo que se move pelos céus tão peculiares às especulações de Qumran e da merkabah. O autor do Apocalipse, porém, eliminou este aspecto da visão.

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ler cordeiro e no lugar de vitória do Messias, a vitória pela cruz128. No Apocalipse, o

Cristo crucificado retratado como um Cordeiro eleva a imagem do messias

conquistador de Gn 49,9-12, onde se tem a figura do Leão com menção a Judá129.

Ap 5,5-6 teria sido deixado em “estado de tensão” pelo autor sagrado, para forçar o

leitor a interpretar as imagens propostas 130.

Esta análise indicaria que a presença do corpo profético e das tradições do

Antigo Testamento no Apocalipse se daria de maneira orgânica131, corroborando a

noção de intenção do autor e esta seria decisiva para a compreensão do significado do

texto132.

A intenção do autor e a capacidade de apreensão do leitor seriam decisivas

para a compreensão da Cristologia impressa nos capítulos 4-22133. O texto estaria

em um estado de tensão e, por isso, apresentar-se-ia de forma não evidente. Somente

aquele que traz consigo a noção proposta pelo texto atual, bem como pelo texto

antecedente, seria capaz de compreendê-lo. Em outras palavras, o leitor deveria

possuir em sua memória os textos do Antigo Testamento ou do Novo Testamento

aludidos pelo autor sagrado e, deste modo, poderia estabelecer os contatos

necessários para interligar os diversos temas que o autor apresenta de forma velada 128 Esta tese foi defendida também por Caird. Cf. CAIRD, G. B., A Commentary on the Revelation of St. John the Divine. London, A & C Black; New York, Harper & Row, 1966, 75. 129 Nesta perícope Bauckham entende que existe uma linguagem militar, como também em 22,16. Cf. BAUCKHAM, R., The Clímax of Prophecy. Studies on the Book of Revelation. Edinburgh, T & T Clark, 1993, 233. Segundo Moyise, o autor sagrado não repudiaria a apocalíptica militar, mas lança mão deste recurso militar em um sentido não-militar. A vitória final estaria pautada na não-violência, ela teria sua origem na escatologia. O mal será vencido pela via da não-violência, pela intervenção de Deus. Cf. MOYISE, S., “Does the Lion Lie down with the Lamb?” In MOYISE, S. (ed.) Studies in the Book of Revelation. Edinburgh & New York, T & T Clark, 2001. 130 Semelhante é o caso de Ap 1-2, a visão inaugural onde a escritura foi construída e modelada sobre Dn 10,5-6 e suplementada por Jz 5,31; Is 11,4; 49,2 e Ez 1,24. A imagem descrita a partir desta amalgama de textos não é desconhecida pelos leitores eles são capazes de desvelar o personagem e reconhecer nele o Cristo; possuem uma concepção da pessoa de Jesus, fizeram uma experiência pessoal, portanto a visão apresentada possui uma nova luz de interpretação agregada às tradições sobre a transfiguração do Senhor (Mt 17,2). O presente conhecimento torna-se luz que ilumina e interpreta a visão. 131 Este argumento segue a opinião de Bauckham. Cf. BAUCKHAM, R., The Climax of Profhecy, 230. 132 Cf. MOYISE, S, The Old Testament in the Book of Revelation. JSNTSup, 115. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995, 120. 133 Moiyse considera a intenção do autor um meio útil para a compreensão do Apocalipse, além disto seria um critério para decidir se o Apocalipse oferece um significado novo a textos velhos (Moyise) ou simplesmente dá a textos velhos uma significação nova (Beale)? Cf. MOYISE, S., “Authorial Intention and the Book of Revelation”, AUSS 39 (2001) 35-40, 35.

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combinando textos e símbolos. Teríamos assim, um diálogo do texto com outros

textos e dentro do próprio texto. Por isso, a partir de Moyise, a intertextualidade

criaria um espaço para a análise do contexto do Antigo Testamento no Novo

Testamento, particularmente no Apocalipse.

Um exemplo destas mudanças impostas ao texto antecedente seria Ez 37-48 e

sua apreensão em Ap 20-22. Neste último, a descrição da Nova Jerusalém envolveria

uma rede complexa de insinuações, de surpreendentes omissões do autor sagrado do

Templo de Deus, ou melhor, ele não omitiria simplesmente, transferiria isto em sua

descrição da Nova Jerusalém. No texto de Ezequiel mede-se o Templo, no texto do

Apocalipse a cidade é que será medida; em Ezequiel a glória de Deus enche o

Templo, no Apocalipse a glória de Deus enche a cidade134.

Moyise destaca ainda que os textos de Ezequiel mantiveram a mesma

seqüência no Ap: Ez 1 e Ap 4; Ez 9-10 e Ap 7-8; Ez 16 e 23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap

18; Ez 37-48 e Ap 20-22. Apesar disto, considera difícil perceber qual livro seria

mais influente em relação aos outros. De fato, não seria intenção do autor do

Apocalipse preterir ou preferir uma fonte em detrimento de outras.

A mesma ênfase no estado de tensão em que se encontram os textos do Antigo

Testamento no Novo Testamento, sinalizada por Moyise, marca também o estudo de

Paul Decock135. A intertextualidade seria um espaço onde se poderia explorar o

permanente estado de tensão entre o contexto antigo e o novo. Com isto, Decock

distanciar-se-ia das abordagens tradicionais que, de modo geral, considerariam a

dependência de Ezequiel extinta logo quando o autor sagrado encerra a composição

de seu texto136.

A intertextualidade teria sido utilizada por alguns como um instrumento em

muito semelhante às antigas pesquisas do modelo tradicional de fontes e como

134 Segundo Fekkes, a estrutura de Ap 21,1-22,5 estaria alicerçada no texto de Isaías, porém não de maneira exclusiva, outros textos do Antigo Testamento que expressam oráculos de salvação escatológica cuja temática é a nova criação, a aliança, o templo e a nova Jerusalém estariam presentes simultaneamente nesta estrutura, donde conclui ser a imagem nupcial o cerne da evocação do autor sagrado sobre a nova Jerusalém. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation. Visionary Antecedents and their Development, 120. 135 Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”, Neotestamentica 33, 1999, 373-410. 136 Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”, 404.

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influência segundo a crítica de Alison Jack137. A intertextualidade, para Jack,

destinar-se-ia a compreender o modo pelo qual um texto assimilaria um outro que lhe

é anterior e que teria neste novo texto a plenitude de seu significado. Para tanto, ela

apresenta um estudo de Ez 37 e seu uso em Ap 11 e o texto de 4Q385 e conclui que a

mensagem de Ezequiel de conforto teria sido transformada em recompensa divina

para aqueles que sofrem por permanecerem fiéis138.

A via da intertextualidade foi considerada por Sverre Bøe139 como a mais

plausível para descrever o uso de Ez 38-39 por Ap 19,17-21; 20,7-10. Para tanto,

considera as transferências de nomes, temas e motivos de um contexto para o outro.

Concorda que os c. 40-48 de Ezequiel foram usados pelo autor sagrado como meio de

realçar o fato de a cidade escatológica não possuir um templo e reivindica que recurso

semelhante foi empregado no uso do material de Gog.

Os textos de Ez 38-39 e Ap 19,17-21; 20,7-10 possuem, segundo o autor,

semelhanças relacionadas a nomes, tamanho do exército, um período anterior de paz,

Deus como o vencedor sem participação humana, incêndio do céu, além de

coincidências de vocabulário como o exército que é reunido e parte para a batalha.

Porém, também há diferenças significativas como a introdução de Satanás, Magog

como um antagonista adicional e o fato de a batalha ser seguida pelo julgamento

final. Não fica claro se o autor opta pela tensão dialógica ou por uma desconstrução

dos textos anteriores.

Apesar de o procedimento intertextual ter sido concebido por outros

pesquisadores como o mais adequado para o estudo do Apocalipse140, David

Mathewson141, por sua vez, não emprega a teoria literária da intertextualidade

preferindo trabalhar com a noção de tensões, de interações entre os textos do Antigo

Testamento e do Apocalipse. Estas poderiam ser detectadas em Ez 40-48 quando

137 Cf. JACK, A., Texts Reading Texts, Sacred and Secular. JSNTSup 179. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999. 138 Cf. JACK, A., Texts Reading Texts, Sacred and Secular, 124. 139 Cf. BØE, S., Gog and Magog. Ezekiel 38-39 as Pre-text for Revelation 19,17-21 and 20,7-10. Tübingen, Mohr Siebeck, 2001. 140 Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”; JACK, A., Texts Reading Texts, Sacred and Secular; BØE, S., Gog and Magog. Ezekiel 38-39 as Pre-text for Revelation 19,17-21 and 20,7-10. 141 MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth. The Meaning and Function of the Old Testament in Revelation 21.1-22.5. JSNTSup 238. Sheffield, Sheffield Academic Press, 2003.

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integrado em um novo contexto de Ap 19-22, quando receberiam a interação de

outros textos proféticos que abordariam o tema da escatologia em toda a cidade

formando um complexo de mútua interpretação textual. De modo mais genérico

encontramos as insinuações contínuas de uma multiplicidade de textos onde o autor

sagrado cria uma pluralidade de efeitos semânticos e associações articulando a

esperança em uma salvação escatológica.

Em síntese :

O estudo de uma dependência literária do Ap com relação a Ezequiel

predominou nas últimas décadas do século passado. Vanhoye marcou a pesquisa ao

estabelecer critérios para decodificar o modo como o texto de Ezequiel foi assumido

pelo Apocalipse. A gradação pode oscilar entre a simples presença de uma expressão

até perícopes maiores. A genialidade do autor poderia ser percebida em cada um

destes modos de apreensão do texto mais antigo, pois em cada um dos critérios o

autor interfere no texto e o remodela no novo texto. Particularmente, este efeito

poderia ser decodificado em Ap 20-22 e Ez 40-48.

A intenção do autor seria a causa principal destas alterações. Estas se dariam

de forma ordenada e atrelada ao escopo teológico do texto do Apocalipse.

A ordenação do autor sagrado ao usar os textos proféticos foi percebida

também por Goulder, porém o critério ordenativo na escolha de textos vétero-

testamentários poderia ser entendido sob o prisma da liturgia. A estrutura do

Apocalipse estaria plasmada sobre a semana litúrgica e as festas do calendário judeu-

cristão. Esta característica faculta uma leitura cíclica dos livros. Em cada semana uma

leitura de Ezequiel sucede a do Apocalipse e as duas dentro do contexto das festas

judaicas possibilitariam uma visão mais ampla do motivo da presença de um texto

dentro de outro texto e dentro do contexto litúrgico. Este tornar-se-ia o ambiente

natural para a meditação e compreensão do próprio texto.

A democratização e desmistificação formam o cerne da pesquisa de

Vogelgesang sobre a dependência literária entre Ezequiel e o Apocalipse, entre

Apocalipse e as tradições da mística judaica. A democratização foi particularmente

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aplicada a Ez 40-48 e Ap 20-22, quando são ampliadas as imagens de Ezequiel com

vistas a atingir um maior número de beneficiados. Os privilégios de uma nação são

agora de toda a nação redimida pelo evento da cruz.

As tradições judaicas da merkabah encontrariam na desmistificação um

depurador que refrearia todo exagero a ela peculiar, permitindo apenas a entrada de

elementos que interessavam à natureza ascética da intenção do autor. A intenção do

autor neotestamentário e a liberdade do autor possuiriam a função de controladores

diante da abrangência de material disponível.

Em uma linha mais hermenêutica, Ruiz parte do contexto litúrgico e de uma

linguagem múltipla e infinita de significados decorrentes da interpretação dos

leitores/ouvintes do Apocalipse. O leitor do Apocalipse é convidado a estabelecer um

diálogo com o texto e como texto dentro do texto.

Ap 19,1-10 seria uma evidência deste procedimento, pois os leitores serão

participantes na interpretação do livro e não meros espectadores do drama

apresentado diante deles. Quando esta percepção não for possível, em decorrência da

falta de conhecimento dos textos vétero-testamentários presentes no novo texto, o

leitor padecerá o ônus da não-compreensão do texto a ele oferecido.

O procedimento intertextual introduzido no estudo do Apocalipse tornou mais

visível o modo como o autor do Apocalipse tomou os textos do Antigo Testamento e

os aplicou ao Novo Testamento. Moyise segue seus antecessores quando diz que a

intenção do autor é a grande responsável pelas mudanças impostas ao texto de

Ezequiel no Apocalipse. Esta seria também a causa dos novos significados e da nova

compreensão que receberam no texto do Apocalipse. O dado novo poderia ser

indicado através da chamada hermenêutica de substituição, que afetaria não só os

textos vétero-testamentários envolvidos na perícope, como também as tradições

judaicas e Qumrânicas a que o autor do Apocalipse tivesse tido acesso.

O leitor/ouvinte e a intenção do autor seriam os elementos necessários para

compreender a seção de Ap 4-22. O texto permaneceria em estado de tensão, no

sentido de aguardar que aquilo que ele porta venha a ser aprendido pelo leitor. Para

isto, o conhecimento prévio dos textos é imperativo.

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A intertextualidade abriria uma perspectiva na leitura/compreensão dos textos

e permitiria perceber um texto mais antigo ainda vivo no novo texto e as implicações

deste diálogo entre textos para o próprio texto e para o leitor. A vivacidade do texto

antecedente no mais recente ofereceria à intertextualidade a capacidade de “reavivar”

textos considerados estagnados pelo fato de terem sido usados em outros textos.

1.3 As diversas abordagens para o tratamento da relação entre o Antigo Testamento, as tradições judaicas e o Apocalipse

O texto do Apocalipse gerou desconforto em alguns momentos da pesquisa

por ser portador de inúmeros fenômenos lingüísticos, bem como da utilização de

elementos oriundos da apocalíptica. Conseqüentemente, seria frutuosa a utilização do

Método Histórico-Crítico e das tradições judaicas para uma melhor compreensão do

modo como o autor sagrado apropria-se destas estruturas gramaticais e dos conceitos

apocalípticos.

1.3.1. Na linha da exegese tradicional

a) Utilização do Método Histórico-Crítico

Devido à sua complexidade, o texto do Apocalipse despertou inúmeras

pesquisas. Os fenômenos lingüísticos empregados pelo autor para compor seu texto e

sua mensagem teológica causaram desde a perplexidade diante da linguagem

utilizada até a estupefação diante da grandiosa visão litúrgica que perpassaria todo o

livro.

Os fenômenos lingüísticos encontram-se basicamente em três linhas de

trabalho. A primeira com Robertson, que entende ser o autor sagrado um inapto na

sintaxe grega. Como conseqüência, surgiriam os solecismos que conferiram ao texto

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uma fisionomia única e um estilo inimitável142. Esta inaptidão seria ainda a causa de

alguns barbarismos143. Com Charles, temos uma investigação que visaria explicar a

presença de tantas incongruências no texto através do fato do autor sagrado pensar em

hebraico, mas escrever em grego144.

Posteriormente, encontra-se a hipótese de uma versão do hebraico145 ou do

aramaico146 para o grego defendida por Torrey e Scott, respectivamente. O tradutor

teria seguido tanto a ordem das palavras e reproduzido suas expressões idiomáticas

quanto imitado a gramática semita negligenciando por completo a grega147. A

existência de um substrato hebraico é defendida igualmente por Bartira. Este

justificaria a presença das anomalias e fenômenos lingüísticos no emprego dos

tempos verbais gregos148.

Uma síntese das propostas anteriores foi feita por Lancellotti149. Segundo

ele, o Apocalipse atual seria uma tradução de uma versão original hebraico-aramaica.

Poder-se-ia detectar esta versão através das formas primitivas que subjazem no texto

do Apocalipse, estas corresponderiam àquelas típicas da língua hebraica. Semelhante

142 Cf. ROBERTSON, A. T., A Grammar of the Greek New Testament the Light of Historical Research. New York, 1914, 135. 143 Cf. VANNI, U., L” Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia. Bologna, EDB, 19973. 144 Cf. CHARLES, R. H., The Revelation of St. John, cxliii. Recentemente, alguns trabalhos retomaram a tese de Charles. Cf. NEWPORT, K. G. C., “Semitic Influence on the Use of some Preposition in the Book of Revelation”, BTr 37 (1986) 328-334; “Semitic Influence in Revelation: Some Further Evidence”, AUSS 25 (1987) 249-256; “Some Greek Words with Hebrew Meanings in the Book of Revelation”, AUSS 26 (1988) 25-31. 145 Cf. SCOTT, R. B., The Original Language of the Apocaypse. Toronto, 1928. 146 Cf. TORREY, C. C., The Apocalipse of John. Yale, Yale Press, 1958, 27. Pensamento análogo pode ser encontrado em BRETSCHER, P. M., “Syntactical Peculiarities in Revelation”, CTM 16 (1945) 95-105. 147 Cf. TORREY, C. C., The Apocalypse of John, 47-48. 148 Segundo Bartira, uma compreensão adequada do uso dos modos e dos tempos, especialmente na interpretação do perfeito, aoristo, presente e futuro resulta de grande complexidade. Quando ainda se aguarda por um futuro, diz o autor, sobrevém um aoristo. Cf. BARTIRA, S., Apocalipsis de S. Juan. Madrid, 1962, 582. Recentemente a complexidade da gramática grega do Apocalipse foi tratada por Elliott. Cf. ELLIOTT, J. K., “Manuscripts of Book of Revelation Collated by H. C. Hoskier” JournTheolStud 40 (1989) 100-111; “The Distinctiveness of the Greek Manuscripts of the Book of Revelation”, JournTheolStud 48 (1997) 116-124. 149 Cf. LANCELLOTTI, A., Sintassi Ebraica nel Greco dell” Apocalisse. Assisi, 1964. O pressuposto de Lancellotti encontra-se mais evidente em um artigo posterior quando fundamenta-se na abundante presença do Antigo Testamento para indicar qual seria o ambiente cultural onde nasce e move-se o escrito. Cf. LANCELLOTTI, A., “L “Antico Testamento nell” Apocalisse”, Rivista Biblica 14 (1966) 369-384.

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abordagem oferece Allo, quando propõe ser a gramática do Apocalipse caracterizada

por uma confusão de tempos verbais originada pelo uso de uma sintaxe hebraica150.

A abordagem através da intenção do autor proposta por E. Cothenet postula

que o autor do Apocalipse, ao usar os textos do Antigo Testamento, transformou-os

deliberadamente com vistas ao seu objetivo teológico, o que justificaria a ausência de

citações literais151.

A carência de citações literais, segundo Doglio, seria justificada pelo método

próprio da apocalíptica, que não conheceria a prática de uma citação direta, antes

recorreria às reminiscências e alusões152. Entretanto, o autor do Apocalipse não teria

tomado o método em sua íntegra e, sim, atuaria sobre o texto condensando,

abreviando fórmulas e exemplificando imagens. Estas alterações indicariam que o

autor sagrado possui uma notável capacidade artística e teológica para reunir em uma

mesma cena elementos mais livres, oriundos de universos distintos e os compor

juntamente com acréscimos de forma tão original que poderia até mesmo determinar

um novo significado.

Uma nova chave de leitura, pautada no Cristo ressuscitado e inserida no

contexto litúrgico, seria a causa das mudanças de significados dos textos vétero-

testamentários no Apocalipse, na visão de Doglio153. Esta linha de pensamento é

150 Cf. ALLO, E.-B., Saint Jean, l” Apocaypse. Paris, Librairie Victor Lecoffre, 1921, clxvii. O mesmo propõe Schmidt. Cf. SCHMIDT, D., “Semitisms and Septuagintalisms in the Book of Revelation”, NewTestStud. 37 (1991) 592-603. 151 Exemplos destas adaptações encontramos em Ap 4,8; o cântico proposto pelo autor do Apocalipse possui relações estreitas com Is 6,3. O Cristo de Ap 1,7 está ligado à descrição do Filho do Homem de Dn 7,13. Neste mesmo capítulo podemos observar outros elementos de contato que se fazem presentes no Apocalipse: os atributos de Deus em 1,4 (cfr. Dn 7,9); a descrição e função da Besta em Ap 13 (cfr. Dn 7,7.23-25). Dentre os livros proféticos, Cothenet considera que aquele de Ezequiel parece ter sido alvo de uma leitura sistemática e uma utilização livre dos pressupostos que formaram o livro profético, para isto propõe uma tabela comparativa pautando-se em Vanhoye: Ez 1 e Ap 4,1-8 e c. 10; Ez 2,8s e Ap 5,1; 10,1-4.8-11; Ez 16 e 23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap 18,9-19; Ez 39,17-30 e Ap 19,17-21; Ez 38-39 e Ap 20,8-9; Ez 40,1-6 e Ap 11,1-2; 21, 10-27; Ez 47 e Ap 22,1-2. Cf. COTHENET, É., Il messaggio dell” Apocalisse. Torino, Elle Di Ci, 1997, 14-15. 152 Doglio considera Ap 15,3 (cfr. Êx 15) como o único caso onde se poderia falar de uma citação explícita. Cf. DOGLIO, C., “L” Apocalisse di Giovanni: linee di interpretazione”. In Dianich, Severino, Sempre Apocalisse. Un testo biblico e le sue risonanze storiche. Asti, Piemme, 1998, 54. 153 A realidade litúrgica como ambiente vital do livro do Apocalipse vem sendo progressivamente aprofundada nos últimos anos. Desenvolvem esta temática: M. D. Goulder para quem o Apocalipse está vinculado a uma série de homilias e celebrações cristãs que devem partir de um esquema de lecionário litúrgico com leituras de textos do Antigo Testamento e seu comentário cristão. Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies”, 342-367. Prigent, Manns e Shepherd reconhecem no Apocalipse a estrutura de uma liturgia pascal cristã. Cf. SHEPHERD, M. H.,

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compartilhada por P. Grelot. Segundo este autor, o Apocalipse foi precedido de um

tempo de leitura refletida em textos do Antigo Testamento em ambiente litúrgico154.

Contreras Molina155 entende que o Apocalipse inicia-se com um diálogo

litúrgico entre o leitor e a comunidade (1,4-8) e encerra-se com outro diálogo de igual

maneira litúrgico, envolvendo diversos personagens na cena de 22,6-21. Tal estrutura

tornaria o livro essencialmente litúrgico. A importância da liturgia para a

compreensão do Apocalipse já é uma quase unanimidade na pesquisa, quer como

marco ambiental, ou também realização eclesial. A Igreja descobriria o seu mistério

durante a celebração da liturgia onde entra em comunhão com a assembléia celeste e

alcança sua meta escatológica156.

Os trabalhos de Doglio e Grelot acenam para uma releitura dos textos vétero-

testamentários à luz do evento Cristo, ou seja, da experiência que fizeram do

Cristo157.

The Pascal Liturgy and the Apocalypse. London, 1960 ; MANNS, F., “Traces d”une Haggadah pascale chrétienne dans l” Apocalypse de Jean?”, Antonianum 56 (1981) 265-295; PRIGENT, P., Apocalypse et Liturgie. Neuchâtel, 1964. Ugo Vanni tem como pressuposto do Apocalipse a assembléia litúrgica. É dela que procede toda a experiência que o livro deseja comunicar. Cf. VANNI, U., “Il “giorno del Signore” in Apoc 1,10, giorno di purificazione e di discernimento”, Rivista Biblica Italiana 26 (1978) 187-199. 154 Cf. GRELOT, P., “Omelie sulla Scritura nell” età apostolica”. In Grelot, P., Introduzione al Nuovo Testamento. Roma, 1990, 207. 155 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura Cristológica del Apocalipsis, 21. 156 O Apocalipse, na visão de Contreras Molina, possui uma característica litúrgica singular. Esta característica teria sido cunhada a partir da expressão “Dia do Senhor” e perpassaria todo o livro. O “Dia do Senhor”, o Domingo, é o Dia da Eucaristia, onde a Igreja celebra o mistério da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Neste dia, o Senhor que se revela é Sumo Sacerdote que preside a função litúrgica da Igreja (1,13). É Deus e assenta-se no Trono Celeste (5,8-11), juntamente com o Cordeiro (5,8-10.12-14) e são aclamados na liturgia. O Espírito será apresentado sob a imagem das sete lâmpadas de fogo que ardem perpetuamente diante do Trono de Deus (4,5). O desdobramento do livro se daria por meio de doxologias que reconhecem não só o senhorio como também a providência divina em todo a história da salvação (6,8-11; 8,1-6). A liturgia teria função unificadora, une o céu e a terra. As ações de testemunho na comunidade eclesial encontrariam ressonância na eternidade (11,15-18; 12,10-12; 15,3-4; 16,5-7; 19,1-7) e seria apresentada diante do altar de Deus (5,8). O Cordeiro, reconhecido e aclamado na assembléia eclesial como Senhor (5,9-10.13; 12,11; 19,7) mostrar-se-ia como um título cristológico perfeitamente litúrgico. Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura Cristológica del Apocalipsis 21-22. Pensamento análogo poderá ser encontrado na pesquisa de Ugo Vanni. Cf. VANNI, U., L”assemblea litúrgica si purifica e discerne nel “Giorno del Signore”(Ap 1,10); Ap 1,4-8: Un esempio di dialogo liturgico. in, VANNI, U., L”Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia. Supplementi alla Rivista Bíblica 17. Bologna, EDB, 1997, 87-97; 101-114; PRIGENT, P., “Une trace de Liturgie judéochrétienne dans le chapitre XXI de l”Apocalypse de Jean”, RecScRel 60 (1972) 165-172. 157 Na linha de releitura encontramos Halver e Ugo Vanni. Para estes, o Apocalipse seria uma releitura tão sabiamente assimilada que manifestaria uma profunda semelhança com relação às suas expressões, visões e grandes temas. Cf. VANNI, U., “L Apocalisse, rilettura cristiana dell” Antico

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O escopo do paralelismo visa estabelecer a presença de paralelos e

coincidências entre o texto vétero-testamentário e o Apocalipse. Para tanto, recorre à

disposição dos textos em colunas paralelas. Assim revelava a adoção análoga que o

autor sagrado teria feito dos textos do Antigo Testamento158. Outros estudiosos, no

entanto, consideram a influência teológica ou de estilo um forte recurso para justificar

a atual disposição dos textos antigos no Apocalipse159.

A análise estrutural tem como intento atrair a atenção para a coerência

especialíssima com que o autor construiu a sua própria narrativa160, tendo como

ponto de partida o texto em seu estado atual161.

Por sua vez, a análise literária teria como finalidade pôr em relevo o modo

como o texto se expressa, uma acurada apreciação do texto e dos recursos gramaticais

utilizados para comunicar uma mensagem: vocabulário, gramática, fenômenos de

estilo e elementos característicos do gênero literário empregado no livro. Tornaria

possível a compreensão do cerne do texto; posteriormente, de uma exposição de seu

conteúdo; e, por fim, de uma exegese162.

Testamento”. In GENNARO, G. de (ed.), L” Antico Testamento interpretato dal Nuovo. Il Messia. Napoli, 1985, 445-480; HALVER, R., Der Mythos im letzten Buch der Bibel. Eine Untersuchung der Bildersprache der Johannes-Apokalypse. Hamburg-Bergstadt, 1964, 58. 158 Cf. PASSAMA, M., Apocalypse interpreté par l” Ecriture. Paris, 1907; STÄHLING, G., 700 Parallelen. Die Quellgründe der Apokalypse. Berna, 1951; CAMBIER, J., “Les images de l” Ancien Testament dans l”Apocalypse de saint Jean”, NRTh 77 (1955) 113-122; LOHSE, E., “Die alttestamentliche Sprache des Sehers Johannes. Textkritische Bemerkungen zur Apokalypse”, ZNTW 52 (1961) 122-126. 159 Cf. VANHOYE, “L” utilisation du livre d”Ezéquiel dans l” Apocalypse”; MARCONCINI, B., “L”utilizzazione del TM nelle citazione isaiane dell” Apocalisse”, 113-136; GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies”; FEUILLET, A., “Le Cantique des Cantiques et L” Apocalypse. Étude de deux réminescences du Cantique dans l”Apocalypse johannique”, 321-353. 160 A tese doutoral de Ugo Vanni tem despertado inúmeros trabalhos por seu equilíbrio e respeito ao texto do Apocalipse. Vanni entende que a própria obra ofereceria os indícios estruturais. Esta estrutura compreenderia um prólogo e um epílogo, no entanto, o corpo da obra seria constituído de duas partes não iguais quer na extensão, quanto no conteúdo: prólogo litúrgico 1,1-8. Primeira parte - carta às sete Igrejas 1,9-20 visão introdutória; 2,1-3,22 as sete cartas. Segunda parte - os três setenários: setenário dos selos: 4,1 visão introdutória; 6,1-8,1 abertura dos sete selos. Setenário das trombetas: 8,2-6 visão introdutória; 8,7-11,19 som das sete trombetas. Setenário das sete taças: 12,1-15,8 visão introdutória; 16,1-21 derramamento das sete taças; 17,1-22,5 complemento do setenário. Epílogo litúrgico: 22,6-21. Vanni entende que os setenários estão contidos um no outro. O que resulta na idéia de uma recapitulação a iluminar a interpretação literária e teológica do Apocalipse. Cf. VANNI, U., La struttura letteraria dell”Apocalisse. Roma, 1971. 161 Prigent propõe uma análise da estrutura e da exegese histórica do Apocalipse e detecta uma incompatibilidade entre a análise estrutural e uma leitura sincrônica do texto. Cf. PRIGENT, P., “L”Apocalypse: exegese historique et analyse strutturale”, New Testament Stud (1978) 26, 127-137. 162 Cf. VANNI, U., L” Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia, 19-20.

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b) Consideração das tradições judaicas

O recurso às tradições judaicas não seria exclusividade do livro do

Apocalipse, outros livros do Novo Testamento portariam estes elementos tais como

1Cor 10,4; Gl 3,19; At 7,53; Jd 2; 2Tm 3,8 dentre outros163.

A presença do simbolismo animal oriundo dos apocalipses judaicos e do

Testamento de Josefo 19,8 foi defendida por J. M. Ford164. Este incidiria sobre a

figura do Messias representado pelas imagens do Leão e Cordeiro. No entanto,

nenhuma das imagens destes apocalipses seria o Cordeiro associado ao sacrifício do

Apocalipse. A imagem do Cordeiro cunhada pelo autor sagrado e centro dos c. 4-22

teria recebido influência de Jo 1,29, que oferece um tom cristológico fortíssimo,

assim como uma promessa inaudita de recompensa para todos os que permanecerem

fiéis: um lugar ao lado de seu Pai.

As tradições judaicas da merkabah e da hekhalot no Apocalipse, segundo

Vogelgesang, não teriam sido assumidas na sua íntegra pelo autor sagrado, e sim

sofrido uma intervenção deste. De fato, o autor sagrado teria uma compreensão

profunda destas tradições propiciando alterações deliberadas, que visavam a

“democratização” das mesmas165.

Assim é que o emprego das tradições merkabah teria ocorrido de modo

inverso em função da cristologia encontrada no Apocalipse.

Na linha temática encontramos C. Deutsch166, que analisa os textos de Ap

21,1-22,5 sob o ponto de vista dos símbolos e a influência por eles exercida. Para a

autora, o autor sagrado mover-se-ia dentro de uma matriz simbólica da Bíblia

Hebraica além de outras tradições judaicas. Particularmente deterá atenção sobre

algumas categorias temáticas como: Jerusalém e a noiva Is 49,18; 61,10; 62,5;

Jerusalém e o templo Ez 40-48; 1Rs 6,20; a nova Jerusalém e a nova criação Is 65,17;

Ez 47,1-12; Gn 2, 9-10; Zc 14,8 e associação na Nova Jerusalém Is 52,1; 60,3-5; Ez

44,9; 1Sm 7,14. Na opinião da autora, para cada um destes temas, o autor sagrado

163 Cf. MOYISE, S., The Old Testament in the New, 128-138. 164 Cf. FORD, J. M., Revelation. New York, Garden City, 1975, 30-31. 56. 165 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 263-277. 166 Cf. DEUTSCH, C., “Transformation of Symbols: The New Jerusalem in Rev 21,1-22,5”, ZNW 78 (1987) 106-126.

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estabeleceu uma trama bíblica com imagens do Segundo Templo com o objetivo de

articular sua esperança na realidade escatológica.

O clímax da presença de textos do Antigo Testamento na experiência

visionária do autor sagrado, na visão de G. K. Beale167, encontrar-se-ia no texto de

Ap 21,1-22,5, uma vez que muitos textos antigos estariam presentes por detrás deste.

Para tanto, recorre a outras tradições como a apocalíptica, Qumran, Targum e o

rabinismo, a fim de sedimentar a tese de que o autor sagrado usa o Antigo

Testamento influenciado por ele e respeitando-o, sem lançá-lo em um espaço aberto.

O trabalho desenvolvido por U. Sim168, por sua vez, situa-se sobre a

presença das tradições judaicas relacionadas com o tema da Nova Jerusalém e os

paralelos com os modelos antigos de construção das cidades. U. Sim sugere uma

consideração a propósito do antigo conceito de Städtebau como contexto de Ap 21,1-

22,5, dando à nova Jerusalém a dignidade de cidade ideal para os verdadeiros

cristãos.

O conceito de cidade ideal seria extraído a partir da observação de cidades

como Roma, Babilônia, Grécia, dentre outras cidades helenistas, além de perpassar

pensadores como Platão, Aristóteles, Filon e os Mestres de Qumran. Segundo Sim, o

autor sagrado apelaria para temas que desenvolvem a esperança no Antigo

Testamento, promovendo uma antítese entre Babilônia e Roma nos c 17-18,

apresentando Jerusalém como centro do mundo e não Roma. Embora os motivos

religiosos tivessem origem no Antigo Testamento, motivos políticos e sociais teriam

sua derivação na tradição das construções da antigüidade greco-romana, cuja

finalidade seria mostrar a nova Jerusalém sob o prisma de cidade ideal, perfeita,

pacífica e viva.

Retornando à intenção do autor sagrado e à reelaboração que este teria

infligido às tradições judaicas, Pilchan Lee169 estuda Ez 40-48 e Ap 21-22. O autor

entende a ausência do Templo na Nova Jerusalém e sua mudança para a figura do

167 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 56. 168 Cf. SIM, U., Das himmlische Jerusalem in Apk 21,1-22,5 im Kontext biblichjüdischer Tradition und antiken Städtebaus. Bochumer Altertumswissenschaftlicher Colloquium, 25. Trier, Wissenschaftlicher Verlag, 1996. 169 LEE, P., The New Jerusalem in the Book of Revelation: A Study of Revelation 21-22 in the Light of its background in Jewish Tradition. Tübingen, Mohr Siebeck, 2001.

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Cordeiro como intencional, fazendo com que sua finalidade possa estar na intenção

de distinguir a visão de uma Nova Jerusalém proposta pelo autor sagrado e aquela das

tradições judaicas embebida no ambiente apocalíptico da época.

Destaca ainda que deve ter havido algum precedente que tenha desenvolvido o

movimento de identificação com o templo, uma vez que Qumran por vezes

identificava-se com o templo, de igual maneira o 3Baruc o fazia com o templo e a

oração. No entanto, o autor alega ser o período da construção do segundo templo o

elemento de maior impacto sobre o texto do Apocalipse.

Este material, segundo Lee, teria sido utilizado pelo autor sagrado com

criatividade em relação às tradições judaicas e sob o seu ponto de vista cristológico.

Em conseqüência, rejeitaria a tese de um midrash ou de cumprimento, pois, detectar-

se-ia uma interpretação do autor sagrado sobre as fontes disponíveis. Lee não situa

esta interpretação em uma teoria literária, como a intertextualidade, seu ponto de vista

estaria situado na cristologia do livro.

A idéia de um novo templo, segundo Nobile170, seria própria de Ezequiel,

mas possuiria contatos com outros textos vétero-testamentários, principalmente

deuteronomísticos e jeremianos, além da literatura judaica intertestamentária e

Qumrânica. A literatura Qumrânica traria consigo uma ambigüidade na expressão que

parece fruto de uma intenção do autor sagrado com vistas a indicar a tensão existente

entre a comunidade presente e aquela realidade edênica que Deus, no final dos

tempos, restaurará. A literatura judaica somente, ocasionalmente, estaria em contato

com o conceito de templo da Torah, principalmente aquele herdado pela dtr. Ela

versaria mais sobre a presença de um templo “lugar santo”, anterior à construção do

templo histórico ou após, mais precisamente no futuro escatológico. O jardim do

Éden é entendido como um verdadeiro e próprio santuário e é considerado o lugar

ideal onde se corresponderiam os extremos da história: a protologia e a escatologia.

Neste momento, Deus restaurará como em um novo Éden a nova Jerusalém sobre o

monte Sião e em seguida o novo templo.

170 Cf. NOBILE, M., “ “Sarò per essi un tempio per poco tempo”. Da Ezechiele all” Apocalisse: il tragitto di un” idea”. In BOSETTI, E., COLACRAI, A., Apokalypsis. Percorsi nell” Apocalisse de Giovanni, 127-146.

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Em síntese

A abordagem através dos fenômenos lingüísticos tentou pela via da sintaxe

grega compreender os motivos que levaram o autor sagrado a impor ao texto tantas

mutilações. Em um primeiro momento da pesquisa houve uma inclinação para

considerar o Apocalipse o resultado defeituoso de um autor inábil na língua grega ou

a tradução, de igual modo mal realizada, de um material prévio de origem hebraica ou

aramaica.

A cristologia do livro e a intenção do autor sagrado representam hoje uma via

de compreensão destas mudanças ou de aparente carência de conhecimento da sintaxe

grega. A origem destas divergências estaria em seu escopo teológico e no próprio

gênero apocalíptico que, ao recorrer a um texto mais antigo, não o cita diretamente,

mas apenas como reminiscência e alusão.

Apesar da presença do gênero apocalíptico, o autor permanece livre na feitura

de seu texto e o mescla com as demais fontes que utiliza, fazendo com que os

significados herdados destas possam ser modificados dentro do novo contexto.

Contexto este agora iluminado pela liturgia, que ofereceria uma releitura a partir do

Cristo ressuscitado.

Semelhante domínio do autor sagrado poderia ser percebido no modo como

este recorreu às tradições judaicas. De fato, a presença destas revelam o

conhecimento que o autor do Apocalipse possuía sobre elas, bem como a depuração

que a elas impôs de possíveis desvios. Assim, se poderia entender a “democratização”

das antigas tradições judaicas que foram absorvidas pelo Apocalipse. Destas somente

os elementos destituídos de uma mística exacerbada, conexa com o pensamento da

Sagrada Escritura e imbuídos de uma cristologia passaram a compor o novo texto.

O mesmo processo teria atingido a escatologia presente na temática de

algumas obras da literatura judaica. Uma releitura concederia a estas a sobriedade e

uma real aproximação com as esperanças de Israel.

Poderíamos dizer que tanto o Método Histórico Crítico quanto as tradições

judaicas possuem elementos colaboradores para uma melhor compreensão do texto

do Apocalipse, porém com carências claras. A última resposta indica sempre a

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cristologia do livro e a compreensão de intenção do autor sagrado como meios

possíveis de eficazmente penetrar na composição da obra e de sua teologia.

1.3.2. Na linha da intertextualidade

a) origem e desenvolvimento da teoria da intertextualidade

O termo intertextualidade pertence ao patrimônio da teoria literária. Suas

origens encontram-se no Formalismo Russo que compunha o Círculo Lingüístico de

Moscou nos anos 1914 e 1915.

Interessava ao Formalismo Russo os princípios lingüísticos de organização da

obra como produto estético, com o qual deixava claro que a imagem não constituía o

fator principal da linguagem poética, sendo apenas um dos diversos elementos que

integravam o sistema. O Formalismo Russo considerava que, mais importante do que

a criação de imagens, era a sua disposição e o seu relacionamento com outros

processos artísticos utilizados pelo escritor, visto que se verificaria na linguagem

literária uma relação posicional entre as palavras, não existente na linguagem

quotidiana. O enfoque sincrônico, portanto, teria predominado no Formalismo

Russo171.

O Formalismo Russo foi rechaçado pelos intelectuais marxistas a partir de

1924-1925172. Estes consideravam a tese do Formalismo desvinculada do momento

histórico e do momento político na Rússia e, por isto, o movimento foi diluído173.

171 Este predomínio, no entanto, não foi exclusivo, outros trabalhos acenaram para o enfoque diacrônico, como se pode observar no trabalho de Tynianov sobre a evolução literária. Neste, o autor toma a obra e a própria literatura como um sistema e propõe que entendamos o dinamismo histórico da literatura como uma substituição de sistemas. Levando em conta que, no sistema, os elementos desempenham uma função, cada uma delas entra em correlação com elementos similares de outras obras, com elementos similares que pertencem a sistemas de outras séries culturais, ou com os diversos elementos que compõem o sistema da própria obra. A evolução seria uma mudança de relação entre os termos do sistema, seria, portanto, uma transformação de funções e elementos formais; não se tratando de uma renovação ou substituição súbita e total dos elementos formais, mas da criação de uma nova função destes elementos formais, havendo diacronicamente recombinações discursivas. Cf. ROGEL, S., Manual de Teoria Literária, Petrópolis, Vozes, 1998, 95. 172 Na visão de Wellek, a base ideológica do Formalismo Russo é uma revolta contra o Positivismo. Cf. WELLEK, R., Conceitos de Crítica. São Paulo, Contrix, 1979. 65. 173 Com esta abruta supressão o Ocidente teve pouco acesso ao movimento. Há algumas décadas porém, surgiu uma obra extensa em língua inglesa que permite conhecer as teorias básicas desta corrente. Cf. VICTOR E., Russian Formalism. Haia, 1955. Do mesmo autor, Russian Formalism:

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A riqueza teórica do Formalismo foi revista pelos estruturalistas em Praga,

onde, em 1926, tem início o Círculo Lingüístico de Praga. Deste surgirá Julia

Kristeva e a ela se deve o pioneirismo no emprego do termo intertextualidade174.

Desde então, muito se tem discutido sobre o assunto175.

Básico para compreender o que Kristeva entende por intertextualidade é sua

compreensão de “texto”. Texto, para Kristeva, poderia ser entendido como um

sistema aberto, no sentido de ser composto de um mosaico de citações, assimilações

ou transformações de outros textos176. O texto poderia ainda ser entendido como um

mosaico composto de muitos fragmentos de importância lingüística citados de fontes

anônimas, uma colagem de pedaços de linguagem trazidos a uma proximidade

espacial e que convidam o leitor a criar um tipo de padrão através da obrigação de

dispensar algumas de suas energias interrelacionais. Com isto, Kristeva ofereceria um

elemento novo: o papel do leitor, posto que a ele caberia estabelecer os nexos

intertextuais. E estes serão tantos quantos o leitor for capaz de estabelecer.

Trabalhando desta forma, Kristeva rompe com antigas teses que falam de

influências no sentido de um texto possuir um significado idêntico no antigo e no

novo. Influência para Kristeva deveria ser entendida como prováveis intercessões History, Doctrine. Hardcover, Yale University, 19813. Outras indicações sobre o tema: http://poeticstoday.dukejournals.org. 174 Julia Kristeva em 1966 cunhou o termo intertextualidade durante um seminário em Paris onde era discutida a teoria do crítico literário russo M. M. Bakhtin. Suas duras críticas ao Formalismo Russo geraram a noção de “diálogo”, que sugere um número infinito de contatos entre o remetente do texto (sujeito) e destinatário (objeto) e a cultura do texto. Desestabilizando, assim, a tese dos Formalistas e Estruturalistas. Ao introduzir a expressão “dialógico espaço entre textos” Kristeva elimina a autonomia e a univocidade de qualquer texto particular. Cf. FEWELL, D. N., Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible. Louisville, John Knox Press, 1992, 29-30. 175 Para uma introdução ao tema ver: WORTEN M., - STILL J., Intertextuality: Theorias and Pratices. Manchester, Manchester University Press, 1990. 176 Outros autores apresentam a compreensão de texto para Kristeva da seguinte maneira: como uma crítica ao sujeito, à sociedade, às ideologias. “O texto não é o discurso de um sujeito imutável e pleno, prévio ou posterior ao discurso. O texto é o lugar onde o sujeito se produz com risco, onde o sujeito é posto em processo e, com ele, toda a sociedade, sua lógica, sua moral, sua economia”. Cf. PERRONE-MOISÉS, L., Texto, Crítica, Escritura. São Paulo, Ática, 1978, 50. Em uma outra tentativa encontramos a noção de que o texto pode ser compreendido como produtividade. Este entendimento está fixado no que Kristeva entende por significância que é a abertura para o infinito dos sentidos, sentido como produtividade infinita. Cf. JOBIM, J. L., (org.), Palavras da Crítica. Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro, Imago, 1992, 402. O texto é entendido como uma relação dialógica entre “textos”, o texto seria assim compreendido como um sistema de códigos ou signos. Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New” In Moyse, S., (ed.) The Old Testament in the New. Essays in Honour of J. L. North. JSNTSup 189, Sheffield,, Sheffield Academic Press, 2000, 14-41.

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textuais que favorecem o diálogo entre textos promovendo um novo significado, ao

invés de um significado fixo ou de uma cópia plagiada de um texto177.

A expansão do procedimento intertextual no universo literário se deve a

Greene178 e Hollander179. Thomas Greene considera um texto não como uma pálida

imitação de um outro mais antigo, mas como seu real sucessor. Sendo assim, cada

trabalho literário possuiria uma iniciativa de revitalização, um gesto que sinaliza a

intenção de reanimar um texto mais antigo.

A esta revitalização intertextual poder-se-ia nomear como tipologia de

imitação e pertenceria à estratégia de imitação humanista. As estratégias de imitação

humanista são quatro: reprodutiva, eclética, heurística e dialética. Thomas Greene

entende por tipologia reprodutiva a percepção do autor do subtexto como vindo de

um período áureo que agora encontra-se encerrado. Tudo o que se poderia fazer é

reescrever o subtexto como se nenhuma outra forma de celebração pudesse ser

merecedora de sua dignidade. Na tipologia eclética, o autor utilizaria uma gama

extensiva de fontes, aparentemente ao acaso, sem enfatizar de modo particular

alguma delas. A chave para compreender esta categoria seria a capacidade de

encontrar materiais que pertençam a um contexto original e levaram consigo seu 177 O limite existente entre a intertextualidade e plágio foi o tema da tese de Liliane Christoff. Para a autora, o termo plágio implica em reconhecer como legítima a noção de propriedade literária e a fragilidade da fronteira do universo denominado plágio. A característica de um texto plagiário está em apresentar-se como mera cópia, não avançando em novos sentidos. Ele acontece quando há um trabalho de dissimulação da intertextualidade O critério proposto para detectar esta dissimulação seria a análise lingüística. O plagiador desestrutura a produção e silencia a voz do plagiado. Este, porém, não é o caso da intertextualidade, pois esta deixa claros sinais de textos antigos em seu novo texto. No tocante à noção de autor, Christoff propõe que este pode ser entendido como um que nasce de outros, ou seja, um autor nasce de outros autores, sem contudo perder a sua originalidade e seu caráter social. Sendo assim, existe autor, existe originalidade e existe criação individual sem negar a herança cultural e literária destes. Por esta razão, Christoff, acredita ser possível falar de uma intertextualidade que permita a criatividade individual do autor que lança mão de um texto que lhe é anterior sem que isto implique em uma cópia. Por fim, Christoff, entende a intertextualidade como uma vigorosa teoria para discernir onde temos um caso de plágio e ao contrário onde um autor exerce com criatividade a produção de um novo texto tendo como base toda uma herança cultural. Cf. CHRISTOFF, L., Intertextualidade e plágio. Questões de linguagem e autoria. Tese de Doutoramento, São Paulo, Unicamp, 1996. Uma síntese do trabalho pode ser encontrada na resenha de CARVALHO, A. L. L., “Intertextualidade e plágio - Questões de linguagem e autoria.”, Revista de Ciências Humanas 8/2 (2002) 169-174. 178 Cf. GREENE, T., The Light in Troy: imitation and Discovery in Renaissance Poetry. Yale, Yale Press,1982. 179 Cf. HOLLANDER, J., The Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After. Berkeley, 1981.

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poder evocativo quando implantado pelo poeta em um novo contexto. Com a

tipologia heurística teríamos um novo trabalho, que busca reescrever ou modernizar

um texto passado. Simplesmente não se anuncia como uma imitação do mais antigo,

mas seu verdadeiro sucessor. Por fim, a tipologia dialética se dá quando o poema se

entrelaça de tal forma com o seu precursor que já não se sabe quem é um e quem é o

outro. Cria-se um tipo de luta entre textos e entre eras que não poderia ser

solucionada facilmente.

Cada uma destas tipologias envolveria uma resposta distinta ao anacronismo e

à perspectiva histórica presente, absorvendo e mudando os textos mais antigos. Em

outras palavras, criaria um tipo de luta entre textos e entre eras cuja solução não

possuiria uma real facilidade.

A intertextualidade, na visão de Hollander, teria como pressuposto a atividade

do leitor. A ele caberia a função de, ao ler os textos, escutar os ecos em sua caverna

de significados ressonantes. Para tanto, o leitor deveria possuir acesso aos textos mais

antigos, às vozes mais antigas, o que supõe um conhecimento análogo ao do autor do

texto posterior. Uma fragmentação no eco intertextual poderia obstruir ou mesmo

deturpar a intenção do autor.

b) A intertextualidade nos estudos bíblicos

O termo intertextualidade foi introduzido na pesquisa bíblica em 1989 através

de dois trabalhos pioneiros: Intertextuality in Biblical Writings180 e Echoes of

Scripture in the Letters of Paul181. O primeiro deles pode ser sintetizado em três

pontos: a idéia de intertexto, segundo o qual o fenômeno do texto é considerado uma

rede de referências para outros textos; o texto sofre um processo de produção e não a

influência de uma fonte exclusiva; e o relevo concedido à figura do leitor. No

segundo trabalho, a ênfase é colocada sobre a correspondência entre um texto mais

180 Cf. DRAISMA, S. (ed.), Intertextuality in Biblical Writings. Essays in honours of Bas van Iersel. Uitgeversmaatschappij J. H. Kok - Kampen Omslag Henk Blekkenhorst, 1989. Quanto ao trabalho de Richard Hays vale ressaltar que ele não segue Julia Kristeva, antes apóia-se em Hollander (1981) e Grenne (1982). Para Hays, o elemento mais expressivo da intertextualidade é a correspondência entre um texto mais antigo e outro mais novo onde se poderia detectar a presença de muitas vozes implícitas perceptível dentro de uma moldura textual construída a partir da junção de dois textos. 181 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul. Yale, Yale University Press, 1989.

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antigo e outro mais novo, no qual poder-se-ia detectar muitas vozes implícitas

perceptíveis dentro de uma moldura textual construída a partir da junção de dois

textos. Este elemento é entendido como o mais expressivo da intertextualidade.

Com o ingresso da intertextualidade na pesquisa exegética, uma nova

perspectiva foi inaugurada e com ela a necessidade de uma revisão da metodologia

que inclua a base da Redaktionsgeschichte 182. A Redaktionsgeschichte concentra-

se na composição dos textos, na atividade do redator e na teologia que o move, pois a

intenção teológica incidiria na redação do material. Em outras palavras, podemos

dizer que, com relação ao autor, a Redaktionsgeschichte interessa-se pelo modo como

o redator pensa teologicamente, o modo pelo qual compilou o material, o modo

através do qual manipulou tradições para processar suas intenções. Por isso, o

empenho dos autores neotestamentários estaria na composição de um novo material,

na organização da redação, na criação de uma nova unidade, como também na

redação do material já existente183.

De maneira geral poderíamos dizer que a Redaktionsgeschichte atém-se sobre

o estado final dos escritos, que seria o produto de um rascunho dos escritos e das

fontes orais ou tradições anteriores, mas trabalhadas, editorialmente, muitas vezes.

Este vínculo permitiria falar sobre a existência de uma relação de continuidade entre

o texto final e seu precursor através de acréscimos redacionais. Esta alteração estaria

vinculada ao desejo do editor. Desta forma poder-se-ia dizer que a

Redaktionsgeschichte parte do redator e do modo como editou as tradições

disponíveis.

Logo, um texto deve ser tomado como um processo de produção e não

produto de fontes e suas influências. Sendo assim, a Redaktionsgeschichte deparar-

se-ia com os limites de sua própria investigação metodológica quando não responde

totalmente à questão sobre as conexões entre os textos e com isto abre espaço para a

182 Vorster entende como indispensável um confronto entre a Redaktionsgeschichte e as novas teorias e métodos vigentes. A fim de comparar as aproximações e diferenças entre a Redaktionsgeschichte e a intertextualidade e, na seqüência, os pontos ou possibilidades que uma abordagem intertextual oferecem para a pesquisa hoje. Cf. VORSTER, W. S., “Intertextuality and Redaktionsgeschichte” in DRAISMA, S. (ed.), Intertextuality in Biblical Writings, 15-26. 183 Cf. PERRIN, N., What is Redaction Cristicism? Philadelphia, 1970, 1.

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pesquisa intertextual. Desta forma, a Redaktionsgeschichte poderia ser classificada

como precursora da intertextualidade184, como o é o Método Histórico-Crítico185.

O procedimento intertextual encontrar-se-ia focado sobre o redator e o leitor,

pois, se o primeiro elaborou um trabalho de redação pautado em tradições, o segundo

recebe uma participação ativa no processo, uma vez que possuiria a função de

decodificar o significado do texto composto pelo redator.

Além disto, a intertextualidade dilata as fontes de trabalho para a literatura do

cristianismo primitivo e seus documentos mais antigos, a fim de perceber como

foram usadas suas fontes e a influência destas no novo documento. Esta dinâmica

pode lançar uma nova luz sobre as relações entre as histórias dos corpora

literários186.

A dinâmica do recurso às fontes e a influência destas no novo documento

pode ser encontrada, na visão de Hays, em Rm 8,20 e o tema da vaidade do livro do

Eclesiastes187. São Paulo teria conduzido deliberadamente o leitor para o universo

temático de Eclesiastes e faz com que “ecoe” na memória deste os conceitos e

implicações da vaidade ao reportar-se à existência terrena inapta na busca auto-

suficiente de perfeição. O eco intertextual, por menor que seja, produziria um enorme

efeito no leitor do texto. De fato, a função alusiva de um eco sugeriria ao leitor que o

texto B deveria ser compreendido à luz do texto A.

O mesmo ocorreria em 2Cor 3, quando São Paulo exalta a figura de Moisés e

de seu ministério, mas, logo em seguida, no v.16, introduz o tema de um culto

superior àquele do pacto da Aliança. Eles foram incapazes de retirar o véu, indicando

184 Cf. VORSTER, W. S., “Intertextuality and Redaktionsgeschichte”, 22. 185 A intertextualidade, segundo, Scalabrini, supõe o Método Histórico-Crítico, mas o supera no modo como desenvolve sua pesquisa e avalia as influências entre os textos. Seu demérito estaria em ignorar a iluminação recíproca entre os textos e a possibilidade de através desta surgir um novo dado de compreensão. Desconhece ainda que um texto mais novo possa dar plenitude a um texto mais antigo. Cf. SCALABRINI, P. R., “Biblia e intertestualità”, Teologia 28 (2003) 3-17. 12-13. 186 Um exemplo destas relações intertextuais poderia ser encontrado em Mc 13,5-37. O texto portaria traços, citações e alusões ao Antigo Testamento. O procedimento intertextual elenca três pontos de observação: a narrativa profética com relação ao futuro; o leitor é preparado para a leitura de Mc 13,5-37 sob a perspectiva de uma “conversa com relação ao futuro”; o trabalho de Mc possuiria traços de referência tanto com o Novo Testamento quanto com o Antigo Testamento. Cf. VORSTER, W. S., “Intertextuality and Redaktionsgeschichte”, 25. 187 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul, 20.

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com isto a inferioridade do ministério de Moisés com a abundante glória do novo

ministério.

O eco intertextual seria o elemento mais expressivo da correspondência entre

um texto mais antigo e outro mais novo. Nele situam-se muitas vozes implícitas, mas

perceptíveis apenas em uma moldura de silêncio construído a partir da união de dois

textos188.

Os ecos intertextuais estariam presentes também no Antigo Testamento. Estes

poderiam ser encontrados, por exemplo, no livro de Ester e suas relações com o livro

do Êxodo. Em ambos, os protagonistas são estrangeiros e se transformam em

redentores, há decretos reais, o povo está entregue à opressão em decorrência do

cumprimento das obrigações religiosas (Páscoa-Purim)189. O livro de Ester possuiria

ainda ecos intertextuais com Dn 1-6, indicando o estilo de vida na diáspora e as

delicadas questões políticas. Os protagonistas estariam a serviço do opressor e

gozariam de sua predileção, enquanto o povo padece com a perseguição produzida

por meio de conspirações.

Um outro exemplo poderia ser encontrado em Is 65,17; 66,22 e Gn 1,1- 4.

Estes textos porém, integrariam a análise intertextual sob a perspectiva de uma

metalepse, segundo propõe Peter D. Miscall190. Nesta, uma figura fala e conduz a

uma outra ou a muitas outras e assim, uma série de figuras são formadas. O autor

tomou duas linhas em seu trabalho: exame das palavras, frases de Gn 1 que estão

dispersas no texto de Isaías, e os contatos de Isaías com o restante do livro de

Gênesis, Êxodo e os textos do Antigo Oriente Próximo. Por fim, Peter D. Miscall

188 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul, 155. 189 As semelhanças desdobram-se ainda em outros elementos: • Êxodo Ester • Preponderância da figura de Deus Deus não é mencionado • Ambiente da corte ambiente da corte • Moisés possui Aarão como auxiliar Ester tem Mardoqueu • Moisés defende o povo diante do faraó Ester defende o povo diante do rei persa • Moisés salva o povo Ester salva o povo Cf. FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible. Louisville, Kentucky, Westminster/ John Knox Press, 1992, 11-20. 190 Peter D. Miscall segue a definição de alusão interpretativa de John Hollander, quando propõe o estudo intertextual metaléptico. Cf. MISCALL, P. D., Isaiah: New Heavens, New Earth, New Book. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible, 46.

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conclui que esta análise favoreceria a uma nova compreensão do profeta Isaías, suas

relações com o patrimônio extrabíblico e no interior da Sagrada Escritura.

Sendo assim, a intertextualidade poderia ser detectada em nível maior e

menor. A intertextualidade, em nível maior, seriam textos que se relacionam entre si;

já intertextualidade, em nível menor, estaria relacionada a níveis lingüísticos, palavras

ou frases cujas semelhanças seriam facilmente reconhecidas, podendo ocorrer dentro

do mesmo livro.

Um outro exemplo seria a análise de Gn 12 e 20. Aqui a intertextualidade de

transferência tornaria mais evidente o discurso nos dois episódios. No processo

textual, o vocábulo esposa-irmã seria o motivo principal. A análise intertextual de

transferência permitiria ao leitor dentro de um texto conferir o significado do

segundo, isto é, uma explanação retroativa em detalhes, da primeira parte. Apesar da

falta cometida contra Sara, Abimelec e o Faraó colaboraram para a ascensão social de

Abraão. A intertextualidade de transferência afeta, de certo modo, mais

fundamentalmente que a característica delineada pela experiência sozinha191.

Em outras palavras, poderíamos dizer que a intertextualidade de transferência

seriam as palavras cujas funções consistiriam em efetivamente marcar um texto,

criando em ambos a necessidade de responder a uma questão proposta. O significado

estaria simultaneamente dentro e fora do texto. O leitor recria os textos combinando

os episódios intertextuais com as características que possui o seu processo de

significado, de transferência.

Em síntese

A inserção da intertextualidade nos estudos bíblicos provocou uma revisão da

Redaktionsgeschichte dada sua carência de respostas para a questão das conexões

entre os textos.

Centrado no leitor e no redator, o procedimento intertextual intenciona

decifrar o significado do texto e o impacto deste sobre o autor do novo trabalho. Para

além deste universo intrabíblico, a intertextualidade observa a literatura

191 Cf. RASHKOW, I. N., “Intertextuality, Transference, and the Reader in/of Genesis 12 and 20”. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible, 57-73.

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contemporânea do período histórico da formação do Novo Testamento e a

possibilidade desta acarretar uma melhor compreensão da presença de fontes e seu

impacto sobre o novo texto.

A presença de uma intertextualidade provocaria no leitor um reverberar de

textos antecedentes que o colocaria frente a um caminho interpretativo pré-concebido

pelo autor sagrado. Assim, o texto A deveria ser lido à luz do texto B.

c) A intertextualidade aplicada ao estudo do Apocalipse

Os primeiros estudos modernos sobre o uso do Antigo Testamento pelo Novo

Testamento pertencem a Dodd192 e Lindars193, cujas pesquisas abriram novas

possibilidades para uma compreensão da maneira como textos do Novo Testamento

estariam modelados sobre passagens do Antigo Testamento. O procedimento

intertextual poderia inserir-se nestas novas compreensões.

A intertextualidade foi introduzida na pesquisa do Apocalipse por Bauckham.

Na visão deste autor, o Apocalipse seria uma obra composta tanto na linguagem

como na estrutura de modo meticuloso. Portanto, cada palavra empregada possuiria

deliberada cautela por parte do autor sagrado e as alusões ao Antigo Testamento

assumiriam suma importância para a compreensão do significado do livro. Bauckham

dedicou-se particularmente aos escritos proféticos e apocalípticos194. A característica

192 Cf. DODD, C. H., According to the Scriptures. London, Fontana, 1967. 193 Cf. LINDARS, B., New Testament Apologetic. London, SPCK, 1961. 194 O Apocalipse como o clímax da profecia foi analisado a partir de Ap 4,5; 8,5 e 11,19 e 16,18-21 com a menção de um grande terremoto e grande granizo. Embora a alusão ao terremoto não seja proeminente na teofania do Sinai, está completamente ausente em Dt 6, ocorre em vários outros textos: Jz 5,4-5; Ez 38,19-20; Joel 2,10; Mic 1,3-4. Lugar de destaque é dado a Ez 38 devido a seu uso em Ap 20 com os personagens Gog e Magog. Dos c. 4-5 derivaria todo evento de violência apocalíptica presente nos c. 6-19. No entanto não só imagens de violência procedem desta visão, dela também procederiam as esperanças contidas nos títulos messiânicos de Ap 5,5 que não se perdem após a visão do Cordeiro, antes perpassarão o livro. A presença de um idioma militar nos c. 5; 7; 14, faz do Messias um combatente detentor de um exército, principalmente Ap 7,9, indicaria que o autor sagrado não pretende pôr de lado as esperanças de Israel de um triunfo escatológico. Cf. BAUCKHAM, R., The Climax of Prophecy, 199-210. Farmer, por sua vez desenvolve um processo hermenêutico que supera o que ele classifica de impasse na interpretação bíblica da linguagem dominante de violência, esta possuiria uma função e não poderia ser concebida como um fator que gera a abnegação. Cf. FARMER, R., Beyond the Impasse. The Promise of a Process Hermeneutic. Macon, Mercer University Press, 1997. A noção de uma linguagem militar presente no Apocalipse pode ser encontrada já em Schüssler Fiorenza. Segundo a autora, esta estaria a serviço da teologia do livro. Cf. SCHÜSSLER FIORENZA, E., The Book of Revelation: Justice and Judgment, 137.

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constitutiva do Apocalipse seria o uso pródigo da linguagem militarista apocalíptica

em um sentido não militarista. Semelhante dinâmica seria encontrada na perspectiva

escatológica de destruição do mal. Bauckham crê ainda que o relacionamento

intertextual afetaria de igual modo às tradições judaicas e os apocalipses cristãos.

Posteriormente Steve Moyise aprofundou a aplicação do procedimento

intertextual ao Apocalipse195. A base de seu pensamento está construída sobre

Kristeva, quando esta sugere que a intertextualidade pode ser entendida como um

diálogo entre textos, como um sistema de códigos ou signos. Desvinculando-se da

tradicional noção de influência, prefere falar de intercessão de superfícies textuais.

Por isso, quando o autor usa o termo intertextualidade, indica com ele que o

significado de um texto não é fixo, mas abre-se, quando aproximado de outros textos.

Além dos pressupostos de Kristeva, Moyise herda os de Richard B. Hays196, no que

concerne à tipologia197, os de Greene198, com sua imitação dialética e os de

Hollander199, com a função do leitor.

A motivação de Moyise para empregar este novo procedimento decorre de

dois elementos: tentativa de justificar a noção de continuidade e descontinuidade

195 Moyise inicia sua pesquisa sobre a aplicabilidade da intertextualidade no texto do Apocalipse através de dois trabalhos: MOYISE, S., “Intertextuality and the Book of Revelation”, ExpT 104 (1993) 295-298; The Old Testament in the Book of Revelation, 1995. 196 Hays assume os pressupostos de Greene e Hollander como uma possibilidade para descrever o uso que São Paulo faz de alguns textos do Antigo Testamento. De fato, Hays ao tratar do efeito retórico como apresentação ambígua, procura mostrar por um lado a beleza do antigo ministério de Moisés e por outro a superabundante glória do novo ministério. É uma descrição atemporal que deseja pôr em diálogo uma cena distante para enaltecer o seu ministério. Isto, contudo não significa que o autor de um texto do Novo Testamento ao utilizar determinado texto do Antigo Testamento o faça no mesmo sentido daqueles que compuseram o Antigo Testamento, antes põe em correspondência dois textos onde o texto B deve ser compreendido à luz do jogo de palavras proposto pelo texto A, o leitor percebe a presença de ecos dentro do texto. O eco para Hays pode produzir a ressonância entre dois textos. O subtexto possuiria papel determinante e pode moldar a produção literária de Paulo. O texto do Antigo Testamento não perderia, contudo, sua identidade. Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scriptures in the Letters of Paul, 16. 197 A intertextualidade reaviva o conceito de tipologia tanto do ponto de vista da diacronia como da sincronia. A tipologia foi tradicionalmente reconhecida na exegese cristã como relação entre Antigo Testamento e Novo Testamento. Uma intertextualidade tipológica supõe uma dinâmica entre textos que situa a promessa e o cumprimento desta. 198 Cf. GREENE, T. M. The light in Troy: Imitation and discovery in Renaissance poetry, 294. 199 Hollander trabalha com a noção de que o leitor dos textos para escutar os ecos que este contém, deve possuir afinidades com vozes mais antigas que possam assim, ressoar e produzir um som análogo àquele do autor posterior. Sendo assim, podemos compreender que o acesso a esta cadeia de significados pode ser perdido se o leitor já não possui contatos com a origem desta estrutura de significados. Cf. HOLLANDER, J., Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After, 65.

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presentes no Apocalipse200 e a análise do uso que o autor sagrado faz do Antigo

Testamento. Em outros termos, a intertextualidade auxiliaria na tarefa de explorar

como a fonte do texto continua a falar no novo texto e como produz novos

significados para o texto fonte, no sentido de oferecer uma melhor compreensão do

texto mais antigo, e como o autor sagrado apropriou-se destes textos.

Por outro lado, Moyise acentua que a complexidade das alusões ao Antigo

Testamento, presentes em quase todos os versículos do texto do Apocalipse,

requereria este procedimento201. Esta necessidade decorreria de uma certa carência

de algumas categorias mais tradicionais ao tratar estes empregos textuais que chegam

até mesmo a compor uma teia de significados próprios neste último livro do Novo

Testamento.

d) Aplicação do procedimento intertextual

O emprego do procedimento intertextual na perspectiva de Moyise poderia

ser, portanto, entendido como parte de um método moderno para analisar as

200 Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and Biblical Studies: A Review”, Verbum et Ecclesia 23 (2002) 418-431. 201 O termo alusão distancia-se do termo citação que predominou no universo da pesquisa neotestamentária no último século e provou sua ineficácia ao ser aplicada ao texto do Apocalipse devido a complexidade de seu texto. Contudo, nos primeiros momentos da pesquisa tornou-se difícil estabelecer um critério que identificaria a presença de uma alusão. Alguns exemplos desta etapa da pesquisa podem ser encontrados em: TRUDINGER, L. P., The Text of the Old Testament in the Book of Revelation; OZANNE, C. G., The Influence of the Text and Language of the Old Testament on the Book of Revelation. Dissertação, University of Manchester, 1964; STENDAHL, K., The School of St Matthew and Its Use of the Old Testament. Philadelphia, Fortress Press, 1968; ELLIS, E. E., Paul”s Use of the Old Testament. Edinburgh, T&T Clark, 1957; FREED, E. D., Old Testament Quotations in the Gospel of John. Leiden, Brill, 1965; SWETE, H. B., The Apocalypse of St John, cxl-clviii; CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St John, lxviii-lxxxiii. Em um segundo momento da pesquisa foi inaugurado por Beale. Este classifica a alusão em três categorias: clara alusão, provável alusão com variações redacionais e possível alusão ou eco. Cf. BEALE, The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 43. O estudo de Beale foi sucedido por uma série de outros que intencionaram estabelecer os critérios para definir a que seria uma alusão. Contudo, o trabalho não conquistou unicidade na delimitação e extensão da nomenclatura: eco, alusão. Cf. PAULIEN, J., Decoding Revelation”s Trumpets: Allusions and the Interpretation of Rev 8:7-12. Berrien Springs, Andrews University Press, 1988; VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation; RUIZ, J-P., Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic Language in Revelation 16:17-19:10; FEKKES, Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation; BAUCKHAM, R., The Climax of Prophecy.

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justaposições202 e combinações de textos do Antigo Testamento com imagens da

tradição cristã, um artifício para entrar em tão complexo universo203. Por fim, um

procedimento que implicaria em uma intricada interação entre os textos e uma

evocação de termos não convencionais204. Em síntese, a intertextualidade tornar-se-

ia um meio para compreender a intenção do autor205, o papel do leitor e a noção de

texto206.

O papel do leitor do texto possui proeminência na pesquisa intertextual. Este

exerceria papel de decodificador dos textos a que recorre o autor sagrado. Em sua

memória, os textos vétero-testamentários estariam bem armazenados e, ao serem

empregados em um novo contexto, teriam o seu significado redirecionado para a

temática proposta no novo texto. O leitor não só estaria capacitado para a leitura

como também seria fator determinante na compreensão do texto, porque, sem a

leitura deste, o texto permaneceria inerte.

202Beale não considera o trabalho do autor sagrado como justaposição, antes ele seria um exemplar do estilo semita de parataxe. Esta seria mais evidente do que a busca por uma nova teoria hermenêutica. Cf. BEALE, G. K., John”s Use of the Old Testament in Revelation. 47. 203 Cf. MOYISE, S., “Authorial Intention and the Book of Revelation”, AUSS 39 (2001) 37-38. 204 Beale diverge de Moyise no tocante à interação de textos e a possibilidade do texto antigo ser afetado pelo novo texto. Mantém a tese de uma fidelidade ao contexto anterior para fundamentar a impossibilidade do texto mais jovem oferecer um novo significado a textos mais antigos. Pautando-se em Vanhoozer, considera um desrespeito imputar ao texto antigo um significado não pretendido por seu autor. Cf. BEALE, G. K., “Questions of Authorial Intent, Epistemology, and Presuppositions and Their Bearing on the Study of the Old Testament in the New: A Rejoinder to Steve Moyise”, Irish Biblical Studies 21 (1999) 152-180. Moyise concorda com Vanhoozer quando este alega que a intenção do autor sagrado seria o único caminho válido para a interpretação e mostra que este seria o objetivo do autor do Apocalipse. Distancia-se um pouco na questão sobre o modo como o autor neotestamentário usou os textos antigos, neste ponto Moyise defende a apropriação dos textos mais antigos atingidos pelos eventos do Novo Testamento. Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?”, AUSS 40 (2002) 3-21. 205 A intenção do autor sagrado é central no pensamento de Moyise e pode ser sintetizada em três pontos: a intenção do autor vétero-testamentário foi reinterpretada pelo autor do Apocalipse; os textos mais antigos são lidos à luz das convicções do autor neotestamentário e as usa para reconstruir uma finalidade retórica; a apropriação dos textos antigos estaria impregnada do contexto do primeiro século do cristianismo: o mistério Pascal. Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?” 3-7. Em um trabalho posterior, Moyise considera a intenção autoral básica para interpretar o Apocalipse porque o autor neotestamentário teria criado significados novos para textos antigos. Cf. MOYISE, S., “Authorial Intention and the Book of Revelation”, AUSS 39 (2001) 35-40. 206 Texto é um sistema de signos ou códigos em diálogo, portanto, é uma trama interligada e jamais isolada. Por esta razão, seu significado não é fixo mas abre-se para a releitura quando aproximado de outros textos. O texto seria um processo de produção e não um resultado de influências de fontes. Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and Biblical Studies. A Review”, Verbum et Ecclesia 23 (2002) 418-431; “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New Testament”, 15-16.

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A base deste pensamento estaria na tese do diálogo do texto com outros textos

e dentro do próprio texto207. A absorção de palavras usadas em um contexto e

introduzidas em uma nova circunstância instala uma relação metafórica. Nela o leitor

ouve o Antigo Testamento, mas seu significado é afetado pelo novo contexto

conforme a intenção do autor sagrado. Quando o leitor se dá conta da insinuação,

uma caverna de significado ressonante é aberta e isso afeta a leitura daquela parte do

livro208.

Intertextualidade, portanto, seria um processo que dilataria a compreensão em

função do impacto do leitor no procedimento de interpretação intertextual209. Sua

tarefa consistiria em explorar como o texto anterior continua falando através de um

novo trabalho e como novos significados podem ser dados ao texto fonte. A

intertextualidade criou um espaço para a análise do contexto do Antigo Testamento

no Novo Testamento210.

Desta forma, o Antigo Testamento passa a ser decisivo para a compreensão do

significado dos textos do Novo Testamento da mesma forma que o Novo Testamento

é determinante para a captação do sentido do Antigo Testamento. Haveria, portanto,

um sistema de diálogo presente nesta concepção onde o texto A dialoga com o texto B 207 Caberia ao leitor a função de detectar a presença de outros textos no novo texto e reinterpretar o significado que estes passaram a possuir no novo material. Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New Testament”, 26. O leitor, segundo Hollander, deveria escutar, nos textos, os ecos que este contém e necessita possuir afinidades com as vozes mais antigas a fim de que estas possam ressoar e produzir um som análogo àquele desejado pelo autor posterior. O acesso a esta cadeia de significados poderia, contudo, ser perdido se o leitor já não possuísse contatos com a origem desta estrutura de significados. Cf. HOLLANDER, J., Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After, 65. 208 A intertextualidade proporcionaria uma melhor compreensão dos seguintes textos: Ez 9-10 e Ap 7-8 trata das Bestas e dos 144 mil marcados. Possuiria uma reminiscência de Ex 12,22, mas a seqüência indica Ez como base do texto. Ez 16.23 e Ap 17 descrição de Jerusalém como meretriz, apóstata. Ambas se enfeitam com suas jóias e linho puro; ambas derramam sangue, ambas bebem uma taça de abominações, ambas serão derrotadas. Ez 26-27 e Ap 18 lamento sobre a cidade inclui paralelos vocabular e personagens musicais. Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?”, 3-21. 209 Robert Royalty utiliza a hermenêutica intertextual incluindo elementos sociais e ideológicos. Para o autor o texto está entranhado de estruturas sociais e quando evoca o Antigo Testamento, traz consigo uma gama de fenômenos culturais. Considera que o autor sagrado estabelece uma ruptura com o texto antigo no sentido de não possuírem vínculos com as passagens originais e sim com os propósitos pessoais deste. Cf. ROYALTY, R. M., The Streets of Heaven. The Ideology of Wealth in the Apocalypse of John. Macon, Mercer University Press, 1998, 98. 210 As pesquisas de método exegético tradicional foram consideradas por Paul Decock carentes de uma continuidade da influência de um texto fonte sobre o outro texto após o seu emprego; excluindo a cooperação contínua entre eles na produção de novos significados. Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”, 400.

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e conduz o leitor a uma nova apreensão dos termos e imagens envolvidas no texto.

Nesta dinâmica Moyise insere o critério da continuidade e da descontinuidade211.

A intertextualidade sugere, portanto, a existência de um vácuo no texto onde

existiriam relações com outros textos, o que torna inevitável a leitura intertextual.

Seria uma tentativa mais justa da descrição do uso que o Apocalipse faz da Escritura.

O que significa dizer que há um intercâmbio entre o Antigo Testamento e o Novo

Testamento e, de igual modo, entre o Novo Testamento e o Antigo Testamento212.

Em sua análise, Moyise propõe cinco tipos de intertextualidade: eco

intertextual, narrativa intertextual, intertextualidade exegética, intertextualidade

dialógica e intertextualidade pós-moderna.

O eco intertextual seria como um eco que reverbera dentro de um quarto. Os

ecos atraem os leitores para o mundo simbólico da Escritura. Além disso, as alusões

manifestam expressões que são anteriores ao novo texto e produzem neles valores e

implicações213. O eco mantém similaridades e diferenças e pode ser detectado,

segundo Moyise, naquelas citações onde se perceberia nitidamente a presença de um

outro texto. Sendo assim, a menor menção é suficiente para evocar no leitor a

presença do subtexto214.

211 A união de textos ou conexões intertextuais poderia ser apresentada da seguinte forma: quando lemos um texto que recorre aos textos do Antigo Testamento ouvimos várias vozes competindo uma voz tem origem no texto novo, outras se originam em textos antigos por nós conhecidos. O mesmo conclui Fewell, pois entende que um texto fala e um outro ecoa, conduz a um outro, são vozes em coro, em conflito, em competição. Textos falam a um outro, dirigem-se a um outro, promovem diálogo com outros textos e, de igual maneira, os hospedam. Provocando novos significados reinterpretados à luz de outros e produzindo uma leitura intertextual. Cf. FEWELL, D. N., “Introduction: writing, reading, and relating”. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. 12. Moyise destaca, porém, que esta modalidade é pouco utilizado no Ap por estar ancorada em citações explícitas que não é o caso deste livro. Cf. MOYISE, The Old Testament in the Book of Revelation, 113. 212 Com a intertextualidade, diz Timothy K. Beal, as fronteiras do texto se perderam, bem como o limite de influência entre eles. A leitura de um texto seria muito mais a “leitura” do espaço dialógico produzido pelo texto A e pelo texto B, isto é, o que estes dois textos poderiam me levar a pensar. A aparente liberalidade da tese, o autor logo a delimita recorrendo à ideologia do autor que nortearia o leitor e os limite da interpretação de um texto. Cf. BEAL, T. K., “Ideology and Intertextuality: Surplus of Meaning and Controlling the Means of Production”. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible, 27-40. 213 Na opinião de Hays, o eco intertextual não pode ser compreendido como tipologia ou midrash. Ele é um convite para o leitor estabelecer o contato entre dois textos por exemplo Fl 1,19 e Jó 13,16. Cf. HAYS, R., Echos of Scripture in the Letters of Paul. 155. 214 Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New” in The Old Testament in the New Testament. Essays in Honour of J. L. North. MOIYSE, S. (ed.), JSNTSup 189. Sheffield, Sheffield Academic Press, 2000 14-41. 18-25.

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Na narrativa intertextual, a história ou a estrutura das tradições do Êxodo teria

influenciado a exegese de São Paulo em Rm 8 e Gálatas. Nessas tradições, São Paulo

parece convidar o seu leitor a relembrar uma história, um evento, e não apenas um

texto215. Neste tipo de intertextualidade, estão presentes a continuidade e a

descontinuidade onde antigas histórias são recuperadas e usadas de novo em situações

diversas. O êxodo tornava-se assim uma metanarrativa para São Paulo, como já o fora

para alguns profetas, dentre eles Jeremias e Isaías, além de Sabedoria, Sirac, Baruc e

Enoch. A ação de Deus na vida de Jesus dá a esta história um novo sentido. A

narrativa intertextual exorta os cristãos em Roma a não abandonarem suas tradições.

A intertextualidade exegética tem como característica o não estar evidente no

texto, porém foi assumida e dá sentido à argumentação. Esta modalidade poderia ser

encontrada em Rm 2,17-29. Nesta perícope, São Paulo assumiria os textos de Ez 36,

26; Dt 28-30; Gn 17 para afirmar por via positiva a circuncisão e Jr 7,4-9; 9, 22-25,

em via negativa, indicando sua nulidade, pois, apesar de serem circuncidados, seus

corações estariam impuros216.

Na intertextualidade dialógica, a influência ocorreria de duas maneiras: o

novo afetaria o antigo e o antigo afetaria o novo. Desta forma, o antigo texto

iluminaria a compreensão do novo e o novo favoreceria uma maior compreensão do

antigo217.

Por fim, na intertextualidade pós-moderna, o escritor, ao redigir o seu texto,

teria atribuído significados novos para este contexto e uma inter-relação com outros

textos; o leitor, por sua vez, atribuiria significado, interagindo com outros textos

conhecidos; o escritor deixa o limite do texto para o leitor estabelecer suas

215 Cf. KEESMAAT, S. C., Paul and his Story: (Re) Interpreting the Exodus Tradition. (JSNTSup 181). Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999. 216 Cf. BERKLEY, T. W., From a broken covenant to circumcision of the heart: Pauline Intertextual exegesis in Romans 2: 17-29. SBL dissertatations Series 175. Atlanta, SBL, 2000. 217 Moyise ilustra esta terminologia com o exemplo do Leão e o Cordeiro de Ap 5. O Leão de Judá é a imagem tradicional da expectativa messiânica de Gn 49,9, da Literatura Targumica, apócrifa, bem como dos Escritores do Mar Morto, e foi interpretada pelo Cordeiro morto. Existiria, portanto uma interação entre texto e subtexto ou texto antecedente em ambas as direções. Isto é o texto A seria melhor compreendido a partir do texto B. O que remete a um necessário conhecimento dos textos postos em relação e que o leitor estabeleça o significado cunhado pela junção dos textos. Para Moyise, o novo texto não aniquila a identidade original do texto usado, mas agora deverá ser compreendido através desta relação, desta moldura. Cf. MOYISE, S. “Intertextuality and Biblical Studies. A Review”, 428.

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conexões218. Estabeleceria, assim, uma atualização do texto bíblico para o seu

contexto vital.

As cinco formas de intertextualidade, segundo Moyise, estariam presentes no

Apocalipse, interagindo simultaneamente.

Assim, Moyise propõe que o texto de Ezequiel, dentre outros, usado no texto

do Apocalipse, deve ser observado sob a dinâmica intertextual de continuidade e

descontinuidade. O leitor escuta dentro do texto as vozes do Antigo Testamento, mas

seu significado estaria afetado pelo novo contexto em que é apresentado.

As relações intertextuais identificadas no Apocalipse padecem, contudo, de

critérios mais facilmente controláveis. Mostram-se úteis os critérios identificados por

dois autores para avaliar as relações intertextuais.

Em seu estudo sobre as relações intertextuais entre Is 65,17-20 e Ap 21,1-5b,

Jacques van Ruiten219 apresenta três critérios de análise: nível lexical, influência

lexicalmente ligada e relações temáticas. O nível lexical seria o modo como um texto

assume o vocabulário presente em outro texto anterior e as mudanças que

eventualmente ele pode sofrer. A influência lexicalmente ligada abrangeria o vínculo

estabelecido por um determinado texto com outros textos que também exercem

impacto sobre o texto lido. As relações temáticas estariam presentes através de temas

abordados mais do que através da presença lexical.

Posteriormente, Markl220 propõe cinco critérios: referência, comunicação,

estrutura, seletividade e diálogo. Por referência poderíamos entender a medida em

que um texto reflete outro texto tendo como elemento vinculante a temática. A

comunicação seria identificada através das indicações deixadas pelo autor quando

recorre a termos, expressões, construções que fazem memória a um outro texto com o

qual ele se comunica. Quanto à estrutura, os dois textos possuiriam semelhanças. A

seletividade indicaria a proporção do uso das palavras entre os textos e em relação

aos demais textos. Por fim, no diálogo ocorreria a articulação semântica e de

pensamento entre dois textos e o grau de relacionamento existente entre os contextos

218 Cf. WOLDE, E. van, “Trendy Intertextuality” in Intertextuality in Biblical Writings. DRAISMA, S., 45-51. 219 Cf. RUITEN, J. van, “The intertextual relationship between Isaiah 65,17-20 and Revelation 21,1-5b”, Estudios Biblicos 51 (1993) 473-510. 220 Cf. MARKL, D., “Hab 3 in intertextueller und kontextueller Sicht”, Biblica 85 (2004) 99-108.

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dos textos. Quanto menor é a freqüência dos elementos lingüísticos na Bíblia e

quanto maior é seu número entre os dois textos e quando há termos e expressões que

são utilizados somente entre dois textos, maior é a relação intertextual.

Em síntese

Iniciado por Bauckham, o procedimento intertextual foi aprofundado através

dos trabalhos de Steve Moyise em decorrência de uma possível inadequação das

categorias tradicionais de midrash, tipologia e exegese adentrarem na complexidade

do livro do Apocalipse. Seu pressuposto teórico edifica-se a partir de Kristeva, Hays,

Greene e Hollander.

A questão da intenção do autor sagrado gerou divergências entre Beale e

Moyise. De fato, Beale entende que a interpretação de um texto somente seria

legítima se recuperasse a intenção original do autor do primeiro texto. Vanhoozer, por

sua vez, propõe que não se aplica ao texto uma intenção que não fosse a do autor

antigo e crê que o autor do Apocalipse teria se apropriado de forma indevida dos

textos do Antigo Testamento. Beale defende a intenção do autor onde se possa

compreender uma interpretação que reproduza literalmente o escopo do autor

antecedente221.

Moyise diverge destas e pensa ser próprio do autor do Apocalipse oferecer ao

texto antigo um novo e surpreendente sentido quando o aplica a novos contextos. Isto

se dá porque o autor sagrado lê o texto à luz de suas próprias convicções e as usa para

construir sua finalidade retórica222. Isto, contudo, não significa uma apropriação

indevida dos textos do Antigo Testamento, mas sim uma apresentação do verdadeiro

significado dos textos antigos, porque agora o autor sagrado possui a chave de leitura

daqueles textos: Cristo crucificado e ressuscitado.

221 Beale radicaliza sua posição sobre significante e significado entendendo que Moyise teria proposto dar ao leitor total liberdade sobre o sentido do texto. De fato, aqui, estamos diante de um problema epistemológico. Cf. BEALE, G. K., “Questions of Authorial Intent, Epistemology, and Presuppositions and Their Bearing on the Study of The Old Testament in the New: a Rejoinder to Steve Moyise” 152-180. 222 Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?” 6.

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A nós, porém esta técnica não seria estendida, a razão é que falta-nos a

teologia hermenêutica própria deste período da Revelação223. O temor de Beale é

aquele de ver na exegese a presença do subjetivismo, neste ponto há uma

convergência entre os dois pesquisadores.

O debate entre Moyise e Beale indica que a contribuição da intertextualidade

na pesquisa exegética possui muitas nuances. No entanto, o seu cerne no âmbito

bíblico parece estar no modo através do qual o Novo Testamento usa o Antigo

Testamento e como textos do Antigo Testamento fazem releitura de outros textos do

Antigo Testamento. A razão deste uso já sugestiona um vislumbre em vários

trabalhos, que podem ser sintetizados em dois grandes pontos: motivos culturais e

motivos teológicos224. De fato, a própria natureza da fé cristã se implanta sobre um

terreno pré-existente, uma vez que o Cristo é categórico em dizer que as Escrituras

dão testemunho dele (cf. Jo 5,39). Sendo assim, o Antigo Testamento não é visto

como um texto superado, encerrado, mas sim como um processo na História da

Salvação, enquanto sua teologia assume a função de fundamento da teologia do Novo

Testamento.

Este processo histórico Bauckham entende como um olhar para o Antigo

Testamento através do Novo Testamento, dando-se conta de uma cadeia histórica em

movimento225. Distingue-se aqui, contudo, a conaturalidade como origem dos textos

sagrados e nunca uma identificação portadora de uma monótona repetição.

No caso específico do Apocalipse, além dos dados acima, a continuidade e a

descontinuidade alertaram Moyise para a necessidade de um embasamento teórico

literário para explicá-los dentro deste livro. Seu objetivo era compreender o uso que o

223 Cf. MOYISE, S., “Can we use the New Testament the way the New Testament authors used the Old Testament?”, In Die Scriflig (2002) 643-660. 224 A motivação cultural deriva da própria origem hebraica dos primeiros cristãos que pensam, conseqüentemente, a sua fé através das Escrituras de Israel e a usam como instrumento hermenêutico. A motivação teológica por sua vez, poderia ser apresentada como uma ligação intrincada entre Antigo Testamento e Novo Testamento, uma vez que não se poderia entender a novidade Jesus Cristo sem uma fundamentação histórica à qual Jesus pertence e tornou-se sua expressão máxima. No dizer de Lucas, seria o “plano de Deus” (cf. Lc 7,30; At 2,23; 20,27), já em São Paulo “um mistério tecido nos séculos” (cf. Rm 16, 25-26). Cf. PENNA, R., “Appunti sul come e perché il Nuovo Testamento si rapporta all”Antico”, Biblica 81 (2000) 95-104. 225 Cf. BEAUCHAMP, P., L”uno e l”altro Testamento. Saggio di lettura. Brescia, Paideia, 1985, 316-338.

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autor sagrado fez de alguns textos do Antigo Testamento e o significado que eles

assumem neste novo contexto.

Certo é também que o autor não desvirtue o sentido dos textos antigos, a

aplicação é que de fato torna-se nova e por esta conseqüência conduz a um novo

significado. Sendo assim, a leitura intertextual torna-se inevitável, uma vez que o

termo intertextualidade sugere que todos os textos estão envolvidos em uma larga

rede de textos relacionados, limitados somente pela cultura humana e sua

linguagem226. A metodologia intertextual passaria, assim, a ser uma necessidade na

exegese.

Por outro lado, porém, existem os obstáculos à intertextualidade oriundos da

diversidade com que o termo é usado e por vezes de modos incompatíveis227. Outro

obstáculo está na teoria que rege cada pesquisador. Uma má compreensão do termo

intertextualidade por parte dos pesquisadores poderá causar rápida corrupção e sua

redução a apenas um eco. Se apreciado de maneira mais particularizada poderá trazer

benefícios abrindo uma imensa perspectiva de trabalho.

Em decorrência desta lacuna, faz-se mister um recurso a critérios que

determinem a presença da intertextualidade. Aqueles apresentados por Markl levam a

inferir que, através da referência intertextual, pode-se perceber como o objetivo do

autor é a mudança de perspectiva do texto antecedente.

Markl e Ruiten possuem pontos de convergência quando tratam da referência

(Marcl) e da temática (Ruiten). Ambos concordam sobre a presença não acidental

destes textos no novo texto, o que nos conduz à intenção do autor defendida por

Moyise e a uma mudança no texto, elevando-o quando aplicado em um novo

contexto, podendo ter como objeto a cristologia ou a escatologia. A temática de

Ruiten pode ainda ser comparada à seletividade de Markl, pois identifica elementos

únicos de relação entre dois textos. Um outro ponto de convergência está no nível

lexical, proposto por Ruiten e o critério de comunicação sugerido por Markl. No nível

lexical o termo usado pelo autor sagrado está vinculado a um texto que lhe é anterior,

porém a recepção deste não é idêntica, ele sofre alterações impostas pelo novo autor e

226 Cf. FEWELL, D. N., “Introduction: Writing, Reading, and Relating”. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. 17. 227 Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and Biblical Studies: A Review”, 430.

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seus objetivos teológicos. No critério de Markl, o autor lança mão de termos,

expressões ou construções precedentes em seu texto. Esta “marca” faz com que o

leitor do novo texto fique em alerta para estabelecer uma comunicação entre textos e

não se restrinja somente ao texto atual. Uma variação de pensamento entre os dois é a

admissão da presença de textos da tradição judaica por Ruiten, enquanto Markl

restringe-se ao Texto Hebraico, devido à natureza de sua pesquisa.

Os textos qualificados por Ruiten, de influência lexicalmente ligada, abrem-se

para um nível de contatos não apenas com um texto, mas com vários textos, onde o

termo utilizado pelo autor sagrado em um novo texto assumem particularidades e

nuances novas que provocam no leitor uma nova compreensão. Esta linha de

pensamento assemelha-se àquela de Moyise quando este fala, apoiado em Hays, de

uma “caverna” onde vozes ecoam e estabelecem contatos com o novo texto.

Os critérios apresentados pelos dois autores fornecem ferramentas essenciais

para a observação da presença da intertextualidade em um texto, quer do Antigo

Testamento como do Novo Testamento. Markl, entretanto, é mais detalhista e preciso

em suas observações.

Ambos poderiam colaborar para a formação de um juízo de valor sobre a

presença de textos do Antigo Testamento no Novo Testamento e, principalmente,

oferecem critérios mais facilmente aplicáveis e controláveis.

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2. Escopo e hipótese

2.1 Objeto de estudo: a relação de Apocalipse com Ezequiel

A presença do Antigo Testamento foi analisada por diversos pesquisadores

que se apresentam uníssonos com relação a uma seleção primorosa, particularmente

de diversos textos proféticos e do livro de Daniel, atrelados à intenção teológica do

autor do Apocalipse e à sua cristologia, que perpassa a grande seção 4-22.

Contudo, a profecia de Ezequiel destaca-se quanto ao modo de utilização do

autor sagrado: a manutenção da ordem das seções de Ezequiel no novo material: Ez 1

e Ap 4; Ez 9-10 e Ap 7-8; Ez 16;23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap 18; Ez 37-48 e Ap 20-22.

A última seção de Ap 20-22, ligada a Ez 37-48, à semelhança dos demais

textos, possui forte presença cristológica. Não obstante, a esta Cristologia alia-se a

Escatologia, particularmente em Ap 22,1-5, com sua descrição do paraíso restaurado.

Nesta perícope, a presença da profecia de Ezequiel é bem testemunhada nos vv 1-2,

mas não de modo absoluto. De fato, outros textos parecem estar simultaneamente

presentes, especialmente: Gn 2,9; Sl 14,3; 46,5; Jl 4, 18; Zc 13,1; 14,8. Nos

versículos subseqüentes, surgem outros textos vétero-testamentários, estes porém,

vinculando-se como conseqüência direta daquilo que foi mostrado ao vidente de

Patmos nos v. 1-2, qual seja, o rio de água viva, o trono de Deus e do Cordeiro e as

árvores que curam.

A genialidade do autor sagrado pode ser percebida no modo como atua sobre

o texto mais antigo e o combina com outros produzindo um novo significado.

Particularmente, este efeito poderia ser detectado em Ap 22,1-5. A intenção do autor

seria a causa principal destas alterações, que se dariam de forma ordenada, atreladas

ao escopo teológico do texto do Apocalipse.

Por isso, em nosso estudo sobre a presença de Ezequiel no Apocalipse,

seguiremos os traços deixados pelo autor sagrado: perceber a prioridade deste profeta

em uma determinada perícope não de forma excludente, mas norteadora segundo um

determinado escopo teológico. Desta forma, propomos o estudo de Ez 47,1-12 como

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o foco de nossa atenção. Mas, com isto, não desprezaremos os outros textos

proféticos que ecoariam na perícope, quais sejam, Jl 4,18 e Zc 13,1; 14,8, a fim de

melhor compreender o relacionamento intertextual existente concernente ao motivo

da fonte de água e do lugar sagrado.

2.2 Hipótese de trabalho

Nas últimas décadas, o texto do Apocalipse foi estudado sob as perspectivas

de alusões, ecos, citações, midrash. Estas abordagens, em alguns momentos,

indicariam o modo inexperiente do autor ao tratar textos mais antigos ou um sentido

que espelha o texto anterior mantendo um sentido exato. Por outro lado, poderiam

indicar uma conexão intertextual, já que testemunham a existência de um texto mais

antigo presente neste mais novo. A segunda hipótese será acolhida neste trabalho,

uma vez que testemunha a relação do autor sagrado com os textos vétero-

testamentários de modo mais elucidativo.

De fato, a relação intertextual parece ser um caminho necessário para uma

exegese mais profunda neste livro. Desta forma, poderíamos lançar uma nova luz

sobre a teologia que une tantos textos em um único e novo texto.

Partindo da hipótese de estarmos diante de textos que possuem uma relação

intertextual, onde textos falam entre si, dialogam, possuem uma relação literária não

acidental, poderíamos detectar que esta relação parece ser intencional e portadora de

um objetivo teológico bastante preciso. Este objetivo é levar o leitor a um nível de

leitura, onde, para entrar no cerne da mensagem, fosse necessário estar em contato

com textos anteriores e manter atenção sobre o modo como o autor sagrado

manipulou este patrimônio e encadeou, como em uma sinfonia, textos de origens

distintas, mas que, lado a lado, dão vida a um novo texto sob o advento do Cristo

ressuscitado.

Pautado nestas considerações, a finalidade deste trabalho será, sob a

perspectiva especial do procedimento intertextual, melhor compreender a Cristologia

e sua relação com a Escatologia presente em Ap 22,1-5. De fato, nesta perícope, a

Cristologia do livro atinge o seu ápice, mas não parece ter como escopo único a

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revelação de Cristo como Deus, uma vez que, diante do Trono, estão os servos de

Deus que passam a vê-Lo tal como Ele é (cf. Ap 22,4). Portanto, haveria aqui uma

Cristologia acoplada a uma Escatologia. A intenção da Cristologia do Apocalipse

poderia ser compreendida na dimensão de seu impacto sobre o homem destinatário

desta Revelação e a resposta que este homem dará Àquele que livremente se revela.

Portanto, esta Cristologia geraria uma Escatologia capaz de atingir a todos aqueles

que desejarem entrar na Nova Jerusalém, e, não mais restrita a Israel. Trata-se de uma

cristologia-escatológica inclusiva e não restritiva.

3 Metodologia

Tendo em vista a complexidade do texto do Apocalipse, faz-se mister articular

uma metodologia que ofereça ao texto do Apocalipse uma descamação no sentido de

permitir detectar os textos envolvidos na composição deste novo texto e o porquê da

presença dos mesmos.

O método diacrônico, atentando para a pré-história da redação final de um

texto, está fixado nas relações dialéticas do texto com suas fontes, fornecendo, assim,

uma compreensão mais profunda do texto. Deste modo, melhor se investiga a

situação histórica onde nasce o novo texto e, no caso do Novo Testamento, como a

comunidade cristã vivenciou a sua fé e o processo histórico da produção de um texto.

Por sua vez, o método sincrônico trata o texto como um todo estruturado e coerente

onde os elementos formam uma unidade. Entretanto, salvaguarda as relações do texto

com outras unidades, admitindo uma comunicação entre elas.

Os dois métodos possuem convergência mais do que divergência, pois

seguem linhas de diálogo do texto com o seu momento histórico (diacronia) e com

textos que lhe antecedem no livro (sincronia). Sendo assim, cabe àquele que estuda o

texto a sensibilidade para perceber se um método ou outro será mais indicado neste

texto concreto. De certa forma, portanto, o texto determina o método mais adequado

para ser analisado.

Os dois métodos serão utilizados, tendo como norteador o procedimento

intertextual. De fato, o autor do Apocalipse elaborou de tal forma a intercessão entre

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textos antigos e o novo texto que este procedimento parece ser imperativo para a

compreensão mais profunda das conexões estabelecidas pelo autor sagrado.

Por meio da intertextualidade, poder-se-ia superar a lacuna, comum a todos os

procedimentos, da diacronia e da sincronia, pois seria superado o esforço, por vezes

estéril, de reconstrução do texto e estaríamos próximos da intenção do texto final, da

teologia desejada pelo autor sagrado e do leitor do livro.

A intertextualidade faculta ao estudioso detectar a ação do texto antigo no

novo e os novos significados que o precursor receberá no novo contexto, ou seja,

como o texto fonte foi apropriado pelo autor neotestamentário, assim como a função

do leitor do novo texto composto por textos que ele traz em sua memória.

Com a intertextualidade, foi criado um espaço para a análise do contexto do

Antigo Testamento no Novo Testamento. Com ela, detecta-se um diálogo entre textos

afetado pela teologia do autor neotestamentário que seleciona o material antigo para

indicar seu cumprimento, segundo a chave de leitura dos eventos pascais. Trata-se de

uma continuidade na descontinuidade. Este procedimento seria útil para a análise do

uso que o Apocalipse faz dos textos vétero-testamentários e, por conseqüência,

perceber como o Antigo Testamento afeta a compreensão do Novo Testamento e de

igual modo como o Novo Testamento, com a plenitude da Revelação, poderia

colaborar para a compreensão do Antigo Testamento.

Os critérios para a análise dos casos de intertextualidade serão os de Markl em

função de sua aplicabilidade e clareza.

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CAPÍTULO II

2. Ap 22,1-5: o texto, sua delimitação, estrutura e aspectos semânticos

2.1 O texto: tradução e notas

E mostrou-me um rio de água da

viva, brilhante como cristal,

1a Kai. e;deixe,n moi potamo.n u[datoj zwh/j

lampro.n w`j kru,stallon(

que saía do trono de Deus e do

Cordeiro.

1b evkporeuo,menon evk tou/ qro,nou tou/ qeou/

kai. tou/ avrni,ouÅ

No meio da praça, dela mesma, de

um lado e do outro do rio, havia

árvore da vida

2a evn me,sw| th/j platei,aj auvth/j kai. tou

potamou/ evnteu/qen kai. evkei/qen xu,lon

zwh/j

que produz doze frutos a cada mês, 2b poiou/n karpou.j dw,deka( kata. mh/na

e[kaston

que dá o seu fruto 2c avpodidou/n to.n karpo.n auvtou/(

e as folhas da árvore servem como

cura para as nações.

2d kai. ta. fu,lla tou/ xu,lou eivj qerapei,an

tw/n evqnw/nÅ

Não haverá mais nenhuma maldição. 3a kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;tiÅ

O trono de Deus e do Cordeiro estará

nela.

3b kai. o` qro,noj tou/ qeou/. kai tou/ avrni,ou

evn auvth/| e;stai(

Os seus servos o adorarão, 3c kai. oi` dou/loi auvtou/ latreu,sousin

auvtw/|

verão a sua face 4a kai. o;yontai to. pro,swpon auvtou/(

e o seu nome estará sobre as suas

frontes.

4b kai. to. o;noma auvtou/ evpi. tw/n metw,pwn

auvtw/nÅ

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Não haverá mais noite. 5a kai. nu.x ouvk e;stai e;ti

Não têm necessidade da luz da

lâmpada nem da luz do sol,

5b kai. ouvk e;cousin crei,an fwto.j lu,cnou

kai. fwto.j h`li,ou(

porque o Senhor Deus resplandecerá

sobre eles,

5c o[ti ku,rioj o` qeo.j fwti,sei evpV auvtou,j(

e reinarão pelos séculos dos séculos. 5d kai. basileu,sousin eivj tou.j aivw/naj

tw/n aivw,nwnÅ

Optamos por tratar apenas das questões mais relevantes para a crítica textual

e a tradução do texto.

v.1

v. 1a) Kai. e;deixe,n moi potamo.n u[datoj zwh/j lampro.n w`j kru,stallon(

E mostrou-me um rio de água da viva, brilhante como cristal,

O aparato crítico de Nestle-Aland indica a inserção do termo Kaqaro,n

“puro” no MA em alguns poucos minúsculos precedendo termo u[datoj228. Outros

manuscritos, tais como א e A (lacuna em C) omitem o termo Kaqaro,n229.

Provavelmente, temos aqui um recurso de ênfase, cuja manutenção não nos parece

necessária tendo em vista o adjetivo lampro,j e o comparativo w`j kru,stallon, que

desempenham a função de especificar o estado de diafania da água do rio.

O adjetivo lampro,j indica a transparência do rio. Este encontrar-se-ia livre

de qualquer coisa que impeça de vê-lo com total nitidez230. A opção por uma

tradução com sentido de transparência se justifica pelo comparativo w`j kru,stallon,

que atribui limpidez ao rio de água viva. A palavra kru,stalloj só ocorre em Ap 4,6;

228 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,1-5. 229 Esta omissão, segundo Aune, pode ser encontrada também em Oecumenius2053 025 046 Byzantine eth. Cf. AUNE, D. E.; Revelation 17-22, Word Biblical Commentary vol 52c, Nashville, Thomas Nelson Publishers, 1998, 1139. 230 Cf. DANKER, F. W.; A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature. Chicago e London, The University of Chicago Press, 20003, 585.

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21,11 e 22,1. Apesar de apresentar também o significado de “gelo”231, não nos

parece correto aplicar este sentido a kru,stalloj, tendo em vista o substantivo

potamo,j, que remete a água abundante e corrente.

v. 1b) evkporeuo,menon evk tou/ qro,nou tou/ qeou/ kai. tou/ avrni,ouÅ

que saía do trono de Deus e do Cordeiro.

O termo sto,matoj, literalmente “boca”232, substitui a expressão tou/ qro,nou

em alguns minúsculos233. A imagem de um rio, claro como o cristal, que procede da

boca de Deus e do Cordeiro não nos parece coerente com a dinâmica interna do

próprio livro do Apocalipse. A aplicação de uma origem metafórica do rio só

encontra similaridade com a imagem da serpente que expele de sua boca água como

um rio (cf. Ap 12,15) e com a terra que, abrindo sua boca, bebe a água lançada pela

serpente, socorrendo assim a mulher (cf. Ap 12,16). A proximidade entre as duas

imagens portaria um nivelamento desnecessário. Esta substituição nos parece

dispensável.

A presença da preposição evk seguida do genitivo tou/ possui, como

significado fundamental, o local de proveniência. Assim, a água deriva do trono de

Deus e do Cordeiro.

O artigo definido tou/ antes de qro,nou foi omitido por אT 234T.

Consideramos que a sua manutenção torna mais precisa a noção da origem da

água235.

231 Cf. LIDDELL - SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford, Oxford University Press, 18897, 452. Os antigos percebiam o cristal como uma água congelada. Ver: http://bible1.crosswalk.com/onlineStudyBible/Bible. 232 O substantivo sto,matoj em Mt 15,11; 17,27, pode significar tanto a boca do homem como a do animal. Em Ap 2,16; 12,16 o termo sto,matoj assume sentido figurado. É instrumento do falar em Mt 12,34 e seu modo em 2Jo 12. Cf. RUSCONI, C., Vocabulário del Greco del Nuovo Testamento. Bologna, EDB, 19972, 317. 233 Precisamente 1611s 2329 Byz 1661 e pc syhmg. Cf. ALLO, E.-B., L’Apocalypse, 325; NESTLE–ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,1. 234 Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139. 235 Cf. LASOR, W. S., Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 19982, 82. Tradução Handbook of New Testament Greek. Eerdmans Publishing, 1973.

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v. 2

v. 2a) evn me,sw| th/j platei,aj auvth/j kai. tou potamou/ evnteu/qen kai. evkei/qen xu,lon

zwh/j

No meio da praça, dela mesma, de um lado e do outro do rio, havia árvore da

vida

A interpretação de evn me,sw| como “no meio” parece coerente com outros

textos do livro (cf. Ap 1,13; 2,1; 4,6; 5,6; 6,6). Tratando-se de um dativo locativo, sua

função seria aquela de indicar a disposição geográfica de uma cena e não aquela

distributiva (cf. 1Cor 6,5) ou temporal (cf. Mt 25,6; At 20,13)236.

O vocábulo platei,a, cujo significado é uma praça ou caminho largo da

cidade237, com o sentido de esplanada238, é mencionada no livro do Apocalipse em

11,8 e 22,2, sendo que a associação de praça + árvore da vida só se encontra em Ap

22,2. Embora seja viável a tradução de platei,a por rua, optamos, neste trabalho, por

“praça”, por considerar que a descrição da Cidade Santa comporta medições

generosas, superando aquelas que, ordinariamente, seriam atribuídas a uma rua ou a

um caminho.

A leitura da expressão evnteu/qen kai. evkei/qen é bem testemunhada em A, 046

e em outros manuscritos; contudo, alguns minúsculos substituem a leitura de kai.

evkei/qen por kai. evnteu/qen. Esta mudança não altera a leitura, posto que os dois

advérbios de lugar exprimem a mesma coisa: “aqui e ali”. A substituição não causa

um prejuízo para a interpretação porque o ponto de referência é o rio239.

A expressão evnteu/qen kai. evkei/qen formada pelo advérbio locativo dinâmico

evnteu/qen, “dali, de lá, daqui”, e pelo advérbio evkei/qen, dão a idéia de ambivalência das

236 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 634. 237 Cf. THAYER, J. H., Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament. Peabody, Massachusetts, Hendrickson, Publishers, 1999, 515; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 823. 238 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , Paris, Hachette, 193511, 1566. 239 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 301; 339.

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laterais da margem ao longo do rio240. Por esta razão, impõe-se a tradução do

singular xu,lon em sentido coletivo, dada a presença dos advérbios que remetem à

noção da existência de árvores em ambas as margens do rio241. O uso do singular

xu,lon em sentido coletivo é bem atestado na Escritura242.

v. 2b) poiou/n karpou.j dw,deka( kata. mh/na e[kaston

que produz doze frutos a cada mês,

O aparato crítico tem poiw/n (masculino) embora xu,lon seja neutro. O texto

original, ao que tudo indica, é poiou/n, pois segue imediatamente o substantivo neutro

xu,lon243. O próprio texto emprega, em seguida, o particípio neutro avpodidou/n.

Parece-nos que a variante pode ser o resultado de uma fusão de ou com w em alguns

particípios244...

Há uma substituição do substantivo neutro e[kaston para e[kastw no

minúsculo 046, provavelmente um erro de cópia245.

v. 2c) avpodidou/n to.n karpo.n auvtou/(

que dá o seu fruto

A variante oferecida por א, avpodidou,j, particípio presente masculino

singular masculino cria uma incoerência com o substantivo neutro xu,lon, tornando a

leitura de avpodidou/n mais correta em função do gênero246. Como encontramos em A,

240 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 1343; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 685. 241 A compreensão xu,lon como um singular coletivo é defendida por diversos estudiosos: Cf. MOUNCE, R., The Book of Revelation, 377; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139; OSBORNE, G. R. Revelation, 771; CAIRD, G. B., The Revelation of Saint John, 280. 242 Cf. Gn 1,11-12; Lv 26,20; 1Cr 16,32; 2Cr 7,13; Eclo 2,5; Jr 17,2; Sl 46,4. 243 Cf. THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament. Massachusetts, Hendrickson Publishers, 1999, 432. 244 Cf. MUSSIES, G., The Morphology of Koine Greek as Used in the Apocalypse of John: A Study in Bilingualism. NovTSup, 27, Leiden, E. J. Brill, 1971, 282; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 530; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 491; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139. 245 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, 678. 246 Cf. MUSSIES, G., The Morphology of Koine Greek as Used in the Apocalypse of John, 280-284; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 530; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 491.

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onde a forma verbal avpodidou/n, qualifica o substantivo neutro xu,lon247, esta é,

provavelmente, a leitura mais próxima do original.

v. 2d) kai. ta. fu,lla tou/ xu,lou eivj qerapei,an tw/n evqnw/nÅ

e as folhas da árvore servem como cura para as nações.

Grande parte dos testemunhos possui o genitivo singular tou/ xu,lou. Em א,

esta leitura encontra-se no plural tw/ xulw/n. Em um outros lugares encontramos a

variante xu,la. Esta correção explicita gramaticalmente que xu,lon zwh/j era concebido

como um coletivo plural248.

O termo qerapei,a está relacionado a um recurso medicamentoso ou à

cura249.

v.3

v. 3a) kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;tiÅ

Não haverá mais nenhuma maldição.

O substantivo neutro singular kata,qema é um hapáx legomenon tanto na

LXX quanto no Novo Testamento250. O substantivo kata,qema (maldição ou coisa

amaldiçoada) corresponde a avna,qema e ambos traduzem legitimamente o termo

hebraico ~r,xe, que acarretava a total destruição dos despojos de guerra, incluindo as

cidades e seus habitantes, tendo em vista o perigo de idolatria (cf. Ex 23,31; Lv

27,28s; Dt 7,26; Js 7,22-26).

247 A mesma forma verbal pode ser encontrada em outros manuscritos. Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,2. 248 Precisamente Byz385 no arm1 e em Cassiodorus. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 531; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139. 249 Cf LIDDELL-SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon, 362; BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 927; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 453. 250 Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1179-1180; BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 1033; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 517; OSBORNE, G. R. Revelation, 772-773; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 564.

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A leitura de kata,qema por kata,maqe, provavelmente por um erro de metátese,

o que, neste caso, inviabiliza a compreensão do termo. A opção pela leitura do

sinônimo katana,qema não interfere no sentido do texto251.

A construção kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;ti, encontrada em Ap 22,3a,

reitera a leitura de kata,qema como sinônimo de avna,qema e aproxima este texto de Zc

14,11, onde temos a locução kai. ouvk e;stai avna,qema e;ti.

A partícula adverbial e;ti é testemunhada em alguns manuscritos gregos,

enquanto outros testemunham a favor de evkei/252. O advérbio e;ti seria o termo mais

adequado, uma vez que situa temporalmente a ocasião em que esta maldição se

extinguirá: um tempo no futuro, enquanto o advérbio evkei/ estabelece mais a noção

espacial.

v. 3b) kai. o` qro,noj tou/ qeou/. kai tou/ avrni,ou evn auvth/| e;stai(

O trono de Deus e do Cordeiro estará nela.

O Códice Sinaítico omite o artigo em o` qro,noj. A presença deste artigo, no

entanto, dá ao termo uma distinção, é o trono de Deus e do Cordeiro; não há nenhum

que lhe seja similar, adequando-se melhor ao contexto253. Caso semelhante já foi

analisado no v.1b254.

v. 3c) kai. oi` dou/loi auvtou/ latreu,sousin auvtw/|

Os seus servos o adorarão,

251 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,2. 252 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,3; THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 194. 253 A expressão o` qro,noj tou/ qeou/ kai. tou/ avrni,ou é considerada por Aune como não original. Segundo o autor, kai. tou/ avrni,ou seria uma glosa posterior, o mesmo teria ocorrido no v.1b. No entanto, não há nenhum testemunho textual que corrobore sua afirmação. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1140. 254 Cf. LASOR, W. S., Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento, 82.

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O tempo verbal de latreu,w varia em alguns manuscritos que, em algum

lugar do futuro, trazem latreu,ousin255. A alteração do futuro para o presente pode

indicar uma tentativa de adaptar o verbo aos tempos encontrados nos versículos

anteriores. No entanto, a manutenção da fórmula verbal no futuro proporciona uma

harmonia com a conjugação do verbo antecedente, e;stai (cf. Ap 22,3ab) e, por isso,

parece adequar-se melhor ao contexto.

Derivado de latro,n, salário, remuneração, o verbo latreu,w256 designa

basicamente o trabalho por salário ou o estado de servidão. Em um segundo

momento, assimila o sentido ritual de “adoração”. Na LXX encontra-se latreu,w,

freqüentemente, com o segundo sentido do grego: é um serviço prestado no

tabernáculo e no Templo.

No Novo Testamento, as ocorrências de latreu,w apresentam-se sempre em

sentido religioso, que inclui a adoração aos deuses estrangeiros (cf. Rm 1,25; At

7,42). Considerando, portanto, o legado da LXX, parece ser correta a tradução de

latreu,w por “adorar”.

v. 4

v. 4a) kai. o;yontai to. pro,swpon auvtou/(

verão a sua face

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

v. 4b) kai. to. o;noma auvtou/ evpi. tw/n metw,pwn auvtw/na

e o seu nome estará sobre as suas frontes.

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

255 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,3; BRIGHTON, L. A., Revelation, 623. 256 Cf. THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 372.

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v. 5

v. 5a) kai. nu.x ouvk e;stai e;ti

Não haverá mais noite.

Como no v. 3, há uma substituição de e;ti por evkei/ em alguns manuscritos. A

maioria dos testemunhos, todavia, inclina-se para e;ti257. O advérbio e;ti situa a ação

no futuro, proporcionando uma harmonia com os verbos encontrados a partir de Ap

22,3. Em contrapartida, evkei/ direciona-se para o local onde a luz da lâmpada e do sol

não será mais necessária. Sendo assim, a leitura de e;ti parece ser mais coerente com o

contexto de Ap 22,1-5.

v. 5b) kai. ouvk e;cousin crei,an fwto.j lu,cnou kai. fwto.j h`li,ou(

Não têm necessidade da luz da lâmpada nem da luz do sol,

A expressão ouvk e;cousin crei,na possui variantes. Em alguns manuscritos,

encontramos e;xousin, com mudança do presente do indicativo para o futuro. A

Vulgata, A e alguns minúsculos seguem a leitura no futuro258. A manutenção do

verbo no presente parece ser mais correta, embora o futuro não causasse desarmonia

ao texto. De fato, por sua característica de continuidade, Deus brilha sempre sobre os

seus na Cidade eterna.

O Códice do Vaticano omite h`li,ou, talvez por uma corrupção. Sua

manutenção oferece uma melhor compreensão do paralelo proposto.

Vários manuscritos lêem o nominativo fw/j em vez do genitivo fwto.j nas

duas ocorrências, dentre eles o Alexandrino259. A manutenção do genitivo singular

facilita a compreensão do paralelismo sintático aqui presente, além de proporcionar

uma precisão sobre que espécie de luz será desnecessária na Cidade Santa (a luz da

lâmpada e a luz do sol) e aquela que será mantida, a presença de Deus. 257 e;ti é atestado em א entre outros. Encontra-se substituído por evkei// em alguns Unciais, no minúsculo 2329, no MA syph . Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,5; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 531; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1140. 258 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,5. 259 No texto latino alguns manuscritos seguem o genitivo grego enquanto outros o nominativo. Cf. O’CALLAGHAN, J., Introducción Crítica Textual Nuevo Testamento. Instrumentos para el estudio de la Biblia III. Estella, Verbo Divino, 1999, aparato crítico para Ap 22,5.

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v. 5c) o[ti ku,rioj o` qeo.j fwti,sei evpV auvtou,j(

porque o Senhor Deus resplandecerá sobre eles

Alguns manuscritos trazem o artigo o` antes de ku,rioj. Neste caso, sugere-se

que “o Senhor” é o verdadeiro Deus, em distinção dos outros deuses. O uso do artigo

definido após o termo ku,rioj segue a tradução usual da LXX para a construção

hebraica ~yhil{a/ (h') hwhy.

A preposição evpi, é omitida em muitos manuscritos. Todavia, os mais

antigos o incluem, mostrando ser a leitura correta260. A presença da preposição

indica que o verbo fwti,zw tem valor transitivo indireto, o que permite a presença da

preposição e reforça a idéia de ser Deus a fonte da luz.

Uma tradução de fwti,zw como “resplandecer”261 proporciona uma melhor

compreensão da origem da luz. Deus mesmo lançará a luz sobre seus servos,

resplandecerá sobre eles. Preferiu-se “resplandecer” a “brilhar” para não aproximar

esta imagem daquela encontrada em Ap 22,1, onde a água do rio de água da vida

brilha, à semelhança de um cristal. O verbo fwti,zw fornece a noção de que Deus,

fonte da luz, concede a luz aos servos. Ele projeta “sobre”, evpi,, os servos sua luz e

estes a acolhem.

v. 5d kai. basileu,sousin eivj tou.j aivw/naj tw/n aivw,nwnÅ

e reinarão pelos séculos dos séculos.

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

260 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,5. THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 231-236. 261 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 2113; LIDDELL-SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon, 878; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 1074.

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2. 2. Delimitação da unidade

Uma análise mais ampla do contexto imediatamente antecedente ao último

capítulo do Apocalipse poderá detectar que os c. 20-21 encontram-se marcados por

uma série da expressão kai. e=idon (cf. Ap 20,1.4.11.12; 21,1.2.22)262. Esta imprime

uma cadência ascendente que encontrará seu ápice na visão da Jerusalém celeste em

Ap 21,1-8.

Nesta imagem, a Jerusalém celeste é descrita como uma noiva adornada

para o seu esposo. A cena é apresentada com riquezas de detalhes e vista como

recriação da obra de Deus, que se faz presente no meio da humanidade redimida. Por

isso, não haverá sofrimento nem morte na cidade santa (cf. Ap 21,3-6). Na seqüência,

Ap 21,10-21, tem-se a exposição da arquitetura da Jerusalém celeste, brilhante,

resplandecente de glória (cf. Ap 21,10-11), com medidas (cf. Ap 21,15-17) e

materiais específicos (cf. Ap 21,18-21). Nela, todavia, não há um templo material.

Em contrapartida, o texto aponta para a presença de um Templo espiritual (cf. Ap

21,22-23). Mais adiante, apresenta as nações que para ela convergem com seus

tesouros e a ausência de tudo aquilo que é impuro nesta Nova Jerusalém (cf. Ap 21,

24-27).

A predominância do vocabulário arquitetônico em Ap 21,9-21a possibilita

uma primeira subdivisão neste conjunto. De fato, apesar de Ap 21,21b possuir um

vocabulário semelhante àquele que o precede em Ap 21,21a, alguns pesquisadores

preferem considerar que Ap 21,9-21a discorre sobre a visão de conjunto da cidade,

enquanto Ap 21,21b descreve o interior da mesma263.

262 Sobre o uso da expressão kai. e=idon ver: CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, CIX; ALLO, E. B., L’ Apocalypse, CLXVI; DELEBECQUE, E., “‘Je vis’ dans l’ Apocalypse”, RevThom 88 (1988) 460-466; AYUCH, D., “La instauración del Trono en siete septenarios. La macronarrativa y su estructura en el Apocalipsis de Juan”, Biblica 85 (2004) 255-296. 263 A questão de impor uma subdivisão em Ap 21,21b por meio de um elemento tão frágil não pareceu muito sustentável a Giblin. Cf. GIBLIN, C. H., Apocalisse. Bologna, EDB, 1993, 14. Para outros, contudo, a temática de uma visão interna e outra externa justificaria a ruptura da seção. Cf. LOHSE, E., L’ Apocalisse di Giovanni. Paidéia, Brescia, 1985, 189-191; FAVA, F., “La Jerusalém nouvelle. Une symphonie architecturale”, Christus 42 (1995) 173-179, 175. Este último entende ser mais coerente uma ruptura no v.21b porque, a partir desta, iniciaria uma descrição a respeito do interior da cidade que se estenderia de Ap 21, 22-22,5.

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Um outro elemento que corroboraria a fixação de uma divisão neste

momento do texto seria a presença do verbo ora,w em Ap 21,22. Conjugado na

primeira pessoa do singular, ele colocaria o visionário como agente da ação de ver,

em contraposição à perícope anterior, onde o anjo era o mediador da visão.

A mudança de estilo nos v. 24-27 poderia sugerir a presença de uma nova

ruptura, percebida em função de um afastamento do emprego do verbo no presente ou

no aoristo para uma utilização acentuada do tempo futuro.

Em Ap 22,1 insere-se uma nova ruptura, quer pelo tema, quer pela mudança

na conjugação do verbo. A fórmula no futuro é encerrada para dar lugar ao indicativo

aoristo ativo e à figura do anjo como o mediador da visão retorna. Associado a estes

dados, também o verbo dei,knumi parece indicar o início de uma nova seção que se

detém sobre a função das novas imagens propostas264.

Rissi, seguindo Lohmeyer, entende Ap 22,1 como uma visão independente

da seção Ap 21,9-27, não apenas pela expressão kai. e;deixe,n moi, como também pela

evolução dos novos elementos da visão265. Podemos dizer que a ruptura em Ap 22,1

se impõe devido a uma paulatina progressão em relação a Ap 21,9-27266. Esta

progressão é intencional, o autor do Apocalipse conduz o seu leitor/ouvinte para este

momento do livro, que se apresenta como o clímax da visão da Nova Jerusalém267.

264 O mesmo verbo pode ser encontrado em Ap 21,10 onde sinaliza o início de uma nova seção. 265 Cf. RISSI, M., The Future of the World: An Exegetical Study of Rev 19.11-22.5. London, Press, 1972, 80; LOHMEYER, E., Die Offenbarung des Johannes. Tübingen, J.C.B. Mohr, 1953, 175. 266 Fekkes, argumenta que se poderia, através da temática, encontrar uma unidade em Ap 21,22-22,5. Para tanto, recorre ao emprego do texto de Is 60,19 presente no substrato de Ap 21,23 como também em Ap 22,5a. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation, 98-99. Na mesma linha podemos encontrar Sweet e David Mathewdson. Cf. SWEET, J. P. M., Revelation. London, SCM Press, 1979, 307-309; MATHEWDSON, D., A New Heaven and a New Earth, 186-187. Consideramos que os argumentos propostos por estes autores não se apresentam de modo convincente, visto que outros textos veterotestamentários se fazem presentes e não são propostos como elemento de ligação entre os versículos. 267 Cf. BEASLEY-MURRAY, G. R., The Book of Revelation. London, Marshall, Morgan & Sctt, 1974, 329-330. A semelhante conclusão chegaram: Beckwith, Buchanan, Pohl e Pezzoli-Olgiati. Cf. BECKWITH, I. T., The Apocalypse of John: Studies in Introduction with a Critical and Exegetical Commentary. Michigan, Baker Book House, 1967, 764; BUCHANAN, G. W., The Book of Revelation: Its Introduction and Prophecy. Lewiston, Mellen Biblical Press, 1993, 610; POHL, A., Die Offenbarung des Johannes erklärt. Wuppertal, Brockhaus, 1974, 331; PEZZOLI-OLGIATI, D., Täuschung und Klarheit: Zur Wechselwirkung zwischen Vision und Geschichte in der Johannesoffenbarung. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1997, 178. Contrasta com as opiniões acima aquela de Mathewdson. Este observa que o vocábulo zwh/j usado para descrever a árvore une, claramente esta característica com as referências anteriores do autor do Apocalipse à vida eterna. Além disso, prossegue Mathewdson, embora a presença da árvore da cura na

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Importa agora ao autor do Apocalipse o que se encontra ao centro da cidade:

o rio da vida, a árvore da vida e o trono como a fonte da vida da cidade adorante.

Os vv. 1-2 desenvolvem coerentemente o tema da vida, quando descreve a

finalidade dos dois elementos: o rio e a árvore. O rio de água da vida (cf. Ap 22,1a),

por ter origem no trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1b), supera sua função

ordinária, para ser portador da vida que vem de Deus. O segundo elemento do tema

da vida, a árvore da vida, localizada às margens do rio de água da vida, produz frutos,

não sazonais, mas constantemente, sem interrupções, e cujas folhas são para a cura

das nações (cf. Ap 22,2d). A cura, operada pelas folhas das árvores, concede o

restabelecimento da plenitude da vida.

Assim, em vista da carência de elementos formais que estabeleçam as

interligações com o texto antecedente, parece correto dizer que a seção iniciada em

Ap 22,1a distingue-se nitidamente do contexto anterior.

A seguir, os vv. 3b-5 apresentam as características da ausência de

maldições, a presença do trono de Deus e do Cordeiro, a ausência da noite e a nova

relação dos fiéis com Deus e com o Cordeiro. Estas dão o tônus da vida na Nova

Jerusalém.

A fórmula introdutória do v.3a kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai dá continuidade

e estabelece um elo com o pensamento de qerapei,an tw/n evqnw/n (curar as nações),

expresso no v. 2. Deus removerá a maldição imposta às “nações” (v. 2c). A presença

estável de Deus e do Cordeiro elimina a maldição e instaura a imagem do paraíso.

Portanto, o v.3a dá seqüência aos vv. 1-2, através do tema da vida implícito na

ausência de maldições na Cidade Santa. nova criação pareça problemática, esta característica “física”, como a do fruto correspondente, tenta provavelmente simbolizar a provisão eterna da vida escatológica para as nações, sem sugerir que terão em qualquer momento que sofrer pelos males da antiga criação. A cura das nações deve provavelmente ser entendida mais especificamente em relação às condições anteriores das nações, retratadas nos c. 18; 19,15; 20,7-10. O tema do paraíso que se caracteriza em Ap 22,1-2, teria, na visão deste autor, semelhanças com várias imagens que o precederam. O que sugeriria uniões fortes com as seções anteriores. Especialmente significante seria a união com Ap 21,1-8. O rio da vida escatológico teria sido antecipado em Ap 21,6. Mas o tema do paraíso estaria também implícito na nova criação de Ap 21,1-5a. Mathewdson firma a sua tese nas prefigurações do Antigo Testamento que permeariam esta seção (cf. Is 65,17-20). A ausência de sofrimento, aflição e morte que prevalecerão na nova criação (cf. Ap 21,4) é a condição expressa do paraíso. Desta forma, Ap 21,1-8 e 22,1-5 formariam um tipo de inclusão em volta da visão da Nova Jerusalém que situaria toda a visão dentro de uma estrutura de nova criação paradisíaca. Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 186-187.

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A declaração da presença do trono de Deus e do Cordeiro na Cidade Santa,

no v.3b, desencadeia uma série de ações: adoração dos servos, a visão da face de

Deus e do Cordeiro, o portar o Nome e, por fim, compartilhar da ação de governo. No

v. 3c, encontra-se a primeira referência aos habitantes da cidade: os servos. O termo

dou/loi indica que estes são os destinatários da vida renovada dos vv. 1-2, bem como

das bênçãos escatológicas propostas nos v. 3c.4ab.

As duas bênçãos encontradas no v. 4 são destinadas aos servos elencados no

v. 3c: eles verão a sua face e o seu nome estará sobre suas frontes. Tais bênçãos

sugerem uma intimidade na relação que terão com Deus e o Cordeiro. Esta relação

estará ancorada na glória de Deus presente na cidade-templo e manifestada pela

metáfora do trono (v. 1-3).

O v. 5 descreve outra característica física da cidade-templo: os que nela

habitarão desconhecerão a noite e não terão necessidade da luz artificial ou natural,

porque, junto à glória de Deus, a escuridão será impossível. O v. 5d liga-se ao v. 3c

pelo sujeito do verbo basileu,sousin: estes são, naturalmente, os servos de Deus.

As palavras iniciais do v.6, Kai. ei=pe,n moi, sugerem que um novo tema será

abordado doravante. De fato, o v. 6 introduz uma ruptura tanto pela temática,

deixando de tratar da vida no interior da Cidade Santa, como também pelo abandono

da forma descritiva, para assumir a forma de um discurso que visa o modo de

proceder dos servos de Deus. Muda também o modo de agir do anjo que não mostra

mais ao visionário uma cena, mas lhe fala em tom exortativo268. Sendo assim,

consideramos que o texto iniciado em Ap 22,1 conclui-se em 22,5269.

268 Há quase uma unanimidade entre os autores em indicar Ap 22,6 como início de uma nova seção. Neste epílogo a tônica moral é freqüentemente aceita. Cf. OSBORNE, G. R. Revelation,777-800; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 402-410; KISTEMAKER, S. J., Revelation, 583-595; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 493-524; STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ, 603-614; BRIGHTON, L. A., Revelation, 637-658; COLLINS, T., Apocalypse 22:6-21as the Focal Point of Moral Teaching and Exhortation in the Apocalypse. Roma, PUG, 1986. Outros lhe conferem um teor mais litúrgico. Cf. KAVANAGH, M. A., Apocalypse 22,6-21. As Concluding Liturgical Dialogue. Roma, PUG, 1984. 269 Predomina um consenso entre os pesquisadores quanto a delimitação de Ap 22,1-5. Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 455-492; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565; OSBORNE,G. R. Revelation, 768-776; BRIGHTON, L. A., Revelation, 622-630; KISTEMAKER, S. J., Revelation, 579-583; PASQUALINI, A. R., “L’ architettura della Gerusalemme celeste: la strutura letteraria di Ap 21,9-21a”, BSW 1 (1998) 43-59; YUBERO, D., “La ‘Nueva Jerusalém’ Del Ap 21,1ss”, Cultura Bíblica 115 (1953) 359-362.

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2.3 A estrutura do texto

O estudo sobre a delimitação do texto indicou o início de nossa perícope de

estudo em Ap 22,1 e seu encerramento em Ap 22,5. Apesar de sua brevidade, esta

encontrar-se-ia articulada em duas seções: v.1-3a e v.3b-5. A primeira seção

desenvolveria a temática da vida que brota do trono de Deus e do Cordeiro, enquanto

a segunda seção discorreria a respeito dos efeitos da presença do trono de Deus e do

Cordeiro para seus servos: a contemplação da face de Deus, o Nome divino gravado

em suas frontes, a inexistência da noite e a ineficácia das fontes de luz.

2.3.1 As seções

2.3.1.1 A primeira seção, v. 1-3a

Em esquema, a organização dos v. 1-3a:

cerne da visão

trono de Deus e do Cordeiro (v. 1b)

Poucos autores discordam da delimitação em Ap 22,1-5, optando por um dilatamento da unidade oscilando entre Ap 21,9-22,5; 21,22-22,5; 21,24-22,5; 21,10b-22,5. Respectivamente, ALLO, E. -B., L’Apocalypse, 324-327; JOHNSON, D. E., Triumph of The Lamb. A Commentary on Revelation. Phillipsburg, New Jersey, P&R, 2001, 308-324; STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ. Michigan, Andrews University Press, 2002, 581-602; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1133-1181. Embora em uma delimitação mais ampla Aune tenha feito a opção por Ap 21,10b-22,5, ao estabelecer uma estrutura restrita opta por uma delimitação que limita-se a Ap 22,1-5. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1133-1181. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1133-1181

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efeito característica

rio de água da vida (v. 1a) brilhante como cristal (v. 1a)

da árvore da vida (v. 2a) abundância de frutos (v. 2bc)

folhas terapêuticas (v. 2d)

conseqüência final

não haverá mais maldições (v. 3a)

A primeira seção apresenta a temática da vida que procede do trono de Deus

e do Cordeiro. No v. 1a, o Anjo apresenta ao autor do Apocalipse por meio de três

elementos, a visão interna da Cidade Santa. O primeiro elemento é o rio de água da

vida, que tem sua origem determinada no v. 1b: o trono de Deus e do Cordeiro. Este

constitui o segundo elemento da visão proposta ao hagiógrafo. O terceiro elemento é

a árvore da vida, que, por sua extraordinária produção, ilustra a abundância de vida.

Os v. 1-3a são marcados pela locução kai. e;deixe,n moi. A presença do aoristo

ativo torna-se elemento indicativo da interligação desta seção, posto que, descreve de

modo contínuo, aquilo que está sendo o objeto da visão do autor sagrado.

O primeiro objeto do verbo dei,knumi é o rio de água da vida brilhante como

cristal, conforme indica o acusativo de especificação que lhe sucede. Este rio é

descrito por meio de dois genitivos. O primeiro indica o objeto da ação enquanto o

segundo assume função de adjetivo que distancia do ordinário a matéria do rio; ele

porta, em si, a vida. A descrição do rio tem continuidade com o adjetivo lampro,n, que

confere ao rio uma diafania ímpar, ressaltada pela oração comparativa w`j

kru,stallon, reforçando o fato de suas características estarem dependentes do local de

sua origem. Este local será precisado pelo verbo evkporeu,omai (v. 1b).

Deste modo, o verbo evkporeu,omai servirá como elemento causativo; a

origem do rio de água da vida é o trono de Deus e do Cordeiro (v. 1b).

Concomitantemente, interliga o v. 1a ao 1b. O trono converte-se, neste momento, em

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instrumento para indicar a verdadeira fonte de vida, que está naqueles que o ocupam:

Deus e o Cordeiro. Por conseqüência, a vida que brota do trono só pode ser plena. Os

atributos do rio (v. 1a) convertem-se em recurso para comunicar a vida a toda a

Cidade Santa.

A sentença, iniciada no v. 1, estende-se até o v. 2a, considerando que o

objeto de e;deixe,n comporta, além do rio e do trono, um terceiro elemento: a árvore da

vida. Corrobora a existência de um vínculo entre os v. 1-2a, a conjunção kai,, que

introduz duas demonstrações sucessivas: “o rio da vida” e a “árvore da vida”. Neste

caso, a conjunção assumiria uma função vinculante270. Confirma esta unidade entre

o v. 1ab e o v. 2a o genitivo singular zwh/j, que, como em 1a, atribui uma qualificação

à árvore que se encontra às margens do rio da vida. Assim, a temática de uma vida

plena possui continuidade nestes dois versículos.

A locução evn me,sw| abre o v. 2a e o integra ao verbo evkporeu,omai de 1b,

indicando, assim, que é atribuída ao trono de Deus e do Cordeiro a origem da vida

produzida pela árvore que margeia o rio271.

Do mesmo modo que foram atribuídas ao rio características extraordinárias,

a árvore da vida também as receberá. Sua descrição constitutiva inicia-se pelo verbo

poiou/n do v. 2b, cujo sujeito é a árvore da vida do v. 2a. A periodicidade da produção

desta árvore chama a atenção, pois supera o ciclo produtivo ordinário de qualquer

270 Esta posição não possui um consenso entre os autores. Há um grande debate entre os estudiosos a respeito da função sintática destes versículos. Para alguns haveria uma unidade entre os versículos tanto pela temática da vida, como também pela sintaxe. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565; OSBORNE,G. R. Revelation,768-776; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1175-1181. Outros, como Mounce, assumem a posição de que evn me,sw| th/j platei,aj marca o início de uma nova sentença. Neste caso refere-se respectivamente à localização da árvore da vida e a conjunção kai, não possuiria função vinculante. Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401. Seguiremos a linha onde o kai, de Ap 22,1 e Ap 22,2b deva ser compreendido mais como elemento de interligação, como introduzindo duas demonstrações sucessivas do que elemento divisor da seção, porque a posição do kai, seguiria o hábito do autor sagrado de introduzir um novo e distinto objeto com esta partícula kai,. No entanto, a posição do kai, não constitui uma questão fundamental. 271 Moffatt considera que a expressão evn me,sw| th/j platei,aj auvth/j está ligada ao v.1 e desempenha a função de concluir a sentença iniciada no versículo anterior. Cf. MOFFATT, J., Revelation. Grand Rapid, Eerdmans, 1980, 404. Seguem esta linha de pensamento Aune, Brighton, Smalley e Mounce. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139; BRIGHTON, L. A., Revelation, 622; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 530; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 399. Swete, por sua vez, considera que evn me,sw| th/j platei,aj origina uma nova sentença. Cf. SWETE, J. P. M., Apocalypse, 297.

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espécie de planta, retomando, assim, também por meio desta imagem de abundância,

a temática da vida proposta no v. 1a.

Forma semelhante ocorre em 2d, onde a locução eivj qerapei,an indica as

folhas da árvore da vida do v. 2a como a causa da cura das nações do v. 2d. O

destinatário da cura, especificado pelo genitivo plural e;qnoj, confere uma

universalidade aos destinatários desta cura. Trata-se de uma vida onde as mazelas não

mais serão causa de infortúnio e a vida será, portanto, plena. Muitas nações serão

objeto da cura, que, tendo em vista o cenário antecedente, possui como origem o

trono de Deus e do Cordeiro.

Esta dinâmica da vida plena culmina com a afirmação da inexistência do

mal na Cidade Santa. Iniciada por uma conjunção conclusiva, a oração emprega o

advérbio de negação juntamente com o verbo eivmi, para indicar a total impossibilidade

de o mal coabitar com a criatura na Jerusalém celeste, e muito menos diante do trono

de Deus e do Cordeiro.

Apesar da alteração do tempo verbal, de aoristo indicativo (v. 1ab) e

particípio presente (v. 2b) para o futuro do indicativo em 3a, entendemos que tal

mudança não chega a constituir uma ruptura entre os v. 3a e v. 1-2. Antes, a inserção

do novo estilo facultaria ao autor descrever aquilo que será a vida na Jerusalém

Celeste272.

A continuidade entre os vv. 1-2 e 3a pode ser observada também pela

temática proposta no v. 3a. A declaração negativa kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;ti dá

continuidade ao tema da vida dos vv.1-2 e estaria vinculada à cura das nações do v.

2c. A ausência de maldições estaria relacionada à vida proporcionada pelo rio de água

da vida e pela árvore da vida273. O termo kata,qema indica a coisa ou a pessoa sobre

quem repousa a maldição. O advérbio de negação que sucede a expressão kata,qema

aporta a supressão do mal. A extensão temporal da ausência da maldição é manifesta

pela conjugação no verbo eivmi, no futuro e enfatizada pelo advérbio e;ti: ela já não

existirá mais para todo o sempre.

272 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565; OSBORNE,G. R., Revelation,768-776; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1175-1181; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401. 273 Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 202.

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2.3.1.2 A segunda seção, v. 3b-5

cerne da visão

o trono de Deus e do Cordeiro (v.3b)

efeito

adoração dos servos (v.3c)

visão da Face de Deus e do Cordeiro (v.4a)

Nome de Deus e do Cordeiro impresso na fronte (v.4b)

extinção da noite (v.5a)

caducidade da lâmpada e do sol (v.5b)

reinado eterno junto a Deus e ao Cordeiro (v.5d)

O v. 3b inicia uma nova seção e embora, possuindo condições semânticas

semelhantes àquela do v.1a, o termo “trono”, neste versículo, relaciona-se não mais à

questão da vida, mas à soberania absoluta de Deus e à adoração que os que estão no

trono recebem dos residentes da Cidade Santa. Dessa forma, a conjunção kai, marca o

início da nova seção situando o trono na Cidade Santa, conforme indica a locução

pronominal evn auvth/|.

Em seguida uma nova conjunção introduz um novo personagem: os servos,

cuja única função é a adoração. A apódose latreu,sousin auvtw/| encontra-se

imediatamente ligada ao sujeito de 3b: Deus e o Cordeiro, confirmando a relação

entre estas duas linhas do v. 3. A presença da majestade divina, expressa pela imagem

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do trono, revela a real relação do homem com seu Deus: é servo. O modo e o tempo

em que os servos exercerão sua função está explicitado pelo verbo latreu,w, que,

conjugado no futuro, sinaliza para a durabilidade da ação de adorar.

A presença da conjunção aditiva kai, no início de v.4a dá seqüência à

descrição das características dos servos na Cidade Santa: ver a face, portar Seu Nome

e reinar com Ele.

Um outro elemento de entrelaçamento entre os versículos pode ser

encontrado em 4a, onde a forma verbal o;yontai, tem como sujeito os servos de 3c.

Apresenta-se como continuidade deste. Concomitantemente, esta forma verbal, liga

4a ao v. 3b, pois a face contemplada pelos servos é a de Deus e do Cordeiro, como

indica o pronome auvtou/. O mesmo pronome liga 4b a 3b, porque o Nome impresso

na fronte dos servos é o Nome de Deus e do Cordeiro. O singular to. o;noma, por outra

parte, acentua a unidade entre os dois personagens que estão sobre o trono.

O segundo pronome de 4b, auvtw/n, contudo, une-se diretamente ao sujeito de

3c: os servos, conforme sugere a forma de possessivo plural. Tendo suas frontes

marcadas, os servos passam a exprimir uma realidade de pertença: eles são

propriedade de Deus. Esta marca acentua a imagem de soberania que o trono de Deus

e do Cordeiro adquire nesta segunda seção.

A estrutura ouvk e;stai e;ti de 5a é iniciada, como em 3a, por uma conjunção,

mas suas funções são diversas. Em 3a sua função é conclusiva, enquanto aqui em 5a,

aditiva. Quanto ao escopo, é idêntico em ambas as estruturas gramaticais. Em 3a, há a

ausência de maldições; em 5a indica a impossibilidade da existência da noite, das

trevas274. Apesar das duas construções possuírem a mesma sintaxe, seria mais

correto manter o v. 5a com o v. 5b, e, portanto, na mesma seção, uma vez que neste

será descrito o elemento do qual não se terá necessidade na Cidade Santa: a luz da

lâmpada e do sol.

Uma nova conjunção aditiva no v. 5b corrobora a relação entre 5a e 5b, pois

especifica o impacto da ausência da noite para os servos: isenção da necessidade da

luz da lua ou da luz do sol. Os termos nu,x e fwto,j não estão em relação de oposição;

274 O termo noite no universo semântico joaneu possui forte teor teológico. Este tema será tratado posteriormente na semântica.

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antes, há uma suplantação da noite pelo resplendor da presença de Deus em meio aos

servos. Noite e luz pertencem a uma realidade decrépita.

Além destes elementos expostos, o v. 5b está vinculado a 3c em função do

sujeito do verbo e;cw ser os servos, como se depreende da pessoa em que o verbo foi

conjugado. A conjunção subordinativa o[ti introduz uma frase causal que explicita a

obsolescência da luz da lâmpada e da luz do sol do v. 5b ao fato de Deus brilhar sobre

os servos no v. 5c. A forma verbal fwti,sei tem como sujeito Deus, o Senhor: ele é o

portador e doador do resplendor que atingirá os servos. Esta dinâmica é bem

acentuada pela locução evpV auvtou,j, ao indicar que a luz que ilumina os servos e vem

sobre eles tem um Outro como fonte e princípio. Os servos são receptores do

esplendor de Deus.

Por fim, o verbo basileu,sousin mostra que o sujeito verbal continua sendo

os servos adoradores mencionados no v. 3c. Estes recebem, ainda, uma nova função:

reinar pelos séculos dos séculos, isto é, por toda a eternidade.

Tendo em vista os elementos propostos, consideramos que o texto

apresenta-se em duas seções intimamente relacionadas entre si. A primeira, v. 1-3a,

fortemente marcada pelo tema da vida restaurada a partir do trono de Deus e do

Cordeiro. Já a segunda seção é constituída pelos v. 3b-5, onde temos a presença desta

vida, que não é outra senão a presença do trono de Deus e do Cordeiro na Cidade

Santa e as conseqüências desta para os servos que habitam a Jerusalém Celeste.

2.4 Ap 22,1-5: aspectos semânticos

O estudo sobre o texto de Ap 22,1-5 indicou a presença de duas seções

intimamente relacionadas. A primeira, Ap 22,1-3a, apresenta como elemento de

integração o tema da vida. O rio de água da vida constitui o primeiro elemento da

visão da Cidade Santa, seguido pela descrição da árvore da vida com suas folhas

terapêuticas que curam as nações e culmina com a solene declaração de 3a onde a

maldição tem o seu fim decretado.

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2.4.1 Ap 22,1-3a 275

a) Um rio de água da vida

Ap 22,1ab descreve o rio de água da vida que brotava do trono de Deus e do

Cordeiro. Na obra do Apocalipse, a expressão “rio de água viva” é empregada dentro

de uma estrutura simbólica276. No Apocalipse, o termo “rio”, quando usado

275 A datação do livro do Apocalipse tem como indicador externo o culto ao imperador, que constituiu o aspecto mais original da política religiosa de Augusto, que, seguindo as tendências dos últimos tempos da República, mesclou as tradições nacionais com o culto helenístico. Sob seu governo foram levadas a termo as intenções de conferir ao soberano uma áurea e um valor sagrados. O instinto político deste imperador o fez compreender que o cultivo da religião teria muito a ver com a solidez do Império. Por esta razão podemos falar de uma política religiosa de Augusto. As interferências externas não parecem impor uma grande ameaça ao culto e à política religiosa do Império. Assim é que a difusão da filosofia helenística, dos diferentes cultos e crenças orientais acarretaram na nobreza romana uma prática dos ritos da religião romana de modo formal. Por conseguinte, nada impedia que pertencessem a diversas associações religiosas e cumprissem ao mesmo tempo os ritos da religião tradicional. A grande novidade deste período é que, ao lado dos deuses que protegiam o lar, as divindades domésticas e familiares, honrava-se também Augusto como protetor de cada casa e de cada lugar. A religião do Estado assumiu um status mais elaborado a partir de Domiciano (81-96 d.C.). Sob este Imperador, muito provavelmente foi redigido o Apocalipse. O prazo dilatado para a datação busca fundamentar-se em Irineu e em Eusébio, os quais, além de confirmar a data e a apostolicidade do escrito, dão notícias sobre a prisão e exílio de João na ilha de Patmos, no decurso do 14º ano de Domiciano, ou, seja, nos anos de 94/95. De igual opinião pode-se apresentar Primásio, bispo de Adrumeto na África. São Jerônimo, Clemente de Alexandria e Orígenes falam do exílio em Patmos. Os argumentos em contrário são pautados também em escritos antigos. Os Atos de João (IIº séc.) apresentam o exílio e a estadia em Éfeso sob o governo de Nero. O fragmento de Muratori (IIº séc.) poderia ser inserido também neste ponto de vista, pois, para este fragmento, João precede Paulo. Tertuliano (IIIº séc.) também data a composição do Apocalipse sob Nero. O único que difere é Santo Epifânio (Vº séc.), que aceita a composição do Apocalipse sob o governo de Cláudio (54), antes mesmo de Paulo ter iniciado a evangelização de Éfeso. Há, porém, a possibilidade deste ter-se equivocado com o nome de Nero: Nero Claudius Caesar275. Sobre a questão do Culto ao Imperador ver: GONZÁLEZ RUIZ, J. M., Apocalipsis de Juan, Madri, Cristiandad, 1987; KRAYBILL, J. N., Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse, JSNT-Suppl.Series 132, Sheffield, Sheffield Press, 1996. Sobre o tema da datação sob o governo de Domiciano há, hoje, quase uma unanimidade entre os autores elencamos alguns: BRÜTSCH, C., La clarté de l'Apocalypse. Labor et Fides, Gèneve,1966; BOXALL, I., Revelation: Vision and Insight. London, SPCK, 2002; KNIGHT, J., Revelation.Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999; THOMPSON, L. L., The Book of Revelation:Apocalypse and Empire. New York e Oxford, Oxford University Press, 1990; PARKER, F. O. Jr., “Our Lord and God' in Rev 4,11: Evidence for the Late Date of Revelation?”, Biblica 82 (2001), 207-231; ROJAS-FLORES, G., “The Book of Revelation and the First Years of Nero’s Reign”, Biblica 85 (2004) 375-392; SLATER, T. B., “Dating the Apocalypse to John”, Biblica 84 (2003): 252-258; WARDEN, D., “Imperial Persecution and the Dating of 1 Peter and Revelation”, Journal of the Evangelical Theological Society 34.2 (1991): 203-212. 276 Segundo Ugo Vanni, o simbolismo ocupa, na interpretação do Apocalipse, um lugar central. Por esta razão, para compreender o Apocalipse torna-se necessário, em primeiro lugar, compreender os seus símbolos, posto que ele determina a sua teologia. Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 31.60. Mas o que seria um símbolo? Para Jörg Splett, a etimologia da palavra símbolo encontrar-se-ia ligada aos procedimentos jurídicos da antiguidade. Uma moeda, um bastão, etc era dividido em duas partes e

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isoladamente, pode designar o grande Eufrates (cf. Ap 9,14)277 ou representar

metaforicamente o ataque contra a mulher (cf. Ap 12,15.16). Na ausência de

segurança, ilustrada pela seca do rio, os inimigos têm livre acesso para atacar (cf. Ap

16,12).

A ausência de segurança e a imagem da vulnerabilidade proposta no texto

acima são superadas por aquela indicada em Ap 22,1-2, na qual um “rio de água da

vida” brota do trono de Deus e do Cordeiro e atravessa a Nova Jerusalém. A

expressão u[datoj zwh/j, literalmente “água da vida”, revela um novo sentido para a

água contida pelo rio: porta em si o dom da vida. A cena traz consigo uma certa

representação do Éden primitivo (cf. Gn 2,10ss)278.

Esta ilustração paradisíaca pode ser encontrada em diversos textos vétero-

testamentários como Is 51,3, onde YHWH consolou a Sião, consolou todas as suas

ruínas e transformará o seu deserto em um Éden. De igual modo, o caminho

transformado no deserto está, geralmente, ligado à modificação em termos

ao serem reunidas serviam de sinal de reconhecimento ou um sum-ballei/n de legitimação. O verbo grego sumballei/n, que significa reunir juntar, encontra sua origem na palavra símbolo. Em sua base antropológica, o símbolo está radicado na constituição do homem como ser espiritual, corporal e comunitário, mas o reporta a uma realidade presente que ultrapassa o próprio símbolo. A interpretação de um símbolo comportará sempre uma margem de divergência em virtude da própria função do símbolo: velar e revelar. Por isso, o símbolo será sempre uma realidade de separação e de união. Sob o prisma religioso, o símbolo vincula o visível e o invisível para o homem. A linguagem dos símbolos é a linguagem da religião no sentido de traduzir uma realidade que supera a compreensão humana. Porém, como tem a função de velar e revelar, o símbolo oculta as verdades santas ao olhar profano enquanto que as desvela aos que sabem lê-la. Deste modo, o símbolo oferece um significado completo em si. Naquilo que se refere à linguagem, o símbolo expressa a experiência humana, é um evento de linguagem e também é um evento que implica uma interpretação. Além disto, o símbolo não constitui só uma estrutura semântica, antes, é uma estrutura intencional, é um jogo intralingüístico. Será sobre esta estrutura semântica intencional que a hermenêutica se deterá a fim de compreender a estrutura ontológica do símbolo. Cf. SPLETT, J., “Símbolo”, In Sacramentum Mundi. Barcelona, Herder, 1976, col 354. Cf. HEINZ – MOHR, G., Dicionário dos Símbolos. Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo, Paulus, 1994, IX. 277 O termo rio em sua etimologia equivale à água que se precipita velozmente. Seu emprego na LXX deriva do termo egípcio “rio”, este, quando usado no singular, designa basicamente o Nilo (cf. Gn 41,1ss; Ex 1,22) ou os seus canais (cf. Ez 29,3ss). Em alguns textos o termo hebraico utilizado é rh;;;n;, acompanhado do nome do rio (cf. Jr 13,7; Ez 1,1ss; Br 1,4). Nestes textos, o contexto permite perceber que a idéia de fundo é aquela de água corrente juntamente com a idéia de perenidade do curso da água. Do ponto de vista textual, idéia similar aparece em Gn 2,10ss para designar tanto o rio do paraíso como os seus quatro afluentes. Cf. RENGSTORF, K. H., potamo,j, GLNT ,1493. 278 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561; BRIGHTON, L., Revelation, 623; AUNE, D., Revelation 17-22, 1175; LUPIERI, E., L’Apocalisse, 349.

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semelhantes à de um paraíso (cf. Is 35,6-7; 49,10). Nele, YHWH dá de beber a seu

povo (cf. Is 43,19-20) e a criação é renovada (cf. Is 65,20-25)279.

O atributo concedido ao rio “de água da vida” possui uma tênue conexão

com Sl 36,9-10; Pr 10,11; 13,14; 14,27; 16,22, que recorrem à expressão “fonte de

vida” (~yYI+x; rAqåm.). Esta fonte é identificada com aquilo que é proferido pelo justo ou

com YHWH, a fonte de vida. Outros textos do Antigo Testamento utilizam algumas

metáforas da água para descrever um futuro em condições ideais (cf. Sl 1,1-3; 46,4; Is

12,3; Jr 17,7-8). Em Jr 2,13; 17,13, há uma identificação de YHWH com a “fonte de

água da vida”, mas o contexto difere de Ap 22,1a, porque trata-se de uma queixa de

YHWH contra seu povo que abandonou a “fonte de água da vida”, o próprio Deus.

A metáfora da água no Apocalipse assume nuances predominantemente

vétero-testamentários280. Tal influência poderia ser detectada em Ap 1,15; 14,2; 19,6

279 Apesar de os textos acima possuírem contatos com Ap 22,1a, estes são secundários, pois vinculam-se apenas por meio de uma tênue temática do paraíso restaurado, sem apresentar liames a nível de vocabulário. Contatos terminológicos se dão com Ez 47,1-12; Zc 14,8 e Jl 4,18, que, por serem objeto da presente pesquisa, serão tratados detalhadamente mais tarde. Um interessante paralelo será encontrado, tanto no nível temático, como também no de vocabulário, além do contexto escatológico. Sendo assim, estes textos serão abordados, mais detalhadamente, nos capítulos subseqüentes, a fim de melhor averiguar os contatos existentes. Estes contatos foram sinalizados por diversos autores. Cf. VANHOYE, A., ‘L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’ Apocalypse, 436-476; GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 342-367; VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation; MOYISE, S., The Old Testament in the Book of Revelation; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 455-492; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565; OSBORNE,G. R. Revelation, 768-776; BRIGHTON, L. A., Revelation, 622-630; KISTEMAKER, S. J., Revelation, Michigan, Baker, 2002, 579-583; MATHEWDSON, D., A New Heaven and a New Earth, 186-187. Em decorrência do contexto escatológico, os textos de Ezequiel, Zacarias e Joel encontrar-se-iam semanticamente distantes dos textos de Am 8,8; 9,5; Eclo 47,14; 24,25ss; 39,22, onde a aplicação do termo volta-se para a abundância de água do Nilo, responsável pela fartura e bem-estar dos habitantes do Egito. 280 De modo geral, no Antigo Testamento, o tema da água encontra-se ligado às questões fundamentais da sobrevivência humana (cf. Ex 23,25; 1Sm 30,11-12; 1Rs 18,4.13), do pastoreio (cf. Gn 24,11-20; 30,38; 34,19) e da lavoura e neste sentido, a chuva é altamente valorizada (cf. Dt 11,11; 1Rs 18,41-45). Em sua caminhada pelo deserto, Israel faz a experiência da necessidade extrema de água e seu suprimento miraculoso da parte de YHWH (cf. Ex 17,5-6). Pode ser ainda um instrumento de purificação que afetava diversas situações da vida humana, tais como as regras de consagração ou limpeza ritual do sacerdote: (cf. Nm 8,5-22; Ex 29,4; 30,17; 40,30ss; Lv 16,4 16,26.28); após o nascimento de uma criança (cf. Lv 12,1ss) ou da lepra (cf. Lv 14,8-9; 2Rs 5,10.14). Em uma perspectiva negativa, a água recebe uma aparência demoníaca, de algo que pode pôr a vida humana sob ameaça (cf. Gn 6-8; Ex 14-15) ou pode também simbolizar o reino dos mortos (cf. Ez 26,19-20). A função purificadora da água, em alguns textos proféticos, assume a conotação de purificação divina que expurga todo o pecado da terra como também do povo. Este, livre de toda a idolatria encontrar-se-

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(cf. Ez 1,24; 43,2), no qual a figura de muitas águas é a descrição do vidente para o

poder numinoso das vozes celestiais.

O contrário pode ter ocorrido com o judaísmo tardio, que entendia a

descrição da água sob o viés de eternidade feliz. Podem-se acrescentar as “águas

vivas” de Zc 14,8 como uma demonstração de que Deus vai redimir Israel e será seu

Deus281, de tal forma que esta cumplicidade não poderia ser jamais destruída.

A expressão “água da vida” é encontrada, ainda, no livro gnóstico de

Baruc282. Há uma alusão a um ritual envolvendo o ato de beber a “água da vida”,

que sai da “fonte da vida”, baseado em uma distinção entre a água sob o firmamento,

que é parte da criação má e a espiritualmente benéfica “água da vida”, que está acima

do firmamento. Esta literatura não parece possuir uma real influência sobre o

Apocalipse, tendo em vista que a água a que se reporta o texto de Ap 22,1a possui sua

origem no trono de Deus e do Cordeiro, fonte e princípio da vida por ele portada.

Em relação ao Novo Testamento, a expressão “rio de água de vida” de Ap

22,1a possui uma conexão com o Evangelho de João. No poço de Jacó, Jesus oferece

uma água que pode suprimir a sede do homem, contrapondo-a àquela que era retirada

do poço, incapaz de extingui-la (cf. Jo 4,13). A sede de vida, simbolizada na sede de

água, não pode ser extinta pelo elemento natural. Ao contrário, a “água viva”

proporcionada por Jesus extingue a sede para sempre (Jo 4,10.14)283. O dom de

Jesus sacia a sede do homem de vida, porque regenera no homem a vida284.

O mesmo contexto não é partilhado por outros textos do Novo Testamento,

nos quais o termo u[dwr encontrar-se-ia mais vinculado à manutenção da vida humana

ia apto a receber um novo Espírito (cf. Is 44,3; Ez 36,25; Zc 13,1-2). Cf. GOPPELT, L., u[dwr GLNT, v. XIV, 80. 281 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1104. 282 Cf. DIEZ MACHO, A., Apocrifos del Antiguo Testamento VI. Madrid, Cristiandad, 1983. Ver também, Revista Bíblica Brasileira, 17. Apócrifos do Antigo Testamento, vol. II Fortaleza, Nova Jerusalém, 2000, 161-219. 283 Na opinião de Smalley, o conceito “água da vida”, tanto no Evangelho de João como no Apocalipse, denota a vitalidade que flui de Deus no Cristo pelo Espírito. Deste modo, haveria uma proximidade conceitual não acidental entre os autores dos dois documentos. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 562. A mesma linha de pensamento pode ser encontrada em Goppelt. Cf. GOPPELT, L., u[dwr, GLNT, v. XIV, 84. 284 Uma definição para a expressão “água da vida” poderia ser encontrada no interior do próprio Evangelho: ela é a palavra de Jesus (cf. Jo 8,37; 15,7), o seu Espírito (cf. Jo 7,39) e Ele mesmo (cf. Jo 6,56; 14,20; 15,5s). Os textos fazem referência ao escatológico e definitivo dom de água repetidamente prometido no Antigo Testamento. Cf. GOPPELT, L., u[dwr, GLNT, v. XIV, 84.

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(cf. Mc 9,41; Mt 10,42; Lc 7,44; 16,24; Jo 13,5) ou seria instrumento para testar a fé

de Pedro (cf. Mt 14,30), um evento escatológico representado no domínio de Jesus

sobre as águas (cf. Mc 4,35-39; Mt 8,23-27) ou ainda quando usada como elemento

do Batismo, recebendo, assim, sua maior dignidade (cf. Ef 5,26; Hb 10,22; At 22,16;

1Cor 6,11)285.

O mesmo ocorre em alguns textos do livro do Apocalipse, onde a imagem

da água recebe sentido negativo. Em Ap 17,1, é proposta a figura da prostituta

entronizada sobre muitas águas. Esta metáfora é explicada posteriormente no v.15:

são os povos dominados pela Besta. Em Ap 12,15, o dragão busca aniquilar a Mulher

vomitando em sua direção “água como um rio” (cf. Is 8,6s; Jr 47,2). Tendo

fracassado em sua investida, o dragão se volta contra os descendentes da Mulher que

ainda estão neste mundo e a razão desta guerra é que eles guardam os Mandamentos e

dão testemunho de Cristo. A metáfora neste momento, portanto, está relacionada à

imagem da tribulação dos filhos de Deus. A imagem das águas estaria, aqui, acoplada

à imagem da destruição que pode vir sobre o homem quando este abandona seu reto

caminho e este seria o verdadeiro desejo do Adversário, conquistar os que pertencem

a Deus286. Em um sentido mais prático, o texto pode indicar que o desejo do dragão

é colocar a mulher numa situação sobre a qual ela não pode ter controle, exatamente

como ocorre quando alguém é atingido por uma grande massa de água ou pela

violência do rio.

O contrário ocorre em Ap 7,17; 21,6; 22,1.17, que retoma o contexto e os

temas veterotestamentários de YHWH como provedor e doador e fonte de uma água 285 Segundo alguns autores, o rio de água da vida encontrado em Ap 22,1 poderia ser compreendido de dois modos intimamente interligados: seria uma alusão à promessa do Batismo no Espírito Santo (cf. Mc 1,8; Jo 1, 26.33; At 1,5; 11,16; etc) e o sucessor da imagem da aspersão encontrada em Ex 36,25. Cf. LUPIERE, E., L’ Apocalisse di Giovanni, 349; BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1104; WILCOX, M., “Tradition and Redaction of Rev 21,9-22,5”. In L’Apocalypse johannique et Apocalyptique dans le Nouveau Testament, ed. J. Lambreacht, BETL 53; Gembloux: Duculot/Leuven, University Press, 1980, 203-215 (212). Nesta mesma linha encontram-se também Swete e Feuillet. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John. 398; FEUILLET, A., “Visión de conjunto de la mística nupcial en el Apocalipsis”, Scripta Theologica 18 (1986) 407-431. Discordamos desta linha de pesquisa, pois o estudo dos textos do Ap 7,17; 21,6; 22,1.17 indicam uma relação com o fiel perfeito, aquele que está em comunhão com Deus, e não com o sacramento do Batismo. Sendo a água fundamentalmente imagem da vida mesmo, e vida que só poderia ser entendida de forma plena se entendida como existência em comunhão com Deus. 286 Não parece aceitável identificar no texto de Ap 12,5 um contato mitológico. O contato estabelecer-se-ia, antes de tudo, com o judaísmo que atribui à água inúmeras funções. Cf. RENGSTOEF, K. H., potamo,j, GLNT, v. X, col. 1494-1496.

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que restaura, consola e transforma toda aridez em vida (cf. Is 43,19-20; 65,20-25).

Assim é que em Ap 7,17, o Cordeiro, o Ressuscitado, guiará qual pastor, “às fontes

de água da vida” (cf. Is 49,10; Sl 23,2)287. De igual modo, o contexto proposto pelo

Novo Testamento (cf. Jo 4,10) ecoa no Apocalipse, uma vez que os que serão guiados

necessitam, primeiramente, reconhecer o Cordeiro como seu Pastor e em seguida ter

sede. A este sedento, o próprio Deus concederá de beber gratuitamente da fonte de

água da vida (cf. Ap 21,6 cf. Is 55,1). Deus, portanto, seria o proprietário e o doador

desta “água da vida” que sacia o homem.

A noção de fonte, proprietário e doador da “água da vida” será elucidada em

Ap 22,1, posto que, neste texto, a água tem determinada a sua origem: ela brota do

trono de Deus e do Cordeiro. Deus e o Cordeiro são, assim, o princípio, a causa e os

concessores de toda a vida que existe na Cidade Santa. Este vínculo de dependência

não reduz o destinatário, antes, é caracterizado pelo amor entre o Criador e a criatura.

A existência de uma relação amorosa é corroborada por Ap 22,17, quando o Espírito

e a noiva dizem juntos: “Vem! Quem tiver sede venha, quem quiser receberá

gratuitamente água da vida”.

A presença do genitivo adjetivo “vida”, aplicado ao termo “água”, abarcaria

a idéia teológica de vida eterna, de plenitude, cuja origem está em Deus, como já

havia sinalizado Ap 21,6 e no Cordeiro, como indica a frase conclusiva de Ap 22,1b.

Sendo assim, a expressão “rio de água da vida” tornar-se-ia um símbolo do dom da

vida, que considerando o contexto de Ap 22,1a, deve ser identificado com a vida

eterna.

Entretanto, esta vida eterna só pode ser ofertada por Deus e pelo Cordeiro,

mas, da parte da criatura, um requisito torna-se imperativo: que ela livre e

amorosamente deixe-se conduzir pelo Cordeiro às fontes (cf. Ap 7,17). Conceber esta

expressão simplesmente como o curso da água de um rio não corresponderia ao

contexto da visão da Cidade Santa, como também não consideraria o segundo

genitivo, cuja função qualifica a água precisamente como “água da vida” ou “água

287 Smalley destaca que a cristologia deste texto é bastante elevada. Retomando Ap 1,12; 5,9 e 5,13, mostra que Jesus é um com Deus e que fora enviado pelo Pai para a redenção dos homens. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 200.

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que é [eterna] vida”. Esta leitura aproximar-se-ia mais do pensamento joaneu, que

vincula o vocábulo zwh, à noção de vida perene288.

b) Brilhante como cristal

O terceiro elemento da imagem do rio é a sua qualificação: ele é brilhante

como o cristal289. O termo lampro,j é usado, em outros momentos, para indicar o

linho puro da veste dos sete anjos que saem do templo e dos servos que participam

das bodas do Cordeiro (cf. Ap 15,6; 19,8). Neste último caso, possui função

metafórica significando as boas obras dos santos. Semelhante recurso é usado para

indicar uma voz nítida enquanto “ação vigorosa”290.

Já o termo kru,stalloj291 ocorre, apenas, quatro vezes em todo o livro. Em

Ap 4,6 a transparência do cristal é usada para indicar a espantosa visibilidade do

trono de Deus292. A imagem do mar, sobre a qual incide a comparação “como o

cristal” em Ap 4,6, pode ser entendida de dois modos: a imensa distância entre o

visionário e Deus ou a idéia de tranqüilidade293.

O segundo emprego do termo “cristal” encontra-se em Ap 21,11 e sugere

uma cena de beleza indescritível, com a luz da cidade celestial iluminando as

camadas de pedras multicores, edificadas umas sobre as outras, sendo que cada

camada estende-se ao redor da cidade inteira294. A cidade é um fulgor de luz e seu

288 Cf Jo 5,29; 6,35.48.51.68; 8,12; Ap 3,5; 7,17; 13,8; 17,8; 20,12.17; 21,6.27; 22,1.14.17.19. 289 Cristal, do hebraico vybiG' (Jó 28,18), xr;q, (Ez 1,22): ambas significam a substância vítrea; A Septuaginta leu krystallos, crystallus (Ez 1,22); a Vulgata traduziu como eminentia (Jó 28,18). Este era o mineral transparente que se assemelha a copo, provavelmente uma variedade de quartzo. Jó coloca isto na mesma categoria com ouro, ônix, safira, coral, topázio, etc. O Targum traz o xr;q, de Ezequiel por “elevado”, as versões traduzem através de “cristal”. Cf. HTTP://WWW.NEWADVENT.ORG/CATHEN/14304C.HTM. 290 Cf. LIDDELL-SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon, 464. 291 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 571. 292 Aune considera que a imagem do mar de cristal possui uma relação com as enormes bacias de bronze do templo de Salomão (cf. 1Rs 7,23-26; 2Rs 25,13). Cf. AUNE, Revelation 1-5, 296. Consideramos que esta aproximação encontra-se desprovida de ligações a nível lexical, ou mesmo simbólico, pois as bacias do templo de Salomão possuíam 30 côvados de diâmetro. Imagem finita e sem o comparativo com o cristal. 293 A imagem do mar de cristal, metáfora da tranqüilidade, está em oposição com a imagem de caos e pecado, aplicadas ao mar, encontradas em alguns textos veterotestamentários. Pecado e caos estariam superados. Cf. BRIGHTON, L., Revelation, 122. 294 Sobre o tema das pedras que ornamentam a Cidade Santa ver: MATHEWSON, D., “A note on the foundation stones in Revelation 21,14.19-20”, JSNT 25 (2003) 487-498.

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brilho é precioso e cristalino. O abundante emprego de pedras e metais preciosos

tornaria a construção da Cidade Santa altamente luxuosa295.

A Cidade Santa, Jerusalém, que desce do céu, de junto de Deus, é

comparada a uma pedra de jaspe cristalino (cf. Ap 21,11)296. Esta radiante e

deslumbrante glória de Deus é descrita em vários momentos na Sagrada Escritura297,

mas, na maioria dos textos, como descrição da glória futura, o que diferiria de Ap

21,11, onde a glória do Senhor é descrita tal como ela é: a presença imediata de Deus.

Agora, Deus habita a Cidade Santa juntamente com o Cordeiro e a noiva do

Cordeiro298. Desta forma, a comparação “como cristal” poderia descrever não

somente o brilho da pedra de jaspe, como também enfatizar a profunda experiência de

estar constantemente na presença de Deus299.

Um terceiro emprego encontra-se em Ap 21,18 onde o termo cristal é

vinculado ao ouro puríssimo que compõe a cidade300. Tal resplendor teria como

função refletir a verdadeira glória e majestade de Deus301. Semelhante objetivo seria

encontrado em Ap 21,21 quando as ruas da cidade são descritas com pavimento de

ouro puro, límpido como o cristal. A intensidade deste brilho será tamanha que os que

caminharem pelas ruas da Cidade Eterna refletirão a glória e a majestade de Deus302.

295 Cf. HILLYER, N., Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. V. II, São Paulo, Vida Nova, 20002, 1630. 296 Jaspe ou diamante é uma pedra cristalina translúcida que aqui foi usada para representar a glória de Deus (cf. Ap 21,11). Cf. http://www.fundacaobetel.com.br. Alguns estudiosos sugerem que se trataria de um tipo de jaspe branco, o que sugeriria a santidade de Deus. Cf. http://www.estudosdabiblia.net. Por outro lado, há uma pequena dúvida se a palavra hebraica, bem como a grega, representava uma variedade de quartzos, transluzentes e prismáticos. Era a duodécima jóia que brilhava no peitoral do sumo sacerdote (cf. Êx 28,20-39), e a primeira das doze empregadas nos fundamentos da Nova Jerusalém (cf. Ap 21,19). Cf. http://www.bibliaonline.net/scripts/dicionario.cgi. 297 Cf. Ex 40,34; Nm 9,15-23; 1Rs 8,11; 2Cr 5,14; Is 24,23; Ez 43,5; Jo 12,41. 298 Cf. THOMAS, R. L., Revelation 8-22. Chicago, Moody Press, 1995, 440. 299 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 547; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 390. 300 Para Smalley tal comparação aparenta contradição quando aplicada ao ouro. Divergimos desta posição, pois estando o texto imerso em uma estrutura simbólica, a intenção seria aquela de mostrar que o precioso metal possui um resplendor imenso. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 553; Mesma observação foi feita por Prigent. Cf. PRIGENT, P., Commentary on the Apocalypse of St. John. Tübingen, Mohr Siebeck, 2001, 616. 301 Cf. WALVOORD, J. F., The Revelation of Jesus Christ. Chicago, Moody, 1966, 325. 302 Cf. BRIGHTON, L., Revelation, 619.

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Por fim, em Ap 22,1 a expressão “brilhante como cristal” descreve em

primeiro lugar, a aparência do rio como uma espécie de vislumbramento303. Ele é

puríssimo e, por isso, suas águas são “brilhantes como cristal”304 e nada de impuro

pode permanecer nele. A impossibilidade da presença de algo impuro, neste “rio

brilhante como o cristal”, deve ser observada a partir dos textos precedentes onde o

comparativo “como o cristal”, freqüentemente, vem ligado à idéia da presença de

Deus. Deste modo, a expressão comparativa “como cristal” reforçaria a idéia de vida

em plenitude, de vida eterna e concomitantemente insere a impossibilidade da

presença de qualquer resquício do pecado. Uma vez que o contato com o “rio de água

da vida brilhante como o cristal” lava o homem do flagelo do pecado, capacita-o a

habitar na Cidade Santa e a entrar na íntima presença de Deus e do Cordeiro (cf. Ap

22,3-5)305.

c) O trono de Deus e do Cordeiro

A origem do “rio de água da vida” de Ap 22,1a é determinada em Ap 22,1b:

o trono de Deus e do Cordeiro. O verbo evkporeu,omai é comum nos textos

joaninos306, indicando a procedência; porém, com menção ao fluxo de rio que

procede do trono, encontra-se somente neste versículo. Fora do ambiente joaneu, o

verbo evkporeu,omai é encontrado em Mt 15,11 e Mc 7,20, indicando igualmente o

local de procedência. No caso específico destes textos, o interior do homem.

O termo qro,noj307, em seu sentido mais restrito, denota a exaltação

exclusiva e absoluta do soberano. Soberania exercida quando estiver assentado no

trono; a partir deste momento, assumirá totalmente seus poderes308.

303 Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 399. 304 Osborne retoma as imagens precedentes do cristal e o entende como ênfase à glória do éden final. Cf. OSBORNE, G. R., Revelation, 769. 305 Uma identificação da água cristalina com o Espírito Santo é defendida por Smalley, Beale e Kruse. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1104; KRUSE, C. G., John. Leicester, Inter-Varsity Press, 2003, 192-193; SMALLEY, S. S., “The Paraclete’: Pneumatology in the Johannine Gospel and Apocalypse”, 294-295. In CULPEPPER, R.. A., BLACK, C. C., Exploring the Gospel of John. In Honor of D. Moody Smith. Louisville, Westminister, John Knox Press, 1996. Esta aproximação parece-nos forçada, tendo em vista que o comparativo “como o cristal” visa destacar a pureza da vida que brota do trono de Deus e do Cordeiro para o sustento da Cidade Santa. 306 Cf. Jo 5,29; 15,26; Ap 1,16; 4,5; 9,18; 11,5; 16,14; 19,15. 307 Cf. SCHMITZ, O., qro,noj, GLNT, vol.IV, 583. 308 Cf. BLENDINGR, C., “poder”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. V. II, São Paulo, Vida Nova, 20002, 1704.

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No Antigo Testamento, são muitos os textos que recorrem ao termo trono:

ele é a sede daquele que julga (cf. Ne 3,7), é privilégio do rei (cf. Gn 41,40), é sinal

visível do poder do rei (cf. 2Sm 3,9; 14,9) e da justiça (cf. Sl 122,5). Recebe especial

relevo quando indica o trono de Davi (cf. 2Sm 7,13; 1Cr 28,5; 29,23). Na literatura

profética, o termo trono assume um teor escatológico: em Jr 3,17 o trono é

comparado à cidade de Jerusalém renovada. No Novo Templo (cf. Ez 43,7), o trono

de Deus é considerado o lugar de sua santa habitação entre os filhos de Israel. A

transcendência de sua soberania está presente também neste mundo (cf. Jr 17,12s). Os

Sl 47,9; 93,2 concentram o conteúdo escatológico, próprio da literatura profética e o

de governo soberano onde o poder do trono de Deus atinge a todos, sem limite

temporal (cf. Lm 5,19).

O trono de Deus, enquanto perspectiva escatológica de juízo, está ausente

no judaísmo helenístico. O juízo encontrar-se-á manifesto na eficácia da palavra de

Deus que se lança qual guerreiro inexorável do trono real dos céus para uma terra de

extermínio (cf. Sb 18,15). A sabedoria é também definida como companheira do

trono (cf. Sb 9,4): ela pode ser enviada sobre a terra para socorrer os homens (cf. Sb

9,10).

Já o judaísmo palestinence, particularmente o rabínico, por sua vez, voltava-

se mais para a definição “trono da glória” (cf. Sl 93,2). Esta definição terá influência

sobre os Evangelhos Sinóticos, nos quais indicará que o Filho do Homem estará junto

do Pai para julgar e reinar (cf. Mt 19,28) e seu juízo atingirá todas as nações (cf. Mt

25,31s).

A perspectiva escatológica do Antigo Testamento será ampliada, no Novo

Testamento, pelas vicissitudes salvíficas e destinada ao seu cumprimento final. Ao

termo “trono”, associam-se as imagens do céu como trono de Deus (cf. Mt 5,34;

23,22), e por esta razão, não se pode jurar por ele; em outros textos, trono é uma

alusão ao trono messiânico (cf. Lc 1,32) que o Filho de Maria receberá por ser filho

de Davi, indicando que a casa de Davi tem uma soberania eterna (cf. 2Sm 7,14), ou

apenas um trono terreno (cf. Lc 1,52). O trono é concedido ao Cristo por seu Pai, bem

como o seu poder de juiz sobre toda a terra (cf. Mt 25,31s). Na Carta aos Hebreus, o

trono de Deus é definido como o “trono da graça” (cf. Hb 4,15-16).

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No Apocalipse, o trono de Deus converte-se em símbolo da soberania de

Deus e do Cordeiro. O trono de Satanás (cf. Ap 2,13) se coloca em contradição com o

trono de Deus por ser um trono mentiroso: o texto de Ap 2,13 parece tratar de um

culto a uma serpente309, comum na cidade. A meta desta peregrinação, repleta de

elementos pagãos, era o trono do adversário de Deus310.

Em íntima relação com o texto de Ap 2,13 está Ap 13,2, no qual o dragão

concede ao anticristo “a sua força, o seu trono e grande autoridade”. Os impérios

agiriam agora com todo o poder. Tratar-se-ia da perversão da verdadeira intenção de

Deus para o papel do Estado (cf. Rm 13,1-7): é a negação do poder absoluto de

Deus311 e a tentativa de destruir a Igreja através de um falso poder ilustrado pelo

elenco de animais, que simbolizam impérios (cf. Ap 13,1-2; cf. Dn 7,2-7).

O trono de Deus e toda a simbologia de soberania e de seus ocupantes têm

sua primeira apresentação nos c. 4-5. Sendo assim, compreendê-los tornar-se-ia

condição para a concepção de Ap 22,1b. Por esta razão nos deteremos, um pouco

mais, sobre estes capítulos a fim de averiguar como o texto do Apocalipse apresentou

a figura do Deus de Israel e o símbolo do Cordeiro.

309 Cf. SCHMITZ, O., qro,noj, GLNT, vol.IV, 588. Kistemaker diz tratar-se de Asclepius simbolizado em uma serpente, a associação com a representação de Satanás (cf. Gn 3,1) foi imediata. Este deus era classificado como salvador de seu povo. Cf. KISTEMAKER, S. J., Revelation, 129. 310 Não está claro quem seria este adversário de Deus. Kistemaker indica um ídolo pagão, Zeus, o próprio personagem bíblico ou o Imperador. Cf. KISTEMAKER, S. J., Revelation, 129. Beale apresenta os mesmos elementos de possibilidades, mas acrescenta que a política do Culto ao Imperador trazia grandes dificuldades para os cristãos da cidade de Pérgamo. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 246.

311 O conflito entre cristãos e o império baseava-se em circunstâncias legais, uma vez que os primeiros não concordavam em considerar o imperador como “senhor” e “deus”, o que lhes acarretava sanções legislativas e normativas. Pode-se desta forma dizer que as perseguições foram aplicações da lei. Havia, porém, uma discreta indulgência dos romanos para com os deuses e cultos pátrios. Assim é que o monoteísmo judaico foi considerado como religião lícita. O cristianismo não gozou desta indulgência por apresentar-se nitidamente distinto do judaísmo e portador de uma missão que considerava a destruição de toda a forma de idolatria. Por esta razão, logo foi considerado como um perigo à religião nacional e ao fundamento de todo o império. A originalidade do cristianismo está no fato de pôr o Reino de Deus à parte dos reinos deste mundo. É um movimento em sentido oposto aos de então, que buscavam confundir o império ou as diversas formas de governo com a religião. A razão das perseguições apóia-se, pois, no fato de serem os cristãos praticantes de uma religião desligada de uma cidade ou nação, desprovida de templos ou imagens, sem sacrifícios e culto conhecido. Eram, portanto, homens “ateus”. Sobre o tema ver: Cf. KRAYBILL, J. N., Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse, JSNT 132, Sheffield, Sheffield Press, 1996; GONZÁLEZ RUIZ, J. M., Apocalipsis de Juan, Madri, Cristiandad, 1987; FRIESEN, S., Imperial Cults and the Apocalypse of John: Reading Revelation in the Ruins. Oxford, Oxford University Press, 2001.

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A cena do c. 4 descreve em detalhes tudo o que está à volta do trono, mas

torna-se parcimonioso ao apresentar Aquele que se encontra assentado no trono. Ele

não é outro senão o Deus de Israel. Este, agora entronizado e objeto de adoração, é

identificado como o` ku,rioj (cf. Ap 4,8)312. A LXX traduziu normalmente o nome

próprio do Deus de Israel hwhy, por ku,rioj. Por isso, o leitor/ouvinte deste texto

identifica aquele que está sendo descrito no trono como o Deus Único de Israel313.

O emprego do artigo definido o` antes de qeo,j demanda atenção, pois sempre

antecede e define o substantivo qeo,j, exceto em Ap 7,2; 21,3.7314. O uso do artigo

tem como objetivo enfatizar que Aquele de quem se fala não é outro senão o Deus

único e verdadeiro e fora dele não há outro315. Contrastando, assim, com os outros

deuses e as outras religiões.

A cena proposta no c. 4 continua ao longo do c. 5, porém, aqui, é

introduzido um novo personagem: o Cordeiro. Este foi posicionado entre o trono de

Deus e dos anciãos (cf. Ap 5,6). Isto sugere que os que ocupam os tronos em Ap

4,4.9.10 não possuem a mesma dignidade do Cordeiro, visto que, diante deste,

aqueles se prostram em adoração.

312 O c.4 não se detém sobre uma descrição detalhada do trono, mas torna-se meticuloso na descrição de tudo o que está ao seu redor e com ele se relaciona (cf. Ap 4,3-7). Toda a função cultual desenvolvida pelos seres viventes (cf. Ap 4,8-9) e pelos anciãos (cf. Ap 4,10-11) está voltada para Aquele que se encontra sobre o trono. A locução “trono de Deus” mostra o epíteto de Deus na sua infinita glória de criador (cf. Ap 4, 9.10; 5,1.7.13; 7,15; 19,4; 21,5). 313 Smalley entende que não há uma imediata apresentação da identidade daquele que está no trono. Em contraposição a Kistemaker, que considera ser a proposta do c.4 demonstrar que Deus é o supremo soberano do universo. Enquanto Park indica que o trono seria um recurso para enfatizar a inacessibilidade e a transcendência de Deus. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 114; KISTEMAKER, S. J., Revelation, 185; PARK, S.-M., More than a Regained Éden: The New Jerusalém as the Ultimate Portrayal of Eschatological Blessedness and Its Implications for Understanding the Book of Revelation. Trinity Evangelical Divinity School, 1995, 225. As três propostas apresentam elementos válidos, contudo, considera-se que o trono no livro do Apocalipse segue como um símbolo de soberania (cf. Ap 1,4; 3,21). 314 A ausência do artigo definido em Ap 7,2 não configura uma alusão a um deus estrangeiro. Antes a locução qeou/ zw/ntoj oferece ao leitor/ouvinte uma síntese por antonomásia do Deus Único de Israel. Em Ap 21,3 é rememorada a promessa da habitação do Deus de Israel em meio a seu povo (cf. Lv 26,11-12), enquanto Ap 22,7 traz o tema da herança, freqüente no Antigo Testamento: Eu serei o seu Deus (Pai), ele será meu filho (e meu povo). 315 Cf. Dt 4,35.39; 7,9; Js 22,34; 1Rs 18,39; Is 37,16; 45,18.

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O símbolo do Cordeiro foi cuidadosamente cunhado pelo autor do

Apocalipse316: ele está de pé, como imolado, possui sete chifres e sete olhos. Após

tão detalhada descrição, o Cordeiro dinamizará todas as cenas do livro até que se

encontre assentado no trono de Deus na Jerusalém Celeste (cf. Ap 22,1b).

O termo avrni,on “Cordeiro”317, aplicado a Cristo ressuscitado, é uma

criação redacional exclusiva do Apocalipse. Fora deste livro, quando se faz alusão a

cordeiro, o termo empregado é sempre avmno,j sem a conotação da ressurreição318. O

termo avrni,on ocorre em Jo 21,15, mas a semântica diverge daquela do Ap,

vinculando-se ao paralelo estabelecido com a expressão pro,bata (cf. Jo 21,16-17).

O Cordeiro apresentado em 5,6 possui como atributos estar de pé e ser

imolado319. Deter-nos-emos um pouco mais na análise deste texto tendo em vista

que há entre ele e Ap 22,1 uma especial relação, posto que o Cordeiro aqui descrito é

o mesmo que se sentará no trono de Deus. Deste modo, entender este símbolo tornar-

se-ia vital para compreender a motivação de Deus dividir o seu único trono320.

316 Há um liame literário entre a expressão “Cordeiro” de Ap 5,6 e “Cordeiro de Deus” de Jo 1, 29.36. Cf. NEGOITSA, A., DANIEL, C., “L’Agneu de Dieu est le Verbe de Dieu”, Novum Testamentum 13 (1971) 24-37. 317 O termo avrni,on, encontrado no Novo Testamento, pertence a uma evolução da palavra avmno,j encontrada a partir da época clássica na LXX como resultado da tradução da palavra hebraica kebés. Cf. JEREMIAS, J., “avmno,j”, GLNT, vol. I, 917. 318 O termo avmno,j é encontrado ainda em Jo 1,29.36; At 8,32; 1Pdr 1,19. Em Jo 1,29.36 possui uma semântica vinculada ao Cristo que padece a morte. Nesta ótica, o termo possuiria um valor comparativo: Cristo que morre como cordeiro. Este cordeiro que morre, expresso pela locução o avmno,j tou/| qeou/| está, segundo J. Jeremias, calcada sobre a expressão aramaica talja- de- la-ha-, que tanto indicava o cordeiro, como o jovem servo. Desta forma, parece ser a intenção do autor do IV Evangelho utilizar-se do sentido original da expressão aramaica para dar maior ênfase ao seu desejo de aproximar o termo avmno,j da imagem de Jesus como o Servo de Deus. Para J. Jeremias, a primeira comunidade cristã vê Jesus sob o prisma de Is 53,7, o servo de Deus. Em outros lugares do Novo Testamento (cf. 1Cor 5,7; Jo 19,36), os autores encaminham-se para este mesmo pensamento. Tal comparação deve-se ao fato de ter sido ele crucificado nas proximidades da páscoa judaica: Seria Jesus, portanto, o autêntico cordeiro pascal. Ao identificar Jesus com o avmno,j, a comunidade cristã tem como pressuposto três elementos: a paciência com que Jesus sofre (cf. At 8,32), sua imunidade ao pecado (cf. 1Pdr 1,19) e a força redentora de seu sacrifício (cf. Jo 1,29.36; 1Pdr 1,19). A força redentora do sangue de Cristo realizou a libertação da escravidão do pecado (cf. 1Pd 1,18). Esta libertação atinge a toda a humanidade e, por esta razão, a força expiatória do cordeiro–Cristo não é limitada como aquela do cordeiro pascal cujo benefício atinge apenas a Israel. Antes, sua força atinge toda a humanidade, sem distinção. J. Jeremias admite ser esta forma de concepção, o fundamento para a origem da designação de Jesus como avmno,j. Cf. JEREMIAS, J., “avmno,j”, GLNT, 917, 918 e 920. 319 Sobre o tema do Cordeiro do Apocalipse merece atenção o minucioso trabalho de Ugo Vanni. Cf. VANNI, U., L’ Apocalisse, 165-192. 320 Sobre o tema do simbolismo ver: VANNI, U., “Il simbolismo nell’Apocalisse”, Gregorianum LXI (1980) 461-506.

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A postura ereta esthkój é um simbolismo que remete à idéia de

ressurreição321, uma vez que no Apocalipse, e`sthkój possui uso típico para indicar

um estado glorioso, triunfante322.

No Apocalipse i[sthmi é aplicado ao Senhor que está à porta e bate (cf. Ap

3,2), ao Cordeiro que encontra-se de pé sobre o monte de Sião junto com os 144.000

(cf. Ap 14,1) e aos que venceram a besta e estão de pé sobre o mar de vidro, tendo em

suas mãos cítaras e cantam o cântico de Moisés e do Cordeiro (Ap 15,2-3). Em Ap

11,11, o verbo é empregado com relação aos homens, quando recebem, após três dias

e meio, o sopro de vida de Deus323. A idéia de vitória sobre o mal e o pecado

perpassa os textos.

O segundo elemento da descrição do Cordeiro é o verbo sfa,zw. O emprego

de i[sthmi associado a sfa,zw só é encontrado em Ap 5,6. O Cordeiro está “como

imolado” w`j evsfagme,non. O verbo sfa,zw possui aqui um valor sacrifical,

expiatório324, mas no Apocalipse há um distanciamento desta forma de compreensão

e utiliza a forma verbal de modo enfático, sinalizando uma morte violenta impingida

ao Cordeiro (cf. Ap 5,6.9.12; 13,8)325.

Em outros momentos, o verbo sfa,zw é aplicado à sorte dos cristãos mortos

por se manterem-se fiéis (cf. Ap 6,9; 18,24). Talvez se possa considerar esta dupla

aplicação verbal como uma aproximação da imolação de ambos, sendo a de Cristo a

detentora dos benefícios da redenção.

Esta morte é o cume de todo o processo salvífico e visa à constituição de um

povo de reis e sacerdotes que é propriedade exclusiva de Deus326. Por sua morte e

entrega, o Cordeiro compra para Deus, a preço de seu sangue, homens de todas as

tribos (cf. Ap 5,9-10; cfr. Rm 8,24; 1Pdr 1,18-19). A compra destes homens tem em

vista a formação de um reino e sacerdotes que reinarão para sempre. O reino no

321 Cf. O verbo e`sthko.j, quando relacionado com o Cristo, pertence a uma significação teológica precisa: a ressurreição. Cf. GRUNDMANN, W., “i[sthmi”, GLNT, 1172. 322 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida, 267. 323 No Novo Testamento, há ainda um contato literário em At 7, 55-56, quando Estevão vê Jesus de pé, vencedor glorioso, testemunha fiel e definitiva, à direita de Deus. 324 Cf. MICHEL, O., “sfa,zw”, GLNT, 343-370. 325 Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 182; CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida, 267. 326 Cf. Ap 1,5-6,9; 12,10; 20,6 e também Ex 19,6; Is 61,6.

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Apocalipse é o lugar onde os cristãos vivem como irmãos e companheiros e é uma

realidade eminentemente soteriológica (cf. Ap 22,5)327.

O advérbio de comparação w`j estabelece uma relação paradoxal: o Cordeiro

está de pé como morto. Neste versículo, o advérbio assume um valor subjetivo, uma

vez que o seu emprego, juntamente com evsfagme,non, dá o motivo da ação

expressada pelo verbo. `Wj quer assim indicar que o Cordeiro não permaneceu

prisioneiro da morte, mas que ele a venceu e possui o domínio sobre o mundo328.

Em seguida, o Cordeiro toma posse do livro, símbolo de seu domínio sobre toda a

história, e os anciãos adoram aquele que está sentado no trono e ao Cordeiro (cf. Ap

4,10; 11,16; 19,4)329.

Assim, o símbolo do Cordeiro demonstra o contato com a noção do Deus

Único de Israel e com a morte redentora sofrida pelo Messias. Deste modo, o autor

sagrado sintetiza a essência da Pessoa Divina juntamente com sua missão e, com isto,

auxilia o leitor/ouvinte nas cenas que virão em seguida.

Imediatamente após a descrição do Cordeiro de pé como imolado, o texto

proporciona a descrição da atividade do Cordeiro. A expressão kai. h=lqen kai.

ei;lhfen indica o permanente resultado da ação do Cordeiro, que não só se aproxima

do trono para receber o livro, mas, por meio deste gesto, sinaliza a sua origem divina.

327 Cf. SCHMIDI, K. L., “basileu,w”, GLNT, 184-185. 328 A descrição do Cordeiro engloba ainda os sete chifres e os sete olhos. A expressão e;cwn ke,raj e`pta possui como significado tanto a força como a dignidade (cf. Nm 23,22; Dt 33,17; 1Rs 22,11; Sl 112,9; Zc 2,1-4; Dn 7,7-8.24). A imagem dos chifres está intrinsecamente ligada à do Cordeiro: é ele o portador da onipotência representada por esta imagem. O livro do Apocalipse, com efeito, apresenta outros personagens portadores de chifres, porém a sua significação e simbologia numérica são outras, diferentes daquela dada ao Cordeiro (cf. Ap 12,3; 13,1.11; 17,3.12); somente ele possui sete chifres, que é a totalidade e a plenitude divina da potência. O último símbolo da descrição do Cordeiro é ovfqalmo,j e`pta, que o autor logo explica: “símbolo dos sete espíritos de Deus mandados sobre toda a terra”. É muito provável observar-se aqui uma alusão a Zc 4,10, no qual encontra-se a questão da onisciência divina com a imagem dos sete espíritos, atributo do rebento da raiz de Jessé em Is 11,1-2. A mesma imagem retorna em Ap 1,4; 4,5. Os olhos (ovfqalmo,j) demonstram a onisciência e a providência universal, representam o Espírito Santo prometido por Jesus aos discípulos para que dessem testemunho d’Ele e de seu Evangelho até o fim do mundo (cf. Jo 15,26; 16,14). Cf. FOERSTER, W., “ke,raj” GLNT, 349-358. O verbo avposte,llw (enviar) é raro. No Apocalipse, somente em três momentos é possível encontrá-lo: 1,1; 5,6; 22,6. A expressão “toda a terra” é única em todo o livro. Cf. CHARLIER, J.-P., Comprendre l’Apocalypse, 159. 329 Cf. BORNKAMM, G., “pre,sbuj”, GLNT, 129.

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Entregando ao Cordeiro o livro, o Pai lhe outorga a função régia e judicial, ou seja,

Ele é Rei e Juiz330. O Cordeiro possui, portanto, o arbítrio sobre o futuro.

Com a entrega do livro, o plano de Deus e o seu projeto sobre a história

estão nas mãos de Cristo, que, progressivamente, abrirá o livro e realizará o plano

divino com a plenitude da potência e da divina sabedoria. Agora é chegada a hora de

explodir uma solene liturgia de dimensões cósmicas (cf. Ap 5,8-9).

A adoração imediata do tribunal divino sublinha o significado da ação do

Cordeiro que possui o livro de Deus. Ao Cordeiro, vem transferida a prerrogativa

própria de Deus: o livro e, em conseqüência, a adoração reservada Àquele que está

sentado sobre o trono. Este versículo tem como cerne a apresentação do Cordeiro

como Deus (cf. Ap 5,8). Esta apresentação implica no ato de prostrar-se, que é um ato

de adoração. Mas semelhante atitude supõe uma tomada de consciência daquele que é

o Cordeiro e de sua transcendência reconhecida quando recebeu (tomou) o livro. O

fato de tomar consciência é ação particular e não do grupo. Ap 5,8 é a única menção

de uma prostração diante do Cordeiro, já que, nas demais cenas de adoração, ela

sempre acontece diante de Deus (cf. Ap 7,11; 11,16-24; 19,4).

Com a expressão o[ti evsfa,ghj, é posta em evidência a paixão, elemento

literário central do canto do Cordeiro (cf. Ap 5,9); desta depende a dignidade de

receber o livro e de abrir-lhes os selos, seja tudo quanto precede ou quanto segue.

vHgo,rasaj tw/|| qew/| exprime a idéia de libertação por meio de um resgate,

embora não haja uma explicitação do poder ou da esfera da qual o Cordeiro resgata.

Há apenas a destinação do adquirido: “para Deus”.

Encerrada a apresentação solene do Cordeiro e sua entronização, o Cordeiro

estará abrindo os selos do livro (cf. Ap 6,1-8,1), porque é o Senhor da história (cf. Ap

5,8-9). Em seguida, descortinam-se as dores e sofrimentos vividos pela humanidade,

que em cada período histórico opta por permanecer fiel ao Cordeiro (cf. Ap 6,3-15).

Uma opção contrária tem como conseqüência o sentimento de pavor diante do

Cordeiro e daquele que se assenta no trono (cf. Ap 6,16-17).

O ato de optar pró ou contra o Cordeiro distingue aqueles que permanecerão

diante do trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 7,15). Doravante, o Cordeiro será o seu

330 Cf. CORSINI, E., L’Apocalisse prima e dopo. Torino, SEI, 1993, 144-146.

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Pastor, ele vai à frente desta multidão, conduzindo-a com segurança em sua

história e atento a cada lágrima derramada (cf. Ap 7,17).

Mais adiante, em Ap 17,7-14, ficará evidente o elemento desta opção: o

Cordeiro ou a Besta. A Besta é, no Apocalipse, um enigmático símbolo que sintetiza

em si o mal personificado. Este mal, contudo, não deve exercer sobre aquele que opta

pelo Cordeiro um temor desmedido, pois ele será derrotado, o Cordeiro triunfará

sobre ele (cf. Ap 18).

Após vencer todos os seus inimigos, o Cordeiro será revelado como o

templo da Nova Jerusalém (cf. Ap 21, 22). O templo, lugar de adoração, de encontro

com Deus é, a partir de agora, lugar de adorar também ao Cordeiro. Nesta mesma

cidade, o Cordeiro celebrará suas bodas e, ansiosamente, aguardará a consumação dos

tempos (cf. Ap 22,17).

O Cordeiro é, portanto, no Apocalipse, um símbolo de máxima importância.

Permeia todo o livro e paulatinamente vai sendo revelado enquanto Deus. As mais

variadas passagens que aludem ao termo “Cordeiro” dependem diretamente da grande

descrição da entronização do c. 5. Lá, de forma sintética, o autor sagrado cunhou o

grande símbolo.

Sendo assim, em Ap 22,1.3, o termo “Cordeiro” deverá ser compreendido a

partir do cenário descrito no c. 5: o Cordeiro é aquele que, tendo sofrido a morte, não

permanece nela (v. 5,6), antes, lhe confere uma potência redentora; por conseqüência,

aqueles que permanecerem fiéis ao Cordeiro também não morrerão para sempre (cf.

Ap 6,9; 18,24); Ele é o juiz de toda a história; recebe os atributos divinos de

onisciência e onipotência (v.5,6).

Anexada a estas características cunhadas pelo autor sagrado, está aquela do

local onde se encontra o Cordeiro neste texto: o “trono” de Deus. Através desta

imagem espacial é enfatizada a soberania única Deus e do Cordeiro e a plena

comunhão existente entre ambos331.

Considerando os elementos acima, seria possível dizer que a expressão “que

saía do trono de Deus e do Cordeiro” é uma imagem que situa, não só o local de

331 Cf. PARK, S.-M., More Than a Regained Éden: The New Jerusalem as the Ultimate Portrayal of Eschatological Blessedness and Its Implications for Understanding the Book of Revelation. Ph. D. diss. Trinity Evangelical Divinity School, 1995, 225.

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procedência da “água da vida”, mas também a razão última deste atributo. Portanto, a

vida eterna que a “água da vida” contém é, sempre, o dom da redenção eterna dos

pecados, conquistada pelo Cordeiro, como cumprimento das promessas de YHWH ao

povo da Antiga Aliança, a fim de que o homem possa ter comunhão de vida com seu

Deus.

Em outro sentido, porém, a imagem de Deus e do Cordeiro sentados em um

mesmo e único trono, indica que eles serão co-regentes por toda a eternidade332. O

Cordeiro assentado ao lado do Pai sobre o mesmo trono é a novidade do livro do

Apocalipse.

d) A árvore da vida

Às margens do “rio de água da vida”, que sai do trono de Deus e do

Cordeiro, cresce a “árvore da vida”, que produz frutos a cada mês e suas folhas

servem para a cura das nações. A imagem da “árvore da vida” possui vínculos em

nível de vocabulário com os textos de Gn 2,9; 3,22.24; Pr 3,18; 11,30 e Ez 47,12.

Dentre as muitas árvores que Deus criou, havia no meio do Jardim do Éden a “árvore

da vida” e a “árvore do conhecimento do bem e do mal”333. Comendo desta última,

332 Aune alega que à expressão “o trono de Deus” foi acrescentado “e do Cordeiro”. Esta conjectura não nos parece viável tendo em vista todos os elementos propostos na descrição do Cordeiro de Ap 5,6. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1177. 333 A expressão “árvore da vida” difere do termo “árvore” já que é normalmente utilizado para identificar tanto a árvore viva, como a morta. Esta última era instrumento de tortura, imposto aos escravos, maníacos e prisioneiros sob forma de um colar, canga ou cepo aos pés. No grego, profano possui idéia de humilhação de vergonha, sentido que foi incorporado ao termo cruz no Novo Testamento. O uso de “árvore” no Novo Testamento no sentido de cruz só pode ser entendido a partir da LXX. Dela deriva o quérigma cristão primitivo de At 5,30; 10,39; 13,29 e relaciona-se com o texto do Dt 21,22-23 no qual fora prescrito ao homem que tivesse cometido um delito. Este passaria a ser considerado um maldito de Deus. Cf. SCHNEIDER, J., “xu,lon”, GLNT, vol. VIII, 103-114. Tendo em vista o uso específico do termo “árvore” no NT, a proposta de Hermer, Delebecque e Lupiere torna-se um tanto inviável. De fato, foi sugerido por estes autores que a menção à “árvore da vida” constitui uma alusão explícita à cruz de Cristo na tradição cristã. Sendo assim, “árvore” receberia um novo contexto no uso cristão e teria carregado essa nuance em especial para os leitores do Ap 22,2. Isto poderia ocorrer apoiado pela proeminência do tema da morte de sacrifício de Cristo no Ap. Mas a freqüência do termo “árvore” e a ausência qualificação desta árvore como de “vida” leva a desqualificar a necessidade de encontrar uma referência além da imagem de Ez 47,12 e Gn 2,9. Cf. HEMER, C. J., The Letters to the Seven Churches of Ásia Minor in their Local Setting. JSNTSup, Sheffield, Sheffield Press, 1986, 42-44; DELEBECQUE, É., “Où situer l’Arbre de vie dans la Jérusalem celéste? Note sur Apocalypse XXII, 2”, Revue Thomiste 88 (1988) 124-130.; LUPIERI, E., L’Apocalisse di Giovanni, 350. O mesmo pensamento pode ser encontrado em Chilton. Cf. CHILTON, D., The Days of Vengeance: An Exposition of the Book of Revelation. Fort Worth, Dominion Press, 1987, 567.

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em desobediência ao mandamento de Deus (cf. Gn 2,16-17; 3,2-11), o homem foi

retirado do jardim (cf. Gn 3,22-24). O texto de Gênesis não revela exatamente o papel

da árvore da vida, mas, permite perceber que após o episódio do pecado, esta árvore

tornou-se motivo da vigilância de Deus (cf. Gn 3,22). De fato, estando em estado de

pecado, Deus não permitiu que o homem tomasse da árvore da vida. A partir deste

momento, a morte, fruto do pecado, passa a ser o futuro do homem e não mais a vida

(cf. Gn 3, 23-24). O texto de Ez 47,12 será analisado posteriormente no capítulo 3

deste trabalho.

A expressão “árvore da vida”, encontrada em Pr 3,18 distancia-se

semanticamente tanto do texto do Ap 22,2 como daquele de Gn 2,9; 3,22.24 ou de Ez

47,1-12, denotando a aquisição da sabedoria e do conhecimento; os justos são como

uma “árvore da vida” e serão felizes. Já em Pr 11,30, ela é o fruto daquele que é

justo334.

No judaísmo tardio, a “árvore” oferecerá um alimento sobrenatural que

produz a imortalidade (cf. Dn 4, 7-14). A posse desta árvore será o prêmio dos santos

no paraíso, residência daquele que crê335. Tal idéia pode ser encontrada em alguns

textos do Apocalipse (cf. Ap 2,7; 22,2a).

Na literatura judaica, o Livro 1 Enoque apresenta uma observador que, em

sua viagem através de conhecimento celestial, é escoltado a vários locais e lhe são

mostradas sete montanhas cercadas por árvores cheirosas (24,3-4; cf. 10,18-19).

Dentre estas, uma árvore é destacada por conter uma fragrância sem precedentes,

belo fruto, e cuja madeira nunca se dissolve (24,4). Esta árvore cheirosa é reservada

para o tempo futuro, e direcionada ao justo (25,5). Na conclusão de todas as coisas,

334 Mathewson recorre a alguns textos de Isaías para estabelecer um contato com Ap 22,2. Os textos, contudo, estão desprovidos de um real contato semântico e o contato parece mais coerente com Ap 21,2-5. Acredita-se que o que levou este autor a tal aproximação entre os textos foi a idéia de uma transformação da situação vivenciada pelo autor do texto isaiano para uma condição semelhante à de um paraíso (cf. Is 41,18-19; 43,19-20; 49,10; 51,3), onde árvores aparecem e rios e piscinas nascem em meio ao deserto, dando ao povo de Deus o que beber (cf. Is 35,6-7). O autor chama atenção para a expansão introduzida no Texto Massorético tanto pela LXX como pelo Targum Is 65,22, “como os dias de uma árvore, assim serão os dias do meu povo como os dias de uma árvore da vida”. Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and A New Earth, 192. 335 Cf. SCHNEIDER, J., “xu,lon”, GLNT, 113.

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será apresentada com seu fruto da vida (cf. 25,6), e Deus a plantará na direção da casa

do Senhor, associando-a com o templo336.

No âmbito neotestamentário, a expressão “árvore da vida” ocorre apenas no

Apocalipse. Nos demais livros do Novo Testamento, encontra-se somente o termo

“árvore” destituído da qualificação “da vida”337. A fórmula “árvore da vida”, em Ap

2,7, está ligada à idéia de prêmio concedido ao vencedor. Tal vitória pertenceria tanto

à esfera espiritual quanto à material, pois tratar-se-ia da vitória sobre os desvios de

doutrina pregados na comunidade338 ou a perseguição imperial339. A imagem da

336 Cf. DIEZ MACHO, A., (ed.), Apocrifos del Antiguo Testamento, II, 319-352. Mathewson tomando por base o 1 Enoque ainda propõe que o observador vai para outras localidades, revelando inúmeras características semelhantes às de um paraíso (rios, vales, inúmeras árvores com fragrância e montanhas altas). No c. 28 o observador vê o deserto com árvores e uma nascente que jorra longe. No c. 32 o observador é levado por um angelus interpres ao jardim e observa muitas árvores com fragrância, mas com apelo direto à narrativa da criação o autor chama atenção para árvore em particular, ‘a árvore da sabedoria, da qual quem comer terá grande sabedoria’ (32.3). Entende que se poderia encontrar paralelos importantes com o Ap 22,1-2 ao longo de 1 Enoque. Entretanto, consideramos que estas aproximações seriam tênues e desprovidas do valor semântico encontrado na literatura vétero-testamentária e mesmo, considerando o estudo sobre a “água da vida” e o local de sua procedência: o trono de Deus e do Cordeiro, careceria a esta literatura o fundamento para a árvore receber tamanha distinção. 337 O termo “árvore” é identificado com o lenho sobre o qual Jesus foi pregado (cf. Lc 23,31), um pedaço de pau usado para defesa (cf. Mt 26,47-55), o cepo de tortura onde eram fixados os pés dos prisioneiros (cf. At 16,24). A identificação do lenho, a árvore morta, com a cruz de Cristo possui uma ampla conotação teológica tendo em vista a leitura de Dt 21,22 que prescreve a pena capital: “seu corpo será suspenso em uma árvore”, para aqueles que cometem crimes hediondos. O condenado a este tipo de morte é um maldito de Deus. O livro dos Atos dos Apóstolos mostra a superação desta maldição conquistada pelo Cristo elevado por Deus à sua direita (cf. At 5,30; 10,39; 13,29). Paulo recorre à tese da maldição para mostrar que Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se maldição por nós. Deste modo, estabelece outra aplicação para a maldição deuteronomista, a Lei é que se tornou causa de maldição. Jesus não estava sob a maldição porque não conhecia o pecado, mas tomou sobre si, de modo vicário, as faltas humanas, a fim de restaurar a vida humana (cf. Gl 3,13). O texto da 1Pd 2,24 segue a mesma linha vicária de Paulo: o pecado do homem foi carregado pelo corpo inocente de Cristo, e Ele os cancelou com sua morte sacrifical, outorgando ao homem a liberdade. 338 Os desvios de doutrina teriam sido introduzidos pelos nicolaítas e estariam relacionados com a prática das obras. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St John, 29. 339 Após a morte do Imperador Júlio César, teve início o culto ao imperador. Mas somente com o reinado de Augusto esta forma de culto se desenvolverá e constituirá o aspecto mais original da política religiosa de Augusto. Sob seu governo, foram levadas a termo as intenções de conferir ao soberano uma aura e um valor sagrados. O instinto político do imperador o fez compreender que o cultivo da religião estaria intrinsecamente relacionado com a solidez do Império: era, por assim dizer, a política religiosa de Augusto. Não há dúvidas que o culto ao imperador foi o legado mais importante de Augusto a seus sucessores. A grande novidade deste período é que, ao lado dos deuses que protegiam o lar, as divindades domésticas e familiares, honrava-se também Augusto como protetor de cada casa e de cada lugar. A religião do Estado assumiu um status mais elaborado a partir de Domiciano (81-96 d.C.). Era do agrado deste Imperador ver aplicado à sua pessoa o título de “senhor” e “deus”. Esta nova ordem terá

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“árvore da vida” remeteria ao destinatário da carta à Igreja de Éfeso e à cena de

paraíso (cf. Gn 2-3), mas, ainda como uma promessa. Para estar na posse deste

prêmio, faz-se mister tornar-se um vencedor.

Em Ap 22,14, o acesso à árvore da vida decorre do ato de lavar as vestes no

sangue, que não pode ser outro senão o sangue do Cordeiro imolado (cf. Ap 7,14;

5,6). Esta metáfora está ligada ao sacrifício da cruz de Cristo para a salvação da

humanidade. A renovação moral e espiritual tornar-se-ia um pré-requisito para o

acesso à árvore da vida340. É a última bênção prevista neste livro e somente estará

franqueada àqueles que, tendo entrado na Cidade Santa, venceram todo o mal e todo

o pecado341. O termo evxousi,a indica que os santos, doravante, terão livre acesso a

árvore da vida, justamente porque já estão na posse da vida eterna.

Um cenário contrário ao de Ap 22,14 é encontrado em Ap 22,19, no qual há

a exclusão da participação na árvore da vida e da Cidade Santa para aquele que

acrescentar ou retirar alguma coisa às promessas deste livro342. O ato de introduzir

ou excluir elementos às palavras proféticas do Apocalipse converte-se em matéria de

juízo, pois seria inserir idéias e pontos de vista pessoais ao texto inspirado343. A

punição prevista para este ato é a perda na participação da “árvore da vida”, o

derradeiro julgamento344. Nos textos supracitados, a expressão “árvore da vida” está

vinculada a uma metáfora para o destino do fiel345. No entanto, não se encontram

neles uma descrição das funções da árvore, nem mesmo uma indicação mais precisa

do local onde ela se encontra. A função concreta da “árvore da vida” e sua

localização será encontrada exclusivamente em Ap 22,2.

conseqüências dramáticas, uma vez que, nos últimos três anos de seu governo, o imperador assumirá características tirânicas, perseguindo não apenas a Igreja, mas também outros opositores. Cf. KRAYBILL, J. N., Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse, JSNT 132, Sheffield, Sheffield Press, 1996; GONZÁLEZ RUIZ, J. M., Apocalise de Juan, 17-18. 340 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 574. 341 Cf. BRIGHTON, L. A., Revelation, 652. 342 Liames textuais são encontrados com Dt 4,2. 343 Cf. STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ. Michigan, Andrews University Press, 2002, 610. 344 Cf. OSBORNE, G. R., Revelation, 796. 345 Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1177.

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A questão sobre a localização da “árvore da vida” foi considerada apenas

como um detalhe geográfico da visão e tida como de menor importância346, mas a

locução evn me,sw| th/j platei,aj sugere algo mais do que uma simples disposição

espacial. O estar “no meio da praça” estabelece uma conexão com o texto de Gn 2,9

em nível geográfico e de acessibilidade. A continuidade do texto de Gênesis relata o

ingresso do pecado no mundo e a conseqüente expulsão do Jardim no Éden (cf. Gn 3,

23-24)347. O acesso à “árvore da vida” encontra-se, a partir de então, bloqueado

pelos querubins e pela chama da espada fulgurante (cf. Gn 3,24). O recurso evn me,sw|

“no meio” aplicado à “árvore da vida” presente em Ap 22,2a retomaria, assim, a

imagem de acessibilidade existente no momento da criação, indicando a restauração

da relação de intimidade com Deus tal qual havia anteriormente no paraíso (cf. Gn

2,7-8) e interrompida pelo pecado (cf. Gn 3,22.24)348. Interrupção cessada no Cristo,

346 Cf. BEASLEY-MURRAY, G. R., The Book of Revelation. London, Oliphants, 1974, 331; DELEBECQUE, É., “Où situer l’Arbre de vie dans la Jérusalem celéste? Note sur Apocalypse XXII, 2” Revue Thomiste 88 (1988) 124-130. 347 Embora a designação “Jardim no Éden” não esteja explícita no texto de Ap 22,2, é inevitável que esta imagem venha à memória. Éden parece conter a noção de um jardim rico e exuberante, contendo todos os prazeres da vida em comunhão com Deus (cf. Gn 2,9-10). A LXX, ao traduzir o termo hebraico Éden, recorreu a para,deisoj. Este termo, contudo, não é exclusividade da língua grega, ele figura no TH indicando a floresta do rei (cf. Ne 2,8); em outros momentos, é um parque (cf. Ecl 2,5); ou mesmo um pomar (cf. Ct 4,13). Principalmente no último exemplo, podemos estar diante de uma derivação de uma antiga palavra persa que teria como significado “cercado” ou “parque arborizado” semelhante a uma jardim. Eventualmente a palavra poderia estar vinculada a um jardim celeste, um paraíso. No NT para,deisoj possui conotação mais próxima àquela de Éden: presença de Deus. Como se pode perceber no texto de Lc 23,42-43 quando Jesus promete ao ladrão que ele estaria junto a Ele no paraíso. Em 2Cor 12,2-4 Paulo foi arrebatado ao terceiro céu, identificado como paraíso. Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 761; BRIGHTON, L. A., Revelation, 627-629; BRIGHTON, L. A., Revelation, 627-629. 348 Os textos de Gn 2 e Ez 47 1-12 foram desenvolvidos na literatura judaica primitiva. Um dos relatos mais bem detalhados pertence à seção conhecida como o Livro dos Observadores em 1 Henoc 1-36. Em sua viagem através de conhecimento celestial, o observador é escoltado a vários locais que contém características semelhantes às de um paraíso, muitas relembram Gn 2,9. Em 1 Henoc 24 ao observador são mostradas sete montanhas, cujos pesos parecem o de um trono, e que são cercados por árvores perfumadas (24,3-4; cf. 10,18-19). Uma árvore possui uma fragrância sem precedentes, belo fruto, e sua madeira nunca se dissolve (24,4), o que reflete, possivelmente, a influência bíblica (cf. Gn 2,9; Ez 47,12). Mathewson destaca que poderíamos encontrar um paralelo importante com o Ap 22,1-2 em 1 Henoc 25, onde uma árvore cheirosa é reservada para o tempo futuro, e direcionada ao justo (25,5). Na conclusão de todas as coisas, será apresentada com seu fruto da vida (cf. 25,6), e Deus a plantará na direção da casa do Senhor, associando-a com o templo. Em 1 Henoc 26-31 o observador vai ainda para outras localidades, revelando inúmeras características semelhantes às de um paraíso (rios, vales, inúmeras árvores com fragrância e montanhas altas). No c. 28 o observador vê o deserto com árvores e uma nascente que jorra longe. No c. 32 o observador é levado por um angelus interpres ao jardim e observa muitas árvores com fragrância, mas, com apelo direto à narrativa da criação, o autor chama atenção para árvore em particular, “a árvore da sabedoria,

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o segundo Adão, o Cordeiro imolado (cf. Rm 5,12-21; 6,23; Ap 5,6) que pelo sangue

derramado na cruz resgata o homem do pecado (cf. Ap 5,8). Por esta razão, aos

habitantes da Cidade Santa (cf. Ap 22,3c) é franqueado o acesso à “árvore da vida”.

A ilustração espacial denota um escopo teológico intensificado pelo genitivo

de origem tou/ potamou/. O lugar onde a árvore cresce é a margem do rio de água da

vida que nasce do trono de Deus e do Cordeiro. Assim, a vida que a árvore doa não

encontra resposta nela mesma, mas no trono de Deus e do Cordeiro: a vida é, assim,

dom exclusivo de Deus e do Cordeiro.

A locução e;nqen kai. e;nqen retoma a expressão hZ<miW hZ<mi de Ez 47,12, que

reforça a idéia das árvores crescendo em ambos os lados do rio, de tal forma que o

singular “árvore” de Ap 22,2a, seja, provavelmente, uma referência coletiva a

“árvores” ou uma unidade corporativa, como “a árvore da vida”349. De tal modo que

a única árvore do primeiro jardim tornar-se-ia muitas árvores da vida no estado

paradisíaco do segundo jardim.

O dinamismo abundante da vida é representado pelos frutos que a árvore

produz350. O particípio poiou/n351, ligado ao acusativo karpo,j, “fruto”, reforça a

idéia de produção em sentido físico: há, de fato, uma produção352. Em alguns textos

da qual quem comer terá grande sabedoria” (32.3). No entanto, a árvore destacada aqui não é distinguida como a “árvore da vida”. Por esta razão, entende-se que a literatura judaica primitiva não exerceu real influência sobre Ap 22,2. Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and A New Earth, 192. 349 Ver página 76 do presente estudo. 350 O verbo poie,w é polivalente e por conseqüência é usado com referência a uma grande extensão de atividades que envolvem a matéria para trazê-la à existência, ou seja, abarca um processo natural de fazer, operar, produzir. Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 839-840. RUSCONI, C., Vocabolario del Grego del Nuovo Testamento, 280. 351 A expressão poiei/n karpo.n, “produzir frutos”, é apontada como um hebraísmo ou um aramaismo, por Forestell. O autor argumenta que yrIP. hf'[' foi retratado literalmente pelo grego da LXX (cf. Gn 1,11.12; Jr 12,2; 17,8; Ez 17,23). Cf. FORESTELL, J. T., Targumic Traditions and the New Testament: An Annotated Bibliography With A New Testament Index (Aramaic Studies). Chicago, Scholars Pr, 1979, 124. No entanto, o autor desconsidera que karpo.n poiei/n é também uma expressão idiomática grega. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139. Deste modo, a tese de um semitismo deixa de responder totalmente à questão. Um outro exemplo de hebraísmo seria encontrado na forma cardinal dw,deka usada pelo multiplicativo dwdeka,kij. Cf. MUSSIES, G. The Morphology of Koine Greek. As used in the Apocalypse of St. John. A Study in Bilingualism. Leiden, Brill 1971, 217; TURNER, N., Syntax, v. 3 A Grammar of New Testament Greek, Edinburgh, T. & T. Clark, 1963, 319-321. Embora o mesmo fenômeno ocorra no grego helenístico Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139. A classificação do cardinal dw,deka como um hebraísmo, portanto, não soluciona satisfatoriamente a questão. 352 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 509.

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neotestamentários, o verbo poiei/n mantém o sentido básico de produzir fruto de uma

planta (cf. Mt 21,19; 12,17; Lc 20,10; Tg 5,7.18); em outros, indica um sentido

diverso: produzir obras que mostram a adesão a Deus ou a rejeição a Ele (cf. Mt 7,17;

Lc 3,9; 6,43; 8,8; 13,8)353. O texto de Ap 22,2a não deixa claro que tipo de frutos

será produzido pela “árvore da vida”. Contudo, estando vencida a necessidade de um

alimento para o sustento material do corpo, o sentido básico indicado pelos Sinóticos

resulta superado, da mesma forma que está suplantado o testemunho de fé

manifestado pelas boas obras. A produção de frutos pela árvore da vida seria

conseqüência de sua fonte, o trono de Deus e do Cordeiro, e ligar-se-ia à noção de

vida abundante por ele doada.

O termo dw,deka ilustra a quantidade de frutos produzidos pela árvore. No

Antigo Testamento este numeral está, basicamente, vinculado ao número das doze

tribos de Israel354. Já no Novo Testamento, este conceito conserva-se tanto como

reminiscência (cf. At 7,8) quanto como sinal de pertença à uma das doze tribos ou a

uma delas especificamente (cf. At 26,7; Fl 3,5). Em alguns textos do Ap, o vocábulo

dw,deka assume valor simbólico (cf. Ap 7,4; 14,3) e, na descrição da Nova Jerusalém

(cf. Ap 21, 12.14), dw,deka denota a glória de Deus. Se um recurso ao universo

simbólico para a compreensão do termo dw,deka tem sido proposto355, este se

apresenta como desnecessário, como se depreende da locução kata. mh/na “a cada

mês”. O sentido seria o mesmo do v.1: a abundância da vida, destituída de qualquer

carência ou restrição.

Esta mesma abundância de vida poderia ser detectada nas folhas da “árvore

da vida”, uma vez que estas possuem um poder terapêutico para as nações356. No

353 Cf. HENSEL, R., fruto, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 20002, 888-890, Tradução Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament. Wuppertal/Neukirchen-Vluyn, 1971. 354 A complexidade do tema sobre as doze tribos de Israel ocupa uma posição de destaque na pesquisa bíblica e particularmente na historiografia bíblica. Cf. WOLF, C. U., “Some Remarks on the Tribes and Clans of Israel”, The Jewish Quarterly Review, 36 (1946) 287-295; KALLAI, Z., “The Twelve-Tribe Systems of Israel”, Vetus Testamentum, 47 (1997) 53-90; NOTH, M., The History of Israel. New York, Harper and Row, 1960; STEWART, D., Beyond Arsareth: The Twelve Tribes of Israel Today, 2004. http://www.cumorah.com/. Acesso, abril de 2007. 355 Aune sugere que seria um símbolo das doze tribos de Israel, doravante, um Israel renovado Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1178. 356 Esta capacidade pode ser entendida como a cura de uma doença física ou espiritual. Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 453.

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livro do Apocalipse, os copiosos efeitos medicinais das “folhas da árvore da vida”

não estão restritos a etnia de Israel: elas são para todos os povos, como indica o

genitivo tw/n evqnw/n357. O termo e;qnh, “nações”, no livro do Apocalipse, pode ser

compreendido de três formas. A primeira delas é a interpretação étnica, que seria uma

designação neutra aos povos e nações358. A segunda interpretação é a negativa,

quando estas desprezaram e pisotearam a Cidade Santa (cf. Ap 11,2), quando

impediram o sepultamento dos cadáveres (cf. Ap 11,9) e quando se enfureceram

diante do prêmio dado aos que temem o Nome (Ap 11,18). Com isso, as nações, além

de beberem o vinho da fornicação (cf. Ap 14,8; 18,3), serão o suporte da prostituta

(cf. Ap 17,15), serão seduzidas pela idolatria de Babilônia (cf. Ap 18,23) e serão

objeto de severo castigo (cf. Ap 19,5). A última forma é a interpretação positiva, que

surge principalmente em Ap 21,24-26: as nações abandonam sua imagem negativa e

opressiva, já não confiam em suas próprias forças e agora se dirigem para a Nova

Jerusalém, que se tornou o centro de todo o universo (cf. Is 2,2-4; 60,3; Ag 2,6-9)359.

Considerando o contexto de Ap 21-22 sob o prisma da redenção, o termo

“nações” deve ser concebido como etnia. Todos os povos e nações redimidas que

habitam na Nova Jerusalém já não são inimigas de Deus e de seu povo; antes, são

membros da família de Deus (cf. Ap 21,24.26; 22,2)360. A pertença de todas as

nações à família de Deus está explicita em Ap 5,9, no qual “povos e nações foram

comprados pelo sangue do Cordeiro”. Parece justo afirmar que, a partir de Ap 5,9,

357 Segundo Mathewson, os destinatários da terapia seriam os povos da terra que acreditaram no Evangelho. Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and A New Earth, 196. Charles, Ford e Rand relacionam as folhas que curam a evangelização das nações fora da Nova Jerusalém pelos habitantes da cidade durante o Milênio. Cf. CHARLES, R. H., Revelation, 177; FORD, J. M., Revelation, 346 ; RAND, J. A. du, ‘The Imagery of the Heavenly Jerusalem (Rev 21,9-22,5)’, Neot 22 (1988) 65-86. Vale destacar que Rand entende nações como uma referência aos mártires de Ap 7,9-15. Kiddle e Rist concebem a função das folhas como elemento de cura das chagas daqueles que sofreram pela fé. Cf. KIDDLE, M., The Revelation of St. John. London, Hodder & Stoughton, 1940, 443; RIST, M., ‘The Revelation of St. John the Divine: Introduction and Exegesis’; In G. A. BUTTRICK, et al (eds.), The Interpreter’s Bible, XII. New York, Nashville, Abingdon, 1957, 542. De acordo com Buchanan, através da cura vinda das folhas da “árvore da vida”, as nações se tornam judeus convertidos. A perspectiva de Buchanan parece um pouco ambígua, pois em alguns momentos entende que a cura das nações estaria no fato destas tornarem-se judeus convertidos, enquanto em outros momentos parece aludir à conversão dos próprios judeus. Cf. BUCHANAN, The Book of Revelation: Its Introduction and Prophecy. Lewiston, Mellen Biblical Press, 1993, 609 358 Cf. Ap 2,26; 5,9; 7,9; 10,11; 12,5; 13,7; 14,6; 15,3.4; 20,3.8. 359 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., ‘La Nuova Gerusalemme, città aperta’. In BOSETTI, E., COLACRAI, A., Apokalypsis. Percorsi nell’ Apocalisse di Giovanni, 621-645, 639. 360 Cf. CAIRD, G. B., The Revelation of Saint John. London, Hendrickson, 19992, 279.

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entende-se melhor o significado da “cura das nações” de Ap 22,2: Cristo foi

“sacrificado” para redimir homens de todas as nações (cf. Ap 1,5). Em Ap 7,9, as

nações são uma multidão enorme composta por aqueles que venceram a grande

tribulação e não se subjugaram ao poder da besta. O tom escatológico e universalista

está presente neste “curar as nações”, sem negligenciar a temática da vida doada por

Deus e pelo Cordeiro.

e) Ausência da maldição

A afirmação categórica da inexistência da maldição encontrada em Ap 22,3a

dá continuidade ao anúncio do valor terapêutico das folhas das árvores que curam as

nações de Ap 22,2b. O vocábulo kata,qema361 é um hápax legómenon tanto na LXX

quanto no Novo Testamento. Kata,qema362 é uma variante intensiva de avna,qema com

kata, que introduz uma estrutura de hostilidade. É a forma sincopada de katana,qema e

de uso raro fora dos antigos escritos cristãos363. Sendo sinônimo de avna,qema, traduz

legitimamente o termo hebraico ~r,xe, que foi usado no Antigo Testamento, para

indicar aquilo que é abandonado à ira de Deus ou uma proibição religiosa364.

Em uma conotação mais abrangente poderia assumir o sentido de completa

destruição, aplicada a um indivíduo ou aos seus pertences, por causa do pecado de

idolatria. Pode também ser uma punição imposta àquele que toma para si um objeto

interditado, ou que se recusa a aceitar o anátema na sua totalidade, transformando-se,

ele mesmo, em elemento de interdição (cf. Lv 27,29; Dt 7,26; 1Rs 20,42). O caráter

punitivo do anátema pode ter origem em Deus, e, neste caso, será uma punição que

vem de Deus contra os inimigos ou contra o próprio Israel (cf. Is 34,2.5; 43,28; Jr

50,21.26; Zc 14,11).

361 Aquilo que é devotado à divindade ou o que é maldito. Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 517. 362 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 1033. 363 Cf. BEHM, J., “avna,qema”, GLNT, 953-958. 364 Fora do contexto religioso do Antigo Testamento, avna,qema pode assumir uma conotação positiva: é algo que se oferece a deus. Cf. BEHM, J., “avna,qema”, GLNT, 954.

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Na LXX, kata,qema indica um decreto forte, definitivo ou o sentido de

destruição militar365. Ocorrendo em contextos de guerra santa, assume conotação de

uma determinação definitiva de Deus contra uma nação inteira, para que esta seja

destruída366. A conotação de “anátema” da LXX se faz presente na literatura

paulina, designando um objeto devotado a maldição. A variação se dá na causa da

maldição ser a falta de amor a Deus (cf. 1Cor 16,22) ou na pregação de um

Evangelho diferente daquele de Paulo (cf. Gl 1,8s). Neste caso, o conceito

fundamental é entregar ao juízo de Deus aquele que é pecador. O conceito de

“anátema” comporta, assim, a noção de pecado, que insere no mundo a maldição:

maldita é a serpente (cf. Gn 2,14), maldito é o solo (cf. Gn 2,17) e maldito é Caim (cf.

Gn 3,11).

Tendo a maldição, fruto do pecado, entrado na história humana, houve a

destruição da relação de união com Deus, resultando na expulsão do homem do

Jardim no Éden (cf. Gn 2,23). Logo em seguida, a ruptura será entre o homem e o seu

semelhante, representado pelo fratricídio de Caim (cf. Gn 4,1-11). É precisamente

esta destruição da relação com Deus, que o termo kata,qema visa banir. Trata-se da

destruição em si, ao invés de algo a ser banido ou amaldiçoado367. A destruição não

existirá mais na Cidade Santa porque a vida supera a destruição e tal destruição não é

outra senão o pecado. Esta superação só é possível, contudo, por causa da fonte da

vida, que é o trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1-2), estar em seu meio. Todos

aqueles que se regozijam na vida escatológica na Nova Jerusalém não precisarão mais

ter medo da destruição e lá viverão em eterna segurança.

A absoluta ausência do estado de maldição no paraíso restaurado de Ap

22,3a possui como pano de fundo Zc 14,11368. De fato, neste último texto, é

365 Ocorria quando um soberano ou um chefe militar israelita consagrava a Deus uma entidade inimiga ou uma cidade inimiga com todos os seus habitantes. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John. London, Macmillan, 1911, 300. 366 Cf. FORD, J. M., Revelation, 362; SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, 296. 367 Cf. MATHEWSON, D., A New heaven and a New Earth, 202. Swete pensa o contrário: haverá uma destruição destinada àqueles que se opõem à Cidade Santa. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, 296. 368 Bauckham e Beale sugeriram que Is 34,12 também está por trás do pensamento de Ap 22,3. É possível dizer que tal proposta não possui fundamento, tendo em vista o contexto de Zc 14,11 e Ap 22,3. O recurso seria apenas gramatical. Cf. BAUCKHAM, R., The Climax of Prophecy, 317-318; BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1112.

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anunciado o caráter inviolável da cidade de Jerusalém: ela nunca mais ficará vazia

por causa de maldição ou interdição, porque o Rei messiânico estará em seu meio.

Todas as ameaças serão subtraídas e Jerusalém habitará segura.

Esta segurança teria como indicação as mudanças geográficas previstas para

Judá e Jerusalém no porvir na era messiânica. Por esta razão, a glória de Jerusalém

será engrandecida, assim como todas as montanhas da terra serão elevadas e toda a

superfície se tornará plana, vindo de Gaba no norte até Remon no sul (v. 10). Isto

criaria uma situação na qual Jerusalém, situada no Monte Sião, dominaria,

topograficamente, a cena, sendo claramente visível de qualquer lugar na terra. Sua

posição elevada a protegeria de qualquer ameaça de destruição. Ela habitaria em

segurança, e a maldição seria banida para sempre (v.11). Através destes indícios,

poderíamos dizer que os dois textos sinalizam para a total impossibilidade da

existência do mal na Jerusalém escatológica.

2.4.2 Ap 22,3b-5

O v.3a possui não apenas uma íntima ligação com o v. 2b, por ser uma

continuação da explicação da cura das nações, mas, ao mesmo tempo, ele serve de

transição para a seção v. 3b-5, já que, efetivamente, justifica a presença de várias

características desta seção: o trono de Deus e sua presença não mediada no meio de

seus servos, que lhe rendem adoração, contemplam a sua face, portam o seu Nome e

com Ele reinarão por todo o sempre. O reaparecimento do trono de Deus e do

Cordeiro neste versículo retoma toda a simbologia teológica contida na visão do trono

de Ap 4-5, já analisadas em Ap 22,1b. No entanto, agora, a atenção se volta para a

atuação dos que estão no trono e a reação desencadeada pela presença de Deus e do

Cordeiro.

a) Um só trono

A presença do termo qro,noj ocorre também na seção anterior. Naquela,

porém, possui função de ser a fonte do rio de água da vida e da árvore da vida,

enquanto nesta, a menção de qro,noj, além de trazer consigo importantes conotações

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do Antigo Testamento, contém tanto associações políticas quanto de culto369. Com

referência ao reinado de YHWH, a figura do trono expressa a grandiosa majestade do

divino Governante370. No Antigo Testamento, o trono pode ser entendido como:

privilégio do rei (cf. Gn 41,40); promessa messiânica (cf. 2Sm 7,14); Jerusalém é o

trono de Deus (cf. Jr 3,17); seu senhorio se estende também sobre os pagãos (cf. Sl

47,9; 93,2; Lm 5,19); é sinal do poder de julgamento que somente Deus possui (cf. Sl

9,5.8; 97,2).

O trono também tem um papel fundamental nas visões do templo celestial

tanto no Antigo Testamento quanto na literatura apocalíptica judaica371. Em Is 6,1-5,

YHWH está sentado sobre o trono cercado por seres celestes que lhe rendem

adoração (cf. ainda Ez 1,26). Ez 43,7 situa o trono de Deus no meio do templo, no

qual Deus habitará para sempre. Mesma disposição geográfica é encontrada em Ap

22,3b, porém com uma diferença, pois na Cidade Santa não há templo, porque Deus

todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo (cf. Ap 21,22).

As funções políticas e de culto do v.3b são a culminância de um processo

paulatino desencadeado nos c. 4-5, onde Deus é reconhecido e reverenciado por seus

servos com prostrações, adoração e aclamações (cf. Ap 4,10-11). Os mesmos gestos

de adoração são dirigidos ao Cordeiro proclamando-o digno de receber poder, glória e

louvor (cf. Ap 5,12). Todavia, de acordo com Ap 3,21, o Cordeiro também ocupa um

lugar no trono divino, muito embora, em alguns textos, apareça somente próximo a

este (cf. Ap 5,6; 7,17)372. Apesar desta aparente ambigüidade, considera-se que o

livro do Apocalipse oferece uma compreensão paulatina, além de descrever as

diversas ações do Cordeiro antes de encontrar-se sentado sobre o trono com o Pai (cf.

Ap 22,3b).

Poder-se-ia ainda fazer referência ao trono enquanto um símbolo de

autoridade contrastante em relação a Babilônia/Roma: as regras romanas eram 369 Para a combinação entre realeza e imagem cúltica veja: Sl 24; 47,7-8; 48,1-2; 68,24-35; 80,2; 99,1; 11,4; 80,1; 99,1; 103,19; Is 6,1; 66,1; Jr 3,17; Ez 43,7; Dn 7,9. Cf. BUCHANAN, G. W., The Book of Revelation: Its Introduction and Prophecy. Lewiston, Mellen Biblical Press, 1993, 610. 370 Cf. SCHMITZ. O., “qro,noj”, GLNT, vol. IV, 573-590. 371 Ver 1Rs 22,19; Is 6,1-5; Ez 1; 10,1; Dn 7,9-10; 1Henoc 14,8-25; 60,1-6; 61,8-9;71; 2Henoc 20-21. 372 Implicações cristológicas estão presentes na questão do trono e de seus ocupantes. Sobre a questão consultar: BAUCKHAM, The Theology of the Book of Revelation. Cambridge, Cambridge University Press, 1993, 58-65; idem, The Climax of Prophecy, 138-140; HOLTZ , T., Die Christologie der Apokalypse des Johannes, 202-203.

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caracterizadas como opressivas e corruptas (cf. Ap 13), o trono de Deus, ao contrário,

é a fonte de vida e bem-estar para as pessoas na nova Jerusalém (cf. Ap 22,1-2).373

O singular o` qro,noj enfatiza a igualdade entre Deus e o Cordeiro que

dividem um único trono. Esta igualdade pode ainda ser percebida no fato de o

hagiógrafo recorrer ao pronome singular no versículo subseqüente para se referir ao

Nome e a face de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,4). A co-divisão do trono implicaria

também as atribuições políticas e cúlticas inerentes àquele que legitimamente ocupa o

trono374: tais implicações podem ser encontradas em Ap 22,3b-5. Com a presença do

trono no qual Deus e o Cordeiro se sentam no meio da Nova Jerusalém, a soberania

absoluta de Deus é agora universalmente conhecida na Nova Jerusalém, onde os

eleitos rendem adoração a Deus e ao Cordeiro. Como tais, as prerrogativas do trono

em Ap 22,3b-5 provêem do ponto central em torno do qual todas as atividades em Ap

22,1-5 giram.

Ap 22,3c-4 descreve a vida dentro da Cidade Santa, sintetizada em breves

afirmações: os servos adorarão a Deus e ao Cordeiro, verão sua face, seu nome estará

sobre suas frontes, não necessitarão mais da luz da lâmpada ou do sol e reinarão com

seu Deus por todos os séculos. Deste modo, o trono de Ap 22,3b não indica um

momento de juízo sobre o homem, pois este já ocorreu, mas, antes, Deus encontra-se

no trono para elevá-lo a uma dignidade totalmente nova: ele será um servo que vê a

face de seu senhor, tem o nome deste senhor gravado em sua fronte e participa de seu

reinado.

b) Os servos adoradores

O termo dou/loj, “servo”, introduz um novo personagem na visão. Por meio

dele, temos a descrição dos habitantes da Cidade Santa: são servos de Deus e do

Cordeiro (cf. Ap 22,3c). O estado de servidão nesta cidade, contudo, destoa de seu

conceito básico que comporta a noção do homem reduzido à condição de escravo e

373 Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 204. 374 Prigent nota que a visão do trono no c.4-5 é sujeito de uma única descoberta, a saber: a revelação plena de Deus Criador e de seu Messias, o Cordeiro imolado. Cf. PRIGENT, P., Commentary on the Apocalypse of St. John. Tübingen, Mohr, Siebeck, 2001, 627.

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sujeito a um serviço forçado375, aproximando-se do conceito veterotestamentário oi

dou/loi tou/ qeou/, que sugere a relação do judeu piedoso com o seu Deus, identificado

de modo particular em Abraão (cf Gn 18,3.5), Isaac (cf. Gn 24, 14), Moisés (cf. Ex

14,31; Js 14,7), Davi (cf. 2Sm 7,5.8), os profetas (cf. Is 20,3; Dn 6,20) ou o povo (cf.

Jr 30,10).

De igual modo, há uma aproximação com o emprego do termo no Novo

Testamento, uma vez que os cristãos são denominados “servos de Cristo” (cf. Ef

6,21; Tg 1,1; 2Pd 1,1, Jd 1), são sua propriedade (cf. 1Cor 7,22; Ef 6,6) e suas vidas

são um serviço prestado ao Cristo crucificado e ressuscitado (cf. Gl 1,10; Cl 4,12;

2Tm 2,24). Jamais retornarão ao estado de escravos da morte, do sofrimento ou do

pecado (cf. Rm 6,12-23), porque foram resgatados pelo sangue do Cordeiro (cf. Ap

5,9-10).

O pronome auvtou/, que sucede o termo dou/loi de Ap 22,3c, impõe a noção

de propriedade e a existência de um senhor legítimo. O senhorio é exercido sobre

uma pessoa ou alguma coisa e homem pode ser sujeito desta autoridade ou objeto,

servo. Em sua relação com Deus, ele é objeto e Deus o seu proprietário (cf. Mc 12,9;

Lc 19,33; Mt 15,27; Lc 16,3.5.8). Esta noção de propriedade é acentuada pela

presença constante, no livro do Apocalipse, do artigo que distingue “O Senhor”376.

Em Ap 22,3b, o pronome auvtou/ identifica Deus e o Cordeiro como único

proprietário dos servos que habitam a Cidade Santa. Nesta relação de senhor/servo na

Jerusalém celeste, estão presentes, concomitantemente, os elementos vétero-

testamentários de homem piedoso, como aqueles neotestamentários de resgate da

morte e do pecado. Sendo assim, a expressão oi` dou/loi implica elementos

cristológicos, porque o Cordeiro operou o resgate do homem da escravidão do pecado

(cf. Gl 1,10; Ap 5,9). A finalidade deste resgate, contudo, não é a diminuição da

375 O conceito de escravidão, tal qual entendido no mundo extra-bíblico, designa sua condição social da pessoa, e pode ser encontrado em alguns textos veterotestamentários (cf. Ex 14,5; 13,3.14; 20,2; Lv 26,45). A LXX prefere o vocábulo pai/j para indicar aquele que não está em condições de dispor de si mesmo. Cf. RENGSTORF, K. H., “dou/loj”, GLNT, vol. II, 1966, 1418.1431; BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 535. 376 A presença do artigo está reservada ao Deus legítimo, reportando à fé vétero-testamentária fundada sobre a experiência histórica do Êxodo (cf. cf. Ap 1,8; 4,8; 11,17; 16,7; 18,8; 19,6; 21,22). Cf. FOERSTER, W., “ku,rioj”, GLNT, vol. V, 1401.

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dignidade humana; antes a sua elevação por meio do seguimento de Cristo e uma

orientação para Cristo, com o conseqüente afastamento do mundo e de sua força de

atração para o pecado e a morte (cf. Mt 24,4-14; Mc 13,5,-13).

Ser servo de Deus e do Cordeiro é, portanto, permanecer liberto da doulei,a

do mundo (cf. Jo 15,19)377. A corrupção desta ordem incorre no afastamento do

homem da presença de Deus378. Assim, o escopo da liberdade concedida por Cristo

não é a autonomia, mas a obediência, restabelecendo, deste modo, a relação de

dependência incondicional do homem com relação a seu Deus e senhor.

O estado de servidão dos habitantes da Nova Jerusalém seria a condição

essencial de justiça dada por Deus379. Da parte do servo, a única resposta possível é

tornar-se servo que adora (cf. Sl 22,23; Is 49,7; Dn 3,28). Assim, a adoração torna-se

o diálogo-serviço por excelência entre o servo e seu Senhor.

A tarefa do servo na Cidade Santa é definida pelo verbo latreu,w380, que

retoma o verbo db[ ligado ao serviço de adoração a Deus no culto, especialmente

pelo sacrifício (cf. 40,6-7; Ex 10,25; Dt 12,6). Este culto de adoração a Deus consistia

no propósito do êxodo do Egito (cf. Ex 3,12; 4,23; 7,16). O serviço de culto em Israel

era prestado pelos “servos de Deus” ao Deus Único como reconhecimento de sua

soberania381. Este reconhecimento, manifestado no culto, expressão de uma atitude

interior de devoção fiel a YHWH, deve atingir o modo de vida até ao ponto de

377 A exclusividade da doação a Deus está impressa no termo dou/loj. O servo não pode subtrair-se sem sofrer as conseqüências e é ilusão pensar que o homem, “servo de Deus”, poderia exercitar a doulei,a sem concentrar todas as forças no cumprimento de uma observância exclusiva das Leis de seu Deus. 378 Cf. FOERSTER, W., “ku,rioj”, GLNT, vol. V, 1341-1488. 379 Quando usado em moldura litúrgica, o termo dou/loj descreve a relação de dependência e de serviço do homem para com Deus. Esta moldura constitui o diferencial entre o pensamento grego e o judaico. No primeiro, a dependência é civil/jurídica e no segundo, a dependência é ontológica. Cf. RENGSTORF, K. H., “dou/loj”, GLNT, 1433. 380 Etimologicamente, o verbo latreu,w encontra-se ligado à noção de presença, estar diante de um outro. Seu primeiro significado é trabalho ou serviço por recompensa, por isso vem anexado à figura de um escravo que desempenhe tal tarefa. Em um segundo momento, pode significar o culto prestado aos deuses. Nos textos veterotestamentários da LXX, somente o segundo sentido será assumido. Na literatura profética, o termo leitourgei/n está limitado a ação da classe sacerdotal, enquanto latreu,ein indica a ação religiosa do povo no seu conjunto. Cf. STRATHMANN, H., “latreu,w”, GLNT, vol. VI, 1970, 169-172. 381 Havia em Israel o perigo de este serviço de culto ser desviado e tornar-se um ato de adoração a deuses estrangeiros (cf. Ex 20,5; 23,24; Dt 4,28; 5,9; 7,4.16; 8,19; 11,16.28; 12,2; 29,17; Js 24,14s; Jz 2,19; 2Cr 7,19). Principalmente Moloc e Baal (cf. Lv 18,21; Jz 2,11.13; 3,7) ou o culto real a Nabucodonosor (Jd 3,8).

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harmonizar expressão cultual com a vida prática (cf. Dt 10,12ss). Por isso, a fé em

Israel não é uma religiosidade abstrata, de uma moral genérica e imprecisa, mas sim

fruto de uma atitude interior de devoção, traduzido em uma vida de amor e temor,

obediência aos Mandamentos382.

Nos escritos do Novo Testamento, o serviço de adoração está continuamente

relacionado com Deus, quer na oferta do sacrifício no culto383, quer na oração

litúrgica que todos podem oferecer (cf. Lc 18,9-10; Mt 67-8). Exceção é o texto de

Mt 4,10 (cf. Lc 4,8; cfr. Dt 6,13), onde latreu,w é antítese para o proskunei/n, que o

tentador deseja para si (cf. Mt 4,8-9; Lc 4,5-7). Esta antítese evidencia que o culto a

Deus não pode estar dissociado de um comportamento de vida verdadeiramente santo

e da observância aos Mandamentos de Deus de modo perfeito diante de Seus olhos. A

verdadeira adoração consiste, portanto, em uma configuração do íntimo e do agir

externo do homem/servo com a vontade de Deus e uma distinção clara do mundo

entendido como opositor a este querer de Deus384.

O ato de adorar, dedicado somente a Deus no Antigo Testamento, é

destinado em Ap 22,3c a Deus e ao Cordeiro, como indica o pronome dativo

masculino auvtw/|. Esta será a única ação realizada na Nova Jerusalém onde os servos

se põem ao redor do trono385. A presença contínua de Deus e do Cordeiro e o novo

Templo (cf. Ap 21,22) proporcionam uma mudança na compreensão do verbo

latreu,w: sua realização não está mais circunscrita a um espaço físico, ele é ação

espiritual e ininterrupta, como indica o futuro do indicativo latreu,sousin. O mesmo

tempo verbal é empregado para indicar a presença de Deus e do Cordeiro (cf. Ap

22,5) e, por causa desta presença permanentemente na Cidade Santa, Eles receberão

continuamente a adoração de seus servos386. A conexão com o termo nao,j, concede

382 Cf. STRATHMANN, H., “latreu,w”, GLNT, 176. 383 Cf. At 7,7.42; Hb 8,5; 9,9; 10,2; 13,10. 384 Cf. Ap 2,2-5. 9-10. 13-16. 19-28; 3, 1-5. 8-12. 15-21. 385 Prigent seguido por Beale consideram que o pronome auvtw/|. indica mais do que uma unidade no trono, ela é uma unidade do templo, identificado em Ap 21,22 não como um edifício, mas como a presença de Deus e do Cordeiro. O templo é o Pai e o Filho, Deus e o Cordeiro, a mesma unidade, continuam os autores, é aplicada ao título Alfa e Ômega (cf. Ap 1,8; 21,6; 22,13).Cf. PRIGENT, P., L’Apocalypse de Saint, 330; BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1113. 386 Vale destacar que embora a forma verbal latreu,w ocorra no Apocalipse, a forma no substantivo e no adjetivo leitourgei/n está ausente. Cf. TRENCH, R. C., Synonyms of the New Testament. Michigan, Baker, 1989, 137-139.

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ao verbo latreu,w, portanto, uma maior abrangência (cf. Ap 1,6; 5,10; 20,6),

indicando não se tratar de um serviço ritual externo, mas de adoração espiritual387.

Em Ap 7,15 há uma aproximação de imagem e pensamento com Ap 22,3c.

Os santos de todos os tempos adoram a Deus dia e noite diante de seu trono e

exercem um ministério sacerdotal para sempre por causa de sua perseverança no

Nome de Cristo (cf. Ap 21,24-26). Tal perseverança é fruto de uma vida configurada

ao Cristo, tanto no íntimo do servo, quanto em seu exterior, acarretando em um

direcionamento para o querer de Deus e distanciado do agir orientado para o pecado.

A adoração passa, assim, pelo conhecimento da vontade de Deus e pela liberdade

humana que reconhece Nele a soberania e a fonte de vida (cf. Ap 22,1b.3c).

O objeto da adoração dos servos é, conforme indica o pronome genitivo

auvtou/ do v.4a, a face de Deus e o Cordeiro. No Antigo Testamento, expectativa da

contemplação da face de Deus constitui o escopo escatológico do povo que O adora

(cf. Gn 17,3; Is 60,1-2; Is 52,8; Ez 43,1-5; 44,4).

Em uma análise etimológica, o termo pro,swpon, usado na LXX para indicar

a face de Deus, traduz o hebraico ~ynIP'388 “face”, “rosto”. Quando aplicado a Deus,

recorre-se a uma linguagem antropomórfica para fazer referência à misericórdia de

Deus para com o homem (cf. Nm 6,25); quando sua face se retira, é a sua

benevolência que está sendo suprimida (cf. Dt 32,20; Mq 3,4) ou pode aludir a sua ira

contra aqueles que fazem o mal (cf. Sl 33,17). Na oração, o homem pode implorar

que Deus retroceda e volte, revelando mais uma vez a sua face sobre seu povo (cf. Sl

12,2; 29,8;43,25); quando é atendido em sua súplica, exulta de alegria (cf. Sl 21,25).

387 Vanni destaca que a capacidade sacerdotal desempenhada na Cidade Santa se realiza em uma dimensão puramente espiritual. Este sacerdócio qualifica o cristão e depende, intimamente, do sacerdócio de Cristo. Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 350. Mesmo pensamento pode ser encontrado em Thomas. Cf. THOMAS, R. L., Revelation 1-7. Chicago, Moody Press, 1992, 498. Schüssler Fiorenzza destaca que a adoração de cunho espiritual se contrapõe àquela político-social proposta pelas regras romanas caracterizadas pela opressão e corrupção. Cf. SCHÜSSLER FIORENZZA, E., “Redemption as Liberation, Ap 1,5 and 5,9f”, CBQ (1974) 36 220-232; da mesma autora, ver também Revelation: Vision of a Just World, no qual a autora entende a liberdade vivenciada na Cidade Santa como um contraste decisivo com Babilônia/Roma. Cf. SCHÜSSLER FIORENZA, E., Revelation: Vision of a Just World. Minneapolis, Fortress Press, 1991, 113. 388 O substantivo hebraico ~ynIP' pode significar o rosto de uma pessoa (cf. 2Rs 4,29.31; 8,15; Is 25,8; Jr 13,26; Na 3,5; Ml 2,3; Jó 4,15; 15,27; Eclo 26,17); a superfície de objetos (cf. Gn 7,23; 8,8.13; 2Sm 14,7); designa o funcionário do rei (cf. Gn 32,31; Jd 6,22) dentre outras conotações. Cf. LOHSE, E., “pro,swpon”, GLNT vol XI, 1977, 406-409.

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Os Salmos expressam as esperanças de uma contemplação da face de Deus

(cf. Sl 11,7; 17,15; 24,6; 42,2). Sob o ponto de vista espiritual, a idéia de ver a face de

Deus torna-se elemento fundamental para se chegar ao verdadeiro conhecimento de

Deus e a correta relação d’Ele conosco (cf. Jó 33,26; Nm 6,25)389. Ver a face de

Deus pode assumir a conotação de ir ao santuário, pois o templo converte-se no local

onde o crente busca a face de Deus e o encontra (cf. Zc 8,21s). Este deslocamento do

orante manifesta sua nostalgia, seu desejo de ver a face de Deus (cf. Sl 41,3; 94,2).

Nos textos do Antigo Testamento, o ato de ver a face de Deus permanece

como sinal da presença de Deus através de seu cuidado com o povo de Israel e

conhecimento de sua Pessoa e vontade. Mas o ato de ver, fisicamente, o rosto de

Deus apresenta-se, para o homem, como algo perigoso em função do nosso estado de

pecado (cf. Ex 3,6; 20,19) e da imensa santidade de Deus. Por esta razão, Moisés verá

apenas as costas de Deus passando ao longe (cf. Ex 33,20.23)390.

O termo pro,swpon, nos escritos do Novo Testamento391, assume uso

lingüístico do Antigo Testamento: sentido de reverência, veneração392, além da

expectativa de ver o rosto de Deus (cf. Mt 5,8; 1Cor 13,12; Hb 12,14; 1Jo 3,2b-3).

Mateus segue a noção vétero-testamentária de que só no mundo celeste se pode ver a

face de Deus (cf. Mt 18,10), embora seja portador da epifania de Jesus, quando seu

rosto resplandeceu como o sol diante dos olhos de Pedro, Tiago e João (cf. Mt 17,2;

389 Cf. OSBORNE, G. R., Revelation, 774. 390 O contrário ocorre na cultura grega, pois os deuses podiam manifestar-se aos olhos dos homens. O AT não nega a possibilidade de ver a Deus, mostra apenas a imensa distância, criada pelo pecado, entre Deus e sua criatura. A Revelação, contudo, será realizada por meio de uma relação dialogal, que embora exclua a presença física de Deus, em nada diminui a intimidade entre o Criador e a criatura. Será a palavra o veículo de conhecimento, e não uma aproximação física entre o divino e o humano como entendiam os gregos. Cf. LOHSE, E., pro,swpon col. 411. 391 Na visão de Aune, o “ver a Deus” não é uma preocupação apenas dos escritos neotestamentários. Também o judaísmo e o Antigo Testamento teriam dedicado espaço a este desejo tão íntimo do ser humano. No judaísmo helênico “vendo a Deus” pode referir-se à mística visão de Deus percebida mentalmente ou espiritualmente. No judaísmo antigo, por sua vez, o privilégio de ver a Deus teria sido considerado uma bênção escatológica (cf. Sl 84,7; Jub 1,28; 4Ezra 7,91.98; 1Enoc 102,8). No mundo grego, a menção “ver a face de deus” estaria na capacidade da alma se agarrar aos deuses. A literatura rabínica, por sua vez, acompanha a idéia de Is 6,2, na qual nenhum anjo, nem criatura vivente poderia ver a Deus ou ouvir a sua voz, este benefício seria próprio do piedoso, mas somente após a sua morte. Na mística tradição literária grega, “ver a face de Deus”, seria impossível para a natureza humana. Na literatura rabínica, este “ver a face de Deus” foi abrandado pela inserção da expressão “ver a face da Shekinah”, estar na presença de Deus. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1179-1181. 392 Cf. Mt 6,16s; At 6,15; Ap 4,7; 7,11; 9,7; 11,16; Mc 14,65; Mt 17,6; 26,39.67; Lc 5,12; 17,16; 1Cor 14,25. O termo pro,swpon pode também assumir a conotação de “superfície” (cf. Lc 21,35).

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Lc 9,29). São Paulo, por sua vez, ensina que aos servos será concedido, no final dos

tempos, ver a face de Deus que fora oculta ao olhar do homem após o pecado. No

presente, a visão humana se dá por representação, de modo obscuro (cf. 1Cor 13,12).

Assim, o ver e o falar são imperfeitos e somente no futuro se terá a visão perfeita e o

conhecimento real.

Na obra do Apocalipse, esta visão futura e de benignidade não atinge a

todos: alguns se encontram destituídos da graça de ver a face de Deus e lamentam o

fato de sua exclusão da face do que está assentado no trono (cf. Ap 6,16). O genitivo

prosw,pou, em Ap 22,4a, é um antropomorfismo para invocar a presença de Deus que

é justiça e introduz o julgamento final tornando a visão da face de Deus algo

insuportável. A impossibilidade de suportar a presença de Deus decorre do caráter

definitivo do juízo promovido pela abertura do sexto selo, que suprime toda

possibilidade de alguma coisa ficar oculta diante da face de Deus. Perante a face de

Deus e da ira do Cordeiro393, até as forças da terra se abalam. As forças humanas

representadas pelas patentes militares, os reis, os homens livres ou em situação de

escravidão sucumbem diante de sua face, posto que são dignos de juízo em função de

sua oposição a Cristo394. O elenco das classes sociais mostra que toda a humanidade

é afetada pela divina justiça e dela não pode escapar.

O mesmo pavor ocorre em Ap 20,11, onde toda a antiga criação foge da

presença daquele que está no trono395. É uma nova situação de juízo, mas sem

descrever como este se dará, e, não obstante por se tratar de um juízo divino, este não

pode ser de outro modo senão na via da justiça396. O genitivo ressalta que é a criação

que se afasta da presença de Deus397.

393 A expressão “ira do Cordeiro” é hapax legomenon no Ap e, no presente contexto, situa o Cordeiro como juiz. A cristologia deste texto é altíssima e encontra-se intimamente vinculada a Ap 5,7.13 onde o Cordeiro recebe do que se assenta no trono o livro e imediatamente após é aclamado pelos Anciãos e seres vivos como detentor do louvor, honra, a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 171. 394 Cf. JOHNSON, D. E., Triumph of the Lamb, 129; KISTEMAKER, S., Revelation, 238-239. 395 Cf. Ap 4,2.3.9; 5,1.7.13; 6,16; 7,10.15;19,4; 21,5. 396 Mounce e Prigent optam pela interpretação de que o juízo divino se dará pela via do amor. No entanto, esta linha de trabalho não se encontra de modo explícito no texto. Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 375; PRIGENT, P., Commentary on the Apocalypse of St. John, 577. 397 Como em Ap 6,16, há uma íntima relação entre Ap 20,11 e Ap 5 tendo em vista o tema do livro que o Cordeiro recebe de Deus e, por conseqüência, uma cristologia. O julgamento segue o mesmo padrão de Ap 6,16: pertence a Deus e ao Cordeiro. Esta co-participação no julgamento não é uma

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O termo pro,swpon ocorre ainda em Ap 4,7, mas descrevendo a face dos

seres vivos que estão ao redor do trono e em Ap 10,1 como alusão à face do anjo

resplandecente como o sol. Aparece por fim, como o espaço para onde a mulher foi

levada com a finalidade de protegê-la da serpente em Ap 12,14, seguindo assim

outras conotações possíveis a este termo.

Se em Ap 6,16 e 20,11 o homem e toda a criação não suportaram olhar para

a face de Deus como Juiz, na Jerusalém Celeste o servo olha para o trono de Deus e

do Cordeiro com segurança, já não há mais o pavor do juízo, somente a gratuidade de

Deus que se dá a conhecer plenamente (cf. Ap 22,4a), e, agora, já não mais por

reflexo (cf. 1Cor 13,12).

A ação de ver, expressa com o verbo ora,w “ver”, neste versículo, é

localizada no tempo futuro e remete à plena consciência da presença e do poder de

Deus, sem restrições e de modo constante. Assim sendo, o “ver a sua face” assume,

em Ap 22,4, não o valor de uma idéia vaga, mas de presença real. O objeto concreto

do ato de ver é decodificar os traços, conhecer a estrutura, a imagem de uma pessoa

(cf. Mt 18,10)398. Deixa também de lado a idéia de uma relação de subordinação no

sentido de afastamento entre senhor e servo; antes há uma intimidade inaudita. Sendo

assim, esta é a culminância de algumas das maiores esperanças escatológicas da

Sagrada Escritura: na Cidade Santa, o povo de Deus vê a face de Deus totalmente,

sem reservas.

É provável que em Ap 22,4a, ressoem tons do culto de adoração próprios do

Antigo Testamento, conforme visto acima. Desta forma, o Apocalipse daria

cumprimento à finalidade da adoração do culto no Antigo Testamento, tendo em vista

que os santos servem diante da face de Deus. 399.

novidade do Apocalipse, já encontra-se presente em alguns textos neotestamentários (cf. Rm 2,16; Mt 25,31-46; At 10,42; 2Tm 4,1). 398 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 887. 399 Mathewson considera que o vínculo entre a expressão “ver a face de Deus” e o culto não são evidentes, antes, ela apenas reforçaria as aspirações escatológicas dos textos do Antigo Testamento (cf. Ex 23,15: Ex 23,17; Ex 34,24; Dt 16,16; 31,11; Is 1,12; Sl 42,3). Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 206-207. Comblin, por sua vez, pensa que esta visão de Deus pertence a uma estrutura de culto, que teria como pano de fundo a Festa dos Tabernáculos. Cf. COMBLIN, J., “La liturgie de la nouvelle Jérusalem (Apoc XXI,1-XXII,5)”, 26-27.

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O v.4b dá continuidade ao emprego do pronome pessoal auvtou/ no singular,

agora identificando o Nome de Deus e do Cordeiro que será impresso sobre a fronte

dos servos. O Nome, antes de tudo, é o componente essencial do ser humano porque

o distingue dos demais. Quando relacionado à pessoa divina, o conhecimento do

nome divino é imprescindível para que o homem possa invocá-lo e entrar em relação

com ele400.

No Antigo Testamento, o ato de denominar algo estabelece uma relação de

domínio e propriedade entre aquele que denomina e aquele que é denominado,

podendo tratar-se dos animais criados (cf. Gn 2,19s), de uma cidade conquistada (cf.

2Sm 12,28) ou de uma propriedade (cf. Is 4,1). Quando Deus impõe um nome,

estabelece o direito de propriedade sobre ele (cf. Is 43,1), podendo indicar o povo de

sua propriedade (cf. Is 63,19), seu templo (cf. Jr 7,10), sua arca (cf. 2Sm 6,2) ou

Jerusalém, sua cidade (cf. Jr 25,29; Dn 9,18).

Mais do que elencar elementos, o nome no Antigo Testamento possui um

valor acentuado quando se trata do nome de Deus. Nome que, em sua liberalidade,

Ele mesmo fez conhecer na sua revelação (cf. Gn 17,1; Ex 3,14; 6,2) e mediante o

qual pode e deve ser invocado. Através deste Nome, Ele se torna próximo ao homem

e, verdadeira, a sua promessa (cf. Ex 20,24; Nm 6,24). No Deuteronômio, de modo

particular, o Nome sinaliza a proximidade salvífica de YHWH (cf. Dt 4,36; 12,11;

14,23; 16,11; 26,15)401. Este Nome é, em síntese, a expressão da soberania pessoal e

Em uma linha que prioriza o elemento jurídico encontra-se Fekkes. Segundo este autor, a expressão “ver a face de Deus” seria uma derivação do termo jurídico ver a face do rei. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation, 387-388. A aplicação de uma visão jurídica foi abordada também por Mounce, quando recorda ser procedimento no mundo antigo a proibição aplicada aos criminosos: eles não poderiam ver a face do rei, muito menos poderiam permanecer diante de sua presença. Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 400. Para Schüssler Fiorenza, a experiência da proximidade com Deus, que o adorador procurava no templo quando se colocava diante da face de Deus, tornar-se-á uma realidade no futuro escatológico. Cf. SCHÜSSLER FIORENZA, Priester für Gott: Studien zum Herrschafts- und Priestermotiv in der Apokalypse, 384. O mesmo pensamento pode ser encontrado em HOLTZ, T., Die Christologie der Apokalypse des Johannes, 204. 400 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 711. 401 No ato de pronunciar um nome, tanto para o Antigo Testamento como para os povos extra-bíblicos, implica no conhecimento da potência da coisa em si. O conhecimento do nome divino possui importância capital para que o homem possa relacionar-se com o sagrado através da adoração e da submissão e, em contrapartida, Deus lhe assegura seu auxílio (cf. Gn 4,26; 12,8; 13,4; 26,25; 1Rs 18,24). Cf. BIETENHARD, H., “o;noma”, GLNT, vol. VIII, 706-707.

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da atividade de Deus que se volta em direção ao homem, no qual YHWH se revela no

tempo, seja ele um tempo passado (cf. Ex 3,6; 13,15), presente (Ex 20,7) ou futuro

(cf. Ez 25,17; 34,50).

O Novo Testamento herda alguns empregos lingüísticos do Antigo

Testamento no que se refere ao uso do nome para designar uma pessoa, sua função

(cf. Mc 3,16; At 27,1) ou sua fama (cf. Mc 6,14; Ap 3,1). Contudo, a principal

conexão teológica com o Antigo Testamento está na união da pessoa à obra de Deus

(cf. Mc 11,9s; Mt 23,39; Lc 1,49; At 15,17). No 4° Evangelho, o nome divino

aproxima-se da glória divina (cf. Jo 12,23.28). A glorificação do Nome de Deus se dá

pela obra de Cristo, na qual Jesus revela aos homens o Nome de Deus sob o

predicado de Pai (cf. Jo 17,6.26). Neste contexto, o termo o;noma exprime a relação

concreta entre Deus e o homem, enquanto relação pessoal, implicando um agir de

Deus e uma reação do homem a Este que se revela como Pai amoroso (cf. Jo 3,16;

17,12). Esta seria a verdadeira obra de Cristo: a glorificação e a proclamação do

Nome do Pai (cf. Jo 17,26)402. O ato de permanecer “no Nome” assume o sentido de

encontrar-se no âmbito do amor do Pai e do Filho (cf. Jo 17, 19-22), que livra o

homem de todo o perigo externo pela força de seu Nome. Da parte do homem, a

experiência do amor faz com que se assemelhe, paulatinamente, a Deus e ao Cristo

(cf. 1Jo 3,2)403.

O tema da semelhança com o Pai celeste está presente no Apocalipse, diz

respeito aos fiéis, aqueles que se tornaram servos de um único Senhor, que portam o

nome de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 3,12). O mesmo tema pode sinalizar uma

situação de condenação definitiva, tendo em vista que aqueles que se assemelharam à

besta e receberam a sua marca estarão apartados do Reino de Deus e do Cordeiro. O

escopo metafórico estaria, portanto, na noção de semelhança e de propriedade, uma

vez que os seguidores da besta foram marcados na mão direita ou na fronte (cf. Ap

13,16; 14,9; 20,4)404. A situação de pertença e semelhança pode ser encontrada

402 Cf. BIETENHARD, H., “o;noma”, GLNT, vol. VIII, 757-759. 403 Para aprofundar o tema de sermos semelhantes a Deus e vê-lo tal como Ele de 1Jo 3,2 veja SMALLEY, S. S., 1,2,3 John. Waco, Word Books, 1984, 146-147. 404 Esta pertença possui três raízes: Ez 9,4 não colaborou com a idolatria em Jerusalém e teve sua fronte marcada com o Tau; nas religiões helenísticas, o sinal na fronte exprime a pertença a um deus ou a um amuleto, e também os deuses egípcios trazem a marca em suas frontes; por fim, o significado

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ainda em Ap 17,5 e refere-se ao nome da prostituta impresso na testa. O nome

aplicado sobre a fronte remete, portanto, a uma condição de íntimo conhecimento, de

semelhança e seguimento. Contudo, esta identificação constitui uma usurpação do

direito daquele que de fato é o Senhor e o proprietário destes servos que se

permitiram aderir à prostituta, apesar de pertencerem a Deus. O destino deles será o

afastamento da presença de Deus e os tormentos pelos séculos dos séculos (cf. Ap

14,11).

Portanto, a combinação de to. o;noma e tw/n metw,pwn405 de Ap 17,5 mostra

que existe uma conexão específica entre o nome e aquele que o porta406. Conexão

que possui uma conotação positiva em Ap 22,4b quando os servos recebem o Nome

de Deus e do Cordeiro em suas frontes. Os servos marcados são os mesmos que se

encontram em adoração diante do trono de Deus e do Cordeiro do v.3c, como indica o

pronome auvtw/n. Na Jerusalém celeste, o fiel gozará de um conhecimento de Deus

sem censuras, conhecê-lo-á tal qual Ele é (cf. 1Jo 3,2). O fato de portar o Nome de

Deus e do Cordeiro agrega ainda dois elementos. O primeiro deles é a indicação de

cidadania, pois aquele que o detem é designado membro da Nova Jerusalém, e estes

formarão “o povo que pertence a Deus” (cf. 1Pd 2,9; Ex 19,5; Tt 2,14). O segundo é a

idéia do ministério sacerdotal dos santos na Nova Jerusalém (cf. Ap 22,3c). Sendo

assim, a metáfora sugeriria a consagração ao serviço de Deus407. Tal serviço já foi

indicado no v.3c: a adoração prestada ininterruptamente a Deus e ao Cordeiro por

seus servos408.

de Ap 22,4: os marcados por Deus são causa de escândalo, na medida em que sendo servos gozam de total liberdade diante de seu Senhor. Cf. SCHNEIDER, C., “me,twpon”, GLNT, vol. VII, 189-198. 405 O termo metw,pwn ocorre somente no Apocalipse e sempre indicando a pertença de um objeto, no caso a fronte, a um sujeito, que oscila em alguns textos entre Deus e o Cordeiro e a besta. 406 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français 1384; THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 447. 407 A idéia do ministério sacerdotal dos santos na Nova Jerusalém encontra-se no Êxodo que descreve a inscrição do nome de Deus na testa do sumo sacerdote (cf. Ex 28,36-38). Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, 301. 408 Apesar de Beale insistir em um contato com os textos de Is 62,2; 65,15, no qual o fiel recebe um “nome novo” no final dos tempos e com o qual o próprio Deus associou-se. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1114. Parece-nos que esta aproximação insere um modo figurativo da presença de Deus entre os seus. A idéia do nome divino estaria, a nosso ver, mais diretamente relacionada com a imagem de Ap 7,3; 14,1; 3,12 quando os servos de Deus são marcados na testa com um selo simbolizando sua pertença real e concreta ao divino e a proteção que d’Ele recebem.

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A expressão to. o;noma poderia, segundo alguns estudiosos, conter uma

referência às vestes do sumo sacerdote. Este, quando trazia em sua testa um turbante

com uma rosa de puro ouro, deveria ter gravada sobre esta as palavras: “Consagrado

ao Senhor” (cf. Ex 28,36-38). O significado desta inscrição era que ambos, Aarão e

aqueles a quem ele representa, assim como todos os cultos que ele presta como

sacerdote, são completamente consagrados ao Senhor409.

Parece verossímil encontrar uma alusão a Ex 28,36-38 em Ap 22,4b porque

esta enfatizaria a temática do culto sacerdotal que permeia o resto do contexto de Ap

22,3b-4. Sendo assim, o significado da leitura de Ap 22,4b à luz deste subtexto seria

aquele de que o nome inscrito nas testas dos que venceram e habitam a Nova

Jerusalém não apenas pertencem a Deus, mas serão semelhantes de alguma forma ao

seu Deus410.

c) A extinção da noite e dos luzeiros

Enquanto nos v. 3c-4ab o texto descreve a função e as primeiras

características dos servos, o v.5 delineia tanto os atributos da Cidade Santa (nela não

haverá mais noite, nem a luz do sol), como o último ofício do servo (reinar junto a

Deus e ao Cordeiro pelos séculos dos séculos).

De modo geral, o termo “noite” (nu,x), no Antigo Testamento, designa o

tempo em que a luz do sol está ausente411. Esta alternância e regularidade entre dia e

noite (cf. Gn 1,3-5; Sl 74,16) seria o resultado da aliança de Deus com a criatura (cf.

Gn 8,22; Jr 33,20.25). De todas as menções ao termo “noite”, a que contém maior

singularidade é aquela em que Deus retira seu povo da escravidão (cf. Ex 11,4;

12,12.29). De modo metafórico, pode indicar o tempo da tribulação, choro,

sofrimento ou mesmo a comunhão com Deus412 ou, ainda, o período do medo,

409 Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 388; SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, 312; FORD, J. M., Revelation, 367; BAUCKHAM, R., The Theology of the Book of Revelation. Cambridge, Cambridge University Press, 1993, 142 410 Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 208. 411 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 682. 412 Cf. Is 30,29; Jó 7,3; Sl 6,6-7; 77,2-3; Is 26,9; Sl 1,2; 42,8-9; 77,6; 88,1; 92,2; 119,55.

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angústia, solidão (cf. Sl 91,5; Sb 17,14-15)413. Sentimentos próprios do homem,

pois, para Deus, a noite é clara como o dia (cf. Sl 139,11-12) e pode ser a ocasião de

Revelação (cf. 1Sm 3,4).

Em uma perspectiva escatológica, os textos de Is 60,19-20 e Zc 14,7

propõem a superação deste mundo de escuridão, dependente da luz que procede do

sol ou de lâmpada, por aquele eterno, onde a luz procede da presença de Deus que

preenche toda eternidade com sua glória414.

No Novo Testamento nu,x segue a conotação vétero-testamentária de ritmo

dos dias, principalmente quando aparece junto à preposição dia, ou como indicação

cronológica (cf. Mt 4,2; 12,40; 14,25; Lc 6,12)415. Mas pode, também, ser usado

como recurso metafórico de silêncio (cf. Jo 3,2), como o momento da traição (cf. Jo

13,30), da negação (cf. Mt 26,34), além de preceder o cumprimento do reino de Deus

(cf. Rm 13,12), indicar os membros do reino da luz, contrastando com os membros do

reino da noite (cf. 1Ts 5,5-7) ou ainda a total adesão a Satanás (cf. Jo 13,30)416. Nos

Atos dos Apóstolos, o termo nu,x surge como indicador do momento próprio para a

atuação dos poderes divinos417.

O recurso metafórico de nu,x pode assumir a conotação de skoti,a

“trevas”418, estabelecendo assim, um contraste com fw/j e designando o estado de

416 Köstenberger entende que Jo 13,30 Satanás entra em Judas (cf. Jo 13,2; 1Cr 21,1; 2Sm 24,1). O termo eivse,rcomai é comumente usado nos Sinóticos com relação à possessão demoníaca (cf. Mc 5,12; Lc 8,30; 11,26). Mas, destaca o autor, nesta passagem do Evangelho de João, não se deve entender como possessão demoníaca, antes, é o próprio Satanás que entra na pessoa. Se estabelecermos um paralelo com Lc 22,3-4 ficará evidente que o fato de Satanás entrar em Judas, antecede a sua traição, pois logo após sair, para a “noite”, Judas combina com os sumos sacerdotes um modo de entregar Jesus. Cf. KÖSTENBERGER, A. J., John. Michigan, Baker Academic, 2004, 416-417.

413 Na mitologia a noite assume características antropomórficas, em Isidro a noite é a mãe de uma série de personagens maléficos. A noite é também o tempo preferido dos mágicos, porque neste período gozam plenamente de seus poderes. Cf. DELLING, G., “nu,x”, GLNT, vol. VII, 1503-1505. 414 Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation, 275; CHARLES, R. H., Revelation, 210; OSBORNE, G. R., Revelation, 775. 415 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 461-462.

417 Cf. At 5,19; 12,6; 16,9; 18,9; 23,11; 27,23 418 O termo %v;x' “trevas” pode indicar uma situação de afastamento da presença de Deus como conseqüência do cativeiro (cf. Sl 42), em sentido figurado pode indicar a ignorância, a desgraça ou a tribulação (cf. 2Sm 22,29; Is 9,1s; 58,10; 49,9; 59,9ss; Mq 7,8; Sl 35,6; 112,4 etc). A fórmula “habitar nas trevas” está em oposição ao reconhecimento de que somente YHWH é a luz que ilumina o seu povo (cf. Mq 7,8, Sl 26,1, Is 60,1). O termo pode ainda designar um mal ou uma catástrofe oriunda, segundo a concepção israelita, de um castigo merecido e permitido por Deus a fim de punir a culpa de seu povo (cf. Am 5,18-20; Is 5,30; 9,1; 58,10; 60,2; 62,1ss; Lm 3,2; Sl 18,29). A punição divina é antropomorficamente representada pela cólera de Deus que introduz o povo na escuridão porque este

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ausência de comunhão com Deus ou com o Cristo (cf. Jo 9,4; 11,10). Além do

contraste nu,x e fw/j, o epistolário Paulino e alhures sugerem um outro: nu,x e h`me,ra,

contrapondo as “trevas” ao tempo de salvação implantado por Cristo (cf. 1Ts 5,5-7;

Rm 13,12; 1Cor 16,13; 1Pd 5,8). Após este tempo de trevas, que precede o grande

dia, a irrupção da Jerusalém celeste, a noite não mais existirá.

No livro do Apocalipse, em decorrência da ausência da preposição dia,

antecedendo o termo nu,x, este último não se apresenta com o sentido de indicador

temporal, mas é inserido em uma dinâmica metafórica. Única exceção é Ap 8,12, no

qual, apesar da ausência da preposição, o sentido parece ser, de fato, temporal. Deste

modo, o termo nu,x, no Apocalipse, encontrar-se-ia no âmbito de ausência de

comunhão com Deus (cf. 21,8.27; 22,15), ou seja, uma vida marcada pelo pecado ou

por uma expectativa escatológica positiva. A ausência da comunhão com Deus dentro

do simbolismo do Apocalipse pode ser indício de uma vida no pecado, mais

precisamente naquele que é o autor do pecado: Satanás419.

A expressão kai. nu.x ouvk e;stai e;ti, em Ap 22,5a, retoma as imagens

encontradas em Ap 21,23-27 onde a noite não mais existirá, não haverá a necessidade

de uma luz do sol ou da lua, porque a glória de Deus ilumina a Cidade Santa, e sua

lâmpada é o Cordeiro. Seus portões estarão sempre abertos e o dia será perpétuo.

Esta expressão é introduzida por um kai, explicativo e declara, de modo

irrevogável, a inexistência da noite na Cidade Santa, como se depreende pela

construção ouvk e;stai e;ti. O recurso ao advérbio de negação ouvk suprime a

possibilidade de qualquer dúvida implícita relacionada ao objeto ao qual alude o

advérbio: a “noite”. A junção deste advérbio ao verbo e;stai, no futuro do indicativo,

insere a noção da inexistência do objeto negado pelo advérbio, a qual é ainda

reforçada pela presença do advérbio de tempo e;ti. A construção kai. nu.x ouvk e;stai

e;ti, portanto, estabelece que o elemento “noite” não poderá mais existir na Cidade

afastou-se de seu Deus (cf. Sl 6,2-3; 38,2; 88,8; Is 30,30; 2Cr 28,9). Contudo, este estado não será permanente, YHWH resplandecerá sobre o povo e o libertará de todo o mal (cf. Nm 6,25; Sl 4,7; 31,17; 44,4; 67,2; 80,4.8.20; 89,16). Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo, Paulus, 1997, 251-252. 419 Uma aproximação teológica entre o termo noite e o pecado, entendido como vivência pautada em Satanás, foi proposta por Brighton por entender que, dentro da linguagem joanina a palavra “trevas”, muitas vezes, possui valor de oposição a Deus e identificação com o Opositor por excelência. Cf. BRIGHTON, L. A., Revelation, 621.

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Santa. Esta “noite”, segundo o universo simbólico do livro e as indicações do Novo

Testamento, deve ser entendida como a total ausência de privação da presença de

Deus. Deste modo, não haverá mais o perigo do povo de Deus ou de sua criação

perder-se eternamente, estaria assim, extinto o perigo da separação de Deus e da

privação da comunhão com Ele420.

Um novo advérbio de negação dá início ao v.5b, indicando a eliminação da

luz da lâmpada ou da luz do sol para os habitantes da Jerusalém celeste. A expressão

crei,an fwto.j lu,cnou, não apresenta liames teológicos com outros textos do Novo

Testamento quando há a identificação da “luz” com a pessoa de Cristo (cf. Jo 1,9;

8,12)421 e sim com o objeto concreto utilizado para fornecer luz durante o período da

noite422.

A conjunção o[ti do v. 5c mostra que esta supressão é conseqüência da

presença do ku,rioj o` qeo,j em meio à Cidade Santa. Esta presença não impõe a

eliminação da criatura, no caso sol, considerado, no quarto dia da criação, como algo

bom (cf. Gn 1,16). Antes, parece tratar-se da superação de sua capacidade de iluminar

diante do resplandecer de Deus sobre seus servos.

O ato de “resplandecer”, expresso pelo verbo fwti,zw, não admite a presença

da obscuridade, porque implica na presença do próprio Deus, que é, Ele mesmo

“luz”423. A noção de Deus, no Antigo Testamento, como luz que resplandece sobre o

seu povo é nitidamente delineado em Mq 7,8; Ml 3,20; Is 60,1-3.19424. No Sl 27,1 a

confissão “o Senhor é a minha luz” expressa que a verdadeira luz é YHWH.

No Novo Testamento, no quarto Evangelho, Jesus é apresentado e se declara

como a luz que irrompe em meio à escuridão deste mundo (cf. Jo 1,4.5.9; 5,35); Ele,

e somente Ele, é o Revelador para todos os homens (cf. Jo 3,19). A mesma nota de

exclusividade pode ser encontrada em Jo 8,12; 9,5; 12,46, quando Jesus declara ser a

420 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 565. 421 Na transfiguração de Cristo o fulgor da luz converte-se em um dos elementos que traduzem para os discípulos a glória messiânica. Cristo (cf. Mt 17,1-13; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36), após a sua ressurreição aparece a Paulo envolto em uma luz que supera o esplendor do próprio sol (cf. At 26,13). Cf. OEPKE, A., “la,mpw”, GLNT, vol. IV, 74-75. 422 Cf. SCHNEIDER, G., “lampa,j”, Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento, vol II, Salamanca, Sígueme, 1996, 10-13. 423 Cf. Is 8, 23-9,1; 10,17; 42,16; 58,8.10; 60,1-3.19; 61,1.19s; Sl 18,29; 27,1; 112,4. 424 O texto de Ap 22,5bc mereceria um estudo de cunho intertextual com Is 60,19.

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luz do mundo, de modo que aqueles que o seguem não andarão nas trevas, mas na luz

da vida. A ausência de uma partícula comparativa nestes textos indica que a “luz” é

uma imagem de Jesus.

No corpo Paulino, o termo “luz”, ao ser identificado com o Evangelho de

Cristo, recebe um conteúdo cristológico cujo objetivo é a iluminação do coração

humano, para que este conheça a glória de Deus na face humana de Cristo (cf. 2Cor

4,4.6; 2Tm 1,10). É por meio de Cristo que o homem participa da herança dos santos

na luz (cf. Cl 1,12).

O verbo fwti,zw assume uma perspectiva escatológica na Nova Jerusalém,

no sentido de tratar-se da realização das esperanças do Antigo Testamento (as trevas

são superadas), como também aquelas do Novo Testamento, onde Cristo ilumina o

coração do homem. Por desprezarem esta iluminação que leva ao conhecimento de

Deus, os ímpios serão excluídos, não serão atingidos pelo resplendor de Deus (cf. Ap

21,8.27; 22,3; 11,18-19), enquanto as nações e os reis caminharão à sua luz (cf. Ap

21,23-24; 22,5). Os destinatários deste resplendor são os servos de Deus e do

Cordeiro como mostra a expressão fwti,sei evpV auvtou,j. Devido à presença de Deus,

estes terão como supérfluas todas as outras fontes de luz, pois, na Cidade Santa, o

próprio Deus será a luz. Mas até aquele dia, o cristão viverá em tensão escatológica, a

vigilância será fundamental.

Contrastam com Ap 22,5b425 as palavras de advertência dirigidas à

Babilônia “jamais em ti brilhará a luz de candeeiro” (cf. Ap 18,23) e esta metáfora

ameaçadora é um indicativo da destruição total da cidade426.

d) O reino eterno

A noção de um reinado eterno, proposto em Ap 22,5d, encontra-se

vinculada ao termo vetero-testamentário %l,m,427 que identifica aquele que, na vida

425 Beale sugere que fwto.j lu,cnou faz referência ao papel do povo de Deus como “castiçal”, testemunhando a luz da divina lâmpada num mundo de escuridão (cf. Ap 1,12.20; 2,1; 1,4; 4,5; 21,11-26). Na Nova Jerusalém, tal função será finalmente perfeita, porque o Cordeiro-lâmpada (cf. Ap 21,23) brilhará nela. Entendemos que tal recurso metafórico é desnecessário para a compreensão do texto, uma vez que o sujeito da ação de iluminar, em Ap 22,5bc, não é apenas o Cordeiro, mas Deus e o Cordeiro como observamos nos v.1.3. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1115. 426 Cf. THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 346.

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social, exerce a soberania. O substantivo %l,m, designa principalmente três classes de

soberanos: humanos (cf. Gn 36,33; Dt 33,5; 2Sm 15,10; 1Rs 1,13), messiânicos (cf. Is

33,17; Jr 23,5; Ez 37,22; Os 3,5; Zc 9,9) e divino (cf. 1Sm 12,12; Sl 5,3; Jr 10,7.10;

Sf 3,15; Ml 1,14). De modo geral, %l;m' significa ter ou exercer autoridade suprema

sobre um povo em um determinado lugar. O hiphil denota o processo de fazer um rei,

incluindo os passos de escolher, confirmar, ungir e proclamar. No Qal, o verbo

descreve o exercício desta autoridade.

No corpo profético, o “reino de Deus” assume um sentido escatológico. No

fim dos tempos, este reino irromperá e YHWH reinará sobre toda a terra. Seu trono

estará em Jerusalém e todas as nações virão em romaria a Sião para adorá-lo (cf. Is

24,23; Zc 14,9; Ab 21). Esta índole escatológica do “reino de Deus” adquire o sentido

de uma realidade já presente, mas, ao mesmo tempo, futura, quando então haverá a

plena manifestação de sua potência428. Por isso, este “reino” chega a adquirir um

caráter atemporal atingindo ao mesmo tempo o presente e o futuro429

No Novo Testamento, o vocábulo grego basileu,j acompanha o significado

básico do termo hebraico %l,m,430. Contudo, insere-lhe uma novidade, pois o pleno e

legítimo direito de reinar sobre Israel pertence, nesta etapa da revelação, a Deus e a

seu Cristo431. A palavra basilei,a, nos Evangelhos Sinóticos, refere-se tanto ao reino

de Deus como ao de Cristo, sem estabelecer uma distinção entre os detentores do

legítimo direito de reinar de modo soberano (cf. Lc 22,29; 23,42; Mt,5,20; Mc 9,1).

Esta igualdade no direito de reinar decorre da atividade de Cristo como Redentor e

Juiz da humanidade, que, por sua vez, encontra-se na linha de cumprimento das

promessas messiânicas contidas no Antigo Testamento432. O “reino” é preparado por

427 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 381. 428 Cf. von RAD, G., “basileu,j”, GLNT,vol. II, 146, 1966. 429 A idéia de um rei salvador escatológico, descendente de Davi, reflete a mentalidade própria de Israel. Tal conceito não é encontrado no Egito ou em Babilônia. A realeza de Deus está ligada a atemporalidade que abarca igualmente o passado, e o futuro (Ex 15,18; 1Sm 12,12; Sl 145,11ss; 146,10) outros destacam o acento no momento de espera (cf. Is 24,23; 33,22; Sf 3,15; Ab 21; Zc 14,16ss). O reino de Deus é uma realidade presente, mas no futuro teremos a plena manifestação de sua potencialidade. Cf. von RAD, G., “basileu,j”, GLNT, 133-135. 430 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 351. 431 O Novo Testamento opõe-se às idéias helenísticas e romanas de um rei terrestre entendido como encarnação da deidade. Cf. KLAPPERT, B., Rei, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, 2031. 432 Cf. Is 2,2-4; 9,6-7; 11,1-2; 32,1-8; 33,17-22; Mq 4,1-8; Am 9,11-15; Jr 23,5-8.

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aquele que é o Deus de Israel e tem por meta arrancar o homem do poder das trevas

para introduzi-lo no Reino de seu Filho (cf. Cl 1,13). No fim dos tempos, Cristo

restituirá este reino ao Pai, após ter destruído todas as forças adversárias (cf. 1Cor

15,24). Será, portanto, na parusia que o “reino de Deus” será consumado pelo Filho

do Homem. O conceito “reino de Deus”, entendido em perspectiva escatológica,

designando o tempo da salvação, não é estático, nem espacial, mas dinâmico (cf. Mc

1,15; Mt 4,17; 10,7 Lc 10,9-11).

Na literatura joanina, o conceito “reino” encontra-se radicado nesta

perspectiva de salvação oferecida por Deus aos homens. Estes, para pertencer ao

“reino”, necessitam nascer do alto, da água e do Espírito (cf. Jo 3,3.5). O “Reino de

Deus”, contudo, não pertence a este mundo, é um reino transcendente, difere dos

reinos deste mundo, porque o domínio do supremo governante não é exercido pela

força bruta, e sim pelo amor (cf. Jo 18,36).

No Apocalipse, o reinado de Deus e de seu Cristo dá continuidade ao

significado escatológico-cosmológico dos textos canonicamente antecedentes, quando

afirma que no final dos tempos o rei Messiânico terá sob seu poder todo o mundo,

porque ele é o Rei das nações (cf. Ap 15,3), o Rei dos reis (cf. Ap; 17,14)433, o

Senhor dos senhores (cf. Ap 19,16). Contrariamente, o substantivo plural basilei/j

possui, neste livro, liames com a noção de um rei, que exerce uma soberania

usurpadora, pois recusa-se a reconhecer a Deus como Rei supremo (cf. Ap 6,15),

reúne-se para combater contra Deus (cf. Ap 16,14), prostituiu-se com o culto ao

imperador (cf. Ap 17,2.9.12), além de, também pela influência da Besta,

posteriormente, lamentar-se amargamente (cf. Ap 18,3.9). Todavia, ainda investirá

um ataque contra o Cavaleiro e seu exército (cf. Ap 19,19). O texto de Ap 21,24 é

uma exceção neste contexto, porque anuncia que os reis de toda a terra se

encaminham para Jerusalém prestando-lhe glória.

A dimensão escatológico-cosmológica inicia-se, efetivamente, com a morte

de Cristo na cruz e sua ressurreição (cf. 5,6-9); por ela, os redimidos são constituídos

“reis e sacerdotes” que reinarão sobre a terra (cf. Ap 5,10). Sendo assim, a expressão

433 Sobre este título ver: BEALE, G. K., “The Origin of the Title ‘Kings of Kings and Lord of Lords’ in Rev. 17:14”, NewTestamentStudent 31 (1985) 618-620.

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basilei,an kai. i`erei/j (cf. Ap 5,10) estaria ligada ao acesso a Deus que o homem

passou a desfrutar, já neste mundo, através dos méritos da morte de

Cristo434. Neste contexto de salvação, conquistada pelo Cordeiro que se imola,

estão inseridos todos os povos, o que implica o universalismo desta ação

salvadora435. A conjugação de basileu,w436 no futuro ocorre somente em Ap 5,10;

20,6, além do nosso texto. No texto de Ap 5,10, o termo aproxima-se do significado

de Ap 20,6, onde o reinado de mil anos é descrito437. Deste modo, o reinar sobre a

terra é uma conseqüência adicional do sacrifício do Cordeiro que atinge a todos os

homens de todos os tempos. O Reino, portanto, é uma realidade que irrompe neste

mundo cuja participação dos fiéis já ocorre na condição de membros redimidos438.

Por conseqüência, de um lado os cristãos são objeto do reino e, de outro,

colaboradores para a realização do reino de Deus e do Cordeiro na terra (cf. Ap

434 Cf. BARTON, B. B., Revelation. Wheaton, Tyndale, 1996, 66. 435 A presença da preposição evpi, apresenta o reino como algo que está por vir. Segundo Walvoord, a preposição evpi pode indicar um reinado já neste mundo e nesta realidade terrestre. Cf. WALVOORD, J. F., The Revelation of Jesus Christ. London, Marshall, 1966, 118-120. Embora seja uma opinião aceitável, levando em conta o anúncio do reino nos Sinóticos, este autor vai de encontro à maioria dos pesquisadores que preferem acenar para um reino escatológico, sem abandonar a possibilidade de se entrever o Reino como uma posse dos mártires que lutam, neste mundo, contra as forças dos Césares, reis falsos, enquanto eles já perceberam a existência de um Rei maior: o Cordeiro imolado. Cf. CHARLES, R. H., Revelation, 148. 436 A forma de 1ª do plural basileu,somen, testemunhado em poucos manuscritos, é considerada por Metzger como um desenvolvimento secundário surgido da introdução de h`maj no versículo anterior. Cf. METZGER, B. M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 666-667. Allo, caminha nesta mesma linha interpretativa. Cf. ALLO, E. P–B., L’Apocalypse, 80. Quanto ao emprego de basileu,sousin, Metzger verifica que esta forma encontra-se sustentada por muitos unciais e, por esta razão, reúne maiores possibilidades de dar sentido ao texto. Ainda segundo Metzger, o Códex Alexandrino teria lido erroneamente basileu,ousin em lugar do tempo futuro. Cf.. METZGER, B. M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 667. Vanni considera que o fundamento orientador da decisão de Metzger ao preferir basileu,sousin, é de ordem exegética. Vanni entende que a manutenção do presente basileu,ousin, testemunhado em A e 046, seja preferível por ser a leitura mais difícil. De fato, a atribuição de reino aos cristãos no presente causa uma dificuldade exegética. Vanni ainda destaca que o emprego de basileu,sousin no futuro, aproximar-se-ia mais do contexto escatológico de Ap 22,5. Cf. Vanni, U., “La promozione del regno come responsabilità sacerdotale dei Cristiani secondo l’Apocalisse e la Prima Lettera di Pietro”, Gregoriana 68 (1987) 23-25. Para Allo, a definição pelo verbo no presente é fundamentada na existência do reino onde os santos já começaram a reinar (espiritualmente) desde que o Cristo foi glorificado. Cf. ALLO, E. P–B., L’Apocalypse, 80. 437 Segundo Lupieri, a insistência nesta função sacerdotal leva a crer que existe um lugar de culto, mas que ainda não é aquele de Ap 21,1. Cf. LUPIERI, E., L’Apocalisse di Giovanni, 133.147.324-349. 438 Cf. AUNE D. E., Revelation 17-22, 1181; CHARLES, R. H., Revelation, 210.

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1,6)439. Esta definição da função do homem no Reino de Deus reforça a

compreensão de que, em estrito senso, somente Deus é “rei”.

O termo “rei”, atribuído a Deus, é empregado em contexto solene de

celebração da vitória contra o mal e da instauração da nova criação (cf. Ap 15,3). O

mesmo título também é atribuído ao Cristo, mas em perspectiva escatológica. Ele é o

“rei dos reis” e “Senhor dos senhores” (cf. Ap 17,14; 19,16). É significativo que o

termo “rei” não seja um atributo dos cristãos, enquanto que basilei,a440 lhes seja

diretamente conferido (cf. Ap 1,6.9; 5,9); indica-se, assim, que estes participam

apenas como membros neste reinado, sem exercer governo441.

Nesta linha também se situa o texto de Ap 22,5d, que introduz uma frase

causal, cujo sujeito da oração remete aos dou/loi do v.3c, ao mesmo tempo que

apresenta a terceira atividade dos servos na Cidade Santa: “eles reinarão” para

sempre. Por esta razão, o modo de reinar destes servos será por participação na

condição de servos adoradores no eterno governo de Deus (cf. Ap 22,3-4). Neste

momento, chega ao fim o grande drama cósmico, os redimidos habitam com Deus e

conformam-se com sua presença, alegrando-se com a intimidade concedida por Deus

e com ele reinando por toda a eternidade442. Esta idéia de participação no reino

eterno de Deus e do Cordeiro não é, todavia, uma novidade do livro do Apocalipse,

mas encontra-se vinculada ao kérigma cristão (cf. At 17,7)443.

439 Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 364. 440 O lexema basilei,a é um substantivo abstrato que possui, com relação ao rei, um elemento estático que representa a dignidade real e um outro dinâmico ligado a atividade de governo. Quando vinculado aos súditos ou ao território sobre o qual se exerce o governo retoma o caráter estático. Cf. PELÁEZ, J., “basilei,a en el Nuevo Testamento. Factor contextual, definición y traducción”, Filologia Neotestamentária XVI (2003) 69-83 (71). 441 O termo basileu,j ocorre também para designar personagens históricos, embora não seja fácil determinar o nome deles, como ocorre com os imperadores romanos (cf. Ap 17,9.12), líderes do povo (cf. Ap 10,11) ou do chefe demoníaco (cf. Ap 9,11). Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 352. 442 Cf. STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ, 595 443 O Quarto Evangelho impõe à resposta de Jesus diante de Pilatos uma definição cristológica de basilei,a (cf. Jo 18,37). O Ap atribui à realeza de Jesus um significado cosmológico quando afirma que no final dos tempos o Rei messiânico terá todo o mundo sob seu domínio. Neste ponto, aproxima-se dos sinóticos e do pensamento paulino (cf. 1Cor 15,24; 1Tm 6,15). O mesmo conceito de reinado dos cristãos em união como Cristo é encontrado também em 1Cor 4,8 onde Paulo afirma ironicamente “Oxalá já reinásseis, para que nós reinássemos convosco”. A suprema esperança cristã, reinar com o Cristo na eternidade, era almejada pelos coríntios, como conquista independente da autoridade apostólica e da de Cristo. Cf. SCHMIDT, L., basileu,j GLNT col. 171-174.

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O ato de reinar juntamente com seu Senhor, apresentado por Ap 22,5d, é

inaudito. O reinado legítimo pertence exclusivamente ao próprio Soberano da Cidade

Santa, uma vez que é ele que revela a participação dos servos neste governo. Esta

participação sempre se dará em nível escatológico, uma vez que se trata de uma co-

divisão de governo na Cidade Santa, de sua participação no reino agora plenamente

realizado444. Desde então, este ato de reinar não sofrerá mais interrupções, porque no

reino eterno o pecado estará para sempre removido e o projeto de Deus para seus

filhos estará totalmente realizado. Isto está retratado na imagem mais evocativa do

tipo de glória futura reservada a todo aquele que resistir à marca da besta (cf. Ap14,

9-13).

O caráter litúrgico da seção445, iniciada pela procissão de entrada na

Cidade Santa e pela assembléia litúrgica de todos os redimidos (cf. Ap 21,24-26),

agora inteiramente limpos (cf. Ap 21,27; 22,2), tem seu ápice diante do trono de Deus

e do Cordeiro, onde estes redimidos oferecem o louvor a Deus como servos

adoradores e sobre quem a bênção sacerdotal é dada definitivamente durante a

liturgia. Nesta liturgia, proposta em Ap 22,3c, é levado a termo o escopo de todas as

ocasiões litúrgicas. O culto eterno, que se celebra na nova Jerusalém, chega a seu

ápice, porque o povo de Deus, estando em sua presença imediata, vê sua face e o

adora como sacerdotes. Esta adoração não cessará jamais, porque este reinado

desconhece o fim, como enfatiza a expressão “pelos séculos dos séculos”, eivj tou.j

aivw/naj tw/n aivw,nwn.

444 O fato do reinado dos cristãos possuir a característica escatológica não o torna etéreo, no sentido de estar distante das coisas cotidianas. O reino escatológico possui raízes neste mundo, é na vida prática que se constrói o reino escatológico. Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 353. 445 Sobre a questão do caráter litúrgico no Ap ver : VANNI, U., “L’Assemblea litúrgica si purifica ediscerne nel “Giorno del signore” (Ap 1,10); “Ap 1,4-8: um esempio di dialogo liturgico”; In VANNI, U., L’ Apocalisse, 87-97. 101-113.

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CAPÍTULO III

3. Análise de Ez 47,1-12

3.1 Tradução e notas filológicas

(O Anjo) me fez retornar até a entrada

do Templo

1a tyIB;h; xt;P,-la, ynIbeviy>w:

e me conduziu para a frente do

Templo

1a kai. eivsh,gage,n me evpi. ta. pro,qura tou/

oi;kou

e eis (que vi) águas que saíam de

baixo do limiar do Templo em

direção à face oriental do Templo.

1b hm'ydIq' tyIB;h; !T;p.mi tx;T;mi ~yaic. ~yIm;-hNEhiw>~ydIq' tyIB;h; ynEp.-yKi

E eis que saía uma água por baixo do

átrio, para parte oriental, porque a

frente do Templo estava voltada para

o oriente

1b kai. ivdou. u[dwr evxeporeu,eto

u`poka,twqen tou/ aivqri,ou katVavnatola,j

o[ti to. pro,swpon tou/ oi;kou e;blepen

katVavnatola,j

As águas desciam de baixo do lado

direito do Templo, do sul do altar.

1c tynIm'y>h; tyIB;h; @t,K,mii tx;T;mi ~ydIr>yO ~yIM;h;w>`x;Bez>Mil bg<N<mi

e a água descia do lado direito, do

sul, desde o altar.

1c kai. to. u[dwr kate,bainen avpo. tou/

kli,touj tou/ dexiou/ avpo. no,tou evpi. to.

qusiasth,rion

(Ele) me fez sair pelo caminho do

portão norte,

2a hn"Apc' r[;v;-%r,D, ynIaeciAYw;

Depois disso, fez-me sair pelo

caminho da porta, a do norte

2a kai. evxh,gage,n me kata. th.n o`do.n th/j

pu,lhj th/j pro.j borra/n

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me fez rodear o caminho de fora até o

portão de fora, o caminho que se

dirige ao oriente.

2b %r,D, #Wxh; r[;v;-la, #Wx %r<D< ynIBesiy>w:

~ydIq' hn<APh;

Em seguida, fez-me dar a volta pelo

caminho de fora, até a porta do átrio,

a qual olha para o oriente.

2b kai. perih,gage,n me th.n o`do.n e;xwqen

pro.j th.n pu,lhn th/j auvlh/j th/j

blepou,shj katV avnatola,j

E eis que águas fluíam do lado

direito.

2c `tynIm'y>h; @teK'h;-!mi ~yKip;m. ~yIm;-hNEhiw>

E eis que corria água desde o lado

direito

2c kai. ivdou. to. u[dwr katefe,reto avpo. tou/

kli,touj tou/ dexiou/

Saindo o homem para o oriente, 3a ~ydIq' vyaih'-taceB.

Então, saiu um homem, do lado

oposto,

3a kaqw.j e;xodoj avndro.j evx evnanti,aj

com uma linha em sua mão, 3b Ady"B. wq'w>

E na sua mão uma medida, 3b kai. me,tron evn th/| ceiri. auvtou/

mediu mil côvados 3c hM'a;B' @l,a, dm'Y"w:

e mediu mil com a medida 3c kai. dieme,trhsen cili,ouj evn tw/| me,trw|

Fez-me passar pelas águas, águas até

os tornozelos.

3d `~yIs"p.a' yme ~yIM:b; ynIrEbi[]Y:w:

e me fez passar pela água, água que

deixava andar.

3d kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr

avfe,sewj

Mediu mil (côvados) 4a @l,a, dm'Y"w:

E mediu mil (medidas) 4a kai. dieme,trhsen cili,ouj

me fez passar pelas águas, águas até

os joelhos.

4b ~yIK'r>Bi ~yIm; ~yIM;b; ynIrebi[]Y:w:

e me fez passar pela água, água que

me atingia até os joelhos.

4b kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr e[wj

tw/n mhrw/n

Mediu mil (côvados) 4c @l,a, dm'Y"w:

E mediu mil (medidas) 4c kai. dieme,trhsen cili,ouj

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me fez atravessar, águas até os

quadris.

4d `~yIn"t.m' yme ynIrebi[]Y:w:

e me fez passar por água até a

cintura

4d kai. dih/lqen u[dwr e[wj ovsfu,oj

Mediu mil (côvados) 5a @l,a, dm'Y"w:

E mediu mil (côvados) 5a kai. dieme,trhsen cili,ouj

era um rio que (eu) não podia

atravessar,

5b rbo[]l; lk;Wa-al{ rv,a] lx;n::

e não se podia atravessar 5b kai. ouvk hvdu,nato dielqei/n

porque as águas (eram) profundas,

águas de nadar.

5c Wxf' yme ~yIM;h; Wag"-yKi

porque a água tornou-se como

torrente

5c o[ti evxu,brizen to. u[dwr w`j r`oi/zoj

(era um) rio que não podia ser

atravessado

5d `rbe['yE-al{ rv,a] lx;n:

uma corrente que não se podia

atravessar

5d ceima,rrou o]n ouv diabh,sontai

Disse-me: 6a yl;ae rm,aYOw:

E disse-me: 6a kai. ei=pen pro,j me

tu viste, Filho do homem? 6b ~d'a'-!b, t'yair'h]

viste, Filho do homem? 6b eiv e`w,rakaj ui`e. avnqrw,pou

Fez-me ir, fez-me retornar para a

margem do rio.

6c `lx;N"h; tp;f. ynIbeviy>w: ynIkeliAYw:

Levou-me, então, até a margem do

rio.

6c h;gage,n me evpi. to. cei/loj tou/ potamou/

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Quando voltei-me, eis nas margens

do rio, muitas árvores de um lado e

de outro.

7a daom. br; #[e lx;N:h; tp;f.-la, hNEhiw> ynIbeWvB.

`hZ<miW hZ<mi

E tendo me voltado, eis que à

margem do rio havia uma grande

quantidade de árvores em ambas as

margens.

7a evn th/| evpistrofh/| mou kai. ivdou. evpi.

tou/ cei,louj tou/ potamou/ de,ndra

polla. sfo,dra e;nqen kai. e;nqen

Ele me disse: 8a yl;ae rm,aYOw:

Então, disse-me: 8a kai. ei=pen pro,j me

Estas águas saem para a região leste 8b hl'yliG>h;-la, ~yaic.Ay hL,aeh' ~yIM;h;

hn"Amd>Q;h;

esta água sai para a Galiléia 8b to. u[dwr tou/to to. evkporeuo,menon eivj

th.n Galilai,an

e afluem sobre a estepe 8c hb'r'[]h'-l[; Wdr>y"w>

para o oriente, 8c th.n pro.j avnatola.j

e chegam até o mar; 8d hM'Y"h; Wab'W

e desce para a Arábia, 8d kai. kate,bainen evpi. th.n VArabi,an

ao chegarem ao mar, suas águas ficam

curadas.

8e `~yIM'h; WaP.r>nIw> ~yaic'WMh; hM'Y"h;-la,

e vai até o mar, até a água da

passagem e curará as águas

8e kai. h;rceto e[wj evpi. th.n qa,lassan evpi.

to. u[dwr th/j diekbolh/j kai. u`gia,sei

ta. u[data

Acontecerá que todo ser vivente que

se multiplica

9a #rov.yI-rv,a] hY"x; vp,n<-lk' hy"h'w>

E acontecerá que todo ser vivo que se

multiplica

9a kai. e;stai pa/sa yuch. tw/n zw,|wn tw/n

evkzeo,ntwn

Até mesmo todo o que vier aos rios

viverá

9b Hy<x.yI ~yIl;x]n: ~v' aAby" rv,a]-lK' la,

Com aquele que viver por onde quer

que o rio perpasse viverá,

9b evpi. pa,nta evfV a] a'n evpe,lqh| evkei/ o`

potamo,j zh,setai

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haverá peixes em abundância, 9c daom. Hb'r; hg"D'h; hy"h'w>

haverá aí muito peixe, 9c kai. e;stai evkei/ ivcqu.j polu.j sfo,dra

porque para lá vão estas águas 9d hL,aeh' ~yIM:h; hM'v' Wab' yKi

pois lá chegará esta água 9d o[ti h[kei evkei/ to. u[dwr tou/to

Serão curadas 9e Wap.r'yEw>

E (tudo) curadas, 9e kai. u`gia,sei

E vivo será tudo o que vier para lá,

(para) o rio.

9f `lx;N"h; hM'v' aAby"-rv,a] lKo yx'w"

e tudo viverá por onde o rio passar 9f kai. zh,setai pa/n evfV o] a'n evpe,lqh| o`

potamo.j evkei/ zh,setai

Existirão sobre a margem do rio

pescadores de Engedi até Eneglaim

10a ydIG< !y[eme ~ygIW"D; wyl'[' Wdm.['y

~yIl;g>[, !y[e-d[;w>

Acontecerá que os pescadores lá

estarão, desde Aingadin até

Ainagalim

10a kai. sth,sontai evkei/ a`leei/j avpo.

Aingadin e[wj Ainagalim

Para estender as suas redes 10b ~ymir'x]l; x;Ajv.mi

haverá lugar para estenderem as

suas redes,

10b yugmo.j saghnw/n e;stai

E serão segundo sua espécie. 10c hn"ymil. Wyh.yI

Seus peixes, serão segundo a sua

espécie

10c kaqV au`th.n e;stai kai. oi` ivcqu,ej auvth/j

E seus peixes serão como peixes do

grande mar, em abundância.

10d `daom. hB'r; lAdG"h; ~Y"h; tg:d>Ki ~t'g"d> hy<h.Ti

como os peixes do mar grande, em

grande quantidade.

10d w`j oi` ivcqu,ej th/j qala,sshj th/j

mega,lhj plh/qoj polu. sfo,dra

Seus pântanos e seus alagadiços não

serão curados,

11a `WnT'nI xl;m,l. Wap.r"yE al{w> wya'b'g>W wyt'aCoBi

Mas nos seus pântanos e nos seus

alagadiços e nas suas águas profundas

não serão curados suas águas

11a kai. evn th/| diekbolh/| auvtou/ kai. evn th/|

evpistrofh/| auvtou/ kai. evn th/| u`pera,rsei

auvtou/ ouv mh. u`gia,swsin

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serão entregues ao sal. 11b `WnT'nI xl;m,l.

serão deixadas para o sal. 11b eivj a[laj de,dontai

E junto ao rio crescerá nas sua

margem,

12a Atp'f.-l[; hl,[]y: lx;N:h;-l[;w>

E junto ao rio crescerá, em suas

margens

12a kai. evpi. tou/ potamou/ avnabh,setai evpi.

tou/ cei,louj auvtou/

de um lado e de outro toda espécie de

árvore frutífera.

12b lk'a]m;-#[e-lK' hZ<miW hZ<mi

de um lado e de outro lado, toda

espécie de árvore comestível

12b e;nqen kai. e;nqen pa/n xu,lon brw,simon

Suas folhas não murcharão, seus

frutos não cessarão e a seus meses

frutificarão

12c wyv'd"x\l' Ayr>Pi ~ToyI-al{w> Whle[' lAByI-al{

rKeb;y>

e o seu fruto não envelhecerá nela,

nem cairá,

12c ouv mh. palaiwqh/| evpV auvtou/ ouvde. mh.

evkli,ph| o` karpo.j auvtou/

porque suas águas saem do santuário 12d ~yaic.Ay hM'he vD'q.Mih;-!mi wym'yme yKi

produzirá novos frutos, pois as águas

procedem do santuário.

12d th/j kaino,thtoj auvtou/ prwtobolh,sei

dio,ti ta. u[data auvtw/n evk tw/n a`gi,wn

tau/ta evkporeu,etai

seus frutos servirão como alimento 12e lk'a]m;l. Ayr>pi Wyh'w>

E o seu fruto servirá de alimento 12e kai. e;stai o` karpo.j auvtw/n eivj brw/sin

e suas folhas como remédio 12f `hp'Wrt.li Whle['w>

e (a) folha delas de remédio 12f kai. avna,basij auvtw/n eivj u`gi,eian

Optamos por tratar apenas das questões mais relevantes para a crítica textual e a tradução deste texto. v. 1

v. 1a tyIB;h; xt;P,-la, ynIbeviy>w:

(o Anjo) me fez retornar até a entrada do Templo

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LXX - kai. eivsh,gage,n me evpi. ta. pro,qura tou/ oi;kou

E me conduziu para a frente do Templo

O verbo bwv “e ele me fez voltar”446 provavelmente foi atenuado na

Septuaginta com o emprego do aoristo kai. eivsh,gage,n me. Esta mitigação foi seguida

pela Peshitta e pela Vulgata. Possivelmente, a tradução de ynIbeviy>w: para kai. eivsh,gage,n

me seja decorrente da influência de Ez 46,19, onde recorre à mesma construção

gramatical447. A nosso ver, esta mitigação, inserida pela LXX, é fiel ao conceito

verbal contido no hebraico448.

O verbo hebraico bwv no hiphil tem o sentido de “trazer de volta”, “levar de

volta”, convergindo, assim, para a idéia de movimento de retorno. No texto

predomina a idéia de deslocamento espacial.

O termo tyIB;, em seu sentido primário, determina uma casa. Entretanto, aqui,

é traduzido como Templo, tendo em vista o contexto de Ez 40-48, que emprega tyIB;

sempre com referência à visão gloriosa da nova habitação de Deus: o Templo. Das 37

vezes449 em que tyIB; ocorre no livro de Ezequiel, sempre lhe precede o artigo,

reforçando a idéia de tratar-se de um uso mais preciso do termo; o autor descreveria,

assim, uma casa por excelência450.

v. 1b ~ydIq' tyIB;h; ynEp.-yKi hm'ydIq' tyIB;h; !T;p.mi tx;T;mi ~yaic. ~yIm;-hNEhiw>

E eis (que vi) águas que saíam de baixo do limiar do Templo em direção à face

oriental do Templo.

446 Apesar de algumas versões apresentarem este personagem como “um homem”, é notório, através da descrição proposta pelo próprio texto, que se trata de um ser angélico. O papel de intérprete conferido aos anjos é um traço do profetismo tardio (cf. Dn 8,16; 9,21s; 10,5s; Zc 1,8s; 2,2; Ap 1,1; 10,1-11). 447 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums. Neukirchener, Verlag, 1969, 1186. 448 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 599. 449 Cf. Ez 9,3.6.7; 10,4 (2x). 18; 40,45.47.48; 41,5.6.7.13.14.19.26; 42,15; 43,4.5.10.11.12 (2x) .21; 44,4.5.11 (2x).14; 45,5.19.20; 46,24; 47,1 (3x); 48,21. 450 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon. Massachusetts, Hendrickson Publishers, 20005, 108-110. Opção semelhante foi seguida pela LXX, que recorre ao termo oi=koj, literalmente “casa, habitação” para indicar o Templo. Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 1357.

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LXX - kai. ivdou. u[dwr evxeporeu,eto u`poka,twqen tou/ aivqri,ou katV avnatola,j o[ti to.

pro,swpon tou/ oi;kou e;blepen katV avnatola,j

E eis que saía uma água por baixo do átrio, pela parte oriental, porque a frente

do templo estava voltada para o oriente

A palavra !T;p.mi “limiar” pertence à lexicografia própria da literatura

ezequiana (cf. Ez 9,3; 10,4.18; 47,1), sempre indicando o limiar da casa, salvo Ez

46,2, que sinaliza para o limiar da porta451.

v. 1c `x;Bez>Mil bg<N<mi tynIm'y>h; tyIB;h; @t,K,mi tx;T;mi ~ydIr>yO ~yIM;h;w> As águas desciam de baixo do lado direito do Templo, do sul para o altar.

LXX - kai. to. u[dwr kate,bainen avpo. tou/ kli,touj tou/ dexiou/ avpo. no,tou evpi. to.

qusiasth,rion

e a água descia da parte debaixo, desde o lado sul do altar

Optamos pela tradução de bg<n< como orientação geográfica e não como o

topônimo Negueb452 e foi seguida também pela LXX.

Com relação à preposição tx;T;mi “de baixo”, o Texto Massorético antepõe

tx;T;m à expressão tyIB;h; @t,K,mi que é locativo “do lado da casa”, enquanto a

Septuaginta, seguida pela Peshitta e pela Vulgata, provavelmente excluem tx;T;mi453.

Possivelmente, trata-se de uma repetição errônea do v.1a.454. A LXX corrigiu tyIB;h;

@t,K,mi tx;T;mi para @teK'x; !mi455, retirando do texto o termo “casa”. A preposição tx;T;mi

do v.1c não é uma simples repetição do tx;T;mi de v.1b, onde esta possuía a função de

indicar o local de onde brotava a água. Sua função em 1c sugere tratar-se da primeira

451 Há apenas uma ocorrência de !T;p.mi fora do livro de Ezequiel, em 1Sm 5,5. 452 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 417. 453 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,1. 454 Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48. Cambridge/Michigan, Eerdmans Publishing Company, 1998, 687. 455 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament. Fribourg, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1992, 409.

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parte do caminho percorrido pela água ao longo do lado sul na direção frontal456.

Este desvio da água deve-se à posição do altar que impede o percurso direto das

águas rumo ao Oriente.

O Texto Massorético apresenta como recurso ou como forma literária a

partícula !mi na forma contraída, como um modo de unir os termos tx;T; e @teK', criando

uma relação entre as palavras @t,K,mi tx;T;mi. Há uma possibilidade de se traduzir os

dois termos de maneira independente, sem a relação da partícula !mi. Contudo, sua

manutenção é mais adequada. Quanto à possibilidade de alterar @t,K,mi “do lado” para

@t,K,l. “ao lado”457, consideramos desnecessária, posto que !mi também pode expressar

“um local, uma direção, um lado”.

A LXX traduziu tyIB;h; @t,K,mi por avpo. tou/ kli,touj, corrigindo tyIB;h; @t,K,mi

tx;T;mi para @teK'x; !mi, enquanto a Vulgata traduz in latus templi dextrum458. Parece-

nos correta a tradução da expressão hebraica tyIB;h; @t,K,mi tx;T;mi, para o grego da LXX

avpo. tou/ kli,touj tou/ dexiou/, não incorrendo, assim, em uma distorção do conteúdo.

Para tyIB;h; @t,K,mi “do lado da casa”, alguns manuscritos portam !T;p.mi, ao passo que

outros apresentam tyB;h; !T;p.mi459. Consideramos que, apesar da similaridade na

grafia, há uma grande diferença na conotação dos termos.

v. 2

v. 2a hn"Apc' r[;v;-%r,D, ynIaeciAYw;

(Ele) me fez sair pelo caminho do portão norte,

LXX kai. evxh,gage,n me kata. th.n o`do.n th/j pu,lhj th/j pro.j borra/n

Depois disso, fez-me sair pelo caminho da porta, a do norte

456 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 457 Cf. Ibid, 1187. 458 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 410. 459 Respectivamente: Os manuscritos 182 de Kennicott, os manuscritos 158 e 224 e os manuscritos babilonenses Eb 22. Cf. Ibid, 410.

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O aparato crítico indica que hn"Apc' foi lido !Apc'h; “o norte” pelo Códices

fragmentários da Geniza do Cairo com vocalização babilônica, assim como muitas

outras versões460. A introdução do h local não é necessária, uma vez que a intenção

parece ser a de identificar a que portão o profeta foi levado a se dirigir e não a

localização cardeal461.

v. 2b ~ydIq' hn<APh %r,D, #Wxh r[;v;-la, #Wx; %r<D< ynIBesiy>w:

me fez rodear o caminho de fora até ao portão de fora, o caminho que se dirige

ao oriente.

LXX kai. perih,gage,n me th.n o`do.n e;xwqen pro.j th.n pu,lhn th/j auvlh/j th/j

blepou,shj katV avnatola,j

Em seguida, fez-me dar a volta pelo caminho de fora, até a porta do átrio,

a qual olha para o oriente.

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

v. 2c `tynIm'y>h; @teK'h;-!mi ~yKip;m. ~yIm;-hNEhiw>

E eis que águas fluíam do lado direito.

LXX kai. ivdou. to. u[dwr katefe,reto avpo. tou/ kli,touj tou/ dexiou

E eis que corria água desde o lado direito

Em lugar dos dois termos %r,D,;; #Wxh;, a Septuaginta, seguida pela Peshitta,

traz th/j auvlh/j que corresponde ao hebraico rcex'h, (o pátio), mas preferivelmente

460 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,2. 461 A ausência de uma partícula direcional hn'Apc' ou procedência !Apc'mi/ hn'Apc'mi permite uma leitura de hn"Apc' enquanto localização (cf. Ez 8,3; 9,2; 21,3;46,9.19;47,2; 48,1.10.17.31). Este recurso enfático talvez seja conseqüência da proibição ao tráfego humano pelo portão leste (cf. ez 44,1-2). Ez 47,17 é a única citação que recorre à palavra norte como elemento do elenco dos pontos cardeais.

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acomoda %r,D, depois de hn<APh;462. Consideramos que esta transposição esteja correta

uma vez que o verbo relaciona-se com o termo %r,D,, abrindo uma nova seção463. A

inversão, detectada na Segunda Bíblia Armênia, na Vulgata e na Geniza do Cairo de

#Wx %r,D, (caminho de fora) para %r,D, #Wx464, não chega, a nosso ver, a comprometer a

leitura do texto.

A expressão ~ydIq' hn<APh; %r,D, #Wxh; r[;v;-la, de 2b-c foi traduzida na LXX

por pro.j th.n pu,lhn th/j auvlh/j th/j blepou,shj kata. avnatola,j. Sendo seguida pela

Peshitta. Já a Vulgata traduz: portam exteriorem viam quae respiciebat ad orientem e

a Guenizá do Cairo traz: ax"n.ydim"l. x;ytip.Di a['r.T; xr"Aa ha"r"B" a['r.t;l.465. A alteração no

vocábulo que indica a orientação, assim, não caracteriza um problema.

A LXX e a Peshitta assimilaram a expressão ~ydIq' hn<Poh; tymiynIP.h; rcex'h, r[;v; de Ez 46,1. A “porta exterior voltada para o leste”, da qual fala o Texto Massorético,

aqui é o mesmo que se encontra descrito em Ez 44,1, como !Acyxih; vD'q.Mih; r[;v;, que

deverá permanecer fechado e ninguém o cruzará, pois por ele passará o Senhor Deus

de Israel (cf. Ez 44,2).

A Septuaginta leu to. u[dwr “a água”, introduzindo o artigo que não figura no

texto hebraico. O termo “água”, sem artigo, já foi utilizado no v.1a. Por esta razão,

~yIm; é geralmente lido “a água”, como indica a LXX, admitindo, assim, uma

haplografia com relação ao Texto Massorético, sugerindo que este fosse lido com o

artigo ~yIm;466.

v.3

v. 3a ~ydIq' vyaih'-taceB.

Saindo o homem para o oriente,

462 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,2. 463 A palavra %r,D, em grande parte da literatura do AT tem o sentido de guiar-se no caminho de Deus como opção pela verdade do ensinamento da Torah. Tendo o sentido de conversão (cf. Sl 1,1.6; Dt 2,5; Jr 21,8). Haveria portanto uma aproximação teológica entre os textos uma vez que Ezequiel está dentro de uma visão circunscrita ao Templo. 464 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 410. 465 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 466 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,3; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 687.

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LXX aqw.j e;xodoj avndro.j evx evnanti,aj

Então, saiu um homem, do lado oposto,

O aparato crítico propõe ler taceB. como yniaeciwyow;467. O Texto Massorético

teria inserido o verbo Qal infinitivo constructo taceB. como resultado de uma

consciente modificação ulterior, cuja pretensão seria evitar a falsa impressão de que o

profeta tivesse sido conduzido para fora através da porta do oriente que se encontrava

fechada468. A mudança do tempo verbal aponta para uma alteração no promotor da

ação, realizada pelo próprio sujeito, e não mais por um agente externo como se

depreende a partir da construção verbal taceB..

A expressão vyaih'-taceB. une o verbo ao substantivo, e, na opinião de alguns,

é perceptivelmente aditada a esse trecho com a intenção de precisar o instrumento de

medida que o homem porta469. Aquele que sai é o mesmo que acompanha o profeta

e que, portanto, não está dentro de um recinto fechado como indica o sentido básico

do verbo. O substantivo ~ydIq' indica a direção leste ou oriental, para onde dirigiu-se o

sujeito da ação verbal.

v. 3b Ady"B. wq'w>

com uma linha em sua mão,

LXX kai. me,tron evn th/| ceiri. auvtou

tendo na mão uma medida,

O substantivo absoluto wq; é encontrado raramente em outros textos da

Bíblia Hebraica (cf. 1Rs 7,23; 2Rs 21,13; Is 28,17; 2Cr 4,2; Zc 1,16). Uma 467 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,3. 468 A presença do substantivo absoluto wq;. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 469 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.

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aproximação com Ez 40,3 não parece adequada, pois os instrumentos de medida lá

elencados são o cordel de linho e uma cana de medir. O uso de wq; em Ez 47,3b

distancia-se de uma referência metafórica e aproxima-se mais do sentido de

instrumento de medida, tendo em vista o verbo medir de 3c e a figura do homem que

porta este instrumento em 3a.

v. 3c hM'a;B' @l,a, dm'Y"w:

mediu mil côvados

LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj evn tw/| me,trw

e mediu mil [côvados]

A unidade de medida do Texto Massorético é o hM'a;, que a LXX traduziu

como me,tron, seguida pela Vulgata. O vocábulo me,tron está, como o hM'a; relacionado

a uma unidade de medida e não interfere na compreensão do texto470. O termo

hM'a;471, antebraço, côvado, possui aqui a sentido de unidade de medida de

comprimento, com extensão aproximada de 45 cm, a distância média entre o cotovelo

e a extremidade do dedo médio472.

v. 3d `~yIs"p.a' yme ~yIM:b; ynIrEbi[]Y:w:

Fez-me passar pelas águas, águas até os tornozelos.

LXX kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr avfe,sewj

470 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 1270. 471 wq; é um instrumento de medida que afere grandes distâncias lineares (cf. Jr 31,39) ou arredondadas (cf. 1Rs 7,23). Cf. HARTLEY, J. E., “wq;” Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 1329. 472 Esta unidade de medida linear tornou-se mais freqüente nos textos bíblicos relativos ao período pós-exílico. Sobre esta unidade de medida ver: Cf. M. HOLLENBACK, G., “The Dimensions and Capacity of the 'Molten Sea in 1 Kgs 7,23.26”, Biblica 81 (2000) 391-392; SCOTT, J. B., “hM'a” Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 84; “Weights and Measures of the Bible” The Biblical Archaeologist, 22 (1959) 21-40; http://scriptures.lds.org/en/bd/w/7?sr=1; http://www.biblestudy.org/beginner/bible-weights-and-measures.hTexto Massoréticol. Acesso, abril 2007.

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e me fez passar pelas águas, águas que deixavam andar.

A forma ynIrebi[]Y:w: expressa um deslocamento físico. Seguindo a LXX a

mesma idéia quando propõe kai. dih/lqen.

O dual absoluto ~yIs'p.a' (tornozelos) é considerado análogo a ~yIs'p;473. O

termo ~yIs'p.a' pode ser entendido, literalmente, como “as solas dos pés”, no sentido das

duas extremidades do corpo474. Sua ligação com o termo ~yIm; é exclusiva deste texto,

favorecendo a tradução como “tornozelos”, por estar ligada à idéia de quantidade de

água475.

A LXX recorre a (u[dwr) avfe,sewj, que, provavelmente, trata-se de uma

transcrição ulterior grecizada476. A Vulgata aproxima-se mais do sentido do Texto

Massorético, quando emprega usque ad femora. Mas o uso de ad talos pelo Códice

Vaticano é mais preciso, de igual modo a forma alcrwql amd[ presente na tradução

Siríaca477.

v. 4

v. 4 @l,a, dm'Y"w:

Mediu mil (côvados)

LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj

E mediu mil [côvados]

Retoma a construção do v. 3c @l,a, dm'Y"w:, mas omite o instrumento e a

unidade de medida hM'a;B'.

v. 4b ~yIK'r>Bi ~yIm; ~yIM;b; ynIrebi[]Y:w: 473 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 474 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 67. 475 Cf. JOÜON-MURAOKA, A Grammar of Biblical Hebrew. Biblical Institute Press, 1942, § 127b. 476 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 477 O Targum faz opção por !ylwcrq ym, já GQmg, Shmg ASQ e;wj avstraga,lwn. Por influência desta leitura, alguns traduziram “pontas dos pés”. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.

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me fez passar pelas águas, águas até os joelhos.

LXX kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr e[wj tw/n mhrw/n

e me fez passar pelas águas, águas que me atingiam os joelhos.

A LXX traz, assim como o v.3d, kai. dih/lqen no lugar de ynIrebi[]Y:w:, sem causar

danos a leitura do texto478. Com relação ao termo ~yIm;, o aparato crítico adverte para

uma substituição feita pela Geniza do Cairo e muitos outros manuscritos, sendo

seguida pelo Targum, portando a forma constructa yme (águas de)479. Esta substituição

não chega a interferir na compreensão do texto. Quanto à possibilidade da forma

absoluta “águas” insinuar uma justaposição480, trata-se de um reforço para situar o

volume das águas a ser transposto.

A Bíblia Hebraica oferece respaldo à leitura de ~yIM;;B;;, enquanto a LXX apóia

um texto mais curto, mantendo o singular u[dwr. O Texto Massorético,

provavelmente, assimilou ~yIM;B;;;481.

O vocábulo %r,B,482i (joelho) possui o mesmo valor semântico em outros

textos da Sagrada Escritura483. Em 2Sm 2,5 há uma mudança semântica que indica

uma bênção. Talvez isto justifique a leitura encontrada em G967, que traduz a palavra

~yIK'r>Bi por u[dwr euvlogia,j assumindo uma perspectiva sacerdotal de “bênção”. A

versão GBAQ prefere u[dwr e[wj tw/n mhrw/n484. Parece-nos que o texto hebraico de Ez

47,4b não permite uma leitura como a proposta por G967, uma vez que a referência ao

dual joelhos, precedido da idéia de medição do v.3c.4a e pela expressão ~yIs'p.a' yme e

do substantivo água, conduz à noção de crescimento quantitativo da água e distancia-

478 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,4. 479 Cf. Ibid., Aparato crítico para Ez 47,4. 480 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 273. 481 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,4. 482 O prefixo -l[;, nos joelhos, é entendido como sinal de reconhecimento do filho, adoção, afeto, no regaço (cf. Gn 30,3; 50,23; Is 66,12). Quando lvK é precedido por ~yIK;r>biW assume o sentido de fraquejar, vacilar. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 120. 483 Cf. Dt 28,35; Jó 3,12; Is 66,12; Ez 7,17; 21,12; Na 2,11; Eclo 25,23. 484 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.

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se de uma conotação cúltica.

v. 4c @l,a, dm'Y"w:

Mediu mil (côvados)

LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj

E mediu mil [côvados]

Há uma mudança do hiphil, que havia iniciado este versículo, para o Qal na

3ª pessoa masculino singular, apontando uma alteração no agente da ação.

v. 4d `~yIn"t.m' yme ynIrebi[]Y:w:

me fez atravessar, águas até os quadris.

LXX kai. dih/lqen u[dwr e[wj ovsfu,oj

e me fez passar por águas até a cintura

Um novo substantivo dual é empregado ~yIn:t.m', “os lombos”, cujo sentido é

puramente físico e anatômico485. Refere-se aos quadris ou à parte inferior das costas,

demarcando o meio do corpo como medida da correnteza que, tendo a sua origem no

filete d’água que escorria do Templo, subia progressivamente, primeiro até aos

tornozelos, depois até aos joelhos e agora até os quadris486. A tradução “lombos”

comporta semântica diversa de “tendões”, como referência à forte musculatura que

485 Cf. Dt 33,11; Pr 30,31; Jr 48,37; Ez 21,11; 29,11; 47,4; Am 8,10; Na 2,2.11. 486 A tradução de ~yIn"t.mi por “tendões” é defendida por Held. Segundo este autor, o termo hebraico possuiria em sua base o acádico matnu, cujo sentido primeiro era “corda de arco”, bem como o ugarítico mtn que designava um dos materiais com que se produzia o arco extraído dos tendões dos cascos do touro. Cf. HELD, M., Studies in Comparative Semitic Lexicography. In Studies in Honor of Benno Landsberger on his seventy-fifth birthday. Chicago, University of Chicago, 1965, 395-406 (405). Para aprofundamento do tema ver: MAYER W.R., “Akkadische Lexicographie: CAD Q”, Or 72 (2003) 231-242; HUEHMERGARD, J. “New Directions in the Study of Semitic Languages”. In Fs. Albright 1996, 251-272; FLORENTIN, M., Late Samaritan Hebrew: A Linguistic Analysis of Its Different Types. Studies in Semitic Languages & Linguistics. Leiden, Brill, 2005.

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liga a parte superior do corpo à inferior487.

v.5

v. 5a @l,a, dm'Y"w:

Mediu mil (côvados)

LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj

E mediu mil [côvados]

Como já ocorreu em 4a e 4c, há uma omissão do instrumento e da unidade

de medida hM'a;B'.

v. 5b rbo[]l; lk;Wa-al{ rv,a] lx;n::

era um rio que (eu) não podia atravessar,

LXX kai. ouvk hvdu,nato dielqei/n

e não se podia atravessar

O Texto Massorético contém lx;n:, enquanto a LXX e Vulgata a omitem488.

Entendemos que sua manutenção favorece o elemento que contém a noção de volume

de água a que se refere o texto. A opção pelo sinônimo “torrente” é viável, todavia,

tendo em vista os verbos subseqüentes que sugerem o ato de atravessar, seria mais

conveniente o vocábulo “rio”. Esta opção se deve ao fato do termo rio expressar, com

maior precisão, a idéia de um curso de água que se desloca e aumenta seu volume de

forma constante e de modo contínuo, abastecendo a localidade com água em

abundância. A noção de torrente, por sua vez, porta um curso de água temporário e

487 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 608. 488 Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary. Edinburgh, T&T Clark, 1936, 687.

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violento, causador de prejuízos.

Poucos manuscritos hebraicos medievais, a LXX e a Peshitta trazem a

terceira pessoa do singular enquanto o Texto Massorético testemunha a primeira

pessoa do yiqtol489. A leitura em terceira pessoa, proposta pela LXX, seguida pela

Peshitta, alinha a conjugação verbal de lky com as conjugações encontradas em 4c e

5a, nas quais o condutor do profeta é o agente verbal. O testemunho do Texto

Massorético estaria mais correto tendo em vista que a construção lk;Wa-al{ mostra a

relação de possibilidade ou impossibilidade de uma pessoa em relação a um objeto,

no caso, a água. Como o personagem posto em relação com o crescente volume da

água é o profeta, a conjugação na primeira pessoa tornar-se-ia mais adequada. Sendo

assim, o Texto Massorético parece oferecer melhor leitura.

A presença do advérbio de negação al{ e do verbo lky reforça a

compreensão da incapacidade física juntamente com a partícula final l.

v. 5c Wxf' yme ~yIM;h; Wag"-yKi

porque as águas (eram) profundas, águas de nadar.

LXX o[ti evxu,brizen to. u[dwr w`j r`oi/zoj

porque as águas tornaram-se impetuosas

O Texto Massorético traz WaG", literalmente “alto”, enquanto a LXX recorre a

uma personificação: as águas enchem-se de orgulho, evxu,brizen to. u[dwr, a mesma

interpretação pode ser encontrada na Vulgata quando traduz contumeliam faciebant.

O Códice Vaticano recorre a intumuerant490. Tal interpretação não parece ser

necessária, uma vez que o texto vem paulatinamente indicando a noção quantitativa

do volume da água.

A expressão Wxf' yme é rara na Bíblia hebraica, ocorre somente aqui e em Am

489 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,4. 490 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.

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4,13491. Parece não ter sido bem entendida pelas versões, que preferiram uma

interpretação como a encontrada na LXX u[dwr w`j r`oi/zoj ceima,rrou “como o

bramido do riacho no inverno” ou no Códice Vaticano, profundi. O termo Wxf', unido

a yme, possui sentido de “águas de nadar”, aquela que não oferecem condições de

atravessar a pé492. Possivelmente a interpretação presente na LXX seja conseqüência

da personificação concedida ao termo água anteriormente.

v. 5d `rbe['yE-al{ rv,a] lx;n:

(era um) rio que não podia ser atravessado

LXX ceima,rrou o]n ouv diabh,sontai

uma torrente que não se podia atravessar

O v.5d deveria, na visão de alguns pesquisadores, ser completamente

eliminado porque reproduz quase literalmente 5b493. Outros entendem que a

expressão rbo[]l; lk;Wa-al{ rv,a] de 5b foi imitada em 5d, mas não recomendam sua

supressão494. A construção verbal rbE['yE-al{ retoma a idéia de 5b somente em parte.

Sucedendo imediatamente a expressão rbE['yE-al{ assume a função informativa. Já em

5d, o nifal parece cumprir função conclusiva: o rio não pode ser atravessado porque o

volume de água tornou-se imenso.

v.6

v. 6a yl;ae rm,aYOw:

Disse-me:

LXX kai. ei=pen pro,j me eiv

491 Sobre esta fórmula hapax ver: SODEN, W. Von, “Ist im Alten Testament schon vom Schwimmen de rede?”, ZAH 4 (1991) 165,-170. 492 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 965; ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 641. 493 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188. 494 Cf. Ibid, 1188.

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E disse-me:

A expressão rm,aYOw: introduz um discurso em estilo direto, seu destinatário é

uma pessoa concreta como se pode perceber pela presença da partícula preposicional

yl;ae “para mim”.

v. 6b ~d'a'-!b, t'yair'h]

tu viste, Filho do homem?

LXX e`w,rakaj ui`e. avnqrw,pou

viste, Filho do homem?

O artigo que antecede o verbo har possui função interrogativa tal como se

observa em Ex 26,30. Desta forma, a concepção de har como exclamativo não

procede495.

v. 6c `lx;N"h; tp;f. ynIbeviy>w: ynIkeliAYw:

Me fez ir, me fez retornar para a margem do rio

LXX h;gage,n me evpi. to. cei/loj tou/ potamou

Levou-me, então, até a margem do rio.

A fórmula ynIkeliAYw: segue Ez 40,24; 43,1. O Aparato Crítico acusa a supressão

de ynIbeviy>w: pela LXX496. Esta supressão reforçaria a tese de um acréscimo497. Se for

levada em consideração a presença de lx;N"h; tp;f. como um deslocamento, como

sugere o hiphil do verbo bwv, que em Ez 47,6c deve ser entendido como retorno,

conduzir de volta. Tendo em vista que o Texto Massorético tem os dois verbos ynIbEviy>w:

495 Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 687. 496 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,6. 497 Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688.

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ynIkEliAYw:, literalmente, “e me levou e me trouxe de volta”, e que os dois verbos foram

mantidos pela Peshitta498, seria conveniente sua manutenção.

O substantivo feminino singular constructo tp;f., na Geniza do Cairo, em

muitos manuscritos hebraicos e na Bíblia Rabínica, recebe a inserção da preposição

l[;. O Texto Massorético oferece melhor leitura.

v.7

v. 7a `hZ<miW hZ<mi daom. br; #[e lx;N:h; tp;f.-la, hNEhiw> ynIbeWvB.

Quando voltei-me, eis nas margens do rio, muitas árvores de um lado e de

outro.

LXX evn th/| evpistrofh/| mou kai. ivdou. evpi. tou/ cei,louj tou/ potamou/ de,ndra polla.

sfo,dra e;nqen kai. e;nqen

E tendo me voltado, eis que às margens do rio havia uma grande quantidade

de árvores em ambas as margens.

O aparato crítico propõe ynIbeWvB. ybiWvB. como leitura, enquanto outros

manuscritos o omitem499. Provavelmente, houve uma tentativa de melhorar o texto.

A leitura do Texto Massorético seria mais correta por introduzir uma dinâmica

temporal. A presença de um sufixo objetivo B. é tida como anômala, possivelmente,

resultado de uma assimilação de ynIbeviy>w: “e ele me trouxe de volta” como ocorrido no

v.6d500. Esta condição pode ser conseqüência de uma tentativa de melhorar o texto.

A partícula preposicional la, sofreu a ação de retroversão (o texto teria sido

re-traduzido para a língua original) l[;501. A retroversão não constitui um problema

498 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188. 499 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,7. 500 Cf. DRIVER, G.R “Ezekiel: Liguistic and Textual Problems,” Biblica 35 (1954) 299-312 (312). Pensamento análogo pode ser encontrado em Bauer-Leander. Cf. BAUER-LEANDER, Historische Grammalik der Hebräischen Sprache, § 29h. In ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188. 501 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,7.

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sério para o texto, uma vez que as duas preposições determinam a localização do

objeto da interjeição hNEhiw>. Todavia, la, oferece-nos uma idéia de movimento mais

precisa do que l[;, que é mais estática.

A construção tp;f.-la,, na literatura profética, não é muito freqüente e

apresenta-se destituída de preposição (cf. Is 19,18; 47,6.7), com exceção de Ez 36,3,

mas a preposição lá empregada é l[;.

O vocábulo #[e assumindo uma conotação coletiva é encontrado em Ez

47,7b e Lv 23,4; 26,20. A construção br; #[e indica arvoredo espesso. A inclinação

por uma tradução no coletivo se justifica pela presença do adjetivo br;, que expressa a

multiplicidade em número e quantidade. Noção reforçada pelo advérbio daom., que

enfatiza o que lhe sucede. O termo sfo,dra, “muito”, da LXX, foi omitido no Códice

Alexandrino502. A versão da LXX leu o termo no plural, de,ndra,503 mantendo a

idéia de várias árvores dispostas à margem do rio.

Apesar da expressão daom. br; #[e ser também traduzida como “uma árvore

gigante”504, o sentido coletivo é preferível tendo em vista o v. 12.

A LXX reproduziu a idéia de ambivalência presente no Texto Massorético

quando recorre à expressão e;nqen kai. e;nqen505.

v. 8

v. 8a yl;ae rm,aYOw:

Ele me disse:

LXX kai. ei=pen pro,j me

Então, disse-me:

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

502 Cf. RAHLFS, A., Septuaginta. Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1979. Aparato crítico para Ezequiel 47,7. 503 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 444. 504 Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688. 505 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 679.

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v. 8b hn"Amd>Q;h; hl'yliG>h;-la, ~yaic.Ay hL,aeh' ~yIM;h;

Estas águas saem para (a região) leste

LXX to. u[dwr tou/to to. evkporeuo,menon eivj th.n Galilai,an

estas águas saem para a Galiléia

O particípio plural ~yaic.Ay, além de determinar a idéia de continuidade dos

verbos que se seguem, reforça a idéia de quantidade. É raro na Bíblia Hebraica e

constitui linguagem própria de Ezequiel (cf. Ez 14,22; 47,8.12).

v. 8c hb'r'[]h'-l[; Wdr>y"w>

e afluem sobre a estepe

LXX th.n pro.j avnatola.j

para o oriente,

Neste versículo, o verbo dry difere do emprego verbal de Ez 47,1c, quando

se encontrava ligado ao verbo qal acy “manar” e ao substantivo “água”. A noção de

afluir evidencia mais a idéia de um rio que se desloca para o mar, além de receber um

reforço pela presença da preposição l[;. O destino deste deslocamento será

apresentado pelo substantivo hb'r'[]h', “estepe”. A opção pelo termo “estepe” pareceu-

nos mais adequada a este contexto do que “salgueiro” (cf. Lv 23,40; Is 15,7)506. O

mesmo termo é ainda freqüentemente usado como termo geográfico, formando

topônimos (cf. Is 21,13) ou mais propriamente Mar Morto (cf. Js 3,16; 2Rs 14,25).

As indicações de lugar hn"Amd>Q;h;, hb'r"[]h'-l[;, hM'Y"h', hM'Y"h; contidas no v.8bcd

foram mal interpretadas pela LXX e pela Vulgata como topônimos507,

respectivamente: eivj th.n Galilai,na, th.n pro.j avnatola.j e evpi. th.n VArabi,na. O

506 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 516. 507 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 687.

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Códice Vaticano associa hl'yliG; com lG; “monte de pedras” e traduz ad tumulus sabuli

orientalis und ad plana deserti508. Entendemos que a manutenção da leitura proposta

pelo Texto Massorético seja mais adequada.

v. 8d hM'Y"h; Wab'W

e chegam até o mar;

LXX kai. kate,bainen evpi. th.n VArabi,an

e descem para a Arábia,

O Targum identifica o primeiro hM'Y"h; (cf. v. 8b) com o Mar Morto e o

segundo (cf. v. 8d) com o “Grande Mar”, o Mediterrâneo. Esta interpretação apóia-se

no texto de Zc 14,8 e foi retomada pelo Talmud de Jerusalém509.

v. 8e `~yIM'h; WaP.r>nIw> ~yaic'WMh; hM'Y"h;-la,

ao chegarem ao mar, suas águas ficam curadas.

LXX kai. h;rceto e[wj evpi. th.n qa,lassan evpi. to. u[dwr th/j diekbolh/j kai. u`gia,sei

ta. u[data

e vão até o mar e aí lançadas, curarão as águas

A construção hM'Y"h;-la, foi entendida pela Septuaginta, seguida pela Peshitta,

como evpi to. u]dwr, admitindo a leitura de hM'Y"h;-la,. Trata-se de uma tentativa

desnecessária de corrigir o Texto Massorético.

A leitura do Texto Massorético ~yaic'WM)h; hM'Y"h; apresenta o verbo acy no

hophal particípio masculino plural, que, aparentemente, estaria em desacordo com o

singular hM'Y"h;-la,. O primeiro termo não possuiria, para alguns, uma função especifica

508 Cf. Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688; ZIMMERLI, W.,Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188. 509 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 412.

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e, por esta razão, teria sido revisado para ~yM;h;-la, “para as águas”510. A presença do

plural, imediatamente após hM'Y"h;-la,, justifica a leitura do Texto Massorético, tendo

em vista que o ato de desembocar, sinalizado pelo verbo acy, está relacionado com o

grande volume de água que, paulatinamente, foi crescendo ao longo dos v.1a-5d.

O v. 8e é traduzido pela Septuaginta como kai. h;rceto e[wj evpi. th.n

qa,lassan evpi. to. u[dwr th/j diekbolh/j kai. u`gia,sei ta. u[data, e, pela Vulgata, como

intrabunt mare et exibunt et sanabuntur aquae. A segunda aparição do termo hM'Y"h; (o

mar) foi omitida pela Vulgata e entendida como ~yiM;h; pela Septuaginta, bem como

pela Peshitta511. O substantivo feminino singular diekbolh/j teve a partícula di

omitida no Códice Alexandrino512.

Uma leitura do hofal particípio como “seja suja” awc “estagnada” 513 teria

afetado a versão Siríaca que propõe a leitura de “salgada”. Esta leitura acarretou uma

mudança na LXX, que utiliza “salgado”, como se encontrada na LXXQmg. Esta

alteração estaria ancorada no senso popular que emprega ~yciWmx}h; (condimentados).

Tal interpretação é desnecessária, tendo em vista os indicadores de lugar do v.8bcd,

no qual há um deslocamento em direção ao mar como é o destino de um afluente.

Barthélemy observa que a LXX ao traduzir o termo ~yaic'WMh;, utiliza três

vezes o substantivo diekbolh,: em Ez 47,8, recorre a diekbolh, para ~yaic'WMh;; em Ez

47,11, apela a evn th/| diekbolh/| auvtou/ para AtaCoBi, “para a saída dele”, em Ez 48,30, ai`

diekbolai. th/j po,lewj, para ry[ih' taoc.AT “para a saída da cidade”. Estes empregos

levam à conclusão de que a LXX leu AtaCoBi como um substantivo derivado de acy. Possivelmente, esta leitura decorre do fato de que das cinco vezes em que o hofal é

empregado no Texto Massorético, três encontram-se no texto de Ezequiel (cf. Ez

14,22; 38,8; 47,8) e que em alguns destes casos a LXX não percebeu tratar-se de uma

forma verbal passiva. A forma passiva foi reconhecida pela Guenizá do Cairo, mas a

Vulgata a traduziu em forma ativa514. Já a Peshitta compreendeu que esta forma

510 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 273. 511 Segundo Barthélemy, haveria ainda uma assimilação da terceira ou da última palavra deste versículo. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 412. 512 Cf. RAHLFS, A., Septuaginta. Aparato crítico para Ezequiel 47,8. 513 Cf. DRIVER, G. R., “Linguistic and Textual Problems: Ezekiel”, Biblica 19 (1938), 186-187. 514 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 412.

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verbal exerce função de adjetivo de ha"ce (excremento). Provavelmente as

divergências entre as várias traduções decorrem da tentativa de evitar a leitura mais

difícil presente no Texto Massorético. Uma solução possível é a leitura de ~yciWmx}h;,

comparando-a com #ymix' de Is 30,24515.

v.9

v. 9a #rov.yI-rv,a] hY"x; vp,n<-lk' hy"h'w>

Acontecerá que todo ser vivente que se multiplica

LXX kai. e;stai pa/sa yuch. tw/n zw,|wn tw/n evkzeo,ntwn

E acontecerá que todo ser vivo que se multiplica

O substantivo constructo lKo indica a totalidade e, aliado à construção hY"x;

vp,n<, remete à noção quantitativa dos seres que receberão vida: todos. A locução hY"x;

vp,n< “ser vivente” não inclui o gênero humano; quando este é mencionado, utiliza-se

apenas vp,n<.

A partícula rv,a], “que”, revela as primeiras implicações da salubridade da

água. O verbo qal #rv, ligado ao “ser vivente” do v.9a, literalmente significa pulular,

fervilhar (cf. Gn 1,20-21; 8,17; Ex 1,7; 8,3.7.28; Sl 105,30). Embora exista uma

aproximação sinonímica entre #rv e fmr, a noção de fervilhar como muitos está mais

presente em #rv, enquanto fmr tende mais para a noção de um aglomerado

rastejante, lento e sinuoso (cf. Gn 1,30; 7,8.14.21; Lv 11,46). A tradução por

multiplicar torna mais evidente a noção da abundância de seres viventes que se

encontram na água.

v. 9b hy<x.yI ~yIl;x]n: ~v' aAby" rv,a]-lK' la,

Até mesmo todo o que vier aos rios viverá

LXX evpi. pa,nta evfV a] a'n evpe,lqh| evkei/ o` potamo,j zh,setai 515 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.

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Com aquele que viver por onde quer que o rio perpasse viverá,

Advérbio de lugar ~v' “lá”, neste texto, assume valor de procedência e faz

menção a todo ser vivente que procede do rio.

A presença do dual ~yIl;x]n: “dois rios” no Texto Massorético foi tida como

estranha516, incompreensível517 ou influência de Zc 14,8, refletindo uma antiga

tradição judaica518. A LXX, a Vulgata e também o Targum Siríaco fizeram opção

pelo singular lx;N"h “o rio”, como ocorre no v. 9g519.

A leitura no dual ~yIl;x]n: “o rio, o rio formado por elas”, neste versículo, pode

ser decorrente de uma influência do v.8, ou de uma aproximação com a leitura de Dt

8,7; 10,7; Jr 31,9, em que se encontra “rios de água”520 ou ainda do Sl 46,5, onde

~yIl;x;n; é lido como uma torrente que se divide em duas521. Uma delas se dirige para o

mar ocidental e a outra para o mar oriental522. Podemos dizer que as duas propostas,

o dual e o singular, causam uma certa dificuldade ao leitor.

O substantivo masculino dual absoluto ~yIl;x]n: foi compreendido pela LXX

como substantivo singular o` potamo,j e seguem-na a Peshitta, o Targum e a Vulgata.

Provavelmente, lx;N"h; “o rio” foi lido no singular523. Esta leitura pode ser encontrada

no v.9g, como tentativa de concertar o Texto Massorético. Tal tentativa,

possivelmente, se deva, precisamente, ao incomum emprego do dual para o termo

“rio”. Entendemos que há, da parte da LXX, um recurso que visa chamar a atenção

516 O dual foi mantido nas traduções de Pagnini, Brucioli, Jud, Pasteurs e Diodati. Já uma leitura priorizando o plural pode ser encontrada nas traduções de Luther, Münster, Olivetan-Estienne, Rollet, Bíblia de Geneva, King James e em Tremellius. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 413. 517 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189. 518 Esta antiga tradição judaica que os dois rios teriam um eco na fonte dos dois rios de El vivo ou vivente, da mitologia ugarítica. Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 274. 519 Seguem a leitura do singular as traduções de Hätzer-Prédicants, Castalio e Châteillon. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 413. 520 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 274. 521 Esta compreensão dar-se-ia de modo bastante livre, por esta razão, Zimmerli sugere que a leitura deveria ser lx;N'h;. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189. 522 Cooke destaca que a expressão kaqw.j ei=pen h` grafh,( potamoi, de Jo 7,38 está intimamente ligada a Ez 47,9, o que tornaria o texto joanino testemunha indireta do emprego do Texto Massorético em uma forma não singular. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 413. 523 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,9.

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para o termo “rio”.

v. 9c daom. hB'r; hg"D'h; hy"h'w>

haverá peixes em abundância,

LXX kai. e;stai evkei/ ivcqu.j polu.j sfo,dra

haverá ai muitos peixes,

O substantivo hg"D' aparece no Antigo Testamento tanto no feminino como

no masculino, sem uma alteração significativa524. O adjetivo br; possui significado

básico de “muitos” e expressa a multiplicidade em número e em quantidade de

pescado525. O uso adverbial de daom. expressa ou acrescenta ênfase e, associado aos

termos antecedentes, visa chamar atenção para a intensa quantidade de peixes.

v. 9d hL,aeh' ~yIM;h hM'v' Wab' yKi

porque para lá vão estas águas

LXX o[ti h[kei evkei/ to. u[dwr tou/to

pois lá chegarão estas águas

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

v. 9e Wap.r'yEw>

Serão curadas

524 O vocábulo “peixe” era utilizado também para designar uma das portas de Jerusalém, a Porta do Peixe (cf. 2Cr 33,14; Ne 3,3; 12,39; Sf 1,10). Cf. KALLAND, E. S., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 298. Os peixes sem escamas eram considerados imundos em Israel. Cf. ALBRIGHT, W. F., Yahweh and the Gods of Canaan; a historical analysis of two contrasting faiths, Doubleday, New York, 1968; THOMPSON, P. E. S., “The Yahwist Creation Story”, Vetus Testamentum, 21 (1971), 197-208; PATAI, R., “The God Yahweh-Elohim”, American Anthropologist, 75 (1973), 1181-1184. 525 Cf. HARTMANN, TH. “br;”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, col. 905-906; ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 601.

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LXX kai. u`gia,sei

e tudo sarará,

O primeiro verbo é uma variante do niphal Wap.r"yEw> (“e eles serão curados”)

do v. 8e526. A LXX atesta para o v. 9fg uma Vorlage idêntica ao Texto Massorético.

A recensão de Luciano traduz de modo mais preciso o niphal para kai. ivaqh,setai527.

A Vulgata também traduz fielmente o v. 9fg por et sanabuntur.

v. 9f `lx;N"h; hM'v' aAby"-rv,a] lKo yx'w"

E vivo será tudo o que vier para lá, (para) o rio.

LXX kai. zh,setai pa/n evfV o] a'n evpe,lqh| o` potamo.j evkei/ zh,setai

e tudo viverá por onde o rio passar

O substantivo masculino direcional lx;n: acrescido de um h;, é hápax deste

capítulo de Ezequiel (cf. Ez 47,6.7.9.12) e não figura na literatura profética528.

v.10

v. 10a ~yIl;g>[, !y[e-d[;w> ydIG< !y[eme ~ygIW"D; wyl'[' Wdm.[;y

Existirão sobre a margem do rio pescadores de Engedi até Eneglaim

LXX kai. sth,sontai evkei/ a`leei/j avpo. Aingadin e[wj Ainagalim

Acontecerá que os pescadores lá estarão, desde Aingadin até Ainagalim

A forma verbal hy"h'w> foi lida pela LXX como z,h,setai, seguida em parte pela

Peshitta e pela Vulgata, no futuro529. Esta leitura se deve à troca do fonema h pelo

x, acarretando uma alteração do sentido do verbo e, provavelmente por este motivo, o

526 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189. 527 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 414. 528 Fora da literatura profética, podemos encontrar o termo em: Gn 32,24; Dt 3,16; 9,21; 13,9.16; 19,11; 1Sm 17,40; 2Sm 17,13; 24,5; 1Rs 17,6.7; 2Rs 3,16; 2Cr20,16; 32,4; Sb 6,11. 529 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,10.

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vincula ao final do v.9530. Se a forma verbal hy"h'w> for considerada uma fórmula

introdutória531, sua ausência não interfere na tradução e compreensão do texto. Mas,

se for considerado como um verbo com função na frase, deve permanecer, tendo em

vista sua ligação com o verbo Wdm.[;y:532.

O ketiv do verbo Wdm.[' foi lido por poucos manuscritos hebraicos medievais,

como as Edições de B. Kennicott e de G. B. de Rossi, seguidas pela LXX, pela

Peshitta e pela Vulgata como Wdm.[;y: 533.

O substantivo absoluto ydIG< possui etimologia incerta534 e ocorre apenas

duas vezes no corpo profético (cf. Ez 47,10 e Is 11,6). Sua ligação com o substantivo

absoluto !y[e “olho”, “fonte”535, permite a tradução com a idéia de indicação

geográfica: fonte dos cabritos. Isto aparece no livro em Ez 4,14; 29,10; 41,17; 47,10;

48,3.6.

A tradução literal de ~yIl;g>[, seria “bezerro”, sendo a opção Eneglaim um

topônimo. Esta tradução se justifica pela construção !y[e-d[;w>, que aponta para um

espaço geográfico concreto, precisando a origem dos pescadores que se alocarão às

margens do rio.

v. 10b ~ymir'x]l; x;Ajv.mi

Para estender as suas redes

LXX yugmo.j saghnw/n e;stai kaqV au`th.n

530 Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 689. 531 Zimmerli segue Driver sobre a presença do verbo hy"h'w> no Texto Massorético considerando-o como mera fórmula introdutória diretamente ligado ao verbo subseqüente. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189. 532 Segundo Barthélemy, G967 lê kai. z,h,setai. Entendemos que a introdução não interfere na compreensão do texto, podendo, antes, indicar uma ênfase. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 414. 533 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,10. 534 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 132. 535 O termo !y[e comporta a idéia de uma água proveniente de uma abertura numa encosta de morro ou vale, diferenciando-se de “poço” ou “cisterna”. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 490; JENNI, E., VETTER D., “!y[e” Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, col. 336-346.

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haverá lugar para estenderem as suas redes,

O substantivo ~r,xe que aqui, de modo particular, não possui caráter de

maldição, permitindo a tradução com sentido de rede, tarrafa, instrumento de

pesca536.

v. 10c hn"ymil. Wyh.yI

E serão segundo sua espécie.

LXX e;stai kai. oi` ivcqu,ej auvth/j

Seus peixes, segundo a sua espécie serão

A forma verbal Wyh.yI de 3ª pessoa masculino plural, foi lida pela LXX na 3ª

pessoa singular do futuro do indicativo e;stai, sendo seguido, em parte, pela Peshitta e

pela Vulgata537. A alternativa proposta pelo aparato crítico facilita a leitura e

acomoda o verbo com o substantivo hn"ymil. que lhe sucede. O Targum apresenta leitura

discordante do Texto Massorético, propondo Hn"yml538 “espécie dela”.

v. 10d `daom. hB'r; lAdG"h; ~Y"h; tg:d>Ki ~t'g"d> hy<h.Ti

E seus peixes serão como peixes do grande mar, em abundância.

LXX w`j oi` ivcqu,ej th/j qala,sshj th/j mega,lhj plh/qoj polu. sfo,dra

como os peixes do mar grande, em grande quantidade.

536 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 246. O termo ~r,xe é mais conhecido por sua conotação de “anátema, objeto consagrado ou próprio de interdito”. Para maior aprofundamento ver: BREKELMANS, C. “~r,xe”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, col.880. 537 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez 47,10. 538 Cf. Ibid, Aparato crítico para Ez 47,10.

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O Texto Massorético apresenta a forma o substantivo constructo ~t'g"D>, que

foi traduzido pela LXX, seguida em parte pela Vulgata, como oi` ivcqu,ej auvth/j, mas

deve ser lido como wtgd539.

v.11

v. 11a `WnT'nI xl;m,l. Wap.r"yE al{w> wya'b'g>W wyt'aCoBi

Seus pântanos e seus alagadiços não serão curados,

LXX kai. evn th/| diekbolh/| auvtou kai. evn th/| evpistrofh/| auvtou kai. evn th/| u`pera,rsei

auvtou/ ouv mh. u`gia,swsin

Mas os seus pântanos e os seus alagadiços não serão curados suas águas

A LXX, ao propor kai. evn th/| u`pera,rsei auvtou/, demonstra não ter

compreendido o radical hbg540, optando por locais de inundação541.

v. 11b `WnT'nI xl;m,l.

serão entregues ao sal

LXX .eivj a[laj de,dontai

serão deixadas para o sal

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

v.12

v. 12a Atp'f.-l[; hl,[]y: lx;N:h;-l[;w> 539 Cf. Ibid, Aparato crítico para Ez 47,10. 540 Daniel Block discorda de Zimmerli quanto a correção de AtaCoBi para wytwcb por considerar que a fórmula AtaCoBi ocorre em Jó 8,11; 40,21 “como um lugar onde algas crescem” e ainda Jr 38,21. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 689. 541 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189.

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E junto ao rio crescerá nas suas margens,

LXX kai. evpi. tou/ potamou/ avnabh,setai evpi. tou/ cei,louj auvtou/

E junto ao rio crescerá, em suas margens

A forma verbal hl,[]y:,, foi compreendido pela LXX como evpV auvtou/. Segue-a

a Vulgata quando propõe in eo. A segunda imprecisão ocorre com avna,basij auvtw/n

que, na Vulgata, tornou-se ascensio eius.

v. 12b lk'a]m;-#[e-lK' hZ<miW hZ<mi

de um lado e de outro toda espécie de árvore frutífera.

LXX e;nqen kai. e;nqen pa/n xu,lon brw,simon

de uma lado e de outro lado, toda espécie de árvore comestível

A construção hZ<miW hZ<mi concede a noção da presença da árvore em ambas as

margens do rio. Reforça esta presença ambivalente a preposição !mi, que tem como

sentido básico a noção de distância no espaço e no tempo542.

O termo lk'a]m;' “alimento” (cf. Gn 6,21) possui função adjetival e qualifica a

árvore que dá frutos (cf. Lv 19,23; Dt 20,20; Ne 9,25; Ez 47,12b): elas são frutíferas.

A mesma construção dá a noção de pomar, pois são muitas as árvores e servem

especificamente para o alimento543. A idéia do Texto Massorético foi bem

assimilada pelo texto da LXX, quando optou pela tradução xu,lon brw,simon544.

v. 12c rKeb;y> wyv'd"x\l' Ayr>Pi ~ToyI-al{w> Whle[' lAByI-al{

Suas folhas não murcharão, seus frutos não cessarão e a seus meses

Frutificarão

542 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 189. 543 Cf. Ibid. 511. 544 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 381.

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LXX ouv mh palaiwqh/| evpV auvtou ouvde. mh. evkli,ph| o` karpo.j auvtou

e os seus frutos não envelhecerão nela, nem cairão,

A forma Wyh'w>, atestada no Códice de Leningrado, deve ser lida, conforme a

massorah parva, como singular, concordando com o substantivo yrIP..

v. 12d ~yaic.Ay hM'he vD'q.Mih;-!mi wym'yme yK

porque suas águas saem do santuário

LXX th/j kaino,thtoj auvtou/ prwtobolh,sei dio,ti ta. u[data auvtw/n evk tw/n a`gi,wn

tau/ta evkporeu,etai

pois as águas procedem do santuário.

A forma wyv'd'x\ foi traduzida pela LXX como th/j kaino,thtoj auvtou/,

acontecendo o mesmo com a Vulgata.

v.12e lk'a]m;l. Ayr>pi Wyh'w>

seus frutos servirão como alimento

LXX kai. e;stai o` karpo.j auvtw/n eivj brw/sin

E os seus frutos servirão de alimento

Não foram detectados problemas textuais relevantes.

v.12f `hp'Wrt.li Whle['w>

e suas folhas como remédio

LXX kai. avna,basij auvtw/n eivj u`gi,eian

e suas folhas de remédio

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Não foram detectados problemas textuais relevantes.

3.2 Delimitação da unidade

Após as palavras que descrevem os fornos que cozem os sacrifícios

oferecidos pelo povo (cf. Ez 46,21-23)545, a fórmula de direção ynIbeviy>w: de Ez 47,1

sinaliza o início de uma nova unidade literária cujo foco principal encontrar-se-ia

primeiramente na descrição do rio que flui do Templo, das árvores que encontram-se

em ambas as margens do rio e no efeito restaurador que elas produzem (cf. v. 1-7),

seguidos pela interpretação da visão (cf. v. 8-12). Considerando esta temática e tendo

em vista a falta de elementos formais de ligação com o que lhe antecede, o texto

iniciado em Ez 47,1 distingue-se nitidamente do contexto anterior.

Os v. 1-7 desenvolvem coerentemente o tema da origem do rio sua extensão,

profundidade e a constatação da presença de árvores que surgem em ambas as

margens do rio e apresentam-se interligados. Após o deslocamento até a entrada do

Templo e a constatação de que as águas brotavam debaixo de seu limiar, o vidente é

levado a sair (cf. 1-2). Nos v. 3-5 há uma retomada do personagem (o anjo) que havia

conduzido o profeta para fora do local onde se realizava o cozimento dos sacrifícios

(cf. Ez 46,21-23). Esta retomada do personagem do v. 1 confere uma inter-relação

entre os versículos, uma vez que a ação de medição desempenhada pelo anjo está

intimamente relacionada com o rio que brota do limiar do Templo.

O contato entre o v. 6 e os v. 3-5 encontra-se bem sinalizado tanto pela

continuidade da estrutura verbal como pela conclusão da ação desempenhada pelo

condutor do profeta. A indagação que inicia o v. 6b introduz um discurso em estilo

545 John W. Wevers trabalha com a hipótese da perícope de Ez 47,1-12 ter, na sua origem, ter sido a continuidade da seção Ez 44,1-2. A causa de uma desordem no texto atual seria as inserções impostas pelos apocalípticos. Cf. WEVERS, J. W., Ezekiel. London, Eedmans, 1969, 228.

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direto, que não parece sugerir um rompimento com a ação de medir dos v. 3-5546. O

verbo hiphil do v. 6cd segue a mesma estrutura do início do v. 1a, além de manter a

temática do rio. No v. 7, um novo elemento é inserido na cena: em ambas as margens

do rio, o profeta vê árvores que crescem.

Os versículos subseqüentes (cf. v. 8-12) apresentam-se como um discurso

divino formalmente introduzido pela fórmula: “Ele me disse”547. Com o v. 8, temos

o início da exposição das implicações dos elementos que compuseram a narrativa dos

v. 1-7: os v. 8-12 envolvem noções topográfica-natural-terapêutica (cf. v. 8-10) que

descrevem a direção, a eficácia e a ação da água que brotou do limiar do Templo (cf.

v. 1); o v. 11 informa ao profeta que os pântanos e os alagadiços encontrar-se-ão

excluídos da função terapêutica da água que brotou do Templo, eles não serão

renovados, destoando assim, da apresentação dos benefícios da passagem do rio; no

v. 12 há a retomada do tema da restauração produzida pelas águas do rio e a

elucidação da função das árvores que cresciam em suas margens, o que foi diversas

vezes medido pelo condutor do profeta (cf. v. 3-5), proporcionando uma conclusão

para a narrativa visionária.

O v. 13 é iniciado de modo abrupto. O sujeito da cena deixa de ser o profeta

e seu condutor passando para hwIhy> yn"doa]; o conteúdo passa a ser a descrição das

fronteiras da futura terra de Israel e o estilo descritivo também diverge. Por estas

razões, Ez 47,13 dá início a uma nova unidade literária.

3.3 Estrutura do texto

546 Para Zimmerli a declaração de condução do v. 6c-7a interrompe o discurso e introduz um elemento na visão que terá sua interpretação no v.12, mantendo o mesmo vocabulário, o que entendemos ser correto. Entretanto, considerar estes versículos como uma “inábil inserção posterior”, parece-nos uma postura um tanto exagerada. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 547 O discurso divino dos v.8-12 é compreendido por Daniel L. Block como uma interpretação de YHWH que transforma a visão numa “profecia de salvação”. Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 690.

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O estudo sobre a delimitação do texto indicou o início de nossa perícope de

estudo em Ez 47,1 e seu encerramento em Ez 47,12. No interior desta perícope,

contudo, seria possível detectar a presença de duas seções intimamente relacionadas:

v. 1-7 e v. 8-12. A primeira seção v. 1-7 desenvolver-se-ia em torno da temática do

pequeno filete de água que brota do limiar do Templo e paulatinamente cresce, de seu

ordenado monitoramento e seu entorno onde crescem muitas árvores.

A segunda seção (cf. v. 8-12) discorreria a respeito dos efeitos da presença

desta água ao longo de sua trajetória: cura, fartura ou permanência no estado anterior.

3.3.1 As seções548:

3.3.1.1 A primeira seção: v. 1-7549 Em esquema, a organização dos v. 1-7

A visão da fonte que sai do Templo

e seu entorno

tema movimento

1º momento: v. 1-2

o Templo, local para onde é levado o profeta

deslocamento do vidente e a origem da água espacial

2° momento: v. 3-5

aumento gradativo da profundidade aferição

3° momento: v. 6 548 Uma organização mais pormenorizada do texto foi sugerida por Nobile: v.1-2 o rio que desce rumo ao oriente; v.3-5 crescimento paulatino do rio; v.7-12 instauração de uma nova situação paradisíaca. Consideramos que a subdivisão imposta aos v.1-2; 3-5 não se faz necessária uma vez que a temática é a mesma. Cf. NOBILE, M., “Ez 38-39 ed Ez 40-48: I due aspetti complementari del culmine di uno schema cultuale di fundazione”, Antonianum 62 (1987) 141-171. 549 A divisão em duas seções está mais próxima a simetria encontrada na Bíblia Hebraica onde os dois painéis possuem a mesma simetria, contendo o primeiro 100 palavras e o segundo 102. Tal identidade de extensão não parece ser acidental, antes parece tratar-se de uma composição literária deliberada. Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 690.

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retorno do profeta para as margens do rio espacial

questionamento do anjo

4° momento: v. 7

contemplação das árvores nas margens do rio natural

A primeira seção apresenta o deslocamento do profeta para a entrada do

Templo,

erbos no

hiphil: ynI

arquitetô

A trajetória da água (cf. v. 1) segue, primeiramente, pela fachada sul do

Templo,

que deu início ao v. 1a: verbo,

regido no

onde a água tem sua origem (cf. v. 1-2). Em seguida, surge o condutor do

profeta com seu instrumento de medição e a averiguação de sua crescente

profundidade das águas (cf. v. 3-5). Logo após, o profeta é deslocado para as margens

do rio, onde contempla as árvores que crescem em sua margem (cf. v. 6-7).

O primeiro momento (cf. v. 1-2) é marcado pelo emprego de v

beviy>w:, ynIaeciAYw:, ynIBesiy>w:. A idéia de deslocamento, que inicia a seção, demanda a

existência de uma pessoa que esteja em movimento ou um objeto que se desloca; no

texto de Ez 47,1a, o sufixo verbal de 1ª pessoa do singular indica que uma pessoa está

em movimento. O local destinado para o movimento é a entrada do Templo onde um

novo verbo indica que este deslocamento se destina a visão de um objeto concreto,

descrito através do substantivo masculino plural absoluto ~yIm;, “as águas”.

O local de origem destas águas é descrito por meio de uma linguagem

nica que recorre ao vocábulo tx;T;mi “de baixo”, unindo duas partículas: !mi

“de” e tx;T; “em baixo”550. A junção destas preposições confere uma maior precisão

ao local de origem das águas: o Templo, que, na estrutura da frase, é objeto do verbo

~yaic.y.

conduzida, na volta, pela porta norte em direção ao exterior da porta do

oriente. A expressão ~ydIr>yO ~yIM;h;w> remete à ação desempenhada pelas águas que, tendo

sua origem no Templo, iniciam seu deslocamento.

O v. 2a possui a mesma estrutura verbal

grau hiphil, com o sufixo de 1ª pessoa do singular, indicando que quem

550 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48. Word Books, Dallas, Texas, 1990, 273.

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sofre a ação é o profeta; ele é levado a sair, acy, pelo caminho do portão norte. O v.

2b dá continuidade à estrutura apresentada nos demais verbos no grau hiphil e

encontra-se intimamente ligado ao verbo anterior acy, possuindo função de descrever

aquilo que ocorreu após a saída do profeta pelo caminho do portão norte (cf. Ez 47,

2a); ele deve circundar o caminho externo até chegar ao portão de fora.

A forma hn<APh;551, de 2c, encontra-se ligado ao substantivo que lhe antecede

e ao que

edir”,

empregad

:w: “e me fez atravessar”, no

hiphil, pr

ua que jorrou, a princípio timidamente, do limiar do

Templo,

lhe sucede, indicando a direção do caminho552. O substantivo @teK' do v. 2d

tem por função indicar o percurso das águas juntamente com o adjetivo tynIm'y>.

No segundo momento (cf. v. 3-5), predomina o verbo ddm “m

o diversas vezes em Ez 40-47 para apresentar as medidas do Templo. O v.

3a introduz uma ruptura na cadência verbal no hiphil migrando para o Qal e esta

mudança se deve à alteração do personagem que exerce a ação verbal: o condutor do

profeta. Tais alterações, contudo, estão intimamente ligadas com os v. 1-2 tanto pelo

retorno ao personagem do anjo condutor do profeta (cf. v 1), quanto pela água que

brotava do limiar e que será agora objeto de medição553.

No v. 3d há um retorno à construção verbal ynIrebi[]Y

esente nos v. 1-2.

A medição da ág

possui uma marca estilística hiperbólica que impõe índices de dificuldades

graduais ao profeta ao longo dos v. 3-4. Assim é que em 5b ele constata sua

551 Em sua forma Qal aparece quatro vezes na Bíblia Hebraica: em 2Cr 25,23, como substantivo, e as demais em Ezequiel sempre como verbo Qal (cf. Ez 8,3; 11,1; 47,2). 552 A LXX e a Peshitta assimilaram a expressão ~ydIq' hn<Poh; tymiynIP.h; rcex'h, r[;v; de Ez 46,1. A “porta exterior voltada para o leste”, da qual fala o Texto Massorético, aqui é o mesmo que se encontra descrito em Ez 44,1, como !Acyxih; vD'q.Mih; r[;v;, que deverá permanecer fechado e ninguém o cruzará, pois por ele passará o Senhor Deus de Israel (cf. Ez 44,2). Portanto, esta seria a motivação para o guia do profeta o fazer sair pela porta do norte e o transportar depois, por um desvio, pela entrada do leste. Neste momento, o profeta vê que a água escorre do lado direito, do lado sul, pelo vale de Cedron. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 411. 553 O numeral @l,a, (mil) precede, normalmente, uma unidade de medida. Em algumas ocorrências, adquire liames com sentido político-militar (cf. Ex 18,21; Nm 1,16; 31,4; Dt 1,15; 1Cr 13,1; 27,1; Am 5,3); em outras, o sentido de valor extremo como número de anos (cf. Ecl 6,6) ou aquilo que é excessivo (cf. Mq 6,7; Ct 8,12). Assume valor figurado quando relacionado à Pessoa Divina e, neste contexto, a idéia básica parece aludir àquilo que é “indefinível” ou “inumerável”, tal como a misericórdia divina que abrange milhares (cf. Ex 20,6; 34,7; Dt 5,10; Jr 32,18), o número de gerações que ela atinge (cf. Dt 7,9). No modo comparativo o numeral se presta como medida de tempo na dimensão de Deus e dos homens (cf. Sl 90,4). No texto de Ez 47,3c, contudo, o adjetivo @l,a, (mil) segue o valor básico do termo: um numeral, como se pode detectar pelo substantivo que lhe sucede.

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incapacidade de transpor o rio caudaloso descrito nestes versículos. Esta verificação

será elucidada em 5c por meio da partícula yKi que, aqui, introduz uma oração

explicativa: as águas eram profundas.

A expressão rm,aYOw: do v. 6a introduz um discurso em estilo direto, seu

destinatá

to em que um

profeta a

A presença da preposição B. em 7a destoa da formulação verbal que até

agora vin

rio é uma pessoa concreta como se pode perceber pela presença da partícula

preposicional yl;ae “para mim”, vinculando-se ao personagem do profeta do v. 1a. A

pergunta ligada à alocução ~d'a'-!b, t'yair'h] de 6b é, geralmente, um prelúdio para uma

comunicação divina (cf. Ez 8,12.15.17; 1Rs 20,13; 21,29; Jr 3,6)554.

O verbo har é freqüentemente usado para descrever o a

utêntico recebe oráculos da parte de Deus. No presente versículo, para

alguns autores, há uma interrupção no discurso de YHWH, imediatamente após este

prelúdio. Sua continuidade viria após uma nova declaração de condução em Ez 47,8,

com a repetição de yl;ae rm,aYOw:. Todavia, sem outro prelúdio, traria justamente a

explicação que era de se esperar após os v. 1-5555. Esta quebra não interfere

profundamente na dinâmica da compreensão do discurso. O v. 6c retoma a mesma

estrutura verbal no hiphil do início do v. 1a. O estilo recapitulativo de 6d prepara para

o v. 7.

ha sendo utilizada e insere a noção de tempo, como se depreende pela

construção ynIbeWvB.. A partícula B, antecedendo o verbo bwv, situa no tempo aquilo que

ocorre no momento em que o profeta estava retornando às margens do rio. Deste

modo, talvez, mais do que uma inábil inserção posterior ou uma construção

redundante556, estaríamos diante de uma descrição daquilo que foi visto no exato

instante em que o profeta desloca-se em direção às margens do rio. A construção

ynIbeWvB. poderia, assim, ser compreendida como uma oração subordinada adverbial

554 Uma leitura com força exclamatória ao prefixo foi sugerida por Muraoka. Cf. JOÜON-MURAOKA, A Grammar of Biblical Hebrew, § 161b. A maioria, porém, lê na forma interrogativa. Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688; ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188. 555 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 693. 556 Cf. DRIVER, G.R., “Ezekiel: Liguistic and Textual Problems”, Biblica 35 (1954) 312.

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temporal. O verbo bwv, também neste versículo, assume, mais uma vez, a conotação

de movimento em direção oposta ao que se vinha executando. O profeta, até então,

estava adentrando no rio; agora, retoma o caminho em direção às margens.

A construção hNEhiw> de 7b tem por escopo preparar para a visão de algo

importante que se segue, no caso, as árvores que se encontram às margens do rio. O

presente versículo ao mesmo tempo em que conclui a primeira seção, prepara a

segunda, pois, nesta encontrar-se-á a elucidação dos eventos que predominaram na

primeira seção.

3.3.1.2 A segunda seção: v. 8-12

Com a descrição das árvores que cresciam às margens do rio, o v. 7 encerra

a primeira seção e, ao mesmo tempo, oferece o último elemento da cena. A partir do

v. 8, inicia uma nova seção que retomará os principais elementos da seção anterior e

os elucidará. No primeiro momento, a explanação atém-se à topografia do

deslocamento daquela água que brotou do Templo (cf. v.8abc); no segundo momento,

a seus efeitos terapêuticos (v. 8def-10); no terceiro momento, ao elenco dos

elementos excluídos desta cura (cf. v. 11); e, no quarto momento, à descrição da

função das árvores que margeiam o rio que nasceu do Templo (cf. v. 12).

Nesta seção, mesmo possuindo condições semânticas semelhantes àquela da

primeira seção, o termo “água” assumirá uma perspectiva de cunho topográfico-

terapêutico além de ser enquadrada em uma expectativa escatológica.

Em esquema, a organização dos v. 8-12

Deslocamento e conseqüências produzidas

pelas águas que saíram do Templo

1° momento: v. 8abc topográfico

deslocamento das águas e sua orientação

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2° momento: v. 8def-10 primeiro efeito terapêutico da água

elenco das conseqüências de cunho

curativo e de abundância das águas

que saíram do Templo

3° momento: v. 11 elementos em exclusão

elementos excluídos dos efeitos

curativos das águas que saíram do Templo

4° momento: v. 12 segundo efeito terapêutico da água

árvores com frutos abundantes;

função curativa dos frutos e das folhas.

A alocução yl;ae rm,aYOw: do v. 8a retoma o discurso do condutor do profeta de

6b, exercendo função de ligadura entre os duas seções. A repetição desta alocução

tem por objetivo direcionar a atenção, em sua primeira ocorrência, para a

contemplação das árvores (cf. v. 7), aqui, para os efeitos terapêuticos que marcarão os

versículos subseqüentes. Esta mesma alocução indica que o profeta do v. 1a é o

destinatário desta interpretação modelada sobre elementos essencialmente

geográficos, cujo objetivo último é descrever as conseqüências do itinerário das águas

que desciam de baixo do lado direito do Templo do v. 1c.

A forma verbal Wab'W do v. 8d encontra-se intimamente ligada ao sujeito ~yIM:h;

de 8b e a finalidade deste movimento verbal é apresentada pela construção ~yIM:h; onde

o h final possui função direcional. Contudo, somente em 8e se conhece a função do

rio que brotou do Templo: curar as águas do mar.

O v. 8 está articulado sobre quatro expressões que indicam a direção da água.

Primeiro, a água segue em direção ao leste hn"Amd>Q;h; hl'yliG>h;-la,; segundo, a torrente

desce até a estepe hb'r"[]h'-l[;; terceiro, ela chega até o mar hM'Y"h;-la,; e, por fim, ao

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atingir o mar, cura suas águas ~yaic'WMh; hM'Y"h;-la,.

O modelo de articulação sobre a repetição de expressões ocorre também no

v. 9, quando a partícula lKo enfatiza a magnitude da cura operada pelas águas ao

atingirem o mar (v. 8f). A oração causal de 9e não deixa dúvidas sobre a fonte da

cura. A chegada da água que brotou do Templo reaviva o mar, o que resulta na

multiplicação dos peixes e na cura de todo ser vivente. Além de encontrar-se

articulado sobre repetições de expressões, o v. 9 retoma o recurso estilístico

hiperbólico do v. 4.

O estilo prolixo do v. 9 parece desejar promover uma breve recapitulação,

percebida nos v. 6-7, com a finalidade de preparar o versículo subseqüente que

concretiza a imagem proporcionada pelo v. 9. Assim é que tudo ao redor do mar, de

uma extremidade a outra ressalta e ratifica a totalidade da cura das águas que produz

uma enorme fecundação das espécies. Será por causa desta extraordinária

fecundidade que os pescadores se reunirão para espalhar as suas redes (v. 10bcd).

O terceiro momento desta seção dá continuidade à interpretação do

deslocamento das águas, mas, agora, em via negativa, pois será negada,

aparentemente, tanto aos pântanos quanto aos alagadiços, a restauração da vida que,

até o v. 10, era a tônica do efeito da passagem do rio formado pelas águas que sairam

do Templo.

A temática de encerramento do v. 12 é semelhante àquela do v. 7. Lá,

contudo, tivemos a visão das árvores e aqui, a interpretação de sua função na cena:

ela possui abundância de crescimento, encontra-se em ambas as margens do rio e

sortidas de “toda a espécie”. Há aqui um paralelo com a abundância descrita no v. 10

quando este alude à profusão de peixes que existirá no rio. O extraordinário fato das

folhas das árvores não murcharem e seus frutos não serem sazonais não é mérito da

árvore como indica a oração causal de 12d, sua abundância frutífera se deve, aqui e

no v. 10, ao local de sua origem das águas : o templo.

3.4 Ez 47, 1-12: Aspectos semânticos

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A análise do texto de Ez 47,1-12 indicou a existência de duas seções

intimamente relacionadas. A primeira delas (cf. v. 1-7) é centrada na origem da água

que sai do Templo (cf. v. 1-2), seguida pela aferição do crescimento paulatino de sua

profundidade (cf. v. 3-5); a segunda é a percepção das árvores que crescem em ambas

as margens do rio (cf. v. 6-7) 557.

3.4.1 Primeira seção: v. 1-7

a) Primeiro momento: águas brotam do limiar do Templo (v. 1-2)

Os v. 1-2 delineiam os primeiros movimentos do profeta nesta nova cena. O

personagem que conduz o profeta é o “anjo-guia”, cuja missão é gerir a peregrinação

visionária do profeta pelo Templo (cf. Ez 40,3)558.

O primeiro movimento desta cena é o deslocamento do vidente até a frente

do Templo. Embora o verbo bwv, no Antigo Testamento, habitualmente seja usado em

perspectiva teológica para indicar a conversão, seu sentido original reside no âmbito

557 Embora não seja o escopo de nosso trabalho, apresentaremos, de modo sucinto, a questão concernente à datação de Ez 47,1-12. Esta pode ser compendiada em quatro linhas de trabalho: a) o livro teria sido totalmente redigido pelo profeta Ezequiel antes do exílio babilonense. Cf. HÖLSCHER, G., Hesekiel der Dichter und das Buch. Giessen, A. Töpelmann, 1924; HOWIE, C. G., The Date and Composition of Ezekiel, Journal of Biblical Literature Monograph Series, IV. Philadelphia, Society of Biblical Literature, 1950. b) em uma linha oposta, encontra-se C. C. Torrey que, apesar de concordar com a tese de um escrito confeccionado em uma única etapa redacional, discorda quanto à autoria, segundo este autor, o livro de Ezequiel seria uma obra pseudoepígrafa. Um segundo ponto de discordância estaria relacionado com o período de elaboração da obra, esta poderia ser datada em torno do ano 230 a.C. Cf. TORREY, C. C. “Certainly Pseudo-Ezekiel”, JBL 53 (I934) 291-320; BROWNLEE. W. H., “Ezekiel”, The International Standard Bible Encyclopedia. Hardcover, Hendrickson Publishers, 1994, 251. c) em um modelo mais moderado, encontramos Zimmerli. Segundo este autor, o texto ezequieliano teria recebido várias adições, sendo concluído após o exílio. Cf. ZIMMERLI, W., Ezekiel I. Philadelphia, Fortress Press, 1969, 39. d) atualmente, se trabalha com a hipótese de adições posteriores e revisões feitas por discípulos do profeta. Cf. BLOCK, D. The Book of Ezekiel: Chapters 1-24. Eerdmans Publishing Company, 1997. Uma datação possível para os c. 40-48 foi proposta por recentemente por Nobile a partir de dois elementos: a expressão “vigésimo quinto ano” (cf. Ez 40,1) e a presença do estilo apocalíptico nos capítulos 40-48. Estes indícios, segundo o autor, permitiriam situar a feitura destes capítulos em um período de 50 anos após o exílio do rei Joaquim. Cf. NOBILE, M., “ La redazione finale di Ezechiele in rapporto allo schema tripartito”, Liber Annus 56 (2006) 29-46; “Ez 37,1-14 come costitutivo di uno schema cultuale”, Biblica 65 (1984) 476-489; “«Nell'anno trentesimo» (Ez 1,1)”, Anton 59 (1984) 393-402. 558 A opção por um intérprete angélico já foi justificada na filologia de Ez 47,1 do presente trabalho.

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do movimento559. Contudo, esta ação verbal não especifica o tipo de movimento,

visto que ele tanto pode indicar um retorno até o ponto de partida, quanto uma

mudança de direção em sentido contrário ao que se vinha efetuando, sem

necessariamente voltar ao início560. A função reiterativa presente nesta raiz verbal

poderia testemunhar em favor de denotar o bwv, basicamente, como um movimento

em direção oposta ao que se vinha executando, mais precisamente, o sentido de

retorno ao princípio561.

Considerando a ação efetuada neste versículo, não há indícios que possam

relacionar o verbo bwv ao emprego religioso que tem Deus como motivador e

destinatário do movimento de retorno do homem. Antes, a ação proporciona uma

distinção daquela ação que anteriormente havia sido descrita, quando o profeta

encontrava-se na cozinha do Templo562 e agora é deslocado para uma nova direção:

a fachada do Templo onde vê um pequeno fluxo de água que brota do seu limiar.

Deste modo, o verbo bwv estaria indicando uma mudança de direção em sentido

contrário ao que o profeta vinha efetuando anteriormente.

Este reconduzir exercido sobre o profeta pelo anjo-guia tem por meta a

entrada do Templo. O termo tyIB; possui centralidade nesta seção (v.1-7), uma vez que

toda a cena se desenvolve a partir do “Templo”563.

559 O verbo bWv pode ser encontrado tanto no sentido de movimento físico ou de retorno a um estado, uma situação ou personagem, como no teológico, onde a idéia de movimento expressa uma relação religiosa. Cf. VETTER, D., “hNEhi”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1113; HOLLADAY W. L., The Root Sûbh, 7-9. 560 Cf. HOLLADAY W. L., The Root Sûbh, 53. O que determinará o emprego do bwv como movimento de retorno de ou de aproximação volta para será o recurso às diferentes preposições ou com a terminação diretiva h, assimilando a conotação voltar para ou ainda com o !mi retornar de. 561 As implicações teológicas contidas nesta perspectiva são significativas, pois implicam em considerar a conversão como um retorno a uma antiga relação ou um princípio totalmente novo na relação do homem com YHWH. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 661; Cf. HOLLADAY W. L., The Root Sûbh, 53. 562 Há aqui uma discordância entre Zimmerli e Block a respeito da ordem original dos textos. Segundo Zimmerli, Ez 47,1-12 deveria ser localizado imediatamente após Ez 44,1-2 resultando em um deslocamento do ponto de origem que passaria a ser o portão leste exterior. Na concepção de Block, a última notícia sobre o profeta encontra-se em Ez 26, 21-24 e o situa junto aos fornos da cozinha do Templo, de onde é levado para a frente do Templo. Entendemos que a visão de Block apresenta-se como mais lógica, tendo em vista que a proposta de uma alteração na estrutura do livro carece de elementos sólidos. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1190; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 691. A linha de pensamento de Block é compartilhada por Allen. Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 279. 563 A lexicografia deste termo é ampla e apresenta vínculos estreitos com seu ambiente cultural. No Antigo Testamento esta expressão assume diversos níveis semânticos, podendo ser uma residência de

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Além da função de descrever um local de moradia ou a residência real, o

termo tyIB; pode estar ainda relacionado ao Templo, assumindo assim as seguintes

características: é um edifício construído para acolher a divindade e seus ministros e,

por via de regra, encontra-se designado como ~yhil{a/h'-tyBe (cf. Ex 23,19; 34,26; Dn

1,2). Esta particularidade da expressão ~yhil{a/h'-tyBe, na qual o nome de Deus antecede

a palavra tyIB;, exprime, de modo mais preciso, o significado de “Templo” enquanto

lugar onde habita o Nome, segundo a visão deuteronomista (cf. 1Rs 8,13.43)564.

Mas, ao contrário da habitação de uma família em que o edifício contém aqueles que

nele habitam, o templo não pode conter a Deus (cf. 1Rs 8,27). Ele é o recinto onde o

homem eleva a Deus suas preces e com Ele se relaciona (cf. 1Rs 8,33). Deus está

presente nesta casa de modo particular, mas escuta a oração do alto do céu, o lugar de

inverno (cf. Jr 36,22; Am 3,15) ou a sala de banquete (cf. Est 7,8); um quartel general ou a casa dos escravos (cf. Dt 5,6; 6,12; 7,8; 8,14; Ex 20,2). A morada dos mortos era considerada uma casa (cf. Jó 17,13; 30,23), designada como a casa eterna (cf. Sl 49,12; Ecl 12,5). Em outro campo semântico encontramos o vocábulo “casa” vinculado ao significado de pater familias. Neste conceito estão incluídos a esposa, os filhos, quer próprios quer adotados, os parentes que dele dependem e seus escravos (cf. Gn 15,2; 14,14; Ex 20,10). Desta dependência decorre a solidariedade entre o homem e sua casa tanto nas celebrações litúrgicas como nas faltas cometidas contra Deus (cf. Dt 12,17; 14,26; 15,20; Js 2, 12; 6,22; 7,1-15; Gn 7,1; 1Rs 17,15). O material usado para a fabricação de uma casa não atinge seu conceito, sua confecção pode ser de madeira (cf. 1Rs 5,22) ou de pedra (cf. 1Rs 6,7; 7,9; Hb 2,11; Sl 118,22). Se, contudo, sua construção não estiver sob a bênção de Deus, tornar-se-á inútil a sua edificação (cf. Sl 127,1). Quando se trata de um palácio, o habitante principal é o rei e, por isso, chamava-se %l,M,h; tyBe-ta,w> “casa do rei” (cf. Gn 12,15; Jr 39,8). Mas se o termo aborda uma referência a um antepassado que ocupa o trono, ele encontra-se relacionado com a dinastia de Saul (cf. 2Sm 3,1.6.8.10; 9,1-3; 16,5.8; 19,18; ), de Davi (cf. 1Sm 20,16; 1Rs 12,16; 13,2); de Acab (cf. 2Rs 8,18.27). Por fim, pode estar relacionado a algum pertence da casa, um patrimônio, um instrumento, um servo ou um animal. O termo “casa” no universo extra-bíblico: no Egito pode indicar uma construção, a parte dela, como também um recipiente, mas quando vinculada a casa do rei assumia a conotação de “casa por excelência”. Em outros significados pode dizer o templo, neste caso, auxiliado por um genitivo a fim de indicar a divindade que nele habita, pode ainda indicar a morada dos mortos. Na Mesopotâmia, a palavra “casa” está cercada de diversas conotações que perpassam quase o mesmo conteúdo semântico daquele encontrado no Egito: casa, habitação, templo, palácio, bem, campo ou ainda o ato de governar a família, governar a casa ou uma propriedade. Entre os hititas, o vocábulo “casa” está vinculado a qualquer construção sobre um terreno. No ugarítico, abrange tanto a descrição da casa da divindade, o templo, o santuário, como a casa do rei, o palácio ou ainda o depósito de carros de guerra. Na Grécia antiga a expressão “casa”pode ser entendida como : casa, habitação, caverna, templo, palácio, tumba, sala do tesouro, casa do tesouro, bens, família, economia doméstica. Cf. HOFFNER, H. A., “tyIB;” Grande Lessico dell’ Antico Testamento, vol. I, 1277-1278, 1283,1289, 1293. 564 WEINFELD, M., Deuteronomy and the Deuteronomic School, Oxford, Clarendon Press, 1972, 175-178.

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sua habitação por excelência (cf. 1Rs 8,30.32.34.39.43-49). O termo tyb indica ainda

o centro religioso construído em Jerusalém565.

Em Isaías, o templo é designado como casa de oração (cf. Is 56,7) e sua

sacralidade, diferentemente da concepção deuteronomista, deriva do fato de Deus

habitar nele. Por esta razão, para sua casa o povo se dirige com vítimas de sacrifício

(cf. Sl 66,13), para ela se caminha em procissões (cf. Sl 42,5; 55,15), nela se

pronuncia a fórmula de bênção (cf. Sl 118,26) e, somente nela, o homem se sacia de

bens (cf. Sl 65,5). Todavia, o acesso ao templo é fruto da misericórdia de Deus (cf. Sl

5,8). A dignidade desta casa e o amor a ela dedicado decorrem da habitação divina e

esta levará o homem a desejar nela habitar para contemplá-lo (cf. Sl 23,6; 27,4) e

considerar ditosos aqueles que nela habitam (cf. Sl 84,5). O modo pelo qual o homem

pode alcançar esta habitação, já neste mundo, reside na prática da justiça. Deste

modo, ele poderá ser comparado às árvores verdejantes na casa de YHWH (cf. Sl

52,10; 92,14). O templo em si mesmo não é uma garantia da ajuda de Deus. Ele, além

de ser sempre a visibilidade de Deus para o povo, a fim de que este viva segundo a

vontade de YHWH, será um sinal permanente de sua presença e de sua bondade (cf.

Jr 7,7).

Na profecia de Ezequiel, o substantivo tyIB; adquire ainda outras conotações:

yrIm. tyBe “casa da rebelião” (cf. Ez 2,5-8; 3,9.26s) ou laer'f.yI tyBe “casa de Israel” (cf.

Ez 2,3; 3,1.4.5.7)566. Contudo, Ez 47,1 não assimila estas implicações semânticas

propostas em outros momentos da leitura deste livro profético. Antes, assume a

conotação de Templo enquanto lugar onde habita a glória de Deus, o local por

excelência, onde o homem pode com Ele se relacionar e apresentar orações e

súplicas, honrar o Nome e adorá-Lo. A LXX assume a vasta lexicografia da palavra

tyIB; ao traduzí-la por oi=koj, mas não lhe acrescenta nuances semânticas relevantes,

565 Cf. MEYERS, C., “Temple, Jerusalem”, The Anchor Bible Dictionary. Hardcover, Bantam Doubleday Dell Publishing Group, 1992, 351. 566 A incidência da expressão laer'f.yI tyBe é bastante elevada: são encontradas 182 ocorrências do termo no livro de Ezequiel, quase sempre para indicar o povo de Israel.

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mantendo a mesma linha semântica567. Conseqüentemente como no hebraico, o

termo oi=koj pode indicar o “Templo”.

Estando o profeta diante da fachada do Templo, contempla a finalidade de

seu deslocamento: a visão de um pequeno fluxo de água que brota por debaixo do

limiar do Templo. O caráter de deslocamento pode ser, de igual modo, identificado na

LXX, quando recorre ao termo pro,quron antecedido pela preposição evpi,, a fim de

indicar a direção que o anjo-condutor fez o profeta tomar: para a frente do Templo.

O recurso a uma linguagem arquitetônica situa, de modo preciso, o local que

dá origem à água: um pedaço de pedra na base da soleira de entrada568, bem visível

ao olhar de quem se encontra no frontispício do Templo. O destino deste pequeno

fluxo é o portão situado ao leste. Seu itinerário, não obstante, possui alguns percalços,

pois, no meio de seu deslocamento, encontrava-se o altar do Templo que o obrigava

ao desvio (cf. Ez 40,47), primeiro para debaixo do altar no lado direito e depois ao

longo da parede sul do templo, para então cruzar a corte interna em um curso para o

sul do altar569.

Apesar de o local de onde eclode a água, vista pelo profeta, ter sido

precisado com exatidão no texto – debaixo do limiar do Templo – a origem desta

fonte vem sendo muito discutida. As opiniões se dividem em: uma fonte natural570,

567 Cf. MICHEL, O., “oi=koj”, GLNT, vol. V, 341-342. 568 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 395. 569 O altar, enquanto centro do Santuário, é o lugar da sacralidade por excelência, sendo assim, nada de impuro poderá permanecer diante dele, nem a pessoa desabilitada à prática do culto poderá dele aproximar-se, mesmo se esta fosse o próprio rei. Cf. DOHMEN, C., “x;Bez>mi”, GLAT, vol. IV, 1087. O altar pode também ser entendido como o lugar onde ocorre o contato entre o humano e o divino. Cf. HAAK, R., “altar”, The Anchor Bible Dictionary, vol 1, 162-166. 570 A apócrifa Carta de Aristeas a Filócrates descreve uma fonte natural que abastece o templo de Jerusalém com água em abundância. Cf. DIEZ MACHO, A., Apócrifos del Antiguo Testamento II, Madrid, Cristiandad, 1983, 89. Para aprofundar o tema ver: BARCLAY, J. M. G., Diaspora Judaism, In COHN-SHERBOK, D. & COURT, J. M., (eds.). Religious Diversity in the Graeco-Roman World. A Survey of Recent Scholarship. New York, Sheffield Academic Press, 2001, 47-64; Jews in the Mediterranean Diaspora from Alexander to Trajan. Edinburgh, T&T Clark. 1996; CHEVITARESE, A. L., Interações Culturais entre Gregos e Judeus nos Períodos Arcaico, Clássico e Helenístico. In CHEVITARESE, A. L., ARGÔLO, P. F. & RIBEIRO, R. S., (orgs.). Sociedade e Religião na Antiguidade Oriental. Rio de Janeiro, Fábrica de Livros – SENAI, 2000, 112-29. COLLINS, J. J., Cult and Culture: The Limits os Hellenization in Judea. In COLLINS, J. J. & STERLING, G. E. (eds.), Hellenism in the Land of Israel. Notre Dame, Indiana, University of Notre Dame Press, 2001, 38-61. Esta fonte perene de água foi testemunhada, de igual modo, pelo historiador romano Tácito em sua obra Histórias 5. De Tácito, em português, há apenas uma tradução de Adolfo Casais Monteiro da obra Germânia. Cf. TÁCITO, A Germânia. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa, Inquérito, 1941. A obra História de Tácitos pode ser encontrada na Internet. Cf.

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imaginária571, oriunda do vale do Kidron572, discursos mitológicos573. Outros

vêem liames textuais com o Sl 46574 e Gn 2,10-14575, Is 8,6-7; 33,20-24576 ou

então alusão a imagens politeístas577 ou à retomada do templo pré-exílico578, além

de uma sentença contra o povo579.

http://classics.mit.edu/Tacitus/histories.html. Neste endereço há indicações de versões publicadas em outros idiomas. John B. Taylor entende que as tradições sobre uma fonte natural que abastecia o Templo de Jerusalém seriam inverossímeis. A cena estaria mais próxima de uma idealização das bênçãos abundantes de Deus. Cf. TAYLOR, J. B., Ezekiel. Westmont-Califórnia, Intervarsity Press, 1981, 249. 571 As informações da Carta de Aristea e do historiador Tácitos foram consideradas por Simons como “imaginárias” e teriam em seu substrato textos do Antigo Testamento como o de Ez 47. Na opinião de Simons, a água que abastece Jerusalém procede da fonte de Gihon, situada no vale do Kidron. Cf. SIMONS, J. J., Jerusalem in the Old Testament. Leiden, E. J. Brill Smith 1952, 48. 572 Para Zimmerli a fonte que nutre a cidade de Jerusalém e seu templo deve ser encontrada nos diversos aquedutos e, sobretudo, no túnel de Siloé construído por Ezequias, situado aos pés do monte da cidade e do templo no vale do Kidron, a chamada fonte de Gihon. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1192. Zwickel compartilha a mesma opinião, acrescentando a penas que não se pode duvidar do fato que o Gihon seja o rio que é o rio que abastece a cidade de Jerusalém. Cf. ZWICKEL, W., Die Tempelquelle Ez 47 - Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung, EvTh 55 (1995), 140-154 (149). 573 Cf. GUNKEL, H. Das Märchen im Alten Testament. Tübingen-Mohr, 1921, 42-50; AHUIS, A.,“Das Märchen im Alten Testament”, ZTK 86 (1989) 464-470. GRAF, A., Miti, leggende e superstizioni del Medio Evo, Milão, Mondadori, 1996. http://www.classicitaliani.it/ottocent/graf_miti03.htm. Zwickel discorda de Gunkel quanto a presença de uma influência mitológica no texto de Ez 47,1. segundo este autor, a alusão ao rio “trata-se de uma descrição da realidade natural de Jerusalém, mas não de um rio mitológico”. Cf. ZWICKEL, W., Die Tempelquelle Ez 47 - Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung, 149. 574 Estes liames textuais indicam que, já em tempos remotos se falava de “águas”. O rh'n" possui uma função bastante determinada: alegrar com suas wyg"l'P. a cidade de Deus, mais especificamente santificando as moradas do Altíssimo !Ayl.[, ynEK.v.mi. que alegravam a cidade de Deus (cf. Sl 65,10; Is 33,21) e cuja origem era a montanha de Deus, ou seja, o próprio Deus. 575 A conexão com Gn 2,10-14 encontra-se na descrição do paraíso como o lugar de origem dos quatro grandes rios que irrigam toda a terra: !AvyPi, Pison (cf. Eclo 45,23), !AxyGI Geon, lq,D,xi Tigre, tr'P. Eufrates. A conexão poderia ser detectada no contexto da cena que apresenta o paraíso como o lugar da morada de Deus, o lugar da fertilidade, da riqueza, o jardim plantado pelo próprio Deus e a fonte da esperança.Cf. DARR, K. P., “The Wall Around Paradise: Ezekielian Ideas about the Future”, VT 37 (187) 271-279; HALS, R., Ezekiel, Michigan/Cambridge, Eerdmans, 1989; TUELL, S., The Rivers of Paradise: Ezekiel 47:1-12. In BROWN, W. P., and McBRIDE, D. Jr., God Who Creates Essays in Honor of W. Sibley Towner. Michigan/Cambridge, Eerdmans, 2000. O tema de Sião como o lugar da morada de Deus pode ser aprofundado em TUELL, S., “Ezekiel 40-42 as Verbal Icon”, CBQ 58 (1996) 649-664; “The Temple Vision of Ezekiel 40-48: A Program for Restoration?”, PEGLBS 2 (1982) 96-103. 576 Cf. VAWTER, B.; HOPPE, L. J., A New Heart. A Commentary on the Book of Ezekiel. Edinburgh, Eerdmans, 1991, 207 e TAYLOR, J. B., Ezekiel, 250; McKEATING, H., Ezekiel. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995, 102. 577 Alguns autores entendem que a imagem de um rio que procede da morada dos deuses pode ter contribuído para a formação do texto de Ez 47,1-12. A noção contida no termo “rio” seria aquela de uma força devastadora a qual Deus recorreria para punir o seu povo. Cf. GRAY, J., “The Kingship of God in the Prophets and Psalms,” VT 11 (1961)1-29; SCHMID, H. H. “Jahwe und die Kulttradition von Jerusalem” ZAW 67 (1955) 168-197. 191-192; JOHNSON, A.R. Sacral Kingship in Ancient

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A existência de fontes de água disponíveis nesta área constitui, de fato, um

problema de registro desde tempos mais remotos. Davi entrou em sua cidade pelo

“canal de água” (cf. 2Sm 5,8) e Salomão foi ungido rei à fonte Gihon (cf. 1Rs 1,38),

que Ezequias conectou através de um túnel à piscina de Siloé (2Rs 20,20). Menciona-

se uma fonte no monte de Templo em um documento encontrado na área do templo: a

carta de Aristeas. Outras fontes e reservatórios na área podem ter sido cobertos por

terremotos ou destruídos580.

A despeito de toda a narrativa arquitetônica, o escopo desta parece ser

aquele de lembrar o itinerário que YHWH percorreu ao retornar ao Templo (cf. Ez

43,1-5). Esta reconstrução do caminho de YHWH teria como meta mostrar que a

água flui exatamente da presença de Deus. A água fluía do limiar do santuário, de seu

lado oriental e então para o sudoeste do altar no lado sul e daí para o lado sul do

portão oriental (v.2)581. Deste ponto, torna-se um fluxo que flui, no princípio, no

vale do Kidron ficando ao sul, continuando a passar pelo vale do Hinnom e então

tomando o rumo sudoeste582. A motivação para o desvio imposto à água neste

versículo deve ser procurada em Ez 40,47, quando o altar é fixado “diante do Israel. Cardiff, University of Wales Press, 1955; ISHIDA, T., The Royal Dynasties in Ancient Israel: A Study on the Formation. Jerusalém, Walter de Gruyter, 1977. 578 Segundo Zwickel, Ezequiel teria feito algumas modificações conscientes e reinterpretações em sua visão do templo em comparação com o templo pré-exílico e seu mar de bronze, cuja finalidade seria aquela de assegurar, aos visitantes de Jerusalém, que YHWH é o doador das águas e, por conseguinte, da fertilidade e da cura. Cf. ZWICKEL, W., Die Tempelquelle Ez 47 - Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung, 154. 579 Por causa da descrença do povo e de seu rei Acaz (cf. Is 8,6-7), no período da guerra da Assíria e Efraim em 733 aC, o povo havia desprezado a Deus, representado metaforicamente pelas águas que corriam brandamente da montanha, e clamado, juntamente com o rei Acaz, por ajuda a um rei estrangeiro que, por fim, é o executante do juízo de Deus contra seu povo. A imagem do pouco, da fragilidade, se mostrará como Aquele que comanda inclusive as grandes águas do Eufrates. 580 Cf. RITMEYER, L., “Locating the Original Temple Mount”, BAR 18 (1992) 34-36; GIBSON, S.; JACOBSON, D. M. “The Oldest Datable Chambers on the Temple Mount in Jerusalem” The Biblical Archaeologist, 57 (1994), 150-160; ADNA, J., “Jerusalemer Tempel und Tempelmarkt im 1. Jahrhundert N”, The Jewish Quarterly Review, 91 (2001), 507-511 (resenha). Ver também COOKE, The Book of Ezekiel. Edinburgh, T&T Clark, 1986, 517-518. RITMEYER, L., The Temple and the Rock, Ritmeyer Archaeological Design, Harrogate, England, 1996. L. Ritmeyer The Quest - revealing the Temple Mount in Jerusalem, Jerusalem, 2006. L. & K. Ritmeyer Secrets of Jerusalem’s Temple Mount, Updated & Enlarged Edition, Washington DC, 2006. 581 Cf. FISCH, S., Ezekiel: Hebrew Text & English translation with an Introduction and Commentary. London, The Soncino Press, 1950, 323. 582 Na opinião de Cooper, esta descrição do fluxo da água possui semelhanças com a geografia e a topologia que podem ser encontradas na cidade de Jerusalém e em seus arredores até hoje. As mudanças geográficas propostas pelo texto de Ez 47 implicaria que a água seguiria a topografia do terreno alterado no lado oriental da cidade velha. Cf. COOPER, L. E., Ezekiel. The New American Commentary. Broadman & Holman Publishers, 19947, 142.

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Templo”. Por esta razão, em lugar de correr através do átrio rumo ao oriente e à porta

oriental, ela segue, primeiramente, à fachada sul do Templo.

Embora o texto tenha recorrido ao termo bg<n< “Negev” para indicar a

orientação tomada pela água, ele sinaliza o ponto cardeal sul, enquanto que nos c. 40-

42, na descrição da construção do templo, o termo usado era ~ArD'583.

Esta discussão, de cunho topográfico, resume-se, basicamente, em duas

linhas. Na primeira delas, o fluxo de água do monte do templo segue os contornos

naturais da terra, fluindo do Vale do Kidron, a sudoeste do ponto de interseção e

finalmente viraria para o leste. Neste ponto fluiria pelo Wadi en-nar e finalmente

viraria para o leste. O percurso seria o mesmo daquele de um viajante de Jerusalém

para Jericó. Mudanças físicas na área próxima ao portão oriental do Monte do

Templo, no vale do Kidron e no Monte das Oliveiras, foram sugeridas em outros

textos da profecia de Ezequiel (cf. Ez 34,26-30; 36,8-12.30-36; 37,25-28).

A segunda linha está baseada em mudanças geográficas dramáticas que

poderiam ser conseqüência de uma divisão no Monte das Oliveiras como descrita em

Zc 14,4, onde a água fluiria sem obstruções para o Mar Morto584. Outros textos

também recorrem a uma alteração física desta área associada aos últimos dias da

história e do julgamento final (cf; Zc 13,1; Jl 3,18).

Parece-nos, contudo, que o fato mais significativo não está na discussão do

percurso geográfico-topológico da água e sim no local que dá origem à fonte de

água585 da qual deriva o rio: o limiar do santuário, apresentando Deus como a fonte

de vida. O paradoxo repousa na imagem, ao que parece intencional no texto, de um

tênue fluxo de água que parte do lugar da presença de YHWH, conforme indica o

583 Em contrapartida Ez 21,2 possui três designações para o sul: bg<n<), hn"m'yTe, ~Ar+D"-la,. Existem ainda outras formas para compreender o termo “Negev”: seca, estéril, aridez. Na História de Israel o Negeve, entendido como o deserto, converte-se em região estrategicamente importante para a defesa do território de Israel. Cf. BEIT-ARIEH, I., “Negeb”, The Anchor Bible Dictionary, Vol. 4, 1992, 1064. 584 Zimmerli não responde à pergunta se a água flui por uma rota mais direta ou então pela divisão sugerida por Zc 14,4-8 ou se segue os contornos naturais presentes da terra. Mas insinua que a idéia de um fluxo direto por uma “divisão milagrosa” no Monte das Oliveiras seria o que Ezequiel teria descrito em sua visão. Cf. ZIMMERLI, W., Ezekiel 2, 513. 585 Farmer, observa que o termo “água” aparece 14 vezes nesta perícope o que poderia indicar um recurso simbólico. Seria a plenitude multiplicada por dois. Cf. FARMER W. R., Comentário Bíblico Internacional. Navarra, Verbo Divino, 20002, 988.

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recurso ao particípio, que sugere um fluxo contínuo denotando o ato de fluir, escorrer,

pingar através de um pequeno recipiente. O intento do autor sagrado, provavelmente,

seria enfatizar a dimensão modesta da torrente, não maior do que o fluxo de água que

escorre de uma pequena garrafa586. Provavelmente a finalidade de mostrar algo tão

frágil esteja em contraposição à imagem suntuosa da presença da glória do Senhor em

seu Templo (cf. Ez 43,5), que é agora substituída por um tênue riacho que brota do

limiar do Templo (cf. Ez 46,2).

Novamente, a figura do condutor exerce uma ação sobre o profeta, que

agora é conduzido para diante do templo (cf. v.2a). O verbo acy, “sair”, denota a ação

de sair de um local onde anteriormente o personagem estava presente e agora se

coloca a caminho587. Conforme ocorreu com o verbo bwv, o verbo acy não possui,

nesta perícope, liames semânticos com a libertação de Israel das terras do Egito (cf.

Ex 21,2-11) ou com uma conotação de origem ou de nascimento588. Neste momento,

o verbo indica que é imputado ao profeta deslocar-se em direção ao lado exterior do

portão leste, passando, porém, pelo caminho do portão norte. Este deslocamento mais

longo seria conseqüência do bloqueio ao tráfego humano (cf. Ez 44,1-2). Do lado de

fora do portão, é possível observar a água que pinga por debaixo da parede do lado

sul da estrutura do portão. À semelhança do v.1c, o profeta vê a água que brota do

lado sul, em relação a parte exterior da porta do oriente589.

A estrutura do v. 2b foi preservada na LXX. Esta, ao traduzir o termo %r,D,

para o`do,j, manteve o seu sentido primário de “caminho”, enquanto deslocamento

espacial-geográfico590 ou a direção de um determinado movimento. A presença do

verbo peria,gw na 3ª pessoa do singular permite atribuir a ação deste deslocamento ao

586 A fórmula ~yKip;m. é um hápax onomatopaico único na Bíblia Hebraica A pronúncia de ~yKip;m. estaria próxima de qbqb “garrafa” ou %p “cântaro”.Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 691, ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187. 587 Cf. PREUSS, H. D., “acy”, GLAT, vol. III, 931. 588 Cf. Ibid, 932. 589 Jean Steinmann considera que a água que sai do Templo dirige-se primeiramente ao vale do Cedron e, em seguida, toma a direção sul. Cf. STEINMANN, J., Ézéchiel. Paris, Desclée de Brouwer, 1961, 135. 590 Cf. MICHAELIS, W., “o`do,j”, GLNT vol. V, 138-140; SAUER, G., “%r,D,” Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, vol. I, 647.

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anjo condutor do profeta. É ele que faz com que o profeta encaminhe-se para um

novo local: a porta situada ao norte.

O substantivo ~yIm; possui um sentido profundo em Israel, visto que ele está

primariamente entendido como a base de toda a vida591; é a água que possibilita a

fertilidade da terra. Usada metaforicamente, é paradigma para ilustrar o salutar estado

de uma pessoa (cf. Sl 1,3; Jó 29,19), ou a força do faraó do Egito, semelhante ao

cedro que tem água em abundância (cf. Ez 31,4). No futuro, Israel conquistará as

fontes da água da salvação (cf. Is 12,3) e a efusão do espírito de Deus sobre a

descendência de Israel será semelhante às águas abundantes592.

Uma das metáforas mais intensas da água é aquela que faz referência a Deus

como uma fonte de água viva, a fim de indicá-Lo como potência vivificante, aquele

que torna possível a fertilidade, a salvação e a justiça (cf. Jr 17,13)593. Em síntese,

YHWH é apresentado como a fonte da vida e da bênção para todo o seu povo. É por

este motivo que a apostasia foi definida por Jeremias através de duas imagens

intimamente relacionadas: a apostasia é o abandono da fonte de água viva e a

conseqüente necessidade do homem de escavar cisternas. Estas, porém, apresentam-

se sempre com fendas que as tornam incapazes de reter a água (cf. Jr 2,13). A

apostasia, conseqüentemente, leva o homem não somente ao afastamento de seu

Deus, mas o conduz à morte.

No texto de Ezequiel 47,1-12, a metáfora de Deus como fonte de água e

associada ao templo como sua origem converte-se em um grande símbolo da bênção

que virá sobre Israel através da renovação do culto, isto é, do retorno do povo para o

seu Deus594. As idéias de fertilidade, salvação e bênção estão reunidas nesta

perícope de forma tão intensa que a água originada no Templo é capaz de curar até

mesmo as águas do Mar Morto595.

b) segundo momento: medição da profundidade da água que brota do Templo (v. 3-5) 591 Cf. CLEMENTS, R. E., “~yIm;”, GLAT, vol. IV, 845. 592 Cf. Is 44,3; 32,2; 44,4; 55,1; 58,11; Jr 17,8; Ez 17,5.8; 19,10; 31,5-7. 593 Cf. CLEMENTS, R. E., “~yIm;”, GLAT, vol. IV, 860. 594 Cf. Ibid, 860. 595 O termo ~yIm; quando recorre ao eufemismo pode indicar a urina (cf. Ez 7,17; 21,12) ou a virilidade (cf. Is 48,1). Esta conotação está em desacordo com o texto de Ez 47,1-12.

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Neste segundo momento, um novo foco de atenção é proposto ao profeta.

Os v. 3-5 apresentam-se marcados por uma sucessão de “e mediu mil”. A expressão,

contudo, não está em via de contato com Ez 40,3 no que concerne ao instrumento de

medida utilizado. Neste texto, o cordel, que foi utilizado para medir, aferiu as

medidas no interior do Templo e em suas cercanias em um movimento que se

originava do interior do templo para o seu exterior. Já em Ez 47,3 o instrumento é a

linha e o objeto de medida é a extensão do rio que brota do Templo.

A linha que se encontra na mão do anjo condutor serve para medir as

distâncias lineares (cf. Jr 31,39) ou redondas (cf. 1 Rs 7,23). Neste versículo, o

processo de medição596 registra o inaudito procedimento de crescimento do pequeno

fluxo de água, que se torna cada vez mais profundo a cada medição. O verbo ddm é

bastante empregado em Ez 40-47, quase sempre relacionado ao Templo597. Mas, em

outras ocasiões, descreve as medidas dos muros de Jerusalém (cf. Ne 3,11.19), uma

casa espaçosa ou a estatura de um homem (cf. Jr 22,14; 1Cr 11,23; 20,6) ou as

medidas das cortinas do tabernáculo (cf. Ex 26,2.8). Outros textos oferecem uma

semântica que supera a noção de medida concreta humana, indicando coisas que só

Deus pode medir: os oceanos (cf. Is 40,12), a multidão de futuros israelitas (cf. Os

1,10; 2,1) e a descendência de Jacó (cf. Jr 33,22; 31,27). Em linguagem figurada,

pode indicar a porção de Judá que pertence a Deus, mas que será dispersa porque

Dele se esqueceu (cf. Jr 13,35).

O ato de medir, expressado pelo verbo ddm, tem como unidade de aferição o

hM'a; “côvado”. A medição do ser celeste é realizada por meio de quatro intervalos de

mil côvados. Possivelmente este quádruplo ato de medir indica um número de

plenitude598; seu ponto de partida é o portão leste, para onde, no v.2, o anjo havia

conduzido o profeta. Portanto, ao contrário dos c. 40-42, que se dedicam a medir o

596 O problema das medidas modernamente usadas e aquelas encontradas no Antigo Testamento foi abordado por Scott. Cf. SCOTT, R. B. Y., “The Hebrew Cubit”, Journal of Biblical Literature, 77 (1958) 205-214. A mesma discussão é realizada por Alexander e Fisch. Cf. ALEXANDER, R. H., Ezekiel. Grand Rapids , Zondervan, 1986; FISCH, S., Ezekiel. Soncino Books of the Bible. London, The Soncino Press, 1950. 597 Cf. Ez 40, 5.6.8.9.11.13.19.23.27.28.32.47.48; 41, 1.2.3.4.5; 47, 3.4 (2x).5. 598 DUGUID, I. M., Ezekiel. The Niv Application Commentary. Michigan, Zondervan, 533-535, 1999.

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Templo e suas cercanias, Ez 47,3 distancia-se a cada medição do Templo, acentuando

assim, a extensão atingida pelo frágil filete de água que havia sido visto pelo profeta.

O ato de ser levado a ver a água que brotava do Templo (v. 1a) tornou o

profeta testemunha empírica daquilo que lhe era indicado pelo ser celeste. O mesmo

método será utilizado agora pelo anjo, pois, apesar deste estar aferindo a expansão do

rio, o profeta não permanecerá como mero receptor da informação; ele é levado,

novamente, conforme indica a construção verbal ynIrEbi[]Y:w:,599 a averiguar a

profundidade crescente do rio. O elemento concreto desta descrição não nos oferece

indícios de tratar-se de uma ilustração simbólica; ao contrário, a metodologia aplicada

parece querer indicar, com maior realismo, a profundidade da água e a elevação da

corrente do fluxo do rio600.

O parâmetro para o reconhecimento quantitativo das águas é o seu próprio

corpo601. A cada mil côvados, o profeta é introduzido na água e informa a evolução

da profundidade do volume da água previamente medido pelo anjo. Primeiro a água

está até os tornozelos (v.3), depois, até aos joelhos e aos lombos (v.4). Por fim, na

quarta medição o seu corpo já não pode expressar a grandeza do volume da água,

apenas a noção de nadar pode representar a extensão deste volume: “são águas de

nadar” (v.5)602.

599 Tento em vista o objeto direto que sucede o verbo rb[, seria mais correto compreender que a ação verbal indica o ato de atravessar, transpor, percorrer. Divergindo, assim, do emprego no livro de Jó (cf. Jó 17,11-16), quando o hagiógrafo alude à morte, o fim dos dias de um homem. Cf. FUHS, H. F., “rb[”, GLAT, vol. V, 388. Quando é empregado em sentido metafórico, pode estar relacionado à extensão das riquezas de Salomão ou à perversidade de Judá e Israel (cf. Jr 5,28). A metáfora pode, ainda, significar a ruptura da Aliança por parte de Israel e seu estado de putrefação (cf. Jr 13,11). Em um sentido espiritual negativo liga-se ao fato da transgressão da Lei ou da Aliança por meio da prática idolátrica (cf. Dt 17,2) ou, em via positiva, à passagem de Israel para uma vida de Aliança com Deus (cf. Dt 29,11-12). 600 Destoando dos demais pesquisadores, Jeans Steinmann propõe que a origem da elevação das águas do rio seja uma decorrência da presença de diversos afluentes ao longo do percurso do rio. Cf. STEINMANN, J., Ézéchiel. Paris, Desclée de Brouwer, 1953, 135 601 O texto de Ez 37,2 possui situação semelhante quando o profeta é levado a rodear de todos os lados do vale os ossos que nele encontravam-se. A forma ynIr;ybi[/h,w>. possui valor semântico semelhante aquele de Ez 47,3 tornando o profeta testemunha de um determinado fato. 602 Zimmerli sugere que o texto de Is 33,21 colaboraria na compreensão do modo como o profeta deveria atravessar o rio, mas a nosso ver não se trataria de um rio que provê a segurança geopolítica de Israel ou da possibilidade ou impossibilidade de se efetuar esta travessia, mas de uma demonstração concreta da grandeza a que chegou este rio que nasceu de modo tímido, insignificante. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1194.

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Na primeira etapa, o elemento concreto de aferição experimentado pelo

profeta são os seus tornozelos (cf. v.3). O substantivo sp,a' indica fundamentalmente a

“extremidade”, “o fim”603. Sob influxo teológico pode significar o “nada”, tendo

YHWH como o agente direto ou indireto, pois é Ele que põe fim a todas as potências

hostis (cf. Is 34,12) ou, estando ligado ao gênero literário de juízo, indica o fim de

uma determinada situação (cf. Is 40,17). Quando empregado em sentido metafórico,

pode descrever a perversidade de Israel e Judá, que ultrapassava a de todas as demais

nações (cf. Jr 5,28) ou os mortos que passam para a outra vida (cf. Jó 30,15; Pr 22,3),

dentre outras conotações. Aplicado à vida espiritual, faculta duas conotações:

negativa, se indicar a transgressão da Aliança ou da Lei (cf. Dt 17,2); positiva,

quando o povo ou uma pessoa, passa, de uma vida fora de Deus, para uma vida na

Aliança (cf. Dt 29,12 [11])604.

No texto de Ez 47,3, o sentido não parece estar vinculado a uma metáfora,

tendo em vista a construção ~yIM;B;;, onde o substantivo ~yIm;, precedido pela partícula B.,

converte o substantivo dual ~yIs'p.a' em instrumento indicador de sua profundidade. O

dual ~yIs'p.a', associado ao termo ~yIm;, ocorre somente em Ez 47,3605.

O substantivo dual ~yIK'r>Bi em Ez 47,4 refere-se ao segmento de membro

inferior que compreende a articulação da coxa e perna; o mesmo significado é

encontrado em Dt 28,35 e Eclo 25,23606. Neste mesmo versículo é retomada a

expressão @l,a, dm'Y"w: indicando que uma outra etapa da extensão do rio será descrita.

Um novo recurso à construção ynIrebi[]Y:w: relembra que o profeta deverá testemunhar,

através da ação de “passar”, a nova profundidade atingida pelo rio.

603 O termo ~yIs'p.a' em alguns textos indica uma restrição (cf. Nm 13,28; 22,35; 23,13; Dt 15,4; 2Sm 1,5; Am 9,8), a ausência de alguma coisa ou pessoa (cf. Is 34,12; 40,12.29), pode também apresentar-se como partícula negativa (cf. Is 5,8; 54,15; Am 6,10). Cf. HAMP, V., “spa”, GLAT, vol I, 782-783. 604 O termo “extremidade” possui uma semântica divergente em Dt 33,17, quando o sentido é a extremidade da terra com relação ao poder de Deus contra os seus inimigos; Is 52,10 aponta para a extensão mundial da salvação ou Zc 9,10 o alcance do Reino do Messias. A forma substantivada de Gn 47,15.16; Is 16,4; 29,20 sugere os confins da terra #yrI[' spea'-yKi. 605 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 67. 606 Quando precedido das partículas -l[;, -lK', [r;K' indicam a postura do homem frente a um objeto concreto ou o elogio de YHWH por não terem dobrado os joelhos diante dos ídolos. Em outros momentos, a partícula -l[; sugere uma relação de afetividade, como o reconhecimento de um filho por vínculos sanguíneos ou por adoção (cf. Gn 30,3; 50,23; Is 66,12). Quando é sucedido pelo verbo lvk possui significado de fraqueza, vacilação (cf. Is 35,3; Sl 109,24).

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Na segunda etapa, a expressão ~yIK"r>Bi ~yIm: ~yIM:B;, antecedida pela retomada da

ação verbal ynIrEbi[]Y:w:, sugere que o fluxo da água possui, agora, profundidade para

atingir os tornozelos; neste momento atinge os ~yIK'r>Bi “joelhos”.

Na terceira etapa, as águas atingem os ~yIn"t.m' “quadris” e, aqui, pode haver

uma menção à dificuldade de caminhar encontrada pelo profeta em decorrência do

volume crescente da água607.

Na quarta etapa da medição, o profeta já não é mais convidado a passar pelo

rio. Ele constata que o volume de água tomou tal proporção que seu corpo não é mais

suficiente para mensurar. O rio agora só poderia ser atravessado a nado.

A descrição da torrente iniciada pelo pequeno filete de água que brotou do

templo atinge agora o seu ápice. Não resta ao profeta nenhuma medida que possa

elencar a grandiosidade da água que jorra do Templo de Deus. Por esta razão, recorre

ao verbo lky, associando-o à partícula negativa al{, a fim de indicar a total

incapacidade física do profeta, ele se vê incapaz de atravessar o rio608.

O recurso ao termo lx;n: tem por intenção reforçar a noção de intensidade

manifestada pela expressão rbE['yE-al{. O termo lx;n:, “rio”, é equiparado a um vale com

um profundo e torrencial curso de água. Esta potente característica tem sua origem

nas águas, que, no tempo das chuvas, descem dos montes com grande violência609.

O termo lx;n:, no v.5, recebe uma conotação escatológica. De fato, na era messiânica,

águas vivificantes fluiriam do Templo como um rio e serviriam para a restauração da

terra de Israel610.

Uma nova ênfase é apresentada pela forma WaG" “profundas”. O termo WaG"

possui, no Antigo Testamento, um uso pouco freqüente, apenas sete vezes,

distribuído em duas vertentes: primeiro, concreto, significando “ser alto” (cf. Ex 607 Em outros textos a indicação “quadris” está atrelada às forças da procriação (cf. Gn 35,11; 46,26; Ex 1,5; Jz 8,30; 1Rs 8,19; 2Cr 6,9). 608 O verbo lky pode designar a habilidade ou a capacidade em três sentidos básicos: físico, ético e religioso. Os demais sentidos estão relacionados ao comportamento diante dos inimigos (cf. Js 15,63; 17,12; Jz 2,14; Dt 31,2; Is 36,14; Lm 1,14) e à imposição de limites (cf. Dt 17,15; 7,22; 12,17; 12,7; 21,16; Nm 22,18). Outros textos da Sagrada Escritura comportam uma alteração no verbo lky com a finalidade de mudar o sentido do verbo: ausência de controle (cf. Gn 45,1-3), incapacidade de controlar as circunstâncias (cf. Ex 9,11) dentre outros. Cf. SCHÖKEL, L. A., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 277-278. 609 Cf. SNIJDERS, L. A., “lx;n;”, GLAT, vol. V, 758. 610 Cf. TAYLOR, J. B., Ezekiel. London, Tyndale, 1969, 278.

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15,1.21; Jó 8,11), mesmo significado que tem em Ez 47,5c, onde, no curso da

descrição da torrente do Templo, se diz que, com os seus 4000 côvados de extensão,

não era mais possível passar. Qualificando a água encontramos ainda o Sl 46,4

“grandeza” e Sl 89,10 “esplendor”. A segunda vertente está relacionada ao sentido

figurado (cf. Eclo 10,9) “ensoberbecer-se”, seguido por Pr 8,13 “soberba”. O “elevar-

se” do mar assume não somente o significado concreto, mas reveste-se também

daquele metafórico de “cólera” e “insolência”611. Em Ez 47,5, o verbo hag retoma o

seu sentido original que indica o crescimento das águas do rio ao ponto de

converterem-se em uma torrente.

A segunda vertente semântica do verbo hag encontra-se presente na LXX,

este valor de índole mais pejorativa se deve, em parte, à literatura sapiencial612. Por

esta razão, sua ocorrência em 5c foi entendida como um ato de “ensoberbecer-se”,

recorrendo a uma personificação das águas do rio em detrimento de um justo

crescimento do volume das águas como se observa não somente no Texto Hebraico,

como também na LXX, quando recorre por quatro vezes à expressão kai. dieme,trhsen

cili,ouj (cf. v. 3c; 4a; 4c; 5a), mantendo, como no Texto Hebraico, a especificação da

unidade de medida apenas na primeira indicação do ato de medir (cf. v. 3c). A

continuidade do Texto Hebraico na LXX é ainda corroborada pela indicação de um

crescimento paulatino das águas do rio, como o fato da LXX associar ao ato de medir

alguns dos parâmetros encontrados no Texto Hebraico relativos ao corpo do profeta:

mhro,j “coxa” ovsfu,j, “cintura”. Exceção é a expressão ~yIs"p.a' yme (cf. v.3d) que foi

traduzida por u[dwr avfe,sewj retirando a imagem do corpo do profeta como elemento

de aferição da altura da água do rio.

611 A forma hag ocorre em outros textos do livro de Ezequiel, mas em contextos diferentes. Ez 7,4 e 33,28 anunciam o término da força arrogante de Israel; Ez 30,6.18; 32,12 sinaliza para a ruína do poder do Egito. Por fim, Ez 24,21 o Templo de Jerusalém é definido como “orgulho de vossa força e desejo dos vossos olhos” e por isso objeto de uma profecia de destruição. Cf. KELLERMANN, D., “Wag"”, GLAT, vol. I, 1795-1796. 612 Sob a perspectiva sapiencial, o verbo hag assume uma conotação de orgulho e sinaliza para sua conseqüência imediata: o fracasso (cf. Jó 22,29; Pr 16,19). Pode ainda definir a pessoa (cf. Sl 36,12; 59,13; 73,6; 94,2; 140,6). Cf. STÄHLI, H.-P., “hag”, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, vol. I, 547-549.

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c) terceiro momento: deslocamento do profeta para as margens do rio e contemplação

das árvores que crescem em sua margem (v.6-7)

Após seu retorno às margens do rio, no v.6, o profeta descreve, agora,

aquilo que viu ao retornar: muitas árvores em ambas as margens do rio.

Estando a caminho das margens, o profeta vê algo totalmente novo: muitas

árvores de um lado e do outro. A partícula hNEhiw> situa temporalmente o acontecimento

que lhe sucede613, além de enfatizar a informação. A ênfase e a meticulosa indicação

temporal estão diretamente ligadas ao ápice da narrativa614: a constatação da

existência de árvores615 crescendo em ambas as margens do rio. Considerando o

contexto árido da terra de Judá, esta informação torna-se, sem dúvida, inusitada.

O vocábulo #[e em Ez 47,7616 está circunscrito ao conceito de árvores que

se destinam ao alimento, estão ligadas à manutenção da vida do homem e seu número

é impreciso, quer pela possibilidade de entender o termo como um coletivo, como

pelo adjetivo br; que expressa a idéia de abundância, multiplicidade em número e

quantidade, quer de homens e suas agremiações (cf. Gn 26,14; Nm 22,15), seus

animais (cf. Gn 30,43; Jn 4,11; Sl 22,13; 2Cr 26,10; Ez 47,9) ou suas posses (cf. Gn

613 Quando a fórmula hNEhiw> é empregada em cunho teológico, introduz o anúncio profético de juízo e a intervenção divina. Cf. VETTER, D. “hNEhi”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, 707-708. 614 Bolck considera que este verbo hNEhiw> “ver” estaria ligado ao reconhecimento de cunho testemunhal do poder miraculoso de YHWH que, ao aumentar o volume da torrente de água provoca o surgimento exuberante de árvores em ambas as margens do rio. Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 693. 615 Cf. NIELSEN, K., “#[e”, GLAT, vol. VI, 934. 616 O termo #[e “árvore” designa, no Antigo Testamento, tanto a árvore viva quanto o lenho. A palavra #[e pode significar tanto uma única árvore (cf. Gn 18,4.8), quanto um número impreciso delas (cf. Ex 9,25; 10,5; Lv 26,4; Jr 7,20) ou ainda o seu coletivo (cf. Sl 96,12; 104,16; Is 55,12; Jl 1,12) ou simplesmente mais de uma árvore (cf. Ez 17,24; 31,4ss). O referido termo pode ser apresentado em dois grandes grupos, a saber: no primeiro grupo podemos identificar aquelas árvores que se destinam à construção de utensílios como embarcações (cf. Ez 27,5), uma forca (cf. Gn 40,19; Dt 21,22s; Est 2,23), diversos objetos domésticos (cf. Lv 11,32; 15,12; Nm 31,20) ou ainda a destinação de árvores menos nobres como combustível para o sacrifício e para cozinhar (cf. Gn 22,7.9; Lv 1,8; 3,5; 1Rs 18,23.33s); quando a palavra #[e encontra-se atrelada a um ofício, pode identificar seu executor como estrangeiro (cf. Js 9,21). No segundo grupo estão as árvores que se prestam para o alimento. Em Israel, as árvores frutíferas eram essenciais para a sobrevivência, por esta razão, sua fertilidade era entendida como um sinal da graça divina. A ausência desta graça é caracterizada pela presença de espinhos que invadem a vinha, e de ruína (cf. Is 5,6; 7,23; 27,4; 32,13). O contrário, a presença da graça divina transforma os desertos em terra fértil (cf. Is 32,15; 29,17). Cf. NIELSEN, K., “#[e”, GLAT, vol. VI, 935-936.

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13,6; Nm 32,1; Dt 3,19)617. Corrobora a idéia de multiplicidade a construção hZ<miW

hZ<mi que reforça a idéia de abundância e da ambivalência da presença da árvore tanto

de um lado da margem do rio como de outro618.

A noção de “rio” encontrada na LXX aproxima-se daquela contida no Texto

Hebraico e define-se como uma torrente de água contínua e perene619. No texto da

LXX, permanece também a índole escatológica aplicada ao rio que brota do Templo

e, de modo constante, não sazonal, corre em direção à estepe (cf. Ez 47,8).

Na LXX, “kai. ivdou.” ocorre, na maioria dos casos, nos textos narrativos de

visão e tem por escopo chamar a atenção para um objeto concreto. Neste versículo, há

grande quantidade de árvores que cresciam nas margens do rio, aproximando-se

assim, do objetivo da expressão hNEhiw>620. A noção de multiplicidade das árvores em

ambas as margens do rio foi seguida pela LXX, como indica a expressão de,ndra

polla. sfo,dra e;nqen kai. e;nqen.

3.4.2 A segunda seção: v.8-12

A segunda seção concentra-se na explanação atinente à topografia do

deslocamento daquela água que brotou do Templo (cf. v.8abc), seus efeitos

terapêuticos (v.8def-10), elenco dos elementos excluídos desta cura (cf. v.11) e a

descrição da função das árvores que margeiam o rio que nasceu do Templo (cf. v.12).

a) Primeiro momento: deslocamento das águas e sua orientação (v.8abc)

617 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 912; ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 601; HARTMANN, TH. “br;”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 900-914. 618 Allen lança a hipótese de encontrarmos entre o v.7b e Is 41,19 uma conexão. Consideramos que apesar dos liames lexicais existentes entre o emprego de #[ew> de Is 41,19 e #[e de Ez 47,7b a semelhança encerra-se no nível do emprego da mesma palavra e não considera que o emprego em Isaías está vinculado a uma conotação metafórica do mesmo, enquanto em Ez 47,7b não há vestígios de uma metáfora. 619 Cf. RENGSTORF, K. H., “potamo,j”, GLNT, vol. VI, 1493. 620 Cf. VETTER, D., “hNEhi” Diccionario Teológico Manual dell’ Antico Testamento, vol. I, 710.

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Por meio da formula verbal rm,aYOw:, o personagem angélico reassume o

discurso e passa a descrever o percurso da água que havia brotado do Templo até seu

desembocar no Mar Morto.

O verbo rma do v.8a introduz uma frase em estilo direto, cujo escopo é a

elucidação da cena contemplada no v.7621, ao mesmo tempo que exerce a função de

elemento de comunicação entre dois. Destarte pressupõe a compreensão e uma

resposta, isto é, uma reação para que se instaure o diálogo622. O destinatário do

verbo rma é o profeta, como indica a presença da partícula yl;ae: será ele que deverá

apreender aquilo que a cena e o anjo lhe revelam623.

A primeira elucidação oferecida pelo anjo é a direção tomada pelas águas:

elas saem na direção leste. O verbo acy exprime seu sentido básico, “sair” enquanto

deslocamento geográfico, as águas saem de um determinado ponto para um outro624.

A terminologia “região oriental” indica a direção da água625. Esta

designação não é encontrada em nenhum outro lugar do Antigo Testamento. Por isso,

não seria correto ver nesta expressão nenhum nome concreto de região, mas apenas,

uma descrição geral de uma região que abrange de Jerusalém ao Jordão (cf. Js 13,2; Jl

4,4). A água desloca-se em direção a uma região inóspita da terra da Palestina, a

Arabah. O termo Arabah626 é usado para definir uma parcela que abrange o mar da

Galiléia ao norte e, ao sul, o vale do Jordão e o Mar Morto, além do Golfo de

Araba627. A presença do artigo definido designa uma região geográfica

621 É próprio do verbo rma ser a expressão própria de um sujeito, perceptível por um outro sujeito, ou seja, provoca uma relação interpessoal. Cf. WAGNER, S., “rma”, GLAT, vol. I 710. 622 Cf. WAGNER, S., “rma”, GLAT, vol. I, 714. 623 Cf. SCHMID, H. H., “rma”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, 322-325. 624 Os diversos matizes propostos para este verbo apontam para outras conotações que divergem deste versículo: migrar (cf. Gn 10,11; 11,31; 12,4-5), ponto de partida (cf. Nm 33,), empreender algo (cf. Jz 2,15; 1Rs 18,5), partir para a batalha (cf. Gn 14,8; Nm 1,3.20ss; Dt 20,1; 23,10). Quando o verbo acy tem por sujeito o próprio YHWH, descreve, de modo geral, uma ação teofânica (cf. Ez 10,18; Mq 7,15; Is 26,21; 42,13...). 625 Cf. ZIMMERLI, W., Ezekiel 2. 1196. 626 Cooper entende que a Araba pode ser hoje situadana planície que continua ao sul do Mar Morto entre as montanhas da Transjordânia no leste e as montanhas da Judéia no oeste que conecta a região do Mar Morto com o Golfo de Aqaba/Eliat. Cf. COOPER, L. E., The New American Commentary, 412. Na mesma linha encontramos: FISCH, S., Ezekiel, 325; WEVERS, J. W., Ezekiel. London, Eerdmans, 1969, 335. 627 Cf. SEELY, D. R., “Arabah”, The Anchor Bible Dictionary, Vol. I, 321.

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específica628. Seu fluxo percorre a Arabah (cf. v.8) e entra no Mar Morto,

provavelmente pelo lado norte e nas proximidades onde o Jordão deságua.

b) Segundo momento: efeito curativo das águas e a abundância de peixes (v.8de-10)

Com a expressão hM'Y"h; Wab'W, as águas que ininterruptamente vinham se

deslocando, encontram o término de sua jornada quando chegam ao mar. O verbo awb

indica um movimento finalizado no tempo e no espaço629. O mar situado nestas

cercanias é o Mar Morto630, geralmente, hoje, identificado com a depressão sul que

termina no Golfo de Aqabah631.

O verbo apr tem como significado fundamental “curar, restabelecer”. São

inúmeros os empregos deste verbo. O que determinará sua conotação é a realidade

para qual é utilizado: restauração de objetos (cf. Jr 19,11), sanar ou reparar (cf. 2Cr

7,14; 1Rs 18,30). Na literatura profética, apr é, freqüentemente, usado com relação às

feridas, ulceras e lesões; esta metáfora adverte para o mau estado do povo (cf. Os

5,13; Jr 30,13.17; 33,6), uma ferida ocasionada por um golpe632, uma fratura633.

Estando Deus como agente da cura, sua conotação passa a ser a de suspensão do agir

punitivo divino634. Esta mudança de atitude divina supõe a decisão de salvação do

povo de Israel que se desviara (cf. Gn 12,17; 20,17;Lv 26,16.25; Dt 28,27.35). Na

628 Cf. Ibid., 323. 629 Cf. PREUSS, H. D., “awb”, GLAT, vol. I, 1084. 630 O mar indicado no texto é o Mar Morto. Cf. COOPER, L. E., Ezekiel, 412. Compartilham desta opinião Zimmerli e Cooke. Cf. ZIMMERLI, Ezekiel 2, 510; COOKE, G. A., Ezekiel, 520. 631 Segundo Block, o mensageiro parece não estar a par dos problemas geográficos enfrentados por este curso d’água. Para que a água pudesse fluir de Jerusalém para o Vale do Jordão ela deveria fluir antes para Kidron, subir o monte das Oliveiras, e então cruzar uma série de vales e montanhas de larga extensão antes de alcançar seu destino. Se ele imagina uma divisão das barreiras como aquela vista em Zac. 14:4 ou não, a cena pediria um ato miraculoso, como aquele experimentado pelos Israelitas no Mar Vermelho. Ao invés de criar um caminho seco pelo mar, este fluxo santo produz um curso d’água através do deserto. Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 694. O golfo de Aqaba (em árabe: Bahr el-Akabah), também chamado de golfo de Eilat, consiste da baía nordeste do mar Vermelho e separa a Arábia da Península do Sinai. Os países banhados pelo golfo de Aqaba são o Egito, Israel, Jordânia, (a cidade de Aqaba fica na Jordânia) bem como a Arábia Saudita. A baía tem uma extensão de cerca de 175 km, no seu local mais amplo mede 29 km. A maior profundidade fica a cerca de 1.827m. Cf. RASMUSSEN, Carl G., Atlas of the Bible. Grand Rapids, Michigan, Zondervan Publishing House, 1999, 44-45; BEITZEL, B. J., The Moody Atlas of the Bible Lands. Chicago, Moody Press, 1985. 632 Cf. Is 30,16; Jr 14,19; 15,18; 30,17; Is 19,22; 57,17s. 633 Cf. Dt 32,39; Is 30,26; Jr 6,14; Ez 30,21; 34,4; Os 6,1; Jó 5,18; Lm 2,13. 634 Cf. Jr 19,11; 30,12-13.17; 33,6; 46,11; 51,8-9; Is 19,22; 30,26; 53,5; 57,18-19.

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linguagem sacerdotal, apr pode indicar a mudança de impuro para puro. Esta

faculdade decorre da função dos sacerdotes, pois a eles cabia determinar a virulência

das enfermidades cutâneas (cf. Lv 13,18ss.37; 14,3s)635. O texto de Ez 47,8.9.11 se

enquadra, simultaneamente, no contexto fundamental do termo “curar, restabelecer” e

na perspectiva profética que tem YHWH por agente da cura. Assim é que o objeto da

cura é o Mar Morto, porém esta cura pertence a um outro, como evidencia a forma

WaP.r>nIw>. O beneficiado não desempenha nenhuma função, não é a origem da cura, é, ao

contrário, portador de uma carência que torna suas águas tão funestas que nada nela

sobrevive. A mudança de estado das águas do mar resulta de uma ação direta das

águas que brotaram no Templo de Deus que agora chegam a seu termo.

As conseqüências da cura das águas começam a ser delineadas a partir do

v.9, conforme nos sugere a construção hy"h'w>636. A oração causal hL,aeh' ~yIM:h; hM'v' Wab'

yKi não deixa dúvidas sobre a fonte da cura. A abrangência desta conseqüência não

permite a exclusão de nenhum ser vivente, como se depreende pela presença da

expressão vp,n<å-lK'637. Na LXX o vocábulo zw/|on, “ser vivente”, abrange tanto o ser

635 Os sacerdotes, contudo, estabelecem apenas um diagnóstico, não têm competência para curar o povo: o único que possui aptidão para tal é YHWH (cf. Os 14,5). É precisamente através desta metáfora de YHWH como “médico de seu povo” que o verbo apr recebe seu conteúdo mais profundo. A consciência humana da necessidade da cura que só pode vir de Deus fundamenta-se no anseio de ver restaurada, em si mesmo, a glória de Deus. Este anseio não exclui o desejo de readquirir o vigor físico que o pecado deixou como legado (cf. Nm 12,9ss; Sl 103,3; 147,33). Neste contexto, apr assume um novo e mais profundo conteúdo, que expressa ao mesmo tempo a cura e o perdão. Cf. STOEBE, H. T. “xcr”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1014-1015. 636 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 224-225. 637 O termo vp,n< possui uma gama de significados, podendo ser traduzido, quando empregado como verbo, como “repouso, descanso” (cf. Ex 23,12; 31,17; 2Sm 16,14). Em alguns textos, a palavra vp,n< apresenta conexões mais próxima com a existência do ser, descrevendo-o como “animado; vivo” (cf. Gn 1,30; Jó 41,13), “ser vivente”, no sentido daquele que possui o “hálito de vida” (cf. 1Rs 17, 21.22; Gn 2,7). A expressão “ser vivente” abarca tanto a realidade humana como a animal e aparece apenas em contexto de criação e dilúvio (cf. Gn 1,20.21.24; 9,10.12.15.16). Em outros textos, a identificação de vp,n< com ~D', este último isoladamente, não traz a conotação de “vida”, assume o sentido de sede da vida porque o vapor que sai do sangue recém-derramado é considerado como o calor vital (cf. Dt 12,23; Lv 17,14). Desta concepção decorre a proibição de comer o sangue (cf. Gn 9,4), ele deve ser derramado ao chão (cf. Dt 12,24) ou coberto com terra (cf. 17,13); derramar o sangue de alguém é o mesmo que tirar-lhe a vida (cf. Gn 9,6; 37,22). Em outro grupo de textos, vp,n< encontra-se mais na esfera do ato de respirar enquanto sinal de vida (cf. Is 51,23; Sl 105,18). Conseqüentemente, vp,n< assume o sentido de hálito vital (cf. 2Sm 1,9; Jr 38,16) ou da própria vida (cf. Ex 21,23), podendo indicar a salvação desta (cf. Sl 34;23) ou temer pela própria vida (cf.Js 9,24; Ez 32,10). No âmbito fisiológico e psicológico se diz que a vp,n< tem apetite (cf. Dt 23,25; Os 9,4; Is 29,8); sede (cf. Nm 11,6); aspira por vingança (cf. Ex 15,9; Ez 16,27; Sl 17,9; 27,12;

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humano como também o animal, mas, no nosso texto, “compreende apenas o reino

animal638.

Ez 47,9 apresenta vp,n< circunscrito no âmbito de “ser vivente”, admitindo,

assim, o sentido de “hálito de vida”. Estando este tipo de conotação situada

originalmente em um contexto de criação ou de dilúvio, estaríamos, aqui, diante de

uma restauração de todo o ser vivente, sendo a promotora desta restauração a água

que sai do Templo. Poderíamos aproximar deste elemento primário do texto aquele

que reflete o agir divino para a manutenção da vida humana, posto que o vp,n< deve ser

curado, conforme assinala a expressão lKo yx'w" Wap.r"yEw>.

A cura a que se refere Ez 47,9 encontra-se, portanto, em nível espiritual.

Entretanto, esta realidade não se opõe categoricamente a uma cura também material

ou de dimensões externas. A declaração de cura do vp,n< lança a problemática de seu

estado de perdição e a necessidade da restauração de sua integridade original. Esta

restauração só poderá ser realizada por Aquele que criou o vp,n<. Retoma-se aqui a

imagem de YHWH como “médico de seu povo”, bem como a consciência de ser Ele

a única fonte da cura. Por conseguinte, o v.9 supera o objeto da cura do v.8; lá o

destinatário era o Mar Morto, aqui, como evidencia a partícula lKo, encontramos todo

aquele que recebeu de YHWH o seu vp,n< de vida: o homem. Logo, esta cura matiza-

se de bênção e de proteção.

Após descrever os efeitos da cura que o rio provoca sobre o Mar Morto,

transformando-o em um local onde eclodirá toda espécie de vida (cf. Gn 1,20-21),

esta se manifestará em toda parte por onde chegam as águas curadoras, como indica a

imagem ilustrativa dos pescadores de En-Gedi639 até En-Eglaim640. Estes exercerão

41,3). Em alguns momentos, o objeto de aspiração é mais nobre: o próprio Deus (cf. Sl 42, 2.3; 63,2; 119, 20.81; 143,6); a Ele se dirige com anseio e esperança (cf. Sl 25,1; 86,4; 143,8). A ação de Deus sobre a vp,n< humana pode ser classificada como uma ação salvadora e mantenedora da vida humana, incidindo diretamente sobre a vida espiritual (cf. Sl 31,8; 57,2; 116,4.8; 2Sm 4,9; 1Rs 1,29); uma ação portadora de bênção e proteção (cf. Sl 23,3; 94,19; Ez 18,4); por fim, a ação divina pode ser portadora de uma punição (cf. Jó 27,8; Lv, 26,16; Dt 28,65; 1Sm 25,29). Cf. WESTERMANN, C., “vp,n<” Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 107. 638 Cf. BULTMANN, R., “zw/|on”, GLNT, vol. III, 1475-1476, 1969. 639 A cidade de En-Gedi era um oásis e fortaleza militar. Cf. HAMILTON, J., “En-Gedi”, The Anchor Bible, vol.2, 503; MAZAR, B., “En-Gedi” RB 74 (1963) 85-86. Em alguns textos veterotestamentários esta cidade é descrita como o local onde nascem árvores perfumadas (cf. Ct 1,14), a sabedoria é comparada à palmeira que cresce em En-Gedi (cf. Eclo 24,14). Cf. EISING, W., Theological

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seu ofício, o que seria uma idéia totalmente impensável para a atual situação do Mar

Morto641.

As cidades de En-Gedi e En-Eglaim encontram-se localizadas em lados

opostos do Mar Morto. Esta topografia ressalta a totalidade de cura d’águas. De leste

a oeste, por toda a parte do mar, pescadores jogam suas redes para pegar peixes. A

expressão ~ymir"x]l; x;Ajv.mi, denota um sentido diferente de Ez 26,5.14. Neste, a

imagem de redes sendo jogadas serviu como uma advertência para o julgamento de

Tiro; a cidade será reduzida ao pó onde os pescadores secavam suas redes.

Os pescadores de En-Gedi e En-Eglaim estão dm[ “de pé”. Em Ez 47,10, o

verbo dm[ designa o ato físico de “estar de pé” comportando, assim, o sentido verbal

básico642 para indicar a postura dos pescadores que, ao desenvolverem seu ofício,

estão de pé sobre as margens e lançam suas redes. A expressão ~r,xe fora de um

contexto de guerra e de defesa da fé javista pode caracterizar a pessoa ou um objeto

consagrado a YHWH643. Neste caso, não há resgate, porque o destinatário do ato de

consagração é o próprio YHWH (cf. Lv 27,21-28; Nm 18,14; Ez 44,29).

Dictionary of the Old Testament, V. 7. Cambridge, Eerdmans Publishing Company, 1995, 336. Disponível na Internet. Acesso novembro de 2007. http: //books.google.com.br/books+EISING,+W.,+Theological+Dictionary+of+the+Old+Testament 640 En-Eglaim foi identificado com Ein-Feska ao fim noroeste do Mar Morto perto de Qumran Assim entendem Fisch, Taylor, Wevers, Zimmerli e Alexander. Cf. FISCH, S., Ezekiel. London, The Soncino Press, 1950, 326; TAYLOR, J. B., Ezekiel Downers Grove, InterVarsity, 1969, 280; ZIMMERLI, W, Ezekiel 2, 513; ALEXANDER, R.H., Ezekiel. Michigan, Zondervan Publishing House, 1986, 991; HERION, G., En-Eglaim, The Anchor Bible, vol.2,501-502. 641 Farmer considera esta imagem uma das mais belas figuras simbólicas da Bíblia. Cf. FARMER, W. R., “The Geography of Ezekiel's River of Life”, The Biblical Archaeologist, 19 (1956) 17-22. 642 Outras conotações, como “pôr-se diante de YHWH”, podem ser observadas em Dt 19,17. Nesse contexto as partes em litígio se apresentarão perante o Senhor, diante dos sacerdotes e dos juízes (cf. Jr 7,10), para serem julgadas. Pôr-se diante de YHWH e de seus servos no santuário prenuncia a definição da verdade e da justiça. Às vezes a nação toda era chamada a vir até o santuário central e ‘pôr-se perante o YHWH em assembléias solenes para atos de sacrifício’ (cf. Lv 9,5). Seus servos apresentam-se diante d’Ele como expressão de uma atitude de dedicação, lealdade e serviço. Essa terminologia é empregada em referência a sacerdotes (cf. Ez 44,15) e especialmente aos que crêem com sinceridade durante o período da decadência e apostasia de Israel (cf. 1Rs 17,1; 18,15; 2Rs 3,14; 2Rs 5,16). 643 O vocábulo ~r,xe, designa, em primeiro lugar, a qualidade de uma coisa ou pessoa (cf. Lv 27,21; Dt 7,26; Js 6,17s; 7,12) ou uma expressão técnica para designar uma oferenda (cf. Lv 27,28; Nm 18,14; Ez 44,29). Em contexto militar e tendo como sujeito de ~r,xe os povos estrangeiros, seus bens e animais, revela que seu destino é o completo extermínio (cf. 2Rs 19,11; 2Cr 20,23). Com a instalação da monarquia, a prática do ~r,xe declinou muito rapidamente. Entretanto, permanecia nos círculos proféticos, agora sob o influxo de preservação da fé javista diante do sincretismo religioso, facultado pelas perversões de alguns monarcas. Em nome da defesa desta fé permitia-se o emprego da pena de

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Os dois campos semânticos propostos para a compreensão e aplicabilidade

do termo ~r,xe não se aplicam a Ez 47,10, pois neste versículo não se encontram

nuances que possam vinculá-lo a uma situação de conflito militar ou de dedicação

exclusiva a YHWH. Seu contexto apresenta pescadores “de pé” às margens de um

rio, tendo em suas mãos as ~r,xe. Por conseguinte, não há aqui alusão a uma coisa

maldita, mas ao instrumento de trabalho dos pescadores: redes ou tarrafas (cf. Ez

26,5; 32,3; Hab 1,15ss)644. Esta interpretação é corroborada pela imagem da fartura

de peixes que estarão presentes nas águas deste mar renovado.

c) Terceiro momento: elementos excluídos dos efeitos curativos das águas que saíram

do templo (v.11)

No v.11, o anjo-guia elenca os elementos que serão deixados à margem do

poder curativo das águas que saíram do Templo. De fato, a oração negativa Wap.r"yE al{w>

proporciona, num primeiro momento, a impressão que tanto os pântanos quanto os

alagadiços serão destinados à exclusão dos benefícios proporcionados pelas águas

restauradoras. Contudo, faz-se mister atentar para o componente a ser suprimido desta

cura salutar e a motivação para tal.

Os pântanos e alagadiços serão entregues ao sal645. O impacto desta

imagem poderá ser amenizado se levarmos em conta a função do sal sob a

perspectiva econômica646 e simbólica-religiosa. A perspectiva simbólica-religiosa

tem maior relevo para o nosso texto e, por esta razão, nos deteremos nela em

detrimento da perspectiva anterior. Havia a obrigação de salgar as oferendas

destinadas ao sacrifício (cf. Lv 2,13; Ez 43,24), o que exigia a manutenção de

reservas de sal nos depósitos do templo (cf. Esd 6,9; 7,22). A oferta de incenso

também deveria ser temperada com sal (cf. Ex 30,35), espalhar sal na área de uma

morte, aplicada àqueles que a ela se tornavam infiéis (cf. Lv 27,29). Cf. BREKELMANS, C., “~r,xe” Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, col.880. 883-884. 644 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 246. 645 Cf. HAUCK, F., “a[laj”, GLNT, vol. I, 613-615. 646 As primeiras minas de sal eram a céu aberto, ao contrário de hoje, quando também é retirado do mar. Estas fizeram

a riqueza de muitos povos antigos. No Mediterrâneo, desde o antigo Egito à dominação árabe, passando por fenícios, gregos e romanos, a produção e o comércio do sal estiveram na vanguarda das relações entre os estados. O sal constituiu monopólio em muitos deles. Em Roma, as salinas eram do estado, que as arrendava. Onde havia carência de sal, era necessária a sua comercialização, que, literalmente, se fazia a peso de ouro, cada grama de sal correspondia a um grama de ouro. Cf. UNTERMAN, A., Dicionário Judaico de lendas e tradições, 225.

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cidade destinada ao anátema tornou-se símbolo de esterilidade e abandono (cf. Jz

9,45; Dt 29,23; Jó 39,6; Sf 2,9).

A preservação de uma área, aparentemente sem atrativos econômicos por

ser rasa demais para desenvolver a pesca, parece ser intencional por ser rica em sal.

Sendo assim, a oração negativa Wap.r"yE al{w> não indica uma maldição, uma supressão

da cura divina; ao contrário, é uma face da bênção, desencadeada pelas águas que

nascem no Templo, que as águas dos pântanos e dos alagadiços sejam mantidas

salgadas e possam fornecer a matéria prima para o culto, além de representar uma

reserva econômica.

d) Quarto momento: árvores com frutos abundantes; função curativa de seus frutos e

folhas (v.12)

O v.12 retoma a temática das árvores que margeiam o rio que se formou

com as águas que saem do Templo (cf. v.7). A noção de coletivo aplicada ao

vocábulo #[e é reafirmada, neste versículo, pelo emprego de hZ<åmiW hZ<åmi, tal como

ocorrera no v.7. No entanto, esta ambivalência nas duas margens do rio é ainda mais

acentuada pela presença da partícula lKo, indicando que nestas margens estarão

presentes a totalidade das árvores, especificamente, as lk'a]m,,,, “frutíferas” (cf. Lv

19,23; Dt 20,20; Ne 9,25). O recurso ao termo lk'a]m; constitui-se em um novo

componente do grande cenário de exuberante vida que o anjo-guia vem descerrando

diante do profeta. Tal imagem resulta em uma contradição com o cenário desértico do

sul de Israel. O vocábulo karpo,j, neste nosso texto, segue o seu sentido básico

“fruto”, o produto da terra, mantendo a mesma conotação de yrIP.647.

A expressão lk'a]m;-#[e-lK' sugere tanto profusão quanto variedade, resultando

em uma imagem de abundância e multiplicidade que, de certo modo, pode ser

colocada em paralelo com o v.10, onde os peixes, segundo a sua espécie, serão

incontáveis, como os peixes de um grande rio. No entanto, há ainda um acréscimo

neste cenário de vitalidade introduzido pela peculiaridade atribuída às árvores: suas

folhas não murcham, seus frutos não cessarão e frutificam continuamente.

647 Cf. HAUCK, F., “karpo,j”, GLNT, vol. V, 215-217.

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A vitalidade que impede que as folhas das árvores murchem não parece ser

um recurso metafórico648, antes, o texto de Ez 47,12 possui liames com o significado

básico deste termo: folha. Considerando seu número de hl,[' em uma árvore e o

contexto de restauração da perícope, o termo estaria vinculado à demonstração da

grandeza desta. Assim é que estas folhas receberão um atributo incomum: elas jamais

murcharão. Fora de um contexto sócio-religioso649, o verbo lbn assume o sentido de

“derrubar”, “destruir”, “cair”. Considerando que este verbo tem como objeto as folhas

das árvores, poderia indicar, conforme assinala a presença da partícula negativa al{, o

ato de impedir que estas folhas cheguem ao ponto de desprenderem-se da árvore em

decorrência da destruição dos nutrientes que as mantêm atreladas à árvore e impedem

sua queda. Além disto, o fato das folhas não perecerem converte-se em um

instrumento de satisfação estética e manifestação de vitalidade da árvore.

A vitalidade da árvore será, ainda, reforçada pela presença do verbo ~mt650,

que no texto de Ez 47,12, encontra-se antecedido pela partícula al{, indicando o

cancelamento do procedimento natural de uma planta que, ao ter encerrado seu vigor

produtivo, declina e perece. Semelhante função pode ser encontrada na raiz verbal

rkB que dá prosseguimento à descrição dos frutos das árvores que crescem às

margens do rio651. A presença deste verbo diante do cenário anterior que falava de

abundância de frutos oferece a noção de cadência desta produção: seus abundantes

648 A palavra hl,[', quando vinculada a uma metáfora, presta-se como imagem do povo de Israel que, após o castigo divino, se encontra na abundância (cf. Is 1,30; 64,5). Aplicado a uma pessoa, a revela como bendita (cf. Sl 1,3; Jr 17,8; Pr 11,28), destituída de ventura (cf. Jó 13,25) ou arruinada (cf. Eclo 6,2s). O termo hl,[' apesar de ser um singular, possui valor coletivo. Cf. BEYSE, K.-M., “hl,['” Grande Lessico dell’ Antico Testamento, vol. VI, 746. 649 O verbo lbn, quase sempre está circunscrito ao âmbito da insensatez, aparece como uma questão duvidosa. Quando Deus é o sujeito da ação, o verbo lbn expressa o castigo divino que aniquila em circunstancias vergonhosas (cf. Dt 32,15; Jr 14,21; Na 3,6). Ao referir-se a um povo, classifica-o como insensato (cf. Sl 74,18) ou como os inimigos (cf. Dt 32,21; Sl 74,22; Is 9,16). Contudo, não há um consenso entre os pesquisadores sobre a etimologia do verbo lbn, para alguns poderia ser entendido como insensatez, para outros é uma ação irreflexiva, outros ainda entendem tratar-se de uma exortação à prudência ou a um estado de envelhecimento. Cf. SÆBØ, M., “lbn” Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 46-48. 650 Cf. KOCH, K., “~mt” Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1311. 651 Cf. TSEVAT, M., “rkB” GLAT, vol. I, col. 1307-1308.

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frutos surgirão prontamente652. Por conseguinte, as árvores possuem uma produção

contínua, sem a interrupção natural imposta pelas estações do ano.

Esta noção de uma produção ininterrupta oferecida pelo verbo rkB é

reforçada pela expressão wyv'd"x\l' que situa temporalmente a nova colheita em cada

novo mês653. Conseqüentemente, haverá saciedade e aqueles que dependem do

alimento produzido pelas árvores não mais experimentarão as angústias da escassez

do alimento provocada pela sazonalidade da produção, ou mesmo pelas intempéries

da natureza.

A motivação do não fenecimento das folhas e da continuidade na produção

de frutos está na água que forma o rio, conforme sugere a oração causal vD"q.Mih;-!mi

wym'yme yKi. A eficácia de vida disseminada por todas as partes por onde o rio passou não

se resume à potência caudalosa de suas águas, mas no lugar do qual se origina: o

santuário.

O termo vD'q.mi é sinônimo de tyIB;654 e alude ao local que se define como

“casa de YHWH” (cf. Jz 18,31; 1Sm 1,7), como já visto acima (cf. v.1). Será esta

presença real de YHWH em seu santuário que viabilizará à água que dele procede a

capacidade de restaurar toda a vida. Esta precisão do local de onde deriva a água,

ressaltada pela partícula !mi, situa o santuário como a fonte de toda a restauração. Mas

esta só ocorre porque no santuário habita, em última instância, a própria pessoa

divina.

O cenário de bênção é ainda complementado com a elucidação a respeito da

finalidade da fecunda produção de frutas e do não fenecimento das folhas. As frutas 652 No âmbito jurídico rkB assegura o direito de um primogênito. No campo religioso indica as primícias dedicadas a YHWH (cf. Ex 23,19; 34,26; Ez 44,30; Ne 10,36) e no plano físico o ato de dar à luz pela primeira vez. Cf. TSEVAT, M., “rkB”, GLAT, vol. I, 1307-1308. 653 O termo vd,xo fundamentalmente significa “lua nova” e indica o início de um novo período de tempo cadenciado pela passagem das quatro fases da lua. Assim, vd,xo equivale ao vocábulo “mês” em nosso calendário solar. Cf. SIVAN, D., “The Gezer Calendar and Northwest Semitic Linguistics”, Israel Exploration Journal 48 (1998) 101-105; TALMON, S., “The Gezer Calendar and the Seasonal Cycle of Ancient Canaan”, Journal of the American Oriental Society 83 (1963) 177-87; YOUNG, I. “The Style of the Gezer Calendar and Some 'Archaic Biblical Hebrew' Passages”, Vetus Testamentum 42 (1992) 362-75; VANDERKAM, J., C. “Calendars, Ancient Israelite and Early Jewish.” in Anchor Bible Dictionary, vol. I, 814-820; YOUNG, I., “The Style of the Gezer Calendar and Some 'Archaic Biblical Hebrew' Passages”, Vetus Testamentum 42 (1992) 362-75. 654 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 398; JENNI, E., “rkB”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, col. 452; HOFFNER, H. A., “tyIB;”, GLAT, vol. I, 456.

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servem para a nutrição e as folhas para remédio, facultando, assim, a todos os seres

viventes, uma vida destituída de ansiedades ou de sofrimento.

Capítulo IV

Introdução

A pesquisa dos capítulos I e II indicou a presença de contatos literários entre

Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. No presente capítulo uma averiguação pautada nos critérios

empregados por Markl aferirá a presença da intertextualidade, ou não, entre os textos

estudados. O escopo será detectar como as indicações de conexões textuais propostas

pelos critérios deste autor ocorrem ou não no texto do Apocalipse, bem como a

motivação do hagiógrafo neotestamentário para recorrer a textos antigos ao

confeccionar o seu texto.

Os critérios de Markl serão tomados como base nesta investigação, mas

sofrerão reavaliação nos pontos em que apresentarem abertura para uma mais

profunda compreensão do horizonte histórico-literário-teológico.

Tendo por base este horizonte e o fato de que esse material antigo sofreu

alterações de cunho teológico em função da cristologia da obra do Apocalipse, as

relações literárias entre os livros não podem ser consideradas acidentais. Até mesmo

o conceito escatologia estaria, nesta obra, totalmente embebido de uma conotação

cristológica que gera nos textos antigos uma nova leitura e recebe do novo texto um

renovado influxo interpretativo que o torna mais elucidativo.

A análise assumirá ainda a postura de observar principalmente Ez 47,1-12,

considerando as linhas de continuidade e descontinuidade entre os textos. Nesta

perspectiva, estudar-se-ão estes indícios literários para se verificar se eles iluminam

ou não a questão do objeto de nosso estudo. Uma vez que estas relações não são

vistas como resultado de um processo redacional, os textos aqui apontados serão

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estudados principalmente a partir de suas qualidades literárias, de suas inter-relações

de temas e vocábulos tendo como proposta de averiguação os critérios de Markl

indicados no capítulo I655.

4. Intertextualidade entre Apocalipse e Ezequiel 4.1 Análise das relações intertextuais entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12

a) Critério de Comunicação

O primeiro vínculo intertextual entre os textos de Ap 22, 1-5 e Ez 47,1-12 é

constituída pelo termo lx;n; / potamo,j. Apesar da construção lx;N"h; ter uma certa

freqüência na literatura bíblica656, um primeiro vínculo em comum entre os textos de

Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 pode ser detectado pelo fato de que em nenhum outro texto

encontra-se inserido em um contexto que descreva a origem do rio, muito menos que

o vincule à imagem do Templo. De modo geral, nos demais textos, predomina a

expressão lx;N"h; como indicação do acidente geográfico. Deste modo, o recurso a lx;n;;,

nos diversos corpora literários do Antigo Testamento, em nada se assemelha àquele

elaborado no texto de Ezequiel.

Restringindo a observação apenas a outros contextos do livro de Ezequiel,

chama a atenção o fato de o emprego do termo lx;n; encontrar-se sucedido pela forma

rh;n> e, esta, pelo nome próprio rb'K. (cf. Ez 1,1.3; 3,15.23; 10,22; 43,3), sempre

indicando o rio Cobar da Babilônia. Em Ez 3,15; 43,3, apesar da introdução da

preposição la,, a referência é a mesma: o rio Cobar da Babilônia.

Semelhante elaboração gramatical confirma a existência de uma precisão no

emprego do termo lx;n;", no livro de Ezequiel, para indicar um rio de modo particular.

Concomitantemente à presença do artigo h;, antecedendo este mesmo vocábulo ocorre

apenas quando está relacionado com o rio que sai do Templo (cf. Ez 47,6.7.9.12).

655 Cf. Capítulo I deste trabalho, 73-78. 656 Cf. Gn 32,24; Dt 3,16; 9,21; Js 12,2; 13,9.16; 19,11; 1Sm 17,40; 2Sm 17,13; 24,5; 1Rs 17,6.7; 2Rs 3,16; 2Cr 20,16; 32,4; Sb 6,11.

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Procedimento similar pode ser encontrado no livro do Apocalipse. Neste, o

termo potamo,j também apresenta indícios de uma elaboração terminológica, pois

tanto pode designar o Eufrates (cf. Ap 9,14), quanto a vulnerabilidade (cf. Ap 12,15-

16; 16,12). Entretanto, apenas em Ap 22,1-2 a presença do acusativo de especificação

concede ao termo potamo,j uma singularidade, aproximando-o do da precisão no

emprego do termo “rio” encontrada em Ez 47,6-12. O “rio” de Ez 47,1-12 e Ap 22,1-

2 possui em comum o fato de ser portador de vida. Esta capacidade extraordinária do

“rio” corresponde somente, ao longo de toda a Sagrada Escritura, àquela encontrada

entre estes dois textos, o que acentua o liame intertextual entre eles. Por fim, Ap 22,1-

2 possui, como em Ez 47,1.12, a indicação do local de origem deste “rio”: ambos

nascem de um local que está ligado ao espaço sagrado.

Considerando ainda uma busca mais abrangente, não foi encontrada uma

única ocorrência que siga a ordem de colocação dos termos de Ez 47,6.7.9.12, a

saber:

;lx;N"h; + tp;f. (v.6)

;hZ<miW + hZ<mi + daom. + br: + #[e + lx;N:h; + tp;f.-la, (v.7)

;hy<x.yI + ~yIl;x]n: + ~v' + aAby" + rv,a]-lK' (v.9)

.lk'a]m;-#[e-lK' + hZ<miW + hZ<mi + Atp'f.-l[ + hl,[]y: + lx;N:h;-l[;w> (v.12)

Uma simetria com uma disposição de termos semelhante àquela de Ez

47,7.12 poderá ser detectada apenas no texto de Ap 22,1-2, quando o autor do texto

neotestamentário recorre ao termo potamo,j, indicando não somente o local de seu

surgimento mas também seu entorno. Além disso, o conteúdo do texto de Ez

47,6.7.9.12, quando a semântica do termo o delineia como um curso contínuo de água

originado de uma fonte que independe da sazonalidade e, concomitantemente, não

possui características destrutivas. Neste “rio”, o curso d’água é perene e segue seu

percurso distribuindo segurança e bem-estar por onde passa.

A comunicação entre Ap 22,1-2 e Ez 47,7.12 se faz ainda sentir pela

descrição da vegetação na Cidade Santa. Em ambos os casos, as árvores crescem

abundantemente às margens do rio e produzem frutos. Ao fazer uso da expressão

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evnteu/qen kai. evkei/qen, o autor de Ap 22,2a parece ter a intenção de aproximar-se da

construção e;nqen kai. e;nqen / hZ<miW hZ<mi contida em Ez 47,7.12, para acentuar a

multiplicidade de árvores e sua localização às margens do rio. A expressão evnteu/qen

kai. evkei/qen de Ap 22,2a é formada pelo advérbio locativo dinâmico evnteu/qen, “dali,

de lá, daqui”, e pelo advérbio evkei/qen, que fornecem a idéia de ambivalência das

laterais da margem ao longo do rio657. Isto faculta a manutenção do singular xu,lon

em sentido coletivo, tal como ocorre em Ez 47,7.12.

Esta comunicação entre os textos não parece ser acidental. No texto de Ez

47,7, o advérbio de lugar la, antecede o substantivo hp'f' e lhe sucede a expressão

daom. br: #[e que manifesta a quantidade de árvores que surgem à beira das margens do

rio que brotou do limiar do Templo. Semelhante recurso é encontrado em Ez 47,12,

onde a construção hZ<miW hZ<mi reforça a idéia da presença da árvore em ambas as

margens do rio. Intensifica esta presença ambivalente a preposição !mi, cujo sentido

básico comporta a noção de distância no espaço.

Além de Ez 47,7.12, a construção hZ<miW hZ<mi apresenta uma outra ocorrência,

em Ez 45,7, onde a construção está relacionada com as dimensões dos bens

reservados aos príncipes658. Entretanto, apenas em Ez 47,7.12, temos como sujeito o

“rio” e a presença das árvores que crescem à sua margem. Tal singularidade de

comunicação reforça a existência de um vínculo intertextual entre Ez 47,1-12 e Ap

22,1-2.

No entanto, quando o critério comunicação é aplicado a Ez 47,12, a relação

intertextual fica ainda mais acentuada do que quando aplicada a Ez 47,7. De fato, em

Ez 47,12, pode ser encontrada uma maior proximidade com Ap 22,2a, porque, além

de trazer a noção da disposição das árvores e sua localização ao longo do rio, fornece,

ainda, outros contatos com a descrição destas árvores: frutíferas, produção não 657 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 685; Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 1343. 658 Na versão grega da LXX, a incidência da expressão e;nqen kai. e;nqen seja detectada em maior quantidade: Ex 26,13; 32,15; 37,13; Js 9,2; 1 Sm 14,16; 1Rs 10, 19.20; 2Rs 4,35; 2Cr 9,18.19; Ez 40,10.12.16.34.37; 41,15.19.26 em nenhuma destas o sujeito são as margens do rio, permanecendo a singularidade do texto de Ez 47,7.12 quanto ao emprego de e;nqen kai. e;nqen tendo por sujeito o rio. Há apenas uma pequena aproximação com Dn 12,5, mas vale ressaltar que neste caso, apesar da presença do sujeito rio, nada se fala sobre a presença de árvores às suas margens descaracterizando assim o contato entre os textos.

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sazonal de frutos, as folhas não murcham e seus frutos são para o alimento. Assim, o

autor do Apocalipse, ao trabalhar os versículos de Ezequiel, parece ter-se fixado mais

no v. 12 do que no v. 7.

Um outro ponto a ser observado, considerando Ez 47,1a.12f e Ap 22,1a.2a,

é o local de origem da água. Uma associação do verbo acy659 com termo lx;n; / ~yIm;,

acrescido de um espaço arquitetônico que remeta ao sagrado, é encontrado em Ez

47,1 criando uma nova aproximação lingüística entre os textos.

A potencialidade da água que brota deste espaço arquitetônico possui, tanto

no texto hebraico como no texto grego a mesma semântica: um contínuo

derramamento de água. O verbo acy660 de Ez 47,1a foi traduzido para o grego como

evkporeu,omai661. No Novo Testamento, o verbo evkporeu,omai, associado a um espaço

arquitetônico sagrado, só é encontrado no texto de Ap 22,1a criando um novo contato

intertextual. Será do trono de Deus e do Cordeiro que procederá do “rio de água da

vida”.

b) Critério de Referência

A temática escatológica contida nos textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 revela

uma referência entre os textos. A índole escatológica da visão de Ez 47,1-12

concentra-se na restauração da ordem, tendo a vida de áreas ou seres arrasados

restauradas pelas águas (cf. Ez 47,8-12). Semelhante potência decorre de uma

intervenção divina, uma vez que as águas que renovam toda a terra procedem do

Templo (cf. Ez 47,1.12).

659 Os demais textos onde há a ocorrência de ~yaic.yO encontram-se ligados à saída do Egito (cf. Ex 13,4; 14,8), descrevem os braços que saiam do candelabro (cf. EX 25,32; 37,18), à entrada na terra prometida (cf. Dt 8,7), alvorada (cf. Jz 9,33), partida para a batalha (cf. 1Sm 14,11) e na visão apocalíptica de Zacarias, a partida dos cavalos pretos (cf. Zc 6,7). 660 Apesar de ser bastante freqüente na literatura do Antigo Testamento: a fórmula ~yaic.yO (cf. Ez 47,1) ocorre 9 vezes em todo o Antigo Testamento, enquanto Wac.yE (cf. Zc 14,8) 62 vezes e aceyE (cf. Jl 4,18) 147 vezes. Não o é na sua construção encontrada em Ez 47,1a. A mesma construção encontra-se ainda tão somente em Zc 14,8 e Jl 4,18. 661 A forma evkporeuo,menon ocorre apenas mais duas vezes do Novo Testamento, entretanto, encontra-se em um contexto diverso deste de Ap 22,1 porque encontra-se em um contexto de advertência onde Jesus adverte a multidão a respeito dos perigos que se encontram no coração do homem, mais do que aqueles que estão fora dele (cf. Mt 15,11; Mc 7,20). Considerando ainda as outras formas do verbo evkporeu,omai no Novo Testamento, há uma linearidade semântica indicando procedência. Não há, como no Antigo Testamento uma construção lexical que se aproxime daquela de Ap 22,1.

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O requisito para esta restauração é o arrependimento e o retorno a YHWH é

condição para transformar a devastação de Israel (cf. Ez 41,24-27). Após o

arrependimento de coração, Israel recebe a promessa de salvação (cf. Ez 33,1-48,35).

Sucede à promessa de salvação o reconhecimento do domínio absoluto de YHWH

sobre a natureza e a história.

Na perspectiva escatológica do livro do Apocalipse662, os inimigos do povo

de YHWH já não estão restritos a uma nação, Babilônia conforme a profecia de

Ezequiel, estes inimigos foram sintetizados na imagem da Besta, do dragão e de seus

agentes (cf. Ap 12-13). Sua atuação seduziu a muitos, mas outros permaneceram fiéis

e estarão junto ao Cordeiro sobre o monte Sião (cf. Ap 14,1s). O juízo de Deus vem

sobre seus inimigos para desmascarar seu aparente triunfo (cf. Ap 17-18). Eles serão

julgados por terem corrompido as nações (cf. Ap 14,8.10) e o castigo será sem

misericórdia tanto para os pagãos como para os cristãos dispostos a assumir um

compromisso com as exigências idolátricas da Besta (cf. Ap 18,2; 16,19; 17,5).

Os executores do juízo saem do Templo e do altar (cf. Ap 14,17.18),

indicando que o juízo de Deus é a resposta ao clamor dos santos (cf. Ap 6,10; 8,3-5).

A advertência final é dada em Ap 15,5. O juízo, anunciado desde 11,18 e iniciado no

c. 14, torna-se agora uma intervenção salvífica para resgatar seu povo, mas quem sai

em defesa do povo não é YHWH, e sim o Cordeiro. O juízo de Deus se dará no c.

17,1-19,10 e possui duas partes: o juízo sobre a figura da mulher (c. 17) e a queda da

grande cidade (c.18). Com isto, haverá o reconhecimento da soberania de Deus como

“Senhor dos senhores e Rei dos reis” (cf. Ap 17,14 e 19,16). A vitória do Cordeiro

sobre o falso profeta (cf. Ap 19,17-21), o dragão (cf. Ap 20,1-20) e a morte (cf. Ap

20,11-15) são o prenuncio da salvação e do triunfo da vida (cf. Ap 21,1-22,5).

662Sobre a questão da escatologia no Apocalipse ver: ANCONA, G., Escatologia cristiana. Brescia, Queriniana, 2003; BARTIRA, S., “La Escatologìa del Apocalipsis”, EstB 21 (1962) 297-310; BAUCKHAM, R., “The Eschatological Earthquake in the Apocalypse of John”, Novum Testamentum, 19 (1977) 224-233; CARVALHO, J. C., “A simbologia nupcial da númphe e do arníon na escatologia do Apocalipse”, Humanística e Teologia 23 (2002) 57-98; CHARLES, R. H., Eschatology: The Doctrine of a Future Life in Israel, Judaism and Christianity. New York, Schocken Books, 1963; MILLER, K. E., “The Nuptial Eschatology of Revelation 19-22”, CBQ 60 (2, 1998) 301-318; MILLER, M. St. A., “Eschatology and Ecclesiology: Reflections Inspired by Revelation 21:22”, Encounter 64 (2, 2003) 109-138.

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Até o c.21, a atenção estava centrada no julgamento contra os inimigos de

Deus e de seu Messias. Agora se concentra sobre o mundo novo esperado pelo povo

de Deus desde a época do exílio babilônico. Neste mundo renovado, a Jerusalém

escatológica será, ao mesmo tempo, a capital e a esposa (cf. Jr 30,1-31,22; Ez 16; 36-

37; 40-48; Zc 14; Is 60-62; 65).

A Jerusalém escatológica tem por missão iluminar a humanidade (cf. Ap

21,24), cumprindo assim a esperança das nações que peregrinam para Jerusalém, para

YHWH (cf. Is 60,3; 2,2.3). Acorrem a Jerusalém levando o esplendor e a riqueza,

como faziam antes com Babilônia (cf. Ap 18,11-17), estas ofertas agora já não

caracterizam um ato de idolatria, mas de reconhecimento do senhorio de Deus sobre

todo as nações. Na Jerusalém escatológica, não haverá mais a necessidade de sol ou

de lua, porque YHWH e o Cordeiro serão a luz perpétua. Na Cidade de luz, a noite,

símbolo da morte, da cegueira e da insegurança, será eliminada. Apenas existe a vida

que brota do trono de YHWH e do Cordeiro, simbolizada no “rio de água da vida

brilhante como o cristal” e na “árvore da vida” (cf. Ap 22,1-2).

Há apenas uma diferença entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 no que

tange àquele que exerce o papel de defensor do povo. No texto vétero-testamentário,

esta tarefa é desempenhada por YHWH, enquanto que no livro do Apocalipse é o

Cordeiro que parte em marcha para salvar os eleitos e exterminar os inimigos (cf. Ap

5,6-10; 19,17-21).

O motivo da fonte contido tanto no texto de Ez 47,1-12; quanto em Ap 22,1-

5 e suas conseqüências estabelecem uma nova referência intertextual, pois da mesma

forma que entre no texto vétero-testamentário, o local de origem da água está situado

no espaço sagrado do Templo (cf. Ez 47,1.12) indicando assim que ela procede

exatamente da presença de YHWH. De igual modo, no texto de Ap 22,1-2, o local de

onde brota a água está vinculado ao espaço sagrado, porque origina-se no trono de

Deus e do Cordeiro o “rio de água da vida brilhante como o cristal”. Este trono

encontra-se ainda na Cidade Santa, a nova Jerusalém (cf. Ap 21,2), onde o “Senhor

Deus Todo-poderoso e o Cordeiro são o seu Templo” (cf. Ap 21,22).

A potência restauradora das águas corrobora a referência intertextual

existente entre Ez 47,1-12Ap 22,1-2, uma vez que as águas se tornam abundantes (cf.

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Ez 47,1-12; Ap 22,1), independentes da sazonalidade das chuvas (cf. Ez 47,1-12; Ap

22,1), promovem de vida em toda sua extensão (cf. Ez 47, 5.7.9.10; Ap 22,1) e

totalmente dependentes de seu local de origem para comunicar a vida. Assim, a água

descrita nos textos de Ez 47,1-12; reportam sua habilidade extraordinária de

promover a vida a YHWH; Ele é a fonte, por excelência, da vida.

O Apocalipse segue esta mesma idéia teológica de Ez 47,1-12. Contudo, em

Ap 22,1-2, temos não apenas YHWH, como doador da vida uma vez que sentado no

trono, a seu lado, está o Cordeiro que é juntamente com YHWH doador da vida663.

c) Critério de Diálogo

Os verbos apr /u`gia,zw e hyx /za,w de Ez 47,8.9 promovem uma condição de

pureza tão profunda que até as águas do Mar Morto são curadas e se tornam capazes

de abrigar e gerar a vida. A necessidade de uma ação curativa pressupõe que exista

uma situação de carência para o povo, via de regra acarretada pelo pecado. O agente

da cura não é o próprio povo ou um sacerdote, é YHWH. Conseqüentemente, a

possibilidade de um teor punitivo foi descartada (cf. Jr. 19,11; 30,12-13) e abre-se a

perspectiva de salvação (cf. Ez 33,1-48,35).

O destinatário da cura de Ez 47,8.9 é o Mar Morto, cujas águas apresentam

um estado tal, que nada sobrevive nele. Contudo, ao receber a água que sai do

Templo, a vida eclode com proporções inauditas, conforme indica o verbo hyx /za,w.

Enquanto Ez 47,8 apresenta o tema da vida através do verbo apr /u`gia,zw,

Ap 22,1a usa o atributo lampro.n w`j kru,stallon. O termo lampro,j no Apocalipse,

encontra-se ligado aos vestidos de linho dos redimidos (cf. Ap 15,6; 19,8), às pedras

da cidade da Babilônia (cf. 18,14) e, por fim, ao próprio Cristo, “a brilhante estrela da

663 Em Jr 17,13, a ocorrência de ~yYIx;-~yIm: não encontra, no que concerne à questão de contexto, semelhanças com Ap 22,1, porque estão ausentes os elementos de uma escatologia positiva e a indicação do local que dá origem ao rio. No tocante a temática de fundo, temos em Jeremias a apostasia e uma busca insana do homem por Aquele que anteriormente abdicou e a conseqüente destruição que impôs a si mesmo. Os textos de Gn 26,13; Lv 14,5.50; 15,13; Nm 19,17 ao trazerem a construção ~yYIx; ~yIm: não apresentam conexões semânticas com Jr 17,13 porque o adjetivo plural “vidas”, assume a conotação de “nascente” ou “corrente”, além disto, o termo rio, em Gn 26,13, aparece apenas como elemento espacial onde se faz a escavação. Em nenhum deles há um contexto escatológico. O cenário de Gn 26,13 mereceria uma análise especial sobre o modo que o Novo Testamento em Jo 4 retomou esta passagem.

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manhã” (cf. Ap 22,16). Isto indica que o termo lampro,j pode ser compreendido como

um sinal de salvação.

O comparativo w`j kru,stallon, no interno da obra do Apocalipse, está

ligado à presença de Deus: o lago próximo ao trono de Deus é cristalino (cf. Ap 4,6);

bela e cristalina é a Cidade Celeste (cf. Ap 21,11); cristalino é o material que compõe

a muralha da Cidade Santa (cf. Ap 21,18) e cristalino é o “rio de água da vida que sai

do trono de Deus e do Cordeiro” (cf. Ap 22,1a). Toda a imagem da pureza do cristal

encontra-se unida à presença do Deus Santo.

A construção lampro.n w`j kru,stallon aproxima-se de apr /u`gia,zw na

medida em que o diálogo intertextual acontece através da idéia de uma perspectiva de

salvação que só pode ser encontrada em YHWH, o promotor de toda a cura. Um

outro elemento de diálogo encontra-se no agente desta cura que em Ap já não é

apenas YHWH, mas também o Cordeiro.

d) Critério de Seletividade

O vínculo intertextual seletivo pode ser encontrado em Ez 47,12, onde a

expressão hp'Wrt.li Whle['w> “folhas para remédio” está muito próxima do texto de Ap 22,

2bcd. Neste último, embora a ordem da frase tenha sido invertida, pois se descreve,

primeiramente, a produção mensal dos frutos e somente depois a função das folhas,

foi mantido o conceito terapêutico a elas atribuído pelo texto de Ezequiel, bem como

o sentido de restauração para aqueles que permaneceram fiéis a YHWH, apesar das

dores e sofrimentos experimentados.

O termo #[e aparece em diversos textos do Antigo Testamento e do Novo

Testamento, o que poderia, eventualmente, malograr as relações entre os textos de Ap

22,2a e Ez 47,12. Entretanto, este termo torna-se particularmente importante pelo fato

de que nas mais de noventa vezes que aparece no Antigo Testamento, em nenhum

outro são encontradas as construções “árvores” + “as margens do rio” + “a cada mês”

+ “folhas da árvore destinadas à cura664.

664 As relações entre #[e e as muitas situações são muitas: incontinência (cf. Is 57,5); inutilidade dos ensinamentos da vaidade é comparado à madeira (cf. Jr 10,8); como produtora de alimento (cf. Ez

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Esta idéia de uma produção contínua presente em Ez 47,12 e Ap 22,2a

possibilitam um novo contato intertextual. As árvores às margens do rio de Ez 47 ou

de Ap 22 possuem uma produção ímpar: o ano inteiro.

Lingüisticamente, a capacidade de produção das árvores apresentam-se de

modo diverso nos dois textos: Ez 47,12c rKeb;y> wyv'd"x\l' Ayr>Pi ~ToyI-al{w> Whle[' / ouv mh

palaiwqh/| evpV auvtou ouvde mh. evkli,ph| o` karpo.j auvtou. e Ap 22,2b poiou/n karpou.j

dw,deka(kata. mh/na e[kaston. Contudo, a relação intertextual pode ser observada pela

construção destes textos que visam transmitir a mesma cadência ininterrupta de

produção.

De igual modo, as folhas das árvores de Ez 47,12f e de Ap 22,2d

estabelecem uma nova via intertextual entre os textos, por possuírem a mesma

característica: elas servem como terapia. No texto de Ez 47,12f, esta terapia está

diretamente ligada ao território de Israel e seus habitantes, enquanto que em Ap 22,2a

há um alargamento deste conceito no sentido de seus destinatários, que já não são

apenas os habitantes de Jerusalém que mantiveram a sua fé apesar das provações, mas

todas as nações redimidas que habitam a Nova Jerusalém (cf. Ap 21,24.26), as

mesmas que foram resgatadas pelo sangue do Cordeiro (cf. Ap 5,9).

e) Critério de Estrutura

Os textos de Ap 22,1-2 e Ez 47,1-12 manteriam um vínculo intertextual

também no que diz respeito à estrutura da perícope.

A organização da visão de Ez 47,1-12 possui dois momentos intimamente

relacionados. O primeiro apresenta o movimento do profeta, guiado pelo anjo, para a

entrada do Templo, espaço sagrado onde o rio tem sua origem sob a frágil imagem de

um filete de água (cf. v. 1-2). A origem desta água possui singular importância para a

perícope e, por esta razão, o profeta o descreve através do recurso ao vocábulo tx;T;mi

“de baixo”, unindo duas partículas: !mi “de” e tx;T; “em baixo”. Este recurso associado

ao verbo acy torna preciso o local que dá origem à água que formará o rio: o Templo,

o lugar da habitação de YHWH.

34,27); Jl 2,22 ela carrega o seu fruto (cf. Jl 2,22); local para a forca (cf. Gn 40,19); sua madeira constrói as casas (cf. Ag 1,8) e os altares (cf. Ez 41,16.22.25).

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Em seguida, é descrito o percurso da água. O anjo, que anteriormente guiara

o profeta até a entrada do Templo, assume a função de aferir a extensão do rio, que

cresce a cada nova medição. Posteriormente, o profeta é deslocado para as margens

do rio, onde contempla as árvores que lá crescem (cf. v. 6-7).

O segundo momento compreende os v. 8-12. O v. 8 dedica-se a apresentar a

direção tomada pelas águas que continuamente brotam do Templo, enquanto que no

v. 9 é enfatizada a magnitude da cura operada pelas águas: elas reavivam o mar e,

conseqüentemente, possibilitam a multiplicação dos peixes e a cura de todo ser

vivente. Esta extraordinária fecundidade trará de volta os pescadores que se reunirão

para espalhar as suas redes (v.10bcd).

Em um novo deslocamento, as águas dos pântanos e alagadiços não são

transformadas para que sejam promotores da manutenção da vida. Esta manutenção

tem seu ápice no v. 12, onde a abundância de crescimento das árvores, em ambas as

margens do rio e sortidas de “toda a espécie”, promove um paralelo com a

abundância descrita no v.10 quando este alude à profusão de peixes que existirá no

rio. A imagem de abundância continua através do extraordinário fato de as folhas das

árvores não murcharem e seus frutos não serem sazonais. O mérito destes efeitos

extraordinários é precisado, tal como no v. 1, no local que deu origem às águas: o

Templo.

O texto de Ap 22,1-5 possui uma estrutura semelhante à de Ez 47,1-12: o

tema da vida é o cerne da perícope. Ao lado desta característica fundamental, temos o

caráter visionário que se faz presente através da expressão kai. e;deixe,n moi,

ressaltando, como em Ezequiel, a ação do anjo sobre o autor. Igualmente, o ápice da

cena encontra-se descrita nas conseqüências da presença do “rio de água da vida que

brota do trono de Deus e do Cordeiro”.

A estrutura da perícope de Ap 22,1-5 também pode ser analisada em dois

momentos intimamente interligados. O primeiro está no v. 1-3a, que desenvolve o

tema da vida, através da descrição da finalidade dos dois elementos: o rio e a árvore.

O “rio de água da viva” (cf. Ap 22,1a) tem, como em Ez 47,1, o seu local de origem

determinado, é o trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1b). Além disto, a potência

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restauradora da água deste rio supera sua função ordinária, pois é portadora da vida

que vem do local onde Deus se faz presente juntamente com o Cordeiro.

O tema da vida é apresentado sob o símbolo da “árvore da vida”, que é

localizada às margens do “rio de água da vida”, com uma produção de frutos não

sazonal, mas constante e cujas folhas são para a cura das nações (cf. Ap 22,2d). O

tema da vida estabelece um contato com o versículo final de Ez 47, indicando que o

autor neotestamentário fez uma síntese do texto de Ez 47,1-12, ao mesmo tempo em

que lhe impõe uma nova apresentação para os efeitos restauradores desta “árvore da

vida” e do “rio de água da vida”.

No texto de Ap 22,3a, a vida será ainda mais pujante em decorrência da

ausência da maldição e da presença estável de Deus e do Cordeiro na Cidade Santa.

Esta presença desencadeia, no segundo momento da estrutura da perícope, uma série

de ações: adoração dos servos, a visão da face de Deus e do Cordeiro, o portar o

Nome e, por fim, compartilhar da ação de governo (cf. Ap 3-5). O escopo destas

ações é a participação do homem na vida divina.

4.2 Contatos em continuidade e descontinuidade

O critério de comunicação sinalizou para uma linha de continuidade entre o

emprego do termo lx;n; / potamo,j em Ap 22,1-2 e Ez 47,6.7.9.12, quer pelo recurso

gramatical, quer pela semântica ou ainda pela teologia imposta ao termo.

Do texto de Ez 47,6.7.9.12, tanto no Texto Hebraico, como na LXX, foi

conservado o artigo diante do substantivo lx;n; / potamo,j. O mesmo ocorre no texto

de Ap 22,1, criando, assim, uma relação entre os dois textos a partir do prisma de um

rio singular, com uma característica toda própria. O rio não está subordinado às

condições climáticas que determinariam sua intensidade e vitalidade, além da

manutenção do teor escatológico que permeia os dois textos.

O elemento escatológico não só faculta a visão de continuidade entre Ez

47,1-12 e Ap 22,1-5 como também permite transparecer a intenção do autor

neotestamentário em assumir o sentido de restauração da história humana entendida

como ação do próprio YHWH.

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O motivo da água é apresentado como gerador de vida por causa do local de

sua procedência. Por esta razão, a vida que surge deste local é vida abundante, que dá

continuidade ao caráter de um juízo prévio e de salvação presente tanto no texto

vétero-testamentário de Ezequiel quanto no Apocalipse. Por estes elementos, a vida

pode eclodir na Cidade de Jerusalém.

Esta eclosão de vida insere um elemento de descontinuidade entre Ap 22,1-5

e Ez 47,1-12, porque neste último texto a compreensão de restauração da cidade de

Jerusalém assume o teor de uma ação neste mundo, enquanto que, no texto de Ap

22,1-5, a restauração ocorre numa etapa transcendente. A Cidade de Jerusalém é

celestial, vem da eternidade e está preparada para as núpcias (cf. Ap 21,2).

O ponto central de descontinuidade entre os textos está na expressão “trono

de Deus e do Cordeiro” (cf. Ap 22,1-2). Por meio dela, o autor do Apocalipse faz

perceber um novo personagem como princípio e origem da água: o Cordeiro. Este,

situado ao lado do Deus de Israel no trono, é apresentado ao leitor/ouvinte como Deus

em igual dignidade, natureza, poder e majestade. Por trás deste recurso, há um grande

interesse cristológico do autor665. O singular o` qro,noj, enfatiza a igualdade entre

Deus e o Cordeiro, que dividem um único trono. Esse mesmo singular ocorre com o

Nome e a face de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1-4).

A alteração imposta aos textos de Ez 47,1 permanece no nível vocabular,

pois já não há mais o Templo de Deus em Jerusalém, ao menos não o Templo

665 BINI, W.; Bernardo G. Boschi, Cristologia primitiva. Bologna, EDB, 2004; BORING, M. E., “Narrative Christology in the Apocalypse”, CBQ 54 (1992) 702-723; CARNEGIE, D. R., ‘Worthy is the Lamb: The Hymns in Revelation’ In Christ the Lord: Studies in Christology Presented to Donald Guthrie. H. H. Rowden (ed.). Leicester, Inter Varsity Press, 1982, 243-256; CARRELL, P. R., Jesus and the Angels: Angelology and the Christology of the Apocalypse of John. Cambridge, Cambridge University Press, 1997; CARREZ, M., “Le déploiement de la christologie de l’Agneau dans l’Apocalypse”, RevHistPhilRel, 79 (1999) 5-17; DE LA POTTERIE, Studi di Cristologia Giovannea. Marietti, 2004; FORD, J. M., “The Christological Function of the Hymns in the Apocalypse of John”, AndUnivSemStud 36 (1998) 207-229; GIELSEN, H., “Zur Christologie der Thonsaalvision (Offb 5)”, Theologie de Gegenwart 44 (2001) 25-35; GIESEN, H., “ “Zur Christologie der Johannesapokalypse”, Theologie der Gegenwart 43 (2000) 185-197; HERZER, J., “Der erste apokalyptische Reiter und der Köning der Könige. Ein Beitrag zur Christologie der Johannesapokalypse” NewTestStud 45 (1999) 230-249. Ap 6,1-2); HULTBERG, A. D., Messianic Exegesis in the Apocalypse: The Significance of the Old Testament for Christology of Revelation. Trinity Evangelical Divinity School, 2001; LIOY, D., The Book of Revelation in Christological Focus. Studies in Biblical Literature 58. New York, 2003; PITTA, A., Studi di cristologia giovannea. Assisi, 1992; POTTERIE, I. de la, Studi di cristologia giovannea. Assisi, 1992; VANNI, U., “La dimension christologique de la Jérusalem nouvelle” RevHistPhilRel 79 (1999) 119-133; “Dalla venuta dell’ ‘ora’ alla venuta di Cristo (La dimensione storico-cristologica dell’escatologia nell’Apocalisse)”, Studia Missionalia 32 (1983) 309-343.

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entendido com dimensões físicas que sinalizam a presença de Deus. Na Nova

Jerusalém, há o “trono de Deus e do Cordeiro” como lugar da presença de Deus e de

sua soberania.

Conseqüentemente, a adoração dos servos (cf. Ap 22,3c) será dirigida a

Deus e ao Cordeiro. Os gestos são os mesmos encontrados nos c. 4-5, onde Deus é

reverenciado por seus servos com prostrações, adoração e aclamação (cf. Ap 4,10-

11). Os mesmos gestos de adoração são dirigidos ao Cordeiro, proclamando-o digno

de receber poder, glória e louvor (cf. Ap 5,12). A escatologia recebe um influxo da

cristologia e, com isto, é inserido um outro elemento de descontinuidade.

Esta adoração põe em relevo o aspecto de intimidade com Deus e com o

Cordeiro que supera aquele da constante possibilidade de afastar-se d’Ele. Na

eternidade, o homem já não poderá mais ser tragado pelo pecado, porque o Cordeiro

foi imolado (cf. Ap 5,6) e resgatou todos os homens de todas as raças e línguas (cf.

Ap 5,9). Este resgate foi plasticamente traduzido na imagem do “rio de água da vida

brilhante como o cristal”, contribuindo para uma descontinuidade com Ez 47,1, pois

as águas eram capazes de nutrir apenas as regiões mais inóspitas da terra, curando-

lhes todas as mazelas. Entretanto, em Ap 22,1, o trono de Deus e do Cordeiro

apresenta-se como uma fonte que introduz uma água cristalina que regenera não mais

uma região, mas a humanidade (cf. Ap 22,4).

A água que procede do trono de Deus e do Cordeiro é classificada como

“água da vida” e dá continuidade à temática do texto de Ez 47,1-12. Embora o

atributo “da vida” não se encontre grafado, pode ser detectado através das

conseqüências geradas pelo deslocamento do rio. Ao longo de todo o seu percurso,

vai se delineando um cenário de vida abundante em terras ou águas que antes eram

totalmente inóspitas.

A noção de vida plena com Deus e aniquilamento da idolatria permanece em

Ap 22,1a, como se depreende pela estrutura proposta no texto antecedente: a vitória

sobre todo o mal (cf. Ap 21,5.8). O acesso a esta vida, que a água do rio é capaz de

fornecer, está vinculado a um existir na relação com YHWH e o Cordeiro e, neste

caso, insere-se o elemento de descontinuidade, porque o Cordeiro junto a YHWH se

assenta no trono e é princípio e doador da água da vida.

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A potencialidade desta “água da vida”, tal como nos textos vétero-

testamentários, não encontra causa nela mesma, mas no local de onde ela procede e

onde está a origem da vida que proporciona a alegria escatológica. Por esta razão, a

cristalinidade da água de Ap 22,1a pode ser compreendida como um símbolo cunhado

pelo autor do Apocalipse, cujo escopo é indicar, de modo plástico, o próprio Deus e

seu Cordeiro, como fonte geradora de vida na Nova Jerusalém. A imagem da água

“cristalina” associada à imagem do rio teria, assim, como função demonstrar que a

água ofertada ao homem é abundante e puríssima, destituindo a possibilidade de uma

carência, de uma restrição ou limitação da vida, pois é ininterruptamente abundante.

A retomada do termo lx;n; / potamo,j em Ap 22,2a, dá continuidade ao

pensamento encontrado em Ez 47,1-12 e, possivelmente, foi escolhido para fazer

recordar ao leitor/ouvinte que o rio a que se refere é aquele mesmo de Ez 47,12. Além

disso, como reforça o fato de ser sucedido pela expressão “de um lado e do outro” e

complementada pela imagem da “árvore com seus frutos” periódicos e folhas

medicinais.

Outros elementos de descontinuidade são percebidos nos muitos frutos

produzidos pela árvore: 12 a cada mês. O numeral 12 propõe a noção de abundância

da vida destituída de qualquer carência ou restrição, uma vez que, a cada mês, é

garantida ao habitante da Cidade Santa o sustento. O texto de Ez 47,12 não apresenta

o numeral 12 como referência de abundância; nele a noção de abundância vem

expressa pela não interrupção da função de produzir da árvore, ela lAByI-al{ de

frutificar.

As folhas seguem esta mesma linha de manutenção da vida quando se

apresentam como terapêuticas. Enquanto que, em Ez 47,12f, a cura está restrita a

Israel, em Ap 22,2d, esta cura atinge todas as nações, sem uma referência restritiva ao

povo de Israel, inserindo, mais uma vez, o universalismo da salvação.

Entende-se por todas as nações aquelas redimidas que habitam na Jerusalém

Celeste e que já não são inimigas de Deus e de seu povo, são membros da família de

Deus (cf. Ap 21,24.26; 22,2). Esta pertença está explícita em Ap 5,9, no qual “povos

foram comprados pelo sangue do Cordeiro”. Sendo assim, parece justo afirmar que, a

partir de Ap 5,9, entende-se melhor o significado da “cura das nações” de Ap 22,2d.

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Esta aquisição tornou-se o motivo para em Ap 7,9 serem elencadas, como uma

multidão enorme, aqueles que venceram a grande tribulação e não se subjugaram ao

poder da besta. O tom escatológico e universalista está presente neste curar as nações

sem negligenciar a temática da vida doada por Deus e pelo Cordeiro.

A palavra qerapei,a encontra-se atrelada ao cuidado mais atencioso pela vida

que, momentaneamente ou cronicamente, encontra-se destituída da plenitude da vida.

A cura das nações, através das folhas das árvores, antecede ao grande dom da

inexistência de todo o mal e de todo o pecado: o anátema foi retirado. A vida, que

brota do trono de Deus e do Cordeiro, supera a destruição do pecado. Todos os que se

regozijam na vida escatológica na Nova Jerusalém não precisam mais ter medo da

destruição e lá viverão em eterna segurança. Dessa forma, o tom escatológico e

cristológico é claro.

Um outro ponto de descontinuidade está na falta de uma dupla apresentação

das margens do rio: uma simples, como ocorre em Ez 47,7, e outra desenvolvida no

v.12. No texto de Ap 22,2, a descrição é única e mais detalhada, e traz novidades

como o qualificativo “da vida” para as árvores, a expressão “a cada mês”, além do

dilatamento do termo “remédio” para “cura”, em Ap 22,2.

A seção encerra-se com o anúncio da extinção da maldição, que não existirá

mais e seu aniquilamento será total. O sujeito da frase kata,qema, que é uma

construção única do autor do Apocalipse, não recorre apenas ao termo comum

avna,qema para evitar uma aproximação com a idéia vétero-testamentária e mesmo

neotestamentária de algo devotado à destruição. A intenção do autor do Apocalipse

direciona-se para a maldição em si mesma: o mal enquanto um ser ou algo que a ele

pertença. Enfatiza, desta forma, a total impossibilidade de existir diante do trono de

Deus. Algo de maldito ou que traga em si a maldição, somente aquilo que pertence a

Deus, que a Ele se configura, possuirá vida em abundância e permanecerá diante de

seu trono na Cidade Santa, a Jerusalém celeste, e receberá o título de servo.

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4.3 Conclusões

O recurso à metodologia intertextual apresentou-se como um instrumento

para melhor entender o modo de utilização de um texto mais antigo em um novo

texto666. O estudo dos pontos de contato entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12,

indica que estes podem ser detectados tanto em linha de continuidade como de

descontinuidade. Tal utilização mostra um propósito previamente elaborado da parte

do autor neotestamentário.

Sendo assim, há objetivos precisos que levaram o hagiógrafo a selecionar

estes textos dentre toda a literatura vétero-testamentária, para, nesta etapa de seu

escrito, fazer eclodir as idéias teológicas neles contidos. Através delas, o autor

neotestamentário fará o seu leitor/ouvinte assimilar novos conteúdos teológicos

trazidos pela novidade da pregação cristã.

a) A intertextualidade em relação a fonte do rio de água da vida brilhante como o

cristal

O motivo da fonte de água que surge do Templo e do trono de Deus

demonstrou, através da aplicação dos critérios de averiguação de elementos

intertextuais, tratar-se de um caso onde textos falam entre si, dialogam, possuindo

uma relação literária não acidental. Há, entre o texto vétero-testamentário proposto

para o estudo, uma intenção do autor do Apocalipse em utilizá-lo com um objetivo

teológico preciso que aprofunda o texto anterior.

Conforme indicou o estudo do texto, a expressão “rio de água da vida

brilhante como cristal” mostrou que esta deve ser compreendida como um símbolo

cunhado pelo autor do Apocalipse667. Esta elaboração, contudo, possui contatos com

textos vétero-testamentários aos quais o autor do Apocalipse recorre com consciência 666 Cf. ver: Capítulo I, 1.3.2 Na linha da intertextualidade. c) a intertextualidade aplicada ao estudo do Apocalipse, 56, deste trabalho. 667 Cf. Kowalski, prefere classificar o recurso aos textos vétero-testamentários desta perícope como alusão mista, sem entrar na questão da intertextualidade. Por alusão mista o autor entende que uma seqüência característica de palavras ou expressão não remonta apenas a um versículo do Antigo Testamento, mas a diversos. Cf. KOWALSKI, B., Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der Offenbarung des Johannes, 245-246.

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do contexto que estes possuíam em seus livros de origem e, intencionalmente, faz

recordar, na memória do leitor/ouvinte, o conteúdo teológico e semântico contido nos

textos selecionados.

De fato, ao assumir o termo “rio” e mantendo-lhe o artigo, o autor

neotestamentário assume o estilo presente em Ez 47,1-12, que tinha por objetivo

particularizar o rio, aquele mesmo que foi tornado capaz de gerar a vida em todos os

locais por onde passou, porque brotou do Templo. Esta distinção geográfica é a

garantia e a causa da noção de vida que o termo “rio” traz em si mesmo, pois as águas

que ele porta brotam do local onde Deus habita.

O qualificativo “cristal”, ao longo do livro do Apocalipse, foi utilizado com

certa parcimônia e sempre com relação àquilo que manifesta a Pessoa divina (cf. Ap

4,6; 21,11.18; 22,1). Tal precisão concedida ao termo gera uma particularidade

intertextual bastante acentuada, pois o diálogo entre os textos fazem ressaltar a

diafania da presença de Deus.

Assim, o escopo da assimilação, pelo autor do Apocalipse, do termo “rio” e

de alguns de seus atributos, seria aquele de mostrar que o rio que corta a Cidade Santa

é aquele proposto nos textos antigos, mas com a inserção de elementos novos que

provoca o diálogo entre os textos. Este diálogo encontra a sua razão na descrição do

local de sua origem: o trono de Deus e do Cordeiro.

b) A intertextualidade em relação ao trono de Deus e do Cordeiro

Todos os atributos do “rio”, bem como sua capacidade restauradora,

convergem para o seu local de procedência. O ato de proceder do trono de Deus e do

Cordeiro manteve as indicações teológicas vinculadas ao espaço sagrado contidas em

Ez 47,1. Assim, o autor do Apocalipse, intencionalmente, assumiu em seu texto o

verbo acy, traduzido para o grego como evkporeu,omai, juntamente com seu contexto

escatológico, produzindo uma referência entre os textos.

O verbo evkporeu,omai revela ser este “sair” do trono de Deus e do Cordeiro,

não limitado ao tempo, mas é um brotar contínuo. Portanto, a “água da vida”

converte-se no dom da vida eterna que Deus concede aos seus servos que habitam a

Cidade Santa (cf. Ap 22,3c). Esse mesmo verbo reorienta o leitor/ouvinte para o novo

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local de onde o “rio de água da vida” procede: o trono de Deus e do Cordeiro. O

símbolo do Cordeiro é a grande novidade da fé cristã: o Cristo morto e ressuscitado,

descrito sob o símbolo do Cordeiro, está assentado no mesmo trono de YHWH,

possuindo a mesma igualdade.

De fato, Deus e o Cordeiro ocupam o mesmo espaço. Este, por um lado,

indica uma perspectiva escatológica de juízo, privilégio real e habitação de YHWH

em meio a seu povo (cf. Ne 3,7; Gn 41,40; Ez 43,7). Por outro, é o espaço sagrado

que indica o lugar onde habita o Nome, segundo a visão deuteronomista ou a casa de

oração e sua sacralidade em decorrência de Deus habitar nele (cf. Is 56,7)668. A

mesma tensão teológica encontra-se no trono descrito pelo Apocalipse, pois o trono

YHWH se encontra juntamente com o seu Cordeiro.

Esta igualdade se depreende através da idéia do espaço arquitetônico

sagrado presente em Ez 47,1, que suscitam no leitor/ouvinte a noção de um espaço

para a habitação de Deus, um local para o encontro com YHWH. No Apocalipse, este

espaço foi suprimido (cf. Ap 21,22), enquanto edificação humana; na Jerusalém

eterna, o Templo é o próprio YHWH e o Cordeiro. Permanece relacionada a esta

edificação a causa da origem da água: do lugar onde YHWH habita surge esta água

que restaura a vida humana, mas lhe é acrescentada a duplicidade da causa, ela tem

origem também no Cordeiro.

Neste ponto, se percebe que a escatologia é totalmente perpassada pela

cristologia. Toda a expectativa escatológica contida nos textos analisados é elevada

pela visão do Novo Testamento. Ao lado de YHWH, o Cordeiro é apresentado como

Senhor, Juiz da história e redentor (cf. Ap 5,6-10; 22,1-5).

O símbolo do Cordeiro, cunhado pelo autor neotestamentário669, foi

paulatinamente apresentado ao longo do livro. Ele é o redentor do homem, aquele que

realizou, na história, a eliminação de toda a marca do pecado, através de sua morte de

cruz e ressurreição. Por esta paixão, morte e ressurreição, o mal foi totalmente

eliminado. Nela, o Cordeiro adquiriu para Deus todos os homens de todas as raças

668 Cf. Capítulo III, Ez 47, 1-12: Aspectos semânticos; Primeira seção: v. 1-7; a) Primeiro momento: águas brotam do limiar do Templo (v. 1-2), 188. 669 No Capítulo II, 2.4 Ap 22,1-5: aspectos semânticos, c) O trono de Deus e do Cordeiro, 101-110, foi dedicado amplo espaço para a descrição do símbolo do Cordeiro de pé como imolado.

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(cf. Ap 5,9-10; Rm 8,24; 1Pdr 1,18-19). Esta aquisição tem por finalidade a vida

destes homens que agora constituem um reino que durará para todo o sempre (cf. Ap

22,5). Assim, a soteriologia também é perpassada pela cristologia.

O senhorio da história, antes atribuído apenas a YHWH, como indicou os

elementos intertextuais de estrutura dos textos estudados, passa a computar um novo

Senhor: o Cordeiro que recebeu de Deus o livro (cf. Ap 5,7) e foi feito juiz deste

mundo e Senhor da história.

A soberania que o fato de estar sentado no trono confere ao Cordeiro impõe

aos habitantes da Cidade Santa o ato de adoração. Tais habitantes, identificados como

servos, estão distantes da perspectiva de uma servidão que descaracteriza o ser

humano, segundo a dinâmica da sociedade de então. A perspectiva de servidão segue

o conceito de resgate impresso pelo Novo Testamento: resgate da morte e do pecado

(cf. Rm 6,12-23) por meio do sangue do Cordeiro de Deus que tira o pecado do

mundo (cf Jo 1,29).

O pagamento de um resgate introduz necessariamente a expectativa de haver

um proprietário deste servo. Este proprietário, de acordo com o pronome auvtou/, é

Deus e o Cordeiro. Com isto, a cristologia deste texto apresenta-se sempre mais

elevada.

Assim, ao acrescentar a imagem do Cordeiro sentado no trono de Deus, o

autor do Apocalipse conduz o seu leitor/ouvinte a uma síntese sobre a figura deste

Cordeiro como Deus, em igualdade com o Deus vétero-testamentário, mas lhe

acrescenta as informações teológicas do Novo Testamento.

O Cordeiro assentado no trono de Deus passa a ser o mais intenso elemento

de descontinuidade intertextual, pois toda a renovação imputada à água do rio, bem

como a árvore da vida, têm Nele e em Deus a sua causa.

c) A intertextualidade em relação à árvore da vida

A acessibilidade à árvore é duplamente sinalizada: ela está no meio da praça

e às margens do rio de água da vida brilhante como o cristal. Todo o homem pode

tomar de seus frutos e de suas folhas (cf. Ez 47,12; Ap 22,2). O objetivo de trabalhar

a idéia de uma vida em plenitude, como projeto de YHWH para o homem, perpassa

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os textos, o pecado e a morte, que já estão aniquilados, e, assim, a vida eclode na

Nova Jerusalém.

Tal eclosão de vida não cessa e será descrita com maiores detalhes pela

produtividade das árvores, como no texto de Ez 47,12, de produzir novos frutos e

suas folhas se prestam para a cura. O autor do Apocalipse provoca seu leitor/ouvinte

com esta descrição, mas lhe insere um elemento novo do universalismo desta

redenção proposta pelo texto de Ezequiel. A novidade cristã altera a mentalidade de

uma salvação restrita ao povo de Israel, indicando que YHWH é Deus de todos os

povos e que concede a todos a salvação.

Tendo sido a raça humana resgatada de seu estado de servidão e afastamento

de Deus, que, em síntese, devem ser identificados como pecado, o homem se

apresenta livre para adorar a Deus e contemplar a sua face. Essa contemplação se

transforma em um diálogo constante entre o servo e seu Senhor.

A tarefa do servo na Cidade Santa passa a ser a adoração perene, que é a

configuração do íntimo e do agir externo do homem/servo com a vontade de Deus e

uma distinção clara do mundo entendido como opositor ao querer divino. A grande

novidade deste versículo está no objeto da adoração: o Cordeiro foi apresentado como

Deus justamente por ocupar o mesmo lugar que aquele no trono. O local também

proporciona algo novo, uma vez que a adoração, antes reservada apenas ao Templo,

não se encontra mais a ele circunscrita, mas ampliada para todo o domínio da Cidade

Santa. A periodicidade, determinada anteriormente pela função litúrgica, já não

encontrará um fim, conforme indica a conjugação verbal latreu,sousin.

Um novo pronome auvtou/ alude a algo totalmente novo na Sagrada Escritura:

os servos vêm a face de Deus e do Cordeiro. O que fora o escopo escatológico do

povo da Antiga Aliança torna-se, neste momento, uma realidade concreta. Porém,

mais uma vez, a expectativa é dilatada, porque, além da visão da face de Deus, os

servos vêem a face daquele que os resgatou do pecado: o Cordeiro imolado.

O governo é exercido tanto por Deus como pelo Cordeiro. Trata-se de um

governo co-dividido, tal como enfatiza a presença do singular o` qro,noj pondo em

relevo, mais uma vez, a igualdade existente entre Deus e o Cordeiro. Esta ênfase,

reforçada pela construção latreu,sousin auvtw/, onde se observa que a adoração é

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dirigida tanto a Deus como ao Cordeiro, aponta como idênticas tanto as atribuições

políticas como também as de culto.

Este estado de visão plena impõe a integral consciência do objeto que se vê:

a face de Deus e do Cordeiro. E, a partir de agora, sem restrições e de modo

constante, segundo a forma verbal o;yontai. Se permanente é a visão, permanente será

a intimidade com este Senhor, porque os servos trazem em suas frontes o Nome

impresso, denotando a pertença absoluta Àquele que o resgatou e lhe concede vida

plena. Pertença e vínculo amoroso, sendo assim, se entrelaçam.

O termo noite, do v.5, adquire um caráter metafórico neste versículo. A

construção “e noite não haverá mais” está ligada à idéia de ausência absoluta do

pecado tal como ocorreu em Ap 22,3a. As trevas, no sentido do pecado, já não mais

atingirão o homem em conseqüência da presença de Deus, tal como aconteceu no

v.3a. Lá pela presença do trono, aqui pela presença do Deus supremo, como indicam

a locução o[ti ku,rioj o` qeo.j e o verbo fwti,zw, que tem ku,rioj o` qeo.j como a fonte

do resplandecer, indicando, assim, ser ele mesmo a luz por excelência. Aqui emerge

uma perspectiva escatológica, pois os destinatários deste resplendor são os servos de

Deus e do Cordeiro. O reinado eterno do qual participarão os servos de Deus e do

Cordeiro, como indica a locução eivj tou.j aivw/naj tw/n aivw,nwn, não encontrará

limitações. Deus e seus servos estarão juntos por toda a eternidade.

Por fim, poderíamos dizer que o motivo da fonte de água que surge do

Templo ou do trono tem como meta apresentar, de modo plástico, o próprio Deus e o

Cristo-Cordeiro, como fonte geradora de vida na Nova Jerusalém. A imagem da água

associada à imagem do rio teria, assim, como função demonstrar que a água ofertada

ao homem é abundante, é água como um rio. Esta representação quantitativa

eliminaria toda e qualquer possibilidade de uma carência, de uma restrição ou

limitação da vida, esta seria ininterruptamente abundante e eterna.

O recurso aos textos vétero-testamentários parece ter como objetivo levar o

leitor a um novo nível de leitura, onde o texto antigo é iluminado pelo texto

neotestamentário. Para isso, é necessário estar em contato com textos anteriores e

manter atenção sobre o modo como o autor sagrado manipulou este patrimônio e o

encadeou. Como em uma sinfonia, textos de origens distintas, mas que, lado a lado,

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dão vida a um novo texto sob o advento do Cristo ressuscitado e de uma escatologia

de cunho cristológico.

Como indicativo de descontinuidade, temos ainda o modo de utilização do

material de Ezequiel. Este uso apresenta omissões de seções inteiras concernentes ao

Templo, sugerindo que houve uma simplificação ou uma condensação da mensagem

de Ezequiel pelo autor do Apocalipse, com o objetivo de torná-la universal. Esta

universalização encontra-se ligada às promessas feitas a Israel e entendida como

exclusiva de Israel (cf. 2Sm 7,14; Ez 47,12), além de ter por objetivo mostrar que a

salvação pertence a toda a humanidade.

Assim, o motivo da fonte de “água da vida” como leitura intertextual de Ez

47,1-12 e Ap 22,1-5, foco de nosso estudo, revela-se concreta tanto em linha de

continuidade como também de descontinuidade e se dá basicamente entre Ez 47,

1.12. Aqui o grau de referência intertextual se aplica à idéia do local da habitação de

Deus e da perspectiva escatológica.

Os textos vétero-testamentários tiveram sua perspectiva escatológica

temporal transformada por Ap 22,1-5 em uma esperança escatológica eterna, onde

não haverá mais a possibilidade dos habitantes de Jerusalém serem atingidos por

nenhum mal, porque este está vencido pelo Cordeiro imolado.

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CONCLUSÃO

1. Síntese da pesquisa

1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse

O estudo dos métodos relacionados ao uso que o Apocalipse fez dos textos

do Antigo Testamento considerou, em um primeiro momento, a existência de um

conjunto de procedimentos que buscavam compreender o modo através do qual o

autor do Apocalipse se apropriou dos textos vétero-testamentários e os inseriu em seu

texto. Num segundo momento, considerou a abordagem intertextual que, tomando

alguns elementos das perspectivas anteriores, vem oferecendo à pesquisa exegética a

possibilidade não apenas de observar o modo de utilização do texto antigo em um

novo texto, mas também insere a função do leitor.

Os primeiros procedimentos trabalhavam, de modo geral, com um modelo

de pesquisa que objetivava detectar o modo de atuação do autor do Apocalipse quanto

ao emprego dos textos vétero-testamentários em seu texto. Contudo, em decorrência

da ausência de uma definição precisa a respeito do método empregado pelo novo

autor ao usar os textos antigos, tais procedimentos apresentaram-se insuficientes para

responder a questões relacionadas à diversidade no modo como o autor do Apocalipse

apropria-se dos textos antigos e como este manuseio afeta o novo texto e o seu leitor.

A questão da habilidade com que o autor do Apocalipse manuseou os textos

do Antigo Testamento ao compor o seu texto atingiu também o tipo de texto. De fato,

em alguns momentos, este autor recorre ao texto da LXX e, em outros, ao Texto

Hebraico. Tal procedimento decorre de um critério: onde a LXX seguiu de forma fiel

o Texto Hebraico, o autor do Apocalipse o segue, mas quando esta se mostra pouco

constante, o texto seguido é o Hebraico670. Esta seleção decorre da intenção

lingüística e teológica do hagiógrafo, portanto, não se trata apenas de uma opção de

670 Cf. VANHOYE, A., ‘L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’ Apocalypse, 446.

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traduções, é antes uma escolha de um texto que mais perfeitamente fale à memória do

leitor/ouvinte.

A compreensão sobre o tipo de texto utilizado pelo autor do Apocalipse ao

recorrer ao texto de Ezequiel foi um dos elementos de investigação do trabalho de

Vanhoye. Segundo ele, o texto de Ezequiel presente no Apocalipse foi administrado

de modo livre sem estar vinculado a uma dependência com o texto anterior. Haveria

um trabalho que estaria em acordo com a intenção teológica do novo autor.

O emprego ordenado dos textos de Ezequiel e seu caráter litúrgico

perpassaram a pesquisa de Goulder671 e de Ruiz672. Já Vogelgesang673 entende

que o escopo do autor seria democratizar e desmitifizar as tradições da mística

judaica presentes no texto de Ezequiel e redimensioná-las para retirar-lhes os

exageros eventualmente impostos por esta estrutura de pensamento.

Uma abordagem através de fenômenos lingüísticos entendeu serem as

anomalias presentes no texto reflexo de uma inabilidade do autor neotestamentário ao

manipular os textos vétero-testamentários. O gênero apocalíptico, por sua vez, não foi

instrumento de cerceamento da liberdade do autor. Ele segue modificando o texto

anterior e mesclando a partir da concepção do Cristo Ressuscitado. O mesmo ocorreu

com as tradições judaicas. O autor as administra segundo o seu objetivo teológico e

não se faz subordinado a estas.

O procedimento intertextual tem auxiliado a pesquisa exegética a detectar

como o autor elaborou o seu trabalho de redação tomando por base tradições e como

a decodificação exercida pelo leitor promove a captação das conexões estabelecidas

pelo autor.

671 Cf. GOULDER, M. D. “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies” NewTestStud, v. 27, 342-367, 1981. 672 Cf. RUIZ, J.-P. Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic Language in Revelation 16,17-19,10. New York, Peter Lang, 1989. 673 Cf. VOGELGESANG, J. M. The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge: Harvard University, 1985.

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1.2 O estudo de Ap 22,1-5

Após a vitória do Cordeiro sobre todo o mal (cf. Ap 17-19) e da derrota

impingida aos inimigos de Deus (cf. Ap 17.18), o autor do Apocalipse concentra sua

atenção sobre a Cidade Santa que desce do céu e a descreve minuciosamente: nela

não existe templo (cf. Ap 21,22), porque tudo nela é sagrado e consagrado pela

presença de Deus. Conseqüentemente, não haverá sofrimento nem morte (cf. Ap

21,3-6). Sua arquitetura é especialmente reluzente, resplandecente de glória (cf. Ap

21,10-11), com medidas (cf. Ap 21,15-17) e materiais específicos (cf. Ap 21,18-21);

a Nova Jerusalém possui portas que não se fecham (cf. Ap 21,12.14); e, para ela as

nações convergem com seus tesouros e nada de impuro nela entrará (cf. Ap 21, 24-

27).

Neste contexto, encontra-se o texto de Ap 22,1-5, que assume particular

relevância em função de ser o ápice de toda a cena que descreve a Jerusalém Celeste.

Os v. 1-2 constituem o eixo de todo o texto ao descreverem os elementos

que facultam a todo homem a aquisição de uma vida em plenitude. Sob o símbolo do

“rio de água da vida brilhante como o cristal”, o autor do Apocalipse sintetizou

conceitos intimamente vinculados à noção de vida. Um deles é o rio, que aparece

como meio de promover a vida por onde quer que passe. Um outro é a água,

intitulada “da vida”, que, no livro do Apocalipse, comporta a idéia teológica de vida

eterna ofertada apenas por Deus e pelo Cordeiro. Além destes, está a “água da vida”,

que tem como predicado ser “brilhante como o cristal”, porque é puríssima; nela nada

há de impuro, ou seja, não há, nas águas do rio, nada que possa conduzir, para a vida

do homem, dor, sofrimento ou o pecado.

O “rio de água da vida brilhante como o cristal” habilitaria o homem a

entrar e viver uma vida plena na Cidade Santa. Entretanto, tal faculdade concedida ao

rio permanece como dom gratuito de Deus e do Cordeiro conforme indica o local de

procedência do rio. Esta gratuidade do dom, contudo, supõe a liberdade humana que

pode ou não desejar esta água de vida plena ou recusá-la.

A imagem do “trono de Deus e do Cordeiro” oferece, além da indicação do

local da origem do “rio de água da vida brilhante como o cristal”, a pessoa do

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Cordeiro no mesmo nível de igualdade com o YHWH, quer pela manutenção do

artigo, tal como era o estilo lingüístico do Antigo Testamento, quer pela disposição

geográfica por ele ocupada: sentado no mesmo trono e receptor de igual adoração (cf.

Ap 22,4-5).

O termo “Cordeiro” é um símbolo cunhado pelo autor do Apocalipse no c.5.

Nele, através de várias imagens, foi descrito como imolado, de pé, receptor do livro,

digno de lhe abrir os selos, resgatador de todos os homens e adorado pelos anciãos

(cf. Ap 5,1-10), com o objetivo de apresentar através deste símbolo a pessoa de Cristo

crucificado e ressuscitado. A morte experimentada pelo Cordeiro possui um viés

escatológico na medida em que Ele foi estabelecido como o juiz deste mundo e da

história (cf. Ap 5,7). Por ela, e a preço de seu sangue, todos os homens, de todas as

raças, passam a pertencer ao Pai. A cristologia deste texto perpassará o livro e

atingirá a perícope de nosso estudo portando os elementos nele descritos.

Assim, quando Ap 22,1 declara que o Cordeiro divide o mesmo trono com

YHWH, o Deus de Israel, e com Ele se faz fonte de vida para toda a humanidade, o

autor sagrado não se detém mais em descrições, apenas apresenta-O com igual poder

e soberania. De seus servos receberá, tanto quanto YHWH, o culto de adoração (cf.

Ap 22,4-5).

1.3 O estudo de Ez 47,1-12

A imagem do Templo assume um papel central nesta perícope, porque dele

provém a água, que, em um primeiro momento, apresenta-se de modo extremamente

frágil: um gotejar que brota do limiar do Templo (cf. Ez 47,1). A seguir, esta imagem

de fragilidade foi paulatinamente substituída pela medição constante do nível que esta

água adquiriu na medida em que se deslocava. Em princípio, era possível verificar

seu crescimento tendo como parâmetro o corpo do profeta, mas, em um determinado

momento, o rio que se formou a partir da água que saiu do Templo tomou tal

proporção que era impossível mensurar (cf. Ez 47,3-5). Esta massa impetuosa de água

em que se transformou o pequeno filete de água que saía do Templo recebe, a partir

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do v. 7, o incremento da imagem de muitas árvores margeando o rio. A função destas

será descrita mais tarde.

A idéia de vida que se propõe desde o primeiro versículo, através da

imagem do filete de água que escorre do Templo, recebe o reforço da figura das

árvores; e assim, a vida vai tomando novas conotações. Em seguida, as águas se

precipitam pela estepe e vão até o mar; quando o atingem, purificam suas águas.

Assim, a vitalidade das águas que escorre do Templo não encontra barreira que

possam resistir, nem mesmo a altíssima salinidade das águas do mar.

A purificação do mar resulta em uma profusão de vida, pois os animais se

multiplicam abundantemente e,assim, o homem tem sua vida mantida quer pelo

exercício de sua profissão de pescador quer pela garantia de alimento. A vida ainda se

faz sentir pela manutenção da salinidade dos pântanos que proporcionam sal para a

alimentação e para o sacrifício oferecido no Templo.

A descrição da vida abundante chega ao seu ápice com a descrição, mais

pormenorizada do que no v. 7, das árvores que margeiam o rio. Estas abrangem a

totalidade das árvores frutíferas, resultando em uma variedade de frutos que garantem

a fartura e a variedade e tornando a conservação da vida mais aprazível. A vitalidade

atinge, de modo extraordinário, até mesmo as árvores: de suas folhas serão extraídos

medicamentos e, de modo totalmente novo, não murcharão.

Em todo o cenário descrito ao longo da perícope, a vida renovada pela força

das águas que saem do Templo é o grande ponto de referência, mas não o ponto

originante da vida. A faculdade renovadora das águas é conseqüência de seu local de

origem conforme indicam os v. 1.12, que abrem e encerram a cena, centrando no

Templo o princípio da vida. Em outras palavras, a vida só encontra restauração em

YHWH, a fonte da vida plena.

1.4 Análise intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12

A abordagem intertextual dos textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 possibilitou

perceber a presença não apenas de diversos contatos textuais entre o Apocalipse e o

Antigo Testamento, mas também da diversidade no emprego destes textos vétero-

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testamentários, exigindo o emprego de diversos critérios que permitissem perceber o

modo de ação do hagiógrafo.

No texto por nós estudado, a inserção da intertextual, mostrou ser um

instrumento positivo na tarefa de compreender a meticulosidade com que o autor

ordenou os textos antigos no novo texto674. Confirma-se assim, o pensamento de

Moyise, segundo o qual o procedimento intertextual no estudo do Apocalipse é uma

necessidade para se avaliarem os níveis de continuidade e descontinuidade presentes

no texto mais novo e suas relações com o (os) texto (os) mais antigo (s)675. Esta

busca teve como escopo perceber como se deu esta interação entre os textos,

construída a partir da intenção do autor, considerando, ainda, o papel do leitor. Este

último exerce, na abordagem intertextual, um papel proeminente, pois decodifica os

textos a que recorre o autor sagrado, porque possui em sua memória os textos e

contextos do material mais antigo e redireciona-os neste novo contexto. Assim, faz

acontecer o diálogo entre os textos dentro do próprio texto.

Neste processo, a compreensão do texto se dilata, pois o leitor, tendo

captado a presença de um texto anterior, dedica-se a explorar os novos significados a

ele concedido. Assim, o Antigo Testamento torna-se determinante para a

compreensão do Novo Testamento, do mesmo modo que este é determinante para a

compreensão daquele.

Em muitos momentos, o autor neotestamentário segue o Antigo Testamento

em linha de continuidade: no emprego do termo “rio” há uma manutenção da idéia

teológica, do conteúdo semântico, do recurso gramatical e estilístico e aliado a estes

indícios, foi detectado ainda o estrutural. Do emprego do verbo “proceder”, temos a

intertextualidade ligada ao espaço arquitetônico do espaço sagrado onde Deus habita

e a precisão do local de onde a vida possui a sua origem, a saber, o próprio Deus. O

recurso intertextual com o tema da “água da vida” se dá com o texto de Ez 47,1-12,

que descreve a capacidade da água que sai do Templo de gerar vida por onde quer

que esta água passe.

674 Cf. BAUCKHAM, R., The Clímax of Prophecy, 199. 675 Cf. MOYISE, S. “The Language of the Old Testament in the Apocalypse” JournStudNT, v.76, 97-113, 1999.

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O contato intertextual entre Ap 22,2 e Ez 47,12 revelou-se mais intenso do

que com Ez 47,7, porque naquele foram encontradas minúcias na descrição que se

encontram ausentes no v.7. A disposição das árvores às margens do rio (cf. Ez

47,7.12) ou no meio (cf. Ap 22,2) superam uma mera função geográfica. A intenção

do texto do Apocalipse demonstrou ser a de restabelecer na mente do leitor/ouvinte a

restauração do projeto de vida plena, inicialmente desejada por Deus.

Os pontos que sinalizaram uma descontinuidade entre os textos deixam

antever a criatividade teológica do autor do Apocalipse, bem como sua habilidade

com os textos vétero-testamentários para introduzir nestes a novidade da mensagem

do Novo Testamento. Por esta razão, ao assimilar textos que indicavam YHWH como

a fonte única de uma água capaz de gerar a vida, insere a Pessoa do Cordeiro

assentado no mesmo trono de onde o “rio de água da vida brilhante como o cristal”

eclode.

Em um só símbolo, o autor neotestamentário apresenta o Cristo-Cordeiro

como Deus em igual dignidade com YHWH, por estar assentado no trono e senhor da

vida por ser também ele local de onde ela brota e transmite “vida” a todos.

Assim, as expectativas escatológicas do Antigo Testamento encontram uma

nova força restauradora: a cristologia, porque, somente através da paixão, morte e

ressurreição, o homem recebe a vida nova.

2. Conclusões e resultados da pesquisa

O contato intertextual entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12, tendo

ainda outros textos vétero-testamentários como interferência, estabelecido em

princípio como hipótese de trabalho, exigiu uma análise mais detalhada dos dois

principais textos a fim de perceber como cada um em seu momento histórico foi

elaborado por seus respectivos autores. Uma análise mais profunda dos demais textos

que compõe este mosaico de textos presentes em Ap 22,1-5 não se revelou necessária

para o estudo dos motivos em questão nesta tese, tendo em vista que o texto principal

onde o autor do Apocalipse se apoiou foi aquele de Ez 47,1-12.

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A abordagem intertextual, aplicada aos textos propostos, revelou uma

grandiosa habilidade do autor do Apocalipse, que não apenas tomou textos e os

dispôs uns ao lado dos outros, mas também selecionou-os, tendo em vista a teologia,

semântica, acondicionamento na estrutura do livro e perspectiva escatológica. Através

deste elenco, esta metodologia tem o objetivo de sublinhar, por um lado, a

continuidade entre os Testamentos no tocante a promessa de YHWH de ser fonte de

salvação e vida para seu povo. Por outro lado, ressalta sua descontinuidade, quando,

através da imagem do Cordeiro, propõe a grande novidade: o Cordeiro imolado e

ressuscitado é juntamente com YHWH a “fonte de água viva brilhante como o

cristal”.

Esta novidade faz com que a escatologia receba um influxo cristológico,

pois a vitória esperada por Israel, onde YHWH suprimiria todos os inimigos, é agora

descrita como a vitória do Cordeiro sobre o pecado e a morte. Por ele, todo homem,

de todos os tempos, recebe a vida plena com Deus.

3. Perspectivas abertas

O livro do Apocalipse encontra-se repleto de contatos intertextuais. O texto

por nós analisado permitiu entrever que a metodologia intertextual apresenta-se como

um poderoso instrumento na decodificação dos símbolos esmeradamente construídos

pelo autor neotestamentário. A análise intertextual de Ap 22,1-5 coloca-se, assim,

como ponto de partida e impulso para novas pesquisas que visem a uma justa

compreensão deste último livro da Revelação.

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Excurso

O estudo de Ap 22,1-5 indicou a presença de outros textos vétero-

testamentários, além de Ez 47,1-12, a exercer influência sobre o nosso texto. Esta

influência, embora indireta, merece a nossa atenção, posto que, outros textos

apresentam elementos de intertextualidade não apenas não apenas com Ez 47,1-12

como também com o neotestamentário, e colaboram para uma melhor compreensão

do nosso texto.

Aqui, tal como procedemos no capítulo IV, a aferição dos possíveis contatos

será realizada através dos critérios empregados por Markl. O escopo também será o

mesmo: detectar como as indicações de conexões textuais propostas pelos critérios

deste autor ocorrem ou não no texto do Apocalipse, bem como a motivação do

hagiógrafo neotestamentário para recorrer a textos antigos ao confeccionar o seu

texto.

1 Análise de dados

a) Critério de Comunicação

Seguindo, o critério de Comunicação é possível perceber que os textos de

Zc 14,8 e Jl 4,18 seguem a estrutura lingüística de Ez 47,1a no que tange a associação

entre o verbo acy com o termo lx;n; / ~yIm;, acrescido do espaço sagrado.

~Øil;v'Wrymi + ~yYIx;-~yIm: + Wac.yE - Zc 14,8

~yJiVih; + lx;n:-ta, + hq"v.hiw> + aceyE + hw"hy> + tyBemi +!y"[.m;W - Jl 4,18

tyIB;h; + !T:p.mi + tx;T;mi + ~yaic.yO + ~yIm:-hNEhiw> + tyIB;h; + xt;P,-la, + ynIbeviy>w: - Ez 47,1

Em Jl 4,18 e Zc 14,8 o emprego do verbo acy é indicado sob a forma verbal

Qal yiqtol “sairá da casa de YHWH”; enquanto que em Ez 47,1 foi utilizado o

particípio Qal. A alternância da flexão verbal não chega a imprimir uma mudança

significativa, ao contrário, acentua a semântica do local que origina a água.

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Os textos de Zc 14,8 e Jl 4,18, além de Ez 47,1, encontrarão semelhante

exclusividade semântica apenas em Ap 22,1a.2a, quando o verbo acy traduzido para o

grego como evkporeu,omai assumirá a função de indicar o trono de Deus e do Cordeiro

como o local de onde procederá a água da vida.

Além desta intertextualidade relacionada com o local da água, um novo

contato poderá ser encontrado através do texto de Gn 2,10. Este exerce uma

influência intertextual, no sentido de ser a imagem paradisíaca, oferecida em Ap 22,1-

5, uma retomada daquele primeiro Éden de onde “um rio saía para regar o jardim”

(cf. Gn 2,10).

Em Ap 22,2a, um outro indício de comunicação consiste no emprego da

locução evn me,sw| th/j platei,aj. Esta sugere algo mais do que uma simples disposição

espacial, o estar “no meio da praça” estabelece uma conexão com #[ew> !G"h; %AtB. / evn

me,sw| tw/| paradei,sw| de Gn 2,9, tanto em nível geográfico, quanto de acessibilidade

existente no momento da criação (cf. Gn 2,7-8). A liberalidade de acesso à árvore foi

interrompida em conseqüência da desobediência ao mandamento de Deus (cf. Gn

2,16-17; 3,2-11). Por ela, o pecado ingressou no mundo e o homem foi expulso do

Éden (cf. Gn 3,23), perdendo, assim, a proximidade com a árvore da vida, que passou

a ser custodiada por querubins e pela chama da espada fulgurante (cf. Gn 3,24). Além

de retomar a idéia de acessibilidade e disposição geográfica existente no ato da

criação, a comunicação entre Gn 2,9 e Ap 22,2a comporta a imagem da restauração

de uma vida de intimidade entre o Criador e a criatura676.

A presença do singular xu,lon de Ap 22,1a, em sentido coletivo, comunica-se

com Gn 2,9 onde é descrita a existência de uma árvore no Paraíso677 e

concomitantemente com Ez 47,7.12, onde xu,lon é um singular com sentido coletivo.

Os dois textos apresentaram, cada um a seu modo, elementos de intertextualidade.

676 BRIGHTON, L. A., Revelation, 625. 677 Kowalski, B., segue o pensamento de Beale e Roloff e reduz as árvores da visão de Ezequiel 47,7.12 a uma única árvore optando assim, pelo texto de Gn 2,9 como texto principal a influenciar o texto de Ap 22,2. Cf. KOWALSKI, B., Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der Offenbarung des Johannes. Stuttgart, Verlag Katholisches Biblewerk GmbH, 2004, 420; BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1106; ROLOFF, J., Irdisches und himmlisches Jerusalem nach der Johannesoffenbarung, in Zion – Ort der Begegnung. Bodenheim, hg. Von F. Hahn/ F.-L. Hossfeld/H. Jorissen/A. Neuwirth, 1993, 85-106.

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b) Critério de Referência

Um novo ponto para observação seria a temática escatológica contida nos

textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 que revelou uma referência entre os textos.

Contudo esta referência intertextual também faz contato com o capítulo final de

Joel678, onde o oráculo escatológico compreende elementos clássicos: prodígios

cósmicos que precedem o “dia de YHWH” e a salvação definitiva do “resto de

Israel”. Esta restauração futura é descrita em forma poética numa imagem de

fertilidade que reverte por completo o quadro de devastação anterior causada por

gafanhotos (cf. Jl 4,18). A isso, seguem-se o anúncio do juízo contra os inimigos,

Egito e Edom (cf. Jl 4,19) e a proclamação de uma promessa perpétua para Judá e

Jerusalém. Percebe-se que a referência escatológica concentra-se sobre a questão da

fertilidade que restaura a vida que fora devastada tanto em Ez 47,1-12, representada

pelos v. 8.9.10.12 (v. 8 “águas ficam purificadas”, “seres se multiplicam”; v. 9 “tudo

será curado”, “pescadores se multiplicam”, v.10 “haverá abundância”, v. 12 “árvores

frutificarão sem cessar e sua folhagem servirá de remédio”), quanto em Jl 4,18 (“os

ribeiros regarão vale das Acácias”). A motivação da fonte também constitui uma

678 Não entraremos aqui em questões críticas sobre a estrutura do livro de Joel. Em nosso trabalho tomamos por base o Texto Massorético que indica quatro capítulos e não a LXX ou a Vulgata que propõem três capítulos anexando o capítulo terceiro ao segundo. Sobre o tema datação, permanece em aberto a questão. Há uma possibilidade de tomarmos como parâmetro um período que oscila do século V ao II a.C. tendo em vista a linguagem escatológica e apocalíptica contida nesta segunda parte do livro. Para maior aprofundamento destes dois temas ver: MYERS, J. M., “Some Considerations Bearing on the Date of Joel”, Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 74 (1962), 81-94; STEPHENSON, F.R., “The Date of the Book of Joel”, Vetus Testamentum 19 (1969) 224-29; TREVES, M., “The Date of Joel”, Vetus Testamentum 7 (1957) 149-56. ALLEN, L. C., Obadiah, Joel, Jonah and Micah. Eerdmans, 1976; BARTON, J., Joel and Obadiah. Westminster John Knox Press, 2001; CRENSHAW, J. L., Joel. Bantam Doubleday Dell Publishing Group Inc., 1995; DILLARD, R. B., “Joel” In McComisky, T., (ed), The Minor Prophets: An Exegetical and Expository Commentary, Vol. 1. Grand Rapid, Baker, 1992; FINLAY, T. J., Joel, Amos, Obadiah. Moody, 1990; GARRETT, D., Hosea-Joel. Broadman & Holman Publishers, 1996; LIMBURG, J., Hosea-Jonah. John Knox, 1988; HUBBARD, D. A., Joel and Amos. Leicester, IVP, 1989; SIMUNDSON, D. J., Hosea-Joel, Obadiah, Jonah, Micah: Minor Prophetes. Abingdon Press, 2005; SMITH, J. M. P., WARD, W. H., & BREWER, J. H., Micah, Zephaniah, Nahum, Habakkuk, Obadiah and Joel. Edinburg, T & T Clark, 2000; WOLFF, H. W., Joel and Amos. Hermeneia. Fortress, 1977.

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referência escatológica entre Ez 47,1.12 e Jl 4,18, pois, se para o primeiro a fonte era

a “Casa” (v.1) ou o “Santuário” (v.12), para o segundo é a “Casa de YHWH”679.

Tal como ocorrera na profecia de Ezequiel, no livro de Joel o

arrependimento é crucial para reverter o infortúnio de Judá. A colocação da promessa

da restauração após o chamado à conversão enfatiza que o arrependimento de Judá

precede a restauração (cf. Jl 2,12-14), assim como o reconhecimento do domínio

absoluto de Deus sobre a natureza e a história (cf. Jl 2,3.11-27).

A perspectiva escatológica da restauração da vida estabelece ainda uma

outra referência intertextual, agora com o texto de Zc 14,8680. A construção literária

em quiasmo do c.14 expressa, de modo conciso, a dramática mudança de derrota para

vitória681. Os v. 1-6 mostram Jerusalém abatida pela ruína, coisas terríveis ainda a

atingirão, mas todos os acontecimentos convergem para um dia em particular e este

dia somente YHWH conhece (cf. v. 7). Este é o ponto decisivo. Deste dia em diante,

Jerusalém se tornará fonte de luz para as nações que, até então, a espoliavam. Se, no

início, o povo de Deus sofreu, agora serão os seus inimigos que sofrem e morrem. A

causa da mudança na sorte de Jerusalém é o seu retorno para seu Deus e o

conseqüente extermínio dos ídolos e dos falsos profetas (cf. Zc 10,1-11,3; 13,2-6).

Segue-se uma batalha onde Jerusalém é vitoriosa, porque YHWH sai para combater

por ela (cf. Zc 14,3). As nações serão vencidas e estarão sob os pés de YHWH. Os

prodígios cósmicos que precedem o “dia de YHWH” são representados por um

potente terremoto, capaz de abrir um vale entre as montanhas e de criar uma rota de

fuga da cidade de Jerusalém (cf. Zc 14,5) e pela ausência de luz (cf. Zc 14,6).

679 Conforme indicou a análise semântica de Ez 47,1a, a expressão “Casa de YHWH” exprime de modo mais objetivo o significado de “Templo” enquanto o lugar onde YHWH habita. Cf. Capítulo III, 188. 680 Sobre a datação do texto de Zacarias 13-14, muitos estudiosos indicam aquela mesma época do profeta Ageu: em torno do ano 521-250 a.C. ou ainda mais cedo caso se identifique o inimigo de Zc 10,10 com a Assíria ou o Egito. Para maior compreensão ver: BICKERMAN, E. J., “La seconde année de Darius”, Rivista Biblica 88 (1981) 23-28; REDDITT, P. L., “Nehemiah's First Mission and the Date of Zechariah 9-14”, CBQ 56.4 (1994) 664-678; BALDWIN, J. G., Haggai, Zechariah, Malachi.Leicester, 1972; KAISER, W., Micah, Nahum, Habakkuk, Zephaniah, Haggai, Zachariah. Word Publishing, 2000. MITCHELL, H. G., SMITH, J. M., BEWER, J. A., Haggai, Zechariah, Malachi.and Jonah. Edinburgh, T & T Clark, 1912; STUHLMUELLER, C., Haggai and Zechariah. Eerdmans, 1988; PETERSEN, D. L., Haggai and Zechariah 1-8. Westminster, 1984; MEYERS, C. L., & MEYERS, E. M., Haggai, Zechariah 1-8. Anchor Bible. Doubleday, 1987. 681 Cf. AMSLER, S., LACOQUE, A., VUILLEUMIER, R., Aggée, Zacharie, Malachie. Genève, Labor et Fides, 1988, 132.

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Com a chegada do “dia de YHWH”, dia que não será mais medido, porque

já não anoitecerá mais (cf. Zc 14,7), o sonho de uma abundância de água em

Jerusalém se tornará uma realidade. Em lugar da fonte de Gion, cuja água corria

“brandamente” até o tanque de Siloé sem conseguir suprir totalmente as necessidades

da cidade, surgirão em Jerusalém rios independentes das chuvas das estações,

jorrando para leste e oeste até o Mar Morto e o Mediterrâneo.

Percebe-se que entre os textos de Ez 47,1-12 e Zc 14,8, o contato recai tanto

sobre a perspectiva da orientação do rio que saindo de Jerusalém, segundo Zacarias,

do Templo segundo Ezequiel, toma a direção leste, quanto do local da fonte.

Tal como ocorreu entre o texto de Ez 47,1.12 e Jl 4,18, a motivação da fonte

constitui uma referência escatológica também com o texto de Zc 14,8. Nos textos

anteriores, a fonte era o Templo, lugar da habitação de YHWH (cf. Ez 47,1-12), a

Casa de YHWH (cf. Jl 4,18) e, em Zacarias, a fonte é a cidade de Jerusalém (cf. Zc

14,8) que é, em última instância, o lugar onde YHWH habita, o centro religioso tanto

para os deportados (cf. Is 40-55; Sl 137), quanto para os que permaneceram na terra

(cf. Jr 41,4ss).

Zacarias não discorre sobre a transformação causada pelas águas que

fertilizam a terra seca e pedregosa, deixando a tarefa à imaginação do leitor.

Diferentemente Ez 47,1-12, que descreve os pormenores do único rio que fertiliza e

restaura toda a terra, lançando mão do estilo hiperbólico, como evidenciam as

repetições contidas nos v. 5.7.9, “profundas”, “muitos”, “todos”, pela comparação do

v. 10 e a colheita mensal miraculosa do v. 12.

O ponto central entre os textos de Ezequiel, Zacarias e Joel é o motivo da

fonte e sua capacidade de gerar vida. Semelhante capacitação se deve ao espaço onde

YHWH se faz presente, por esta razão, a água que jorra desta fonte é capaz de

transmitir a vida por onde passa. A presença de YHWH é a única explicação para

toda esta fartura. A perspectiva escatológica contida nestes textos situa a fonte logo

após o cumprimento do juízo e por ele se dá a restauração, sinal de que o perdão já

ocorreu.

A referência intertextual entre os textos analisados mostrou que na

perspectiva dos textos vétero-testamentários, a índole escatológica converte-se em

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pano de fundo, como se depreende pela expressão aWhªh; ~AYB; “naquele dia” dos

textos de Jl 4,18 e Zc 14,8, assim como, pela expectativa de restauração histórica, isto

é, uma escatologia que teria como palco e cenário este mundo (cf. Ez 47,1-12; Jl 4,18;

Zc 14,8). No texto do Apocalipse, a escatologia assume um teor meta-histórico: tendo

início neste mundo, encontra sua plena realização na eternidade682.

Os inimigos de Israel que em Joel são identificados como Egito e Edom (cf.

Jl 4,19), em Zacarias são os ídolos e falsos profetas (cf. Zc 10,1-11,3; 13,2-6) e em

Ezequiel são diversas as cidades inimigas (cf. Ez 25,1-32,32). Foram, através da

linguagem simbólica do Apocalipse, condensados sob a imagem do dragão, da Besta

e do falso profeta (cf. Ap 12-13). A imagem proposta pelo texto do Apocalipse, tal

como a dos textos vétero-testamentários, é precisa em indicar a total destruição dos

que se levantam contra os eleitos de YHWH.

A diferença entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12, conforme já

detectado no capítulo IV, repousa no papel de defensor do povo. A mesma distinção

poderá ser observada em Jl 4,18 e Zc 14,8. Nestes textos vétero-testamentários, esta

tarefa é desempenhada por YHWH (cf. Zc 14,3; Jl 2,18-27; Ez 38), enquanto que no

livro do Apocalipse esta será desempenhada pelo Cordeiro. Ele partirá para salvar os

eleitos e eliminar aqueles que se opõe ao projeto divino (cf. Ap 5,6-10; 19,17-21).

O motivo da fonte, cerne de nosso trabalho, foi detectado entre os textos de

Ez 47,1-12 e Ap 22,1-5. Contudo, a análise de Jl 4,18 e Zc 14,8 permite detectar uma

nova referência intertextual. Entre estes textos vétero-testamentários, o local de

origem da água está situado no espaço sagrado da Casa de YHWH (cf. Jl 4,18) ou de

Jerusalém (cf. Zc 14,8) indicando assim que ela procede exatamente da presença de

YHWH. Tal como foi aferido entre Ez 47, 1-12 e Ap 22,1-2, o local de onde brota a

água está vinculado ao espaço sagrado, porque se origina do Templo/ do trono de

Deus e do Cordeiro o “rio de água da vida brilhante como o cristal”.

Esta água que brota do espaço sagrado possui por característica básica uma

potência restauradora que corrobora a referência intertextual existente entre Ez 47,1-

12; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap 22,1-2. De fato, entre estes textos vétero-testamentários as

682 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura cristológica del Apocalipsis, 275-276.

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águas são apresentadas como abundantes (cf. Ez 47,1-12; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap 22,1),

independentes do condicionamento das estações (cf. Ez 47,1-12; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap

22,1), facultam a vida em toda sua extensão (cf. Ez 47, 5.7.9.10; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap

22,1), mas, em todos fica evidenciada a dependencia de seu local de origem para

comunicação da vida. Sendo assim, a água descrita nos textos de Ez 47,1-12; Jl 4,18 e

Zc 14,8 condicionam sua admirável capacidade de promover a vida a YHWH; Ele é a

fonte, por excelência, de toda a vida.

No livro do Apocalipse esta idéia teológica dos textos vétero-testamentários

foi mantida. Entretanto, em Ap 22,1-2, já não encontramos mais apenas YHWH,

como doador da vida, pois ao seu lado sentado no trono, está o Cordeiro que é

juntamente com YHWH doador da vida683.

Em relação a Ap 22,1-5, pode-se, no entanto, privilegiar a referência

intertextual com o texto de Ez 47,1-12, tendo em vista que Jl 4,18 e Zc 14,8 fazem

uma releitura de Ez 47,1-12684.

c) Critério de Diálogo Além de Ez 47, 1-12, encontramos no Antigo Testamento, uma outra

passagem significativa que estabelece um novo diálogo com Ap 22,1a, a saber: Zc

13,1. Este texto vétero-testamentário é o único que apresenta o binômio hD"nIl.W taJ;x;l. “pecado e mancha”, vinculado à função específica da fonte de água, cujo escopo é

lavar os pecados e as manchas da Casa de Davi e dos habitantes de Jerusalém,

acarretando para estes um estado de limpidez ímpar.

683 Em Jr 17,13, a ocorrência de ~yYIx;-~yIm: não encontra, no que concerne à questão de contexto, semelhanças com Ap 22,1, porque estão ausentes os elementos de uma escatologia positiva e a indicação do local que dá origem ao rio. No tocante a temática de fundo, temos em Jeremias a apostasia e uma busca insana do homem por Aquele que anteriormente abdicou e a conseqüente destruição que impôs a si mesmo. Os textos de Gn 26,13; Lv 14,5.50; 15,13; Nm 19,17 ao trazerem a construção ~yYIx; ~yIm: não apresentam conexões semânticas com Jr 17,13 porque o adjetivo plural “vidas”, assume a conotação de “nascente” ou “corrente”, além disto, o termo rio, em Gn 26,13, aparece apenas como elemento espacial onde se faz a escavação. Em nenhum deles há um contexto escatológico. O cenário de Gn 26,13 mereceria uma análise especial sobre o modo que o Novo Testamento em Jo 4 retomou esta passagem. 684É provável que Zacarias e Joel tenham feito uma releitura da profecia de Ezequiel. Cf. AMSLER, S., LACOQUE, A., VUILLEUMIER, R., Aggée, Zacharie, Malachie. Genève, Labor et Fides,1988,136-137.

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A iniciativa de tornar límpida a Casa de Davi e os habitantes de Jerusalém

parte de YHWH, que se compadece do estado de miséria da “terra”, da “Casa de

Davi” e de “Jerusalém” que “pranteia” (cf. Zc 12,12-14).

Em Ap 22,1a, o genitivo zwh, dialoga com a expressão hD"nIl.W taJ;x;l.

“pecado e mancha” de Zc 13,1. Ambos serão eliminados, dando espaço à vida que

brota da fonte que proporciona à “Casa de Davi”, através das águas, um inimaginável

estado de diafania. Este novo estado permite que a salvação predomine sobre o

pecado.

Apesar da significativa presença de Zc 13,1, os contatos entre Ap 22,1-5 e

Ez 47,1-12 são mais relevantes, considerando o maior número de contatos

intertextuais e o panorama do texto de Ap 22,1-5.

Um outro componente de diálogo entre as passagens de Ap 22,1a pode

ainda ser encontrado, considerando a questão dos destinatários desta água. Em Zc

13,1 ela é destinada ~Øil'v'Wry> ybev.yOl.W dywID" tybel. “à Casa de Davi aos habitantes de

Jerusalém”. Já em Ez 47,8.9, o destinatário é o Mar Morto e em Jl 4,8 o destino das

águas que saem da Casa de YHWH é o vale das Acácias. No Ap 22,1, os limites

geográficos e nacionalistas dos textos de Zacarias, Joel e Ezequiel são superados. A

água que sai do “trono de Deus e do Cordeiro” destina-se a toda a humanidade (cf.

Ap 21,24), acentuando, assim, o universalismo da salvação. O autor neotestamentário

possui uma noção de salvação que supera aquela vétero-testamentária, mas sem

deixar de supô-la.

As observações dos termos e expressões semelhantes e, às vezes, únicas,

entre Zc 14,8 e Ap 22,1a, sugerem que o autor neotestamentário teve a intenção de

aproximar-se deste livro, criando assim um contato intertextual bastante explícito.

d) Critério de Seletividade

A expressão u[datoj zwh/j de Ap 22,1 não será encontrada, de modo

explícito, no texto de Ez 47,1-12. Mas pode ser constatada pelo contexto da perícope,

onde o vocábulo ~yIm; sintetiza e viabiliza a vida, posto que ao longo de toda a

trajetória da água há a fecundação da terra, tornando-a capaz de dar frutos, além da

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inaudita cura das águas insalubres, tornando-as repletas de vida. A referência fica

mais explícita em Ez 47,8.9, onde a água que saiu do Templo tem a função de curar e

dar a vida.

Uma seletividade ainda mais evidente incide sobre os termos ~yYIx;-~yIm:, que o

texto da LXX traduziu como u[dwr zw/n e teve preservada no texto de Ap 22,1a a

mesma disposição dos termos e a semântica contida no texto de Zc 14,8. A

classificação gramatical, contudo, sofreu algumas alterações, pois enquanto Zc 14,8

u[dwr zw/n é sujeito da frase, em Ap 22,1a, u[datoj zwh/j é objeto do verbo dei,knumi e

especifica aquilo que o autor do Apocalipse contemplava.

Apesar de a classificação gramatical possuir um valor para a compreensão

do texto, exerce menor influência sobre o cerne de nossa pesquisa do que a motivação

para a manutenção da disposição dos termos e da semântica, pois se o novo autor, ao

usar o texto anterior, lhe preserva a mesma ordem, é porque tem por finalidade fazer

recordar na mente do leitor atual uma linha teológica nela contida, além de uma

linearidade semântica.

No texto de Zc 14,8, a u[dwr zw/n compreende tanto a redenção de Israel e a

exclusividade na adoração a YHWH, quanto a expectativa de vida abundante através

desta água que brota incessantemente de Jerusalém685. Nestes dois elementos, a

seletividade se apresenta mais vigorosamente, pois as duas nuances da semântica se

fazem sentir no texto de Ap 22,1a. De fato, em Ap 22,1a, detectamos que a expressão

u[datoj zwh/j traz consigo, considerando o contexto dos c. 21-22, a redenção da

história e o reconhecimento por parte de todas as nações, de que o Deus de Israel é o

único Deus e, portanto, só a Ele se presta adoração (cf. Ap 21,24-27). A teologia

comum aos dois textos está no cumprimento do juízo, no triunfo de Deus sobre seus

inimigos e na instalação de seu reinado sobre Jerusalém, de onde brotará uma água

totalmente nova, uma “água da vida”.

A noção de vida abundante anunciada pelo profeta Zacarias permanece no

texto de Ap 22,1a, pois u[datoj zwh/j reforça a idéia teológica de vida em plenitude.

Nos dois textos, é o local de origem da água que gera esta propriedade particular a ela

aplicada. O qualificativo “da vida” está intimamente vinculado ao local donde a água 685 ANSLER, S., LACOCQUE, A., VUILLEUMIER, R., Aggée, Zacharie, Malachie, 201.

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brota. Sendo assim, a “vida” não é um atributo da água em si mesmo, não é a “água”

que fornece o benefício, ela apenas o contém; sua potencialidade repousa no lugar de

onde ela procede.

Apesar dos contatos existentes entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12, a aproximação

mais estreita da expressão “água da vida” se dá com o texto de Zc 14,8. Nele há a

descrição de uma água qualificada como “da vida”, que brota de Jerusalém e divide-

se em dois braços: um para o mar oriental e o outro para o mar ocidental, tanto no

verão quanto no inverno. Nesta última etapa da descrição, o texto de Zc 14,8

aproxima-se de Ez 47,6.7.9.12, em decorrência da temática de uma autonomia com

relação aos limites ditados pelo ciclo das chuvas, para a constância das águas do rio.

Um segundo elemento poderia ser indicado através da expectativa escatológica de

felicidade eterna alcançada pela abundância de água que brota de Jerusalém. A

conseqüência da presença desta água da vida é o encerramento de toda idolatria e a

implementação do reinado de Deus sobre todo o país (cf. Zc 14,9)686.

Uma nova seletividade será encontrada se considerarmos a relação entre os

textos de Gn 2,9; 3,22 e Ap 22,a. A justaposição de imagens de Gn 2,9 com Gn 3,22

associa a árvore da vida à imortalidade. Esta temática encontra-se presente e

desenvolvida em Ap 22,1-5 por meia da imagem da vida que é oferecida aos servos

de Deus e do Cordeiro na Cidade Santa, uma vida que se estenderá por todos os

séculos.

O contexto de uma árvore plantada no paraíso (cf. Gn 2,9) ou na eternidade

aproxima ainda mais os dois textos, uma vez que em ambos a imagem da “árvore da

vida” está ligada à presença de YHWH, sem o obstáculo do pecado que a tornou

inviável para o homem (cf. Gn 3,22).

Ao empregar Gn 2,9, o autor de Ap 22,a retoma a imagem de intimidade

entre YHWH e o homem existente no momento da criação, para indicar a seu

leitor/ouvinte que esta relação foi totalmente restaurada pela intervenção de Cristo

morto na cruz (cf. Rm 5,12-21; 6,23; Ap 5,6). Pela cruz a relação de intimidade com

686 A expressão “água da vida” mereceria uma investigação que a aproxima-se dos textos de Lv 14,5.50; Nm 19,17 a fim de detectar se o emprego de “águas correntes” de Zc 14,8-9 com um víeis intertextual que perpasse a noção do efeito purificador das “águas correntes” como um elemento de aproximação com Deus, uma vez que, segundo a prescrição sacerdotal, estas águas são oriundas de uma fonte natural e não passível de contaminação como as de uma cisterna.

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YHWH se torna não apenas novamente possível, mas é ampliada para a Pessoa do

Verbo Encarnado que resgatou todo homem do pecado e da morte (cf. Ap 5,8).

2 A Intertextualidade de Zc 14,8 e Jl 4,8 em linha de continuidade e descontinuidade com Ap 22,1-5

O critério de comunicação revelou uma continuidade entre os textos de Ap

22,1-5 e Zc 14,8; Jl 4,8 quando o verbo acy assumiu a função de indicar o trono de

Deus como o local de onde procederá a água da vida. Ao mesmo tempo, o texto de

Ap 22,1-5 insere uma descontinuidade no momento em que indica, além de Deus

como princípio da água da vida, também o Cordeiro. Já não apenas um será a causa

desta água restauradora, mas o Cordeiro imolado é princípio desta fonte.

A referência intertextual indicou que o elemento escatológico faculta a

visão de continuidade não apenas com Ez 47,1-12, mas também com outros textos

vétero-testamentários: Zc 14,8; Jl 4,8. Através destes três textos, transparece a

intenção do autor neotestamentário em assumir o sentido de restauração da história

humana entendida como ação do próprio YHWH.

O critério de referência apresentou a temática escatológica como

continuidade entre os textos vétero-testamentários na medida em que diante de um

cenário devastado, inapto para a vida é, após o arrependimento sincero e retorno ao

Deus Único de Israel, tornou-se território possível para abrigar e gerar vida. A

presença da condição de um retorno sincero interliga os textos, mas oferece uma

descontinuidade a partir do momento que, tal como ocorreu entre Ezequiel e

Apocalipse, o retorno se dá para Deus e o Cordeiro, propiciando, também aqui, uma

escatologia-cristológica.

O mesmo critério de referência permitiu perceber que o motivo da fonte

serviu, não só como elemento de continuidade entre a profecia de Ezequiel e o

Apocalipse, como também entre Joel e Zacarias, uma vez que estes últimos fizeram

releituras da profecia de Ezequiel e definiram este local como “Casa de YHWH” (cf.

Jl 4,18) e Jerusalém (cf. Zc 14,8). A diferença lingüística não afetou a semântica, pois

tanto quanto em Ez 47,1.12, os termos empregados por Zacarias e Joel estão

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relacionados com o local da habitação de YHWH. O local da fonte em Ap 22,1-2 está

em linha de continuidade com os textos proféticos estudados: é o local da habitação

de YHWH, simbolizada, no livro neotestamentário, pelo termo “trono”. Mas, ao

mesmo tempo, está em descontinuidade porque já não se fala de um espaço sagrado

ou da cidade de Jerusalém, antes se reporta à dignidade real: Deus está no trono.

Ainda em descontinuidade está a presença do Cordeiro que assenta-se neste trono de

Deus indicando sua igualdade soberana e divina.

A eclosão de vida gerada pela fonte de água da vida que brota do trono de

Deus e do Cordeiro, insere um elemento de descontinuidade entre Ap 22,1-5 e Ez

47,1-12; Zc 14,8; Jl 4,8, porque nestes textos proféticos a compreensão de restauração

da cidade de Jerusalém assume o teor de uma ação neste mundo, enquanto que, no

texto de Ap 22,1-5, a restauração ocorre numa etapa transcendente. A Cidade de

Jerusalém é celestial, vem da eternidade e está preparada para as núpcias (cf. Ap

21,2).

A alteração imposta aos textos de Ez 47,1 permanece no nível vocabular,

não na semântica, pois já não há mais o Templo de Deus em Jerusalém, ao menos não

o Templo entendido com dimensões físicas que sinalizam a presença de Deus. O

mesmo ocorre com as releituras realizadas pelos textos de Zc 13,1 e Jl 4,18. Na Nova

Jerusalém, há o “trono de Deus e do Cordeiro” como lugar da presença de Deus e de

sua soberania.

A identificação do local de origem da água, sempre em perspectiva

teológica, apresenta-se como elemento de continuidade entre os textos de Jl 4,18 e Zc

14,8 e Ez 47-1-12. Ele é o Templo (cf. Ez 47,1), a Casa de YHWH (cf. Jl 4,18) e

Jerusalém (cf. Zc 14,8). Por conseguinte, o rio da profecia de Ezequiel, Joel ou

Zacarias está habilitado a levar a vida até os locais mais áridos, quebrando, assim, o

ambiente de morte que lá imperava e oferecendo-lhe a vida em conseqüência do local

de sua origem. Esta referência intertextual apresenta continuidade também com Ap

22,1-5 quando, neste é apresentado o trono de Deus e do Cordeiro como o local de

onde procede o rio de água da vida brilhante como o cristal. Mas,

concomitantemente, há aqui uma descontinuidade entre o texto neotestamentário e os

vétero-testamentários, na medida em que um novo personagem é apresentado como

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princípio da fonte: o Cordeiro imolado (cf. Ap 5,6). Com este elemento de

descontinuidade, o motivo da fonte de água da vida em Zacarias e Joel, seguindo o

que já ocorrera em Ez 47,1-12, assumem um teor cristológico, e a partir dele poderão

ser plenamente compreendidos.

A adjetivação do rio como “da vida” (cf. Zc 14,8) possui uma explicitação

no próprio livro de Zacarias: é a cessação da idolatria (cf. Zc 14,9), gerando uma

indicação de vida voltada para o Deus Único de Israel, sem a possibilidade de

desvios. Assim, gozando da redenção (cf. Ap 5,6-10), o povo adora exclusivamente o

seu Deus. Deve-se considerar esta tensão escatológica do texto de Zacarias, uma vez

que a “água da vida” figura como um sinal da plena redenção de Israel e de sua

ordenação para uma adoração sem desvios e sem interrupção.

Uma continuidade mais notória, sem dúvida, se dará com o texto de Zc 14,8,

onde a expressão “água da vida” foi cunhada em contato com a idéia teológica de

encerramento da idolatria, o que implica em um retorno de todo Israel para o seu

Deus. Assim, a “água da vida” converte-se em instrumento de vida plena com Deus.

A seletividade, criada pelo autor do Apocalipse com Zc 14,8, aciona na

memória do leitor/ouvinte, os elementos de redenção histórica e de reconhecimento

de YHWH como o Único e situa a noção de “vida” como uma atitude também do

homem. Esta noção terá continuidade no Apocalipse que impõe a condição da

idolatria como requisito para o ingresso na Cidade Santa (cf. Ap 21,27). Contudo, há

uma descontinuidade pela novidade do Cordeiro entronizado como Deus em igual

dignidade com YHWH e, como Ele digno de adoração (cf. Ap 5,6-10; 22,1-5).

A eliminação do “pecado e da mancha” (cf. Zc 13,1) cria uma imagem de

total transparência, beleza e diafania que o autor do Apocalipse sintetizou na imagem

do cristal. De fato, o elemento comparativo w`j kru,stallon possui como função

indicar o grau de pureza da água: nela nada há de impuro. O contato intertextual entre

Ap 22,1-5 e Zc 13,1 segue em linha de continuidade quando retoma a idéia de

eliminação do “pecado e da mancha”, isto é, de todo instrumento capaz de retirar o

vínculo de amizade entre Deus e o homem, que em última instância, é a fonte de vida

plena.

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Por fim, através da referência à narrativa da criação em Gn 2,9, o autor do

Apocalipse procede no mesmo padrão de continuidade quando faz uso da expressão

evn me,sw|. O emprego desta expressão permite perceber que a acessibilidade à árvore

da vida foi novamente restituída ao homem, indicando que o projeto inicial de vida

plena que fora elaborado por Deus para o homem foi retomado.

A expressão evn me,sw| diferencia o texto do Ap 22,2a de Gn 3,22.24, uma vez

que já não se afasta o homem da árvore da vida. Ao contrário, é amplamente

franqueado a ele o acesso por que já todas as coisas encontram-se restauradas em

Cristo (cf. Ap 5,6-10). Esta restauração, todavia, não restabelece o primeiro paraíso

simplesmente, mas o supera, já que, além de não existir mais a possibilidade do

homem cometer algum ato que volte a afastá-lo de Deus, o anátema foi eliminado. O

homem será servo de Deus por todo o sempre (cf. Ap 22,3-5).

No v. 2b, de Ap 22, o termo “árvore da vida” apesar de estar ligado, em

nível de vocabulário, com os textos de Gn 2,9; 3,22.24, apresenta elementos de

descontinuidade quanto ao acesso a esta “árvore”. No Éden, foi proibido, após o

pecado, que o homem desta árvore se aproximasse, provavelmente para que seu

estado pecaminoso não fosse perpetuado, uma vez que este não era o desejo de Deus

para o homem, mas uma vida de plena comunhão. Também não há uma árvore do

conhecimento do bem e do mal. O conhecimento é ver a face de Deus, adorá-lo e ter

seu nome marcado sobre a fronte (cf. Ap 22,3c-4). Há aqui uma reversão do Éden,

onde, após o pecado, a árvore é símbolo da morte, da maldição. Aqui ela cura as

nações e é sinal de bênção. Ap 22,2a, ao retomar a perspectiva de acessibilidade e

disposição geográfica de Gn 2,9, não assume os nefastos efeitos de uma vida imersa

no pecado, no afastamento de Deus.

O vínculo intertextual de Ap 22,2a com Gn 2,9 apresentou uma seletividade

que mostra a intenção do autor de permanecer em continuidade com o vocabulário do

texto antecedente em seu texto. Todavia, o emprego que faz estabelece uma

descontinuidade com aquele primeiro, porque não há mais uma ameaça ao homem

que venha a tocar na árvore, nem guardiões para impedir uma aproximação (cf. Gn

3,22-24). Assim, haveria um recorte no texto de Gênesis. Num primeiro momento, a

acessibilidade é garantida e desejada por YHWH; já num segundo momento, esta

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acessibilidade teria tomado um aspecto de perigo para o homem e, por esta razão, é

suprimido o contato com esta “árvore da vida”. No Apocalipse a descontinuidade

com os textos de Gênesis se apresentam exatamente neste elemento de aproximação.

Nesta etapa da Revelação é totalmente franqueado ao homem o acesso à árvore da

vida, porque o perigo que ela representou para a natureza humana, em um momento

passado, agora foi superado pela restauração de todas as coisas no sangue de Cristo

(cf. Ap 5,6; 21,4-5).

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