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Feminino, Psicanlise e educao: do imPossvel ao Possvel

MARIA AUGUSTA RONDAS SPELLER

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MINISTRIO DA EDUCAO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Reitor Paulo Speller

Vice-Reitor

Elias Alves de Andrade

Pr-Reitora Administrativa Planejamento

Adriana Rigon Weska

Pr-Reitora de Ensino de Graduao

Matilde Araki Crudo

Pr-Reitora de Ensino de Ps-Graduao

Marinz Isaac Marques

Pr-Reitor de Pesquisa

Paulo Teixeira de Sousa Jnior

Pr-Reitora de Vivncia Acadmica e Social

Marilda Calho Esteves Matsubara

CONSELHO EDITORIAL DA EDUFMT

Prof Dr Elizabeth Madureira Siqueira (Presidente)

Prof MSc. Anna Maria Ribeiro F. Moreira da Costa

Prof. Dr. Alosio Bianchini

Prof Dr Cssia Virgnia Coelho de Souza

Prof Dr Clia Maria Domingues da Rocha

Prof. Dr. Ednaldo Castro e Silva

Acadmico dson Jos Santana

Prof. MSc. Gabriel Francisco de Mattos

Acadmica Ilza Dias Paio

Prof. Dr. Joaquim Eduardo Moura Nicssio

Prof Dr Jorcelina Elizabeth Fernandes

Prof Dr Leimi Kobayasti

Prof Dr Leny Caselli Anzai

Prof. Dr. Luiz Augusto Passos

Prof Dr Maria Ins Pagliarini Cox

Prof Dr MSc. Mariza Ins da Silva Pinheiro

Tcnica MSc. Nileide Souza Dourado

Prof Dr Onlia Carmem Rosseto

Prof Dr Sandra Cristina Moura Bonjour

Prof Dr Telma Cenira Couto da Silva

Prof Dr Virgnia Meirelles

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Cuiab, Mato Grosso, 2005

Feminino, Psicanlise e educao: do imPossvel ao Possvel

MARIA AUGUSTA RONDAS SPELLER

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Maria Augusta Rondas Speller, 2005.

Av. Senador Metello, 3.773, Jardim Cuiab 78.030-005 Cuiab-MT

Telefax: (65) 3052 8711 / 3624 8711 www.entrelinhaseditora.com.br

e-mail: [email protected]

ndices para catlogo sistemtico:

1. Feminino, psicanlise e educao : Psicologia educacional 370.15

Editora da Universidade Federal de Mato GrossoAv. Fernando Corra da Costa, s/n

Coxip da Ponte Cuiab-MT 78.060-900Fone: (65) 3615 8322 / Fax: (65) 3615 8325

[email protected]

Editora Maria Teresa Carrin Carracedo

Produo editorial e grfica Ricardo Miguel Carrin Carracedo

Editorao Maike Vanni

Capa Helton Pereira Bastos

Illustrao Regina Penna

(Capa: A partir de um ponto de vista acrlica s/ tela, 2004.

Foto de Franco Venncio 4 capa: Homenagem Picasso

acrlica s/ tela, 1984)

Coordenadora Elizabeth Madureira Siqueira

Reviso e Normalizao: Maria Auxiliadora S. Pereira

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Speller, Maria Augusta Rondas. Feminino, psicanlise e educao: do impossvel ao possvel / Maria Augusta Rondas Speller. -- Cuiab : Entrelinhas : EdUFMT, 2005.

Bibliografia. ISBN 85-327-0158-2 (EdUFMT) ISBN 85-87226-36-3 (Entrelinhas Editora)

1. Feminilidade (Psicologia) 2. Mulheres - Psicologia 3. Mulheres e psicanlise 4. Professoras - Formao 5. Psicanlise e educao I. Ttulo.

05-8875 CDD-370.15

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minha me, Maria Helena, pelo sabor da letra.A meus filhos, Andr e Gabriela, por me surpreenderem pelo que me ensinaram e ensinam, ainda.

A Paulo: mais, ainda...

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(...) encontro freqentemente arqutipos da ceguei-ra, quando erro em minhas galerias interiores, onde s vezes convidados inslitos me fazem companhia em meus olhares para o invisvel. Essas silhuetas no me do mais medo como outrora, quando a deciso de outrem, bem mais que minha prpria experincia, fazia de mim um cego. (Evgen Bavcar, 2001)

(...) padeo de lonjuras. Desde criana minha me portava essa doena. Ela que me transmitiu (...). O resto era s distncia. A distncia seria uma coisa vazia que a gente portava no olho e que meu pai chamava exlio. (Manoel de Barros, 2000).

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Feminino, Psicanlise e Educao: do impossvel ao possvel 13

Prefcio

Esta obra oferece uma riqussima contribuio ao pblico em geral. De modo particular, queles que, ao se ocuparem da educao, com ela se preocupam. A Autora, de forma ousada e competente, rene trs temas feminino, educao e psicanlise, cada qual, por si s, bastante complexo. A sua obra de extremo refinamento na montagem dos argumentos e na juno das peas, constitudas de definies, conceitos, noes e uma leitura interpretativa pessoal e madura. Ela no dispensa o recurso da arte potica, reconhecendo a sua fora, preciso e beleza na traduo das vivncias humanas.

So dois os captulos. Substantivos. No primeiro, a Autora prope a leitura psicanaltica do feminino. No segundo, introduz a educao, argumentando e demonstrando a sua estreita relao com o feminino e a psicanlise.

Sobre o feminino, j no incio da obra, a Autora alerta quanto a sua natureza: um impossvel de a linguagem dizer-nos, uma posio ou movimento subjetivo, uma carncia prpria ao ser humano, carncia no simblico.

No vende iluses. Expe, com mltiplos recursos literrios, a possibilidade de, justamente nesse vazio ou precariedade a que estamos condenados, homens e mulheres, identificarmos a estrangeridade, o no-todo pertencimento, [que] possibilita observaes mais acuradas, tudo vendo como novidade.

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14 Maria Augusta Rondas Speller

Eis o ponto, eis o elemento de passagem para se pensar a educao, as-sunto do segundo captulo. Se o sentido para a educao nasce de uma no acomodao, de uma incompletude assumida, de um desconforto que alimenta a procura, a relao pedaggica ter de implicar o cuidado, a escuta amorosa. So esses traos to prprios do ato de educar que a Autora submete ao enfo-que psicanaltico. A capacidade de escrutinar, analisar e buscar novos ngulos de observao e interpretao do fenmeno educacional prende a ateno do leitor, anuncia que se est adentrando um terreno novo. Eis, de fato, um novo ponto de vista, to frtil quanto pouco explorado, ao menos, por profissionais da educao, nos cursos de Pedagogia.

A obra de Maria Augusta Rondas Speller tem ousadia e beleza suficientes para atrair a ateno de leitores de distintos credos e vinculaes profissionais. Para todos que entendem ser a educao uma arte humanizadora, tanto quanto o a psicanlise, importa afirmar que aqui est uma contribuio rara e necessria, possibilitando revises, reflexes e vos criativos dentro e fora da escola.

A Autora discute e prope que se valorizem as perspectivas que o feminino abre na condio humana para lidar com a vida e, de modo especial, com a educao.

Convencida de que educao e psicanlise somente podem ser compreendidas e plenamente exploradas no contexto interdisciplinar, do qual se depreendero os sentidos, ela circula por vrios outros campos das cincias sociais e humanas, propondo ao leitor reflexes sobre questes scio-culturais, polticas e outras.

Sua crtica educao precisa e, ao mesmo tempo, dialogal, indagativa, preocupada em identificar os condicionamentos, as burlas, os equvocos, no processo educativo. Na crtica, um momento sntese, produzido sob a forma de doze mandamentos, mostra o que estou denominando carter dialogal do texto. Como notas de leitura, servem para alertar sobre a necessidade, na educao, da leveza, da curiosidade, da criatividade, da postura feminina de sentir-se in-completo e motivado busca.

Eis uma leitura que leva forosamente a revises, condicionadas a mudanas na prpria concepo e vivncia do ato de educar.

Artemis TorresCuiab, 08 de novembro de 2005.

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Feminino, Psicanlise e Educao: do impossvel ao possvel 15

Sumrio

PREfCIO ........................................................................................................ 13

INTRODUO ................................................................................................... 19

CAPTULO 1 DE fEMININO E fEMINILIDADE NA PSICANLISE .................................... 21

1.1. Mulher, feminino, feminilidade: real, simblico e imaginrio em psicanlise .................................................. 21

1.2. Mais real, simblico e imaginrio ................................................................. 24

1.3. Mulher, feminino, feminilidade ...................................................................... 29

1.4. dipo e castrao na mulher ....................................................................... 34

1.5. Uma mulher e as outras ............................................................................. 46

1.6. Mulheres, mscaras, semblantes: entre ter/ser o falo e o nada ........................................................................ 51

1.7. Possibilidades para mulheres ....................................................................... 58

1.8. Feminino, misticismo e loucura ................................................................... 65

1.9. Feminino, fico, literatura e psicanlise ....................................................... 78

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16 Maria Augusta Rondas Speller

CAPTULO 2 fEMININO, PSICANLISE E EDUCAO: DO IMPOSSVEL AO POSSVEL, DO INSUSTENTVEL AO SUSTENTVEL MAL-ESTAR NA CULTURA ............................................... 91

2.1. Cincia e tecnologia: admirvel mundo novo? velho? ..................................... 95

2.2. Mal-estares contemporneos ..................................................................... 100

2.3. A funo paterna ...................................................................................... 103

2.4. A funo materna ..................................................................................... 109

2.5. Famlia, infncia e educao ..................................................................... 112

2.6. Psicanlise e educao: possvel conjug-las? .......................................... 115

2.7. Psicanlise e educao: e o que o feminino tem a ver com isso? ................... 129

2.8. Amor, transferncia e educao .................................................................. 134

2.8.1. Amor... ............................................................................................ 134

2.8.2. Transferncia e educao ................................................................. 137

CONSIDERAES fINAIS ............................................................................. 145

REfERNCIAS ............................................................................................... 157

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Feminino, Psicanlise e Educao: do impossvel ao possvel 19

Talvez fosse preciso considerar que nosso conhecimento do mundo uma mistura de rigor e poesia, de razo e de paixo, de lgica e mitologia. (Michel Maffesoli, 1985)

Este livro resultado de parte da minha tese de doutorado1, na qual pes-quisei mulheres, professoras, em Peixoto de Azevedo, norte do estado de Mato Grosso. O contedo refere-se a dois captulos nos quais elaborei, em um deles, meu referencial terico, a psicanlise, em relao ao feminino, e, no outro, os entrelaamentos possveis entre feminino, psicanlise e educao. A pesquisa e o resultado dela no sero aqui abarcados, ficando para uma outra vez, na expectativa de que o que aqui exponho e a suspenso temporria tenham, no desejo dos leitores, efeitos similares aos que certos contadores de histrias con-seguem obter ao final de sua narrativa, quando terminam de contar uma histria abrindo-a, encadeando-a a outra que apenas sugerem e, vendo a curiosidade no rosto dos ouvintes, dizem: mas.... isso uma outra histria, que fica para uma outra vez. Sherazade dos cerrados mato-grossenses?

Por que estudar mulheres? Por que nesse lugar? Dentro da teoria psicanaltica, um tema que sempre me apaixonou foi o feminino entendido como uma posi-o subjetiva propiciadora de uma insero outra no mundo, a qual franqueia possibilidades de se viver mais criativamente, abrindo perspectivas inclusive para a educao. Como estudar esse tema, trabalhando na educao? perguntei-me vrias vezes. Como, psicanalista que sou, alm da experincia profissional da clnica, poderia eu seguir estudando e pesquisando sobre o feminino, nas minhas atividades acadmicas como professora de universidade?

1 RONDAS SPELLER, M. A. Professoras em Peixoto de Azevedo/Mato Grosso: das vicissitudes de ser mulher, uma histria por contar. Tese (Doutorado em Educao), FEUSP, So Paulo, 2002.

Introduo

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20 Maria Augusta Rondas Speller

Nos ltimos anos, no Instituto de Educao da Universidade Federal de Mato Grosso, tenho tido como alunos, no curso atualmente designado Pedago-gia na Modalidade Licenciatura para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, professores, a maioria mulheres, da rede pblica. Por alguns anos trabalhei, nesse mesmo curso, na modalidade de educao a distncia junto ao Ncleo de Educao Aberta e a Distncia do Instituto, cuja atuao tem se estendido a diversas regies de Mato Grosso.

Assim, seja na clnica, seja na sala de aula, ou mesmo em suas casas e em seu trabalho (graas ao projeto de educao a distncia), tenho escutado muito as mulheres, nos ltimos quatorze anos. Escutando-as, atravs do filtro terico da psicanlise e, quando possvel, com a ajuda da literatura e da poesia, tenho tentado construir/delinear o que o feminino e sua relevncia para a educao e para a sociedade.

Para a psicanlise, a educao, como veremos no captulo 2, entendida como um discurso social, implicando transmisso na cultura. Assim, as interse-es entre psicanlise e educao se do num campo mais abrangente que o conformado pela psicanlise e pela cultura.

Presenciamos mudanas sociais que nos deixam perplexos, sua compreenso e anlise pendentes e exigentes de contribuies de vrias reas de conhecimento. A universidade no pode deixar, sob a capa do academicismo e da preocupao com a rpida produo do consagrado por financiamentos, de estar atenta a essas mudanas.

Aliando meu interesse e experincia em escutar mulheres com um espao instigante, decidi estudar as mulheres, professoras, migrantes, em Peixoto de Azevedo, na perspectiva da teoria psicanaltica, esboando, a partir de suas falas, sem dispensar a ajuda da literatura, um quadro das vicissitudes de ser mulher. As palavras dessas mulheres, produtos e produtoras do discurso social, permearo a trama do dia-a-dia, trama que criar laos nos quais as crianas se sustentaro. Seguindo alguns fios dessa urdidura, atravs do que me contavam as mulheres pesquisadas, objetivei traar o contorno das possveis ressonncias, na escola e na sociedade em geral, das vicissitudes de ser mulher e da migrao. Como disse anteriormente, os resultados da pesquisa no sero aqui expostos, mas, certamente, afetaram os captulos tericos que compem o presente livro.

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Captulo 1 De feminino e feminilidade na psicanlise 21

Captulo 1

De feminino e feminilidadena psicanlise

(...) quando um tema altamente controvertido e assim qualquer questo sobre o sexo , no se pode pretender dizer a verdade. Pode-se apenas mostrar como se chegou a qualquer opinio que de fato se tenha. Pode-se apenas dar platia a oportunidade de tirar suas prprias concluses, enquanto observa as limitaes, os preconceitos e as idiossincrasias do orador. (Virginia Woolf, 1985)

O encontro dos sexos, com tudo o que implica, um confronto de dois mundos, (...), o que os torna capazes, em virtude dessa diferena, de criar para alm deles, porque engendram em conjunto um terceiro mundo, de uma extrema complexida-de, (...) ajudando-se um ao outro o mais felizmente que possvel. (Lou Andreas Salom, [19--?])

(...) todos os indivduos humanos, (...), combinam em si caractersticas tanto femininas como masculinas, de modo que a masculinidade e a feminidade puras no passam de construes tericas de contedo incerto. (Sigmund Freud, 1925)

1.1. Mulher, feminino, feminilidade: real, simblico e

imaginrio em psicanlise

Muita coisa importante falta nome. (Guimares Rosa, 1986)

O feminino, na psicanlise, desde Freud a Lacan, encarna essa impossibilidade de tudo dizer, a representao faltosa, a insuficincia do simblico em dar conta

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do real. Como seres falantes, emitimos significantes2 que esto no campo do Outro, tesouro de significantes, vindo da nossa ciso: da natureza, registro da necessidade, passamos ao registro da linguagem, do significante, cindindo-nos como sujeitos desejantes condenados a uma impossvel sutura nessa ciso.

Sutura uma boa palavra para comear este captulo sobre o feminino em psicanlise. Apesar da impossibilidade da sutura, entendendo-a como sentido ou encontro final, estamos sempre cerzindo falhas, juntando pedaos e alinhavando-os juntos, numa tentativa de compreenso mais ampla deste mundo. Tal qual na confeco de uma colcha de retalhos, tratarei de ir costurando as palavras de tericos da psicanlise e de poetas e escritores, juntando-as s minhas, ela-borando e confeccionando uma colcha totalidade provisria , a meu gosto. Como tudo o que fazemos, o resultado final trar minhas marcas. Creio que tudo sempre uma colcha de retalhos, retalhos selecionados, no entanto, a partir de uma viso de mundo, de uma insero prpria. Nesse sentido, afirmo que nada original na medida em que resultado de retalhos de outros. A composio final, no entanto, revela uma singularidade: a minha seleo e interpretao dos retalhos. Ver, a propsito, o filme Colcha de Retalhos, no qual vrias mulheres confeccionam uma colcha, cada qual encarregada de um trecho onde revelam suas histrias-fices.

Escrevendo sobre esse impossvel da linguagem dizer-nos, escreve belamente Soler (1998, p. 397) que como sujeitos da linguagem, somos um vazio em mo-vimento na cadeia significante que ao mesmo tempo nos representa e oculta. O sujeito assombra a casa da linguagem com sua presena e enigma, sem for-ma e impossvel de fixar residncia. Esse sujeito nmade, descrito de maneira potica, parece-me uma das maneiras de tentar definir o feminino no que essa posio subjetiva diz de todos os humanos, no s de mulheres. Vivemos, pela impossibilidade de dizer o real e pela natureza do simblico que raramente cessa de se escrever, numa estrutura de fico, no como mentira, mas como possibilidade nica, no que a fico demarca o impossvel de ser dito, a lacuna, o irrepresentvel, o real, o feminino. Lidar com essa (meia) verdade encontro ao que no podemos faltar apesar de ser sempre faltoso a questo humana por excelncia a que a temtica do feminino, em psicanlise, nos remete.

Como falar, escrever sobre o indizvel? Sabemos ser uma mxima impossvel a que nos propomos, como constata a psicanlise e diz Andr (1987, p. 10) em

2 Segundo Lacan, o signo representa alguma coisa para algum, e o significante, representante da representao, representa o sujeito para um outro significante. Se o significante, para Saussure, a representao psquica do som tal como nossos sentidos o percebem, e o significado, o conceito que a ele corresponde, escrevendo o algoritmo correspondente, significado sobre significante, Lacan o inverte, dando primazia ao significante, ao considerar as metforas e as metonmias em ao na linguagem e a partir de sua experincia clnica com a psicose na qual o signo lingstico alterado por uma invaso do significante. O significante, cuja materialidade anterior ao sentido que lhe atribudo pelo sujeito, no tem uma relao biunvoca com o significado, assim como no h entre palavra e coisa. (Kaufmann, 1996; Viviani,1994).

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Captulo 1 De feminino e feminilidade na psicanlise 23

nome dela: aquilo de que no se pode falar, preciso diz-lo. Mannoni (1999, p. 90) ajuda-nos nessa tarefa, ao afirmar que s se pode interrogar o feminino desde o lugar de um no-saber. Que nos resta fazer se A fria de compreender uma das desgraas de nossa natureza, como dizia o genial cineasta espanhol Buuel? no sabendo que vou escrevendo, na esperana de achar sem pro-curar, como diz Picasso, acontecer com os achados na arte.

Acho importante esclarecer logo, o que espero que o captulo faa melhor, a distino entre os conceitos de feminino e feminilidade. Esses termos muitas vezes so usados intercambiavelmente at mesmo na produo psicanaltica, o que no facilita a apreenso do que est em jogo: ao utilizar feminino refiro-me carncia prpria ao ser humano, carncia no simblico, enquanto que feminilidade est referida ao imaginrio, uma das estratgias humanas de dar consistncia ao vazio, tentando sutur-lo atravs do sentido.

A procura de uma compreenso do feminino em psicanlise e das possveis conseqncias dessa posio subjetiva em nada tocam a temtica de feminismo3 apesar do importante papel desse movimento nas mudanas sociais necessrias , at porque algumas vezes as queixas feministas encobrem a participao e a cumplicidade de algumas mulheres naquilo mesmo que denunciam. Assim, por exemplo, quando Virginia Woolf (1985, p. 48) dizia que as mulheres viviam (ainda vivem?) voltadas para a glorificao dos homens, ela denunciava, sem dvida, uma (meia) verdade. Mas, s parte da histria contada quando no questionamos a cumplicidade da mulher nisso, ou que vantagens levam com isso. Suas prprias palavras so reveladoras do que digo: Em todos esses sculos, as mulheres tm servido de espelhos dotados do mgico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural.

Ser um espelho que engrandece um homem um poder; transformar sapos em prncipes um grande, mgico e delicioso poder. Mas... qual o espelho que ela quer de volta, nele, o engrandecido? Onde esse poder se delicia?

Espero que neste captulo fique claro que o feminino um conceito, em psi-canlise, que se refere a uma posio, ou melhor dito, um movimento subjetivo que, contrariamente ao feminismo, tenta se distanciar de querelas flicas. Tal conceito est calcado no de sexualidade no com base ao sexo anatmico, mas

3 Uma anlise muito perspicaz do feminismo a de Robert Kurz. Em artigo na Folha de So Paulo A Mulher continua responsvel pela cozinha e pelos filhos e nunca levada a srio na economia ou na poltica. O Eterno Sexo Frgil , Kurz afirma que o movimento, at hoje, no foi alm da participao no sistema produtor de mercadorias e que a depreciao da mulher na modernidade radica nas prprias relaes modernas e no em resqucios de pocas anteriores, quando, na verdade, no havia uma diviso estrita entre produo de bens e gesto domstica. Segundo ele a modernizao no atenuou o patriarcado, mas o acentuou, a economia capitalista tendo cindido radicalmente homens e mulheres como seres de planetas diferentes. Ele prope que para superar o patriarcado, o feminismo deveria questionar radicalmente todo o modo de produo moderno, no se limitando a reivindicar direitos iguais o que fortalece a ciso mundo domstico e mundo do trabalho. O capitalismo trata, inclusive, de manipular e regular sensaes e sentimentos, tentando deles tirar dinheiro: haja vista a famosa onda de inteligncia emocional e seu manejo empresarial.

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determinado pelo desejo inconsciente, por sua vez determinado pela lingua-gem, pelos efeitos dos significantes que marcam o corpo biolgico tornando-o corpo ergeno, por isso o lugar feminino pode ser ocupado por homens ou mulheres.

O que me pergunto sobre a possibilidade de uma insero outra no mundo, ou, melhor perguntado por um poeta: Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude? (Barros, 1997, p. 97). Essa insero outra, chamada fe-minina, abriria possibilidades de se viver mais criativamente criao entendida como fazer algo do nada , abrindo perspectivas novas inclusive na educao.

Dada a importncia de que fique clara a distino entre os trs registros psquicos, Real, Simblico e Imaginrio, para a compreenso do tema, prossigo falando um pouco mais deles, antes de entrar especificamente no feminino e na feminilidade.

1.2. Mais real, simblico e imaginrio

O olho v, a lembrana rev, e a imaginao transv. preciso transver o mundo. (Manoel de Barros, 1996)

Real, imaginrio e simblico so registros atravs dos quais Lacan tenta dar conta do psiquismo, construindo esses conceitos ao longo de sua obra. Seu entrelaamento se faz num n, borromeano conceito da Topologia, ramo da matemtica, utilizado por Lacan , que tem a caracterstica de que, se lhe retirado um de seus trs elementos, os outros dois j no se mantm ligados. Essa amarrao importante que seja compreendida para que se entenda que, mesmo quando se fala de um determinado registro em particular, como humanos estamos sempre referenciados tambm aos outros dois restantes.

Simblico refere-se linguagem, cadeia significante, o grande Outro lugar onde as palavras tm sentido, onde se organizam, lugar de todas as significaes , escrito com O maisculo para diferenci-lo do pequeno outro, o semelhante. necessrio entender que, para a psicanlise, a linguagem,

longe de ser um instrumento de expresso, um operador que introduz a presena de uma falta no que podemos chamar de o real, se assim chamamos ao fora do simblico. O efeito de linguagem para todo ser falante o efeito de perda do que agora chamamos de gozo. Freud o evocou com a noo paradoxal de um objeto primordialmente perdido desde sempre, perdido ainda que nunca possudo, o que significa dizer que em cada vida humana, desde o incio, j existe uma perda presen-te. A contribuio de Lacan neste ponto consiste em identificar a linguagem como a causa primordial da dita perda (Soler, 1998, p. 467)

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Captulo 1 De feminino e feminilidade na psicanlise 25

O sujeito da psicanlise o sujeito do inconsciente estruturado como uma linguagem , constitudo no simblico, enquanto o ego, sede do engano, se constitui na relao imaginria com o outro, o semelhante. atravs dos senti-dos dados pelo imaginrio e pelo simblico que tentamos dar conta do real, o que est fora do sentido. A propsito do real, Lacan (1980, p. 165-166) diz que no h possibilidade de alcan-lo pela representao, pois o real (...) o que no caminha (...), mais ainda, o que no cessa de repetir-se para dificultar esta caminhada (...) o real o que sempre volta ao mesmo lugar.

Para Lacan, a emergncia do sentido se realiza na nomeao, mas ser o imaginrio que dar consistncia e antecipar o que ser retomado pelos pro-cessos significantes. No h ser nem essncia do ser, insiste Lacan em 1974/75, h consistncia e esta mantida pelo imaginrio, pois ele rene por um instante tudo o que ausncia de tempo, momentaneamente suspenso pelo simblico (Kaufmann, 1996, p. 463-464).

Se no princpio da elaborao terica de Lacan, como em Freud, o sentido estava particularmente ligado ao simblico, a partir de um certo momento o sentido entendido como um mais alm de significao, esta sim ligada exclusi-vamente ao registro da linguagem , vai sendo dado pelo imaginrio, implicando a relao com o corpo:

(...) a consistncia, diria eu, da ordem Imaginria. O que se demonstra, longamente, em toda a histria humana, e que nos deve inspirar uma singular prudncia, que muita da consistncia, toda a consistncia que j deu suas provas, pura imaginao. Fao voltar aqui ao Imaginrio o seu peso de sentido. A consistncia, para o falesser, para o ser falante, o que se fabrica e que se inventa. (Lacan, 1975, p. 30)

Para Lacan, idias so imagens, e a linguagem, o simblico, est a para testemunh-lo: (...) ningum duvida que as idias sejam imagens (...); o que maravilhoso que a linguagem est sempre a como testemunha (1975a, p. 62). O pensamento consiste, para ele, (...) em que h palavras que introduzem no corpo certas representaes imbecis, e a est, a tm a chave do assunto, aqui tm o imaginrio (...). Que o sentido se aloje nele nos d, ao mesmo tempo, os outros dois como sentido. (1980, p.163)

O imaginrio seria, assim, o sentido, mediador entre o real a vida, o fora do sentido e o simblico o sem sentido, simblico, significante, morte da coisa. importante que se entenda o registro imaginrio da feminilidade, para diferenci-lo do real e do simblico.

O percurso do imaginrio em Lacan comea pela definio do estdio (deve-se entender este termo como momento de viragem, e no etapa de maturao psicobiolgica) do espelho que estruturar, simultaneamente, o real, o simblico e o imaginrio. A palavra espelho utilizada por ele como uma metfora, no se referindo somente ao objeto de superfcie lisa onde nos refletimos, mas a

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