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MARCELO SERAV ALI MORESCHI A inclusão de "barroco" no Brasil: o caso dos catálogos (dissertação de mestrado) IELIUNICAMP CAMPINAS 2004

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MARCELO SERA V ALI MORESCHI

A inclusão de "barroco" no Brasil:

o caso dos catálogos

(dissertação de mestrado)

IELIUNICAMP

CAMPINAS

2004

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA IEL - UN1CAMP

M816i Moreschi, Marcelo Seravali.

A inclusão de "barroco" no Brasil : o caso dos catálogos I Marcelo Seravali Moreschi.- Campinas, SP: [s.n.], 2004.

Orientador : Prof. Dr. Antonio Alcir Bemárdez Pécora. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Barroco. 2. Arte - Exposições - Catálogos. 3. Museologia. 4. Literatura - História e crítica- Teoria, etc. 5. Nacionalismo. I. Pécora, Antonio Alcir Bemardez. ll. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. lli. Título.

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MARCELO SERA V ALI MORESCHI

A inclusão de "barroco" no Brasil:

o caso dos catálogos

Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Teoria e História Literária. Área de concentração: Teoria Literária

Orientador: Prof. Dr. Antonio Alcir Bemardez Pécora Banca Examinadora: João Adolfo Hansen (FFLCH/USP) Lygia Arcuri Eluf (IA!Unicamp)

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Resumo

O propósito desta dissertação é o de estudar o emprego de uma determinada palavra em um

dado conjunto de textos. A palavra é "barroco", e o conjunto de textos é constituído pelos

catálogos das exposições de arte organizadas durante as comemorações dos 500 anos do

Brasil. Propõe-se a discussão de como se produz nacionalidade por meio do termo

"barroco" e de como se configura um objeto museológico num gênero específico de escrita:

o catálogo de exposição.

Abstract

This dissertation exammes how the specific word "baroque" is used throughout the

catalogues that accompanied the artwork exhibitions organized during the celebrations of

the Five-Hundredth Anniversary ofthe "discovery" ofBrazil. We attempt to show not only

how a specific writing genre, the exhibition catalogue, configures a museological object,

but also how certain uses of the term "baroque" can produce a nationality defmition

as well.

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Para Caro!

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Agradeço à Fapesp, à CAPES, a Solange Lepreri, in memoriam, e a todos aqueles que

bravamente me toleraram durante a escrita deste trabalho.

!X

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Both museums and mysteries (mystery noveis]

teach us how to solve things; how to think; and

how to put two and two together.

Donald Preziosi

( ... ] y sobre todo, los has hecho senõres de

aquella verdadeira cucafía donde los ríos son de

mie!, los pefíascos de azúcar, los terrones de

bizcochos: y con tantos y tan saborosos dulces,

dizen que es el Brasil un paraíso confitado.

Gracián, E! Criticón

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Sumário

Introdução .••..•••••....•...........••••••.•........•••...•..........•.•...•.......•...••••........••••.••••••.......•..••.•••••.•••••....•.•.•...•....••...... I

Parte I

CONDIÇÕES DE USO

1. A significação brasileira de "barroco" ................................................................................................ 9

1.1 "Interesse visual'' e "modos de ver" ............................................................................................... 9

1.2 A sobreposição consensual do "interesse visual" e dos "modos de ver" propostos

para "barroco" ............................................................................................................................... 12

1.3 Antonio Candido e a dupla impossibilidade de "barroco" ............................................................ 17

1.3.1 A impossibilidade da atribuição de valor .............................................................................................. 19

1.3.2 A impossibilidade de atribuição de função ............................................................................................ 22

1.4 Afrânio Coutinho e a primeira resposta à Forroação .................................................................... 24

1.5 Haroldo de Campos e a segunda resposta à Forroação ................................................................. 30

1.6 Desdobramentos possíveis da polêmica ........................................................................................ 36

1.7 A circularidade ostensiva da especificação de "barroco" como prova fmal do "início pronto" ... 41

1.8 .A "significação brasileira de 'barroco"' nas exposições: a combinação da circularidade ostensiva

com a metàfora forroativa ............................................................................................................. 44

2 Os catálogos e a ressonância de "barroco" ~u ....................... H ..................... u .... u .. ooooooouooouu ......... uooooooou ........ 51

2.1 A ressonância de "barroco" .......................................................................................................... 51

2.2 Apropriação museológica da ressonância e atendimento da tripla exigência museológica .......... 53

2.2.1 Exigência pedagógica ................................................................................................................................ 53

2.2.2 Exigência histórica ............................................................................................................................ , ....... 54

2.2.3 Exigência antropológica ............................................................................................................................ 56

2.3 Produção e acomodação da ressonância nos catàlogos ................................................................. 59

2.4 Descrição dos catàlogos ................................................................................................................ 63

2.4.1 Universo Mágico do Barroco Brasi/eiro ............................................................................................... 63

2.4.2

2.4.3

2.4.4

2.5

Brasil Barroco, entre céu e terra ......................................................................................................... 66

Ane Barroca, Mostra do Redescobrimento............ . ..................................................................... 71

Brazil: Body and Soul ...... . ........................................................................................................... 73

Dois movimentos conceituais dos catálogos ................................................................................. 76

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Parte li

Usos ESPECÍFicos

3 Os prefácios: a exibição de "barroco" como evento cívico .............................................................. 81

3.1 Assinatura Ilustre .......................................................................................................................... 82

3.2 Argumentos de circunstância ........................................................................................................ 85

3.2.1 referências ao local e à data ..................................................................................................................... 85

3.2.2 Políticas diplomáticas .............................................................................................................................. 89

3.2.3 políticas institucionais de exibição ........................................................................................................... 90

3.2.4 políticas de difusão da cultura brasileira ................................................................................................... 91

3.3 Argumentos por 'barroco' ............................................................................................................ 92

3.4 Eventos cívicos de especificação global do nacional... ................................................................. 97

4 As introduções: a instrumentalização da leitura de "barroco" .................................................... 101

4 .I A instrumentalização da leitura das exposições .......................................................................... 10 I

4.1.1 Definições de "barroco" .......................................................................................................................... 102

4.1.2 Narrativas contextuais ............................................................................................................................. ! 05

4.1.3 Significação brasileira de "barroco" ........................................................................................................ ! 07

4.1.4 "Aleijadinho" como categoria de síntese, organização e hierarquização ................................................. 111

4.2 A particularização das exposições .............................................................................................. 112

4.2 .1 Universo Mágico do Barroco Brasileiro: a dupla especificação de um âmbito .................................. 114

4.2.2 Brasil Ba"oco, entre céu e terra: o transbordamento de qualquer âmbito específico ........................ 116

4.2.3 Arte Barroca, Mostra do Redescobrimento: a (re)descoberta de "barroco" ........................................ 118

4.2.4 Brazil: Body & Sou!: "barroco" como um dos fundamentos da perfonnática e antropofágica cultura

visual brasileira .................................................................................................................................................... 119

5 Os estudos: o museu do museu de "barroco" ••.•••.••••.••...•.•.•••••..••••••••••.•..•••••••.•..•..•.•••••.•••••••••••.•.••• 123

5.1 Classificação dos estudos quando à focalização dos textos ........................................................ 125

5 .!.I Estudos introdutórios ............................................................................................................................... 125

5 .1.2 Estudos Panorámicos ............................................................................................................................... 126

5.1.3 Estudos focalizados ................................................................................................................................. 127

5.2 Classificação dos estudos quanto à especialização discursiva .................................................... 129

5.3 Classificação dos textos quanto ao uso de "barroco" ................................................................. 130

5.4 Repertórios .................................................................................................................................. 132

5.4.1 A significação brasileira de "barroco" ..................................................................................................... 132

5.4.2 Narrativas acessórias e subsidiárias ......................................................................................................... l33

5.4.3 Estudos técnicos de "barroco" ................................................................................................................. 134

5.4.4 Fundamentação técnica da significação brasileira de "barroco" .............................................................. 135

5.4.5 Repertórios particulares ........................................................................................................................... l36

CONCLUSÃO ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 139

APÊNDICES ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••.•••••••••• 145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 219

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Introdução

Este trabalho pretende analisar o uso de uma palavra particular em um dado

conjunto de textos. A palavra é "barroco", termo utilizado, hoje, em sentidos diversos e

para inúmeras finalidades: um "estado de consciência que goza da liberdade de criação

proteiforme"1; "difusão semãntica" regida por determinadas regras semiológicas2

;

"primeira modernidade"3; uma "vontade de forma"4

; "ordem do imaginário frente à ordem

da razão"5; primeira formulação, ainda que inconsciente, da "obra aberta"6

; "ludicidade"7;

precursor do kitsch8, do pensamento ecológico, e análogo à agonia do homem globalizado9

.

Poder-se-ia sentir características "barrocas" e "barroquismos" na imagem da TV e do

cinema mudo10; nos filmes de Ridley Scott, de Almodovar e de Greenaway11

; em textos

muitos díspares12 e em letras de compositores de música popular13. Às vezes esses usos se

1 c f. Gennain Bazin, "Barroco - Um Estado de Consciência" in Barroco - Teoria e Análise, org. Afonso Á vila, São Paulo, Perspectiva, 1997. 2 c f. Severo Sarduy , "Por urna Ética do Desperdício" in Escrito sobre um Corpo, São Paulo, Perspectiva, 1979 3 cf. Bolívar Echeverría, "La Compafiia de Jesús y la primeira modernidade de América Latina" in Barrocos y Modernos - Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, org. Petra Schurnrn, Franfurt am Main, Vervuert V erlag; Madrid, Iberoamericana, 1998 4 cf. Idem, ibidem 5 cf. Florian Nelle, "Irnágenes maravillosas: el barroco y el cine mudo" in Barrocos y Modernos­Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, op. cit. 6 cf. Umberto Eco citado por Afonso Á vila em seu O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco I, São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 26 7 c f. Afonso Á vila, op. cit. 8 c f. Li dia Santos, "Kitsch y cultura de massas en la poética de la narrativa neobarroca" in Barrocos y Modernos - Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, op. cit. 9 cf. Lúcia Helena Costingan, "Barroco e pós-modernismo: A preocupação pelo meio ambiente nos escritos de letrados do Brasil colonial" in Barrocos y Modernos- Nuevos Caminos en la investigación dei Barroco iberoamericano, op. cit. 10 cf. Florian Nelle, op. cit. 11 cf. Serge Grunzinski, "Do Barroco ao Neobarroco: Fontes Coloniais dos Tempos Pós-modernos" in Literatura e História na América Latina, orgs. Ligia Chiappini e Flávio Wolf de Aguiar, São Paulo, Edusp, 1993 12 Karl Erik Schollharnrner os identifica no romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar ( cf. "O Cenário do Ambíguo: Traços Barrocos da Prosa Moderna" in Sociedade e Estado, vol. VIII); Haroldo de Campos, por sua vez, os vislumbra em Lícofron, Li Shang-Yin, Góngora, Mallarmé, Sousândrade, Lezarna Lima e Décio Pignatari (c f. "Uma Arquitextura do Barroco" in A Operação do texto, São Paulo, Perspectiva, 1976); Severo Sarduy em Guimarães Rosa, Alejo Carpentier, Pablo Neruda, Cabrera Infante, García Marques e em Haroldo de Campos ( cf. "Por urna ética do desperdício", op. cit.); e Augusto Tarnayo Vargas em Euclides da Cunha (cf. "Interpretações da América Latina" in América Latina em sua Literatura, org. César Fernandes Moreno, São Paulo, Perspectiva, 1979)

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sobrepõem e se contradizem: práticas inscritas sob "barroco" podem ora ser um discurso

metropolitano carregado de ideologia colonialista, ora significar um conceito unificador da

identidade latino-americana 14• Além desses usos diversos, artistas contemporâneos se

intitulam "(neo)barrocos", e um passado "barroco", por vezes, é proposto como análogo

direto do presente 15.

Ao mesmo tempo em que se vê um grande interesse em torno do termo e em que se

observa crescentes especulações teóricas, criticas e historiográficas decorrentes dele, nota­

se também que, muitas vezes, "barroco" é recusado como etiqueta apropriada a objetos do

século XVII ou XVIIl, como se a discussão em torno de "barroco" já não mais dissesse

respeito a apropriações ou a investigações criticas relativas aos objetos históricos ditos

"barrocos". Petra Schumm, por exemplo, se pergunta "si el concepto 'barroco' en e! sentido

de Ias teorias del siglo XX es realmente imprescindible para Ia investigación de Ia literatura

y cultura dei siglo XVII"16. João Adolfo Hansen é mais enfático: sobre práticas

seiscentistas, diz ele, "trata-se sempre de proporção, de decoro, de emulação, de agudeza,

de engenho - nunca de 'barroco', que não há. Só existe 'O Barroco', hoje, como uma

essência, uma hipóstase, uma síntese imaginária, um anacronismo- nada"17•

Registra-se, portanto, de um lado, um crescente e contínuo interesse por "barroco"

e, de outro, uma desconfiança relativa à pertinência da aplicação histórica de tal palavra.

13 cf. Charles A. Perrone, "De Gregório de Matos a Caetano Velloso e 'Outras Palavras': barroquismo na música popular brasileira contemporânea" in Barroco - Teoria e Análise, op. cit. 14 Sobre a primeira postulação, cf. John Berveley, "Nuevas vacilaciones sobre e! barroco" in Revista de Critica Literaria Latinoamericana, num. 28. Sobre a segunda, a seguinte frase pode ser tomada como exemplo: "América, continente de simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes, fue barroca desde siempre", Alejo Carpentier citado por Walter Mozer, "Du baroque européen et colonial au baroque américain et post-colonial" in Barrocos y Modernos- Nuevos Caminos en la investigación de/ Barroco iberoamericano, op. cit., p. 80 15 Afonso Á vila, por exemplo, afirma que" ... a atração exercida pelo barroco sobre a inteligência e a sensibilidade modernas decorre, sem dúvida, das similitudes e afinidades que aproximam duas épocas cronologicamente distanciadas entre si, dois instantes porém da civilização ocidental que colocam em crise os mesmos valores, dois homens que experimentam com isso uma análoga perplexidade existencial, duas artes que repercutem em sua linguagem uma bem parecida pressão de historicidade e uma idêntica instabilidade de formas." (O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco I, op. cit. p. 13). Ornar Ca!abrese, na mesma direção: "Mas existirá, e qual será ele, o gosto predominante deste nosso tempo, aparentemente tão confuso, fragmentado, indecifrável? Creio tê-lo encontrado, e também proponho para ele um nome, o do neobarroco." A Idade Neobarroca, Lisboa, Ed. 70, 1987,p. 10 16 Petra Schurnm, "Nuevas Tendencias de la investigación sobre el barroco brasilefio" in Revista de Critica Literaria Latinoamericana, num. 40, p. 55. 17 João Adolfo Hansen, "Pós-moderno e Barroco", Cadernos de Mestrado- Literatura, num 8.

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No entanto, esse quadro de indefinição acerca da validade de "barroco", ao invés de

inviabilizar possíveis análises a respeito de como se usa tal palavra, pode contribuir para a

tipificação e para o mapeamento dos usos diversos de "barroco".

Certamente, como demonstram novos modelos de interpretação histórica das letras

seiscentistas18, o uso de "barroco" produz anacronismos19

. No entanto, se não mais

avaliarmos a precisão histórica de "barroco", urna vez que provavelmente não haja mesmo

tal precisão quando a palavra é empregada, podemos tentar perceber como o uso do termo

visa constituir, segundo fins e interesses diversos, um tempo passado, seja ou não amparado

em provas históricas. Na medida em que a constituição de um passado "barroco" é

focalizada em detrimento da avaliação da precisão histórica desse passado, os interesses

heurísticos, pragmáticos, programáticos ou mesmo políticos que animam os diversos usos

de "barroco" podem ser explicitados analogamente à demonstração de como se constitui

alteridade histórica por meio de "barroco". Propomos operar, portanto, um duplo

deslocamento de "barroco", desnaturalizando os usos do termo tanto em nivel histórico

quanto em nivel heurístico. Acredita-se aqui que algo a respeito dos modos de apropriação

do passado e de proposição de identidades histórico-geográfico-culturais diversas em

contextos específicos pode ser sugerido pela explicitação do funcionamento dos usos de

"barroco".

O conjunto específico de textos considerado para a análise do uso de tal palavra é

constituído por aqueles que fazem parte dos catálogos das exposições de arte recentemente

organizadas em virtude da celebração, nacional e internacional, dos 500 anos do Brasil.

Num prazo de aproximadamente quatro anos, quatro grandes exposições foram propostas

em função de tal comemoração. Todas elas deram particular atenção ao que se

convencionou chamar de "barroco brasileiro", seja dedicando-se integralmente à exibição

de tal "barroco" - como fizeram as exposições O Universo Mágico do Barroco Brasileiro,

ocorrida em 1998 no Centro Cultural FIESP, e Brasil Barroco, Entre Céu e Terra,

apresentada no Petit Palais, em Paris, durante os meses de novembro de 1999 e fevereiro de

18 Cf. , por exemplo, a respeito dos sermões do Padre Vieira, Alcir Pécora, Teatro do Sacramento, SP, Edusp, Campinas, Ed. da Unicamp, 1994; a respeito da sátira atribuída a Gregório de Matos, João Adolfo Hansen, A Sátira e o Engenho, SP, Cia das Letras, 1989. 19 A respeito, especificamente, do anacronismo produzido pelos diversos usos do termo "barroco", cf. os artigos de João Adolfo Hansen, "Pós-moderno e Barroco", op cit., e "Barroco, neobarroco e outras ruínas" in Teresa, Revista de Literatura, num. 2, SP, ed. 34/Edusp, 2001.

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2000 - seja identificando nesse ''barroco" um marco importante dentro de um panorama

geral da arte produzida no Brasil - como é o caso da Mostra do Redescobrimento, que

ocupou três prédios do Parque do Ibirapuera em 2000, e de Brazil: Body & Sou!, exposição

sediada no Museu Guggenheim de Nova Iorque entre outubro de 2001 e janeiro de 2002.

Acompanhando essas quatro exposições, quatro grandes catálogos foram publicados. Além

da reprodução fotográfica das obras expostas, essas publicações trazem um grande número

de textos: prefácios, introduções e estudos a respeito das obras, dos periodos, dos artistas e

das regiões de produção. São esses textos que constituem o corpus de análise do presente

trabalho.

A escolha da análise do uso de tal palavra nesse conjunto de textos implicou

determinadas opções metodológicas que explicitaremos agora. Apesar de uma análise

cenográfica ou visual das exposições referidas ser possivelmente interessante, este estudo

ocupa-se apenas da análise dos textos dos catálogos da exposições referidas. Por isso, dois

movimentos de análise foram produzidos.

Na primeira parte da dissertação, procuramos delimitar condições gerais do uso de

tal palavra nesse dado conjunto de textos. Em primeiro lugar, levando em conta que tais

catálogos fazem parte de eventos de celebração nacional, buscamos, primeiramente, refletir

a respeito dos procedimentos argumentativos empregados na proposição do valor nacional

atribuído aos objetos rubricados por "barroco". O que se tentou delimitar nesse primeiro

momento, que corresponde ao primeiro capítulo do trabalho, é o que chamamos de

"significação brasileira de 'barroco"', isto é, a aplicação retroativa do significado nacional a

objetos coloniais tomados como ''barrocos".

Ainda nesse primeiro movimento analítico, uma segunda condição de uso foi levada

em consideração. Assumimos aqui que os textos que fazem parte dos catálogos de

exposição não apenas registram, de modo neutro, usos de ''barroco". Ao contrário, tais usos

diriam respeito ao propósito dessas publicações, isto é, a complementação discursiva das

exposições. O termo "barroco" é empregado, portanto, em conjuntos de textos que

cumprem alguma função na especificação de objetos museológicos propostos como

"barrocos". As exigências de verossimilhança dessa especificação, bem como o modo de

organização e funcionamento dos catálogos, o que certamente condiciona o uso de

"barroco", são assuntos do segundo capítulo do presente trabalho.

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Na segunda parte da dissertação, esboçamos um segundo movimento analítico. Uma

vez delimitadas condições gerais do emprego do termo em questão, procuramos analisar

usos específicos de "barroco" em cada um dos três tipos de texto -prefácios, introduções e

estudos - encontrados nos catálogos. Essa análise, além de focalizar o modo pelo qual tal

palavra é empregada, investiga também o propósito de cada um desses três tipos de texto.

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Parte I

CONDIÇÕES DE Uso

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1. A significação brasileira de "barroco"

O objetivo da mostra é apresentar um amplo panorama da arte barroca brasileira, uma das expressões mais marcantes da fonnação da nacionalidade. Carlos Eduardo Moreira Ferreira, ex-presidente da FIESP

Nunca é demais recordar que o barroco antecipou no plano artístico a maioridade do Brasil. Fez ver que a nação híbrida que se gestava nos trópicos já era suficientemente madura para produzir soluções autóctones [ ... ].0 barroco foi nosso primeiro ensaio de assimilação cultural. Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil

Universal e ao mesmo tempo profundamente marcado pelos traços mestiços que caracterizam a arte latino­americana em geral e a brasileira em particular, o Barroco brasileiro foi a primeira grande manifestação estética do Brasil, sua primeira expressão orgânica de uma identidade que culminaria muito mais tarde na independência e na construção da nacionalidade brasileira. Luiz Felipe Lampreia, ex-ministro brasileiro das Relações Exteriores

Baroque art represents the deepest roots of Brazil's national artistic identity. Rubens Antonio Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos EUA

Hoje, as igrejas traçadas pelo Aleijadinho já começam a ser identificadas, no Brasil e no exterior, como símbolos do país, ao lado da floresta tropical, do samba e do futebol.

1.1 "Interesse visual" e "modos de ver"

Francisco Weffort, ex-ministro brasileiro da Cultura

[trechos dos textos de autoridades que abrem os catálogos]

Svetlana Alpers inicia seu artigo "The Museum as a W ay o f Seeing" relatando uma

de suas memórias mais claras das visitas a museus durante sua inf'ancia: um caranguejo:

It was a giant crab, to be precise, which was in a glass case, a quite hard-to-find case, in the Peabody Museum (actually, in the Museurn of Comparative Zoology) in Cambridge. As I remember, it was the scale that was so astonishing. I had never seen a crab that size and had therefore not imagined that was possible. It was not only the size o f the whole but each o f its individual parts. One could see the way it was made:

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huge claws, bulging eyes, feelers, raised bumps of shell, knobbly joints, hairs that extended out around them. It was placed at the comer o f a case so that one could walk around from the front to the size and take it in from another view: a smalish main body delicatelly supported on improbably long legs, like the tines of some huge fork or rake.20

A partir de considerações sobre a maneira pela qual aquele caranguejo foi exposto,

Alpers sistematiza dinâmicas próprias do museu relativamente às formas pelas quais

organiza ou realiza visualmente os objetos que expõe. Basicamente, argumenta que o efeito

geral do museu é estabelecer, através da seleção, da organização, do reforço, do isolamento

e de recursos cênicos, uma "maneira de ver":

I could attend to a crab in this way because it was still, exposed to view, dead. Its habitat and habits o f rest, eating, and moving were absent. I had no idea how it had been caught. I am describing looking at it as an artifact and in that sense like a work of art. The museum had transformed the crab - had heightened, by isolation, these aspects, had encouraged one to look at it in this way. The museum had made it an object ofvisual interest21

O museu agiria, nessa perspectiva, no agenciamento de formas de exposição

capazes de efetuar "interesse visual". No entanto, ao mesmo tempo, os objetos a serem

expostos, a priori, devem ser "museum-viables", ou seja, devem ser passíveis de realizar o

"interesse visual" referido.

Essas premissas são amplificadas para compreender discussões a respeito da

adequação de formas de organização de exposições e de museus. Alpers avalia, por

exemplo, a pertinência e a adequação de exposições organizadas cronologicamente, de

exposições mono gráficas (a respeito de um artista, estilo, gênero ou período específicos) e

de exposições pensadas a partir de comemorações históricas. A adequação dessas

possibilidades é avaliada em vírtude da coincidência presumida entre as categorias de

organização e as categorias supostamente presentes na produção dos objetos, ou tomadas

como válidas na interpretação dessa produção. A avaliação dessa adequação, por sua vez,

se estabelece, fundamentalmente, pelo princípio da otimização do efeito geral do museu, ou

seja, a configuração de uma "maneira de ver" específica, criada a partir de um "interesse

visual", tanto inerente aos objetos quanto inventada pelo espaço museológico: se é esse o

20 Svetlana Alpers, "The Museum as a Way ofSeeing", p. 25, in Ivan Karp e Stevn D. Lavine (orgs.), Exihibiting Cultures: lhe Poetics and Politics of Museum Display, Smithsonian Institution Press, Washington and London, 1991. 21 idem, ibidem.

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efeito criado pelo museus, que se crie, argumenta Alpers, "maneiras de ver" de modo mais

"fiel" quanto possível relativamente aos objetos expostos.

No entanto, interessada em distinguir "fidelidades" a respeito da forma de

gerenciamento visual, cênico e conceitual de objetos no espaço museológico, Alpers deixa

de lado questões que, derivadas das categorias que usa, poderiam ser bastante úteis para o

presente trabalho: quais seriam os mecanismos de apropriação, de leitura e de

reconhecimento estético e visual que agiriam na sedimentação de valores nos objetos, o que

ressaltaria ou mesmo criaria seu "interesse visual", ou seja, o que tornaria determinados

objetos "museum-viables"? Como operam as categorias que presidem a apresentação visual

desses objetos e como estabelecem uma "maneira de ver" específica, agregando e

atribuindo sentidos a eles?

Para formular hipóteses possíveis para responder a essas questões, continuaremos

usando o exemplo do caranguejo da memória de Alpers. O efeito visual da exposição do

animal é, em certa medida, criado pela própria forma através da qual o bicho foi exposto:

paralisado e isolado em um recipiente transparente e passível assim de ser visto de forma

panóptica. Na medida, então, que é suprimido o contexto típico do caranguejo, novas

"maneiras de ver" são sugeridas: o animal pode ser visto de todos os ângulos e cada detalhe

de seu corpo pode ser observado. Poderíamos, portanto, aduzir que o "interesse visual"

criado se estabelece quando o animal, exposto em um lugar onde se exercita o olhar, é

apresentado de modo a permitir uma contemplação visual interessada e interessante, típica

do lugar onde foi exposto, o museu.

Entretanto, como bem afirma Alpers, o objeto, a princípio, deve ter características

próprias passíveis do estabelecimento de um "interesse visual", ou seja, deve ser "museum­

viable". Assim, resta uma pergunta: o que há de "interesse visual" em um prosaico

caranguejo? A pergunta poderia ser respondida em termos visuais, referindo o aspecto

monstruoso de um caranguejo bem examinado ou visto de perto, um bicho cheio de patas

segmentadas e duas pinças frontais um pouco ameaçadoras. Porém, a despeito de sua

bizarrice, um caranguejo, por si só, no seu habitat natural, pouco pode fazer para otimizar e

realizar as exigências visuais que um museu pressupõe. No entanto, pode ser transformado

em objeto de "interesse visual" porque, quando visto da forma descrita, seu aspecto bizarro

pode servir de prova para uma tópica comum a museus de história natural, documentários

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da TV a cabo, agências de turismo e revistas de fotografia: a complexidade, a estranheza e a

beleza de um "mundo natural".

Essa é uma aplicação de uma das hipóteses de Sharon Macdonald a respeito do

museu, lugar onde se negocia, segundo ela, nexos entre conhecimento leigo e

especializado22. O caranguejo assim seria "museum-viable" à medida que pode corroborar

tal negociação. Apresentado à maneira científica (classificado por uma taxonomia e isolado

em uma caixa transparente que permite que se veja, como prova visual, as características

típicas que o vinculam a um grupo específico de animais, por exemplo), o bicho comprova,

quase cientificamente, a tese genérica que gerencia sua própria exposição. Assim, a partir

do exemplo do caranguejo de Alpers, poderíamos elaborar a hipótese de que determinados

objetos podem se tornar "museum-viables", podem gerar um "efeito visual", quando são

interessantes na comprovação visual de teses genéricas e assentadas e na referência a

repertórios discursivos consensuais.

Dessa forma, é possível pensar na configuração discursiva do "interesse visual" de

objetos museológícos. Pensando assim, o caranguejo aparece interessante porque, ao

mesmo tempo, refere e resume dois conjuntos discursivos: a sua beleza estranha retoma, de

maneira espetacular, a exuberãncia da natureza enquanto lugar comum; sua caixa

transparente e a possibilidade de visão panóptica, objetiva, remetem às tópicas científicas e

aos discursos acerca dos mecanismo de controle e classificação da natureza.

1.2 A sobreposição consensual do "interesse visual" e dos "modos de ver" propostos para '1>arroco"

"Barroco" é a categoria que totaliza os objetos exibidos pelas exposições cujos

catálogos analisaremos. Ainda que, como veremos nos capítulos seguintes, diversos

elementos são propostos e exibidos através do termo, "barroco" é o objeto último das

exposiçõei23; é, no limite, o que elas exibem. Aplicando a hipótese apresentada

22 Theorizing Museums: representing identity and diversity in a changing world, Sharon Macdonald e Gordon Fyfe orgs. (Oxford, Cambridge: Blackwell Publishers e The Sociological Review, 1996), p. 4 23 Salientamos, no entanto, que a exposição Brazil: Body and Sou! não se ocupa exclusivamente de "barroco". Porém, "barroco" é conceito fundamental para a exposição. Além disso, a seção "Baroque Brazil'' do catálogo da exposição organiza-se de forma bastante parecida com relação aos

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anteriormente, devemos supor que o "interesse visual" de tal objeto, "barroco", se alicerça

em repertórios discursivos, provavelmente consensuais, a seu respeito.

As epígrafes que abrem esse capítulo são exemplares na referência a lugares comuns

capazes de discursivamente efetuarem o "interesse visual" de "barroco", como objeto

museológico e como produto de consumo cultural. Durante as comemorações dos 500 anos,

tópicas tais como a "relevância das raizes, a "miscigenação racial", a "apropriação crítica"

e o "hibridismo da cultura brasileira" foram constantemente utilizadas, como sintetizam os

prefácios dos catálogos cujos trechos nos serviram de epígrafe.

Juntamente a essas tópicas genéricas que balizaram a comemoração nacional

referida, as epígrafes normalizam e sedimentam ainda dois conjuntos, um pouco indistintos,

de textos acerca de "barroco". O primeiro, pressuposto pelas epígrafes, é aquele que reúne

tópicas que associam o termo "barroco" a um corpus de objetos ou a um período histórico

ou artístico. O segundo, explicitado e não apenas pressuposto, é aquele que interpreta esse

corpus de objetos ou esse período como significativo no entendimento do que seja "Brasil".

A sedimentação simultânea desses dois conjuntos de textos e as referências às tópicas

genéricas comemorativas permitem definir o "interesse visual" de "barroco", uma vez

delimitado e interpretado: assentado em tópicas compartilhadas, passíveis de serem

proferidas por autoridades, "barroco", ou o conjunto de objetos ou o momento histórico por

ele referidos, ganha interesse porque se poderia, segundo as epígrafes, ver nele "uma das

expressões mais marcantes da nacionalidade", um "primeiro ensaio de assimilação

cultural", uma "primeira expressão orgânica de uma identidade" e, enfim, "as raízes mais

profundas da identidade artístico-nacional do Brasil". Trata-se, portanto, de um elemento

que especifica" Brasil", uma especificação eficaz até mesmo como valor turístico, como

assinala Francisco Weffort.

Para continuar usando as categorias de Alpers, o curioso aqui é que os argumentos

que configuram o "interesse visual" de "barroco" coincidem com aqueles que gerenciam

uma "maneira de ver" proposta para ele. Dizendo de outra forma, o que faz com que

"barroco" seja "museum-viable", ou seja, passível de transformar-se em objeto de

investigação visual interessante em um museu, baliza, ao mesmo tempo, o modo como tal

outros catálogos que tratam apenas de "barroco". Da exposição Mostra do Redescobrimento, consideraremos para este trabalho apenas o módulo Arte Barroca e seu catálogo, publicado individualmente.

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objeto é apresentado: é a referência a um tipo particular de nacionalidade - o que garante

que "barroco" seja digno de ser exibido - que gerencia a apresentação de tal objeto como

espetáculo de celebração da nacionalidade.

Paralelamente, é possível perceber um outra coincidência. O consenso referido pelas

epígrafes24 como exterior à própria arquitetura conceitual das exposições (a "significação

brasileira de 'barroco"' tida como dada) é observável somente nas exposições e no conjunto

de textos veiculados por seus catálogos. Evidentemente, não se quer dizer aqui que a

"significação brasileira de 'barroco'" seja invenção das exposições e de seus catálogos.

Como vimos insistindo, a configuração de "barroco" enquanto objeto museológico

subsidia-se em repertórios discursivos e em tópicas compartilhadas, dentre eles, sem

dúvida, tal "brasilidade" - um nexo entre textos especializados a respeito de "barroco" e o

valor cultural de tal termo, para usarmos novamente a hipótese de Macdonald. Mesmo a

organização das exposições, que necessitam de apoio financeiro e institucional, devem,

para garantir esse apoio, fundamentar-se em valores admitidos. O que as exposições criam

em profusão não é propriamente o valor nacional de "barroco", de alguma forma, anterior a

24 Nas epígrafes, a suposição de um consenso anterior é evidente e é reforçada ainda pelo significado dos cargos daqueles que fazem tal suposição. O caso mais explícito é o trecho de Fernando Henrique Cardoso. Como representante máximo do país, o então presidente do Brasil se põe no lugar de gerente de urna memória nacional ao valer-se da expressão "nunca é demais recordar". A expressão estabelece um consenso prévio, que deve ser relembrado, a respeito do caráter antecipador que teria tido "barroco" com relação à "maioridade do Brasil". Deve-se notar ainda que tal gerenciamento da memória nacional é executada pelo presidente da república que também é um intelectual. A carga dupla, representativa ao mesmo tempo do poder estatal e da universidade, corrobora ainda mais a eficácia da referência a um consenso acerca de "barroco". Carlos Eduardo Ferreira, então presidente da FIESP, entidade que representa o empresariado paulista, também supõe um consenso prévio ao propor a explicação apositiva "uma das expressões mais marcantes da formação da nacionalidade", que esclarece a expressão "arte barroca brasileira". Luiz Felipe Lampréia, então ministro das relações exteriores, supõe também o significado consensual de "barroco" à medida que desdobra uma série de afirmações explicativas a respeito do termo. Seu subordinado no corpo diplomático brasileiro, Rubens Antonio Barbosa, embaixador do Brasil nos EUA, além de referir a significação supostamente aceita de "barroco", reforça-a quando explica o termo através de um superlativo ("baroque art represents the deepest roots''). Por fim, Francisco Weffort, na autoridade de ministro da cultura, faz valer seu lugar de representante cultural do Brasil ao estabelecer uma comparação entre elementos supostamente típicos do país ("igrejas traçadas pelo Aleijadinho", "floresta tropical", "samba" e "futebol"). A comparação, que prevê uma equivalência entre o que é comparado, institui que tais elementos têm a mesma eficácia no reconhecimento do Brasil. O que é interessante notar aqui é que todos eles, independentemente das marcas lingüísticas que usam para supor um consenso anterior relativo a "barroco", sendo autoridades representativas, devem, supõe-se, subsidiar seus discursos em argumentos comuns de modo a referir o que é compartilhado por seus representados.

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elas, mas um consenso acerca desse valor, uma organização - museológica, cênica e

conceitual - que otimiza tal consenso. Assim, esse consenso ao mesmo tempo em que é

referido, tal como fazem as epígrafes, é criado, como fazem a seleção e a cenografia dos

objetos expostos e os numerosos textos veiculados pelos catálogos.

A primeira questão que gostariam os de propor, uma vez constatado esse jogo de

referência e de criação de consenso acerca de "barroco", que constitui seu "interesse visual"

e o "modo de ver" proposto para ele, seria relativa a como "barroco" é disponibilizado para

tal jogo: quais seriam os procedimentos argumentativos que possibilitam o consenso do

valor nacional de "barroco"?

Para responder a essa pergunta não seria o caso de tentar revelar algo em "barroco"

ou em "Brasil" que justifique ou inviabilize a associação entre esses dois termos pelos

trechos que usamos como epígrafes. Trata-se apenas de perguntar quais são as estratégias

de argumentação de que se v alem aqueles textos que executam a associação referida. A

identificação dessas estratégias, no limite, visa perceber quais seriam os procedimentos que

possibilitam a eficiência da associação, capaz de levar autoridades, obras artísticas, dinheiro

e multidões para dentro do museu.

Para responder a pergunta proposta, talvez não fosse interessante, recorrer agora às

exposições e a seus catálogos, posto que, nesses lugares, a "significação brasileira de

'barroco"', como vimos, já é dada a priori como consensuaL Talvez fosse o caso de, ao

invés disso e para desautomatizar o jogo de referência e de produção de consenso

supracitado, oferecermos uma história dos usos do termo "barroco" no Brasil, buscando

textos e momentos em que o valor nacional de "barroco" é recusado ou defendido25,

constituindo um alicerce histórico para a proposição da significação específica de "barroco"

de que se valem as exposições e seus catálogos. O que propomos, no entanto, é algo mais

modesto. Com a hipótese de que os procedimentos argumentativos que viabilizam a

associação entre "barroco" e "Brasil" estejam mais salientes e visíveis nos textos que

tratam dessa associação de modo polêmico, defendendo-a mais ostensivamente ao invés de

simplesmente referir um consenso suposto, trataremos da querela acerca da não inclusão de

"barroco" na F armação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido. Para tentar

25 Um histórico desse tipo é proposto por Guilherme Simões Gomes Jr, Palavra Peregrina: Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil (SP, Edusp, 1998)

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identificar procedimentos de proposição retroativa do nacional a serem aplicados nos textos

analisados, vamos contrapor ao texto de Candido duas respostas que ele teve, Conceito de

Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho, e O Seqüestro do Barroco na F armação da

Literatura Brasileira: o caso Gregório de Mattos, de Haroldo de Campos.

O estabelecimento do ponto de partida da discussão do valor uso de "barroco" por

meio da análise desses três textos tem algumas vantagens. A primeira é que, nesses textos,

"barroco", enquanto designação de período ou como valor nacional, está longe de ser

consensual. Como se trata de uma polêmica em que são confrontados concepções de

nacionalidade, de literatura e de história literária, os argumentos em tomo de "barroco"

podem ser interessantes como contraponto ao consenso referido e criado pelos catálogos.

Nunca é demais salientar que a Formação, até hoje, é tomada por muitos como uma espécie

de narrativa oficial do nacionalismo literário e, em certa medida, da subjetividade nacional.

Em tal narrativa, no entanto, "barroco" não participa. O que os polemistas de Candido

tentaram fazer foi propor uma narrativa alternativa em que "barroco" fizesse sentido. Nessa

discussão, portanto, a contundência da defesa de "barroco", quer o que se entenda pelo

termo, é decisiva, ao contrário da simples celebração nacional consensual através de

"barroco" proposta pelas exposições, que já partem do pressuposto de que o termo assinala

aspectos importantes da nacionalidade.

Além disso, há uma outra vantagem, decorrente do estabelecimento polêmico do

valor nacional de "barroco" executada por esses textos. Ainda que o uso de "barroco" pelos

catálogos das exposições não esteja circunscrito ao âmbito da história da literária, é

justamente nesse âmbito, mas não apenas nele, em que se produzem os dois repertórios

discursivos que as epígrafes do início deste capítulo se referem: tanto a definição de

períodos quanto o valor nacional com que tais períodos são preenchidos são decisivos como

exigência de verossimilhança da escrita da história literária. Por fim, ainda há um último

aspecto interessante da análise dessa polêmica como nosso ponto de partida. Os

antagonistas de Candido têm voz nos catálogos: Haroldo de Campos assina um dos estudos

de um dos catálogos, e Affonso Á vila, outro defensor do significado brasileiro de "barroco"

na literatura e nas artes, assina outros e é citado em muitos.

Antes da análise dos três textos referidos, cabe dizer que não se quer estabelecer

aqm uma causalidade entre a polêmica em tomo da aceitação de "barroco" na história

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literária brasileira e as quatro exposições cujos catálogos analisaremos, tampouco se quer

afirmar que a polêmica em tomo do "seqüestro do "barroco", como designa Haroldo de

Campos, seja o subsídio conceitual das exposições. Apelaremos a essa polêmica com o

único propósito de explicitar mecanismos de proposição do valor nacional de "barroco" que

pode ser úteis para a análise de como o termo é usado pelos textos dos catálogos. Em outras

palavras, a polêmica em tomo da não-inclusão de "barroco" na Formação será tomada

apenas como parâmetro comparativo que empregaremos na análise da "significação

brasileira de 'barroco'" da qual se valem as exposições cujos catálogos analisaremos.

1.3 Antonio Candido e a dupla impossibilidade de "barroco"

A análise da não-inclusão de "barroco" na Formação da Literatura Brasileira

pressupõe que se focalize os pressupostos metodológicos e historiográficos desse livro tal

como explicitados em sua introdução. Antonio Candido, no entanto, no prefácio à i edição

da Formação, queixa-se bastante da forma pela qual o livro foi recebido pela critica.

Candido reclama das leituras que supostamente fizeram o que propomos aqui, isto é, a

análise dos pressupostos metodológicos do livro definidos em sua parte introdutória.

Segundo o critico, esse tipo de análise tenderia a considerar a Formação um volume de

teoria literária, o que só seria possível, aínda na sua opinião, se se lesse apenas a sua

introdução, que já traz, logo na primeira página e desde a (edição, uma nota alertando que

a leitura dessa parte introdutória "é dispensável a quem não se interesse por questões de

orientação critica, podendo o livro ser abordado diretamente pelo Capítulo 1"26.

Respondendo a essa tendência de I eitura que o livro teria tido tanto por quem o I ou vou

quanto por quem o censurou, Candido professa que a Formação deve ser lida como um

estudo de obras; "sua validade deve ser encarada", reivindica ele, "em função do que traz

ou deixa de trazer a este respeito"27 e não por um julgamento em si do método que adota,

que serviria, segundo ele, apenas como um enquadramento para esse estudo. Alegando que

seus críticos teriam desconsiderado o propósito de seu livro, o autor da Formação

26 Nota à primeira página da introdução da F armação da Literatura Brasileira, i ed., São Paulo, 1964, (v, p 25 27 "Prefácio à i edição", Formação, op. cit., p. 15

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repreende de forma dura essa tendência de avaliação do volume, referindo-se a ela como

prática sintomática de vícios:

Esse interesse pelo método talvez seja um sintoma de estarmos, no Brasil, preferindo falar sobre a maneira de fazer crítica, ou traçar panoramas esquemáticos, a fazer efetivamente crítica, revolvendo a intimidade das obras e as circunstâncias que as rodeiam28

À revelia de Candido e conscientes do risco de reatualizar a prática viciosa suposta

em seus criticas, insistimos aqui em uma questão que é decorrente do desenho teórico da

Formação e está explicitada em sua introdução: a não inclusão de "barroco" no processo

formativo da literatura brasileira proposto pelo autor. Primeiramente, essa questão obriga

que se relativize o modo, prescrito por Candido, pelo qual seu livro deveria ser lido.

A construção teórica e metodológica da Formação prevê não apenas um

enquadramento para as obras que estuda, como nos diz Candido; ela cria também um lugar

para o qual são conduzidas as obras que não corroboram os pressupostos necessários para

que sejam incluídas nesse enquadramento, lugar esse que chamaremos daqui para frente de

lugar residual. Assim não é o caso de dizer apenas que Candido deixa de tratar de

"barroco" ou das obras e autores associados ao termo. O modelo da Formação prevê

inclusive um significado para o que é julgado não-significativo de modo a garantir que o

que é deixado para trás pela narrativa não cause perturbações em sua coerência.

Em termos gerais, ocupa esse lugar residual referido tudo aquilo que se situa antes

do ano, convencionalmente determinado, de 1750, marco inicial do enredo apresentado na

Formação e de suas múltiplas narrativas delineadas, alinhavadas sob o mote da metáfora

formativa empregada pelo crítico: a da configuração e posterior efetivação do sistema

literário no Brasil, a do processo formativo da literatura brasileira, a da crescente

constituição de uma subjetividade nacional, a da superação dialética das chaves

particularistas e universalistas e, por fim, a do estabelecimento do espírito do Ocidente em

terras nacionais.

Estar contido nesse lugar residual, e, conseqüentemente, não participar dessas

narrativas, gera algumas decorrências. Devemos lembrar que a Formação se pretende um

estudo que define, nas palavras do crítico, ao mesmo tempo o valor e a função das obras.

Considerando esse propósito e as particularidades do desenho teórico desse livro, pode-se

28 idem, ibidem

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dizer que o que ocupa esse lugar residual é, conseqüentemente, como veremos, destituído

de valor e função. Ou, melhor dizendo, são esvaziadas as possibilidades de atribuição de

valor e função para os objetos que ocupam o lugar residual previsto no modelo

metodológico da Formação. Esse é o destino previsto para o excluído "barroco" que as

respostas à Formação tentaram alterar. Vejamos como ele está enunciado no livro de

Candido.

1.3.1 A impossibilidade da atribuição de valor

Os motivos dados por Candido para não incluir "barroco" na Formação são

conhecidos e estão enunciados claramente na introdução de seu livro de 1959. Grosso

modo, para construir a narrativa da subjetividade nacional representada na literatura,

pensada como "aspecto orgânico da civilização", Candido separa o que chama de

"manifestações literárias" de "literatura propriamente dita". Para esta última existir, seria

necessário detectar, como elemento definidor, o célebre triângulo autor-obra-público (que,

na introdução de 59, é definido por "um conjunto de produtores", "um conjunto de

receptores" e "um mecanismo transmissor"), cujos elementos devem estar integrados e

funcionando organicamente, através de um padrão de sociabilidade garantida com relativa

autoconsciência de seus agentes. Essa interação de obras, autores e público, configurando­

se como sistema, seria responsável por garantir continuidade literária, gerando assim uma

tradição.

Esses senam os pré-requisitos que, uma vez identificados, dariam conta de

caracterizar o que Candido chama de "literatura propriamente dita", ou seja, servem como

parâmetros de um corte epistemológico que constitui os objetos válidos para o método.

Dessa f onna, como opção metodológica, não está etiquetado com o rótulo de "literatura

propriamente dita" tudo aquilo em que não se identifica os elementos desse sistema literário

referido; para esses objetos residuais, isto é, fora da abrangência do rótulo "literatura

propriamente dita", Candido dá o nome de "manifestações literárias", ou, como os oferece

no prefácio à i edição, onde já se defende de possíveis criticas relativas a esse corte

epistemológico, "literatura em sentido amplo". Tal corte serve também como recorte

temporal, pois é ajustado no ano, convencionalmente determinado, como já dissemos, de

1750, quando ocorre a fundação das Academias dos Seletos e dos Renascidos e do

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aparecimento das primeiras obras de Cláudio Manoel da Costa, o marco inicial postulado

para a configuração do "sistema literário" no Brasil. Antes disso, portanto, segundo

Candido, há apenas "manifestações literárias" isoladas, sem um integração dos agentes

sociais envolvidos no referido sistema e sem a articulação necessária de seus elementos

constitutivos; há, no máximo, um "esboço" desse sistema. A definição do que seja

"literatura", portanto, depende da corroboração dos pressupostos sociológicos desse

"sistema literário".

Deixando alguma especulação a respeito desse corte para depois, resta dizer agora o

óbvio: ficaram de fora desse sistema literário, dos "momentos decisivos" do processo

formativo da literatura brasileira (e de suas narrativas complementares) e mesmo da

abrangência de "literatura propriamente dita" os objetos letrados coloniais do XVI e XVII,

as quais chamamos hoje de "barrocos".

Esse "seqüestro do barroco", tal como foi denominada, por Haroldo de Campos, a

operação de não inclusão das produções anteriores a 1750 na Formação, guardou e ainda

guarda uma grande capacidade de gerar polêmica, como a própria denominação

provocativa do concretista aponta. Como estamos vendo, não estar previsto no modelo de

Candido, ou melhor, ocupar o lugar residual previsto por ele, já é significativo, e o que

significa tem uma conotação negativa, uma vez que não é possível, dentro do modelo da

Formação, vislumbrar a atribuição de valor literário, em sentido estrito, para as práticas

anteriores a 1750. Mesmo havendo, ao longo do texto da Formação, como aponta

Guilherme Simões Gomes Júnio~9, um tom pouco amigável com relação às práticas

discursivas catalogadas por "barroco", Candido insiste, na introdução, em não destituir de

um possível valor as obras anteriores ao marco inicial do sistema. Entretanto, mesmo que

esse valor exista, ele não se deve a características literárias propriamente ditas, até porque

os objetos que ocupam o lugar residual não se constituem enquanto "literatura propriamente

dita":

29 Guilherme Simões Gomes Jr., na parte dedicada a Antonio Candido do seu Palavra Peregrina­O Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil ( SP: Edusp, 1998), rastreia a forma pela qual o crítico usa o termo "cultismo". Se, de um lado, Candido, para se referir a Claudio Manuel da Costa, declara urna disposição para "rever em sentido favorável o espírito cultista", de outro, essa disposição não se realiza, o que muitas vezes leva a urna rejeição em bloco de estilemas "barrocos" e "cultistas". cf. Palavra Peregrina, pp. 137-146.

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Isto não impede que swjam obras de valor, - seja por força da inspiração individual, seja pela influência de outras literaturas. Mas elas não são representativas de um sistema, significando quando muito o seu esboço30

Assim, algum valor ao que é anterior ao início do sistema só pode ser atribuído, de

forma enviesada, através de critérios não literários, no sentido estrito; pode ser atribuído

pela valorização de uma inspiração criadora individual perdida no tempo e no espaço,

imersa na "imaturidade do meio, que dificulta a formação de grupos, a elaboração de uma

linguagem própria e o interesse pelas obras"31; ou, na falta de um "sistema simbólico, por

meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de

contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade'm, pode ser

atribuído pela valorização da tentativa de importação de um desses sistemas prontos. Em

ambos os casos, porém, não se trata de valor literário, pois não se trata de literatura, esse

"aspecto orgânico da civilização". Isso não significa dizer que o modelo da Formação

implique depreciação pejorativa dos objetos anteriores a 1750; significa apenas dizer que,

nesse modelo, não há sequer categorias disponíveis para a atribuição de valor literário a

esses objetos.

Como dissemos, essa é uma operação polêmica. Primordialmente, porque retira,

mesmo que de forma particular, o estatuto de literatura de medalhões consensuais do

cãnone literário brasileiro já estabelecido na década de 50 - ressalta-se, nesse sentido, os

consagrados e "barrocos" sermões do Pe. Vieira e a talvez não tão consagrada mas

igualmente "barroca" poesia atribuída a Gregório de Matos. Não atentando para o caráter

ostensivo de sua própria operação e novamente queixando-se dos comentadores da

Formação, que insistiam em prestar atenção no que não deviam, Candido tenta, ao mesmo

tempo, desqualificar a crítica e se desvencilhar dessa polêmica no já citado prefácio à

segunda edição:

... desejo repisar o que diz a referida introdução, e parece nem sempre ter sido levado em conta: jamais afirmei a inexistência de literatura no Brasil antes dos periodos estudados. Seria tolice pura e simples, mesmo para um ginasiano. [ ... ] Elas [as "manifestações literárias"] aumentam no século XVII, quando surgem na Bahia escritores de porte ... [grifo nosso] 33

30p - . 26 ormaçao, op. cit., p. 31 idem, p. 26 32 idem, pp. 25-26 33 idem, p. 15-16

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Porém, quanto ao pomo de discórdia, continua irredutível:

No sentido amplo, houve literatura entre nós desde o século XVI; ralas e esparsas manifestações sem ressonância [ ... ] [grifos nossos ]34

Obviamente, não estamos querendo afirmar que Candido disse o que insiste em não dizer. É

claro que não se afirma, em nenhum momento da Formação, que não houve literatura no

Brasil antes do XVIII, mas também é igualmente claro, como já dissemos, que essa

literatura só pode ser caracterizada enquanto tal quando acompanhada do predicado "no

sentido amplo" ou quando denominada pelo seu correlato "manifestação literária". Por estar

nesse lugar residual, essa literatura em sentido amplo só pode ser enquanto esboço daquilo

que ainda não é. Assim, enquanto esboço do que não é, não pode ter o valor daquilo que é -

não sendo literatura propriamente dita não pode então ter valor literário propriamente dito.

Na perspectiva da Formação, fica impossibilitada, no limite, a atribuição de valor literário a

"barroco" ou às obras catalogadas pelo termo.

1.3.2 A impossibilidade de atribuição de função

Como dissemos, o corte epistemológico que define o que é ou não "literatura

propriamente dita" também é um recorte temporal. Esse recorte determina, relativamente à

construção do enredo da Formação, o ponto inicial de suas narrativas encenadas. O

processo formativo da literatura brasileira, narrado pelo livro de Candido, começa, então,

efetivamente em 1750 e é oferecido como acabado nos meados do XIX. Candido, de

antemão, já sabia do potencial de polêmica que esse rearranjo do início e do fim da

formação da literatura brasileira poderia gerar. Tradicionalmente, as histórias literárias

identificavam no XVI e em partes do XVII o inicio e o fim do processo formativo da

literatura nacional, como diz na introdução à Formação:

Muitos leitores acharão que o processo formativo, assim considerado, acaba tarde demais, em desacordo com o que ensinam os livros de história literária35

A decorrência desse arranjo para as práticas anteriores a 17 50 é um reforço do lugar

residual que lhes cabe. Além de rarear o estatuto de literatura das produções do XVI e XVII

e de impossibilitar, assim, a atribuição de valor literário em sentido pleno a elas, Candido

34 idem, p.l6 35 "d 25 1 em, p.

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desfere um golpe talvez ainda mais grave: retira-as da narrativa. Elas são colocadas em um

momento anterior ao próprio início do enredo encenado na Formação, um momento que

praticamente nem lhe serve de intróito. Se são as narrativas encenadas em uma história

literária que, costurando as obras estudadas, atribuem-lhes função para o próprio

andamento da história, na Formação, as obras anteriores a 1750, como não estão

concatenadas em uma narrativa, não possuem função aparente. Os objetos contidos no lugar

residual, dessa forma, sobram e pouco podem servir para o processo formativo da literatura

brasileira, para a constituição progressiva de uma subjetividade nacional e para as outras

narrativas desenvolvidas pela Formação.

Essa impossibilidade de atribuição de função aos objetos que constam no lugar

residual é ainda agravada, segundo os pressupostos do livro de Candido, porque eles não

são funcionais - eles não só não funcionariam relativamente ao processo formativo que se

inicia depois deles como também não funcionam dentro de sua própria circunstãncia

particular. Lembremos que esses objetos não são "literatura propriamente dita" e, por isso,

não foram produzidos dentro de um sistema literário configurado. Lembremos também que

é esse sistema que garantiria uma produção ininterrupta de obras, fazendo com que

interajam entre si, ganhando organicidade. Dessa forma, tudo o que é anterior a 1750

aparece apenas como "manifestações isoladas", surgidas quase ao acaso, sem estarem

propriamente contidas num padrão de sociabilidade.

Assim, as práticas anteriores a 1 750, "barroco", enfim, ficam impossibilitadas de

exercer alguma função em 3 aspectos imbricados: não participam da história e, por isso,

não configuram nem geram influência ou direção para o presente; não operam continuidade

e, dessa forma, não transmitem regras de funcionamento para a história; e, finalmente,

como objetos sem funcionalidade em termos de configuração social orgãnica, seriam

apenas pura casualidade.

Esse é o lugar residual, onde estão contidas as produções anteriores a 1750,

decorrente do desenho teórico da Formação, como vimos. Detectá-lo não significa querer

denunciar um ímpeto excludente, como fazem os que tentam resgatar "barroco", mas tentar

perceber as decorrências do modelo da Formação com relação aos objetos que não ilumina

mas que são previstos, no entanto, residualmente nesse modelo.

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A situação particular de resíduo pode ser exemplificada com o denominado "caso

Gregório de Mattos". A atribuição de valor nesse caso só pode ser enviesada, como vimos.

Na introdução da Formação algum valor só pode ser atribuído a "Gregório de Mattos" a

posteriori, quando enfim se detectam os elementos constituintes do sistema literário (autor­

obra-público), mas não pode ser feito em "perspectiva histórica", como prevê o

funcionamento do livro de Candido. Assim, enquanto objeto carente do estatuto de

"literatura propriamente dita", não possui, em sua particularidade histórica de inexistência

literária, procedimentos e critérios suficientemente capazes de atribuição de valor:

Com efeito, embora tenha permanecido na tradição local da Bahia, ele ["Gregório de Mattos"] não existiu literariamente (em perspectiva histórica) até o Romantismo, quando foi redescoberto, sobretudo graças a Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pode ser devidamente avaliado. [grifo nosso ]'6

O caráter de "manifestação isolada" também impede a atribuição de função.

Circunscrito apenas em uma tradição local e inexistente enquanto literatura, "Gregório de

Mattos" pouco pode servir para o projeto de literatura nacional detectado a partir de 1750:

Antes disso [ de 1882 e da edição V ale Cabral] não influiu, não contribuiu para formar o nosso sistema literário, e tão obscuro permaneceu sob os seus manuscritos, que Barbosa Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignora-o completamente, embora registre quanto João de Brito e Lima pode alcançar.37

1.4 Afrânio Coutinho e a primeira resposta à Formação

O autor da Formação, ao não incluir "barroco" na literatura brasileira e ao propor

para ele o lugar residual referido, parecia, na década de 50, estar na contracorrente de uma

moda que certamente estava no auge então. Nos meados do século XX, "barroco" e os

objetos culturais classificados pelo termo estavam passando por um intenso processo de

valorização, que começou no início do século e que se verifica até hoje. Antes do início

desse processo, o termo "barroco" e seus correlatos "cultismo", "gongorismo",

barroquísmo", etc tinham um sentido basicamente negativo. Serviam para designar

pejorativamente, segundo uma perspectiva ilustrada reavivada romanticamente, obras que

careciam de signíficado, pois pareciam apenas brincadeiras de palavras num registro

aristocrático. Serviam também para desdenhar o comprometimento que essas obras

36 idem, p. 26 37 "d "b"d tem,Item

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guardariam com a ociosidade da corte, sua alienação, sua incapacidade de produzir uma

arte empenhada e seu ranço absolutista, religioso e jesuíta.

Porém, a partir de alguns trabalbos principalmente advindos, num pnme1ro

momento, da História da Arte - registra-se aqui, como exemplo, Renascença e Barroco de

Wõlfflin, publicado em 1888- e a partir de propostas vanguardistas de ruptura estética,

"barroco" começou a ser usado positivamente e como positividade para a valorização de

objetos então reinventados pela designação feita pelo termo. A reatualização de obras

etiquetadas por "barroco"- por exemplo, a dos metaphysical poets na Inglaterra e mesmo a

de Góngora na Espanha - começou a parecer interessante. De forma bastante rápida,

"barroco" então, de conotação negativa, passou a designar positivamente. Não só

características tomadas como "barrocas" começaram a ser valorizadas, como também

passaram a ser identificadas e atribuídas, no limite, a qualquer objeto cultural que tivesse

um certo tipo de forma considerada "excessiva". Esse processo de valorização agiu de

forma tão brutal que em 1954 um congresso de especialistas nos séculos XVI e XVII foi

organizado para deter os usos e abusos do termo38• O ato porém não surtiu efeito: as

literaturas nacionais passaram a querer identificar e valorizar períodos "barrocos" em suas

histórias e mesmo vanguardas autodenominadas "neobarrocas" começaram a surgir; trata­

se, portanto, de uma ânsia por barroco, chamada por alguns analistas de "retomo do

barroco"39. Na América Latina, essa ânsia se tomou ainda maior, pois a discussão a respeito

de "barroco" envolvia também modos interessados de apropriação positiva da literatura e

artes coloniais, dando-lbes autonomia e pensando, através delas, formas de resistência e

emancipação cultural.

38 Esse foi o terna do ill Congresso Internazionale di Studi Umanistici, realizado em Veneza no ano de 1954. (cf. em Retorica e Barocco. Atti del 111 Congresso di StudiUmanistici. Roma, Fratelli Bocca Editori, 1955 citado por João Adolfo Hansen em "Pós-moderno e Barroco" in Cadernos do Mestrado- Literatura, n. 8. RJ, Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1994.) 39 É dessa forma que Walter Moser denomina a valorização e a reatualização do que é etiquetado pelo termo "barroco" em seu artigo "Versões do Barroco: moderno e pós-moderno" in Revista Sociedade e Estado, vol. Vill, nums 1/2, 1993. Nesse texto, além de investigar por quais procedimentos esse "retomo" se dá, especula algumas causas para ele- uma tentativa de se livrar de alguns imperativos modernos na cultura. Em outro texto ("Du baroque européen et colonial au baroque américain et post-colonial" in Barrocos y Modernos- Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, org. Petra Schumm, Franfurt am Main, Vervuert Verlag; Madrid, Iberoamericana, 1998) analisa essa valorização de barroco como um tipo especial de "reciclagem

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É nesse contexto que surge, em 1959, no Brasil, a Formação seqüestrando

"barroco" e adotando, de alguma forma, a posição ilustrada, então combatida, que retira

valor e função das práticas do XVII. Uma resposta a essa posição e a esse seqüestro não

tardou a aparecer. A primeira a surgir de forma programática e organizada foi o ensaio

Conceito de Literatura Brasileira publicado já em 1960 (um ano depois da publicação da

Formação, portanto) por Afrânio Coutinho. Em 1950, esse crítico já produzira sobre

"barroco" uma tese para a cátedra do colégio D. Pedro II, Aspectos da Literatura Barroca.

Em Conceito da Literatura Brasileira, Coutinho, de forma categórica, censura Candido por

não estar com os ponteiros ajustados com relação à valorização de "barroco" e aos então

novos modelos de análise estética e textual, fenômenos imbricados e simultâneos:

[o livro de Antonio Candido] é uma obra que surgiu atrasada. Deveria ter sido publicada em 1945, quando elaborada. Então ficaria com o significado de obra de transição entre a concepção crítico-historiográfica de Silvio Romero, a que se liga pela sua conceituação, e as novas aspirações de critérios estéticos para o estudo do fenômeno literário [ ... ]40

Segundo esses novos critérios, não se poderia, em termos gerrus, diferenciar

literatura nacional de literatura colonial. O próprio termo "colonial" seria inadequado para

se referir a uma literatura, pois seria um termo de cunho político, exterior, portanto, à

literatura. Através do mesmo argumento, Coutinho relativiza a construção do "sistema

literário" de Candido, pois sua configuração não estaria ligada a critérios propriamente

literários ou estéticos.

Além disso, alinhando os tais novos métodos a um nacionalismo bastante peculiar,

defende a tese de que, dado o estabelecimento colonial no Brasil, "nasceu um homem novo,

insista-se, deu-se isso desde o primeiro instante em que o europeu aqui pôs o pé'>~ 1 (na

verdade apropria-se de tese parecida de Ortega Y Gasset e reaviva a "obnubilação

brasílica" de Araripe Jr.). Esse homem, brasileiro desde o primeiro instante, criaria, por ser

novo, uma literatura nova, eminentemente brasileira.

A literatura produzida na colônia seria, nessa perspectiva, desde o inicio brasileira.

Funcionaria para esse homem novo como forma de comunicação humana e serviria para

cultural" e detecta também uma certa insistência particular de "barroco" na América Latina, o que o faz propor um "barroco colonial" e um "barroco pós-colonial". 40 Afrânio Coutinho, Conceito de Literatura Brasileira- ensaio, RJ, Livraria Acadêmica, !960, pp. 75 e 76 41 idem, p. 18

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representar o mundo novo. Segundo Coutinho, desde o início, os brasileiros estariam

conscientes e imbuídos de seu papel de construir um literatura brasileira, o que é uma

grande diferença com relação à proposta de Candido, que vislumbrava, ainda assim de

forma preliminar, esse aspecto apenas depois de 1750. Dessa forma, critica Candido por ter

podado a literatura brasileira, ao deixar alguns de seus períodos indistintamente no galho

mirrado da literatura portuguesa. Coutinho afirma que fazer isso equivaleria a adotar o

discurso do colonízador português e não valorizar o que deveria ser valorizado no Brasil

pelos brasileiros. Não identificar um sistema literário pronto e uma literatura já plenamente

nacional antes de 1750 seria, para Coutinho, reavivar o ponto de vista dos primeiros

historiadores estrangeiros aplicado à literatura do Brasil e, por isso, seria jogar contra os

interesses nacionais:

O que não se admite é que continuemos a repetir essa definição do problema inteiramente contrária aos pontos de vista brasileiros.<'

Para reforçar sua acusação, recorre a críticos de outras literaturas que também foram

produzidas sob o jugo coloniaL Para esses críticos de outros países, tal como os apresenta

Coutinho, não haveria problemas em afirmar uma identidade e uma especificidade nacional

desde o início coloníal de suas literaturas; teriam, assim, superado a perspectiva do

colonizador.

Se a literatura no Brasil já nasce brasileira, ela também já nasce plena. Para

Coutinho, a escassa infra-estrutura para circulação I iterária na colônia j á s eria suficiente

para denornínar as produções de "literatura". Mesmo assim, ele julga esse problema como

meramente acessório, já que, segundo os modelos que defende, a literatura deve ser julgada

por categorias internas. Até reconhece que possa ter havido um processo de formação ao

longo do tempo, o que não impediria o nascimento de uma literatura brasileira própria

desde o início, pois seria produzida por um homem novo, por uma língua nova e por meios

próprios:

Formação da I iteratura brasileira ocorre desde o início da civilização. Considerar a literatura da época colonial "um aspecto da literatura portuguesa, da qual não pode ser destacada"; considerá-la "a literatura comum", ou "literatura luso-brasileira", parece um posição absolutamente insustentável no atual estádio de evolução do pensamento critico brasileiro. Considerá-la portuguesa só porque o Brasil era colônia de Portugal é um critério político aplicada à definição dessa produção literària, já nitidamente Brasileira, além disso abrindo mão de um patrimônio por todos os títulos apreciável;

42 idem, p. 58

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E continua, já anunciando a valorização de "barroco" oferecida como contraponto ao

resíduo proposto pela F armação:

inclusive esteticamente em que pesem as tradicionais restrições à literatura hoje chamada barroca do período. Restrições herdadas dos preconceitos e teorias críticas neoclássicas e románticas, felizmente superados, mas que ainda repontam aqui e ali nas páginas dessa obra [da Formação]43

Enfim, o mais importante. A preparação para a tentativa de valorização de "barroco" estava

feita, agora ela de fato se enuncia:

O mais importante, contudo, é a incompreensão do papel da literatura barroca, ou antes, do espírito barroco no Brasil, fenômeno que vem sendo posto em relevo ultimamente.44

Além de valorizar a "literatura barroca" através de seu método de periodização

estilística e de seus novos critérios de avaliação estética, mesmo reconhecendo que houve

no Brasil, por vezes, um "mau barroco", Coutinho atribui a "barroco" um papel de

emancipação da literatura brasileira. Argumenta ele que o modelo literário "barroco" seria

fundamentalmente espanhol e teria sido imposto aos portugueses como conseqüência da

dominação espanhola. Por isso, identifica um ranço anti-"barroco" na perspectiva

historiográfica portuguesa que os brasileiros teriam acriticamente herdado. Na colônia,

contudo, os homens novos, já eminentemente brasileiros, ao propor uma literatura nova,

também já brasileira e ciente de seu papel emancipador, teriam se apropriado, de maneira

bastante particular e brasileira, dos modelos "barrocos" espanhóis como forma de

superação dos colonizadores portugueses. Os brasileiros teriam nascidos "barrocos", e essa

essência "barroca" seria uma forma de emancipação, a priori, em relação aos portugueses,

pois, com isso, os novos brasileiros teriam passado por cima de Portugal para construir sua

literatura.

Mais para o final de seu texto, para concluir que "barroco" teria tido um papel

importante na construção de uma identidade e de uma consciência nacional e para propor

uma narrativa alternativa que se engendra a partir de um início "barroco", Coutinho faz

algumas nuances:

Tem razão Antonio Candido [ ... ] em afirmar que não é uma literatura organ1ca funcionando como sistema coerente a que existiu antes do arcadismo. Mas não se pode

43 idem, p. 59 44 idem, p. 59

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negar que já é uma literatura, que já se "formara", que não ~~via", mas já "existia". Assim, o seu livro deveria denominar-se "Autonomia da Literatura Brasileíra", e não "Formação". Formação deu-se na época barroca e os padrões barrocos então vígentes, e que deram os fundamentos à nossa consciência, foram importantes na época a ponto de plasmá-la, que ainda hoje repercutem em nossa alma e em nossa vída de maneira profunda. Constituem muito mais vívências que os arcádicos e neoclássicos'"'5

E arremata propondo um esboço de narrativa alternativa à Formação, que, apesar de

não se realizar efetivamente, tenta resolver a questão da origem "barroca":

A líteratura brasileira "formou-se" com o barroco. Com o arcadismo-romantismo, tomou-se autônoma. Com o modernismo atingiu a maioridade.46

Tem-se assim a primeira tentativa de resposta a Candido. Coutinho atua na inclusão

definitiva daquilo que é previsto como residual pelo desenho da Formação. Para tanto,

elabora um esboço de uma narrativa na qual aquilo que é posto antes do marco temporal e

epistemológico de 1750 é proposto como decisivo no entendimento de uma expressão

nacional. A atuação de Coutinho consiste em determinar o interesse desse resíduo, de modo

que não pareça mais convincente continuar a designá-lo resíduo.

O primeiro argumento oferecido é, na verdade, uma acusação. Se um segmento da

literatura produzida na colônia não for reconhecida plenamente como "literatura" e, mais

fundamentalmente, como "literatura brasileira", essa porção do "patrimônio nacional",

indistinta e desnacionalizada, poderia servir como prova de uma incontornável situação

colonial do Brasil: a não aceitação do resíduo significaria, portanto, reavivar a posição do

colonizador, antagônica ao que se deveria querer.

O segundo argumento a favor do interesse daquilo que é proposto como residual

pela Formação incide na valorização de "barroco". Coutinho tenta demonstrar a

incompreensão de Candido relativa ao papel do "espírito barroco no Brasil". Essa

demonstração se desdobra, por sua vez, em dois aspectos. O primeiro seria "estético". Os

métodos inovadores de periodização estilística que Coutinho advoga seriam capazes de

ressaltar um "valor estético" de "barroco", com a alegada vantagem de não usar os

preconceitos iluministas que denotam um sentido pejorativo do termo. Não incluir o

resíduo na narrativa da literatura nacional significaria, portanto, não atentar para esse valor

de "barroco", reconhecido internacionalmente. O segundo aspecto da valorização de

45 idem, pp. 63-64 46 idem, ibidem

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"barroco" é atribuir ao termo uma função na narrativa da nacionalidade que o modelo da

Formação não conseguiria registrar. Coutinho especifica duas funções de "barroco", a de

superação e a de emancipação. Segundo o crítico, ao escolher os "modelos barrocos de

expressão", o "brasileiro", recém-nascido, estaria contrariando Portugal porque os

procedimentos expressivos de "barroco", de acordo com Coutinho, são advindos do

colonizador do colonizador, isto é, da Espanha; com isso, o "brasileiro" estaria superando

seu algoz. Ao mesmo tempo, a adoção de "barroco" permitiria uma emancipação da

"consciência nacional", dotando aquele "novo homem" de formas de expressão e de

representação que não teriam sido importantes apenas nesse momento inicial como seriam

capazes de configurar, "de maneira profunda", um "ser brasileiro".

1.5 Haroldo de Campos e a segunda resposta à Formação

Outra resposta a Candido é a de Haroldo de Campos, que denomina de "seqüestro"

a operação de não inclusão de "barroco" na Formação. A designação aproxima Campos de

Coutinho, pois pressupõe que "barroco" deixa um lugar vago na literatura brasileira quando

transformado em resíduo. Porém, se Coutinho tenta se contrapor a Candido jogando na

mesma chave narrativa linear do autor da Formação, determinando valor e função de

"barroco" para uma hístória literária contínua e ordenada da formação da nacionalidade

literária, Haroldo de Campos já atua na desconstrução desse modelo narrativo línear.

Essa atuação começa por constatar um paradoxo com relação à existência hístórica

de "Gregório de Matos". De um lado, Candido, para quem o referido poeta não existiu em

perspectiva hístórica, e Wilson Martíns, para quem nem mesmo a existência factual é certa;

de outro, Oswald de Andrade e, implicitamente, o próprio Haroldo de Campos, para quem o

poeta ''barroco" não só existiu como obrou um legado poético inspirador para as gerações

futuras. Para resolver esse jogo de esconde-esconde, H. de Campos propõe que a questão

não é apenas sobre a presença factual, "mas, sobretudo, [a questão é] a da própria noção de

hístória que alimenta a perspectiva segundo a qual essa existência é negada, é dada como

uma não-existência (enquanto valor 'formativo' em termos literários)"47• Assim, para

propor essa questão em termos da construção hístoriográfica, opera uma desconstrução do

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texto da Formação em dois níveis: o primeiro, que H. de Campos chama de "ideológico", e

o segundo, que chama de "semiológico". Quanto ao primeiro, usa Derrida para

desautomatizar as séries metafóricas empregadas por Candido na introdução de sua

Formação. Todas essas séries, segundo o poeta concretista, seriam indícios de uma postura

combinada de substancialismo e de organicismo relativa ao estabelecimento do "espírito do

ocidente" (eis a substância) no Brasil através de um processo progressivo e linear de

formação literária (eis o organismo). Essa postura operaria teleológica ou progressivamente

para encaminhar um "classicismo nacional", final, finalista e normativo. Para construir esse

encaminhamento, Candido teria se valido de uma "perspectiva histórica", que, para o poeta

concretista, seria, na verdade, uma "perspectiva ideológica", pois é oferecida, de forma

travestida, como verdadeira e objetiva, porém nada mais seria que a conversão em verdade

historiográfica dos interesses românticos relativos ao estabelecimento de uma literatura

empenhada, orgânica e nacional.

Essa crítica é reforçada através da leitura no segundo nível, o semiológico. Haroldo

de Campos, usando desta vez as funções da linguagem de Jakobson, analisa a proposta do

sistema literário de Candido e chega a conclusão de que ele privilegia as funções "emotiva"

e "referencial" (que seriam fundadas em uma "função comunicativo-expressiva", que

abrangeria tanto a expressão das "veleidades mais profundas", quanto a representação das

"diferentes esferas da realidade") com alguns elementos da "função conativa" (que, para o

sistema de Candido, deveria ser mais precisamente chamada de "função conscientizadora"

e daria conta do aspecto "empenhado" da literatura brasileira). Enquanto efeito de

aplicação, esse modelo de leitura baseado nessas funções, geraria, segundo H. de Campos,

um modelo de literatura: um modelo romântico com aspirações classicizantes, que teria

como ponto culminante, como te/os, o já citado "classicismo nacional", Machado de Assis

e o seu "instinto de nacionalidade".

A combinação das conseqüências observadas por esses dois níveis de leitura, fechar­

se-ia um círculo hermenêutica, que segundo o concretista, seria fruto de uma ideologia: o

modelo de explicação de Candido só teria olhos para os objetos dos quais extrai seus

próprios pressupostos; o modelo agiria apenas avaliando os objetos selecionados e

47 Haroldo de Campos, O seqüestro de barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1989, p. 11

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perfilando-os em uma série narrativa, segundo um grau de adequação com um objeto

semelhante e ideal. A orientação supostamente objetiva, histórica, que seqüestra "barroco",

seria, segundo Haroldo de Campos, uma tentativa de universalização do projeto literário

romãntico (e seus aspectos expressivos e empenhados), tomado de maneira normativa e

prescritiva, de modo, inclusive, a ditar as possibilidades de identificação do que seja

"literatura". Assim, não haveria espaço para "barroco" que, para o poeta concretista, além

de ser pautado por uma estética baseada nas funções poética e metalingüística, serra

estranho aos ideais romãnticos e à ideologia da individualidade nacional.

Depois dessa acusação e dessa critica, Haroldo de Campos passa grande parte do

texto tentando atribuir valor a "barroco". Vê, no trabalbo com as funções poética e

metalingüística, de que Candido insiste em avaliar de maneira negativa, um valor positivo

como produção de artefatos poéticos. Constrói, também para atribuir valor, uma certa

imagem de "Gregório de Matos", poeta de vanguarda, maldito e perseguido, que teve,

graças à força de sua obra e aos apógrafos cientes do valor poético e transgressor dela para

o futuro, seus poemas circulando clandestinamente por 150 anos à revelia do poder e

ideologias então dominantes dos quais Candido, na Formação, seria um porta voz

anacrônico. Ainda para atribuir valor a "barroco" e também para valorizar o resgate que ele

próprio opera, o poeta concretista cita operações parecidas em outros países, mostrando

que, devido a interesses poéticos e programáticos, seria interessante liberar "barroco" e

"Gregório de Matos".

Finaliza questionando o modelo historiográfico da Formação e propondo outro em

seu lugar, que vislumbraria uma função para "barroco" . A critica incide no modelo linear e

de ação continua do livro de Candido, que excluiria tudo o que não caíba em sua progressão

finalista baseada em um modelo normativo. Assim, resumindo as criticas que faz ao livro

de Antonio Candido, propõe um novo título à Formação: "História Evolutiva do

Romantismo no Brasil". Questiona a noção de público como noção integradora,

sociológica, e propõe um outro conceito de público advindo da estética da recepção, em que

seja considerado um horizonte de um sistema de referências que pressupõe a interlocução, a

partir do texto, de forma retroativa (dialogando com textos do passado) e progressiva

(dialogando com o futuro que antevê). Propõe também que a literatura brasileira teve um

inicio pronto, "vertiginoso"; ela já teria nascido madura, em termos estéticos, com

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"barroco" e com "Gregório de Matos". Finalmente, discute a inexistência histórica de

"Gregório", pois, segundo a perspectiva de dois historiadores que cita, seus poemas

poderiam servir como fonte documental do XVII, e nesse caso, se existiria como fonte de

história, como poderia ele não existir na história?- pergunta-se o concretista.

O modelo de história literária esboçado por H. de Campos para fazer frente ao do

Candido da Fonnação preveria a não redução e a não exclusão do diferencial; no lugar de

"momentos decisivos" ("formativos numa acepção retilínea de escalonamento ontológico"),

"momentos de ruptura e transformação" ("índices sismógrafos de uma temporalidade

aberta, onde o futuro já se enuncia")48. Uma história dificil, construída por uma

historiografia não linear, não conclusiva, que daria conta de registrar rupturas de modo a

não retirar delas o seu potencial de transformação, enfim uma história que permitisse

rearranjos sucessivos no futuro. Uma anti-história, no sentido de ausência de narrativa

linear, para escrever um cânone anti-canônico, não investido de valor tradicional e não

encapsulado em sentidos tradicionalistas.

Essa história difícil proposta pelo concretista opera, no entanto, de forma similar à

narrativa nacional alternativa oferecida por Coutinho ou, ao menos, visa atingir resultados

parecidos. O objetivo aqui também é o de incluir aquilo que é proposto como resíduo por

Candido. Depois de desconstruir o modelo historiográfico da Fonnação, o que contribui

para questionar a própria eficácia persuasiva do 1 ugar residual ao qual "barroco" estaria

condenado segundo esse modelo ( caudatário, segundo o concretista, da metafísica da

presença e movido por uma ânsia integrativa anacrônica), Campos, assim como Coutinho,

tenta atribuir interesse ao que é proposto como resíduo.

Para tanto, insiste, como já vimos, num aspecto transgressivo de "barroco". Campos

oferece um grande repertório de citações, que inclui Severo Sarduy, Lezama Lima, W a! ter

Benjamim e outros, como argumento da ruptura transistoricamente causada pela "escrita

barroca". A "deturpação da ordem vigente" supostamente ocasionada por "barroco" ao

mesmo tempo agrega interesse ao resíduo e mesmo explica sua situação residual: "barroco"

proposto dessa forma não poderia mesmo ser incluído numa história linear,

homogeneizadora e integrativa, justamente porque relativizaria uma suposta ordem natural

48 idem, ibidem, p. 52

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das coisas e do discurso - em qualquer narrativa linear na qual fosse inserido, sena o

contraste, o elemento que não aceitaria apaziguamento.

Proposta assim, a valorização de "barroco" se pautaria por uma espécie de elogio da

margem. No entanto, o lugar residual de "barroco" proposto por Candido continuaria ainda

operando de alguma forma. A atribuição de valor ao resíduo ainda levaria em conta a sua

condição residual: "barroco", como quer H. de Campos, surgiria interessante justamente

por ser o resíduo inexorável com o qual ideologias conservadoras e integrativas e anseios

totalizadores não conseguiriam lidar. Em outras palavras, poderiamos dizer que o

concretista aceita o lugar residual de "barroco" propondo, no entanto, esse lugar

positivamente como interessante. Evidentemente, nesse caso, mesmo que o referido lugar

seja aceito, ele é ressigníficado: não se trata mais do esboço daquilo que ainda não é, mas é

aquilo que não poderia ser. Aínda assim, o máximo que se pode obter é um elogio do

resíduo e não a sua inclusão definitiva.

Haroldo de Campos, contudo, não se contenta apenas com a valorização de

"barroco" enquanto margem transgressora. O seu modelo de história dificil referido visa

justamente a inclusão do resíduo, mesmo que de forma não integrativa ou

homogeneizadora. O curioso é que a apresentação desse modelo historiográfico é, ao

mesmo tempo, uma absolvição de Antonio Candido- não o da Formação, evidentemente,

mas o da "Dialética da Malandragem" e o da "Literatura de Dois Gumes". Esses dois textos

do critico são aprovados no modelo de história dificil, no "modo oximoresco de ler a

tradição", pregado pelo poeta. Esses dois textos são propostos como exemplares porque

partilhariam de um modelo de escrita historiográfica que permitiria a inclusão do

diferencial, isto é, a aceitação de "barroco" na proposição de alguma linha (descontínua,

evidentemente) relativa à "escrita barroca", capaz de transbordar a história e de se fazer

presente em momentos díspares. Através desse tipo de narrativa, seria possível registrar e

enfileirar as rupturas "barrocas" na literatura brasileira ("Gregório de Mattos",

Souzandrade, João Cabral, poesia concreta) sem empalidecer seu diferencial, seu aspecto

transgressivo, e mesmo sem confinar essas rupturas em um lugar residual.

É a aplicação de tal modelo com vistas à inclusão definitiva do resíduo que o leva a

conclusões parecidas com as de Coutinho. Se o autor de Conceito de Literatura Brasileira

tenta dissolver o lugar residual insistindo em um aspecto de originalidade "barroca" do

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Brasil, quer em termos políticos de superação colonial, quer em termos expressivos de

emancipação artística e intelectual, H. de Campos propõe, amparado pela leitura que faz

dos dois textos de Candido aprovados, uma "congenialidade" de "barroco" no Brasil, uma

"ação duradoura do Barroco"49. Com isso, Haroldo de Campos tenta destituir o lugar

residual determinado para "barroco" pelo Candido da Formação, combinando a valorização

de "barroco" já referida- o elogio da margem- com uma função de "barroco" no Brasil, a

especificação de algum aspecto brasileiro revelado pela "congenialidade" e pela "ação

duradoura do Barroco".

Em O Seqüestro, porém, essa especificação de Brasil, ou da literatura brasileira,

através de "barroco" não é muito desenvolvida, uma vez que Campos interessa-se muito

mais pela desconstrução do modelo historiográfico da F armação e pela atribuição de valor

a "barroco", por meio do recurso ao elogio da margem. Cruzando algumas referências,

contudo, é possível depreender o que seja essa associação entre "barroco" e Brasil. O

primeiro aspecto dela é relativa ao nascer pronto do Brasil, ou da literatura brasileira, o que

indicam ais um ponto em comum com Coutinho e seu "brasileiro" constituído "desde o

primeiro instante em que aqui pôs o pé". O "início vertiginoso" de Campos, assim como o

"brasileiro desde o primeiro instante" de Coutinho, rechaça a idéia de maturação

progressiva do nacional. A vantagem de se incluir o resíduo residiria, portanto, na

postulação de um início pronto, sem etapas de aperfeiçoamento progressivo. Nesse

perspectiva, a condição colonial ou uma posição subalterna do Brasil ou da literatura

brasileira (um segmento de um galho mirrado da árvore da literatura ocidental, segundo a

introdução da Formação) seria resolvida. Além disso, uma outra vantagem da inclusão do

resíduo, segundo o concretista, seria a postulação de uma identidade de diferença: além de

ter nascido pronto, Brasil, ou a literatura brasileira, teria em "barroco" uma especificação

não conclusa, autoquestionadora, vanguardista. Logo após defender que "Dialética da

Malandragem" produziria um contraponto autodesconstrutor da Formação, Haroldo de

Campos tenta demonstrar o que seria essa identidade difícil, antevista por Candido ao

incluir "Gregório de Matos" na "Malandragem", e o faz aludindo Mário de Andrade:

Nunca Mário de Andrade esteve tão certo, nunca foi (talvez involuntariamente) melhor teórico do nacional, quando, no rastreio ontológico do "caráter do homem

49 idem, p. 78

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brasileíro", chegou não à identidade conclusa, plena, mas à diferença: ao "descaráter" irresolvido e questíonante de seu anti-herói macunaímico50

1.6 Desdobramentos possíveis da polêmica

Antes de retomar às epígrafes que abriram essa capítulo e à descrição da

"sigrtificação brasileira de 'barroco"' empregada nos catálogos, cumpre esboçar alguns

desenvolvimentos possíveis da polêmica em torno da Formação, indicando alguns modos

de prolongar a discussão a respeito desses três textos. A definição do lugar residual de

"barroco" proposto por Candido e o questionamento desse lugar por Coutinho e Campos

poderia ser desdobrada de várias maneiras.

Em primeiro lugar, o escopo da teoria de cada um deles poderia ser testada,

verificando eventuais fragilidades de Candido, de Coutinho e de Haroldo de Campos, no

que se refere à proposição ou ao questionamento do lugar residual. Começando por

Candido, podemos dizer que a arbitrariedade envolvida na questão da determinação do

público para o sistema literário, sistema segundo o qual a não inserção define o que é

residual, não é um dos pontos altos da construção do modelo da Formação. Coutinho e

Haroldo de Campos exploram, mesmo que tangencialmente, esse ponto. Pois bem, se o

público que Candido prevê, versado em artes e letras e, por isso, capaz de um tipo de

fruição estética, é reduzido nos séculos XVI e XVII, quem garante que ele se torna mais

numeroso no XVIII, como aponta Guilherme Simões Gomes Júnior51?

Além disso, as exigências na idealização desse público desrespeitam padrões

históricos e pragmáticos em tomo dos quais as obras se situam. A poesia satírica atribuída a

"Gregório de Mattos", como demonstra João Adolfo Hansen52, previa a sua oralização. Seu

público, a princípio, é qualquer um que passa pela praça pública no momento de sua

realização oral. Não há, nesse caso, sequer a exigência quanto ao grau de alfabetização dos

ouvintes. O mesmo se dá com os sermões do Padre Vieira. O público pressuposto deles,

num sentido mais imediato, é o conjunto de fiéis que se encontra na igreja. Dizer, então,

que esse público não há é o mesmo que dizer que não havia católicos no Brasil colônia, o

50 'd 73 1 em,p. 51 Palavra Peregrina, op. cit., pp. 151-158 52 A Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, SP, Cia das Letras, 1989

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que sena um completo disparate em termos históricos. A definição do público não é

necessária que seja postas equer em termos numéricos ou qualitativos. C orno demonstra

Hansen, mais uma vez, o público previsto por esses textos pode ser "o corpo místico do

império"; o "público", nesse caso, diria respeito à interlocução prevista por práticas

culturais históricas.

De qualquer forma, a impressão que temos é a de que escapa do texto de Candido a

observação de indícios que operam na determinação histórica dos discursos produzidos

antes de 1750. Candido não leva em consideração alguns dados históricos disponíveis

quando da confecção da Formação, como também nos mostra Guilherme Simões Gomes

Júnior. O ensino e a prática da retórica e da poética clássica nos colégios jesuítas formava e

informava tanto um público receptor quanto produtor de práticas discursivas e poéticas

regidas pelas mesmas poéticas e retóricas vigentes então. É o desprezo de dados como

esses, que produz conseqüências nada sutis na compreensão dessa literatura anterior a 1750.

Candido opera na Formação na escolha de um padrão de literatura, a do século XIX, que é

tomado como parâmetro transhistórico para tudo o que lhe é anterior. Não é por outro

motivo que a interpretação de Candido a respeito de" arcadismo" começa também a ser

questionada, o que aqui deixaremos de lado.

A visão de Candido, ao privilegiar o modelo de literatura do XIX, deixa sim de fora

o XVI e XVII. Não tanto em termos de valorização estética, menos ainda quanto à falta de

atribuição de nacionalidade formativa, seja ela organizada de forma linear ou não, como

insistem Haroldo de Campos e Afrânio Coutinho. Escapa do modelo historiográfico de

Candido a percepção de formas de sociabilidade e de racionalidade que regem as práticas

discursivas do XVI e XVII e que são exteriores e estranhas ás do XIX. Essas práticas

podem sim se articular em um sistema o qual podemos considerar menos literário do que

letrado, já que não há, nele, autonoruia do domínio estético.

Coutinho, por sua vez, faz a aplicação de suas teses quase sempre mediado por

petições de princípio. Por exemplo, só pode ser efetivamente brasileiro o europeu que põe

os pés no Brasil e efetivamente brasileira a literatura produzida então se, e somente se,

acreditarmos que o ato de pôr os pés em um território diferente pode, de maneira

instantânea, transformar por completo um indivíduo e fazê-lo produzir uma literatura

própria e autônoma; no entanto, para corroborar tal crença, não há argumentos em seu

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texto. Não suportam o mesmo teste grande parte do restante de suas outras teses: "barroco"

como superação de Portugal, "barroco" como formador da consciência nacional, etc.

Coutinho também comete urna grave contradição que faz com que suas formulações

percam eficácia. Candido é repreendido pelo fato de usar critérios políticos para a avaliação

da literatura, o que os então novos métodos de Coutinho condenam. Porém, os critérios de

Candido certamente não são mais políticos do que a atribuição de brasilidade e o

patriotismo de Coutinho, que pouco se articulam com os tão inovadores métodos que alega

ter e que balizam toda a sua avaliação literária.

Haroldo de Campos também apresenta algumas incoerências. O modelo

historiográfico de Candido é criticado pelo concretista por ser excludente e totalizador, por

tomar urna proposta de literatura, a "romãntica com aspirações classicizantes", e torná-la

padrão prescritivo de todo o resto. A história não conclusiva do concretista, indo atrás de

"índices sismógrafos de urna temporalidade aberta", também deixa de fora tudo o que não

alcança, segundo a sua perspectiva, também ideológica, a !tos graus na escala Richter; é,

pois, tão prescritiva e excludente quanto a de Candido, a diferença reside apenas no

parâmetro usado para excluir. Essa história serve com contraponto à Formação na medida

em que, por vezes, exclui o que Candido inclui ou vice-versa:

[ ... ]Gregório de Mattos existiu e existe- viveu e pervive- mais do que, por exemplo, um Casirniro de Abreu ("o maior poeta dos modos menores que o nosso Romantismo teve', segundo a Formação, II, 194), e que hoje quase só pode ser lido corno kitsch (veja-se a paródia osvaldiana dos "Meus oito anos"); o frouxo e quérulo Casirniro, que tendo publicado As Primaveras em 1859, foi contemporãneo de Baudelaire e Souzãndrade ... 53

Na verdade, o texto de Haroldo de Campos não resiste a urna desconstrução similar

à que opera no de Candido. O curioso, nele, é que comete a mesma operação ideológica que

denuncia. A "perspectiva histórica" da Formação vendida, segundo o concretista, como

verdade historiográfica seria, como já vimos, uma perspectiva ideológica. Porém a

ideologia que esconde a verdade no texto de Candido está enunciada claramente desde o

início ("o leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ãngulo dos nossos

primeiros romãnticos e dos críticos estrangeiros"). Não se encontra a mesma evidenciação

de pressupostos no Seqüestro e é possível saber o porquê disso. Apenas se insinua, em

53 Haroldo de Campos, O Seqüestro ... , op. cit., p. 66

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tangentes notas de rodapé 54, o futuro para o qual aponta todo o material do passado

organizado de forma não conclusiva, segundo uma temporalidade aberta. O rearranjo

histórico proposto pelo concretista pressupõe algo que dê ao passado seu efetivo sentido,

que realize, enfim, toda a potencialidade presumida nele: esse algo que reorganiza o caos da

História e que lhe dá sentido, se não se trata de um "classicismo nacional", não deixa por

isso de existir: ele é agora a poesia concreta, da qual Haroldo de Campos é autor e

preceptista. É uma postura teleológica, portanto, pois tudo o que é separado do passado

pelo sismógrafo aguarda um fim triunfante, um telas, um final, finalista e normativo.

É curioso notar também uma semelhança entre "Gregório de Matos", poeta de

vanguarda e maldito, tal como proposto no Seqüestro, e o próprio Haroldo de Campos. A

forma de circulação dos poemas atribuídos a "Gregório de Mattos", proposta por Haroldo

de Campos, clandestina, persistente, de mão em mão e à revelia do poder constituído, nos

faz lembrar a forma como teriam circulado, durante algum tempo, os poemas concretistas.

Boicotados, segundo os cabeças do movimento, pelas editoras e pela universidade, esses

poemas, dadas também as dificuldades gráficas de impressão, só puderam ser organizados

em forma de livro anos depois de serem produzidos. Aliás, a analogia poesia

concreta/"barroco" é bastante cara aos irmãos Campos. Além da poesia concreta se

autodenominar "neobarroca" em alguns manifestos, a analogia entre as formas da recepção

e de revalorização de "barroco" e os procedimentos de valorização da vanguarda

concretista também é constantemente feita. Augusto de Campos, irmão de Haroldo, por

exemplo, prevê, ao mostrar como "barroco" demorara a ser digerido pelo status quo, um

futuro áureo para o movimento que encabeça:

[o 'barroco'] ... pode exemplificar o procedimento da vanguarda no passado e no tempo, até em termos de assimilação porque foram necessários pelo menos três séculos para que o 'barroco' deixasse a marginalidade de sua recepção para assumir um lugar significativo no acervo das especulações artísticas da humanidade. 55

54 Logo após o trecho, citado acima, em que se refere a Casimiro de Abreu, Haroldo de Campos tenta demonstrar com quem "Gregório de Mattos" dialoga e "se sincroniza". São enumerados João Cabral de Melo Neto, Caetano Veloso e uma tal vanguarda que, ')á em 1955, propugnava por uma 'obra de arte aberta' e por um 'neobarroco"' (Seqüestro, p. 66). Depois disso, há uma nota de rodapé que dá a referência a essa "vanguarda": "O termo 'neobarroco', para caracterizar as 'necessidades culturmorfológicas da expressão artística contemporânea', foi usado por mim no artigo 'A obra de arte aberta', Diário de S Paulo, e de julho de 1955[ .. .]" (p. 119), um dos manifestos da poesia concreta.

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Além dessa espécie de teste de coerência das propostas de Candido, Coutinho e

Campos, poderíamos também contextualizar os textos dos três num quadro mais amplo dos

usos de "barroco" no Brasil, em particular, e na América Latina, no geral, relacionando-os

com outras propostas e recusas de autonomização cultural através de "barroco"56.

Ainda seria possível, para continuar desdobrando a polêmica em torno da

Formação, conduzir a uma reflexão a respeito da história literária enquanto gênero de

escrita. A questão do "barroco", tal como apresentada pela contraposição desses três textos,

é um caso exemplar dos problemas da escrita da história literária. Essa questão poderia ser

desdobrada em duas. A primeira seria relativa à definição de "período", formulação

necessária para que tal gênero de escrita possa mobilizar e gerenciar grandes conjuntos de

objetos de forma a garantir verossimilhança da narrativa proposta. A segunda seria relativa

à ânsia de totalização, principalmente nacional, em que tal gênero se subsidia. Ambas

denotam a impossibilidade da história literária enquanto narrativa que não apresente falhas

de coerência, nos termos propostos por David Perkins57•

Por fim, seria ainda possível focalizar os diferentes propósitos programáticos e as

premissas teóricas e historiográficas de que se valem os três textos. Como se pode

depreender da apresentação que fizemos dos textos de Candido, Coutinho e Campos, não se

trata apenas de mn dissenso acerca de "barroco" ou do valor nacional de "barroco". Melhor

dizendo, tal dissenso se alimenta das diferentes posturas críticas e metodológicas em que se

alicerçam Candido, Coutinho e Campos. A apropriação de "barroco", ou dos objetos

literários imaginados como "barrocos", funciona como batalha final do embate dos modelos

partilhados pelos três críticos. Muito possivelmente eles não estejam sequer corroborando

pressupostos comuns e referindo-se às mesmas coisas quando se valem de "literatura

brasileira" e "barroco". Ainda que os três se disponham a propor narrativas que especificam

"literatura brasileira", o termo "literatura" só é objeto de consenso enquanto dispositivo de

nacionalidade: para Candido, "literatura" não pode ser entendida fora da noção sociológica

55 citado por Affonso Ávila na introdução de seu Barroco Teoria e Análise. SP: Perspectiva: 1997. 56 Uma amostra dessas propostas, por vezes contraditórias, é oferecida pelo mosaico de citações a respeito de "barroco" introdução desse trabalho. Diante de tantos usos de "barroco", principalmente na América Latina, seria possível estabelecer uma espécie de tradição de usos latino-americanos do termo na proposição da autonomia cultural da região. Talvez os mais importantes usuários de "barroco" que fundamentam essa tradição sejam os cubanos Lezama Lima e Severo Sarduy. 57 Is there líterary history possib[e? Baltimore, The John Hopkins UP, 1993

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de "sistema literário"; para Coutinho, o caráter expressivo de "literatura" sobrepuja

qualquer definição sociológica; para Campos, a necessidade de experimentação sobrepõe-se

a qualquer outra definição de "literatura", seja posta em termos sociológicos seja

conceituada por um caráter expressivo. "Barroco" é objeto do mesmo dissenso. Candido

reaviva as tradicionais noções iluministas e românticas relativas ao termo e, se se mostra,

vez por outra, disposto a "rever em sentido favorável o espírito cultista", não leva a cabo tal

disposição. Coutinho, por sua vez, é o porta voz no Brasil da primeira onda de valorização

de "barroco". Essa valorização é feita por ele pelo repertório estilístico do New Criticism,

aclirnatada em termos expressivos. "Barroco", para Haroldo de Campos, é ponto

programático de ruptura estética.

1. 7 A circularidade ostensiva da especificação d e "barroco" c orno prova final do "início pronto"

No entanto, para sermos mais precisos, seria necessário dizer que, ainda que se

sustentem em diferentes modelos teóricos e historiográficos relativos à investigação

literária, Candido, Coutinho e Haroldo de Campos têm muito em comum. Mais

especificamente, o uso do pronome de primeira pessoa do plural, "nós", indica que o

conteúdo "Brasil" e a proposição da nacionalidade em literatura são decisivos nos três. É a

postulação da totalização "Brasil" que os move e, dependendo como essa totalização se

configura, sempre no entanto retroativa, "barroco" é previsto como resíduo ou é incluído.

O objetivo de Candido, Campos e Coutinho é o de construir uma narrativa a respeito

da especificidade da literatura brasileira, o que implica formular um maneira de apropriação

dos objetos letrados da colônia que sirva de prova histórica da especificidade proposta: a

apropriação da colônia é o teste da eficácia persuasiva da narrativa que se quer construir

porque pode provar a sua aplicação retroativa. Na verdade, esse é o objetivo de Candido; os

outros dois, descontentes com o modo de apropriação dos objetos coloniais e,

conseqüentemente, com a narrativa apresentada por Candido, esboçam narrativas

alternativas que prevêem outros modos de apropriação daqueles objetos coloniais. De

qualquer forma, os três se preocupam com a significação dos objetos provindos da colônia.

Candido, corno vimos, não exclui totalmente barroco porque isso significaria admitir um

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momento histórico, ou um conjunto de objetos, em que a narrativa de totalização nacional

que quer propor não operaria, uma vez que ela se baseia no critério de identificação de um

sistema sociológico como base de produção do que entende por "literatura". O lugar

residual proposto possibilita a construção da narrativa nacional amparada, de um lado, pelo

sistema sociológico referido, e, de outro, pela metáfora da "formação".

Ambos os polemistas de Candido vão se contrapor à Formação insistindo que o que

é proposto como resíduo seria o mais fundamental na especificação do que seja ou do que

se quer que seja a "literatura brasileira" e mesmo "Brasil". Uma narrativa que especifique

essa literatura não poderia prescindir, insistem ambos, de "barroco". Segundo eles, o modo

de apropriação de "barroco", a maneira de incluí-lo nessa narrativa, seria decisivo na

especificação dessa literatura. Através de "barroco", Afrânio Coutinho propõe, de um lado

a superação da situação colonial e a emancipação da "consciência", do "ser'', "brasileiro".

Haroldo de Campos, por sua vez, supera essa condição pela proposta do inicio pronto,

possível com a inclusão de "barroco", pelo elogio da margem e pela proposta de identidade

diferencial não-conclusa. Ambos, valem-se de "barroco", portanto, para a proposição de

uma identidade não-conforme, uma especificidade em contraposição a uma situação que se

quer contornar: a posição de colonizado ou a situação marginal de produtor literário. Para

que tais propostas sejam possíveis, as duas premissas de Candido são questionadas. Os

modelos de avaliação literária de Coutinho e Campos rechaçam tanto a idéia de sistema

quanto a metáfora formativa.

No lugar da "formação sistemática", eles propõem o "inicio pronto". O interessante

é que a proposta de especificidade da literatura brasileira por meio do "inicio pronto"

pressupõe uma outra proposta: a da especificidade do Brasil 58• O argumento final dos

polemistas de Candido é o de que "barroco" não deve ser tratado como resíduo porque

através dele seria possível, de alguma forma, especificar Brasil, quer pela proposta de seu

"espírito barroco" quer pela detecção de uma "congenialidade b arroca". C orno elemento

primordial dessa especificação, "barroco" não apenas é incluído na narrativa nacional como

dita os elementos constituidores dessa narrativa. Portanto, o modo escolhido de apropriação

58 Abel Barros Baptista debate longamente essa questão na primeira parte de seu A Formação do Nome (Campinas, Ed. Unicamp, 2003). A situação, entretanto, é diversa. Baptista encontra problema similar (a indistinção entre as propostas de especificidade da literatura brasileira e as de

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dos objetos coloniais ditos "barrocos" ao mesmo tempo reivindica, por assim dizer, uma

teoria do Brasil.

Talvez fosse possível mapear etapas sucessivas que dariam conta da transformação

das operações de inclusão do resíduo, isto é, a transformação da defesa do modo de

apropriação propício para a valorização desse resíduo em teoria do Brasil. No entanto, esse

procedimentos é mais complexo ou pelo menos não distinguível em termos de etapas

consecutivas. A defesa da inclusão de alguns objetos na narrativa da literatura nacional

amparada pela proposição de uma teoria do Brasil é construída de modo particularmente

interessante por Coutinho e Campos. Ostensivamente, os dois não operam limites entre os

dois aspectos defendidos. A brasilidade de "barroco", isto é, o traço brasileiro supostamente

identificável nos objetos designados pelo termo que justificaria a inclusão desses objetos na

narrativa nacional, é indistinta de um caráter "barroco" do Brasil: os fundamentos que

"barroco" teria dado à "nossa consciência", segundo Coutinho, ou a "congenialidade" de

"barroco", como quer Haroldo de Campos. Essa indistinção visa inviabilizar o desenho

teórico da Formação. Se esse desenho pode ser adequado na investigação da literatura

romântica brasileira, dizem ambos os polemistas embora com ressalvas, ele não pode ser

julgado adequado para a construção de uma narrativa nacional completa porque não

conseguiria perceber o suposto caráter "barroco" do Brasil. A indistinção que quer

inviabilizar o desenho da Formação dramatiza, portanto, como argumento final, uma

circularidade ostensiva: a aceitação de "barroco" viabiliza uma teoria "barroca" do Brasil (e

depende dela), que, por sua vez, viabiliza a aceitação de "barroco" (e depende dela). Tal

circularidade é uma espécie de decorrência lógica do início pronto e conseqüência da

proposição de um "nacional" mais antigo, identificável na colônia.

Melhor que dizer que as propostas dos polemistas de Candido sejam refutáveis

porque se assentam em uma argumentação circular, seria ressaltar que a verossimilhança

argumentativa de suas propostas alternativas à narrativa de Candido depende do uso

ostensivo de tal circularidade. Sem ela, não há argumento final contra o lugar residual

previsto para "barroco" pelo autor da Formação: se se parte do princípio do caráter

"barroco" do Brasil, deve-se aceitar "barroco"; se se aceita "barroco", a teoria do Brasil

especificidade do Brasil) quando tenta contornar o que chama de "significação brasileira de Machado de Assis".

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"barroco" deve ser mobilizada. Talvez a única moral da história que se possa depreender

desse jogo é que a apropriação dos objetos coloniais ditos "barrocos" numa narrativa da

nacionalidade deve levar em conta uma teoria do Brasil para que se viabilize: a colônia

nesse caso é proposta como lugar privilegiado para a composição de uma teoria

especificadora do Brasil. Evidentemente, Candido também necessita de uma teoria do

Brasil que nasce no século XIX. Porém, a colônia "barroca", quando proposta como "início

pronto" da nacionalidade, reivindica tal teoria de modo que a "significação brasileira de

'barroco"' seja possível.

1.8 A "significação brasileira de 'barroco"' nas exposições: a combinação da circularidade ostensiva com a metáfora formativa

Voltemos às nossas epígrafes. O objetivo das exposições é o de celebrar os 500 anos

do Brasil, exibindo objetos que dêem conta de realizar uma especificação do país. A

escolha desses objetos é, portanto, decisiva para que se cumpram os propósitos das

exposições. Os objetos escolhidos são aqueles que podem ser resumidos pelo termo

"barroco", como vimos, objeto último das exposições. O que as mostras devem constituir

primeiramente é o "interesse visual" desses objetos. Como também já vimos, as epígrafes

são amostras de como esse interesse é garantido pela associação entre "Brasil" e "barroco"

e é otimizado pelo jogo de referência e de criação de consenso.

Apenas com a análise das epígrafes não seria possível, no entanto, delimitar com

precisão os procedimentos argumentativos que disponíbilizam a associação

"Brasil/barroco". Porém, a análise das respostas à Formação, servindo como parâmetro

comparativo, pode nos ajudar a definír qual é base operatória desses procedimentos. Em

primeiro lugar, essa base é constituída também por uma circularidade ostensiva. A

diferença reside apenas no propósito do uso de tal circularidade: nos polemistas de Candido

é a última arma contra a ineficácia alegada do desenho da Formação arma essa que

propõe o "início pronto", e sua decorrência lógica circular, como alternativa à "formação

sistemática"; nas exposições, uma circularidade parecida é o que garante que "barroco" e

"Brasil" sejam livremente associados, produzindo o jogo de referência e de produção de

consenso a respeito do valor nacional e cultural genérico acerca de "barroco". Para as

exposições, como se pode notar nas epígrafes que abriram este capítulo, exibir "barroco"

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como elemento importante do Brasil prevê a postulação de um Brasil "barroco", que, por

sua vez, depende da exibição dos objetos propostos daquela forma. No registro discursivo

dos prefácios dos quais foram retiradas as epígrafes, que talvez seja o melbor exemplo da

tese de Macdonald (que defende que o museu estabelece uma negociação entre

conhecimento leigo e especializado), os dois elementos indistintos desse círculo são

sintetizados, segundo o trecho do ex -ministro da cultura, como símbolos turísticos do

Brasil.

Em segundo lugar, a idéia de "formação", a princípio, adversária da circularidade

referida, também é empregada. A proposição de um nacional mais antigo, nascido na

colônia, ressoa a proposta do "inicio pronto", uma vez que se dá na mesma chave circular

de indistinção entre "brasilidade de' barroco"' e "caráter' barroco' do Brasil". Talj ogo,

assim amparado, ao mesmo tempo, permite e reivindica uma teoria do Brasil através da

colônia ou, mais especificamente, a colônia enquanto lugar de celebração nacional.

Descrito dessa forma, o esquema geral a respeito do uso de "barroco" nas exposições

parece preterir Candido, uma vez que aquilo que é proposto como resíduo da fabricação da

narrativa nacional proposta pelo autor é escolhido como objeto primeiro da nacionalidade.

A princípio, portanto, o modelo da Formação de Candido parece estar albeio ao modo

oficial escolhido para celebrar as artes brasileiras nos 500 anos.

No entanto, a metáfora formativa cumpre um papel importante na constituição da

base operatória da "significação brasileira de 'barroco"' veiculada e vinculada às

exposições. Além de indicarem uma dupla e indistinta especificação de "barroco" e de

"Brasil", permitindo que os dois termos sejam associados com relativa liberdade, os trechos

extraídos dos prefácios dos catálogos empregam também o uso da metáfora da "formação".

"Barroco" é proposto como "uma das expressões mais marcantes da formação da

nacionalidade", como prova de que a "nação lubrida que se gestava [ ... ] já era

suficientemente madura", como "primeira expressão orgânica de uma identidade que

culminaria muito mais tarde na independência e na construção da nacionalidade" e,

finalmente, como ''the deepest roots o f Brazil' s national artistic identity".

Tomando a polêmica a respeito da não-inclusão de "barroco" no livro de Candido

como paradigma, é possível perceber que as exposições efetuam uma curiosa combinação

das propostas antagônicas acerca do valor nacional de "barroco". Ao mesmo tempo em que

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empregam a circularidade decorrente do "início pronto", valem-se ainda da idéia que essa

mesma circularidade visa combater. Segundo as mostras, o Brasil nasce pronto com

"barroco", uma vez que as obras rubricadas por tal termo possuem "brasilidade" e que o

"Brasil" possui um "caráter barroco". De forma não-contraditória, no entanto, o "início

pronto" indica um processo de formação de nacionalidade.

As exposições, assim, combinam simultaneamente dois modos de proposição do

nacional de modo a produzir, por meio da exibição de objetos propostos como "barrocos",

celebração e especificação nacional. Em suma, essa combinação constitui a base operatória

da "significação brasileira de 'barroco"' e é empregada como a premissa que produz tanto o

"interesse visual" de "barroco" quanto os "modos de ver" propostos para os objetos

rubricados pelo termo.

A verossimilhança das exposições, do "interesse visual'' de "barroco" e do "modo

de ver" escolhido para ele, é garantida, num primeiro plano, desde que a circularidade

referida seja ostensivamente aplicada de modo que a postulação dupla (a brasilidade de

"barroco" e o caráter "barroco" do Brasil) permaneça indistinta e que os dois elementos

propostos sejam infinítamente intercambiáveis: a brasilidade dos objetos deve ser

justificada por "Brasil barroco", e esse, por sua vez, deve justificar a brasilidade dos

objetos. Num segundo plano, essa mesma circularidade, decorrência lógica do "início

pronto", deve coabitar com a idéia de "formação", e os objetos "barrocos", já brasileiros,

devem indicar um processo formativo que gera o presente.

Evidentemente, assim como nas respostas à Formação, tais procedimentos

argumentativos podem ser refutados. A refutação pode se dar pela própria crítica da

circularidade e da combinação dela com uma idéia a princípio antagônica. É possível ser

feita também através do questionamento dos dois elementos propostos como indistintos,

demonstrando, por exemplo, a impertinência do rótulo "barroco" ou de seu interesse

heurístico. A crítica pode ser feita ainda por meio de provas históricas ou de novos modelos

teóricos de interpretação dos objetos coloniais (nessa perspectiva, erroneamente totalizados

pelo termo) que não se preocupam nem com "barroco" e nem com a proposição de uma

narrativa da formação nacional. No entanto, devemos considerar que o tipo de discurso que

garante "barroco" nas exposições não é aquele que visa estabelecer novos paradigmas de

crítica da arte ou da literatura. As exposições não têm o propósito de apresentar a "última

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palavra" a respeito de "barroco", ainda que textos de pesquisadores e de especialistas sejam

incluídos nos catálogos como provas que autorizam o "interesse visual" e o "modo de ver"

apresentados pelas mostras. O que as exposições e seus catálogos oferecem é mesmo uma

sedimentação, proposta como consensual, a respeito do assunto em torno do qual se

fundam; assunto que permita, nesse caso específico, uma celebração nacional.

A análise das respostas à Formação, além de ter nos explicitado o mecanismo de

argumentação circular - decorrência da postulação do "início pronto" do nacional na

colônia - e a coabitação dele com a metáfora formativa, também nos indica um repertório

compartilhado que é referido pela constituição do "interesse visual" de "barroco"59• A

propósito do caranguejo de Alpers, deduzimos que seu "interesse visual" consistiria na

comprovação visual de determinados lugares-comuns a respeito da natureza e da ciência.

Os polemistas de Candido lançam luz sobre o possível lugar comum comprovado pelo

"barroco" das exposições, ou, pelo menos, sobre os repertórios prestes a tornarem-se

tópicas compartilhadas: a colônia como lugar privilegiado para a construção de uma teoria

do Brasil, uma especificação temporal da tópica da "relevância das raízes". A escolha da

colônia como lugar privilegiado para a postulação de "Brasil" talvez explicaria inclusive a

escolha de "barroco" pelas comemorações dos 500 anos. Aqui novamente há uma tradução,

uma sedimentação: o lugar privilegiado para a formulação de uma teoria do Brasil é

apropriado e proposto consensualmente como lugar adequado para a celebração do Brasil.

A constatação da tradução do lugar decisivo da teoria para o lugar perfeito da

celebração permite que se construa um novo projeto de identidade nacional. É possível

notar que as quatro exposições participam ativamente da construção de uma imagem do

Brasil. Guilherme Simões Gomes Jr., ao propor uma narrativa da aceitação, progressiva

59 A constituição de um repertório compartilhado a respeito de "barroco", evidentemente, não se circunscreve à sedimentação dos textos de Candido, Campos e Coutinho. A bibliografia acerca de "barroco" é extensa, e parte dela já se encontra de tal forma disseminada que talvez permita a constituição de um reertório comum a respeito do termo, que já pode ser encontrado como adjetivo de uso quotidiano. Essa bibliografia sedimentada incluiria desde Wõlfflin e D'Ors, os primeiros a proporem a circulação do termo "barroco" seja como um estilo de arte ou uma constante, da história da arte ou do espírito humano, até os textos a respeito do que se chama hoje de "barroco brasileiro", "barroco mineiro", "barroco baiano", etc. Nessa última categoria, são fundamentais, por exemplo, os conhecidos textos dos modernistas a respeito das cidades históricas mineiras (por exemplo, "O Aleijadinho", de Mário de Andrade in Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, SP, Martins, !965), assim como os estudos de Lourival Gomes Machado, Germain Bazin, Affonso Á vila e Afrânio Coutinho, que publicou inúmeros textos a respeito de "barroco" além de sua resposta à Formação.

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mas dificil, de "barroco" nos circuitos intelectuais brasileiros dos séculos XIX e XX,

demonstra que as pessoas interessadas em fmjar grandes desdobramentos intelectuais de

projetos nacionais totalizantes desse período, tais como Araújo Porto Alegre, Mário de

Andrade e Antonio Candido, mantinham certa ojeriza com relação ao termo "barroco" e às

categorias analíticas decorrentes dele. Mesmo Mário de Andrade, apropriado pelos

catálogos como pioneiro na valorização de "barroco brasileiro", preferia referir

"Aleijadinho" como "expressionista" de modo a não usar o termo então pejorativo.

No entanto, hoje a circularidade ostensiva combinada à idéia de "formação" que

propõe a identificação de Brasil através de "barroco" e a colônia como lugar celebrativo da

nacionalidade demonstra que o termo não só permite como fundamenta projetos de

identidade nacional. Nesse novo projeto, o século XIX perde força com a entrada de

"barroco". O maior exemplo dessa readequação é a Mostra do Redescobrimento. A própria

cenografia da exposição já sugere a mudança desse projeto e do lugar que a colônia

ocuparia nele. Se a cenografia do módulo Arte Barroca foi o grande carro-chefe midiático

da exposição, com as imagens flutuando, ao som de batuques afro, em labirínticos mares de

rosas feitas por presidiários, a cenografia do módulo Arte do Século XIX consistia de uma

espécie de embuste neoclássico kitsch. A introdução do curador-geral da Mostra, Nelson

Aguilar, ao catálogo do módulo Arte Barroca explícita o que era apenas sugerido. O

curador aduz uma relação entre o prestígio contemporâneo de ''barroco" e o desprestígio do

XIX no cãnone atual das artes brasileiras. O interessante é que a valorização de "barroco" é

vinculada à própria aceitação consensual do "modernismo":

Com o choque cultural do modernismo, o barroco sai das profundezas onde o século XIX o havia relegado, sobretudo a partir do advento do neoclassicismo. O sintagma "barroco colonial" embutia uma idéia de atraso, de provincianismo, que o poder sucessivamente real, imperial e republicano do Rio de Janeiro fazia questão de confirmar (Redescobrimento, p. 32)

Esse novo desenho é confirmado de modo ainda mais contundente pela exposição

Brazil: Body and Sou!, que se propõe a apresentar um panorama significativo do que é

chamado pelo curador Edward Sullivan de "cultura visual brasileira". O panorama dessa

"cultura" sequer exibe obras do XIX e tem como núcleos "barroco" e o "modernismo".

No entanto, os termos genéricos desse novo projeto de identidade do Brasil através

de "barroco", que não se encontram circunscritos apenas á bolsa de valores das artes

brasileiras, é dado por Carlos Eduardo Moreira Ferreira. O presidente da FIESP, ao

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prefaciar o catálogo da exposição que a sua instituição patrocinou, valoriza "barroco"

fazendo uma espécie de moral da história que possa interessar exportadores. "Barroco", que

serve de antídoto à desfiguração de nacionalidades, teria mostrado como foi possível

manipular "materiais da terra", através da criativa e miscigenada mão-de-obra local, mesmo

manipulada pela Igreja e pela metrópole, construindo com eles uma "expressão marcante".

Talvez "barroco" indique uma possibilidade para agregar valor a produtos brasileiros, na

medida em que permite a construção de uma nova genuinidade, valorizada no mercado

global.

Em suma, todas essas associações feitas a partir da "significação brasileira de

'barroco"' que garante o "interesse visual" e a verossimilhança celebratória da exibição de

objetos rubricados pelo termo, são possíveis através da combinação da argumentação

circular referida com a metáfora formativa. Porém, não podemos avançar mais em nossa

investigação acerca do uso de "barroco" pelos catálogos sem atentar para casos específicos

do uso do termo nos textos desses catálogos. Da mesma forma, essa investigação não se

fará completa sem que se atente para o modelo de estruturação dessas publicações.

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2 Os catálogos e a ressonância de "barroco"

2.1 A ressonância de "barroco"

A circularidade ostensiva, que torna indistintos uma brasilidade de "barroco" e um

caráter "barroco" do Brasil, a combinação dessa circularidade com a idéia de "formação",

bem como a tradução do lugar privilegiado da teoria para o lugar ótimo de celebração,

descritos no capítulo anterior, uma vez que constituem lugares discursivos consensualmente

mobilizáveis, possibilitam que "barroco" seja usado, nas exposições cujos catálogos

analisamos, como moldura interpretativa de uma série de objetos históricos tendo em vista

a construção de um evento de celebração da nacionalidade. Esses procedimentos, que

constituem base operatória da "significação brasileira de 'barroco"' nas exposições,

pressupõem todos o que o que chamaremos de ressonância de "barroco".

A idéia de "ressonância" é derivada de Stephen Greenblatt. No artigo "Resonance

and Wonder"60, Greenblatt propõe examinar dois modelos particulares de produção de

interesse de obras de arte empregados por museus e exposições. O primeiro modelo agiria

produzindo interesse das obras expostas por "ressonância", isto é, pela explicitação de um

grande horizonte de referências (analógicas, históricas e contextuais) que as obras

sintetizariam. O segundo modelo, a exibição por "maravilhamento", se pautaria pela

produção de interesse a partir de características intrínsecas das obras, expostas de modo a

captar, pelos seus a tributos únicos de obra de arte, a atenção do visitante de museus. A

distinção desses dois modelos é posta em perspectiva de urna discussão de modos de

organização de exposições e museus. Grosso modo, na opinião de Greenblatt, deve-se

buscar "maravilhamento" do visitante da mostra que o conduza à "ressonância" dos objetos

exibidos. No nosso caso específico da exibição de "barroco", entretanto, não é possível

distinguir com clareza quais desses dois modelos estariam operando com mais força.

Talvez, para continuar utilizando os termos de Greenblatt, a apelação à ressonância pautaria

inclusive a produção de "maravilhamento".

De qualquer forma, Greenblatt, ao propor esses dois modelos de alguma forma

distintos, pacifica uma controvérsia crucial da História da Arte: o estatuto de seu objeto de

60 in Exhibiting Cultures, The poetics and politics o f museum display, op. cit., pp. 42-56

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estudo. Em Rethinking Art History: meditations on a coy sciencé1, Donald Preziosi repõe

essa questão como contradição primeira da história da disciplina que analisa. A História da

Arte, em particular, e a museografia, em geral (isto é, o conjunto de práticas discursivas

subsidiárias do museu, História da Arte incluída), postulariam um estatuto duplo e

contraditório de seu objeto: a obra de arte é proposta como objeto de caráter único e, ao

mesmo tempo, é tomada como tipo ou exemplar de uma classe. Essa postulação simultânea

indefiniria também o estatuto disciplinar da disciplina, uma vez que, se o caráter único

fosse unicamente admitido, não haveria prática discursiva regrada possível; se a idéia de

tipo e classe fosse o único pressuposto, entretanto, o termo "arte" não abrangeria um tipo de

objeto específico mas uma variedade morfológica de coisas distintas. Por isso, na

perspectiva de Preziosi, tratar-se-ia de um "coy science", uma ciência acanhada. A

distinção de um interesse museológíco produzido por "ressonância" e de um outro realizado

por "maravilhamento" seria subsidiária de uma postulação dupla e contraditória similar

àquela apontada por Preziosi, com a diferença de substituir o elemento classificatório

baseado na variação tipológíca por outro, de ordenação e de explicação por determinação

contextuaL A mesma indefmição do caráter único do objeto também se daria nesse caso, e a

"ressonância" e o "maravilhamento" seriam assim decididamente indistintos, tanto na

explicação especializada dos objetos quanto na exibição deles.

No entanto, com o objetivo apenas de descrever o uso da palvra "barroco" no nosso

corpus, usaremos o conceito de "ressonância" para assinalar que "barroco" engendra

repertórios abrangentes que podem ser mobilizados ou criados no seu uso discursivo­

museológíco. O termo ''barroco", apenas aparentemente designativo ou classificatório, tem

seu escopo de referência alargado quando é mobilizado no tipo de uso que descrevemos

aqui. Nesses usos, ''barroco" não engloba apenas objetos culturais históricos - como

etiqueta de um corpus- mas refere um panorama geral constituído para a interpretação

desses objetos. "Barroco", assim, não se refere apenas a esses objetos mas também ao

contexto proposto para eles, ampliado, como vimos no capítulo anterior, para a

identificação nacional e para a especificação de "mentalidades", de "brasilidades", de

situações históricas e transistóricas úteis para essas especificações. O termo ressoa,

portanto, tanto no que diz respeito ao que refere (não apenas os objetos designados por ele

61 New Haven e Londres, Yale UP, 1989

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mas os repertórios discursivos que se valem dele) quanto no que significa (dependendo

corno é mobilizado, pode servir como resumo de urna nacionalidade). Tanto a circularidade

ostensiva, decorrência lógica do "inicio pronto" que indefine "barroco" de "Brasil", quanto

a proposição da "formação barroca" do país produzem essa ressonância, urna vez que

ampliam as condições de aplicação de "barroco".

2.2 Apropriação museológica da ressonância e atendimento da tripla exigência museológica

A ressonância de "barroco", isto é, seu desprendimento relativo à designação de um

estilo artístico compartimentalizado e o alargamento de seu escopo de referência e

significação, subsídio dos procedimentos de viabilização referidos, é apropriado e mesmo

otimizado pelas exposições na fabricação de objetos culturalmente consumíveis e

oferecidos em um museu. Essa ressonância é mobilizada, portanto, na formatação de um

objeto museológico.

A produção de tal objeto, grosso modo, obedece a certas exigências de

verossimilhança do lugar que a realiza. Basicamente, são três exigências complementares

de verossimilhança que se fazem da exibição de um objeto no museu. A exibição de um

objeto museológico deve levar em conta fins pedagógicos, engendrar critérios de

especificação de historicidade e constituir interesse antropológico.

2.2.1 Exigência pedagógica

"Barroco", como objeto exibido no museu, deve primeiramente ter um fim

pedagógico explícito de modo a permitir o consumo público dos objetos que rubrica. A

exigência pedagógica na constituição de objetos museológicos é referida com freqüência,

ou pelo menos suposta, em grande parte da literatura a respeito de museus. A explicitação

mais contundente dessa exigência, todavia, é executada por Charles Samares Smith 62. Ao

propor um histórico dos museus na Inglaterra. Smith observa urna função básica dessa nova

instituição. Os museus, desde a sua fundação, tentariam oferecer, segundo Smith, urna

recontextualização dos objetos que se queria exibir. Especificamente, tratar-se-ia de urna

62 "Museums, Artefacts, and Meaníngs" ín Peter Vergo (org.), The New Museology, Londres, Reaktion Books, 1989, pp. 6-8

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recontextualização que possibilitasse o uso público - democraticamente de acordo com os

pressupostos modernos que animavam a criação dessa nova instituição - de objetos antes

pertencentes a coleções privadas e destinadas ao consumo de poucos. Contudo, essa

recontextualização que os museus tentariam oferecer deveria atentar para dois tipos de pré­

requisitos. O primeiro seria relativo à não-arbitrariedade da recontextualização oferecida,

que deveria, de alguma forma, ser justificada tendo em vista o consumo público que

permitiria. O segunda pré-requisito seria pedagógico: a exibição dos objetos pelos museu,

agora aberta a um público amplo, deveria, como observa Smith, oferecer algum tipo de

beneficio educacional aos visitantes.

Seria interessante notar que essas dois pré-requisitos, uma vez cumpridos, se

satisfazem mutuamente. Se o fim pedagógico da exposição for aparente, a

recontextualização proposta certamente não surgirá arbitrária, tendo em vista que o

consumo público dos objetos pode ser garantido pelo beneficio educacional que eles

poderiam efetuar. Assim, supõe-se que, uma vez admitidos no museu, os objetos exibidos

devem ensinar algo de modo a justificar sua exposição. Por isso, esses dois pré-requisitos

podem ser fundidos numa mesma exigência pedagógica.

Visitas a museus e a exposições são tomadas como atos de enriquecimento cultural,

através dos quais, admite-se, algum tipo de conhecimento possa ser absorvido. A

ressonância de "barroco", apropriada na formatação de objetos que permitam esse tipo de

beneficio educacional, é traduzida aqui como repertório cultural a ser aprendido pelos

visitantes das mostras. O que seja esse repertório será especificado no quinto capítulo deste

trabalho; por ora, resta dizer que os objetos exibidos, especificados por "barroco", são

formatados para serem consumidos como indicativos de um repertório cultural tido como

válido. Apresentados como parte de um mundo de referências culturais e históricas, esses

objetos, formatados de tal forma, mobilizam a ressonância de "barroco" para que sua

fruição seja possível e interessante em termos pedagógicos.

2.2.2 Exigência histórica

A ressonância referida permite que a exibição de "barroco" tenha então um fim

educacional, exigência que se faz comumente a um objeto museológico. Todavia, essa

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ressonância, no que tange a sua mobilização como repertório cultural aprendido com

"barroco" no museu, produz primordialmente um tipo de conhecimento acerca dos objetos

"barrocos" exibidos: um conhecimento histórico. Como vimos, "barroco" não se esgota

enquanto designação de um determinado corpus; mais do que isso, o termo supre esse

corpus com uma série de repertórios interpretativos que motivam esses objetos. Esses

repertórios, por sua vez, atribuem historicidade aos objetos, o que permite que eles sejam

apropriados, por exemplo, pelas narrativas de especificação do nacional que operam

retroativamente, referidas no capítulo anterior. Mas apropriada pelas exposições, essa

ressonância constitui um contexto, um passado "barroco" de onde provêm os objetos

"barrocos" exibidos.

Assim, o uso do termo "barroco", que assinala, portanto, tanto os objetos quanto os

âmbitos de onde eles proviriam, bem como os modos pelos quais ambos devem ser

interpretados, atribui historicidade para os objetos exibidos, uma historicidade significativa

e verossímil: significativa porque acumula sentido histórico nos objetos, o que coincide

com o que se supõe aprender com sua exposição no museu; verossímil porque indica uma

especificidade histórica compreensível à medida que produz uma imagem consumível do

que seja o passado de onde esses objetos seriam selecionados.

Trata-se, portanto, de uma historicidade consumível, de uma passado museológico

sobreposto ao presente da exposição. Esse passado assim proposto, possibilitado pela

mobilização da ressonância de "barroco", indica, porém, ao mesmo tempo, uma alteridade

histórica e a desfaz, uma vez que pode tornar explícita, como veremos mais a frente, a ação

do presente projetada no passado. O díscurso que preside o uso comemorativo de "barroco"

é aquele que, como vimos no capítulo anterior, alega detectar no passado "barroco"

presumído traços que especificam o presente da nação. Sobrepondo, então, um passado no

presente, isto é, produzindo uma historicidade artificiosa e consumível, as exposições,

simultaneamente, justapõem esse passado ao presente, servindo como caso exemplar do

que afirma enfaticamente Donald Preziosi a respeito desse jogo de produção histórica no

museu:

Museums do not simply or passevely reveal or 'refer' to the past; rather they perform the basic historical gesture o f separating out of the present a certain specific 'past' so as to collect and recompose (to re-member) íts displaced and dismembered relics as elements in a genealogy o f and for the present. The function o f this museological past sited within the space o f the present is to signal alterity or otherness; to distinguish

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from the present an Other which can be reformatted so as to be legible in some plausible fashion as generationg or producing the present. What is superimposed within the space ofthe present is imaginatively juxtaposed to it as its prologue63

Mais a frente, Preziosi conclui que

the present of the museum (within the parameters of which is also positioned our identity) may be staged as the inevitable and logical outcome of a particular past (that is our heritage and origigns), thereby extending identity and cultural patrimony back ínto a historical or mythological past, which is thereby recuparated, without appearing to Jose its mystery"4

Antes de denunciar o anacronismo evidente e as possíveis manipulações ideológicas

em tal associação temporal, cumpre dizer que a mobilização da ressonãncia sedimentada

relativa ao uso do termo "barroco" permite que ele agora designe também objetos

museológicos, atentando para as exigências de atribuição de historicidade e de constituição

de um fim pedagógico que supõe de um objeto no museu. Os argumentos específicos que

atentam para essas exigências serão analisados nos próximos capítulos. No terceiro

capítulo, especificamente, trataremos dos argumentos que indicam a relevãncia de um

passado "barroco" no presente; no capítulo seguinte, focalizaremos como se especifica o

ãmbito histórico de onde proviria "barroco".

2.2.3 Exigência antropológica

Mas a ressonãncia referida, uma vez apropriada pelas exposições na formatação de

um "barroco" no museu, permite ainda que, de modo complementar, se atente para uma

terceira exigência, além da pedagógica e histórica: o interesse antropológico que deve

engendrar um objeto exposto no museu.

No site do ICOM, International Conncil of Museums65, órgão internacional da

UNESCO responsável pela regulamentação de políticas museológicas internacionais, é

possível ter acesso ao desenvolvimento das definições do que seja "museu" nos estatutos da

instituição. A mudança mais interessante a propósito de uma exigência antropológica do

objeto museológico se deu entre o estatuto de 1974 e o de 1989. Em 1974, o ICOM

precrev1a que

63 "Art of Art History" inArt of Art History, Donald Preziosi (ed.); Oxford, New York: Oxford UP, 1998; p. 511 64 idem, ibidem.

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a museum is a non-profit making, permanent institution in lhe service o f lhe society and its development, and open to lhe public, which acquires, conserves, researches, communicates, and exhibits, for purposes of study, education and enjoyment, material evidence o f man and his environment"66 [grifo nosso J

Em 1989, a definição praticamente não sofreu alteração, exceto a substituição de "man" por

"people":

A museum is a non-profit making, permanent institution in the service of society and its development, and open to the public which acquires, conserves, researches, communicates and exhibits, for purposes of study, education and enjoyment, material evidence ofpeople and their environment."67(grifo nosso].

A substituição de apenas essa palavra, porém, indica a admissão de uma virada

antropológica evidente no papel dos museus. Ao invés de exibir o "homem", o museu,

segundo a sua definição oficial, deve exibir provas materiais de "povos" e de seu ambiente.

Assim, segundo essa definição, todo museu oficialmente é etnográfico. O modo como

diversos "povos" do mundo são exibidos é objeto de inúmeras controvérsias68• Marlin

Prõsler, ex-pesquisador do Museu Nacional do Sri Lanka, por exemplo, analisa como

objetos ritualísticos de tribos locais são exibidos e interpretados no museu através de

categorias ocidentais, tais como "psicoterapia", "folclore", "teatro" e "arte"69• Através

desse exemplo, Prõsler propõe que objetos culturais díspares são formatados tendo em vista

seu consumo g loba!, o que equipararia e traduziria culturas di versas em um vocabulário

internacional. A controvérsia dessa tradução é a predominância do vocabulário do mundo

rico e desenvolvido que pode tornar compreensível, em termos de verossimilhança

exibicional, qualquer outra cultura e, a o mesmo tempo, servir como p arãmetro único de

legibilidade, constituindo uma espécie de imperialismo museológico. A produção da

diferença cultural na formatação de objetos museológicos, portanto, pode ser análoga à

produção de uma diferença histórica, pois, ao mesmo tempo, opera, tal como na

constituição de uma historicidade verossímil, uma alteridade e a desfaz, pois é posta sempre

no vocabulário reinante, seja a do mundo desenvolvido, seja o do presente.

65 Website http://icom.museum!hist def eng.html, visitado em julho de 2003. 66 idem. 67 idem. 68 cf., por exemplo, a coletânea Exhibition Cultures, op. cit., dedicada exclusivamente a essa questão 69 "Museums and Globalization" in Theorizing Museums, op. cit., pp. 21-43

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A análise de como os objetos de rituais tribais são exibidos no museu é

acompanhada, no texto de Prõsler, por uma especulação acerca da evolução histórica da

idéia de "museu". Do theatrum mundi quinhentista ao museu nacional do XIX, as

diferentes concepções de "museu", simultâneas à invenção de técnicas de ordenação de

objetos diversos, teria servido ao longo do tempo para diferentes fins. De um modo geral, o

"museu", historicamente, seria um dos lugares primordiais para a produção das noções de

"mundo", de "nação" e de "identidade". O "museu" e a exposição museológica,

recentíssimas em suas acepções modernas, funcionariam como coroamento da inclusão

global de tempos e de culturas, disponibilizando-os como imagens e idéias em circulação

no mundo, como assinala a definição oficial do que seja um museu.

Portanto, é preciso ter em conta que "barroco", além de ser formatado para fins

pedagógicos e a de constituição de historicidade, também é condicionado, pelas exposições,

como evidência material de um modo de vida, preservada e posta em circulação num

sistema global de identificação antropológica do qual museus são peças-chaves.

A ressonância de "barroco", quando traduzida na criação de uma historicidade

consumível, opera dupla especificação. Primeiro, estabelece uma causalidade dos objetos

exibidos, denotando um contexto que os teria produzido. Além disso, a mobilização de

"barroco" transforma os objetos exibidos em evidência da nacionalidade ou do povo que os

teria produzido70•

Como já se pode ver em Campos e em Coutinho, "barroco" pode especificar Brasil

e propor uma singularidade que, mesmo constatada em um periodo histórico específico,

unifica, transistoricamente, uma narrativa nacional. Procedimento similar é mobilizado

quando "barroco" é formatado em objeto museológico. No entanto, nas exposições, ele é

utilizado tendo em vista não apenas a proposição de uma narrativa nacional mas a exibição

fisica de objetos exemplares da especificação proposta. "Barroco", ao fundamentar essa

exposição, tem sua ressonância traduzida e fisicamente comprovada como especificação de

70 Em termos gerais, o campo discursivo chamado de "museografia", que abrengeria todos os gêneros de escrita relativos à escrita dos objetos expostos no museu, da História da Arte ao catálogo de exposição, operaria, enquanto produção de significado, segundo Preziosi, uma especificação dupla do objeto de arte: "Art objects o f ali kinds carne to have the status ofhistorical documents in the dual sense that (I) each was presumed to provide significant, often unique and, on occasion, profoundly revealing evidence for the character of an age, nation, person, or people; and that (2)

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um modo de vida, documentado pelos objetos exibidos. Esse interesse antropológico que

corrobora "barroco" é referido pelos quatro catálogos analisados, mas mais fortemente é

proposto pelo catálogo Brazil: Body and Sou!, como veremos mais a frente.

2.3 Produção e acomodação da ressonãncia nos catálogos

"Barroco" ressoa, portanto; quando apropriado pelas exposições, ressoa repertórios

de enriquecimento cultural, critérios de atribuição de historicidade e de especificação de

interesse antropológico. A apropriação e a proposição dessa ressonãncia será

pormenorizadamente descrita a partir da análise de cada um dos textos que fazem parte dos

catálogos. Antes, porém, de desenvolver essa análise detalhada, gostariamos de propor uma

hipótese a respeito da disposição textual e da organização discursiva dos quatro catálogos.

A apresentação da apropriação da ressonãncia de "barroco" que acabamos de fazer, apesar

de esquemática, é suficiente para que possamos formular essa hipótese. Supomos aqui que

essa ressonãncia, que permite a maior abrangência da aplicação da palavra ''barroco", não é

apenas referida pelos catálogos. Mais do que isso, essas publicações parecem corporificar

essa ressonãncia, operando de maneira mitomórfica, isto é, assumindo para si a forma

daquilo que descrevem. É possível verificar determinadas características nos catálogos -

caráter de coletãnea, dispersão dos textos, destacamento com relação aos objetos expostos,

tipologia evidente e unidade performática - que constituem e acomodam, em termos de

organização editorial, a ressonãncia de "barroco" que referem. Descreveremos essas

características a seguir.

Os catálogos de que tratamos aqui funcionam, numa relação específica

estrutura/uso, como certificado da ressonãncia de "barroco", registro duradouro da sua

exposição temporária. A idéia de que o catálogo de exposição pode funcionar como

certificado, mais especificamente como certificado de batismo, é proposto por Cristiana

Freire.

Em seu Poéticas do Processo71, Freire investiga como a chamada "arte conceitual"

é admitida no espaço museológico e, ao refletir sobre essa admissão, prevê um papel

their appearance was the result product of a historical milieu, however narrowly or broadly framed." ("Art History: Making the Visible Legible", in Art of Art History, op. cit. p. 13) " SP, iluminuras, 1999

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particular do catálogo de exposição. Um paradoxo fundamental é constatado quando tal

tipo de arte é inserida no museu. De um lado, aduz Freire, o propósito primordial desse tipo

de produção artística seria o questionamento do lugar museológico, ironizado como lugar

autorizativo que definiria, em termos diversos (técnicos, criticos, imanentes,

transcendentes, etc.), o que seja "arte"; de outro, dadas as suas particularidades, porém, esse

tipo de arte só pode ser definido assim quando exposto no museu: o lugar museológico,

assim, ao mesmo tempo em que é questionado, é o que autoriza essa produção enquanto

arte, operando uma forma de "batismo". Nesse processo, o catálogo funcionaria como

procedimento complementar para dar relevância e estatuto de arte a essas produções, pois

serviria de certificado do batismo executado pela exposição, além de confirmação, escrita e

duradoura, do estatuto artístico desses objetos, garantido pela sua exposição no museu.

Evidentemente, por mais que as exposições que analisamos se esforcem em exibir os

objetos ditos "barrocos" por meio de procedimentos que lembram exposições de arte

contemporânea, a arte chamada "conceitual" e aquela proposta como "barroca", são,

possivelmente, incomparáveis. Não obstante, é possível anotar uma função similar dos

catálogos de exposição relativos a ambos tipos de objetos. Nos dois casos, os catálogos

funcionam como documento comprobatório da exibição: no primeiro caso, documento que

atesta o estatuto de objeto artístico; no segundo, atestado da ressonância proposta.

Os catálogos que constituem nosso corpus complementam as exposições, eventos

visuais e temporários, oferecendo uma contrapartida discursiva e duradoura do arranjo de

objetos exibidos. A ressonância de "barroco" é comprovada por eles de duas formas: eles

são a prova discursiva dela e, ao mesmo tempo, por si sós, constituem essa ressonância.

Isso pode ser comprovado, primeiramente, pela referência à primeira característica

verificada neles. Os catálogos de exposição estudados aqui afastam-se de uma imagem

mais convencional ou tradicional do que sejam catálogos de exposição, catálogos

completos de acervo ou mesmo catalogues raisonnés, na medida em que não lembram

essas publicações de caráter eminentemente técnico, que prevêem leitores especializados e

onde se registram as informações mínimas e necessárias, tendo em vista aquele caráter e

esse conjunto de interlocutores, a respeito das obras (nome da obra, nome do artista, técnica

empregada, ano da produção, acervo a que pertence a obra e, eventualmente, algum estudo

especializado a respeito dela). Antes de mais nada, os catálogos analisados aqui são

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coletâneas de textos, em edições luxuosas, a respeito de "barroco" ou, ma1s

especificamente, do que se convencionou chamar de "barroco brasileiro". Os textos que

compõem essas coletâneas fundamentam-se em graus diferentes de especialização

discursiva. No entanto, a grande maioria deles não pressupõe, de antemão, urna instrução

muito especializada de seus leitores relativa, por exemplo, aos jargões típicos da História da

Arte, apesar de serem esses os jargões mais comumente empregados. Os catálogos dessa

forma serviriam como obras de iniciação ao estudo de "barroco" ou de "barroco brasileiro".

À primeira vista, os catálogos lembram as publicações, comuns no circuito de publicações

acadêmicas em língua inglesa, chamadas de readers. Poderiam ser republicados, sem

muítas modificações sob o título de Brazilian Baroque: a reader. Assim como os readers,

os catálogos se oferecem como urna representativa amostragem das produções intelectuais

a respeito de um determinado assunto. A falta de unidade conceitual ou mesmo

programática dos conjuntos de textos apresentados pelos catálogos r e força a semelhança

com os readers, já que a intenção desse tipo de publicação, menos que propor um consenso

relativamente a o tema a que se dedica, é apresentar palavras-chaves e pontos de partida

para o estudo de determinado assunto, cobrindo diversas perspectivas teóricas e analíticas.

Esse caráter de coletânea refere e comprova a ressonância de "barroco", pois organiza, mais

ou menos livremente, textos relativos a sua exposição, ressaltando menos urna perspectiva

particular que pode ser aplicada aos objetos expostos do que inúmeras abordagens,

significações e repertórios motivados ou postos em relevo por esses objetos.

Essa ressonância de "barroco", assumida então no próprio modo pelo qual os

catálogos organizam e apresentam os textos de que se compõem, é ainda corroborada por

uma outra característica, de certa forma complementar ao caráter de coletânea referido,

apresentada por essas publicações. Chamar os catálogos de coletâneas não seria,

provavelmente, suficiente para caracterizá-los, urna vez que os textos veiculados

apresentam um grau de dispersão, relativo aos assuntos de que tratam, talvez não

admissível mesmo para uma coletânea. Para se ter noção dessa dispersão, cumpre dizer que,

muítas vezes, no conjunto de textos de um mesmo catálogo, sequer há coincidência com

relação ao significado da palavra "barroco". De um modo geral, o termo, que descreve o

tema geral das exposições, é tomado como etiqueta genérica para toda a produção artística

da colônia brasileira. No entanto, em muitos textos dos catálogos, "barroco" descreveria

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apenas um dos estilos artísticos dessa produção, que é totalizada a partir do trio

"maneirismo"/"barroco"/"rococó". É certo que o formato de coletãnea suportaria tal

dispersão conceitual; no entanto, nesse caso, a ausência de unanimidade acerca do que

abrangeria "barroco" inviabilizaria as próprias exposições, uma vez que prometeriam a

exibição de "barroco", exibindo "maneirismo" ou "rococó". Além dessa falta de

coincidência com relação ao que descreve "barroco", a dispersão dos textos dos catálogos

ainda é verificada nos casos em que determinados artigos partem de temas muito

indiretamente relacionados com o tema das mostras (é o caso, por exemplo, dos textos mais

informativos, que veiculam informações diversas a respeito de assuntos variados, como a

"mineração no Brasil").

Ressalta-se ainda que há um certo destacamento dos textos dos catálogos com

relação às obras expostas, o que salienta ainda mais o caráter de coletãnea dispersa bem

como a ressonãncia de "barroco", tomando mesmo dispensável a referência aos objetos

específicos apresentados nas exposições. Há, por exemplo, textos que não tratam de

nenhuma obra (é o caso dos artigos que propõem uma espécie de comentário geral a

respeito de "barroco brasileiro" e dos que, de um modo geral, argumentam uma

"brasilidade" das produções catalogadas pela rubrica), bem como há textos que tratam de

obras que não fazem parte da exposição (por exemplo, nos artigos que tratam de um estilo

artístico ou arquitetônico específico, existem constantes referências a o bras consideradas

canônicas e fundamentais para a compreensão desse estilo, sem que, contudo, essas obras

referidas façam parte da mostra. O mesmo ocorre nos artigos mais monográficos a respeito

de determinados artistas, de escolas de produção e de outros conjuntos de obras,

organizados técnica, temática ou formalmente). Por fim, há mesmo textos que nem sequer

referem-se a "barroco" ou que tratam de objetos mesmo impossíveis de ser expostos (como

os textos sobre "literatura barroca" ou sobre "festa barroca", que só por indicias admitem

exposição).

Entretanto, a despeito dessa impressão inicial de independência desses volumes com

relação às exposições e às obras expostas, os catálogos não são apenas coletãneas. Além

das reproduções das obras expostas que constam dos volumes, há, neles, um outro elemento

que realiza, performaticamente, a especificidade dos catálogos. Toda ressonãncia produzida

pelo caráter de coletãnea dispersa e pelo aparente destacamento é acomodada nos

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catálogos. Essa acomodação é verificada na tipologia evidente dos textos agrupados pelos

catálogos. Há, notadamente, três tipos de textos com caracteristicas e funções particulares.

Os dois primeiros tipos, necessariamente, referem-se às exposições, coletando, tendo em

vista a ilustração discursiva das mostras, toda ressonância distribuída à profusão.

Antecedendo os textos agrupados segundo o caráter de coletânea referido, há, nos quatro

catálogos, prefácios e introduções que constituem referência às exposições e que, ao

perfazer essa referência, redefinem o sentido dos textos que surgem em sua seqüência.

Os prefácios, de caráter mais epidítico, celebram a exposição, defendendo a

pertinência do evento e das obras rubricadas por "barroco". As introduções, mais analíticas

e acabadas em termos conceituais, expõem as diretivas mais básicas da exposição. A

explicitação dos projetos curatoriais realizada pelas introduções constitui molduras

interpretativas que enquadram as obras expostas e particularizam as exposições,

diferenciando-as entre si. Ambos, prefácios e introduções, circunscrevem os outros textos

que constam nos catálogos, aqueles que poderiam ser livremente agrupados em forma de

coletânea, que chamaremos de "estudos", tendo em vista o fornecimento de categorias de

legitimidade e de legibilidade para os objetos da exposição, constituindo o subsídio

ressonante de "barroco".

2.4 Descrição dos catálogos

Demonstrando como se produz a ressonância que referimos e como se verificam as

características dos catálogos indicadas, apresentamos a seguir descrições gerais de cada um

dos catálogos analisados.

2.4.1 Universo Mágico do Barroco Brasileiro

Apesar de os índices do volume não indicarem a divisão

prefácio/introdução/estudos, o catálogo da exposição Universo Mágico do Barroco

Brasileiro é o que se vale dessa estruturação de modo mais simples: um prefácio do

representante da entidade que patrocinou e sediou a exposição, Carlos Eduardo Moreira,

então presidente da FIESP; uma introdução do curador da mostra, Emanuel Araújo; e mais

outros 20 textos. De todos os catálogos, esse também é o que reúne esses textos de modo

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mais parecido com o que chamamos de coletânea dispersa. Essa impressão é constituída,

primeiramente, pelo caráter não inédito da maioria dos textos. O catálogo faz um apanhado

geral de artigos já publicados a respeito de "barroco brasileiro" em revistas especializadas,

nacionais e estrangeiras, e em outros catálogos de exposição. Há desde a já célebre

biografia de Aleijadinho escrita por Lúcio Costa e publicada em 1978 até textos de

colaboradores da revista Barroco, comandada por Affonso Ávila. Assim, é o catálogo que

apresenta a maior variedade de textos, tanto com relação ao grau de especialização

discursiva ( há artigos que usam vocabulário bem específico, como aqueles em que se

discute a atribuição de autoria de algumas obras tendo em vista a elaboração de um

catalogue raisonné de um determinado artista; ao mesmo tempo, há outros textos mais

genéricos, como "O Despertar da Terra", de Orlandino Seitas Fernandes, uma espécie de

narrativa histórica romanceada a respeito da colonização e do ciclo do ouro em Minas

Gerais), quanto com relação aos temas variados nos quais os textos se debruçam.

Os textos encontram-se assim distribuídos:

L a apresentação, constituída pelo texto do presidente da FIESP;

2. o texto do curador;

3. uma divisão, não nomeada no volume, que contempla os textos "O despertar da Terra",

de Orlandino Seitas Fernandes (que apresenta uma espécie de narrativa história que

contextualizaria a exposição e suas objetos); "Tropicalidade de Barroco", de Riccardo

Averini (em que se defende uma particularidade extra-européia, mais especificamente

tropical, na constituição do que se chama de "estilo barroco"); "Barroco: a arte da

fantasià', de Nicolau Sevcenko (em que se apresentam caracteristicas históricas e

culturais a respeito de "barroco" e em que se defende que "barroco" constitui elemento

fundamental de uma "alma brasileira");

4. a divisão chamada de "Arquitetura", que reúne os textos: "Barroco no Brasil", de

Augusto C. da Silva Telles (uma análise da bibliografia a respeito da produção

arquitetônica do Brasil colonial); "A arquitetura e as artes plásticas no século XVIIf',

de Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira (em que se apresentam uma descrição e uma

análise da produção arquitetônica e plástica do século XVIII no Brasil) e "Ornamentos

- Encantos do Barroco no Brasil", de Wolfagang Pfeiffer (em que se analisa a produção

de ornamentos para os templos durante o período colonial);

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5. a divisão chamada de "Escultura", que se compõe dos artigos: "Escultura colonial do

Brasil", de dom Clemente Maria da Silva-Nigra (em que se registram obras e artistas

importantes e em que se dá particular atenção à produção de imagens sacras);

"Escultura no Brasil colonial", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira (em que se

analisam os estilos da produção escultórica); "Os escultores baianos Manoel Inácio da

Costa e Francisco das Chagas, 'O Cabra'", de Jacques Résimont (em que se discute a

atribuição de obras a esses artistas e em que se analisam os estilos pessoais deles);

"Antonio Francisco Lisboa, 'O Aleijadinho"', de Lúcio Costa (uma apresentação de um

perfil biográfico do artista); "A madeira como arte e fato", de Anna Maria Fausto

Monteiro de Carvalho, (em que analisa a produção do artista conhecido como Mestre

Valentim);

6. a divisão "Pintura", constituída pelos textos: "Notícia sobre a pintura religiosa

monumental no Brasil", de Clarival do Prado Valladares (em que se analisa o que o

autor do texto denomina de "pintura monumental"); "A corporação e as artes plásticas:

o pintor, de artesão a artista", de Jaelson Britan Trindade (em que se teoriza a respeito

do estatuto do artista na colônia);

7. as divisões "A Prata" e "O Ouro", com um só texto, "Notas sobre a prata e a mineração

no Brasil", de João Marino, inserido após a primeira chamada, que apresenta

informações a respeito da mineração na colônia;

8. a divisão "mobiliário", sem texto algum;

9. a divisão chamada de "Continuidade do Barroco", constituída pelos textos: "As tábuas

votivas no ciclo do ouro", de Márcia de Moura Castro (em que se analisa a produção de

ex-votos em Minas Gerais, no século XVIII); "A música barroca no Brasil", de Régis

Duprat (a respeito da m usica colonial brasileira);" O Barroco e a literatura", de Leo

Gilson Ribeiro (defesa do caráter "barroco" das produções de Gregório de Mattos e de

Padre Vieira); "Entre a vida comum e a arte: a festa barroca", de Maria Lúcia Montes

(que trata de uma "festa barroca");

10. por último, uma parte que, apesar de também não ser nomeada, chamamos de

"Referências", constituída por uma cronologia sobre "barroco" no Brasil, "Cronologia

do Barroco no Brasil", e por umas eJeção de referências bibliográficas a respeito do

tema da mostra, "Barroco Brasileiro: uma bibliografia seletiva".

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A partir dessas divisões, poderíamos, a princípio, supor algum tipo de relação entre

os textos. Eles poderiam, por exemplo, ser uma aplicação de uma tese geral ou de um

conjunto comum de categorias a grupos específicos de objetos contemplados na exposição,

organizados segundo os tipos referidos pelas divisões (obras arquitetônicas, esculturas,

pinturas, etc.). No entanto, não é isso o que se verifica efetivamente depois da leitura atenta

dos textos. Possivelmente devido ao fato de serem textos não escritos especialmente para o

catálogo da exposição e, portanto, de terem sido organizados dentro dessa divisões a

posteriori, os artigos não constituem sequer uma unidade aparente. Não há tampouco

coincidência exata dos objetos referidos pelos artigos de cada uma das divisões; por

exemplo, na seção denominada "arquitetura", há artigos que não tratam apenas de obras

arquitetônicas.

A disposição das fotos das obras na publicação também sugere algo interessante a

respeito da constituição do catálogo. Muitas vezes, surgem como aspecto ornamental e

ilustrativo do volume, como é o caso exemplar das fotografias presentes nas páginas

iniciais que servem para enfeitar as listas que enumeram os integrantes da equipe técnica da

exposição, as instituições que emprestaram as obras e os colaboradores. De um modo geral,

as fotos não estão localizadas em uma parte específica do volume, como se suporia em um

catálogo; elas se encontram distribuidas ao longo de toda a publicação, às vezes

organizadas segundo as divisões do catálogo, trazendo objetos representativos de cada uma

dessas divisões. Nota-se que a opção do organizador do volume foi a de justamente

misturar textos e imagens, não criando divisões específicas para cada um deles. Há, assim,

uma interferência maior entre textos, ou seja, a produção intelectual a respeito dos objetos,

e os próprios objetos por esses textos constituidos. Essa disposição cria o efeito de que as

obras da exposição, reproduzidas pelas fotos, servem para ilustrar e para exemplificar os

textos dos catálogo, e não o inverso, ainda que haja algumas dessas divisões que são

constituídas apenas por imagens, e não por textos.

2.4.2 Brasil Barroco, entre céu e terra

A organização do volume do catálogo Brasil Barroco também lembra um coletânea

de artigos a respeito de um tema determinado, assim como o catálogo Universo Mágico. No

entanto, essa organização em formato de coletânea tem suas particularidades.

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Primeiramente, devemos considerar o aspecto luxuoso da edição. A exposição foi

realizada na França, mais especificamente no Petit Palais, em Paris, sob a idealização da

União Latina e apoio do Governo do Brasil. Apesar de a exposição ter sido sediada no

exterior e haver uma edição francesa, houve também uma edição brasileira do catálogo.

Essa edição brasileira traz dois volumes dentro de uma caixa: o primeiro é a edição

francesa do catálogo, com textos em francês e fotos com as reproduções das obras; o

segundo, menor, contém a penas os mesmo textos do primeiro v o lume traduzidos para o

português. Seria interessante notar que essa edição do catálogo vendida no Brasil insinua

que ele se insira na tradição de textos sobre o Brasil ou sobre "cultura brasileira" veiculados

no exterior e, depois, divulgados aqui. Poder-se-ia especular um pouco sobre isso,

acentuando a tópica de autorizar discursos sobre o país a partir do exterior.

A organização editorial dos volumes também tem suas particularidades. Ao

contrário do catálogo Universo Mágico, no qual as reproduções das obras se encontram

distribuídas ao longo dos textos, em Brasil Barroco elas ocupam um lugar próprio,

separadas dos artigos. Nota-se também que as divisões da exposição não coincidem com as

divisões do volume. O catálogo se divide nas seguíntes partes: prefácios, introduções,

estudos, imagens e legendas, notas sobre as obras, cronologia e bibliografia. Dentro da

seção "imagens e legendas", há algumas subdivisões que indicam quais seriam os

compartimentos visuais da exposição: "O céu", "A terra materna", "berço da eternidade",

"morte e ressurreição", "a litania dos santos", "a chama viva", "oratórios", "esplendor da

madeira e do ouro", "da natureza e dos homens", "fachadas", "à face do céu",

"documentos", "a prata", "o marfim e o ouro". No entanto, também há, como dissemos,

"notas sobre as obras", que comentam particularmente cada grupo de obras. De qualquer

forma, não há, entre os artigos, ou "estudos", e obras, relações diretas de ilustração e

comentário, como havia no Universo Mágico, dada a disposição das fotos das obras

expostas daquele volume.

Há também outras peculiaridades em relação à forma de combínar a estrutura básica

"prefácios/introdução/estudos". Primeiramente, não há propriamente a figura do curador ou

um texto do curador que concatene conceitualmente todos os textos apresentados. No

entanto, há três introduções que dotam de certa unidade, ainda que heterogênea, os artigos

constantes do catálogo, como veremos mais à frente. Os autores da introdução -

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principalmente Edouard Pommier, que assina a maioria das notas sobre as obras - parecem

ter algum papel mais decisivo na organização da exposição e na arquitetura conceitual dela,

apesar de não serem creditados como "curadores".

Outra particularidade é a interlocução mais precisamente definida pelo catálogo,

apesar de não ser feita, muitas vezes, de modo explícito. Anotamos, quando tratamos do

formato de coletânea assumido pelos catálogos, que essas publicações preveriam um leitor

um pouco indistinto, sem formação específica, que gostasse de se aprofundar a respeito de

"barroco brasileiro". Nos prefácios e nas introduções de Brasil Barroco, a previsão de um

leitor é algo mais afunilado, não pelo grau de especialização proposto para ele, mas pela

distância efetiva que esse leitor suposto estaria de "Brasil" e de "barroco".

Isso, provavelmente, explique o destacamento maior, relativamente ao catálogo

Universo Mágico, entre textos e obras. Como se trata de um leitor, a princípio, pouco

familiarizado com os objetos expostos, faz-se necessário apresentar estudos mais gerais e,

principalmente, mais capazes de construírem contextualizações responsáveis por dotar de

maior significação as o bras. Porém, esse destacamento também poderia ser creditado a o

fato de h a ver uma parte exclusiva do v o lume em que se faz comentários a respeito das

obras particulares, o que permite que os "estudos" sejam mais gerais e abrangentes, sem

terem que focalizar, comentar ou mesmo ilustrar objetos específicos.

Outro fator condicionante do caráter gera! dos textos do catálogo, principalmente

com relação aos prefácios, é o seu tom oficial. Devemos lembrar que se trata de uma

exposição organizada também pelo Governo Brasileiro, mais precisamente, pelo Ministério

das Relações Exteriores. Esse caráter oficial é constituído primeiramente pelos nove

prefácios de autoridades brasileiras e francesas que abrem o volume. Esses prefácios

acabam por servir de moldura para tudo o que se segue, montando uma visão autorizada

sobre o que seja "barroco brasileiro" e da importância disso na constituição de "Brasil".

Mas mesmo que esses dois fatores condicionantes, interlocução estrangeira e tom

oficial, sejam de fato condicionantes também do restante dos textos, ainda é preciso anotar

algo a respeito da relação entre eles. Para tanto, reportaremo-nos às próprias seções do

catálogo. Depois da lista de patrocinadores, da comissão técnica envolvida no evento e do

aviso de que a exposição foi "realizada sob os auspícios de Jacques Chirac, Presidente da

República Francesa, e de Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República Federativa

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do Brasil", seguem-se os prefácios. Como já dissemos trata-se de nove prefácios assinados

por autoridades brasileiras e francesas de então (seguindo a ordem em que aparecem,

Fernando Henrique Cardoso; Jacques Chirac; Hebert Vedrine, Ministro das Relações

Exteriores da França; Luiz Felipe Lampreia, Ministro das Relações Exteriores do Brasil;

Francisco Corrêa Weffort, Ministro da Cultura do Brasil; Catherine Trautrnann, Ministra da

Cultura e Comunicação da França; Jean Tiberi, Prefeito de Paris; Geraldo Cavalcanti,

Secretário Geral da União Latina; e, por último, o prefácio, que não consta dos índices do

volume, dos editores do catálogo). Os prefácios saúdam a exposição e agradecem aos

organizadores e patrocinadores da mostra. Além disso, definem que se trata de gesto

diplomático e de política de relações exteriores e argumentam, de modo geral, que a

exposição se dá no momento certo (comemoração dos quinhentos anos do Brasil) e no lugar

certo (França, país com que o Brasil teria intenso diálogo cultural; Paris, capital mundial da

cultura; Petit Palaís, museu célebre de Paris, além de marco arquitetônico e cultural da

cidade). Seria interessante notar que o local da exposição é tomado tanto como indício da

importância do tema quanto tentativa de autorização do mesmo. Em linhas geraís, os

prefácios também argumentam a pertinência de "barroco" para a compreensão de algum

aspecto relativo ao Brasil.

Depois do prefácio, há três introduções: "Uma aventura histórica e cultural'', de

Gilles Chazal, diretor do Petit Palaís, em que se expõe a pauta de exposições do museu em

que a mostra se insere e em que se contextualiza de forma geral a ocorrência de "barroco"

no Brasil; "Uma arte fundadora de culturas", de Angelo Oswaldo de Araújo Santos,

secretário de Cultura do Estado de Minas Geraís, em que se expande a contextualização de

"barroco" e em que se propõe o que seja o termo: "um estilo de vida", capaz de dotar de

expressão a colônia brasileira; "Barroco Brasil Barroco", de Edouard Pommier, inspetor

geral honorário dos Museus da França e conselheiro de Belas Artes da União Latina, em

que se propõe etapas de um processo de assimilação de "barroco" no Brasil, além de se

defender determinadas qualidades de "barroco". Grosso modo, as introduções definem o

que seja "barroco", defendem o valor das obras catalogadas pelo termo através de uma

função suposta de "barroco", qual seja a capacidade de criar "expressão" na colônia e de

funcionar como alicerce da fundação de uma cultura.

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Entre os "estudos", assrm como no outro catálogo, não há uma homogeneidade

aparente. Há artigos de cunho mais analítico a respeito de obra, região ou período

específico; em outros, há simplesmente um inventário de obras. No entanto, nota-se que se

concentra em Brasil Barroco textos mais "genéricos". Chamamos de "textos genéricos"

aqueles que não tratam de modo mais específico de uma obra ou de um autor particular, e

mesmo quando o fazem, ocupam-se mais de generalidades. Esse tipo de texto não elabora

discussões especializadas a respeito de atribuição de autoria ou de classificação estilística,

por exemplo, mas enuncia coordenadas gerais, contextuais, biográficas ou interpretativas.

Há claramente uma tentativa, mesmo se apresentando de forma um pouco diferente em

cada um dos textos, de fornecer essas coordenadas gerais a respeito de "barroco",

familiarizando o interlocutor estrangeiro previsto com maneiras de leitura autorizadas sobre

o que se chama de "arte colonial brasileira" (a propósito dessas coordenadas, vale notar

que, antecedendo os textos, o catálogo traz um mapa do Brasil com as "cidades barrocas"

assinaladas). Assim, "Encontro do novo mundo, 500 anos depois", de Ana Maria de

Moraes Belluzzo, analisa os padrões de construção da representação do novo mundo e as

decorrências psico-cognitivas desses padrões de representação; "Entre a ordem e o caos",

de Nicolau Sevcenko, oferece "barroco" como uma constante da mentalidade brasileira,

além de contextualizar a sua ocorrência na colônia; "Revisitando a escultura barroca

brasileira", de Maria Helena Ochi Flexor, repõe e repensa algumas categorias de

interpretação da escultura produzida no período colonial, tomada como "barroca"; "O

barroco no país do açúcar", de José Luiz Mota Menezes, propõe uma moldura contextual

para "barroco" baseada no ciclo da cana de açúcar; "Barroco, estilo de vida, estilo das

Minas Gerais", de Affonso Ávila, oferece "barroco" como um "estilo de vidà' típico de

Minas Gerais colonial; "Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho", de Myriam Andrade

Ribeiro de Oliveira, analisa, de forma panorãmica, vida e obra de Aleijadinho;

"Especulações em tomo da igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto", de Lygia Martins

Costa, estabelece a classificação estilística mais adequada para a igreja executada por

Aleijadinho; "Barroco e o mundo contemporãneo", de Benedito Nunes, dá conta das fases

de recepção de "barroco brasileiro" no Brasil, fornecendo uma espécie de análise

bibliográfica de cada uma delas; "O barroco nas missões", de Armindo Trevisan, estuda a

escultura produzida nas "reduções" jesuíticas; "O barroco no Rio de Janeiro", de Augusto

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Carlos de Silva Telles, faz um inventário de obras arquitetônicas remanescentes do período

colonial no Rio de Janeiro; "Poesia do barroco", de Haroldo de Campos, estabelece

características gerais da poesia dita "barroca" e a sua situação na historiografia literária

brasileira.

2.4.3 Arte Barroca, Mostra do Redescobrimento

O catálogo do módulo Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento guarda

diferenças salientes com relação aos outros referidos até aqui. Se, por um lado, os catálogo

Universo Mágico do Barroco Brasileiro e Brasil Barroco Entre Céu e Terra poderiam

servir, guardadas as suas particularidades, como coletâneas de estudos a respeito de

"barroco brasileiro", por outro, Arte Barroca corresponderia menos a um volume de

coletânea que a uma imagem mais tradicional que se pode fazer a respeito do gênero

"catálogo de exposição". O volume constitui-se de uma apresentação do presidente da

Associação Brasil 500 anos, responsável pela organização do evento; de uma introdução de

Nelson Aguilar, curador-geral da mostra; e de um grande artigo chamado "A Imagem

Religiosa no Brasil", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, curadora do módulo. Das

261 páginas do volume, 49 são ocupadas pelos textos, que antecedem as reproduções das

obras da mostra, divididas nas categorias "Portugal", "Oficinas Franciscanas e Carmelitas",

"Oficinas Jesuíticas", "Escola Baiana", "Escola Mineira", "Goiás", "Escola

Pernambucana", "Escola Maranhense e do Grão-Pará", "Iconografia", "Imagens

Processionais", "Talha Dourada", "Oratórios e Presépios", "Técnica" e "Prataria".

No entanto, apesar da economia de textos, o catálogo ainda se vale, mesmo que de

forma particular, da forma básica "prefácio/introdução/estudos". A apresentação, que

funciona como um prefácio, alude aos objetivos mais gerais do evento, quais sejam a

"reafirmação da auto-estima do brasileiro", nas palavras do signatário do texto, através da

apresentação de um grandioso acervo artístico, e a apresentação deste ao público externo,

desconhecedor dos dotes artísticos brasileiros. A introdução do curador-geral, Nelson

Aguilar, ao fazer um breve percurso da recepção de "barroco", constitui uma moldura

interpretativa para a mostra. Já o texto da curadora do módulo, Myriam de Andrade Ribeiro

de Oliveira, disponibiliza conjuntos de termos especializados para a apropriação de

"barroco". Apesar de esse último texto ser assinado pela curadora do módulo, ele se parece

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muito mais com os artigos que estamos chamando de estudos do que com as introduções

propriamente. Mesmo percebendo que esse texto possivelmente tenha tido uma função

instrumental na organização da mostra (nota-se, por exemplo, uma correspondência entre as

seções em que constam as reproduções das obras e as categorias classificatórias oferecidas

por Oliveira em seu texto), não há nele sequer referência à exposição. Trata-se, assim,

muito mais de uma apresentação de repertórios de termos autorizados para o tipo de objeto

que se ocupa a exposição do que propriamente uma apresentação específica dos

procedimentos curatoriais adotados. Por isso quando trataremos das tópicas comuns das três

partes dos catálogos, analisaremos o texto de Oliveira juntamente com os "estudos".

Mas se há uma economia de textos, há também menos diversidade de tipos de

objetos expostos. Nas outras exposições, além das esculturas, constavam pinturas, mapas,

documentos, mobiliário, etc. Em Arte Barroca, a predominância é mesmo das esculturas,

com exceção dos dois objetos de prataria exibidos. A economia de textos e de tipos de

objetos talvez possa ser explicada pelo fato de que a Mostra não foi exclusivamente

dedicada a obras "barrocas", e incluía, além do módulo Arte Barroca, outros 12 módulos a

respeito de temas ou épocas diferentes.

Porém, se são mais contidos tanto o catálogo (em que consta apenas um prefácio,

uma introdução e um estudo) quanto os tipos de objetos expostos (praticamente apenas

esculturas), a cenografia da exposição, e especialmente aquela empregada no módulo Arte

Barroca, difere radicalmente da empregadas nas outras exposições, que tentavam

reproduzir uma ambiente de igreja. A controversa cenografia do módulo destinado à arte

"barroca" na Mostra do Redescobrimento constituiu-se de algumas salas, dispostas de

modo labiríntico, particularmente aquela destinada às imagens processionais, que

flutuavam em um mar de flores de papel crepom confeccionadas por presidiários,

embaladas com sons de batuque que sugeriam um aspecto de sincretismo religioso.

Obviamente, nosso objeto de estudo aqui se restringe aos textos dos catálogos.

Porém, pensar no catálogo de Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento tendo em vista

a cenografia da exposição pode nos sugerir algo a respeito da maneira como a organização

do evento se utiliza o gênero discursivo de escrita museográfica que nos interessa

particularmente aqui. Poderíamos dizer que há uma diferença nos estilos de organização, de

um lado, da pirotecnia cênica da exposição e, de outro, da sobriedade do catálogo, o que

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talvez sugira que catálogo e exposição prevêem interlocutores não coincidentes ou mesmo

que cumpram diferentes papéis específicos. Para agregar valor midiático enquanto evento

espetacular e grandioso, a exposição se vale, em boa medida, além das próprias obras

expostas, da cenografia controversa que chama a atenção para o módulo. A cenografia do

módulo Arte Barroca realizou com eficiência a sua tarefa de diferenciar e de destacar o

módulo, angariando maior público. O catálogo, por sua vez, sem a mesma preocupação,

explicitando as diretrizes da curadoria e propondo categorias de legibilidade e de

contextualização para uma leitura mais autorizada das obras e, assim, baseando-se em

lugares discursivos já assentados sobre elas, apresenta-se de outra forma, mais sóbria e

convencional.

2.4.4 Brazil: Body and Sou!

A diferença básica que a exposição Brazil: Body and Sou! apresentaria em relação

ás outras reside no fato de não se tratar exclusivamente de uma mostra a respeito de "arte

barroca" ou de "barroco brasileiro". Ainda que "barroco" não tenha sido o único tema da

Mostra do Redescobrimento, a exposição do Parque do Ibirapuera se constituiu por

módulos relativamente estanques, como se a Mostra fosse, na verdade, um grande conjunto

de exposições menores. O propósito de Body and Sou!, diferentemente, por exemplo, do

módulo Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento, não é a apresentação de um "barroco

brasileiro", mas, tal como explicitado nas introduções e prefácios constantes no catálogo, o

reconhecimento e a identificação mais ampla de uma "cultura brasileira" da qual "barroco"

seria peça fundamental. Nesse sentido, "barroco" não encerraria em si a finalidade da

mostra, apesar de ser elemento decisivo dela, juntamente com o modernismo.

Como dissemos, a exposição não mostrou as obras em compartimentos; apresentou­

as indistintamente no grande prédio da sede do museu Guggenheim, em Nova Iorque,

projetada por Frank Lloyd Wright, que teve sua região mais nobre, a grande redoma

central, ocupada pelo retábulo do altar principal da Igreja de São Bento de Olinda, pintada

de preto, segundo cenografia do arquiteto francês Jean Nouvel. No catálogo, entretanto, os

objetos da exposição foram divididos em sete partes que se sucedem depois dos prefácios

de Edemar Cid Ferreira, presidente da Brasi!Connects; Rubens Antonio Barbosa,

embaixador do Brasil nos Estados Unidos; Flávio Miragala Perri, cônsul geral do Brasil em

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Nova Iorque; Thomas Krens, do diretor do Museu Guggenheim; e, enfim, depois da

introdução do curador geral da mostra, Edward J. Sullivan.

Dentro das sete partes que sucedem os prefácios e a introdução, há estudos sobre o

período ou tema do capítulo e "catalogues overviews" (isto é, comentários específicos a

respeito das obras feitos pelo curador geral), que são seguidos pela reprodução fotográfica

das obras expostas (exceto os capítulos "Architecture" e "Cinema", que trazem apenas

estudos). Os capítulos do catálogo são: "The encounter", que inclui objetos de povos

indígenas e as telas dos holandeses F rans P ost e A lbert E ckhout; "Baroque B razil", que

concentra as peças "barrocas"; "Afro-Brazilian Culture", sobre "arte afro-brasileira";

"Modem Brazil", que inclui, além de obras modernistas, "arte concreta" e partes especiais

para os artistas Lygia Clark, Hélio Oiticica e Artur Bispo do Rosário, para os ex-votos de

"milagres" e para as "carrancas"; "Contemporary Brasil", que reúne e estuda projetos

contemporâneos; "Architecture" e, por fim, "Cinema".

Mesmo reconhecendo que "barroco", segundo o projeto da exposição, explicitado

pela introdução do curador, é posto em perspectiva da visão global da cultura brasileira e

deve ser entendido, no catálogo, como elemento não divisível de todo o conjunto de obras

exposto, destacamos, para a análise que faremos mais a f rente a respeito dos "estudos",

apenas os artigos que constam no capítulo "Baroque Brazil" ("The Baroque Culture of

Brazil", de Affonso Á vila, que propõe "dinâmicas complexas" do funcionamento de

"barroco"; "Brazilian Baroque Art", de Cristina Á vila, onde se destaca uma tipologia da

produção colonial de talha de madeira, estatuária e pintura de teto; "Brazilian Baroque

Architecture", de Augusto C. da Sila Telles, um inventário das obras arquitetônicas

"barrocas" do Brasil; "The Main Altar of São Bento de Olinda", do mesmo Augusto C. da

Silva Telles, em que se detém na análise desse altar) e, além deles, os textos "Toward a

Phenomenology of Brazil's Baroque Modemism", de David K. Underwood, constante no

capítulo "Architecture", e "The Baroque, the Modem, and Brazilian Cinema", de Robert

Stam e Ismail Xavier, constante de seção "Cinema". Isto será feito por dois motivos:

primeiro, para que não se perca o propósito de nossa investigação e, segundo, porque há

mesmo uma maior atenção dispensada a "barroco" na exposição, tanto em termos

conceituais, relativos a uma especificidade da cultura visual brasileira condicionada por ele,

quanto em termos da exibição em si - destaca-se, nesse sentido, a significativa proporção

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de obras "barrocas" e a atenção dispensada a elas, especialmente ao altar da Igreja de São

bento, pela cenografia da mostra.

Ressalta-se, ainda, mais duas diferenças que o catálogo Body and Sou! guardaria em

relação aos demais já referidos. A primeira seria relativa a uma prática museográfica mais

profissional e auto-reflexiva. Isso é bem demonstrado pela introdução do curador, que se

vale inclusive dos próprios limites da escrita do catálogo - o destacamento da publicação

com relação à exposição e seus anseios totalizadores para refletir sobre as categorias

empregadas na organização da mostra. Isto não equivaleria a dizer que o catálogo Body and

Sou! seria superior aos outros, em termos de elaboração conceitual, mas apenas que

indicaria uma maior profissionalização museológica, perceptível no emprego, auto­

reflexivo e mesmo metalingüístico, do gênero de escrita museográfica "catálogo de

. - " expos1çao .

A outra diferença, bastante marcante e decisiva, é o ponto de vista externo e

estrangeiro, com relação às artes ou à "cultura" brasileiras, muito mais marcado, por

exemplo, que o catálogo da outra exposição realizada no exterior que analisamos aqui,

Brasil Barroco, entre céu e terra. Mesmo que no catálogo da exposição francesa,

particularmente no texto de Edouard Pommier, haja também um ponto de vista externo

referido, essa perspectiva, grosso modo, não extrapola os limites do discurso diplomático e

do tom de celebração das artes do pais amigo. No catálogo Body and Sou!, diferentemente,

apesar dos textos de autoridades que abrem a publicação, nota-se uma tentativa deliberada e

programática de demonstrar alteridade, de apresentar o que o curador chama de "cultura

visual brasileira" de modo a a tentar p ara sua particularidade e diferença relativamente à

"arte" e "cultura" americanas ou dos países ricos do ocidente. Nessa direção, alguns

elementos do catálogo são exemplares. O primeiro deles seria o artigo "Brazil in Historie

Context", em que se propõe um resumo esquemático da história do Brasil que aponta para

problemas do país; são destacados, por exemplo, na conclusão do texto, os péssimos

indicadores sociais brasileiros. A a lteridade e a diferença que a arte brasileira teria com

relação às produções dos países desenvolvidos são insinuadas pelo diretor do museu

Guggenheim, Thomas Kren, em seu prefácio. Krens inclui a presente exposição no projeto

de exposições "globais" do museu, dedicado a representar as diferenças dos povos do

mundo que poderiam todos oferecer "culturas vibrantes". Outros elementos que demarcam

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alteridade estão presentes na introdução do curador Edward Sullivan. A tela Samba, de Di

Cavalcanti, por exemplo, é tomada como ícone do desenvolvimento da "cultura visual

brasileira" no modernismo, porque ali se representa negros, além da dança-símbolo do

país,. Mesmo que essa representação tenha sido feita por uma pessoa branca, Sullivan

comenta que esse ato seria representativo da busca brasileira de uma "voz própria" em sua

arte. Porém, o mais importante com relação a esse ponto de vista externo em que se

posiciona a mostra seria o conjunto de categorias que Sullivan toma como linhas gerais da

proposta de "cultura visual brasileira". Nesse sentido, como veremos, a própria noção de

"visão externa" seria operante no sistema dessa cultura visual.

2.5 Dois movimentos conceituais dos catálogos

A forma de estruturação dos catálogos e o modo como essas publicações dispõem os

textos sugerem dois movimentos conceituais básicos. O primeiro seria um movimento

centrifugo. A constituição dos objetos museológicos por eles apresentados, resumidos pelo

termo "barroco", extravasam por campos discursivos e repertórios culturais diversos - é o

que chamamos de "ressonância" de "barroco". Esse movimento centrifugo que constitui

essa ressonância é permitido pela própria forma dos catálogos: o formato de coletânea

dispersa assumido agrega textos diversos, em termos temáticos, conceituais e disciplinares.

Ao mesmo tempo, os catálogos encerram também um segundo movimento, dessa

vez centrípeto. Toda ressonância mobilizada é direcionada para a exibição dos objetos

expostos, para a constituição do interesse pedagógico, histórico e antropológico exigidos na

transformação daquelas obras exibidas em objetos museológicos. É a disposição e a

estrutura particular dos catálogos que também viabiliza esse segundo movimento ao

engendrar uma unidade performática na referência à exposição efetuada por prefácios e

introduções.

A simultaneidade desses dois movimentos previstos no mesmo objeto editorial

permite que se faça uma hipótese a respeito dos catálogos de exposição enquanto gênero de

escrita museográfica. Como complemento discursivo das exposições, esses conjuntos de

texto oferecem uma reunião de textos diversos enquanto garantia da relevância cultural

daquilo que se expõe. Essa garantia pode ser oferecida porque essas publicações

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comportam-se como gêneros de sedimentação. Não importa que os textos sejam diversos,

que tratem de temas diversificados, que usem categorias analíticas diferentes, que partam

de perspectivas criticas antagônicas ou não-comparáveis, que apresentem, enfim, um

amálgama discursivo heteróclito, desde que se atente, num primeiro plano, para exigência

pedagógica, histórica e antropológica da museificação dos objetos apresentados e, num

segundo plano, que ofereçam um motivo genérico de celebração cultural-nacional. Dessa

forma, toda a heterogeneidade de textos é neutralizada, acomodada e pacificada. Essa

heterogeneidade não é sequer um problema a ser resolvido pelos catálogos, pois, quanto

mais ressonância alcançada, mais eficácia museográfica e, portanto, museológica se atinge.

Os catálogos formatam, assim, objetos para um consumo cultural: ao mesmo tempo que um

objeto desse tipo exige uma relevância cultura genérica, constituído pelo movimento

centrifugo, prevê um acabamento para o seu consumo imediato, garantido pela acomodação

gerada pelo movimento centripeto. No limite, o uso de "barroco" pelos catálogos, na

medida em que o termo resume tanto os objetos apresentados pelas exposições como os

diversos textos concatenados pelos catálogos, prevê a constituíção de um objeto cultural de

consumo em massa.

Esses movimentos gerais, no entanto, são complementados por marchas operatórias

específicas efetuadas pelos três tipos de texto apresentados pelos catálogos - os prefácios,

as introduções e os estudos. Propomos, nos próximos capítulos, a análise de todos os textos

dos catálogos a partir da tipologia assumida por eles. Essa análise visará investigar como se

valem de "barroco" cada um dos três tipos de texto referidos e como essa tipologia

corresponde a movimentos argumentativos específicos.

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Parte II

USOS ESPECÍFICOS

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3 Os prefácios: a exibição de "barroco" como evento cívico

À primeira vista meros registros de protocolos de rituais cerimoniais diplomáticos,

ou apenas intróitos burocraticamente dispostos antes do que teria importância de fato (isto

é, antes dos outros textos dos catálogos ou das fotografias que reproduzem as obras

expostas), os prefácios têm, no entanto, interesse decisivo para este trabalho. Em primeiro

lugar, esses textos, juntamente com as introduções, como já dissemos, organizam os

catálogos: referem-se à exposição determinada e propõem certa unidade do catálogo

O modo como essa unidade é proposta pelos prefácios encerra um segundo

interesse. Dos três tipos de texto encontrados nos catálogos, os prefácios são aqueles que

mais explicitamente aduzem a importância e a função que teriam os objetos expostos nas

mostras e as categorias mobilizadas no enquadramento desses objetos nos catálogos. A

explicitação dessa importância tem a vantagem, nos prefácios, de ser produzidas pelos

textos mais curtos (a maioria ocupa no máximo uma página), menos acabados em termos

conceituais e menos especializados em termos de uso de vocabulário específico

comparativamente a todos os outros textos dos catálogos. Num registro mais epidítico, os

prefácios apenas celebram as exposições, sem, no entanto, suscitar discussões mais

específicas ou especializadas a respeito dos objetos expostos ou das categorias de

organização utilizadas. Partindo de um jargão pouco especializado e supondo consensos, os

prefácios ajustam, em certa medida, as exposições no horizonte de referências do visitante

comum e não especializado das mostras. Assim, dos tipos de texto encontrados nos

catálogos, são os prefácios que atendem à tripla exigência (pedagógica, histórica e

antropológica) da exibição dos objetos de maneira mais explícita e popular, convidando ao

consumo público das obras expostas. Por isso, são também os textos que aduzem com mais

veemência uma situação particular que toma interessante, desejável ou mesmo necessária a

exibição de determinados objetos do passado, selecionados e interpretados tendo em vista

um estado de coisas no presente. Dessa maneira, a celebração da exposição como evento

importante já estipula o modo como os objetos expostos devem ser celebrados e

consumidos. Porém, não se trata, nos prefácios, da defesa de alguma postura crítica,

historiográfica, estilística, curatorial ou, enfim, especializada que justifique o arranjo ou

modo de consumo proposto pelas exposições; é o interesse imediato, pedagógico, histórico,

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antropológico e, principalmente, cívico das mostras e dos objetos exibidos que é referido

quando o convite a elas é feito.

De fato, a função primordial dos prefácios é a de constituir a relevância das

exposições como eventos cívicos relevantes. São três os tipos de argumentos usados a esse

respeito, que analisaremos a seguir.

3.1 Assinatura Ilustre

O primeiro argumento da relevância cívica das exposições é constituído pelas

assinaturas dos prefácios. Listamos, a seguir, todos os signatários dos prefácios e seus

respectivos cargos:

Catálogo Universo Mágico do Barroco Brasileiro

i Signatário(s) do(s) prefácio(s) Cargo I Carlos Eduardo Moreira Ferreira ! presidente da FIESP

l Fernando Henrique Cardoso i presidente do Brasil ! Jacques Cbirac i. presidente da França ! Hebert V edrine i ministro das relações exteriores da França

Brasil Barroco, entre !!'ôL:O:u=iz=Fe:::lc:.~iP"'e~Lo::a:::rnp""=re=ô'i=:a=-___ +l rnuu=· =·s:::tro.:o:...:d:;:a::::s::,re:::l=:aç>::õ:.:e:::s..::e'::xt:::e:.:ri'éore=s..::d:.::o..=B:.:r=as=il:.__ céu e terra72 i Francisco Corrêa Weffort ! ministro da Cultura do Brasil

! Catherine Trautrnann l ministra da cultura e comunicação da França ! Jean Tiberi l prefeito de Paris ! Geraldo Cavalcanti ! secretário-geral da União Latina

Arte Barroca, Mostra ! Edemar Cid Ferreira l presidente da Associação 500 anos artes do Redescobrimento · ' visuais

l Edemar Cid Ferreira l presidente da Brasi!Connects ! Rubens Antonio Barbosa l embaixador do Brasil nos EUA

Brazi/: Body and Sou/; Flávio Miragala Perri l cônsul-geral do Brasil em Nova Iorque ': Tbomas Krens l diretor da Tbe Solomon R. Guggenbeirn

l Foundatíon

Altas autoridades brasileiras e francesas, membros do corpo diplomático brasileiro,

um banqueiro (Edemar Cid Ferreira é banqueiro e foi presidente da associação 500 anos,

transformada depois em BrasilConnects), um chefe de um sindicato patronal do

empresariado e representantes das instituições que organizaram ou sediaram as mostras.

Podemos chamar, de maneira um pouco vulgar, essa combinação de assinaturas ilustres de

conúbio museológico do poder. A literatura denuncista a respeito de práticas museológicas

constantemente argumenta que o museu é o lugar propício para a veiculação da ideologia

dominante. No caso específico dos catálogos aqui estudados, é óbvio dizer que as

72 Em Brasil Barroco, há ainda um nono prefácio, não creditado nos índices gerais do volume e assinado coletivamente pelos "editores" do catálogo.

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exposições, ao serem propostas, por esses prefácios assinados por tais autoridades, como

eventos de celebração dos 500 anos, definem e divulgam uma imagem oficial do Brasil, em

consonãncia com os projetos políticos e ideológicos dominantes. A propósito, segundo o

que se pode notar pela lista acima, quanto maior a participação governamental na

organização da exposição, maior é o número dos prefácios, o que indica a função oficial

cumprida por esses textos.

Porém, longe de ter a intenção de nos valermos desse conjunto de assinaturas para

efetuar uma denúncia da ideologia dominante representada nos catálogos, cumpre analisar

quais mecanismos persuasivos tais assinaturas engendram. Em primeiro lugar, é importante

assinalar que essas assinaturas garantem a importãncia dos eventos que prefaciam. Se,

como dissemos, a f unção dos prefácios é a de garantir a r elevãncia dos e ventos, a penas

essas assinaturas já são suficientes, por si sós, para que os prefácios cumpram a sua função.

Garantindo a relevãncia das exposições, essas assinaturas também têm uma função de

autorização, legitimando oficialmente os arranjos de objetos e os modos pelos quais são

propostos.

Além disso, as assinaturas formatam também o modo como os prefácios são

escritos. A primeira decorrência dessa formatação para o registro discursivo desses textos

diz respeito à forma como eles constróem seus argumentos a favor da relevãncia das

exposições: eles o fazem por meio da suposição de consenso. A justificativa do

envolvimento das autoridades referidas nas exposições se dá a partir da explicitação de

valores genéricos e públicos, supostamente consensuais, veiculados ou pressupostos pelos

eventos prefaciados, propostos como festas cívicas de celebração nacional.

A assinatura ilustre também garante a legitimidade dos textos, desobrigando-os da

apresentação de uma argumentação mais cerrada. Essa caracteristica do registro discursivo

dos prefácios permite inclusive a ocorrência de alguns arroubos supostamente poéticos,

ainda que em conformidade com um tom cívico:

Brazil: Body and Soul is an exhibition that honors Brazil and New York. It is an exhibition with a sense. What does sense sense? Sense is the meaning of life. It is the most special power of OUI body through which we are conscious ofthings. [ ... ] Works of art brought from different parts of OUI country, arising from the ages, are exhibited as OUI common sense. The sense to sense. This exhibitoin is about humanity. (Flávio Miragala Perri, cônsul-geral do Brasil em Nova Iorque, Body and Sou!, p. ix)

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Não será supresa para eles [os visitantes da exposição] se, diante de tantas mostras de fina sensibilidade da alma brarroca brasileira, tiverem efetivamente a sensação de flutuar entre o Céu e a Terra, enquanto se deixam tocar por esse sopro de genialidade que vem do noite do tempo colonial para iluminar e abençoar, para inspirar e revelar, sensibilizando o que há de eterno e universal na alma brasileira (Luiz Felipe Lampreia, Brasil Barroco, p. 24)

No entanto, apesar de uma ou outra ocorrência pretensiosamente inspirada, como a

dos exemplos acima, nos quais se pretende sugerir um engajamento sensório e emotivo nas

mostras, as assinaturas ilustres implicam em textos mais simples, assemelhados a discursos

oficiais que carregam esse tipo de assinatura.

Grosso modo, os prefácios organizam-se em dois movimentos a rgumentativos. O

primeiro, que contempla o que chamaremos de "argumentos de circunstância", situa a

relevância das exposições de forma mais circunstancial, através da referência à ocasião

mais imediata da exposição - data e local escolhidos para ela, por exemplo - ou ainda

através do enquadramento da exposição em projetos diversos decorrentes de políticas

diplomáticas, de exibições ou mesmo de divulgação cultural do Brasil. Apesar de haver,

nesse tipo de argumento, referências aos objetos específicos expostos pelas mostras, a

argumentação vai na direção de destacar a relevância da exposição pela sua ocorrência

proposta como simbólica, de evento dentro de uma circunstância dada: busca-se

primeiramente constituir uma ocasião que justifique o evento prefaciado.

O segundo movimento argumentativo, constituído pelo que chamaremos de

"argumento por 'barroco"', propõe a relevância das exposições através da defesa da

importância dos objetos expostos. Desse modo, a relevância dos eventos é destacada pela

própria relevância, dada a priori, das obras que apresentam. Assim, a relevância das

exposições é praticamente a relevância de "barroco", apropriado agora por um discurso

cívico. Quase todos os prefácios partem de alguma pressuposição do significado do termo.

Tal premissa acerca de "barroco" atribui às obras rubricadas por ele valor e função

imprescindíveis para o entendimento do que é chamado de "cultura brasileira".

Os dois movimentos argumentativos referidos compreendem também dois

movimentos particulares de leitura e apropriação histórica: o primeiro, direcionado ao

presente, designa uma circunstância específica, um estado de coisas ou um conjunto

específico de referências dêiticas que, por sua vez, convida a um segundo movimento,

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direcionado ao passado, que se constitui por uma leitura histórica retroativa que investe de

valor e função os objetos expostos tendo em vista o cumprimento de expectativas

relacionadas à circunstância referida. A combinação das assinaturas e desses dois tipos de

argumentos constituem um ritual cívico logo no início dos catálogos: autoridades diversas,

cientes de seu compromisso público, referem-se a circunstâncias carregadas de simbologia

que geram anseios de celebração cívica satisfeitos pelos objetos expostos.

3.2 Argumentos de circunstância

3.2.1 referências ao local e à data

Os argumentos de circunstância fundamentam-se, como dissemos, nas referências

mais imediatas e circunstanciais da mostra, como o local escolhido para ela:

A exposição O Universo Mágico do Barroco Brasileiro foi escolhida para inaugurar o Centro Cultural FIESP por estar em total sintonia com as propostas deste novo espaço patrocinado e mantido pela indústria paulista, onde o público encontrará sempre manifestações culturais instigantes e de alto nível, a exemplo do que o Serviço Social da Indústria de São Paulo vem oferecendo há muitos anos (Carlos Eduardo Ferreira, Universo mágico, p. I)

A referência ao local da exposição, além de servir como uma espécie de justificativa para a

organização da mostra, também argumenta a favor da importância do evento. Como se

percebe na citação acima: a exposição se daria num local que primaria pela qualidade do

que apresenta, segundo um compromisso público da instituição financiadora; logo,

pressupõe-se a qualidade da exposição prefaciada. Além de explorar a competência

exibitória da instituição responsável pela mostra, os prefácios, muitas vezes, reivindicam

uma importância simbólica do local da exposição, que é traduzido por eles como prova da

relevância do evento:

Somente um espaço prestigioso como esse [o Petit Palais] estaria à altura da honra que nos fazem as mais altas autoridades brasileiras e da confiança depositada em nós pelas personalidades e instituições solicitadas. ( Hubert V édrine, ministro francês das Relações Exteriores, Brasil Barroco, p. 22)

Today, the Guggenheim Museum is set to bring the spirit o f Brazil to a wilder, global audience in its historie landmark, the Frank Lloyd Wright building on New York's Fifth Avenue and in the Frank Gehry masterpiece in Bilbao, Spain (Edemar Cid Ferreira, Body and Sou!, p. vii)

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Além da referência ao local da exposição, a data do evento também é lembrada. No

entanto, nunca se trata de alguma data específica ou precisa, mas de data simbólica diante

da qual a exposição ganharia pleno significado. As datas simbólicas referidas exigem, como

veremos, que as exposições cumpram determinadas funções. A data simbólica escolhida

por todos os prefácios é o midiático aniversário de 500 anos do Brasil, que reforça o

compromisso cívico da exposição:

The year 2000 witnessed the celebrations o f the five-hundredth anniversary o f the first contact between Brazil and Europe. This event, which commemorated the beginnigs o f the modem nation, was widely celebrated throughout the country. It was a time to recai! the great importance o f the diversity o f Brazil' s cultural, racial, and ethnics components. (Rubens Antonio Barbosa, embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Body and Sou!, p. viii)

A celebração dos 500 anos é referida também como coincidente com a virada do milênio e

a constatação de um mundo em globalização:

Neste final de milênio, em que a proximidade dos 500 anos do Descobrimento nos convoca a urna reflexão sobre o Brasil ( ... ] Nesta época de globalização, em que se expandem os temores de desfiguração das nacionalidades, é fundamental que a nossa cultura seja cada vez mais valorizada e, sobretudo, difundida para todos os públicos, garantindo assim a afirmação dos referenciais básicos da alma brasileira. (Carlos Eduardo Moreira, Universo Mágico, p. I)

A apresentação em Paris de urna tão importante exposição consagrada à arte barroca do Brasil se realiza num momento duplamente simbólico, pois coincide ao mesmo tempo com a comemoração do quinto centenário da descoberta deste grande país e com a celebração da passagem para o terceiro milênio (Catherine Trautmann, ministra francesa da Cultura e Comunicação, Brasil Barroco, p. 27)

Por vezes, a referência ao local e à data é combinada. O presidente da Associação

500 anos, responsável pela Mostra do Redescobrimento, propõe, por exemplo, que a

Mostra, realizada durante a comemoração dos 500 anos, reatualizaria o propósito original

do local que a sediou, o Parque do Ibirapuera, cujo projeto teria sido proposto sob a

influência de outra data simbólica:

A exposição em sua totalidade apresenta-se no Parque do Ibirapuera, desenhado para comemorar um outro aniversário, o quarto centenário da cidade de São Paulo, em 1954. Naquela ocasião, o arquiteto Oscar Niemeyer, dando seqüência a trabalhos que integram construção à paisagem, concebeu um conjunto de edificações em meio ao verde. O todo visa ao lazer de uma comunidade, orientado pela articulação da arte e da técnica. No ano 2000, ocorre a extensão desse anseio mediante a ocupação artística de três pavilhões e da restituição da marquise ao prazer do tnmseunte, que exerce o direito de ir e vir num passeio sombreado, ao abrigo das interpéries. (Edemar Cid Ferreira, Redescobrimento, p. 28)

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Já o presidente da França, Jacques Chirac, cruzando as referências de local e data da

exposição Brasil Barroco, propõe, metaforicamente, que a mostra encerra uma espécie de

ciclo iniciado pelo descobrimento do Brasil:

Há cinco séculos, o navegador Pedro Álvares Cabral abordava às costas do Brasil. [ ... ] Quinhentos anos depois, é o retomo das caravelas. Elas nos chegam carregadas do bem mais precioso: uma emocionante e suntuosa imagem do Brasil, nascida da admiração dos europeus, que acreditavam haver encontrado o paraíso, e do encontro, tão fecundo até em sua dor, entre a América, a África e a Ásia. (Brasil Barroco, p. 21)

Nos prefácios dos catálogos das exposições sediadas no exterior, as referências ao

local se dão também por relações estabelecidas entre o Brasil e o país que sedia a mostra, o

que, de alguma forma, é explorado na tentativa de agregar relevância às exposições e de

garantir mediações interpretativas dos objetos. Nos prefácios do catálogo Body and Sou!,

por exemplo, há afirmações acerca da suposta semelhança entre Brasil e Estados Unidos.

Segundo os prefácios, os dois países assemelhar-se-iam na diversidade cultural e na forma

como teriam sido colonizados e habitados:

Multiculturalism is one of the most important features of Brazilian society. It shares this characteristic with United States. Threfore it is appropriate that the arts o f Brazil be celebrated in the United States by a major exhibition organized by the Guggenheim Museum in New York that stresses the richness and complexity of our civilization (Rubens Antonio Barbosa, p. viii)

Brazil and United States share common traits and also have had complex relationships with their indigenous peoples. The identities o f both have been deeply shaped by the legacy of the involuntary migration and servitude of Africans, and both rnay be characterized as multiethnic societies that have assimilated immigrants from ali parts o f Europe and more recently Asia. Today, cultural diversity is a value shared by these democracies (Thomas Krens, diretor da Solomon R. Guggenheim Foundation, Body and Sou!, p. x)

No caso específico do catálogo Brasil Barroco, os prefácios assinalam, como

justificativa da mostra, uma relação cultural entre Brasil e França. Fernando Henrique

Cardoso, no prefácio que abre o catálogo, depois de enumerar uma série de pensadores

franceses que teriam dado contribuições importantes ao pensamento brasileiro, inclusive no

que se refere ao estudo de "barroco", conclui afirmando que

a exposição Brasil Barroco, entre céu e terra, é mais um importante capítulo desse profícuo diálogo, de quase 500 anos. (Brasil Barroco, p. 20)

O presidente francês, Jacques Chirac, ampliando a relação apenas intelectual, afirma, em

seqüência a Fernando Henrique, que há

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uma relação cultural entre [estes] dois países cujas almas bebem da mesma fonte latina e que se uniram, há muito tempo, através de fortes laços nas áreas das artes, das letras e do saber. Relação cultural também pois tudo começa nos cumes da emoção e do espírito: a atração, a sedução e finalmente o diálogo (Brasil Barroco, p. 21)

Catherine Trautmann, ministra francesa, também se refere a tal relação e, mais que isso,

propõe a exposição como elemento que faltava no relacionamentos entre os dois países:

Esta exposição se inscreve numa longa e rica tradição de relações culturais entre os dois países. Sabemos do papel representado por alguns franceses na organização das instituições artísticas no momento da independência; da ressonância dada pelo Brasil ao nosso pensamento positivista; da tradicional cooperação entre os meios universitários, dos percursos que os criadores dos dois países empreenderam juntos nos caminhos da modernidade. Mas a essa herança constantemente partilhada e enriquecida, faltava um elemento essencial: nunca o público francês tivera a oportunidade de conhecer, em Paris, um aspecto maior do patrimônio brasileiro, no sentido mais vasto do termo - a arte barroca [ ... ] (Brasil Barroco, p. 27)

Na mesma direção, Luiz Felipe Lampréia afirma:

As equipes que tornaram possível esta mostra de singular e rara beleza são credoras de gratidão e de admiração e podem estar certas de que deram uma constribuição admirável para reforçar ainda mais as afmidades entre a França e o Brasil no plano das artes e da cultura (Brasil Barroco, p. 23)

Os prefácios de Brasil Barroco, a propósito, cruzando as referências ao local e à

data ou fazendo menção ao relacionamento Brasil/França, argumentam que a exposição se

dá no momento certo, durante as comemorações dos 500 anos, e no local certo - França,

país que, como vimos, é proposto como espécie de interlocutor cultural privilegiado do

Brasil; Paris, tratada como capital cultural que autoriza empreendimentos artísticos; e o

Petit Palaís, referido como espaço cultural célebre. Nos prefácios desse catálogo assinados

por autoridades brasileíras, nota-se um certo deslumbramento pelo lugar da exposição, que,

cedendo lugar para a arte brasileíra, qualifica tanto essa arte quanto o Brasil:

O Brasil comemora o quinto centenário do seu descobrimento, na França, com uma das maiores e mais belas exposições de artes plásticas brasileiras que jamais se realizaram no exterior, e tem o orgulho de vê-la exibida no Petit Palais, marco arquitetônico e cultural hoje centenário de uma cidade que há séculos exerce a sua vocação de capital mundial das artes e do espírito. (Luiz Felipe Lampreia, Brasil Barroco, p. 23)

[ ... ] Em primeiro lugar, a escolha do tema não podia ser mais emblemática para sinalizar a presença do Brasil em território francês na virada do milênio, data que para os brasileiros se reveste e um significado especial: a comemoração do quinto centenário do Descobrimento. [ ... ] Em segundo lugar, a dimensão do evento e a escolha, para realizá-lo, do espaço que funciona como o Museu de Belas Artes da

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Cidade de Paris, já constituem um reconhecimento, por parte da França, da importância do tema. (Francisco Corrêa Weffort. p. 25)

As referências ao local e à data, como se percebe, são decisivas na argumentação do

evento prefaciado. Elas são apresentadas, ao mesmo tempo, como situações determinantes

na escolha dos temas das mostras e como propícias para se exibir o que se exibe: dentro das

circunstâncias referidas, as exposições estariam em sintonia com os anseios de

comemoração cívica.

3.2.2 Políticas diplomáticas

Ao desdobrarem as referências ao local e à data, os prefácios, principalmente

aqueles do catálogo Brasil Barroco, que insistem bastante na sintonia entre exposição e

circunstância, acabam por propor também um novo tipo de argumento circunstancial, a

justificativa diplomática. A exposição, considerada no anseio gerado por circunstâncias

simbólicas, deveria funcionar, segundo esses prefácios, como uma espécie de agrado a um

país amigo, o que contribuiria para as relações entre os dois estados. Fernando Henrique

Cardoso, sintetizando as circunstâncias referidas, diz que haveria um passivo diplomático

que a exposição resgataria:

Alegra-me ver o Governo Brasileiro associado à mostra Brasil Barroco, entre céu e terra. Não poderia ser de outra maneira. Sempre me pareceu que deviamos ao público externo uma exposição sobre arte colonial à altura do significado barroco para a cultura brasileira. Era talvez o principal passivo de nossa diplomacia cultural, que começa a ser resgatado em local certo e no momento apropriado. Às vésperas dos 500 anos, quando o Brasil se vê chamado a repensar sua história, a a colhida pelo P etit Palais desse testemunho vibrante do periodo barroco evoca a interlocução privilegiada que o país sempre manteve com a cultura francesa. (Brasil Barroco, p, 19)

O resgate desse passivo, assim, conduz a uma política de reforço da amizade entre países

amigos, o que, de alguma forma, contribui para a defesa da relevância do evento.

Ao apresentar os tesouros barrocos do Brasil, Paris presta homenagem especial a este grande país. E é a amizade entre brasileiros e franceses que aumenta. (Jacques Chirac, Brasil Barroco, p. 21)

São inúmeros os motivos que nos levam a acreditar que a realização da exposição Brasil Barroco, entre Céu e Terra, [ ... ] se tornará um marco nas relações entre a França e o Brasil (Francisco Corrêa Weffort, Brasil Barroco, p. 25)

[ ... ] desejo também que elas [ as obras expostas] sejam uma incitação a um conhecimento mais profundo da riqueza e da diversidade de uma civilização rigorosa,

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reforçando os laços de cooperação e amizade que unem Paris e o Brasil (Jean Tiberi, Brasil Barroco, p. 28)

3 .2.3 políticas institucionais de exibição

Além de políticas diplomáticas, os prefácios referem-se a políticas institucionais dos

espaços culturais que sediaram as exposições. Nesse caso, a relevância das mostras é

proposta pela otimização dessas políticas que as exposições poderiam ocasionar. Carlos

Eduardo Ferreira, então presidente da FIESP, depois de afirmar, no trecho anteriormente

citado, que a exposição Universo Mágico do Barroco Brasileiro tinha como tarefa oferecer

aos brasileiros os "referenciais básicos da alma nacional", o que reverteria os danos

causados pela "desfiguração de nacionalidades" em curso, deriva de tal afirmação a política

de exposições do centro cultural que apresentou a mostra:

Queremos que a História, transfigurada pelo talento, se destaque, hoje e sempre, nos eventos do Centro Cultural FIESP (Universo Mágico, p. I)

Mais específico, Geraldo Cavalcanti, secretário geral da União Latina, uma das entidades

responsáveis pela exposição Brasil Barroco, expõe, em seu prefácio ao catálogo, o projeto

da instituição que representa, vale dizer, o de divulgar o "barroco latino-americano" na

França:

Pela terceira vez nos últimos três anos, a União Latina apresenta ao público francês uma exposição sobre a arte barroca na América Latina. A primeira, realizada em 1996, na Chapelle de la Sorbonne, deu-lhe a oportunidade de conhecer uma arte refinada, e, até agora, pouco divulgada: a pintura sacra boliviana do século XVII, com os especatulares Anjos de Calamarca. A segunda exposição A Graça Barroca, exibida há poucas semanas no Museu do Castelo dos Duques da Bretanha, em Nantes, que trouxe à França uma arte não menos surpreendente: a estatuária sacra originária do Equador, numa profusão de obras de requintada beleza. Agora é a vez do Brasil mostrar todas as facetas de sua arte sacra barroca, na maior exposição jamais montada no exterior. (Brasil Barroco, p. 29)

Thomas Krens, diretor da fundação Solomon R. Guggenheim, antes de enumerar as

exposições sobre arte internacional já promovidas pela instituição, explícita seus

propósitos:

The Guggenheim is an international institution not only in terms of buildings and locations but also through a commitment to expanding its progamming, reflected both in the growth of the permanet collection and in depth of special exhibitions. A multifaceted, multilingual, global culture is emerging in an increasingly interconnected, internet-linked world. Africa, Asia, and South America ali sustain vibrant cultures, past and present, that must be engaged. (Body and Sou!, p. xi)

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Portanto, além de corresponderem aos anseiOs que datas e locais simbólicos

representam, as exposições são propostas também de maneira a satisfazer as políticas

programáticas das instituições que as sediam. O cumprimento dessas políticas opera

também uma relevãncia. Nesse caso, a relevãncia da exposição é simultãnea à relevãncia do

lugar que sedia a mostra, ou mais do que isso, à da política de exibição desse lugar. Mais

precisamente, as exposições são apresentadas como prova da eficácia exibitória do lugar

que a sedia. Logo, o lugar qualifica a mostra, e a mostra demonstra a profissionalização do

lugar da exposição.

3.2.4 políticas de difusão da cultura brasileira

Muitos prefácios justificam a exposição pelo propósito de divulgar a cultura

brasileira. Nesse caso, o oferecimento cívico da exposição é ainda mais explícito. A política

de exibições da Associação 500 anos, responsável pela Mostra do Redescobrimento, é em

si uma política de difusão cultural, que se desdobra de maneira diferente nos eventos

organizados no Brasil e no exterior:

A mostra em São Paulo e sua itinerãncia em solo pátrio tornam sensível a noção de cidadania pela incorporação do legado artistico, criando um novo momento na auto­estima do brasileiro. No circuito internacional, a viagem de nosso patrimônio, em estreita colaboração com a curadoria dos mais prestigiosos museus do mundo, revelará e afirmará uma nova dimensão do país, até então desconhecida, na cena globalizadora contemporãnea (Redescobrimento, p. 29)

Proposta parecida é a da FIESP, que se diz "a serviço do Brasil":

A Federação e o C entro das Indústrias do Estado de São Paulo, juntamente com o Sesi, procuram assim partilhar com a sociedade o que temos de comum e de mais valioso (Universo Mágico, p. 1)

Nos prefácios do catálogo da exposição Brazil: Body & Sou!, o desejo manifesto é o de

tornar a cultura brasileira conhecida, o que ajudaria a compreender o Brasil e a reverter

estereótipos a respeito do pais:

The exhibition Brazil: Body and Sou[ has been organized with the intention of conveying some of the salient points that distinguish our rich culture. We wish to foster an understanding of the arts of Brazil in order to challenge some of the stereotypes held by those less familiar with our country. As visitors to the exhibition will quickly realize, Brazil is much more than Carnival or soccer. (Edemar Cid Ferreira, Body & Sou/, p. vii)

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Brazil: Body and Sou! is the largest and most comprehensive exhibition of Brazilian art ever carried out abroad. It is with great pleasure that I congratulate the Guggenheim Museum and BrasiiConnects on this excellent initiative, which will contribute in a unique way to the dissemination of Brazilian culture in the United States. (Rubens Antonio Brabosa, Body and Sou!, p. viii)

The cultural achivements of Brazil have been too litle known, especially in the English-speaking world, and we hope this presentation will help rectify this situation. By exhibition masterpieces o f Brazilian art that have sei dom been seen in such depth outside o f Brazil, Brazil: Body and Sou! has endeavored to capture the essential nature o f an extraordinary country (Thomas Krens, Body and Sou!, p. xiii)

3.3 Argumentos por 'barroco'

Ao mesmo tempo em que constituem circunstâncias particulares e em que propõem

papéis decisivos para as exibições, os prefácios buscam dotar as mostras de relevância

também através da definição ostensiva da importância dos objetos expostos73• Nessa

direção é interessante notar que as obras expostas devem de alguma forma corresponder às

circunstâncias, plenas de significados, e às funções por elas determinadas que os prefácios

constituem à medida que celebram as exposições. Assim, os objetos, de alguma forma, têm

de ser oferecidos como coerentes e relevantes tendo em vista a ocasião em que são exibidos

e os propósitos que presidem a sua exibição. Devem fazer jus às datas e aos locais,

carregados de simbologia, e às ações programáticas, pautadas por boas intenções, de

políticas diplomáticas, culturais e de difusão da cultura nacional.

Correspondendo às circunstâncias especiais criadas para si, "barroco", da maneira

como é proposto pelos prefácios, corrobora ostensivamente os anseios cívicos de

celebração nacional referidos. O simples agrupamento de algumas das expressões usadas

como acompanhamento de "barroco" j á pode demonstrar que os objetos rubricados pelo

termo seriam de total relevância para a compreensão e divulgação do Brasil:

uma das expressões mais marcantes da formação da nacionalidade referencial básico da cultura brasileira raízes da nação nosso primeiro ensaio de assimilação cultural traço distintivo da cultura nacional

73 A exceção é o catálogo do módulo Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento, que traz um único prefácio que propõe apenas argumentos de circunstância para a exposição. Isso se explica devido ao fato de que o prefácio do presidente da Associação 500 anos é o mesmo para todos os catálogos que cobrem os doze módulos da exposição.

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uma emocionante e suntuosa imagem do Brasil primeira expressão orgãncia de uma identidade própria património permamente do povo brasileiro uma das mais extraordinárias expressões no campo da cultura preciosa herança símbolo do pais embrião de uma nacionalidade um aspecto maior do patrimônio bmsileiro expressão privilegiada da identidade brasileira estilo de vida inerente à personalidade do pais

Os "argumentos por 'barroco'" fundem-se com a proposição da "significação

brasileira de 'barroco"'. De um modo geral, os prefácios partem do princípio, que pode ser

inferido pela coletânea de citações acima, de que "barroco" indicaria um momento histórico

decisivo na formação do que se entende hoje por Brasil, assim como uma espécie de visão

de mundo fundamental, capaz de dotar de significados essenciais expressões como

"cultura" ou "mentalidade brasileira". Dessa maneira, atendem simultaneamente à tripla

exigência de verossimilhança museológica da exibição "barroco", termo entendido como

repertório cultural que explica Brasil, como período histórico e como indicativo de um

modo de vida inerente ao Brasil. É simultânea também a dupla postulação acerca da

brasilidade de "barroco e do caráter "barroco" do Brasil. Mas a combinação da significação

brasileira de "barroco" e o atendimento das exigências de sua constituição museológica se

dão em conformidade com os anseios designados pelos argumentos de circunstância, isto é,

de modo cívico.

Para que esses usos de "barroco" sejam possíveis, os prefácios lançam mão de

algumas operações, tais como a afirmação de uma particularidade de "barroco brasileiro"

em relação a outros "barrocos", ou seja, especificam a brasilidade de um "barroco"

brasileiro. Essa particularidade é proposta, inicialmente, através de diferenças estilísticas,

da identificação de uma "voz própria", como quer o prefeito de Paris:

Sabemos que a arte da cenogmfia barroca está ligada à exaltação do absolutismo e do poder divino sob a bandeira da religião católica. Nascido em Roma, cultivado na Península Ibérica, o barroco atravessou os mares para a tingir a América do S ui, as costas brasileiras, a baía do R i o de Janeiro e o Nordeste do Brasil, da B ahia até o Estado do Rio Grande ... Os conventos, os mosteiros, os colégios da Companhia de Jesus e em seguida as casa senhoriais, todos iriam cantar a grande ópem da "liturgia" barroca, porém com uma voz própria, com um poder de criação que se distanciava dos exemplos portugueses e europeus (Brasil Barroco, p. 28)

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As particularidades iniciais indicariam, segundo alguns, uma reelaboração

específica de matrizes estéticas internacionais surgidas num contexto particular, de mistura

étnica, e manifestadas tendo em vista a formação nacional:

Na trajetória da formação da nação brasileira, as manifestações culturais que aqui floresceram sob o signo do Barroco constituem uma reelaboração dos padrões trazidos de Portugal, seja nos materiais utilizados, na releitura de formas e temas e em uma religiosidade que incorpora e se extravasa no popular, seja no caráter mestiço da criação artística, que incorpora elementos africanos, indígenas e até mesmo do Oriente (Francisco Corrêa Weffort, Brasil Barroco, p. 25)

A especificidade de "barroco brasileiro" também é afirmada pela constatação de supostas

funções expressivas e psicológicas que teria cumprido na colônia. Da mesma forma, seria

responsável por dar voz a segmentos raciais diversos:

[ ... ] esta exposição oferece visão artística e histórica de uma época em que os materiais da terra- madeira, barro, prata, ouro - eram manipulados criativamente pelas matrizes da nossa raça, por meio de mãos africanas, indígenas e européias. (Universo Mágico, p.l)

Mas é a influência africana que sobressai na versão brasileira desse estilo europeu. As figuras que ornamentam igrejas e oratórios domésticos têm, freqüentemente, nítidos traços mulatos, como mulatos são muitos dos artífices[ ... ] (Francisco Correa Weffort, Brasil Barroco, p. 25)

Por meio de "barroco", ter-se-ia operado ainda uma espécie de extravasamento anímico:

Graças a uma iluminada originalidade, verdadeiro milagre em meio aos desafios da vida colonial, e a uma intensa criatividade, que pôde incorporar com liberdade as tensões próprias da alma barroca às inquietações e particularidades da alma brasileira, o Barroco brasileiro é uma singular combinação de sentimento religioso com um sentido estético e profundamente humano da realidade concreta e da existência espiritual. (Luiz Felipe Lampréia, Brasil Barroco, p. 23)

No entanto, durante todo esse processo de assimilação de "barroco", não se teria perdido de

vista o caráter universal do estilo:

Universal e ao mesmo tempo profundamente marcado pelos traços mestiços que caracterizam a arte latino-americana em geral e a brasileira em particular, o Barroco Brasileiro é a primeira grande manifestação estética do Brasil[ ... ] (idem)

Somados todos esses componentes, "barroco" pode oferecer um certificado de

autenticidade para o Brasil, que teria, nos objetos rubricados pelo termo, inaugurado um

modo específico de expressão que perduraria no tempo. "Barroco", assim, seria responsável

por oferecer fatores de formação, de unificação, de emancipação e de identificação do

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Brasil. Aqui, a concentração se dá no segundo pólo da dupla postulação circular, o caráter

"barroco" do Brasil, proposto por meio da "formação barroca" do "Brasil barroco":

Nunca é demais recordar que o barroco antecipou no plano artístico a maioridade do Brasil. Fez ver que a nação híbrida que se gestava nos trópicos já era suficientemente madura para produzir soluções autóctones, para dialogar com diferentes matrizes estéticas, para inovar sobre modelos que lhe eram impostos pela manifestação da fé, para insinuar uma maneira própria de traduzir sua religiosidade, seu misticismo. O barroco foi o nosso primeiro ensaio de assimilação culturaL [ ... ][os artistas barrocos] esboçaram com mais de um século de antecedência a gramática de assimilação criativa que a geração modernista viria a consagrar como traço distintivo da cultura nacional (Fernando Henrique Cardoso, Brasil Barroco, p. 19)

Florescendo ao logo de décadas de grande efervecência da vida econômica e social da colônia, e por isso mesmo expressão de um mundo pleno de tensões, potencialidades, inquietações e também de riqueza material, o Barroco foi no Brasil um verdadeiro ciclo de civilização, nosso primeiro grande impulso em direção ao universal sem perder de vista a forte referência local - nas cores, nas formas, nas expressões humanas, no papel que desempenhou na vida social e espiritual na colônia, em que foi a referência estética e religiosa dominante. Por isso, o Barroco brasileiro foi um movimento que durou no tempo e se firmou como um estilo, uma visão de mundo e naturalmente como um patrimônio permanente do povo brasileiro, produzindo uma infmidade de obras de incontestável valor artístico e histórico sob quaisquer parâmetros (Luiz Felipe Lampreia, Brasil Barroco, pp. 23-24)

Hoje as igrejas traçadas pelo Aleijadinho já começam a ser identificadas, no Brasil e no exterior, como símbolos do país, ao lado da floresta tropical, do samba e do futebol. (Francisco Correia Weffort, Brasil Barroco, p. 26)

[ ... ] a arte barroca não é somente um capítulo particularmente brilhante da arte no Brasil e da história universal da arte barroca, mas também uma expressão privilegiada da identidade brasileira [ .. .]. A arte barroca, após ter sido, com a lingua portuguesa, um fator de unificação do Brasil, passou por uma misteriosa simbiose na maneira de ser, de pensar e de sentir de todo um povo e se transmutou em um estilo de vida inerente à personalidade do país (Catherine Trautmann, Brasil Barroco, p 27)

Aí estão as raízes desta Nação marcada, justamente, pela unidade na diversidade (Carlos Eduardo Moreira Ferreira, Universo Mágico, p. 1)

Como já dissemos, todas essas considerações a respeito de "barroco" surgem nos

prefácios como constatações. Os argumentos em tomo da relevância de "barroco" são

muito parecidos com os dos polemistas de Candido nas querelas a propósito da dita

exclusão de "barroco" da Formação da Literatura Brasileira. No entanto, nos prefácios,

não é possível vislumbrar polêmica alguma, o que indica que, além do termo já ser

admitido como descrição de urna etapa histórica da produção artística nacional, "barroco"

pode ser aceito consensualmente como espécie de aspecto cultural preponderante do Brasil,

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capaz inclusive de corresponder aos aoseios de celebração cívica designada pelos prefácios.

Os procedimentos que viabilizam esse uso cívico de "barroco" já foram descritos e são

propostos agora nos prefácios como consenso: trata-se da postulação- circular e dupla- da

brasilidade de "barroco" e do caráter "barroco" do Brasil combinada à idéia da formação.

Outro procedimento também é evidente: a tradução da colônia como lugar celebrativo por

excelência.

As exposições, além de se basearem nessas proposições, tomadas como consenso

em torno de "barroco" enquaoto chave de leitura do Brasil, acabam também por reforçar

esse consenso. Um exemplo desse reforço é a própria exposição Brazil: Body and Sou!,

que, como já dissemos, não se ocupa apenas de "barroco", mas de um paoorama geral da

produção artística brasileira. Corno última da série das quatro graodes exposições

organizadas para a celebração dos 500 aoos, a mostra no Guggenheim parte de conceitos já

definidos pelas exposições aoteriores. Prova dísso são as citações dos catálogos aoteriores

nas listas de referência bibliográfica e a presença de nomes importaotes envolvidos na

organização das outras mostras nas listas das equipes responsáveis pelo evento. No

paoorama geral apresentado pela exposição de Nova Iorque, "barroco" é o pressuposto

inicial para o entendimento do que é chamado de "cultura visual brasileira" e um dos dois

momentos chaves primordiais dessa cultura, como atenta Rubens Antonio Barbosa em seu

prefácio:

Concieved by an intemational team o f curators, it explores two o f the key moments in the development of the visual arts in the country: the Baroque and the Modem. Baroque art represents the deepest roots of Brazil's national artistic identity while Modem and contemporary art evidence the dynamism and constant growth of the nation's visual culture. ( Brazil: Body and Sou/, p. viii)

Se, segundo os prefácios das três primeiras exposições, a relevãncia do evento é

constituída por uma situação propícia à apresentação de um aspecto primordial do Brasil,

de acordo com os prefácios da última, a situação reivindica a exibição de um paoorama

mais geral, que já se apropria do aspecto primordial das outras como constituinte relevaote

e necessário. Assim, o que era inicialmente argumento para a reivindicação da relevãncia

do evento é transposto mesmo como premissa imprescindível, como um teste de aplicação

de um pressuposto dado aoteriormente.

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3.4 Eventos cívicos de especificação global do nacional

Os prefácios, ao iniciarem os catálogos combinando os três tipos de argumentos

analisados - assinatura ilustre, argumento de circunstãncia e argumento por "barroco" -,

simulam uma espécie de ritual cívico para celebrar as exposições, discursivamente

especificada pelos outros textos que surgem em seqüência. Como numa parada cívica, as

autoridades explicitam os anseios ocasionados pelas circunstãncias simbólicas do presente e

aduzem seu compromisso público di ante de tais c ircunstãncias ao apoiarem o desfile de

objetos que, segundo um consenso suposto, dão identidade à nação.

Seria interessante cotejar essa proposição cívica das exposições com o que diz Caro!

Duncan em seu "Art Museums and the Ritual ofCitizenship". Duncan assinala que, desde a

transformação, depois da Revolução Francesa, do Louvre em museu público, "public art

museums were regarded as evidence of political virtue, indicative of a goverment that

provided the right things for its people"74• No caso específico dos prefácios, porém, não se

trata, evidentemente, da celebração de um museu público, mas de um evento museológico

temporário cujas justificações se dão na mesma chave cívica de argumentação de relevãncia

pública assinalada por Duncan. Outra especificidade notável dos prefácios diz respeito ao

caráter não apenas governamental de tal justificação. Nas exposições que tiveram

organização mais diretamente ligada ao governo brasileiro, como a exposição Brasil

Barroco, os prefácios são quase todos assinados por autoridades governamentais. Porém,

autoridades da chamada sociedade civil, ligadas de alguma forma ao circuito museológico,

também se comprometem com o valor cívico das exposições, tomando para si o papel

público de responder aos anseios simbólicos do presente.

De qualquer forma, a justificativa cívica empregada nos catálogos pelas assinaturas

ilustres amparadas pelos argumentos de circunstãncia e pelos argumentos por "barroco" é a

de divulgar Brasil, dentro das políticas diplomáticas e exibitórias determinadas. Como

explícita Edemar Cid Ferreira no trecho já citado, esse propósito de divulgação nacional

engendraria duas funções quando executado dentro ou fora do pais: internamente, resgataria

a auto-estima nacional; internacionalmente, ajudaria a reverter estereótipos acerca do

Brasil, demonstrando que no pais produziu-se arte relevante, capaz inclusive de explicitar

aspectos nacionais típicos. Nos dois casos, insiste-se num aspecto civilizado e elevado da

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nação, registrado em seus feitos artísticos. O uso cívico de tal justificação reside justamente

na revelação de algo desenvolvido acerca do país, no objeto artístico-museológico capaz

não apenas de sintetizar a nação que o teria produzido mas de demonstrar que esse objeto é

indicativo de um sofisticação civilizada do país, suficiente para alimentar o espaço

museológico. Museus usualmente são tomados como indicativos de um país desenvolvido.

A premissa é tão corrente que um dos relatórios do ICOM compara produto interno bruto

com o número de museus e propõe uma estratégia de desenvolvimento para países do

terceiro mundo, explicitando o valor cívico de taís instituições:

[ ... ]developing countries will make great sacrificies in order do have museums, which are needed both to reinforce and confrrm a sense o f national identity and to give status within the world community. To have no museums, in today's circumstances, isto admit that one is below the mínimum levei of civilization required of a modem state"75

Na mesma direção, Caro! Duncan, no artigo anteriormente citado, ressalta, através de

alguns exemplos, que "art museums in the Third World can rassure the West that one is

safe bet for econornic or military aid"76• O mesmo prestígio acerca dos museus, sem

dúvida, é apropriado pelos discursos que propõe as exposições, c orno se pode notar nos

trechos já citados.

Nos prefácios, o que é decisivo é como "barroco" é empregado. Primeiramente,

"barroco", proposto consensualmente dentro da circularidade ostensiva já descrita, atende

às circunstâncias simbólicas que demandam uma especificação nacional para fins de

celebração cívica, quer seja executada interna ou externamente. Além disso, o modo como

o termo é proposto mostra-se capaz, como se pode depreender dos trechos citados, de

engendrar especificações culturais, artísticas, étnicas e antropológicas. Essa especificação

diversificada, pressupondo a ressonância de "barroco", serve de base para o uso do termo

como objeto museológico, isto é, "arte" em um sentido comum, otimizado pelo

atendimento ao mito da origem nacional, capaz de responder aos anseios celebrativos

circunstanciais.

"Barroco", empregado dessa forma, não apenas opera uma celebração nacional

como serve ainda para colocar em circulação a idéia de Brasil no circuito museológico

global, responsável, como assinala Martin Prõsler, pelo fornecimento de critérios visuais de

74 "Art Museums and the Ritual of Citizenship" in Exihibiting Cultures, op. cit., p. 88 75 apud Martin Prõsler, "Museusms and Globalizations", op. cit, p. 24

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reconhecimento de identidades de povos diversos espalhados pelo mundo. A identidade

"barroca" do Brasil, proposta de forma cívica pelos prefácios, tem a vantagem de propor

uma especificação valendo-se de um termo comum à História da Arte e aos museus do

mundo. Ao mesmo tempo então que a identidade é proposta, parâmetros de

comensurabilidade e de tradução são propostas com ela, tomando a cultura do Brasil, como

insistem os catálogos, simultaneamente universal e particular. A disponibilização de uma

imagem museológica oficial do Brasil, através da proposição assim feita de "barroco"

segundo anseios circunstanciais de celebração cívica, é a primeira operação discursiva

operada pelos catálogos por meio de seus prefácios.

76 "Art Museums and the Ritual o f Citizenship", op. cit., p. 89

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4 As introduções: a instrumentalização da leitura de "barroco"

Se os prefácios reivindicam relevância cívica para as exposições, seja constituindo

uma ocasião propícia para elas, seja aduzindo a pertinência das obras exibidas, as

introduções certamente têm outra função. Uma vez determinada a importância do evento,

os catálogos operam uma segunda marcha operatória: a apresentação de urna moldura

interpretativa geral para as obras expostas. Essa moldura geral é oferecida pelas

introduções.

É certo que se poderia argumentar que os prefácios também, de certa forma,

oferecem essa moldura ao proporem a exibição de um "barroco" relevante em termos

nacionais e cívicos. No entanto, algumas particularidades dessas duas partes constitutivas

dos catálogos indicam funções específicas de cada urna delas. Os prefácios são textos mais

curtos escritos num registro celebratório, como vimos. O tom marcadamente elogioso,

oficial e cerimonial é propício para que se façam constatações mais gerais, sem

propriamente uma argumentação mais cerrada ou mais analítica. As introduções, por sua

vez, mais longas, são quase textos acadêmicos: há levantamento de questões teóricas,

estéticas, históricas e historio gráficas a respeito do tema das exposições.

4.1 A instrumentalização da leitura das exposições

Esse acabamento analítico permite que as introduções ofereçam o que as assinaturas

ilustres dos prefácios não podem oferecer: as autoridades argumentam a partir do interesse

público; os curadores que assinam as introduções, por sua vez, instrumentalizam

tecnicamente esse interesse, amparando-o num registro discursivo mais específico. Se as

exposições fossem propostas apenas como evento cívico, poder-se-ia criticá-las pela falta

de mobilização de conhecimento regrado: seriam assim meros eventos oficiais de

circunstância, organizados de forma amadora, sem instrumentalização museográfica

adequada.

Instrumentalizando então as exposições, as introduções o fazem numa via de mão

dupla: em uma direção, registram a própria confecção conceitual das mostras, já que

indicam um certo caminho percorrido pelos curadores - no limite, esses textos introdutórios

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são praticamente defesas de tese, pois manifestam uma tomada de posição regrada e

embasada em um repertório específico; em outra direção, estabelecem o caminho

conceitual que deve percorrer o espectador da mostra na interpretação do que vê. As

introduções assim estabelecem dois percursos que são sobrepostos: o conceitual que preside

a exibição dos objetos e aquele que deveria ser seguido na interpretação desses objetos.

Elas prevêem assim o visitante ideal das mostras, aquele que acompanha passo a passo os

curadores que a organizaram.

Se os prefácios supõem um todo acabado ("barroco" e sua significação brasileira,

ambos propostos consensualmente), as introduções insinuam como esse todo é estruturado,

ainda que, para oferecer uma moldura interpretativa para as mostras, os textos introdutórios

referem, pressupõem ou realizam totalizações. O caráter mais sintético dos prefácios e a

disposição mais analítica das introduções são adequados, em justa medida, para as tarefas

que ambos visam cumprir: aqueles chamam a atenção para a importância, relevância e

pertinência cívica dos eventos que celebram, estas nos ensinam como as exposições

deveriam ser lidas, ou melhor, demonstram que as exposições foram organizadas de modo

que uma leitura regrada delas pode ser efetuada. Trocando em miúdos, os prefácios

convidam para a exposição; as exposições, por sua vez, sugerem o que se verá lá e como

devem ser consumidos os objetos lá expostos.

A instrumentalização da leitura das exposições é o primeiro papel que cumprem as

introduções. Esses textos indicam quais categorias de leitura devem ser mobilizadas para a

fruição das obras e demonstram as relações possíveis entre os objetos expostos. De um

modo geral, as introduções, em suma, procuram instruir, ao explicitarem a arquitetura

conceitual das mostras, as visitas às exposições. Vejamos quais são os mecanismos comuns

das introduções no que se refere a essa instrumentalização da leitura das exposições

4.1.1 Definições de "barroco"

O primeiro desses mecanismos é o oferecimento de uma teoria de "barroco" que

subsidiaria a exposição dos objetos rubricados pelo termo. Todas as introduções, em algum

momento, tentam definir ou pressupor o que seja "barroco". Elas o fazem de dois modos

por vezes indissociáveis: ora as definições baseiam-se na ressonância de "barroco", isto é,

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no alargamento do escopo de referência do termo; ora fundamentam-se na polissemia de

"barroco", ou seja, na referência aos diversos sentidos que o termo ganha em seus usos

correntes. Ambos os modos de defmição de "barroco", ao mesmo tempo em que referem a

ressonância e a po!issemia do termo, viabilizam-nas como subsídio tanto dos projetos

curatoriais que se embasam nessas definições quanto do oferecimento de categorias de

leitura para as obras expostas. As definições de "barroco" operam, pois, o primeiro

mecanismo de instrumentalização técnica e museográfica da leitura das exposições.

As definições amparadas na ressonância são aquelas que oferecem "barroco" como

uma espécie de "caldo de cultura" de onde emergem as "obras barrocas" expostas. Esse

modo de definição de "barroco" leva em conta a explicitação de modalidades expressivas,

de dramas existenciais, de estilos de vida, de mentalidades e de aspectos religiosos,

culturais, sociais e históricos diversos de modo a propor "barroco" como um "espírito de

época" operante na produção das obras. Vejamos alguns exemplos desse tipo de definição

de "barroco":

O Barroco é portanto essa arte que subverte os ditames do Concílio de T rento, na explosão do movimento de triunfantes linhas curvas, dos grandes ornatos, dos claro­escuros, arte feita para seduzir o homem e envolvê-lo, deixando perplexo diante de Deus, tomado pelos sentidos (Universo Mágico, p. 18)

A arte barroca vem traduzir o drama do homem que se instala no centro do mundo, no eixo principal dos acontecimentos, mas que ainda estremece ante a idéia avassaladora do divino. (Brasil Barroco, p. 35)

o Barroco, mais do que um estilo de arte ou rito religioso, é um estilo de vida impregnado no mundo íbero-americano (Brasil Barroco, p. 36)

Primeira expressão artística a manifestar a unidade do mundo decorrente das grandes navegações, ("barroco"] é o veículo da conquista e da colonização, ao colocar sua maleabilidade a serviço da formação dos novos mundos (Idem).

Fenômeno histórico, que se desenvolve em Roma no primeiro terço do século XVII, o Barroco caracteriza-se por sua força de expansão, que lhe permitirá dar a volta ao mundo e tornar-se a primeira arte universal da História (Brasil Barroco, p. 42)

A amplificação da ressonância de "barroco" em algumas introduções, a fim de

estipular um número cada vez maior de situações histórico-culturais que possam ser

chamadas de "barroco", ou propiciadoras de "barroco", conduz a uma definição do termo

sem contornos precisos. "Barroco", proposto dessa maneira, é capaz de estar em

conformidade com qualquer situação histórica, geográfica, social, etc:

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Esta vitalidade sem fronteiras do Barroco, sua d uctilidade e m aleabi!idade, que I he permitem adaptar-se aos contextos sociais, políticos e geográficos mais diversos e às tradições culturais e espirituais opostas, explicam-se, sem dúvida, por seu caráter de arte sem doutrina. (Brasil Barroco, p. 42)

Insistindo na ausência de teoria de "barroco", essa teoria de "barroco" estabelece a ausência

de limites para a ressonància do termo:

[ ... ] este vazio doutrinai, que destrói nossos esforços de definição, faz do Barroco uma arte que não se opõe a nenhuma outra arte, mas que se adapta a todas as situações (Idem)

Essa última definição de "barroco", insistindo em sua ressonància, já pode ser

enquadrada no segundo tipo de definição de "barroco", a definição por polissemia. Edouard

Pommier, autor da introdução cujo trecho acabamos de citar, prevê, a partir da ausência de

limite para a ressonància de "barroco", múltiplas definições do termo, todas incapazes,

segundo ele, de abarcar "este vazio doutrina!". Esse mecanismo, o de pressupor as inúmeras

significações que o termo pode mobilizar a partir de seus usos correntes, também é

utilizado pelas introduções de modo a definir "barroco" e de disponibilizá-lo como

categoria de leitura aplicável ás obras expostas. A referência à polissemia de "barroco"

instrui o visitante da mostra acerca do modo como se usa o termo que resume os objetos

expostos. A própria definição de "barroco" como "arte sem doutrina" refere e tenta

contornar a polissemia de "barroco":

A exposição não pretende propor uma nova definição do Barroco. Mas os critérios sobre os quais os historiadores se basearam sucessivamente mostraram seus limites, sejam eles critérios formais, sociais ou religiosos. (Brasil Barroco, p. 42)

Outro exemplo desse tipo de definição de "barroco" pode ser extraído da

introdução do catálogo Universo Mágico. Essa introdução alinha o projeto curatorial no rol

de usos diversos do termo, referindo "inúmeras abordagens estéticas" aplicáveis a

"barroco":

Das inúmeras abordagens estéticas que se podem fazer com relação ao Barroco brasileiro, esta, que pretende envolver as múltiplas linguagens da criação humana que trazem sua marca, talvez seja tão contraditória quanto eloqüente [ ... ] (Universo Mágico, p. 15)

Mais explícito, contudo, com relação à polissemia de "barroco" é o curador de Brazil: Body

& Sou!:

The use o f the term "baroque" presents both semantic and conceptual problems. It ís rife with Eurocentric references and clichés regarding overabundance and decoration.

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[ ... ] "Baroque" has been employed in so many contexts that it has become virtually void of specific meaníng, líke many other desígnatíon of artístic styles or chronological periods. (Body & Soul, pp. 8-9)

Nelson Aguilar, curador da Mostra do Redescobrimento define "barroco" dentro desse jogo

de polissemia, referindo a mudança do valor dado a "barroco" na História da Arte

brasileira, como no trecho seguinte já citado no primeiro capítulo deste trabalho:

Com o choque cultural do modernismo, o barroco saí das profundezas onde o século XIX o havia relegado, sobretudo a partir do advento do neoclassicismo. O sintagma "barroco colonial" embutia uma idéia de atraso, de provincianismo, que o poder sucessivamente real, imperial e republicano do Rio de Janeiro fazia questão de confirmar (Redescobrimento, p. 32)

4. 1.2 Narrativas contextuais

Contudo, essas definições de ''barroco", seJam elas propostas por meiO da

ressonância ou através da polissemía, só se efetivam, nas introduções, quando se articulam

em narrativas c ontextuais. A proposição dessas narrativas, ao alimentar as definições de

"barroco" referidas acima, é o segundo mecanismo de disponibilização de categorias de

leitura para os objetos expostos. Estes, uma vez já caracterizados pela definição do termo

que os rubrica ou pela pressuposição acerca de seu significado, são enquadrados e têm a sua

ocorrência explicada por essas narrativas.

Todas as definições dependem de narrativas contextuais para se confirmarem. Um

exemplo bastante notável é o da introdução do catálogo Brazil: Body & Sou!. Depois de o

curador Edward Sullivan afirmar a polissemia de "barroco", explícita que usará o termo

como resumo de uma narrativa:

I therefore use the term in a cautious but praticai sense as a convenient label to characterize a long and complex hístorical process that began in the seventeenth century and reached (in some regions such as the interior state o f Minas Gerais) well into early decades ofthe ninetennth (Body & Sou!, p. 9)

Emanuel Araújo, curador de Universo Mágico, resolve o problema da polissemia

prevista nas "inúmeras abordagens" também esboçando uma narrativa. A "abordagem"

escolhida, ''tão contraditória quanto eloqüente", é justificada pela própria narrativa

contextual que visa cobrir:

Das inúmeras abordagens estéticas que se podem fazer com relação ao Barroco brasileiro, esta, que pretende envolver as múltiplas linguagens da criação humana que

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trazem sua marca, talvez seja tão contraditória quanto eloqüente, refletindo as tumultuosas aproximações culturais e sociais que envolvem a colônia e a metrópole portuguesa entre dois séculos. (Universo Mágico, p. 15, grifo nosso)

Dado o gancho, o curador apresenta urna série de elementos que serão desenvolvidos pela

narrativa que desenvolverá ao longo de sua introdução:

Os múltiplos aspectos que diferenciam ao longo do tempo as regiões brasileiras, entre dois ciclos distintos de riquezas - a cana-de-açúcar no Nordeste, o ouro das Minas Gerais. A transferência da capital do Brasil para o Rio de Janeiro em 1763. O trabalho corporativo e as inúmeras restrições da coroa. Insurreições sociais. A lenta construção de uma identidade nacional, marca do desejo de liberdade dos Inconfidentes mineiros do final do século XVID. A abertura dos portos. A transmigração da Família Real para o Brasil. E a grande ruptura do Neoclassicismo, pondo fim ao período colonial e aos oficios, colocadas agora as novas regras da Academia. É esse cabedal cultural construído por quase dois séculos de história que revisitamos nesta aventura estética, envolvendo arquitetos, escultores e pintores, entalhadores e ourives, músicos e poetas - anônimos muitos, outros com registro na história ou que, de certa maneira, permanecem no imaginário popular, na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco. (Universo Mágico, p. 15)

Em termos gerais, esses elementos apresentados por Araújo compõem a narrativa básica de

todas as introduções. Essa narrativa ainda é especificada por meio de periodizações que,

primeiramente, atentam para as diferentes regiões de produção das obras exibidas: num

primeiro momento, o Nordeste; num segundo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nota-se

particular atenção dada à chamada produção mineira ou "barroco mineiro", quase sempre o

clímax da narrativa apresentada.

Além disso, as narrativas por vezes ainda são especificadas pela particularização de

ciclos estilísticos dessa produção, o que é definido pelo trio "maneirismo/barroco/rococó".

Esse último tipo de periodização pressupõe um uso duplo e simultâneo de "barroco"; o

termo assinalaria um dos estilos verificáveis no conjunto de objetos apresentados e, ao

mesmo tempo, serviria para designar a totalidade desses objetos:

Esta exposição se materializa assim pela reunião de obras de arte de escultura, pintura, ourivesaria, talha, música e poesia produzidas já entre 1640 e 1700, como introdução ao movimento estético anterior ao Barroco propriamente dito, mas que contextualizam uma expressão que se afirma nacionalmente a partir dos Setecentos em suas diferentes fases entre 1700-1730 e 1730-1750, no Nordeste, e que floresce, resplandescente, entre 1750-1820, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. (Universo Mágico, p. 19)

The !ater phases o f this period, after 1750 or so, should be more precisely delineated by the term "Rococo", but generally speak:ing I will employ the word "baroque" to indicate Brazilian art o f the colonial period (Body and Sou[, p. 9)

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O curador da exposição Brazil: Body & Sou!, no trecho acima, explícita o uso

designativo de "barroco" usado por todas as introduções na caracterização de suas

narrativas contextuais: é uma história a respeito da colônia luso-brasileira que as

introduções oferecem para localizar "barroco" e as obras expostas. O uso de "barroco"

como sinônimo de "Brasil-colônia" é mais acentuado, porém, nas introduções do catálogo

Brasil Barroco, que já referem "barroco" desde o descobrimento do Brasil, proposto como

"obra barroca".

Uma narrativa bastante particular, entretanto, é apresentada pela introdução do

catálogo Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento. Como já dissemos, o curador

Nelson Aguilar trata apenas da mudança do valor dado à chamada "arte barroca" na

História da Arte brasileira a partir do modernismo. A narrativa apresentada por ele, diz

respeito, portanto, a essa mudança na avaliação de "barroco".

4.1.3 Significação brasileira de "barroco"

Depois de definir em linhas gerais o que seja "barroco" e de propor narrativas que

amparem essa definição e que localizem historicamente as obras expostas, as introduções

argumentam acerca do significado nacional de "barroco". Tanto as definições apresentadas

quanto as narrativas delineadas encaminham para a proposição desse significado, que é

ainda reforçado pela mobilização de uma série de elementos que o explicitam.

A argumentação, assim como a dos polemistas de Antonio Candido tratados no

primeiro capítulo deste trabalho, baseia-se no que chamamos de circularidade ostensiva, na

postulação simultânea e indistinta de duas assertivas: a brasilidade de "barroco" e o caráter

"barroco" do Brasil. Essa circularidade é combinada, entretanto, como observamos nos

prefácios, com a idéia de "formação". Com relação ao primeiro pólo do argumento circular,

as introduções primeiramente defendem a brasilidade de um certo "barroco" através de

alguns elementos contextuais dados pelas narrativas que elas apresentam. Os textos

introdutórios coletam uma série de elementos que são alinhados com o propósito da

produção de um núcleo brasileiro para "barroco".

Esses elementos, por vezes, dizem respeito à apropriação local de "barroco", que

seria transformado em cada região de produção:

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É a arte barroca que dá forma aos sentimentos da casa grande e senzala. [ ... ] O Nordeste brasileiro redimensiona, nos conventos e nas capelas das ordens terceiras, o destino do barroco americano. [ ... ] Na Amazônia, as igrejas de Belém do Grão-Pará registram o encontro do fluxo barroco com a monumentalidade da floresta [ ... ] O barroco está na bagagem dos sertanistas. vai escalar a Mantiqueira[ ... ]. E entroniza em sua igreja matriz [ em Sabará] a arte luso-paulista dos retábulos em arquivoltas, com talha profusa, douramento e chínoíseríes (Brasil Barroco, p. 36-37).

A apropriação local é reforçada com o suposto "caráter popular de barroco":

[ ... ] o Barroco é uma arte muito visível e legivel, pois apela, sobretudo, para os sentidos, dirigindo-se tanto aos que possuem uma cultura quanto aos que não a possuem. A predicação, a exortação, a profecia devem chegar a todos os homens, a começar por aqueles que fazem parte do povo, por sua vocação para a salvação. [ ... ] A espiritualidade do Barroco incarna-se num naturalismo sensual e apaixonado, que o toma próximo de todos os homens. (Idem, p. 42)

A arte colonial foge completamente à instituição acadêmica. É elaborada em ateliês que seguem a tradição corporativa. [ ... ]progressivamente, a participação de mulatos e negros na atividade dos ateliês toma-se preponderante. (Idem, p. 45).

Tal caráter de "barroco" seria responsável pela unificação e engajamento de estratos

diversos da "sociedade brasileira" suposta:

Existe, no Brasil colonial, uma qualidade de universalismo à qual só o Barroco [ ... ] poderia trazer uma resposta adequada. O mundo colonial brasileiro é o contemporàneo de todas as idades, desde as tribos indígenas [ ... ] até os responsáveis administrativos vindos de Portugal [ ... ]: o tempo do Brasil vai da pré-história à Enciclopédia. O mundo colonial brasileiro é também aquele onde se juntam todos os mundos conhecidos: presença da Europa, da África, mas também da Índia e da Ásia oriental [ ... ] A este universalismo, no tempo e no espaço, que caracteriza o mundo do Brasil colonial, somente o Barroco poderia responder[ ... ] (Brasil Barroco, p. 42-43).

O engajamento, por sua vez, seria otimizado também pela Igreja e pelas corporações de

oficios em torno dela:

[ ... ] no Brasil, até a segunda metade do século XVTI, a arte foi quase que exclusivamente religiosa, sendo a Igreja o lugar para o qual convergiam as aspirações de transcendência dessas almas ainda rnalenraizadas, nos primeiros tempos coloniais. Mais ainda, congregando em confrarias as corporações de oficio, ao reunir sob o mesmo santo patrono determinados grupos profissionais, acabaria por incluir no seu âmbito as diversas categorias étnicas em que se dividiam seus associados. (Universo Mágico,p.17)

[ ... ] o número menos elevado de escravos e a mudança do poder da Igreja que, com a proibição feita às ordens de fundar conventos, repousa na rede de paróquias e, sobretudo, confrarias que asseguram a coesão da sociedade e organizam-se espontaneamente em função dos caracteres sociais, profissionais e raciais. Esta situação cria circunstáncias extremamente favoráveis ao desenvolvimento de uma arte religiosa que foge completamente às diretivas mais rígidas das ordens e que responde diretamente à sensibilidade e às aspirações dos fiéis. (Brasil Barroco, p. 44)

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A configuração popular e religiosa de "barroco brasileiro" também daria conta da expressão

dos segmentos étnicos da colônia:

No Brasil, ela [a "expressão do Barroco"] se traduz em ressonância cultural de um espírito mestiço, nas representações iconográficas dos santos de pura mulatice, santos gordos, de olhos puxados e lábios sensuais, Nossas Senhoras esvoaçantes, navegando pelo universo suspensas por anjos mulatinhos, de um sincretismo que vai incorporando ludicamente o corpo e a alma, já que as mãos eram mestiças, brasileiras (Universo Mágico, p. 22)

Aos africanos trazidos como escravos pela imensa demanda de mão de obra nas minas de ouro e diamantes, o barroco serve como instrumento de adaptação cultural e expressão artistica. [.,] a arte barroca preside seu processo de aculturação e neles aguça e estimula a criatividade. Africanos e seus descendents têm um papel preponderante na grande produção artistica - sobretudo nos campos plástico e musical - que se assinala no ciclo de ouro e dos diamantes. E a linguagem barroca é a primeira vitória no rumo da reconquista da liberdade. (Brasil Barroco, p. 38)

What makes Brazilian Baroque art Brazilian? [,.] there are certainly some iconographic singularities in the Brazilian Baroque, such as the many carvings of black saints. Another aspect that is particulary Brazilian about this art is the intensity, even theatricality of faith and the directness of communication that is established between the object and the beholder in so many instances (Body and Sou!, p. 1 O)

This Afro-Brazilian altars are quintessential testimonies to the multiplicity o f racial elements in Brazil, as well as to the strength of the African presence and the signicance of its forrns o f worship in many sectors o f society (Idem)

Art historian Mariano Carneiro da Cunha states that African artisans participated in the creation of the wood sculptures of Brazilian Baroque churches as early as the sixteen century, and suggests that Brazilian Baroque sculpture o f !ater periods exhibits "African" characteristics, as in eighteenth-century depictions of angels or the Virgin Mary with dark skin. Some o f the outstanding artists o f the Baroque phase o f Brazilian art were African descendent, including O Aleijadinho and Mestre Valentim. (Idem, p. 14)

Por meio de todos esses elementos, "barroco" emanaria brasilidade e funcionaria como

expressão do país em formação, a despeito das "raízes portuguesas" e do ambiente

repressivo da colônia:

Entretanto, é por isso também que, a despeito dessas raízes [portuguesas] e dos próprios mestres portugueses que por aqui se estabeleceram, defendemos a existência de uma estética própria a um Barroco brasileiro, recriado aqui por artistas mestiços, congregados em confrarias e irmandades mestiças, à luz tropical da terra, sob o poder de um povo em formação. (Universo Mágico, p. 18)

[,.] as imposições da Metrópole, do Fisco, da Igreja, do sistema escravocrata, dos preconceitos raciais e sociais, nada sufoca a leveza, a graça a coloquialidade, a fruição prazerosa do estilo em suas mais diferenciadas faces na vida dos mineiros setecentistas [.,] A madona mulata e a revoada dos anjos mestiços abençoam o país nascente. (Brasil Barroco, p. 39)

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Devido a todas essas características "barroco" não só seria apenas plenamente brasileiro,

como também seria registro de brasilidade:

Essa extraordinária imaginária contém, além de sua poética, urna iconografia de inconsteste valor sociológico e espiritual, registro da construção do povo brasileiro onde a brasilidade se expressa, transbordante de criação e invenção. Essa arte popular que deriva do Barroco se revela assim o imenso palco de urna expressividade tropical carregada de ancestralidades, de heranças arcaicas e invenções novas eclodindo a um só tempo, dando lugar à glorificação do indio, do negro, do mestiço [ ... ] (Universo Mágico, p. 26)

A especificidade brasileira de "barroco" é definida pela especificidade da colônia

brasileira que esse "barroco" representa, propicia ou indica. Uma vez defendida a

brasilidade de um "barroco", as introduções partem para o segundo pólo da significação

brasileira de "barroco": o caráter "barroco" do Brasil. Tal caráter é defendido em graus

diferentes de explicitação. Em algumas introduções, na suposta especificidade brasileira de

"barroco". No veículo de expressão e unificação dos segmentos sociais e étnicos diversos

da colônia, estaria o fundamento de "Brasil":

E assim a colônia se manifesta, envolvendo todos em um teatro anárquico, encenação a um tempo sagrada e profana, numa liturgia magnífica que acabaria por moldar este nosso espírito e em muitos sentidos dominá-lo até hoje (Universo Mágico, p. 18)

Presença constante no Brasil desde a colônia, "barroco" teria sido o elemento coesivo na

formação do país:

Por isso,

Sempre pronto a manifestar-se, o barroco é fundador de unidade no universo múltiplo e diverso da cultura do Brasil (Brasil Barroco, p. 40)

O Brasil é este grande país que se encontra no âmago do Barroco universal no qual encontrou uma expressão de sua identidade mais íntima. (Idem, p. 41 ).

Encarnando-se em "barroco", o pais, ao mesmo tempo, seria responsável por refazer

"barroco". Tal asserção é a mediação fmal dos dois pólos da significação brasileira de

"barroco", bem como das definições de "barroco" por ressonância e polissemia:

Nenhum outro país do mundo partilha com o Brasil o privilégio desta vocação quase exclusiva de encarnar-se no Barroco e de oferecer uma imagem múltipla da idéia de Barroco (Idem)

Em linhas gerais, a significação brasileira de "barroco" tem como alicerce a

suposição de que uma "nação brasileira" teria se fundado em "barroco" (não é sem

propósito, portanto, que o termo seja empregado como sinônimo de "colônia"). Uma vez

fundado em "barroco", o caráter do país teria características "barrocas". A configuração,

porém, dessa significação é um pouco mais ousada: apenas "barroco", proposto pelas

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definições referidas, sena capaz de oferecer um meiO expressivo e um mecanismo de

engajamento étnico, animico e religioso necessário para a formação do país. As definições

de "barroco" e as narrativas contextuais que o localizam articulam-se, dessa forma, para

propor uma aderência inescapável entre duas teorias: a teoria de "barroco" e a teoria de

Brasil, ambas verificáveis nos objetos produzidos na colônia. O mais interessante, contudo,

é que a teoria de Brasil por "barroco", ou a teoria de "barroco" por Brasil, ao ser

apresentada em um catálogo de exposição, é oferecida c orno conjuntos de c alegorias de

leitura mobilizáveis para fazer o visível legivel, isto é, para a intelecção dos objetos

expostos.

Explicitando o projeto curatorial adotado pela exposição e disponibilizando

categorias que devem ser empregadas na leitura das obras expostas, as introduções

propõem a significação brasileira de "barroco" como mecanismo que oferece um sentido

para as obras expostas de modo a atender as três exigências de verossimilhança

museológica já referidas. Primeiramente, a significação brasileira de "barroco" atenta para

a exigência pedagógica, pois oferece um repertório a ser aprendido com a exibição das

obras. Ao mesmo tempo, tal significação cria uma alteridade histórica, assinalando um

passado histórico compreensível e cheio de sentido porque posto em perspectiva do

presente: "barroco" é o resumo da formação do "povo brasileiro", configurado pelo

sentimento religioso popular e pela democracia racial; um povo original, como "barroco

brasileiro". Por fim, a significação brasileira de "barroco" atende ainda à exigência

antropológica, pois supõe um "estilo de vida" brasileiro, uma especificação cultural, étnica,

religiosa e artística dos brasileiros na colônia: os objetos "barrocos" constituiriam, segundo

as introduções, prova material da singularidade do povo que os teria produzido. As

introduções, assim, recolhendo alguns pressupostos já referidos pelos prefácios, operam a

formatação das obras exibidas, museificando-as.

4.1.4 "Aleijadinho" como categoria de síntese, organização e hierarquização

A última categoria de instrumentalização da leitura das obras oferecida pelas

introduções é ao mesmo tempo uma síntese que personifica as definições de "barroco"

apresentadas, bem como as narrativas contextuais e as postulações da significação brasileira

de "barroco" referidas. "Aleijadinho" é essa categoria que resume tudo o que as introduções

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instruem a respeito dos objetos expostos. Alguns aspectos biográficos de "Aleijadinho" são

tomados como indícios da síntese que operaria da narrativa da colônia brasileira

apresentada:

Por sua personalidade extraordinariamente forte e seu temperamento ardente, encarna as tensões, contradições e o dinamismo da sociedade colonial, em particular desta sociedade mineira, nascida sob o signo da aventura e de uma paixão desenfreada (Brasil Barroco, p. 46)

A biografia do artista não é apenas síntese da sociedade colonial mas, num arremate de

todas as questões anteriormente postas, de toda a arte "barroca":

Filho de um arquiteto e construtor português e de uma africana escravizada (como a maioria dos grandes artistas plásticos e músicos do período), ele sintetiza, étnica e culturalmente, o processo de nascimento de uma expressão genuína de arte brasileira (Idem, p. 39) O que o Aleijadinho, com sua formação, seu sofrimento, e sua genialidade, resume e transcende é sobretudo o conjunto da cultura plástica e religiosa do Brasil colonial, para transmitir, como uma flor maravilhosa, ao Brasil independente, do qual quase foi contemporâneo. (Idem p. 47)

Funcionando, pois, como síntese, "Aleijadinho" opera também como parâmetro de

classificação e de interpretação para todos os outros "artistas barrocos":

E suas colocações [de Mário de Andrade] sobre o Aleijadinho não deixariam de valer como referência para cada artista, para cada pintor ou escultor aqui apresentados: "O caso dele é perfeitamente o de completamento e coroação duma fase. Ele transporta ao seu clímax a tradição luso-colonial da nossa arquitetura, lhe dando uma solução quase pessoal, e que se poderá ter por brasileira por isso" (Universo Mágico, pp. 26-27)

4.2 A particularização das exposições

As introduções combinam, como vimos, definições de "barroco", narrativas

contextuais, elementos de especificação do significado brasileiro de "barroco" e categorias

de síntese com o propósito de ínstruir a leitura dos objetos expostos. Todos esses

mecanismos constituem uma visita ideal ás mostras. Porém, as íntroduções ainda

engendram uma segunda função nos catálogos. Ao executarem uma combinação específica

desses mecanismos, elas acabam por diferenciar os catálogos e as exposições.

Hipoteticamente, os prefácios, com algumas modificações nas referências mrus

factuais, ou mesmo os estudos, sem modificação alguma, poderiam ser permutados entre os

quatro catálogos sem que se gerasse alterações substanciais nos volumes ou na imagem que

produzem a respeito das exposições que glosam. Para que tal ação hipotética fosse

executada, talvez alguma alteração textual nos prefácios devesse ser feita, pois, como

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vimos, esses textos oferecem uma circunstância particular e propícia como justificativa de

cada exposição. Entretanto, os argumentos que constituem tal ocasião, como também já

vimos, não variam muito de um catálogo para outro: trata-se apenas de variações mínimas

das aplicações dos mesmos pressupostos gerais. Particularmente quando essas aplicações

dizem respeito à defesa dos objetos rubricados por "barroco", a diferença entre os prefácios

de um catálogo e de outro torna-se ainda menos perceptível - no limite hipotético que

estamos considerando, poderiam todos estar celebrando o mesmo evento. Com relação aos

estudos, o mesmo se daria. Ainda que seja notável alguma diferença quanto à forma como

os catálogos organizam os estudos que concatenam (por exemplo com relação aos graus

diferentes de variedade qualitativa e quantitativa dos textos), todos esses estudos, a

princípio, poderiam indiferenciadamente estar contidos em um ou em outro catálogo sem

que alguma diferença mais substantiva fosse notada. A exceção talvez fosse o catálogo

Body and Sou!, que traz estudos a respeito de outros períodos de produção artística além de

"barroco". No entanto, se se considerar apenas a seção "Baroque Brazil", essa permutação

hipotética de textos entre os catálogos poderia ocorrer sem implicar mudanças

significativas no modo como servem de amparo teórico às exposições ou mesmo na

constituição específica que fazem de cada urna delas, pois não há, nesses textos, um

endereçamento muito preciso.

Mas, se nem os prefácios nem os estudos dos diferentes catálogos guardam

particularidades suficientes para diferenciar urna exposição da outra, os conjuntos de obras

exibidos nas quatro mostras, muito menos, podem gerar tal diferenciação. A comparação

das listas de obras de cada exposição indica um número considerável de coincidências,

ainda que haja listas maiores e menores e alguma escolha mais diferenciadora (como o altar

exibido inteiro na Body and Sou!). O conjunto de objetos das exposições é tão parecido que

urna mesma obra (a imagem Santa Maria Madalena de Francisco Xavier Brito) foi

escolhida para ilustrar a capa de dois catálogos, Arte Barroca e Brasil Barroco, entre céu e

terra.

É óbvio, contudo, que se trata de quatro exposições diferentes. A cenografia de cada

urna delas, por exemplo, difere bastante. Nos catálogos, há diferenças mais gerais na

organização editorial que também particularizam, de alguma forma, cada evento, como já

foi apontado. No entanto, amplificamos a indiferenciação entre as exposições e seus

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catálogos para chamar a atenção para o fato de que são as introduções, ao proporem uma

moldura interpretativa para as mostras, que especificam particularidades que as

diferenciam. Mesmo assim, convém anotar, contudo, que as introduções menos divergem

que convergem. Como deixamos pressuposto na apresentação das categorias de leitura

oferecidas, elas partem de um conjunto de tópicas comuns a respeito de "barroco" e da

função que a produção artística designada pelo termo na constituição do Brasil. Certamente,

fazem aplicações mais particulares dessas tópicas, porém todas partem, a princípio, da

apresentação de mecanismos comuns de leitura.

Explicitado já no que as introduções convergem e tentando destacar o segundo papel

que esses textos cumprem como uma das partes constitutivas dos catálogos, procuraremos

agora focalizar no que elas divergem, já que são justamente as introduções as responsáveis

por diferenciar as exposições ao sugerir uma moldura interpretativa própria para cada uma

delas.

4.2.1 Universo Mágico do Barroco Brasileiro: a dupla especificação de um âmbito

A descrição dessa divergência pode ser iniciada através da análise dos títulos das

exposições, pois estes já contêm as premissas básicas que fundamentam as introduções. O

título da primeira exposição, Universo Mágico do Barroco Brasileiro, por exemplo, já

enuncia as duas premissas principais da introdução do curador Emanuel Araújo. A primeira

é a que se baseia na noção de um "barroco brasileiro", critério que, ao mesmo tempo,

identifica os objetos expostos e os dota de significação e de possibilidade de interpretação.

A expressão "barroco brasileiro" preside duas operações interpretativas: por meio de uma

categoria de organização, de cunho estilístico, a expressão funciona como identificador das

obras, que opera, apesar da origem do termo, não apenas estilistícamente, mas também

como categoria de interpretação das obras por meio das noções formais e interpretativas

decorrentes de "barroco". Segundo essa identificação geral das obras, a expressão "barroco

brasileiro" especifica uma singularidade essencial de "barroco", um que seja "brasileiro".

Parte-se então do princípio de que, dentro do conjunto suposto dos objetos organizados

através de "barroco", há um subgrupo identificável como "brasileiro". A expressão

"barroco brasileiro", portanto, rubrica e toma identificável os objetos da exposição,

aqueles, segundo o curador, produzidos no período definido pela colônia luso-brasileira

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compreendido, com alguma relativização, entre 1640 e 1820. No entanto, a expressão opera

além de mera rubrica ou etiqueta de um corpus, pois oferece, como categorias de leitura

dos objetos expostos, primeiramente, "barroco" e suas decorrentes categorias analíticas e,

depois, "brasileiro", o que pressupõe uma especificidade local com relação à produção

desses objetos, assim como um ethos característico que opera nessa produção.

A segunda premissa enunciada no título aparece, no título da exposição e do

catálogo, sob a forma de qualificador da expressão "barroco brasileiro", isto é, o seu

suposto "universo mágico". Por meio desse qualificador, somos informados de que o

conjunto dos objetos apresentados, tipificados por "barroco brasileiro", encerram, ou são

provenientes de um "universo" tido como "mágico". Por "universo", primeiramente,

entende-se não apenas o âmbito específico de onde se originariam os objetos, mas ainda o

caráter totalizador dele, tomado como um todo e composto de partes harmonicamente

encadeadas. Portanto, "universo", tal como usado no título da exposição, além de prever

um mundo específico de onde surgem as obras expostas, denota o todo encadeado que as

obras encerram. Mas esse "universo", como dissemos, é tido com "mágico": é, pois, um

âmbito regido pelo sobrenatural, pelo misticismo, pelo fantástico e de efeito extraordinário.

São essas as duas premissas básicas desenvolvidas pela introdução de Emanuel

Araújo. De um lado, a especificidade de um estilo, "barroco", tomado como categoria

analítica, a partir de uma matriz local, "brasileiro"; de outro, um mundo autônomo e não­

heteróclito aludido pelo caráter místico atribuído às obras catalogadas por esse estilo, que

gera, como efeito geral, uma impressão de fantasia extraordinária. O caráter singular dessas

duas premissas é constituído pelo fato de elas circunscreverem o conjunto das obras

exibidas. Ainda que o curador argumente, em alguns trechos, que "barroco" transborda os

limites do período colonial, indicando uma brasilidade transistórica, o propósito básico da

introdução é o de apresentar essa dupla particularização dos objetos: uma releitura

brasileira de "barroco" e um âmbito onde ocorre tal releitura, a colônia brasileira e seus

aspectos propostos.

Essa dupla especificação se configura por uma combinação particular dos

mecanismos de disponibilização de categorias já descrita no inicio deste capítulo. Araújo,

para propor a dupla particularização, de um lado, oferece definições de cunho religioso de

"barroco" e, de outro, insiste nas narrativas contextuais que especificam um ambiente

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sociocultural da colônia brasileira: com a combinação de ambos, sugere o "universo

mágico". As narrativas contextuais ainda são aproveitadas na especificação de um

"barroco" particularmente "brasileiro". A dita "arte barroca", dado o seu contexto brasileiro

particular, teria sido apropriada de modo original na colônia, o que é demonstrado pela

explicitação da brasilidade dessas obras, definida principalmente por caracteres étnicos: a

produção das obras, aduz Araújo, ficaria a cargo de "mãos mestiças" que imprimiriam suas

marcas características nos objetos produzidos.

4.2.2 Brasil Barroco, entre céu e terra: o transbordamento de qualquer âmbito específico

Se o curador da exposição Universo Mágico insiste nessa dupla particularização, os

autores das introduções do catálogo Brasil Barroco, entre céu e terra, advogam um

transbordamento de "barroco" de qualquer limite particular. A comparação entre os títulos

das duas exposições já insinua esse transbordamento de "barroco": se, no título da primeira

exposição, "brasileiro" é um termo que especifica um "barroco", no título da segunda,

"barroco" caracteriza "Brasil".

A primeira introdução do catálogo, "Uma Aventura Histórica e Cultural, assinada

por Gilles Chazal, diretor do Petit Palais, comporta-se, na verdade, como um prefácio.

Nesse texto, há a defesa da relevância cívica do evento com base na explicitação da pauta

de exposições do museu. Porém, os "argumentos por 'barroco"' apresentados fundam-se

em uma narrativa contextual acerca de "barroco brasileiro". Essa narrativa, apesar de já

ensejar uma instrumentalização da leitura das mostras, está circunscrita, porém, na

proposição da importãncia cívica da exposição.

São as duas outras introduções que realmente oferecem categorias de

instrumentalização da leitura das obras e, ao mesmo tempo, particularizam a exposição. As

introduções "Uma Arte Fundadora de culturas", de Angelo Oswaldo de Araújo Santos, e

"Barroco Brasil Barroco", de Edouard Pommier, insistem, cada uma a seu modo, na

indissociação entre Brasil e "barroco", motivo particularizador da exposição. "Barroco"

designaria noções que seriam responsáveis pelo próprio surgimento do pais, em termos

históricos, sociais e culturais.

Dentre os mecanismo de instrumentalização já referidos, as duas introduções fazem

maior uso das narrativas contextuais. As narrativas propostas explicariam a ocorrência

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histórica de "barroco" e, conseqüentemente, a constituição do Brasil por "barroco". A

primeira introdução, que toma "barroco" como "um estilo de vida impregnado no mundo

ibero-americano", explica como esse "estilo de vida" estaria relacionado à descoberta e à

colonização do país, tomado como uma das "nações barrocas". Além de definir "barroco"

como um "estilo de vida" ibero-americano, Santos ainda estabelece o que seja "o homem

barroco", angustiado entre "o céu e a terra". Em seguida, para provar que "barroco"

operaria uma "maleabilidade a serviço da formação dos novos mundos", narra a ocupação

da América Espanhola e Portuguesa por esse "estilo de vida" e por esse "homem barroco".

No decorrer dos séculos XVI e XVII, "barroco" teria se espalhado pela costa do Brasil,

sendo apropriado de maneira particular em cada um dos lugares por onde teria passado. Por

fim, essa narrativa encontra seu clímax ("barroco", ainda, "vai explodir delirantemente na

aurora dos Setecentos, na grande saga de civilização e cultura das Minas Gerais") e sua

personificação ("Aleijadinho"), e "barroco" é proposto como elemento que se confunde

com Brasil.

A segunda introdução, assinada por Edouard Pommier, busca definir mrus

fortemente o que o texto de Santos conclui: Pommier visa esclarecer "a presença do Brasil

no mundo da cultura dos últimos cinco séculos" através da especificação dos "laços

indissolúveis e permanentes entre o Brasil e o Barroco". A especificação de tais laços é

constituído pela descrição de três ciclos de apropriação de "barroco", que corresponderiam

aos momentos históricos do país - sua descoberta, sua colonização e seu estabelecimento.

Esses ciclos são denominados "barroco recebido", "barroco assinalado" e "barroco

restituído".

Mesmo que tais teses acerca da aderência de "barroco" no Brasil, ou vice-versa, não

sejam completamente estranhas ao texto de Emanuel Araújo, nota-se que, na comparação

das introduções das duas exposições, há uma ligeira diferença de propósito, que definem

molduras interpretativas particulares: se Universo Mágico concentra-se na proposição de

uma brasilidade de "barroco", Brasil Barroco esforça-se em oferecer um caráter "barroco"

do Brasil. São notáveis também as diferenças relativas ao modo como definem "barroco".

Na introdução de Universo Mágico, por mais que haja indicações de padrões - de

mentalidade, de sociabilidade, de organização cultural - que sugerem um transbordamento

relativo a um âmbito especifico criado para "barroco", a aplicação do termo está, de alguma

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forma, circunscrita: diz respeito a aspectos supostos de um tipo de arte religiosa herdada

pela colônia brasileira. As introduções de Brasil Barroco, em outra direção, definem

"barroco" como um conjunto de noções fluídas e sem endereçamento específico - um

"vazio doutrinai", nas palavras de Pommier, pronto a se manifestar, constituindo culturas e

nações, bem como fundamental no entendimento de Brasil. As duas exposições baseiam-se

na idéia de "formação". Contudo, a primeira insiste em uma "formação barroca e colonial

do Brasil", enquanto que a segunda assegura a formação do próprio em meio a uma cultura

global "barroca".

4.2.3 Arte Barroca, Mostra do Redescobrimento; a (re )descoberta de "barroco"

A introdução do curador-geral da Mostra do Redescobrimento, Nelson Aguilar, ao

catálogo do módulo Arte Barroca destaca, como já dissemos, uma suposta mudança de

avaliação acerca da chamada "arte barroca" a partir do modernismo. Essa introdução,

portanto, é capaz de diferenciar bastante a exposição em relação as demais já referidas, pois

os mecanismos de instrumentalização empregados visam propor, como veremos, a

retomada do lugar de "barroco" num cânone artístico nacional. A significação brasileira de

"barroco" também é proposta a qui, mas valorizada c orno reencontro, diferentemente das

outras introduções, segundo as quais esse valor seria estável ao longo da história.

Como prevê o nome da Mostra, a moldura geral criada para "barroco" pela

introdução diz respeito à (re)descoberta de "barroco"; trata-se de uma redescoberta feita em

uma ocasião propícia, já que a exibição de "barroco" tem em vista o oferecimento de mais

um conjunto de objetos dentro do amplo panorama de arte brasileira exibida pela Mostra

nas comemorações dos 500 anos. Por isso, mesmo que proposta de maneira indireta, a

significação brasileira de "barroco", se não explicitada pelos mecanismos de

instrumentalização do que se vale essa introdução, não é ignorada.

Segundo a narrativa contextual proposta por Aguilar, que não dá conta da produção

histórica de "barroco" mas da valorização dessa produção no século XX, "o caminho

aurora! do barroco, índice de fusão das três etnias formadoras do país", teria sido

interrompido no século XIX pelo "advento do neoclassicismo" e pelo estabelecimento da

Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro. Tal caminho teria sido desobstruído, primeira e

parcialmente, pelo inicio do modernismo no Brasil: já em 1917, a exposição inaugural de

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Anita Malfati testemunharia uma "transformação global do contato do homem com o

mundo". As conseqüências dessa transformação diriam respeito a um novo modo de

avaliação de objetos artísticos do passado: "uma série de obras tomada invisível pela

prevalência das normas clássicas descortina-se abruptamente pelo desvendamento de outra

percepção artística". Mas a desobstrução final do caminho seguido por "barroco" teria sido

executada por Mário de Andrade e possibilitada, segundo Aguilar, pela "consciência

inteiramente voltada para a formação nacional" que possuiria o autor modernista.

A introdução do catálogo supõe, como as outras dos demais catálogos, a

significação brasileira de "barroco". Porém, ao invés de apresentar indícios históricos dessa

significação, trata de demonstrar como tal sentido de "barroco" teria sido esquecido e, logo

em seguida, resgatado. A esse respeito, a introdução, em certa medida, aproxima-se dos

prefácios. Logo após a desobstrução final do caminho "aurora!" executada por Mário de

Andrade, Aguilar narra os desdobramentos de tal ação: a fundação de órgãos de

preservação do patrimônio e os estudos de autores estrangeiros a respeito de "barroco

brasileiro". Por fim, apresenta a curadora do módulo Arte Barroca, Myriam Andrade

Ribeiro de Oliveira, como continuadora desses estudos e, portanto, herdeira da retomada de

"barroco". Assim, Aguilar propõe certa pertinência cívica da própria exposição que

organiza: a Mostra seria a última etapa do processo de valorização de "barroco" iniciado

por uma "consciência inteiramente voltada para a formação cultural".

Contudo, a defesa da pertinência da relevância cívica do evento na introdução do

catálogo do módulo adquire funções diferentes daquelas que teria se fosse proposta por um

prefácio: a defesa dessa relevância na introdução, por um lado, disponibiliza mecanismos

de interpretação das obras, que devem ser tomadas como reencontro de objetos artísticos

pertinentes com um patrimônio cultural nacional; por outro lado, diferencia o módulo Arte

Barroca das outras exposições a respeito de "barroco", pois propõe o valor da redescoberta

como fundamento curatorial.

4.2.4 Brazil: Body & Sou/: "barroco" como um dos fundamentos da performática e

antropofágica cultura visual brasileira.

A aproximação entre "barroco" e modernidade também é proposta como moldura

pela introdução do catálogo Brazil: Body and Sou/. Porém, essa moldura difere das outras

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já referidas até aqui porque não se propõe enquadrar apenas os objetos catalogados por

"barroco". O texto do curador Edward J. Sullivan tem como propósito operar categorias de

leitura capazes de denotar rigor conceitual e metodológico na apresentação do grande

panorama apresentado acerca do que é chamado de "cultura visual brasileira", o que inclui

o uso de uma escrita museográfica auto-reflexiva. Tendo corpo e alma expostos, Brasil

teria, como períodos chaves de sua produção visual, o "modernismo" e "barroco".

O título da exposição indica os dois eixos conceituais trabalhados pelo curador. O

primeiro se baseia num jogo entre aparência e essência, entre estereótipo e auto-ímagem,

importação artística e originalidade, tomado como operante na dita "cultura visual

brasileira", cuja configuração, como se percebe, seria "antropofágica". A própria linha

curatorial adotada, baseada no pressuposto de que "resistance and acceptance, and the urge

to appropriate combined with flexibility and resilience shape the indivuality of Brazilian

cultural patterns" (Brazil: Body and Sou!, p. 7), daria conta de combinar, ao mesmo tempo,

o que seria uma visão externa sedimentada a respeito do país e uma auto-imagem criada por

brasileiros a partir de sua arte que visaria responder a essa visão externa. Assim, mais do

que usar a exposição para substituir clichês a respeito do Brasil (mostrando, por exemplo,

uma diversidade cultural e artística que os transbordaria), o curador propõe que os próprios

clichês, enquanto elementos de imaginário e tópicas estabelecidas sobre o país, seriam

categorias operantes na produção e na intelecção dos objetos artísticos representativos da

"cultura visual brasileira", constantes na exposição. Através desse jogo de mitificação e

desmitificação simultâneas, propostos como processos culturais operativos complexos,

Sullivan faz glosa dos módulos da exposição ("The Encounter", "Baroque Brazil", "Afro­

brazilian Culture", "Modem Brazil", "Contemporary Brazil", "Architecture" e "Cinema"),

além de contextualizar em termos geraís a "cultura visual brasileira"

A abordagem de tal "cultura visual", no entanto, ainda se dá por meio de um

segundo eixo conceitual, também previsto no título da exposição. Esse segundo eixo diz

respeito a um engajamento performático suposto como símultâneo de mundo fisico e

metafisico denotado na produção e recepção dos objetos contidos nessa cultura assinalada,

a um caráter teatral particular da cultura brasileira. Segundo Sullivan, seria característica de

uma sensibilidade brasileira uma tendência à teatralização; característica proposta, nos

objetos artísticos que analisa, por um aspecto performativo, tomado como necessário para

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pleno entendimento desses objetos. Entende-se, portanto, a série proposta por Sullivan em

seu texto; série que se inicia com o manto tupinambá e finaliza com os mantos de Arthur

Bispo do Rosário e com os parangolés de Hélio Oiticica, passando pela procissão "barroca"

e sua fé teatralizada, pela alusão de rituais nas obras dos viajantes, pela tela Samba, de Di

Cavalcanti, pelos objetos relacionais de Lygia Clark, e por outras obras que preveriam a sua

realização performática e teatral.

"Barroco" seria fundamental para esses dois etxos conceituais propostos. Com

relação ao primeiro, a "arte barroca" serviria como uma espécie de ensaio de adaptação e

assimilação de um estilo artístico que conseguiria, ao mesmo tempo, representar e agregar

matrizes étnicas e sociais diversas. Porém, "barroco brasileiro" seria efetivamente brasileiro

não apenas pela combinação racial supostamente operada pelos objetos rubricados pelo

termo. "Barroco" seria reahnente brasileiro pela suposição de um fervor de fé performático

e ritualístico, o que alimentaria o segundo eixo conceitual da introdução.

Como se vê, os mecanismos de instrumentalização propostos para os objetos

"barrocos" exibidos não são muito diferentes daqueles utilizados pelas outras introduções: a

instrumentalização da leitura dos objetos "barrocos", assim como nos outros catálogos,

fundamenta-se, principalmente, pela siguificação brasileira de "barroco", proposta aqui

também como engajamento religioso, social e étnico - instrui-se aqui o mesmo: "barroco"

deve ser entendido como fundador da nacionalidade ou da "cultura visual" que a

fundamenta. A novidade, contudo, é que a narrativa apresentada por Sullivan, acerca do

grande panorama da "cultura visual brasileira", não prevê apenas o enquadramento e a

localização de "barroco", como nas outras introduções; "barroco", apesar de não especificar

todo o conjunto de objetos a ser enquadrado, alimenta esse enquadramento, já que é a partir

dos objetos "barrocos" que os dois eixos conceituais da exposição são explicitados. Se

"barroco" não engloba a narrativa apresentada, é o termo que a põe em funcionamento,

dotando-a de categorias pelas quais toda chamada "cultura visual brasileira" será

apresentada.

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5 Os estudos: o museu do museu de "barroco"

Os dois tipos de textos descritos até aqui - os prefácios e as introduções -

concentram-se, cada um a seu modo, na explicitação do significado das exposições: os

primeiros denotam como as exposições, enquanto eventos cívicos, devem ser encaradas; os

segundos, constituindo mecanismos de interpretação das obras expostas e diferenciando os

projetos curatoriais específicos de cada exposição, instrumentalizam tecnicamente a leitura

museográfica dos objetos oferecidos. Nos dois casos, os textos entabulam uma relação

direta com a exposição que complementam discursivamente: agem, como já dissemos, de

modo centrípeto, impregnando de interesse visual e maneiras de ler os objetos expostos.

Definindo dessa forma as funções desses textos, encontramos pressuposto um primeiro

mecanismo de interação que prefácios e introduções prevêem: eles interagem,

primeiramente, com os objetos das exposições. Os argumentos e as categorias apresentados

prevêem a exibição das obras oferecidas pelas mostras, de modo a dotá-las de sentido.

Prefácios e introduções, no entanto, não interagem apenas com os objetos exibidos;

eles se relacionam também com outros textos, dos quais retiram pressupostos e sedimentam

categorias tendo em vista o acabamento conceitual e interpretativo das exposições. Desse

modo, os dois primeiros tipos de texto encontrados nos catálogos prevêem ainda uma

segunda exposição, além da própria exposição dos objetos das mostras: a exibição de outros

textos que fundamentam as linhas curatoriais e os pressupostos interpretativos adotados. Os

catálogos, assim, num primeiro momento, funcionam como uma contrapartida discursiva

das exposições e, num segundo, engendram, por si mesmos, uma exposição, a dos estudos a

respeito dos temas das mostras. Os catálogos, ao agregarem e apresentarem estudos

diversos em tomo dos temas das exposições, realizam uma terceira marcha operatória, a

fundamentação bibliográfica das mostras.

Os estudos apresentados subsidiam os projetos curatoriais adotados. O conjunto

desses textos, porém, sem a mediação e homogeneização proposta pelos prefácios e

introduções, dificilmente formaria uma moldura interpretativa coesa para as exposições.

Como aduzimos no segundo capítulo deste trabalho, esse conjunto é heterogêneo e, muita

vezes, contraditório. A leitura em seqüência de todos os estudos incluídos nos catálogos

não seria capaz de produzir uma imagem clara do que está se querendo expor e, muito

menos, dos pressupostos dessa exposição.

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No entanto, apesar de não articularem um conjunto homogêneo de pressupostos e

propósitos comuns, os estudos cumprem uma função importante nos catálogos: eles

conferem um lastro (teórico, analítico, documental, historio gráfico e interpretativo) das

exposições e das publicações que acompanham. Assinados por diversos especialistas, os

estudos fundamentam as categorias de leitura empregadas pelos prefácios e,

principalmente, pelas introduções, percorrendo uma parcela significativa da produção

intelectual e das diversas abordagens a respeito das obras expostas ou dos assuntos

mobilizados pelas exposições. A presença deles nos catálogos assinala que não basta

apenas explicitar o valor cívico dos eventos ou os projetos curatoriais que animam esses

eventos; para que as exposições se imponham como maneira autorizada de agrupar, exibir e

interpretar diversos objetos, deve ser necessário ainda que um arranjo bibliográfico seja

efetuado, concomitantemente aos arranjos de obras propostos. Os estudos são assim o

museu (textual) do museu (visual) onde se dá a exibição de "barroco".

Os catálogos através do agrupamento de estudos diversos acerca dos temas das

exposições deixam de ser apenas publicações de circunstância, um acessório editorial de

um evento temporário. Eles funcionam como obras de referência a respeito dos assuntos e

obras a que se dedicam as mostras e como confirmação técnica da qualidade delas. Por isso

mesmo, os catálogos parecem constituir um gênero de escrita que se auto-alimenta: nas

listagens bibliográficas dessas publicações, outros catálogos são citados como material de

referência obrigatória.

Dadas as particularidades dos estudos, não ofereceremos um fio analítico linear para

esquadrinhá-los, como fizemos com as introduções e estudos. Agir de tal modo com os

estudos seria o mesmo que oferecer uma introdução alternativa que os homogeneíze e os

sedimente, como fazem as introduções dos catálogos. Tentando, de outro modo, descrever

os estudos, bem como o modo pelo qual eles se valem de "barroco", propomos classificar

esses textos sucessivas vezes a partir de alguns critérios e mapear os repertórios

constituídos por tais textos. Agindo assim, buscaremos analisá-los sem desconsiderar o

caráter de coletânea dispersiva e um pouco caótica que o conjunto deles apresenta77•

77 Além dessa classificação, descrevemos particularmente cada um dos estudos dos catálogos. Essas descrições particulares se encontram nos apêndices do presente trabalho.

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5.1 Classificação dos estudos quando à focalização dos textos

Apesar de os catálogos, enquanto produto editorial dotado de alguma autonomia,

funcionarem de modo independente com relação às exposiçõeso primeiro critério que

poderia ser empregado para classificar os diversos textos que eles veiculam levaria em

conta o grau de focalização desses textos relativamente aos objetos exibidos. Três grandes

grupos de textos podem ser destacados levando em conta esse critério.

5 .1.1 Estudos introdutórios

Nos catálogos, há primeiramente um grupo considerável de estudos que não

focalizam, isto é, não abordam, nenhum objeto exibido. Não tratando de nenhuma obra

particular, esses estudos servem como introdução ao tema das exposições e complementos

as próprias introduções dos catálogos; eles não tratam de nenhum objeto específico, mas

trabalham com o objeto último das exposições, "barroco".

Dentre esses estudos introdutórios, há aqueles de caráter primordialmente

informativo, como "Notas sobre a prata e a mineração do Brasil", de João Marino, contido

em Universo Mágico. Outros textos, também informativos, se propõem oferecer um

contexto histórico dos períodos cobertos pelas exposições, como "O Despertar da Terra",

de Orlandino Seitas Fernandes, Universo Mágico; "Brazil in Historical Context", de

Michael Hall, Body & Sou/; e "O Barroco no país do açúcar", de José Luiz Mota Menezes,

Brasil Barroco. Há aínda aqueles estudos, mais analíticos ou ensaísticos, que propõem

análises diversas acerca desses períodos; a análise do estatuto social do artista na colônia

("A corporação e as artes plásticas: o pintor, de artesão a artista", de Jaelson Britan

Trindade, Universo Mágico), do estatuto psico-cognitivo das mediações culturais

executadas depois dos descobrimentos ("Encontro do Novo Mundo, 500 anos depois", de

Ana Maria de Moraes, Brasil Barroco) e de características antropológicas da cultura

brasileira ("The messages of brazilian rituais: popular celebrations and camival", de

Roberto da Matta, Body & Sou/) são alguns exemplos do que fazem os estudos

introdutórios.

Além disso, há textos que também propõem uma introdução a respeito de "barroco",

sem analisar nenhuma obra específica. Alguns desses textos informam acerca do estado da

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discussão a respeito de "barroco" (corno "O Barroco no Brasil, análise da bibliografia

critica e colocação de alguns pontos", de Augusto C. da Silva Telles, Universo Mágico, e

"Barroco e o mundo conternporãneo", de Benedito Nunes, Brasil Barroco); outros propõem

novas formas de entendimento da categoria ("A tropicalidade de Barroco", de Riccardo

A verini, Universo Mágico). Por fim, alguns dos estudos introdutórios que tratam de

"barroco" combinam, entretanto, mecanismos de todos esses textos já citados. Ordenando a

proposição de contextos, a análise sociológica ou antropológica dos períodos cobertos pelas

exposições, a informação do estado da discussão acerca de "barroco" e a assunção do

significado brasileiro das obras rubricadas pelo termo, esses textos engendram pontos de

partida para os ternas da exposição (corno as duplas de textos de mesma autoria: "Barroco:

a arte da fantasia", Universo Mágico, e "Entre a ordem e o caos. Colonialisrno, escravidão e

barroco", Brasil Barroco, ambos de Nicolau Sevcenko; "Barroco, estilo de vida, estilo das

Minas Gerais", Brasil Barroco, e "The baroque culture ofBrazil", Body & Sou!, de Affonso

Ávila). Esse último tipo de "estudo introdutório", ressonante e misto, organiza o núcleo

conceitual das exposições, mesmo sem focalizar nenhuma obra específica.

5 .1.2 Estudos Panorâmicos

Outros estudos, além dos introdutórios, também propõem urna iniciação aos ternas

das exposições. Porém, diferentemente dos textos que chamamos de "introdutórios", esse

outro tipo de texto, que denominaremos "panorãrnico", refere obras ou grandes conjuntos

de obras. É o caso, por exemplo, de "A imagem religiosa no Brasil", de Myriam Andrade

Ribeiro de Oliveira, Redescobrimento, e "Brazilian Baroque Art", de Cristina Ávila, Body

& Sou!, que oferecem um grande panorama da produção artística da colônia brasileira, o

que inclui a enumeração e a discussão de escolas, regiões e períodos de produção, de

classificações estilísticas e de artífices importantes.

A maioria dos estudos panorâmicos, entretanto, focaliza conjuntos um pouco mais

restritos de obras, embora não se concentrem especificamente em um objeto particular. Os

conjuntos estabelecidos por esses textos ora p odern ser organizados segundo gêneros de

produção artística ("Escultura colonial do Brasil", de Dom Clemente Maria da Silva-nigra,

Universo Mágico; "Ornamentos - encantos do B arroco no Brasil", de W olfang Pfeiffer,

Universo Mágico; "Escultura no Brasil Colonial", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira,

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Universo Mágico; "Notícias sobre a pintura religiosa monumental no Brasil", Clarival

Prado Valladares, Universo Mágico; "As tábuas votivas do ciclo do ouro", Márcia Moura

Castro, Universo Mágico; "A música barroca no Brasil", Régis Duprat; Universo Mágico;

"O Barroco e a literatura", Leo Gilson Ribeiro, Universo Mágico; e "Revisitando a

escultura barroca brasileira", de Maria Helena Ochi Flexor, Brasil Barroco; "A Poesia do

Barroco", Haroldo de Campos, Brasil Barroco; "Brazilian Baroque Architecture", de

Augusto C. da Silva Telles, Body & Sou!; "Toward a Phenomenology ofBrazil's Baroque

Modernism", David K. Underwood, Body & Sou!; "The baroque, the Modem, and Brazilian

Cinema", de Robert Stam e Ismail Xavier, Body & Sou[), ora por critérios temporais ou

geográficos ("A arquitetura e as artes plásticas no século XVIII brasileiro", Myriam

Andrade Ribeiro de Oliveira, Universo Mágico; "O barroco nas Missões", de Armindo

Trevisan, Brasil Barroco; "Barroco no Rio de Janeiro", Augusto Carlos da Silva Telles,

Brasil Barroco).

5 .1.3 Estudos focalizados

Por fim, o último grupo de textos obtido por meiO da classificação segundo o

critério de focalização é constituído por aqueles que chamaremos de "focalizados". Menos

numeroso que os demais, apenas esse último grupo de estudos concentra textos que tratam

especificamente de obras particulares ou de conjuntos muito restritos de obras. Há, por

exemplo, os estudos dedicados a obras de determinados artistas ("Os escultores Manoel

Inácio da Costa e Francisco das Chagas, 'o Cabra'", de Jacques Résimont, Universo

Mágico; "Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho", de Lúcio Costa, Universo Mágico; "A

madeira como arte e fato (considerações sobre a escultura religiosa do Rio de Janeiro

colonial- em Mestre Valentim, um estudo de caso)", de Anna Maria Fausto Monteiro de

Carvalho, Universo Mágico; "Antônio Francisco Lisboa, O Aleijadinho. Misticismo

barroco e elegância rococó na arte religiosa do século das Luzes", Myriam Andrade Ribeiro

de Oliveira, Brasil Barroco), bem como estudos dedicados a uma só obra ("Especulações

em torno da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto", de Lygia Martins Costa,

Brasil Barroco; e "The M ainda Altar of São Bento de Olinda", de Augusto C. da Silva

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Telles, Body & Sou[) ou evento ("Entre a vida comum e a arte: a festa barroca", de Maria

Lúcia Montes, Universo Mágico).

Os diferentes graus de focalização dos estudos concatenados nos catálogos reforçam

a autonomia dessas publicações com relação aos eventos que acompanham. A princípio,

levando em conta uma subordinação total dos catálogos às exposições, poderíamos supor

que esses estudos tratariam pontualmente de cada obra exibida, uma vez que os textos

anteriores, isto é, prefácios e introduções, se preocupam menos com a análise específica das

obras expostas do que com a apresentação de molduras gerais que, se, de um lado, prevêem

a explicitação de pressupostos interpretativos aplicáveis a essas obras, por outro, não

operam análises particulares delas. Porém, tampouco essa análise de cada um dos objetos

exibidos é apresentada pelos estudos ou, pelo menos, pela maior parte deles. Trocando em

miúdos, as catálogos não são circunscritos pelos conjuntos de obras oferecidos pelas

exposições a que se referem.

O fato de os estudos, por vezes, referirem nenhuma obra da exposição ou,

contrariamente, referirem obras que não constam das exposições (é o caso dos estudos

panorâmicos, que, em busca de sistematizar a produção dos períodos a que se dedicam as

exposições, enumeram inúmeras obras que não constam das mostras) demonstra que a

exibição de arte proposta não se encerra nos objetos que exibe. As obras expostas

constituem apenas uma parte de um todo que é referido; elas referem outras obras, numa

"relação funéica", como diria Preziosi78, e pressupõem um contexto em que foram

produzidas e de onde seriam retiradas. Mas, se essas relações das obras expostas com os

contextos produtores e com outras obras não exibidas são apenas supostas pelas exposições,

são os catálogos que efetivamente as constróem, por meio dos estudos. Complementando

virtualmente o que não pode ser exibido, porque as exposições têm limitações fisicas, os

estudos, por vezes, tratam de constituir um contexto para as obras, ainda que não as

refiram; em outras vezes, enumeram diversas obras com as quais aquelas exibidas

78 Preziosi, analisando como obras de arte são tomadas pela História da Arte, em particular, e pela museografia, em geral, anota que se pressupõe dos objetos uma espécie de memória virtualmente inesgotável: cada obra lembraria e dialogaria com uma série de outras. Essa relação é denominada de "funéica" ou descrita como sintomática de uma concepção de tempo "historicamente inflectido". O nome funéico é derivado do conto "Funes, o memorioso", de Jorge Luis Borges, a respeito de uma personagem, Funes, que estaria condenada a lembrar-se de tudo. cf. Rethinldng Art History, op, cit., pp. 21-24

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dialogariam e, eventualmente, analisam alguma obra em particular. Esse jogo de

focalização e desfocalização, considerado o conjunto dos estudos é simultâneo entretanto.

5.2 Classificação dos estudos quanto à especialização discursiva

Levando em conta o uso de jargões específicos, podemos dividir os estudos em dois

grandes grupos. Nos textos do primeiro desses grupos, constituído por aquilo que

chamaremos de "estudos genéricos", não se nota o uso de vocabulário de nenhuma

disciplina específica. A maioria dos "estudos introdutórios" são também textos genéricos,

já que adotam um registro discursivo não especializado e exotérico. Porém, grande parte

dos "estudos panorãmicos" e dos "estudos focalizados" são textos que reconhecidamente

operam sob jargões de disciplinas específicas, de modo esotérico. Evidentemente, os

jargões disciplinares mais usados são aqueles advindos da História da Arte. Tanto as

expressões empregadas tais como "colunas solômonicas", "torsas berrinianas",

"finalização em arquivoltas concêntricas", "expressionismo rococó", "feições hieráticas",

"impressão de movimento ascensório do conjunto", "estilo joanino", "estilo nacional

português" e "retábulos de policromia expressiva" - bem como os mecanismos de

argumentação - pelo "estilo pessoal" e pela "atribuição de autoria", por exemplo - são

típicas dessa disciplina e pressupõem alguma instrução especializada, ainda que, como já

dissemos, a leitura dos catálogos não exija ou requisite um leitor muito instruído. Em

menor freqüência, jargões de outros campos do conhecimento também são mobilizados;

anota-se aqui, por exemplo, registros discursivos semelhantes aos da antropologia,

sociologia, musicologia, critica literária e história cultural.

Esse segundo modo de classificar os estudos pode indicar que esses textos, ao

mesmo temo em que se aproximam e se afastam das obras expostas segundo diferentes

graus de focalização, também atendem a demandas diversas de leitura: tanto um leitor leigo

é contemplado por eles quanto um leitor especializada também é suposto. Esses textos

produzem considerações a respeito do tema da mostra dentro de jogos de linguagem

especializada, o que lhes garantiria, em alguma medida, um maior refinamento analítico e

pertinência disciplinar e, ao mesmo tempo, conseguem traduzir os temas e os assuntos das

mostras numa linguagem comum, o que lhes poderia conferir um auditório maior. Entre um

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leitor leigo e um especializado, os estudos escolhem falar para ambos. A combinação de

registros discursivos diversos insinua também que as obras exibidas podem ser objeto de

reflexão em campos disciplinares diversos.

5.3 Classificação dos textos quanto ao uso de "barroco"

Considerando o modo como os diversos estudos se valem de "barroco", podemos

dividi-los em três grupos. O primeiro seria constituído por aqueles que sequer empregam o

termo. É o caso dos estudos introdutórios genéricos e meramente informativos. Mas,

evidentemente, a grande maioria dos estudos se vale de "barroco" devido ao fato de o termo

descrever os temas das mostras e, no limite, constituir o objeto último exibido por elas.

Entretanto, é possível perceber que os textos que usam "barroco" o fazem de

diferentes modos. Um primeiro grupo de estudos que empregam "barroco", que

chamaremos de "estudos condensadores de 'barroco'", estipulam circunstâncias bastante

específicas para a aplicação do termo. Esse grupo, salvo algumas exceções, é constituído

pelos estudos panorâmicos e focalizados, gerahnente também especializados. Nesses textos,

a abordagem de "barroco" é mais "técnica", e o escopo de referência do termo é definido

pela observação de determinados critérios. Em geral, "barroco", nesse tipo de estudo,

assinala um dos diversos estilos artísticos que teriam circulado nos períodos históricos de

produção artística em que as exposições se concentram; identificável por meio de

abordagens regradas e especializadas, "barroco" comporia uma série de elementos de

identificação estilística, matizado e diferenciado através de dois termos que têm o mesmo

tipo de uso nesses textos: "maneirismo" e "rococó". Os estudos condensadores de

"barroco" elaboram, assim, um uso basicamente descritivo do termo.

Todavia, esse uso descritivo efetuado pelos estudos condensadores de "barroco"

coabita, nos catálogos, ou por vezes no mesmo texto, com um outro tipo de uso, de cunho

mais decididamente interpretativo. Nesse caso, "barroco" não apenas descreve ou etiqueta

conjuntos de objetos, mas ostensivamente os interpreta. Chamaremos o grupo de estudos

que opera esse tipo de uso do termo de "espalhadores de 'barroco"'. Dentre esses textos, a

aplicação de "barroco" não é mediada por critérios técnicos, regrados, especializados e

muito menos formais. Em primeiro lugar, esse modo de aplicação de "barroco" não está

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circunscrito por circunstância alguma: "barroco" pode ser livremente empregado para

assinalar e interpretar mentalidades, culturas, estilos de vida e, fundamentalmente,

nacionalidade. Em segundo lugar, tal uso de "barroco" não se dá pela identificação de

algum elemento tomado como "barroco", diferentemente do que fazem os condensadores

de "barroco", mas pelas uposição a priori de elementos "barrocos" no que se debruçam

esses textos. Os espalhadores de "barroco" são primordialmente os textos introdutórios

mais analíticos. Nesses textos, a definição e a aplicação de "barroco" independem da

focalização de obras e, por isso, "barroco" é espalhado, geralmente numa abordagem mais

culturalista.

Enquanto que alguns textos podem ser facilmente classificados como condensadores

ou como espalhadores de "barroco", muitos outros compõem, por meio da combinação

desses dois modos de uso termo, maneiras mistas de emprego de "barroco". Mesmo nesses

casos, há a predominância de um dos dois modos de uso referidos. Dentre os textos

introdutórios e genéricos, o espalhamento de "barroco" pode se dar depois de algum

momento em que se condensa "barroco". Já os textos panorâmicos e focalizados de caráter

especializado tendem, em seus momentos finais, a espalhar o que foi condensado,

aduzindo, por exemplo, alguma essência "barroca" do Brasil no arremate das designações

regradas feitas por meio do termo.

Um caso bastante específico do emprego misto de "barroco" é constituído pelos

estudos do catálogo Body & Sou/. Na seção do catálogo dedicada a "barroco", são

encontrados estudos condensadores e espalhadores de "barroco". Mas o espalhamento de

"barroco" é executado mais fortemente pelas outras seções dos catálogos. Os estudos a

respeito de arquitetura contemporânea e de cinema brasileiros valem-se do termo para

explicitar a especificidade dos objetos de que tratam. Esses estudos, dessa forma, levam a

cabo o espalhamento de "barroco" insinuado nos diversos estudos dos outros catálogos,

pois tomam o termo como categoria interpretativa não apenas de um abstrato "caráter

barroco do Brasil" mas de diversos produtos culturais produzidos no Brasil até o século

XX.

Seria possível estabelecer urna analogia entre os dois modos de uso de "barroco"

verificados nos estudos e os diferentes graus de focalização e de especialização discursiva

nesses textos. Assim como há um jogo de focalização e desfocalização, de uso de

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vocabulário especializado e leigo, há a condensação e o espalhamento de "barroco".

Espalhar "barroco" pressupõe, como ponto de partida ou referência, uma condensação em

algum objeto ou circunstância específica. A identificação localizada e regrada de "barroco",

realizada principalmente pelos estudos panorâmicos e focalizados, também especializados,

fixa um ponto de referência e de comparação que alicerça a postulação do caráter "barroco"

do BrasiL Inversamente, tal caráter, por sua vez, pressupõe a identificação de "barroco" em

algum objeto produzido por ele.

5.4 Repertórios

Os estudos, distribuídos segundo esse jogo de focalização e desfocalização e os

jogos análogos de especialização e generalização discursiva e de condensação e

espalhamento de "barroco", produzem conjunto diversos de repertórios, exibidos, nos

catálogos, simultaneamente à exposição dos objetos "barrocos". Apesar de o conjunto dos

estudos, como vimos insistindo, não estabelecer um todo homogêneo ou coerente, é

possível, após uma leitura atenta da totalidade desses textos, esboçar uma série de

repertórios comuns constituído por eles.

5.4.1 A significação brasileira de "barroco"

O principal repertório constituído pelo conjunto dos estudos diz respeito ao que

vimos chamando de "significação brasileira de 'barroco"'. Evidentemente, tal significação

não se encontra homogeneamente referida pelos estudos. Porém, o afunilamento de sentido

que prefácios e introduções produzem nos estudos estabelece esses textos como subsídios

de tal focalização, mesmo que não seja oferecida de forma similar em cada um deles. Esses

textos ocupam-se das duas postulações envolvidas em tal significação: alguns argumentam

a brasilidade de "barroco", demonstrando como os objetos denominados pelo termo e

produzidos no Brasil-colônia carregariam traços típicos desse local de produção; outros

insistem mais na segunda postulação, aduzindo que a brasilidade de "barroco" seria

explicada justamente pelo caráter "barroco" do BrasiL Em ambos, a idéia de "formação" é

pressuposta. Mas a grande maioria dos textos que se ocupam exclusivamente da

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demonstração de tal significação de "barroco" trabalham indistintamente com as duas

postulações, oscilando entre uma e outra. Os estudos que mais fortemente explicitam o

valor nacional de "barroco" são os estudos introdutórios, genéricos e espalhadores de

"barroco". O núcleo conceitual das ignificação brasileira de "barroco" é oferecido pelos

textos "Barroco: a arte da fantasia", Universo Mágico, e "Entre a ordem e o caos:

colonialismo, escravidão e barroco no Brasil", Brasil Barroco, ambos de Nicolau

Sevcenko; "Encontro do Novo Mundo, 500 anos depois", de Ana Maria de Moraes, Brasil

Barroco; e "The Baroque Culture ofBrazil", de Affonso Á v lia, Body and Sou!.

5.4.2 Narrativas acessórias e subsidiárias

Em tomo desse repertório principal, algumas narrativas acessórias são formuladas

pelos estudos. A história do Brasil (como nos já citados "O Despertar da Terra", de

Orlandino Seitas Fernandes, Universo Mágico; e "Brazil in Historical Context", de Michael

Hall, Body & Sou!), a situação econômica da colônia ("O Barroco no país do açúcar", de

José Luiz Motta Menezes, Brasil Barroco), transformações sociais e históricas de alguma

forma ligadas à produção artística no país (por exemplo, "A Corporação e as artes plásticas:

o pintor, de artesão a artista", de Jaelson Britan Trindade, Universo Mágico), a formação da

religiosidade popular e de aspectos antropológicos do "povo brasileiro" ("As tábuas votivas

do ciclo do ouro", de Márcia de Moura Castro, Universo Mágico; "The messages of

brazilian rituais", Roberto da Matta, Body and Sou!) e, por fim, biografias de artistas (por

exemplo, "Antônio Francisco Lisboa, o 'Aleijadinho"', de Lúcio Costa, Universo Mágico;

"Antônio Francisco Lisboa, O Aleijadinho. Misticismo barroco e elegância rococó na arte

religiosa do século das luzes", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Brasil Barroco)

são exemplos dessas narrativas acessórias, que são incluídas nos catálogos para amplificar a

ressonância de "barroco" e para subsidiar o valor nacional suposto nas obras etiquetadas

pelo termo, demonstrando como o entendimento de "barroco" e dos objetos rubricados por

ele deve levar em conta o conhecimento de uma série de narrativas envolvendo os períodos

históricos cobertos pelas exposições. Há ainda estudos que apresentam um outro. tipo de

narrativa subsidiária. "Tropicalidade do Barroco", de Riccardo Averini, Universo Mágico;

"O Barroco no Brasil. Análise da bibliografia critica e colocação de pontos de consenso e

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de dúvidas", de Augusto C. da Silva Telles, Universo Mágico; "Barroco e o mundo

contemporâneo", de Benedito Nunes, Brasil Barroco; "Revisitando a escultura barroca

brasileira", de Maria Helena Ochi Flexor, Brasil Barroco; e, finalmente, "Toward a

Phenomenology of Brazil's Baroque Modemism", de David K. Underwood, Body and

Sou!, efetuam uma espécie de revisão bibliográfica do termo "barroco", propondo, por

vezes, novos significados para ele. Amparando o uso ressonante e polissêmico de

"barroco", esses estudos oferecem narrativas acerca dos usos do termo.

5 .4.3 Estudos técnicos de "barroco"

Uma parcela considerável dos estudos, constituída pelos textos panorâmicos,

focalizados, especializados e condensadores de "barroco", tratam de oferecer o que

chamamos de "estudos técnicos de 'barroco"'. A preocupação nesses textos não é

propriamente explicitar o valor nacional das obras rubricadas pelo termo, mas descrevê-las

dentro de categorias de análise de alguma disciplina específica, geralmente a História da

Arte. A análise descritiva de "barroco" pressupõe, primeiramente, a apresentação de um

inventário de obras, bem como a discussão de períodos, estilísticos e cronológicos, da

classificação de obras e da constituição de contextos específicos. Grosso modo, essa análise

descritiva fundamenta-se na classificação de obras segundo o trio

"maneirismo/barroco/rococó", focalizando gêneros específicos ou locais geográficos de

produção ("A arquitetura e as artes plásticas no século XVIII brasileiro, de Myriam

Andrade Ribeiro, Universo Mágico; "Ornamentos -Encantos do barroco no Brasil", de

Wolfgang Pfeifer, Universo Mágico; "Escultura no Brasil Colonial", de Myriam Andrade

Ribeiro de Oliveira, Universo Mágico; "A madeira como arte e fato (Considerações sobre a

escultura religiosa do Rio de Janeiro Colonial - em Mestre Valentim, um estudo de caso),

de Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho, Universo Mágico; "Notícia sobre a pintura

religiosa monumental no Brasil", de Clarival do Prado V alladares, Universo Mágico;

"Revisitando a escultura barroca brasileira", de Maria Ochi Flexor, Brasil Barroco;

"Antonio Francisco Lisboa, O Aleijadinho. Misticismo barroco e elegância rococó na arte

religiosa do século das luzes", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Brasil Barroco;

"Barroco no Rio de Janeiro", de Augusto C. da Silva Telles, Brasil Barroco; "A Imagem

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religiosa no Brasil", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Redescobrimento; e

"Brazilian Baroque Art", de Cristina Ávila, Body and Sou[).

No entanto, também não há homogeneidade no que diz respeito ao "estudo técnico

de 'barroco"': os métodos analíticos e descritivos não são os mesmos em todos os estudos

que se ocupam do oferecimento de tal tipo de estudo de "barroco", assim como há mesmo

textos que criticam os mecanismos de análise empregados por outros. Por exemplo, os

estudos "Tropicalidade do Barroco", de Ricardo Averini, Universo Mágico; "Entre a vida

comum e a arte: a festa barroca", de Maria Lúcia Montes, Universo Mágico; "O Barroco no

país do açúcar", de José Luiz Mota Menezes, Brasil Barroco; e, finalmente, "The Baroque

Culture of Brazil", de Affonso Ávila, Body and Sou!, relativizam o procedimento de

classificação estilística empregado em grande parte dos textos que se ocupam do "estudo

técnico de 'barroco"'.

5.4.4 Fundamentação técnica da significação brasileira de "barroco"

Esse grande repertório constituído pelos "estudos técnicos" não são meramente

descrições no entanto. Mesmo quando esses estudos não espalham "barroco", eles

contribuem para a significação brasileira do termo, alicerçando-o em uma "base técnica".

Por exemplo, a distinção entre estilos regionais pode subsidiar a idéia do valor nacional de

"barroco", porque essa especificação regional pode ser interpretada em termos expressivos.

Da mesma forma, a identificação regrada de "barrocos brasileiros", longe de inviabilizar a

apresentação de um "barroco brasileiro" genérico, pode reforçar a postulação da brasilidade

desse "barroco", uma vez que possibilita a apresentação de apropriações particulares de

"barroco". Um caso exemplar da interpretação em termos expressivos de determinada

especificidade regional da produção é feita por "O barroco nas Missões", de Armindo

Trevisan, Brasil Barroco.

Mesmo os textos que procuram ser fundamentalmente técnicos pode ser tomados

como subsídios da significação brasileira de "barroco" devido ao afunilamento de sentido,

já referido, que produzem os prefácios e as introduções. Uma vez que os catálogos se

iniciam com esses textos que explicitam o valor nacional de "barroco", os textos que

surgem em seqüência podem ser tidos como base do que foi anteriormente afirmado.

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5.4.5 Repertórios particulares

O enfileiramento de textos diversos ainda produz alguns repertórios particulares,

criados não pelo desenvolvimento sistemático ou programático de determinados pontos,

mas pela repetição de algumas propostas. Esses repertórios constituídos pela redundãncia

dos estudos dizem respeito, primeiramente, à predominãncia do chamado "barroco

mineiro" dentro do quadro geral do "barroco brasileiro" defendido. A produção mineira é

importante para os estudos devido a uma série de fatores. Primeiro, seria um "barroco"

retardatário, cuja ocorrência extrapolaria o modo canônico de compartimentalização

estilística. A reminiscência desse "barroco" em pleno século XIX é utilizada como prova de

uma caráter "barroco" do Brasil, uma vez que os objetos rubricados por tal termo

insistiriam em reaparecer ao longo da história do Brasil. Além disso, alguns elementos

contextuais também são empregados na constituição da predominãncia de Minas Gerias. Os

estudos técnicos insistem que a produção mineira teria se dado no ãmbito de corporações

leigas, ao contrário de outras que estariam subordinadas a ordens religiosas. Por isso, tal

produção teria mais liberdade de criação e estaria em maior sintonia com uma sensibilidade

popular. Da mesma forma, mãos mestiças teriam sido empregadas com maior freqüência

nessa produção. Devido a todos esses fatores, a produção mineira seria uma espécie de

coroamento do "barroco" no Brasil.

A insistência na predominãncia de Minas Gerais, por sua vez, gera um outro

repertório particular: a importãncia de Aleijadinho. O nome do artífice é usado pelos

estudos de modo parecido como é empregado pelas introduções, ou seja, é proposto como

categoria de organização e síntese do "barroco brasileiro" oferecido ("Escultura Colonial

do Brasil", D. Clemente Maria da Silva-Nigra, Universo Mágico; "Antônio Francisco

Lisboa, o 'Aleijadinho"', de Lúcio Costa, Universo Mágico; "Barroco, estilo de vida, estilo

das Minas Gerais", de Affonso Á vila, Brasil Barroco; "Antônio Francisco Lisboa, O

Aleijadinho. Misticismo barroco e elegãncia rococó na arte religiosa do século das luzes",

de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Brasil Barroco; "Especulações em tomo da igreja

de São Francisco de Assis de Ouro Preto", de Lygia Martins Costa, Brasil Barroco; "A

imagem religiosa no Brasil", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Redescobrimento;

"The Baroque C ulture o fB razil", de Affonso Á vila, B ody a nd Sou!; "Brazilian b aroque

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art", de Cristina Ávila, Body and Sou[). Os estudos introdutórios, genéricos e espalhadores

de "barroco" vão afirmar que a vida e a obra de Aleijadinho sintetizam não apenas os

estilemas "barrocos" diversos em circulação na colônia, mas resumem as próprias

características e contradições da história da colônia. Os estudos panorãmicos e focalizados,

especializados e condensadores de "barroco" procuram demonstrar o "estilo pessoal" de

Aleijadinho, o modo particular pelo qual o artista teria dado uma contribuição única a

''barroco".

Por fim, o último repertório particular criado pela redundância dos estudos diz

respeito a relações estabelecidas entre "modernismo" e ''barroco". Há freqüentes

referências feitas ao resgate de "barroco" que os modernistas teriam realizado. Essas

referências, longe de apenas historicizar a recepção critica de "barroco", estabelecem a

adequação da visão nacional defendida pelos modernistas, demonstrando como eles

estariam certos em resgatar "barroco" e colocá-lo em circulação nos debates sobre artes no

Brasil.

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Conclusão

Dadas as particularidades deste trabalho e as limitações às quais se circunscreve

uma dissertação de mestrado, não temos propriamente urna conclusão fechada a oferecer.

Em primeiro lugar, procuramos agir apenas de modo descritivo, e não judicativo:

oferecemos uma especificação, não dedutiva, dos empregos de "barroco" nos diversos tipos

de texto que compõem os catálogos. Essa descrição não pressupõe outro modo de uso de

"barroco", um modo mais correto em termos históricos ou menos comprometido

ideologicamente; ao contrário, procuramos explicitar que os usos descritos cumprem

determinados propósitos se a especificidade do gênero de escrita que os encena seja levada

em consideração. Em segundo lugar, o estudo que oferecemos não esgota os assuntos

estudados, e cada um dos pontos I evantados poderia ser desdobrado e especificado com

maior profundidade.

Por isso, como conclusão do presente estudo, oferecemos urna sistematização do

que foi anteriormente proposto. Este estudo compreendeu dois movimentos de análise do

uso de "barroco" pelos textos que compõem nosso corpus. Num primeiro movimento,

buscamos esboçar condições e premissas gerais que animam o uso do termo em questão nos

objetos que analisamos. Num segundo momento, procurou-se esquadrinhar usos específicos

de "barroco" nos três tipos de texto encontrados nos catálogos.

Esse primeiro movimento de análise leva em conta, primeiramente, o fato de que as

exposições cujos catálogos foram analisados fizeram parte de eventos de celebração

nacional, como denotam os prefácios desses catálogos. Assim, procurou-se, no primeiro

capítulo, definir quais elementos que compõem uma "significação brasileira de 'barroco'".

No entanto, como foi defendido então, as exposições fundamentam-se na hipótese de que

tal significação seja consensuahnente compartilhada, visto que "barroco", como tópica de

celebração nacional, é previsto como anterior à confecção das exposições e capaz de

agregar anseios cívicos de comemoração. Devido a isso, as exposições e seus catálogos não

explicitam os procedimentos de viabilização do que chamamos "significação brasileira de

'barroco"', uma vez que a adesão consensual a tal significação é tida como condição

primeira das exposições.

Partindo da hipótese de que o museu negociaria nexos entre conhecimento leigo e

especializado, além de operar a confirmação de tópicas sedimentadas, o que pode ser

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subsidiado pelo próprio jogo de criação e referência de consenso acerca de "barroco" nos

prefácios dos catálogos, analisamos textos, provenientes de um âmbito disciplinar

específico, a História Literária, nos quais a explicitação da "significação brasileira de

'barroco"' foi decisiva. Os textos analisados, Conceito de Literatura Brasileira, de Afrânio

Coutinho, e O Seqüestro de Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso

Gregório de Mattos, de Haroldo de Campos, foram duas das respostas que teve o modelo

historiográfico da Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, reconhecido,

ao mesmo tempo, por fornecer critérios até há pouco capazes de formular uma narrativa da

subjetividade nacional e por não incluir os objetos tidos como "barrocos" nessa narrativa. A

partir desses três textos, usados por nós como parâmetros de comparação, procurou-se

delimitar procedimentos de atribuição de valor nacional a "barroco". O propósito não foi o

de propor uma causalidade entre a polêmica referida e as exposições. Procuramos, de outra

forma, isolar mecanismos argumentativos já empregados em torno da defesa do valor

nacional de "barroco" de modo a explicitar como se propõe nacionalidade através de

"barroco" nas exposições. O objetivo, portanto, foi o de analisar modelos que operam a

proposição retroativa do nacional.

Como vimos, Candido não apenas exclui "barroco" da narrativa que propõe, mas

oferece um modelo historio gráfico que prevê um lugar residual para "barroco", de modo a

não admitir que haja um momento histórico em que sua narrativa da "formação" não opere

e, portanto, de modo a neutralizar os objetos etiquetados pelo termo, propondo-os como

residuais. Coutinho e Campos respondem que o que é deixado como resíduo seria

justamente o mais importante na definição de "literatura brasileira". Além da valorização

literária e estética dos objetos ditos "barrocos", dentro do que entendem como "valor

estético" ou "literário", ambos oferecem, como argumento final contra Candido, uma

proposição circular. Tal como explicitam os dois polemistas de Candido, a postulação do

valor nacional de "barroco" é, na verdade, produzido por duas assunções simultâneas e

dependentes: a primeira seria a brasilidade de um "barroco", ou seja, a identificação de

elementos brasileiros no "barroco" produzido no Brasil; a segunda seria o caráter "barroco"

do Brasil, isto é, a pressuposição de que elementos "barrocos" comporiam a cultura, a

literatura, as artes e mesmo a mentalidade do país. Essas duas assunções, contudo, para

operarem o argumento último contra o modelo historiográfico de Candido, precisam ser

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propostas indistintamente, uma vez que ambas se interrelacionam e se subsidiam de forma

mútua, de modo a defender o "irúcio pronto" através de "barroco" como alternativa à idéia

de "formação" defendida por Candido.

Valendo-se dos termos de tal polêmica como modelo de argumentação do nacional

retroativo sedimentado no museu, observamos que os catálogos propõem a "sigrúficação

brasileira de 'barroco'" de modo misto. De um lado, a proposição circular e dupla do valor

nacional de "barroco" é utilizada, pressupondo, para fins de comemoração e de

especificação nacionais, tanto a "brasilidade de 'barroco"' quanto o "caráter 'barroco' do

Brasil". De outro lado, longe, entretanto, de empregar tal circularidade para propor um

"irúcio pronto", os catálogos combinam a postulação circular e dupla com a idéia de

"formação". A confecção de "barroco" como objeto museológico prevê, assim, o uso

simultâneo de dois modelos, a princípio contraditórios, de proposição do nacional.

No segundo capítulo, ao mesmo tempo em que apresentamos os catálogos que

depois foram analisados, refletimos a respeito da transformação de "barroco" em objeto

museológico, cujos pressupostos ressonantes encontram-se reproduzidos nos catálogos em

uma relação estrutura/uso específica. Num primeiro plano, a "sigrúficação brasileira de

'barroco"', quer como circularidade ostensiva, quer como "formação barroca", prevê o que

chamamos de ressonância de "barroco", isto é, o alargamento do escopo de referência do

termo, que permite que tal palavra seja empregada tanto para designar determinados objetos

quanto para referir mecarúsmos de interpretação desses objetos. Amplificando e

conduzindo a ressonância de "barroco", premissa da sigrúficação brasileira do termo e,

portanto, subsídio primeiro das exposições, os catálogos estruturam-se em forma de

coletânea dispersa que apresenta uma tipologia evidente. Essa tipologia produz dois

movimentos da ressonância de "barroco": um movimento centrífugo, previsto nos

"estudos", que amplifica a ressonância referida; e um movimento centrípeto, constituído

por prefácios e introduções, que conduz essa ressonância à exibição de "barroco". É o jogo

entre esses dois movimentos que produz também uma certa urúdade nos catálogos, urúdade,

como dissemos, apenas performática porque se constitui na referência, realizada por

prefácios e introduções, às exposições.

Num segundo plano, a museificação de "barroco", ou melhor, a museificação da

ressonância de "barroco", atende, por meio do complemento discursivo das exposições

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oferecido pelos catálogos, a uma tripla exigência de verossimilhança museológica:

"barroco" exibido atenta para uma exigência pedagógica, uma vez que constitui repertório

cultural tido como válido; para uma exigência histórica, uma vez que produz alteridade

temporal; e, finalmente, para uma exigência antropológica, uma vez que indica um modo de

vida particular preservado no museu. A disposição textual dos catálogos, como concluímos

então, não só amplifica e acomoda a ressonância de "barroco", como também produz

discursivamente um objeto museológico

Na segunda parte da dissertação, analisamos usos específicos de "barroco" em cada

um dos três tipos de texto encontrados nos catálogos, explicitando funções e modos de

organização desses textos. Os prefácios, que visam propor as exposições como eventos

cívicos relevantes, valem-se de três tipos de argumentos: assinatura ilustre, argumentos de

circunstância e argumentos por "barroco". Em linhas gerais, "barroco" é proposto pelos

prefácios como conjunto de objetos que, dados anseios específicos e circunstanciais do

presente, deve ser exposto de forma cívica. Supõe-se, nos prefácios, a significação

brasileira de "barroco", e, mais do que isso, essa significação é contextualizada e referida

por dever cívico.

As introduções são textos diferentes dos prefácios. Há tanto um maior acabamento

analítico e textual, como há uma especificação pormenorizada de "barroco", apenas

referido pelos prefácios. As introduções instrumentalizam tecnicamente a leitura

museográfica das mostras, combinando definições de "barroco" e narrativas contextuais

com a "significação brasileira de 'barroco"', além da referência à categorias de síntese e de

organização. O primeiro aspecto das introduções é instrutivo. A explicitação dos projetos

curatoriais é desenvolvida tendo em vista a instrução do visitante das exposições, de modo

que esse visitante seja o leitor ideal das mostras, isto é, um análogo do próprio curador.

Num segundo plano, as introduções apresentam uma segunda função: são elas que

particularizam cada exposição e, consequentemente, cada catálogo. O modo particular de

apropriação de "barroco" nos projetos curatoriais explicitados diferencia uma exposição da

outra, o que não é feito por nenhum dos outros textos encontrados nos catálogos. Em suma,

"barroco", nas introduções, é tomado como categoria de instrumentalização da leitura dos

objetos expostos e, ao mesmo tempo, apropriado em cada introdução de modo ligeiramente

diferente, particulariza os eventos.

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Por fim, o conjunto do último tipo de texto verificado nos catálogos, ou seJa, o

conjunto dos estudos, constituí uma segunda exposição símultãnea à própria exposição de

arte que os catálogos complementam: os catálogos, por meio dos estudos, realizam por si

mesmos uma exposição de textos a respeito de "barroco". Assim como um grande museu, o

conjunto dos estudos é diversificado e constituído por objetos muito diferentes entre si. O

que propusemos, então, foi a classificação dos estudos segundo três critérios: a focalização,

a especialização discursiva e a delimitação de "barroco". Além dessa classificação, que

indica que o conjunto dos estudos reproduz, em pormenores, o jogo de amplificação e

acomodação da ressonãncia de "barroco" efetuado pelos catálogos como um todo,

esboçamos também quais são os repertórios constituídos por esses textos através da

repetição e redundãncia.

Os três tipos de texto correspondem a marchas operatórias particulares dos

catálogos tendo em vista a complementação discursiva das exposições. Os catálogos, por

meio dessas três marchas, servem como registro duradouro das exposições, eventos

temporários. A arquitetura conceitual das mostras é registrada por eles, o que inclui a

certificação do "significado brasileiro de 'barroco"' e seu subsídio, a ressonãncia de

"barroco".

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Apêndices

Apresentamos a seguir descrições particulares de cada um dos estudos que constam

nos catálogos.

I. "Estudos" do catálogo Universo Mágico do Barroco Brasileiro

"O Despertar da Terra'", Orlandino Seitas Fernandes

Trata-se de uma espécie de narrativa literária em que se contextualiza a história do

Brasil no periodo ao qual se dedica a exposição. Mais especificamente, narra-se a

descoberta de ouro em Minas Gerias e o apogeu e a queda da mineração. Dá-se destaque

para a formação de uma cultura e de um povo miscigenados. Assinala-se o tom ao mesmo

tempo sexual e religioso com os quais são tratadas a descoberta e a exploração da nova

terra: "E assim foi que o monte Pascoal, surgido do mar como um gostoso seio a pedir

afagos, abriu a Pedro Álvares o descortínio de toda uma conquista - fisica e espiritual - que

foi a terra de Santa Cruz. [ ... ] Disse Caminha das índias que suas vergonhas eram altas e

formosas e trazidas nuas em pelo algum. E essas vergonhas solicitavam e atraíam ouros

órgãos, que não as mãos, para a modelagem de um novo povo. [ ... ] E a terra foi a mais

penetrada, com paixão cega, agora, posto que a cupidez, se desenfreada, não mede

proporções nem faz idéia de grandezas" (p. 33); "E a terra, nua, com negaças femininas,

entre curiosa e pudica foi sendo tratada[ ... ] Mas o amor tudo justifica e Deus perdoa a

intenção reta: o metal preto era ouro, e a união primeira, ilícita, santificou-se pelo

matrimônio" (p. 34)

[publicado originalmente em Scheir, Peter (org). Imagens do passado de Minas Gerais.

RJ/SP/Porto Alegre: Livraria Kosmos, 1968]

"Tropicalidade do Barroco", Riccardo Averini

O texto procura se colocar contra as criticas negativas a "barroco" e às produções

coloniais, aventando a hipótese de que "barroco" teria sido o primeiro momento da História

da Arte a ter uma nota de universalidade extra-européia, qual seja a "tropicalidade",

mesmo do "barroco" europeu, que o título do artigo enuncia. A hipótese é trabalhada

primeiramente a partir da coincidência temporal entre a invenção de "barroco" e a

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descoberta, por parte dos europeus, de novas terras. Amplificando a suposta coincidência

temporal, Averini postula que o mundo novo, "exuberante" em sua tropicalidade, teria sido

tomado como fonte de inspiração de "barroco" na Europa. Justifica isso citando o gosto da

aristocracia européia do XVI e XVII pelo "exótico", além de elencar as características

estilísticas de "barroco" que só poderiam ser pensadas depois do contato com urna nova

terra, diferente e exuberante. Esse caráter extra-europeu, tomado como fonte de "barroco",

e a "situação espiritual" em que se gera "barroco" seriam responsáveis pela inauguração de

um mundo cultural vigente até os dias atuais, caracterizado por urna espécie de

multiculturalização multilateral, definida por "rotura do círculo fechado e vertical da

cultura clássica, alargamento horizontal dos conbecírnentos, aceitação progressiva de

temas, formas, sugestões e emoções provenientes de diversas direções; dilatação que

originará uma linguagem comum de grande força centrípeta em todas as comunidades de

nova formação cultural, espelhadas pelo mundo" (p. 53).

Esse mundo, definido então por essa universalidade diversificada referida, operaria

uma superação dos padrões clássicos vigentes antes de ''barroco", pois esses padrões não

previam a aceitação da diversidade. A universalidade diversificada também seria

possibilitada pela Igreja Católica, que via todos os povos do mundo írmanados em Cristo e

seria responsável pela conciliação entre a tradição cristã-européia e "formas de percepção e

sensibilidades das vastíssimas regiões". A Igreja seria capaz de executar essa conciliação

pois estaria sediada em Roma, cidade que já teria tido, devido ao passado glorioso e

reinante na antigüidade, experiência no remanejamento de urna universalidade

diversificada. Além disso, ao contrário dos protestantes, o catolicismo teria urna

"receptibilidade positiva", que possibilitaria tanto a aceitação de ''barroco" quanto a de suas

fontes extra-européias. Assim, "barroco" seria o indício de um mundo novo, urna "nova

civilização", em que se faria notar a presença e a aceitação das novas terras e povos

descobertos. Essa "nova civilização" também é caracterizada por Averíni através de

mudanças sociais que a navegação e o comércio com as novas terras teriam causado na

Europa.

Defendendo então esse caráter extra-europeu de "barroco", que seria também o

inicio de "uma nova civilização", Averíni alega criar uma perspectiva aberta para

reconhecer a chamada "expressão colonial", não mais tomada como periférica e marginal,

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mas como referência de "manifestações essenciais e determinantes de um espírito

substancialmente modificado". Depois de se colocar contrariamente à crítica negativa com

relação a "barroco", de fazer critica negativa aos "padrões clássicos" e de elogiar a

produção colonial citada, o historiador ainda faz algumas considerações sobre a

tropicalidade referida em "barroco". Segundo ele, "barroco" na Europa seria uma

ampliação fantástica e não verossímil do espaço, ao contrário do que ocorreria no Brasil,

onde "barroco" representaria de maneira realista a exuberãncia da natureza e a superaria.

Por fim, analisa brevemente os "substratos sobre os quais as manifestações artísticas

[coloniais] se apóiam", afirmando que, através de "barroco", os povos indígenas puderam

se reconstruir depois dos choques dos primeiros contatos com o homem branco. Essa

reconstrução se daria a partir das manifestações artísticas protegidas e motivadas pela

Igreja.

[Originalmente publicado em Barroco. Teoria e Análise. Affonso Ávilla. SP: Perspectiva,

1997]

"Barroco: a arte da fantasia", Nicolau Sevcenko

O artigo serve tanto como contextualização histórica de "barroco" quanto como

definição do que seja a arte rubricada pelo termo. Sevcenko parte da premissa de que o

Brasil, nascido sob "barroco", teria até hoje sua "fisionomia" e sua "alma" compostos pelo

"sopro místico" previsto pelo termo; "barroco", então, não seria apenas um estilo artístico

passageiro, mas algo capaz de explicar o Brasil e promover uma síntese cultural. Partindo

dessa premissa, enumera uma série de características, supostas como brasileiras, e as chama

de "barrocas": "se há um traço que perpassa as diferentes manifestações da cultura

brasileira, é justamente esse barroquismo latente, com as vibrações e ressonâncias que lhe

são típicas: extremos da fé, cupidez do poder, anseios messiãnicos, êxtase da festa,

convivência das disparidades, atração das vertigens, mágica das palavras, sonho da glória,

pendor para o exuberante e o monumental, gosto da tragédia, horror da miséria e compulsão

da esperança. Não cabe portanto falar numa era do Barroco, sendo mais apropriado tentar

entender essa dimensão barroca profunda que assinala toda a história do Brasil" (p. 59).

A tentativa de argumentação dessa premissa é do tipo contextual: Sevcenko propõe

uma breve narrativa histórica a respeito de Portugal do XVI, XVII e XVIII, assim como do

Brasil colonial, para contextualizar o surgimento e desenvolvimento de "barroco". Trata do

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que chama de período de decadência de Portugal no período após os descobrimentos

(tensão social, Reforma e a conseqüente instalação do Santo Oficio, enfim, "tudo consumia

a promessa da hegemonia portuguesa"). Depois desse longo período de crise, teria se dado

a restauração do trono português por D. João N. Para comemorar esse júbilo, "barroco"

teria sido criado: "A perda da independência havia sido uma punição coletiva: a cobiça das

conquistas afastara os portugueses de sua Fé e da missão de expandi-la pelo mundo,

enfrentando infiéis, apóstatas e heréticos. Mas chegara a salvação, o retorno ao estado de

graça. Era preciso agradecer confirmando a Fé e sáudando o Rei. Portugal foi tomado de

uma euforia epidêmica. Festas, procissões e celebrações irrompiam por toda parte. Esse foi

o momento inaugural do Barroco." (p. 59).

No Brasil, também haveria júbilos a serem comemorados, por exemplo, a expulsão

do invasor holandês. No entanto, o quadro econômico era sombrio. Sevcenko cita, como

exemplo, os acordos comerciais impostos pelos ingleses. A Coroa portuguesa, para gerar

divisas, teria agravado a exploração do Brasil, incentivando os paulistas a se embrenharem

em território brasileiro atrás de ouro. Daí, novo júbilo: "uma vez maís, a bênção dos céus

recaiu sobre a comunidade luso-brasileira; em fins do século XVII, é conhecida a maior

reserva jamais vista de ouro e diamantes. A imaginação barroca atinge então o paroxismo

da pujança" (p. 60).

Todo esse contexto é oferecido para que se perceba a "atmosfera emocional" que

constituiria a "matriz onde germina o ânimo barroco". Sevcenko passa então a apresentar

algumas características desse ânimo. "Barroco" engendraria uma arte da imaginação,

oposta à arte do intelecto da "cultura renascentista". Não seria uma arte para a elite, "mas

um empenho em ampla escala para arrebatar coletividades, exaltando espíritos pela miríade

dos estímulos sensoriais e choques de emoções". Essa arte também cumpriria uma função

no Brasil colônia: "Na sociedade colonial submetida a extremos de brutalidade e privação,

ela restitui a dimensão dos impulsos afetivos. Apontando para as desigualdades e os

privilégios espúrios, ela suscita estados de harmonia sensorial que recompõem os

fragmentos de um mundo sob tensões tão lancinantes que o ameaçam desintegrar" (p. 60).

Por fim, depois de algumas considerações a respeito do caráter "místico", "vertiginoso" e

"imaginativo" de "barroco", Sevcenko, propõe uma questão final: "Quem não reconhece o

Brasil na fantasia do Barroco? Ou quem não reconhece o Barroco na fantasia do Brasil?"

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"O Barroco no Brasil. Análise da bibliografia crítica e colocação de pontos de consenso e de dúvidas", Augusto C. da Silva Telles.

O texto (originalmente uma comunicação em um congresso de 1980 e

posteriormente publicado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 19,

em 1984) faz uma revisão bibliográfica dos artigos e textos disponíveis naquele período a

respeito da produção artística, mais especificamente, arquitetôníca, do Brasil coloníal.

Telles cita inúmeros historiadores e críticos de arte, além de congressos, simpósios,

compêndios e revistas que tentam dar conta de "barroco" no Brasil, levantando as questões

mais comuns nessa critica especializada e propondo outras que ainda não teriam sido

suficientemente estudadas. Como pontos de concórdia, aponta o interesse crescente do

estudo dos objetos do período, fazendo um pequeno histórico deles, que contempla desde

os primeiros estudos, no século XIX, de Araújo Porto Alegre, até a recente (na época de

produção do texto) produção estrangeira sobre as artes coloníais. Levanta também, como

dissemos, alguns pontos que deveriam ser aprofundados, dos quais citamos: a adaptação, a

partir de especificidades climáticas, de modelos arquitetônícos portugueses, relativos à

construção civil comum, nas diferentes regiões do Brasil; a relação colônia-metrópole no

que tange à confecção de modelos arquitetônícos e arquiteturais empregados na construção

de igrejas (Telles cita, por exemplo, determinadas construções do Brasil cujas

características tardam a a parecer em Portugal); a influência da "escola Borromíníca" em

igrejas construídas no Brasil no início do XVIII; a influência do chamado ''barroco da

Europa Central" na construção de igrejas mineiras, entre outros pontos.

[Revista do Patrimônio Histórico e Arístico Nacional, n. 19. Rio de Janeiro, 1984]

"A arquitetura e as artes plásticas no século XVIII brasileiro", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

O artigo trata da produção plástica e arquitetôníca do século XVIII na colônía luso-

brasileira. Mesmo alegando dificuldade em enquadrar, nos limites de um texto curto, toda

essa produção, Oliveira propõe, primeiro, um panorama geral que localiza essas obras

geográfica e historicamente, e, segundo, uma forma de periodização, organízada por ciclos

e baseada, ao mesmo tempo, em critérios estilísticos e cronológicos da produção

setecentista.

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Com relação a o p anorama gera!, a estudiosa propõe que o X VIII brasileiro teria

assistido a um apogeu e a um coroamento da longa fase de maturação cultural e artística

elaborada nos séculos precedentes. A esse apogeu artístico, corresponderia uma

prosperidade econômica geral (fase áurea da mineração em Minas Gerais) e uma paz

relativa (fim das grandes invasões estrangeiras). As regiões de pujança econômica teriam

também grande produção artística e arquitetônica, e formariam centros culturais produtivos,

ainda que, isoladas entre si, devido ás dificuldades de comunicação e de deslocamento na

colônia. Uma dessas regiões é o nordeste que, apesar do declínio da cana-de-açúcar, tivera

sua estabilidade econômica restabelecida graças à Companhia Geral do Comércio de

Pernambuco e Paraíba, criada pelo Marquês de Pombal. Em Minas, a descoberta do ouro

teria engendrado um novo surto civilizatório e, no Rio de Janeiro, teria havido

enriquecimento graças às atividades portuárias em plena expansão e à mudança da sede do

governo dos vice-reis. Adiciona ainda à lista de regiões prósperas Belém do Pará, que

também teria um importante desenvolvimento na época devido à fundação de uma outra

companhia de comércio.

Antes ainda de apresentar os ciclos cronológico-estilísticos, Oliveira trata de

algumas características gerais a respeito do período. A Igreja teria tido o papel de principal

mecenas do XVIII. Porém, contrariamente ao que ocorreu no XVII, não seriam as ordens

religiosas as responsáveis pela confecção artística ou pela construção dos tempos, e sim as

associações leigas. Os artistas integrantes dessas associações, quase todos mestiços,

segundo a estudiosa, também contribuiriam para outra especificidade do período: como

teriam uma independência maior que os predecessores religiosos, eles estariam, a princípio,

mais abertos tanto à assimilação de novas tendências quanto à invenção de traços

autóctones e à adaptação de modelos europeus em situações locais, com base na mescla

racial. No XVIII, praticamente não teria havido, segundo Oliveira, novas fundações, e o

monumento típico do período seria a igreja da irmandade, de proporções e traços

arquitetônicos singelos, mas requintada em ornamentações no interior. A maior proliferação

desse tipo de construção teria se dado em Minas Gerais, região fundadaj á depois de as

ordens religiosas serem proibidas.

As eguir, Oliveira propõe e desenvolve a p eriodização em três ciclos estilísticos:

"primeiro ciclo barroco", "segundo ciclo barroco" e "ciclo rococó". Quanto ao "primeiro

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ciclo barroco", que se daria entre 1700 e 1730, a estudiosa propõe que a arquitetura

religiosa se mantém ainda basicamente "maneirista" sem grandes inovações. Só haveria

propriamente uma "barroquização" da arquitetura a partir da quarta década do século.

Assim, as fachadas e as plantas continuariam simples; a igreja seria constituída com um

volume retangular, ligeiramente desigual dado o desnível dos terrenos, e seus cômodos

seriam encaixados de forma lógica nesse volume. A mudança que Oliveira aponta,

relativamente a "maneirismo", é o uso diferenciado desses volumes, que se tornariam

simplificados e elegantes. Porém, a despeito dessa simplicidade arquitetônica, nota uma

exuberância decorativa interna; particularmente chama a atenção para os retábulos,

construídos a partir do "estilo nacional português" e para o uso das colunas torsas,

profusamente decoradas, como elemento de suporte. Faz também considerações a respeito

da parte superior das colunas, interligadas por arquivoltas, que deixariam um amplo núcleo

central livre. Oliveira especifica essas características gerais desse ciclo a partir de

construções particulares.

Quanto ao "segundo ciclo barroco", que se estenderia de 1730 a 1700, Oliveira

aponta para modificações diferenciadas em cada uma das regiões já referidas. No entanto,

propõe algumas particularidades: a decoração tornar-se-ia ainda mais exuberante, seguindo

o preceito "barroco" de horror vacui; quanto à talha, haveria a substituição do "estilo

nacional português" pelo "estilo joanino", segundo o qual a estatuária integra-se na talha, e

as colunas salomônicas são usadas com freqüência; quanto aos tetos, os tradicionais

caixotões seriam substituídos por pinturas ilusionistas em trompe l' oeil, porém,

diferentemente da Europa, sem perspectiva no quadro centraL Oliveira indica também que

haveria uma sobreposição de estilos, o que seria creditado ao longo tempo de construção

dos templos, e enumera as igrejas mais importantes feitas nesse ciclo e as características

regionais de aplicação dele.

Por fim, quanto ao terceiro ciclo, o "rococó", compreendido entre 1 7 60 e 1800, a

estudiosa afirma que se trata de um estilo mais ligado à decoração do que propriamente à

arquitetura, apesar de excetuar alguns casos específicos, como as igrejas projetadas por

Aleijadinho. Esse ciclo não apresentaria grandes inovações com relação ao período

anterior, tampouco haveria um padrão unitário de aplicação, exceto em Minas Gerais, onde

a ausência de ordens religiosas teria permitido o desenvolvimento pleno do estilo. Oliveira

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se debruça, dentre as poucas inovações que cita, sobre o uso da luz natural, que enfatizaria

os padrões "rococós" de decoração, corno os motivos ornamentais destacados em ouro

sobre fundo branco ou tons pastéis. Registra também especificidade a respeito da pintura do

forro, que, no Rio de Janeiro, graças a urna maior proximidade com a corte de Lisboa, teria

se dado a partir do "estilo pornbalino".

[publicado em Gávea- Revista de História da Arte e Arquitetura, n. 2, RJ, 1985]

"Ornamentos- Encantos do Barroco no Brasil", Wolfgang Pfeiffer

O texto se inicia verificando a "ornamentação extremamente rica" que se

encontraria nas igrejas do estilo "barroco" do Brasil corno "elemento mais decisivo" para

compreender a "evolução" e o "espírito" dessas obras. Depois de apresentada essa proposta

geral, Pfeiffer faz um breve histórico a respeito do tipo particular de ornamentação referida.

Destaca a simplicidade das edificações erguidas da segunda metade do s éculo XVI e da

maior parte do XVII, bem corno assinala a progressiva ornamentação desses espaços até o

auge do estilo "barroco", logo no inicio do século XVII, quando, enfim, "tudo poderia ficar

inteiramente coberto de talha, acompanhando a parte construtiva e servindo de moldura

para as pinturas".

Depois de apresentar esse breve histórico evolutivo da centralidade da

ornamentação, propõe urna reflexão a respeito da "origem e temática dos ornamentos".

Corno linha a ser seguida ao longo do seu texto, apresenta urna pergunta sobre a

ornamentação das igrejas: os ornamentos seriam apenas elementos de decoração das partes

ou teriam tido urna função significativa, isto é, urna papel a cumprir dentro do conjunto

arquitetônico?

Para responder a essa pergunta inicial, recorre a um esquema histórico que daria

conta das diferentes respostas que sua pergunta teria tido em diferentes períodos históricos.

Primeiramente, refere a Antigüidade Clássica (na qual a ornamentação teria um caráter

tectônico de embelezamento obras), os povos germânicos do primeiro milênio da idade

cristã (segundo os quais a ornamentação deveria ser rica para todos os objetos), a arte

islâmica (que teria também ornamentação extremamente rica) e a arte pré-colombiana (para

a qual a ornamentação seria de extrema importância para a configuração de rituais).

Conclui que, tanto os europeus quanto os indígenas da colônia, estariam inseridos em urna

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tradição já antiga de construção de ornamentos e que, por isso, teriam plena aptidão e

interesse na ornamentação, o que possibilitaria a riqueza da "ornamentação barroca".

Após essa primeira conclusão e depois de alegar que as formas da ornamentação das

igrejas coloniais brasileiras (os altares com seus retábulos) já teriam sido suficientemente

estudadas (cita Lúcio Costa, Germain Bazin e Benedito Lima de Toledo ), Pfeiffer retoma a

questão central do texto. Segundo ele, a "ornamentação barroca seria caracterizada por

"formas em detalhe que nos parecem significativas, apresentando singularidades que

caracterizam bem o espírito criativo aí presente e a sua evolução" (p. 84). Assim, discorre

longa e detalhadamente sobre particularidades da ornamentação das igrejas construídas no

Brasil até o inicio do século XIX, procurando demonstrar a premissa primeira do texto (a

crescente centralidade da ornamentação na constituição do espaço físico das igrejas), as

mudanças de estilo (de resquícios "maneiristas" a um início de "barroco"; do apogeu desse

estilo a influências de um "barroco tardio germânico") e a progressiva aculturação dos

modelos arquitetônicos e ornamentais portugueses.

Por fim, depois de apresentar inúmeros exemplares de ornamentos em igrejas do

XVI, XVII e XVIII, construídas no Rio de Janeiro, no nordeste e em Minas Geraís,

encaminha a conclusão de seu texto: "a imensidade de tesouros [ ... ] com tanta fé a nós

legados" teria tido a participação de "todas as camadas do povo e até dos escravos". Além

de ser exemplar de uma "dedicação que nem sempre podemos encontrar", corresponderia

"ao espírito criador dos homens da Contra-reforma e do Barroco no país". Assim, conclui o

texto respondendo à pergunta inicialmente proposta (se a ornamentação teria uma função

significativa ou se seria apenas elementos de decoração), destacando a "expressividade das

manifestações de fé" em elementos que exprimem "tradicionalmente apenas a beleza e a

riqueza de seu aspecto". Dessa forma, Pfeiffer constrói uma função significativa para a

ornamentação "barroca" no Brasil, pois, segundo ele, deve-se admirar as obras "barrocas"

"pelo seu valor tanto espiritual como artístico, neste país CUJO espírito é,

caracteristicamente, barroco".

"Escultura Colonial do Brasil", Dom Clemente Maria da Silva-Nigra, O.S.B.

O texto de Dom Clemente Maria da Silva-Nigra se constitui como um breve

inventário de imagens religiosas do Brasil Colonial e de seus autores. Porém, antes de

apresentar esse inventário, o texto tece algumas considerações gerais sobre a escultura na

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colônia. O artigo se inicia defendendo que a "escultura ocupa o campo mais vasto e

generalizado" entre as belas-artes do Brasil Colonial (p. I OI). O estudioso propõe também

uma relação entre escultura e arquitetura colonial para mostrar como as imagens funcionam

como "arte própria e quase independente na decoração interna das igrejas coloniais".

Além disso, e numera a lgrunas anedotas f actuais, visando estabelecer uma relação

alegórica entre o culto de imagens no Brasil e a própria história do país e de sua

colonização. Para defender a idéia de que o culto à imagem no Brasil seria tão antigo

quanto a história do país e, por vezes, indistinto a ele, relata o caso da imagem de Nossa

Senhora da Boa Esperança, trazida na capela do navio de Pedro Álvares Cabral. Essa

imagem, segundo Dom Clemente, seria o "protótipo de todas as imagens que durante três

séculos iriam se transferir de Portugal para o Brasil, seja diretamente, seja indiretamente

pela vinda de mestres, que por sua vez iam ensinar a arte portuguesa de modelar e esculpir

a brasileiros: brancos, pretos e mulatos" (p. 10 I). Além do caso da imagem de Nossa

Senhora da Boa Esperança, Dom Clemente enumera alguns outros eventos pitorescos e

relacionados a imagens. Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora da Graça, salva por

Diogo Álvares, o Caramuru, de um naufrágio na Bahia de todos os Santos em 1535, e

depois referida por padre Nóbrega, em 1549, quando da fundação da cidade de Salvador;

refere ainda a imagem de Nossa Senhora das Maravilhas, doada por Dom João ill a

Salvador, revestida de prata em 1628 por artistas baianos, diante da qual o jovem Antônio

Vieira teria tido seu famoso "estalo"; e, porfim, mencionaa Nossa Senhora da Penha

trazida, em 1558, por Frei Pedro Palácios à Capitania do Espírito Santo).

Dom Clemente atesta que um grande número de estátuas, principalmente as usadas

pelos padres jesuítas, teriam sido encomendadas e trazidas de Portugal. No entanto, destaca

também a grande produção local de esculturas e imagens, e aponta para a dificuldade em se

determinar a autoria precisa das obras produzidas antes de 1700 devido à escassez de

documentação antes de tal data. Dom Clemente também elenca imagens e artistas

importantes - todos, segundo ele, superados por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Além dos imaginários e escultores c i vis que cita, lista também outros artífices ligados a

ordens religiosas e os divide em três escolas, correspondentes às ordens a que pertenceram:

Franciscana. Jesuítica e Beneditina. Focalizando a produção particular de cada uma dessas

três escolas, faz uma breve listagem dos principais mestres e obras.

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[ texto originalmente publicado em Museu de Arte Sacra Mosteiro da Luz, SP: artes: Ltda.,

1987]

"Escultura no Brasil Colonial", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

Publicado originalmente em um livro estrangeiro (Pintura, Escultura y Artes Útiles

en Iberoamerica, 1500-1925, Madrid, Manuales Arte Cátedra, 1995, coordenado por

Rámon Gutierrez), este texto retoma algumas das coordenadas gerais já desenvolvidas pela

estudiosa Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira e apresentadas em artigo também publicado

no catálogo Universo Mágico ( "A Arquitetura e as artes plásticas no século XVIII", cf.,

infra). O modelo de classificação por ciclos é retomado e ligeiramente modificado tendo

em vista a inclusão das obras do XVI e do XVII, bem como é modificado de modo a ser

aplicado especificamente á produção e scultórica. Além disso, O li v eira se ocupa também

das características diferenciadoras da produção colonial luso-brasileira em relação à

produção hispano-americana. O artigo se divide em dois movimentos: no primeiro,

estudiosa tece alguns comentários gerais a respeito da especificidade da produção artística

colonial brasileira para, em seguida, no segundo movimento de seu texto, debruçar-se sobre

particularidades da escultura no Brasil colonial, subdividida em três categorias: escultura

monumental em pedra, retábulos e conjuntos de talha e, por fim, imaginária sacra.

Entre os aspectos gerais que diferenciariam a produção colonial brasileira da

produção hispano-americana em geral, Myriam de Oliveira destaca a ausência de tradições

prévias e autóctones de construção permanente ou de decoração pictórica subordinada.

Principalmente devido a essa ausência, "os colonizadores trataram o Brasil como uma

espécie de prolongamento natural das criações arquitetônicas e artísticas da metrópole, cuja

adaptação ao novo solo e latitude se processou sem grandes alterações estruturais ou

formais" (p. 129). Haveria também medidas coercitivas impostas ao desenvolvimento da

indústria local e ao estabelecimento de estrangeiros na colônia, o que explicaria a

predominância de mestres e artistas portugueses, assim como a utilização de elementos,

estilos artísticos e arquitetônicos portugueses. O estabelecimento de uma dicção

arquitetônica própria se gestaria, segundo a estudiosa, de forma lenta e gradativa.

Depois dessas primeiras observações, Myriam de Oliveira elenca determinadas

particularidades regionais, em busca de critérios de especificação da produção da colônia.

De um lado, destaca que a adaptação de "rococó" e influência francesa e germânica,

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principalmente em Minas Gerais e em Pernambuco, teria favorecido uma maiOr

individualidade das escolas regionais dessas regiões. Por outro lado, observa que, no Rio de

Janeiro e em Belém do Pará, num primeiro plano, e Salvador, num segundo, as

diferenciações com relação a Portugal seriam menos acentuadas, pois o "rococó" teria

sofiido a concorrência, respectivamente, do "estilo pombalino" e do" estilo D. João V",

marcadamente portugueses. Oliveira enumera ainda outros estilos em voga na colônia,

dando destaque para a grande extensão cronológica de duração do "maneirismo" e da curta

duração de "barroco" e de "rococó". No entanto, a despeito da duração cronológica desses

estilos, "barroco" e "rococó" teriam legado mais aos períodos posteriores, já que se

conservaram conjuntos de excepcional qualidade, que nada deveriam aos da metrópole. Por

fim, afirma que, no Brasil, assim como em Portugal, diferentemente do mundo hispano­

americano, "os aspectos ornamentais, tanto do Barroco quanto do Rococó, sobrepujam

largamente os estruturais". Por meio de tal afirmação, defende que foram mantidas, à

exceção de alguns conjuntos, as construções em plantas retangulares de nave única, em

detrimento de plantas poligonais e curvilineas, com cúpulas e transeptos, comuns na

tradição hispânica e tidas como características de "barroco". Porém, essa simplicidade

estrutural, contrária aos ditames arquitetônicos "barrocos", "favoreceu a ação dos

decoradores que, pela conjugação dos efeitos escultóricos da talha dourada, aos

policrômicos, produzidos pelos azulejos e pinturas, freqüentemente transformaram espaços

estáticos em dinâmicas composições barrocas" (p. 129)

Após eleger essas caracteristicas gerais, Myriam de Oliveira trata especificamente

da escultura colonial, através da subdivisão já referida. Com relação, primeiramente, à

escultura monumental em pedra, a estudiosa visa demonstrar que a tradição luso-brasileira,

que teria como característica a decoração interna em detrimento da externa, ao contrário da

tradição hispano-americana, teria retardado a produção monumental em pedra autóctone.

Essa característica seria acentuada nas regiões litorâneas, dado ao contato mais estreito com

a metrópole, de onde provinham as peças monumentais necessárias aos conjuntos. Cita

alguns exemplos (como o de Salvador, onde eram importavam-se fachadas inteiras, e do

Rio de Janeiro, onde a importação se acentuou no XVIII) e algumas exceções (retábulos

remanescentes da antiga capela jesuítica de Nossa Senhora da Graça de Olinda, primeira

tentativa de aproveitamento da pedra calcária local). No XVII, no Nordeste, depois da

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restauração do domínio português, teria surgido uma produção suficientemente particular,

uma "autêntica escola regional de escultura ornamental em pedra", segundo Olivera. Elenca

também mais algumas particularidades regionais e as analisa formalmente, além de

discorrer sobre o modo de produção de escultura ornamental no nordeste e em Minas

Gerais (particularmente Aleijadinho e seus "oficiais").

Ao tratar dos retábulos e dos conjuntos de talba, aponta para a importância dessa

produção na decoração religiosa luso-brasileira: "os retábulos, púlpitos, tribunas, painéis

parietais e outros elementos de 'talha' dourada e policromada formam um conjunto à parte,

pela sua íntima ligação com os espaços que simultaneamente decoram e dinamizam, em

relações de complexidade crescente, do Maneirismo ao Rococó" (p. 132). Esses conjuntos

seriam elementos fundamentais, pois funcionariam como "módulos reguladores, aos quais

se subordinam os demais elementos, incluindo os revestimentos azulejares e pictóricos".

Depois dessas considerações iniciais sobre a talha, inicia a análise desse tipo de

produção através de uma periodização estilística. Assim, faz considerações das fases

"maneiristas", "barrocas" e "rococós" pelas quais teria passado a produção de talhas e de

retábulos. Sobre a talba "maneirista", limita-se a dizer que, devido a alguns fatores

(mudança do gosto, invasões estrangeiras e a proibição das ordens religiosas), pouco se

conservou. Os poucos exemplares remanescentes teriam se dado por obra jesuítica. Se o

estilo "maneirista" estaria ligado aos jesuítas, o "barroco" estaria ligado aos franciscanos e

a outras ordens. Seguindo ainda o seu esquema de periodização estilística já referido,

Myriam de Oliveira divide a produção da talha "barroca" em dois subperiodos: o primeiro

(1690-1730) seria a reprodução do chamado "estilo nacional português" que teria como

características os retábulos "de colunas torsas e arquivoltas concêntricas, com intricada

decoração de pâmpanos" (p. 132). A respeito desse estilo cita um caso específico, já quase

"rococó" (o das "cavernas douradas", como o da igreja de São Francisco, de Salvador, na

qual a talba desenvolve-se livremente, invadindo todas as superficies disponíveis,

produzindo um efeito visual de "floresta tropical", povoada de figuras antropomórficas); o

segundo ciclo "barroco" da talba (1730-1760) seria típico do "estilo joanino" e teria como

fundamento a teatralidade visual, isto é, uma ordenação retórica do espaço própria para a

encenação do drama litúrgico. Cita, ainda, particularidades que esse último ciclo "barroco"

teria tido no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Por fim, Myriam de Oliveira trata da última

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fase da talha, a "rococó", que teria sido produzida sob influência francesa e se destacaria

pela decoração - predominância de paredes brancas, alternância de dourado e branco na

talha dos retábulos e iluminação uniforme. Propõe que foi nesse ciclo que se assistiu a uma

maior diferenciação dos modelos regionais de talha e discorre sobre a especificidade,

originalidade e abrangência das produções de Minas Gerais.

Finalmente, a estudiosa passa a tratar da última categoria de escultura, a imaginária

sacra, apontando, de início, para a escassa pesquisa especializada a respeito da escultura

religiosa no Brasil e em Portugal. Para analisar essa última categoria de escultura, recorre

novamente ao seu esquema de períodos estilísticos. A produção "maneirista" seria advinda

de ordens religiosas, principalmente, da Companhia de Jesus e da Ordem de São Bento,

com padrões "estéticos" e "iconográficos convencionais". As características desse primeiro

período seriam: caráter monumental, posturas hieráticas, contenção de formas e expressões

severas, que pouco se diferenciariam das características da produção portuguesa do

período. Também não haveria uma diferenciação regional da produção colonial; haveria, no

máximo, alguma diferença entre as produções das diferentes ordens. Discorre sobre alguns

produtores exemplares (Frei Agostinho da Piedade e Frei Agostinho de Jesus) e supõe que

os artistas teriam maior liberdade na confecção das representações da virgem relativamente

ás imagens dos santos. Essa relativa liberdade, atesta Myriam de Oliveira, geraria a

produção de traços já "barrocos". O período "barroco" se destacaria pela dramaticidade

teatral das imagens e pouco se diferenciaria na evolução para o "rococó". Por fim, discorre

sobre casos específicos, escolas e escultores, destacando a excepcionalidade técnica e

artística de Aleijadinho e de Manuel Inácio da Costa, que souberam produzir sínteses

originais correspondentes a traços "brasileiros e mineiros" e "brasileiros e baianos",

respectivamente.

"Os escultores Manoel Inácio da Costa e Francisco das Chagas, "o Cabra", Jacques Résimont

De cunho mais "técnico", o texto do especialista Jacques Résimont se assemelha ao

resultado de pesquisas preliminares para a constituição de um catalogue raisonné dos

escultores baianos Manoel Inácio da Costa e Francisco das Chagas, conhecido pelo epíteto

"o Cabra". Résimont reúne citações de outros autores, documentos e dados biográficos para

decidir a respeito da atribuição de autoria de obras normalmente relacionadas a esses

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escultores, de modo a definir, ainda que de modo esquemático e geral, o que seria o "estilo

pessoal" dos artistas em questão.

Sobre Manoel Inácio da Costa, o estudioso consegue reurur alguns dados

biográficos e documentos que comprovam, em certos casos, e desmentem, em outros, a

autoria de algumas obras atribuídas ao artista. A partir da análise das obras de autoria mais

confiável (Cristo Crucificado, da Santa Casa de Misericórdia; Conjunto de passos da

Ordem Terceira do Carmo; São domingos e outras imagens da Ordem Terceira de São

Francisco; Senhor do Bom Caminho (Cristo Crucificado), da Matriz do Pilar; Cristo

Flagelado e Cristo da Pedra F ria, do Museu de Arte Sacra; Cristo Ressuscitado e Maria

Madalena; Cristo Ressuscitado; Santa Maria Egypcíaca; Santa Maria Madalena; e Nossa

Senhora de Saúde e Glória), esboça o que seria o "estilo pessoal do artista", que teria certa

originalidade por executar uma "síntese pessoal" de dois estilos: de um lado, o

"neoclássico" e, de outro, "um barroquismo bastante nítido", característico de uma

"sensibilidade barroca nativa". Essa sensibilidade e essa síntese pessoal seriam

responsáveis por produzir urna grande emoção estética, como a produzida pela Nossa

Senhora da Saúde e Glória.

Já sobre Francisco das Chagas, a empreitada do critico não é tão produtiva.

Praticamente não obtém dados biográficos ou documentos que comprovem a autoria das

obras. Dentro do corpus comumente relacionado ao artista, Résimont só consegue perceber

alguma semelbança entre duas delas, o Cristo da Coluna e São Pedro Alcântara. Porém,

essas duas obras se assemelbam em um aspecto que afasta ainda mais a autoria suposta de

Francisco das Chagas, pois, segundo Résimont, essas obras teriam características nítidas de

uma tradição hispano-arnericana (como, por exemplo, um "sentimento patético

exacerbado"), e, sendo assim, é bem provável que teriam sido confeccionadas por algum

artista hispano ou mesmo importadas da Espanha. Dadas essas lacunas sobre "o Cabra", só

observa que, devido ao epíteto, deveria ser negro ou mulato, mas não julga possível

identificar um estilo pessoal.

[publicado em Barroco, n. 14, 1986-89, Belo Horizonte, 1989)

"Antônio Francisco Lisboa, o 'Aleijadinho'", Lúcio Costa

Trata-se da já célebre biografia de Aleijadinho, publicada em 1978, no número 18

da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de autoria do arquiteto Lúcio

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Costa. Trata-se de um texto basicamente narrativo no qual se registram dados biográficos e

de personalidade e obras de Antônio Francisco Lisboa, bem como breves dados contextuais

sobre as Minas Gerais do período. De forma gerai, defende-se o caráter singular das obras

de Aleijadinho, que fariam "deste brasileiro das Minas Gerais a mais alta expressão

individualizada da arte portuguesa do período" (p. 177)

"A madeira como arte e fato (Considerações sobre a escultura religiosa do Rio de Janeiro colonial - em Mestre Valentim, um estudo de caso)", Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

Trata-se de coordenadas gerais para a interpretação e análise dos trabalhos de

Mestre Valentim e, mais especificamente, da sua obra mais famosa, a talha da Igreja da

Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo. No inicio do texto, há

dois grandes movimentos de explicação contextual que visam localizar a produção de

Mestre Valentim. No primeiro, Carvalho faz algumas considerações sobre o oficio de

escultor no período colonial brasileiro. Segundo ela, as igrejas do Rio de Janeiro colonial

desconheciam o surto liberai que teria ocorrido nas artes plásticas portuguesas e que

coincidiria com o inicio do "maneirismo". Nesse período, em Portugal, teria havido uma

emancipação relativa dos pintores do rígido sistema de produção artesanal e mesteiral. Uma

"nobreza" da pintura destacava-se, e esse tipo de produção artística seria considerada uma

arte liberai, pois o artista se encontraria relativamente mais livre: não estaria sujeito, por

exemplo, ás rígidas regras dos grêmios de oficios, que controlavam produção, tributos e

formação dos artistas; o artista dedicado à pintura, não mais apenas artesão, seria, portanto,

"dono" de sua obra. Contrariamente a isso e apesar da legitimidade da escultura de madeira

na arte luso-brasileira, que seria inigualável em qualidade pela pintura, o escultor, o

taihador ou o imaginário tinham seus oficios ainda indefinidos na ambigüidade de

artistas/artesãos. Embora eles pudessem, segundo a estudiosa, constituir oficina própria, os

objetos produzidos estariam ainda sujeitos à administração dos grêmios de oficios.

Na colônia brasileira da época, no entanto, as categorias mestreiras não senam

suficientemente organizadas e, relativamente a Portugal, a submissão a grêmios de oficios

seria menos rigorosa. Para comprovar o que chama de "fluidez na especialização",

Carvalho cita trecho de Lorivai Gomes Machado, segundo o qual, essas características

fluidas de constituição do oficio de entaihador funcionariam como possibilidade de

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"movimentação ascensorial na rígida estrutura escravista" e denotariam um novo grupo

social, "nem cativo, nem senhor, cuja tez é ignorada e cuja presença é indispensável" (p.

181). Essa indefinição estatutária a respeito do oficio sofreria ainda um agravante étnico: as

profissões ditas "mecãnicas" serem comumente exercidas por mestiços, que, por serem

mestiços, não poderiam abrir loja. É esse o contexto referido para localizar Mestre

Valentim, que se inseriria nesse estatuto ambíguo de artista/artesão, além de ser mulato e,

mesmo assim, possuir oficina própria.

No segundo movimento contextual do artigo, Carvalho discorre longamente, de

maneira narrativa, a respeito dos estilos em voga relativos à produção de escultura religiosa

nos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como analisa casos específicos de manifestações

desses estilos na colônia e, mais especificamente, no Rio de Janeiro colonial, onde atuou

Mestre Valentim. Assim, trata das especificidades formais e técnicas do "maneirismo"

(XVD, do "barroco" (XVII), do "rococó" (XVIII), de suas apropriações particulares e de

subestilos construídos em determinados períodos.

Depois desses dois movimentos de localização contextual, que dariam coordenadas

básicas para o entendimento da produção de Valentim, Carvalho analisa detalhadamente "a

primeira obra que o distinguiu como o principal entalhador da cidade [do Rio de Janeiro] da

segunda metade do século XVII aos alvores do XIX" (p. 187): a talha da Igreja da

Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Encaminhando essa

análise, fornece alguns dados: a capela teria demorado vinte anos para ser executada e

apresentaria, a despeito de todo esse período de execução, uma grande unidade de estilo

(regional e individual) do artista, que tem a autoria comprovada documentalmente.

Enumera, então, detalhes da obra e persegue neles o que seria o estilo pessoal do artista,

comparando-os com outros de outras obras (por exemplo, os elementos decorativos na

coluna torsa berniniana, que "denunciam em seus pormenores, caraterísticas inconfundíveis

da grafia plástica valentiniana, uma vez que se repetem em outras obras", [p. 188]). Grsso

modo, propõe que os ditames do estilo "rococó" seriam apropriados e adaptados pelo estilo

pessoal de Valentim. Mais do que isso, Carvalho conclui que a obra desse artista denotaria

um estilo individual regido por um "hibridismo", no qual "tendências estéticas do século

XVIII estão amalgamadas, denunciando mecanismos de apropriação e de resistência que

caracterizaram o processo de aculturação da capital colonial" (p. 192)

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[originalmente publicado em Gávea -Revista de História da Arte e Arquitetura, n. 1 O, RJ:

PUC/RJ, Departamento de História, 1993]

"Notícia sobre a pintura religiosa monumental no Brasil", Clarival do Prado Valladares

O texto trata da "pintura religiosa monumental" no Brasil, que é definida pelo o

autor como um tipo específico de pintura feita "para a decoração das igrejas e conventos,

compreendendo a nave e outras dependências, porém sempre proposta como integração do

espaço arquitetura!". Não fariam parte desse conceito de pintura, portanto, "telas ou

retábulos acrescidos por impulso devocional posterior" (p. 199). A "pintura religiosa

monumental" restringiria-se, então, ao que integra arquitetonicamente o templo, como

monumento, e não como simples ornamento. Depois de apresentar essa definição, afirma, a

partir de um detalhe da tela Ruínas da Sé de O/inda de Frans Post, datada de 1662, que as

igrejas de Olinda- igrejas portuguesas no Brasil- já teriam possuído pintura monumental

há longa data. Segundo Valladares, uma ampliação fotográfica da tela indicaria que um dos

quadros da igreja seria uma pintura de Santa Quitéria conservada pelo Patrimônio Histórico

do Recife. Ainda sobre a tela de Frans Post, Valladares, valendo-se da data de 1588 que

Post teria desenhado sobre a portada da igreja, enuncia que se deve correlacionar a Sé de

Olinda com as construções coetâneas de Portugal. Passa então a enumerar críticos para

analisar a probabilidade de "se pensar em modelos transmitidos ao Brasil". Conclui que

seria admissível correlacionar as igrejas de Olinda e, posteriormente, as de Recife, numa

descendência das construções "barrocas" do norte de Portugal e desenvolve um pouco essa

conclusão, ponderando a respeito de particularidades estilísticas e arquitetônicas.

Após essa breve introdução, elabora divisões da pintura monumental religiosa na

colônia luso-brasileira, elencando dois "partidos decorativos das igrejas no Brasil": o

primeiro, o dos caixotões (de talha com painéis ou fingidos) e, o segundo, o dos painéis

configuradores de elementos arquiteturais e cenográficos. Sobre o primeiro, exemplificando

com uma série de igrejas, caracteriza o estilo de caixotões em talha de cenas hagiográficas

com uma explicação contextual: seria a forma de construção espacial dos templos mais

típica das regiões mais ricas, que teriam maior disponibilidade de mão-de-obra e mais

recursos abundantes capazes de financoar construções mais caras. Ainda a respeito desse

primeiro "partido", Valladares comenta o sentido sugerido pelas pinturas contidas nos

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caixotões: "muitas dessas pinturas são dominadas pelo fulgor da talha, pouco importando o

sentido narrativo das cenas que parecem mais servir ao caráter barroco de descontinuidade

linear, dentro das contenções formais das molduras"(p. 200). Valladares também subtipifica

esse primeiro "partido". Haveria casos específicos, de produção mais barata, em que se

simula a estrutura dos caixotões, através de moldura fingida, pintada, ou por simples trave

de enquadramento. Cita alguns exemplos e justifica a qualidade desse tipo específico de

obra dizendo que se trata mesmo de solução mais pobre, mas não inferior em termos

artísticos. Por fim, , diz que não há registro de caixotões reais ou fingidos no século XIX,

mas haveria evidência de que os de produção jesuítica seriam dos fins do XVII.

Quanto ao segundo "partido" de pintura monumental religiosa, o do painel

cenográfico, V alladares afirma que, além das pinturas sobre tabuadas do forro (ou os

caixotões ), há, apesar de raras, abóbadas de capelas primitivamente pintadas a fresco, com

pigmento aplicado diretamente sobre o reboco, que também funcionariam como "pintura

monumental", pois configurariam todo o espaço dos templos. Cita alguns exemplos, como

o do mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro.

Além desses dois grandes tipos gerais de "pintura religiosa monumental", trata

também de alguns gêneros mais específicos de pintura, como a "pintura de perspectiva".

Porém, segundo o autor, muitos dos exemplares desse tipo de pintura não se configurariam

enquanto "pintura monumental", pois, muítas vezes, seriam simplesmente ornamentais, não

demonstrando o aspecto de organização espacial.

A seguir, Valladares apresenta a denominação convencional da pintura religiosa

monumental da colônia segundo os 1 ugares geográficos de produção. Ter-se-ia, assim, a

escola pernambucana, a baiana, a fluminense e, por fim, a mineira. O autor relativiza um

pouco essa classificação, pois ela deixaria de lado, por exemplo, a produção paraense, que,

apesar do pouco número de obras e da má conservação delas, teria características

particulares. Depois dessa breve relativização, trata cada uma das escolas especificamente.

Sobre a primeira, a pernambucana, cita obras e autores; o melhor exemplar dessa escola, no

entanto, seria o forro da Conceição dos Militares, por ser "inventiva e de qualidade", mas

da qual não se conhece o autor. Cita também alguns exemplares de Alagoas, contida na

escola pernambucana, e excetua, pela qualidade, as igrejas conventuais franciscanas de

Santa Maria dos Anjos e a de Nossa Senhora da Corrente. Sobre o estilo de seus forros,

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Valladares apresenta um conceito específico, já defendido por esse autor em outros textos:

o de "comportamento arcaico brasileiro". Segundo o estudioso, o forro dessa duas igrejas

seriam caracterizados por uma "prototipia barroca revertida, mediante arcaização, a um

desenho de linearismo bizantino"(p. 206). Seria como se os artífices dessas igrejas, mesmo

conhecendo superficialmente o estilo "barroco" então novo e em voga, optassem pelas

formas mais tradicionais e arcaicas. Disso surgiria uma mistura estilística, formas novas

contaminadas pela dicção arcaica, que seria observável também na imaginária escultórica

quando se converte tipologia "barroca" em figuras hieráticas. Valladares explica as

possíveis causas dessa mistura estilística através do isolamento de determinadas regiões e

dificuldades dos produtores em se adaptar a um estilo novo, mas isso, segundo o estudioso,

não seria indício de arte inferior: "ao contrário, temos verificado, na história do Brasil, que

as mais insuladas e distanciadas do processo civilizatório são as que supriram os acervos

mais notáveis, em termos de cultura genuína" (p. 210).

Mas são, enfim, nas escolas baiana, fluminense e mineira que o autor se concentra,

dedicando a elas as demais páginas de seu texto. Sobre a escola baiana, afirma que o

capítulo da pintura monumental no Brasil cresce tanto devido ao grande volume de obras

quanto à diversidade delas e enuncia uma explicação contextual para provar que, se a

produção baihana não é a melhor, seria, com certeza, segundo Valladares, a mais elaborada

e de domínio artesanal superior: "o fator político de ter sido até 1763 a metrópole da

colônia, A Cabeça da América Portuguesa, somado à continuidade de uma situação

econômica de expressivas riquezas, responde pelo fluxo do fausto de construção religiosa

que se manteve desde o testamento de Mem de Sá, de 1569, até a data de empobrecimento

em conseqüência da abolição da escravatura, em 1888" (p. 210). Além das obras já citadas

quando da classificação das particularidades e dos "partidos" da pintura monumental

religiosa no Brasil, enumera outras obras que seriam características desse esplendor baiano.

Em específico, detém-se no painel SAPIENTIA AEDIFICAVIT SIBI DOMUM da livraria do

primitivo colégio de Jesus. Essa obra seria um grande desafio para a crítica, pois

subverteria o entendimento cronológico da produção do período. Discute então a autoria, a

datação e as particularidades desse que seria o único forro de "perspectiva corrigida" no

Brasil. Elenca também os pilares sustentadores dessa escola baiana de pintura monumental

- o trio José Joaquim da Rocha, José Theophilo de Jesus e Antônio Joaquim Franco

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V e lasco -, analisa seus respectivos estilos individuais em suas obras e enumera seus

aprendizes e obras.

Sobre a escola fluminense, credita aos ensmos de Nair Batista a chave para se

entender a completude dessa escola. Inicia citando Frei Ricardo, um pintor beneditino,

como o inaugurador do que seria a escola fluminense de pintura monumental. Cita taJnbém

um pintor leigo importante, José de Oliveira Rosa, que seria discípulo de Frei Ricardo.

Além desses, faz um inventário numeroso das obras fluminenses, elencando pintores e

estilos empregados.

Por fim, V alladares finaliza seu texto tratando da produção de pintura monumental

em Minas Gerais. A esse respeito, porém, antes de tratar de autores e o bras, faz 1 ongas

reflexões sobre a forma de se classificar e periodizar a produção mineira. Atesta ele que a

chaJnada "escola mineira" não seria a totalidade da produção regional, mas somente aquela

do momento áureo de um segundo período da produção de Minas Gerais; a classificação,

portanto, não abarcaria outras produções de pintura que Valladares identifica como

matrizes mineiras. O primeiro período dessa produção mineira, esquecido pela crítica

especializada, se constituiria como um "barroco sertanista" que teria se espalhado por

Goiás e Matogrosso e teria características similares das produções seiscentistas de

PernaJnbuco, porém cronologicaJnente tardias, no sertão mineiro, goiano e mato-grossense

do século XVIII. Depois desse ajuste nos critérios de periodização, V alladares passa então

à enumeração de obras e artistas dos dois períodos mineiros, o "barroco sertanista" e a

"escola mineira" propriaJnente dita. Finalizando o texto, Valladares analisa com detalhes as

pinturas monumentais de Manoel da Costa Ataide, pertencente ao período áureo mineiro e à

"escola mineira" propriaJnente dita, e as compara com outras soluções pictóricas da colônia

e da metrópole no período.

[in: BRACARA AUGUSTA. Actas do Congresso "A Arte em Portugal no século XVIII, 1 o

t. Braga, Portugal, 1973]

"A corporação e as artes plásticas: o pintor, de artesão a artista". Jaelson Britan Trindade

O texto analisa a transição da pintura colonial para as pnme1ras produções

românticas e liberais; trata, portanto, do último quartel do século XVIII e do início do XIX.

O objetivo do texto é justaJnente explicar essa transição, elaborando uma narrativa que

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caminha para a sedimentação da Academia e da pintura de corte, atentando para as

transformações estilísticas e sociais na arte produzida no Brasil durante o período referido.

Seria interessante notar que, mesmo tratando de objetos coloniais e, portanto, "barrocos", o

propósito final do artigo não se circunscreve à análise de objetos coloniais e "barrocos",

próprios da exposição. Seria também importante anotar aqui que o texto foi publicado

originalmente em um catálogo de uma outra exposição, também organizada por Emanuel

Araújo, sobre o século XIX ( Um olhar crítico sobre o acervo do século XIX: Reflexões

iconográficas, que se realizou na Pinacoteca do Estado em 1994). O recorte do artigo,

portanto, não é exatamente o mesmo da exposição Universo Mágico do Barroco Brasileiro.

O primeiro movimento do texto é o de fazer uma análise, de cunho sociológico, a

respeito do estatuto do artista na colônia e das decorrências desse estatuto para a produção

artística. Trindade inicia esse movimento procurando demonstrar que as b ases do artista

moderno no Brasil só teriam sido criadas no século XIX; mais precisamente, só depois das

três primeiras décadas do oitocentos que teriam se realizado mudanças significativas com

relação à criação e ao significado da pintura. Porém, na virada do XVIII para o XIX, os

artistas atuantes no Brasil, mais tardiamente que em Portugal, ainda estariam ligadas à

tradicional estrutura de oficinas, escolas e fábricas de oficios dirigidas por um artífice

mestre de oficio. Portanto, o "artista" do ínício do XIX seria ainda, na verdade, um artesão,

muito similar ao "artista'' dos séculos anteriores e coloniais. Uma mudança decisiva dessa

estrutura colonial de produção teria ocorrido apenas com a vinda da família Real e de seu

aparato ao Rio de Janeiro. A mudança radical teria sido a proibição das corporações de

oficio na constituição de 1824.

Enunciado esse estatuto peculiar, Trindade passa, então, a dar maiores detalhes a

respeito dele, apresentando algumas características sobre os oficios e artes desenvolvidos

"sob o signo da corporações". Estas seriam estruturas sociais tipicamente coloniais,

baseadas em uma hierarquia estamental, assim como a da sociedade escravista-estamental­

colonial, que mediaria os grupos sociais, os trabalhos artísticos e as trocas. Haveria

semelhanças, relativamente a essas corporações, com Portugal, porém, na metrópole, dados

alguns conflitos entre o poder público e as organizações corporativas, o status social do

artista começaria, no XVIII, a se elevar, principalmente no caso daqueles que trabalhavam

acima dos trabalhos mecânicos, ou seja, pintores e escultores, que executariam já uma "arte

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liberal", mais elevada socialmente do que o simples trabalho manual das corporações. A

ascensão social do artista também estaria garantida por patrocínio, seja pela coroa, seja pelo

alto clero ou por algum grão-senhor. No entanto, a nobreza só seria garantida para alguns

pintores de imaginária de óleo que se dedicavam exclusivamente a esse tipo de produção.

Na colônia, entretanto, o mercado reduzido teria deixado difusas as fronteiras entre

artista/artesão e artista liberal e emancipado. Mesmo durante o XVII, quando se assistiria a

uma grande produção das corporações, não teria havido Corte ou nobres para nobilitar o

artista. Por fim, enuncia-se que as formas de organização dessas corporações refletiriam, de

certo modo, as formas de organização do conjunto da sociedade colonial: a necessidade da

agregação do trabalho escravo, a hierarquia rígida, a discriminação étnica como

componente na divisão técnica do trabalho.

Depois de apresentar essas características gerais a respeito das corporações, o autor

do texto começa a considerar algumas particularidades da produção pictórica do período

compreendido em seu artigo (fim do XVIII, inicio do XIX). A primeira dessas

particularidades a ser tratada é o chamado "Século de Ouro", isto é, a grande produção de

qualidade, segundo Trindade, da segunda metade do setecentos principalmente em Minas

Gerais e em entrepostos marítimos (Rio de Janeiro e Bahia). A predominância dessa

produção seria a arte religiosa. A esse propósito, Trindade observa também que a pintura só

começaria a ser considerada como um tipo autônomo de arte no século XIX a partir das

fundações das primeiras Academias de pintura; antes disso, e durante o "Século de Ouro", a

pintura seria apenas um aspecto subsidiado da arquitetura, basicamente da religiosa.

Mesmo assim, como decorrência do uso progressivo da talha dourada na decoração dos

templos, o interesse pela pintura religiosa, enquanto ornamento arquitetônico, teria caído

sensivelmente nesse período áureo.

Outra particularidade tratada pelo texto seria o anonimato do artista. A produção

artística se resumiria à arte de oficina, que seria, por sua vez, essencialmente anônima. Não

haveria assinatura das obras, mas, mesmo assim, grandes artistas seriam identificados

graças à tradição local. No entanto, a grande maioria deles ficaria completamente anônima,

sob a égide do contratado/diretor da oficina. Assim como a autoria das obras, a construção

de um estilo pessoal também ficaria, de certa forma, reduzido pelo espaço da oficina e

pelos padrões sociabilidade de tal espaço. O que ditaria a criação artística seria, na verdade,

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a relação artista( oficina )I cliente; desse modo, seria a aceitação comercial de um estilo que

propiciaria o seu desenvolvimento. Nessa direção, a imitação de estilos de artistas já

conhecidos seria a pauta principal das oficinas. Trindade observa também que as

corporações, além de lugares de produção artística, constituiriam espaços dedicados ao

ensino das artes e oficios.

Depois de apresentadas essas particularidades, Trindade passa a tratar

especificamente de artistas, obras e estilos. Primeiramente, apresenta o que chama de

"herdeiros da cmporação", ou apenas "geração de I 760", vale dizer, o conjunto de artistas

que teriam dado as contribuições mais originais da arte no Brasil do último quartel do

XVIII. O estilo dessa geração seria um estilo novo, o "rococó", que impregnaria o "espírito

barroco" vigente. As obras da época se inseririam nos padrões estilísticos do "Rococó

internacional", em que pesavam o "racionalismo iluminista" e postulados "neoclássicos". O

autor desenvolve essa idéia e faz nuances a respeito da aplicação desse conceito de geração

e de estilo para outras partes da colônia. Essas obras seriam originais não porque elas "se

afastem de regras", mas porque não as seguiriam estritamente: "cometem infidelidades

artisticas. Infidelidades, contrariando normas de desenho e de composição. Ousadia

pictórica. Sintonia do artista com a terra, com a cultura artística do meio, com a

sensibilidade coletiva" (p. 255). No fim do XVIII e no inicio do XIX, Trindade nota

também um hibridismo formado por misturas de "barroco", "rococó", com grafias próprias.

Como exemplo, cita o Passeio Público do Rio de Janeiro projetado por mestre Valentim.

Nessa obra, o plano seria "barroco" com elementos escultóricos e arquitetônicos da estética

"barroca" e elementos no estilo "rococó". Trindade observa também uma certa "tendência

classicizante" na Corte e cita alguns pintores. Entre eles, presta particular atenção a Manoel

da Costa Ataide, que, além de compartilhar dessa tendência referida, também seria

responsável pela criação de modelos mestiços. A propósito desses modelos, atenta para a

existência de artistas mulatos, principalmente a partir de 1790, quando homens pardos e

livres passam a ser oficiais e mestres. Por fim, destaca o que seria a geração de transição do

modelo pictórico colonial, "barroco-rococó", para a "estética acadêmica" e "neoclássica"

das primeiras Academias de artes. Cita também as viagens francesas, com especial atenção

a Debret, e elenca a produção artística nas províncias, particularmente em São Paulo, longe

da Corte no início do XIX.

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"Notas sobre a prata e a mineração no Brasil". João Marino.

De irúcio, Marino propõe uma pergunta que, segundo ele, seria relativa a um fato

que despertaria atenção de todos os que se interessam pelo assunto da prata no Brasil: como

seria possível a existência de tantos objetos feitos desse metal se não haveria descobertas de

minas de prata no Brasil durante os primeiros séculos da colônia? A resposta seria o tráfego

ilegal de prata para o Brasil, principalmente vinda do Peru. Mariano dá detalhes desse

comércio, citando pessoas, número e rotas envolvidos. Basicamente, a prata vinha da vila

peruana de Potosí, que a trocava por escravos que trabalhariam nas minas. Além de detalhar

as formas de organização desse comércio, elenca características gerais (data de descoberta

das jazidas, quantidade de metal, ourives e determinações legais sobre o comércio e

ourivesaria) a respeito da mineração e da produção de objetos de prata e ouro na Bahia, em

Pernambuco, em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Mato Grosso e em

Goiás.

(publicado originalmente em Marino, João. Coleção de Arte Brasileira. SP, 1983]

"As tábuas votivas do ciclo do ouro". Márcia de Moura Castro

Márcia de Castro faz em breve histórico das votivas de ex-votos e analisa mais

detidamente as carateristicas daquelas encontradas em Minas Gerais durante o XVIII.

Segundo a autora, a origem desse tipo de produção popular seria remotíssima. A sua

introdução nas práticas do cristiarúsmo teria se dado no ano 312 da era cristã, quando do

estabelecimento da religião oficial de Roma. A partir de então, teria havido uma

assimilação dos costumes pagãos, "num sincretismo religioso semelhante ao que ocorreu no

Brasil escravagista, quando o ídolos africanos se identificaram com os santos católicos".

Durante o renascimento, as oferendas votivas voltaram a ter força. Nas telas,

exclusivamente religiosas, começariam a aparecer, junto à imagem do patrono, a figura do

ofertante, de forma discreta, o que teria sido invertido com o tempo, isto é, o ofertante teria

ocupado, aos poucos, o lugar do quadro. O Concílio de Trento teria reforçado a tradição dos

ex-votos, já que teria incentivado a veneração de imagens sacras. No entanto, a

popularização na Europa meridional e central teria se dado a partir do século XVII,

principalmente sob a forma de tábuas votivas. De Portugal, a tradição teria vindo ao Brasil

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e conservado as mesmas características de arte popular e o mesmo sistema de pintura a

têmpera sobre madeira. Em Minas Gerais, essa tradição teria se aclimatado melhor,

segundo a autora.

Feito então esse histórico, Castro passa a reproduzir alguns relatos de literatos

conhecidos (cita Olavo Bilac e Artur de Azevedo) a respeito das tábuas votivas mineiras,

que também são contextualizadas: a descobertas das minas de ouro teria provocado uma

grande migração espontânea no Brasil; numa terra desconhecida e cheia de perigos, "a fé e

a devoção eram mais que nunca necessárias" (p. 341). Também aponta que, como ainda

haveria processos do Santo Oficio em Minas, a demonstração pública da fé, através das

tábuas votivas, que agradeciam a graça alcançada por meio dos santos, era interessante.

Ressalta ainda que, dado que os pintores eruditos do período se dedicavam à arte sacra e

que não haveria tradição de pinturas de retratos e de paisagens no Brasil de então, as tábuas

votivas seriam as responsáveis por transmitir imagens de hábitos, ambientes e vestuários do

XVIII.

Por fim, e lenca as características dos ex-votos mineiros: c ores primárias e fortes,

quadro em madeira de cedro em forma retangular, moldura saliente e dimensões pequenas

(nunca ultrapassariam "dois pahnos"). As imagens geralmente mostram, segundo a autora,

o ofertante acamado em um aposento, com o leito caracterizado com detalhes, o santo

protetor flutuando em nuvens convencionais e uma faixa inferior que onde haveria uma

inscrição na qual se descreveria o ocorrido, o nome do ofertante e a data do milagre. O

autor das tábuas seria, geralmente, um pintor autodidata advindo do povo que trabalharia

sob encomenda. Finaliza destacando que até hoje as tábuas votivas guardariam as mesmas

características "barrocas" do XVIII.

"A música barroca no Brasil". Régis Duprat

O texto do maestro, compositor e musicólogo Régis Duprat se constitui ao mesmo

tempo como um estudo geral a respeito das características da música produzida no Brasil

colônia e como um manifesto que propõe um método de pesquisa musical histórica. Essa

estrutura dupla possivelmente se dá graças às características do acervo musical colonial que

exigiriam, segundo Duprat, determinadas posturas críticas, teóricas e metodológicas

adequadas para o seu estudo.

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O texto se inicia desenvolvendo um panorama a propósito da aplicação do termo

"barroco", de um modo geral, à produção musical do XVII e, em específico, ao "conteúdo

musical do período colonial brasileiro". Duprat cita teóricos e historiadores da música que

aplicam diretamente o termo, segundo seu sentido wollfliniano, e outros que questionam

essa aplicação. Segundo o maestro, no entanto, a música colonial que teria chegado a nós

seria "indiscutível e plenamente barroca, com as características inconfundíveis e marcantes

da harmonia seqüencial e da verticalidade" (p. 349), características essas, tomadas por

Duprat, como típicas da "música barroca". Justificando a afirmação, faz um histórico do

que seria "música barroca", categoria que é tomada de maneira estilística, sem demarcação

temporal precisa, como um estilo de composição e execução musical, comparando-o ao do

"renascimento" e ao do "classicismo". Discorre longamente a respeito dessa diferenciação e

faz algumas nuances, perseguindo o que chama de "preservação de práticas barrocas na

música religiosa". Segundo o maestro, é justamente na música composta para fins litúrgicos

que as características de uma "música barroca" se desenvolveriam plenamente. Assim,

define essas características como "dramatização" e "representação musical da palavra".

Anota também outras características "barrocas" que teriam sido retomadas e desenvolvidas:

"simetria", "expansão e intensificação das seções melódicas"; arremata essas caraterísticas,

comparando-as com as do "classicismo" musical: "enquanto o Barroco cultua, cultiva e

pratica os ornamentos pesados e superdimensionados, o estilo galante que precede o

Classicismo transforma-os em beleza, que o Classicismo vai depurar ainda mais" (p. 350).

Ainda cita o "baixo contínuo", "figura barroca por excelência", que persistiria na música

religiosa até princípios do XIX. A esse propósito, cita compositores brasileiros do período

que usam o "baixo contínuo".

Especificamente com relação à música da colônia brasileira, Duprat cita esforços de

reconstituição das partituras. A isso, somar-se-iam pesquisas de arquivo que visam traçar o

perfil histórico, social, cultural e mesmo econômico da atividade musical do período.

Devido a essa necessidade ainda de pesquisa primária, não se teria desenvolvido uma

abordagem técnico-estilística que contribuísse para a definição tipológica da música

brasileira do XVIII. O autor enumera ainda especulações necessárias para definir os

parâmetros de interpretação da música colonial. Mesmo reconhecendo esses passos

necessários para entendimento dessa música, Duprat elenca algumas de suas características.

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O gênero musical mais praticado sena o religioso, gênero essencialmente avesso às

inovações acenadas, por exemplo, na música de câmara e na de teatro, o que explicaria a

persistência de estilemas musicais tardios, por exemplo, do XVI, na música setecentista

praticada no Brasil. A música litúrgica ideal do período seria a vocal, a cappella,

notadamente construída a partir da polifonia vocal palestriana do XVI. A respeito

propriamente das formas de práticas musicais, apresenta alguns aspectos que poderiam ser

concluídos a partir das pesquisas históricas elementares já executadas (por exemplo, a

persistência do uso da notação branca e redonda, apesar de esse tipo de notação ter sido

progressivamente abandonado em outros lugares no princípio do XVIII).

Por fim, Duprat encerra o texto com um longo manifesto metodológico de pesquisa

musical. O maestro argumenta a respeito da necessidade de abordagem técnica da produção

cultural, o que, segundo ele, estaria em desuso no Brasil. Critica a cultura contemporânea e

defende a necessidade da pesquisa histórica tendo em vista a produção cultural no presente.

Também elabora um histórico da disciplina da Musicologia para continuar defendendo a

pertinência do estudo de práticas musicais históricas. Elabora também esse mesmo histórico

no Brasil e arremata defendendo uma prática sistemática de pesquisa histórica que poderia

efetivamente diferenciar e especificar a música feita no passado; essa prática seria

necessária para o estudo adequado da música colonial brasileira, dadas as dificuldades que

essa empresa apresentaria (como não se imprimiam partituras na colônia, o registro musical

seria essencialmente manuscrito, o que demandaria o estabelecimento crítico de partituras

remanescentes e a pesquisa de campo para a descoberta de outras).

"O Barroco e a literatura". Leo Gilson Ribeiro.

Ribeiro parte da preinissa de que a literatura brasileira teria começado

autenticamente no século XVII; teria tido, portanto, um inicio "barroco". Dessa forma,

critica a idéia de se estabelecer a origem dessa literatura no século XVI, que abrangeria os

textos de Anchieta, que segundo ele, teriam apenas função catequética e seriam desprovidos

"de originalidade e de qualidade duradoura", e "a montanha de versos insossos de Bento

Teixeira e sua insignificante Prosopopéia" (p. 358). Para tanto, propõe perfis biográficos e

ideológicos elogiosos de Gregório de Matos e de Padre Vieira que comprovariam que, com

esses autores, uma literatura genuinamente brasileira teria se iniciado: "o Barroco foi o selo

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autêntico, novo, do Brasil, mesmo no período colonial do obscurantismo mais sufocante"

(p.358).

Primeiramente, constrói o perfil de Gregório de Matos, "o único autor de uma

nacionalidade que se esboçava na literatura" (p. 358). Apesar do excessivo caráter

preconceituoso do poeta baiano, que Ribeiro censura ao mesmo tempo que afirma que esse

aspecto não desprestigia a sua obra, e a despeito de alguma dificuldade léxica, que, segundo

o autor do texto, deve ser dirimida com um dicionário, Gregório de Matos teria iniciado,

mesmo que de maneira paradoxal, uma ode a uma população francamente miscigenada. O

poeta teria registrado, mesmo quando faz escárnio, a diversidade de raças e gentes do Brasil

colônia - estaria atento, portanto, a especificidade do povo brasileiro, o que comprovaria

que a sua literatura não seria pura cópia de modelos importados. Também teria feito uma

literatura que daria conta da natureza tropical e que se f01jaria em uma língua brasileira, já

que teria incorporado termos do tupi-guarani em seus poemas. A isso, soma-se um gosto

pela sátira, o que, juntamente com as outras características da sua poesia já referidas, teria

inaugurado um estilo que só depois da revolução modernista de São Paulo seria enfim

sedimentado. Ribeiro propõe também que Gregório de Matos, ao se enxergar como

"náufrago erudito", isto é, um homem culto em uma terra bárbara, se tornaria um crítico

contundente e ostensivo dos vícios praticados pelas pessoas da colônia. Isso permitiria que

o poeta baiano desenvolvesse um retrato realista da pobreza e da perversão das elites no

Brasil de então. Esses vícios apontados seriam características coloniais que teríamos

herdado: "por trás da ironia racista, um quadro realista da imemorável miséria brasileira,

um quadro social de elites econômicas dominantes em nossa quase imutável pirâmide

social: abolida a escravidão racial, não continua, a mesma, a escravidão social?" (p. 359).

Por fim, Gregório de Matos teria também dado "conselhos" a respeito da brevidade e da

fugacidade da vida, e a sua literatura seria indício de uma "complexidade psicológica", pois

indicaria a sua progressiva aceitação da fé, dos poemas satíricos do início da obra até os

poemas religiosos do fim da vida.

Padre Vieira também teria construído "uma literatura autenticamente brasileira",

ass1m como Gregório de Matos, com a vantagem de não ser racista e preconceituoso.

Segundo Ribeiro, Vieira, além de nunca ter entrado em desavenças com a população local,

seria um defensor dos índios e dos interesses do Brasil que começa a se delinear. Registra

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que o padre jesuíta teria amado os naturais da terra e tentava a todo custo impedir a sua

escravização, assim como entenderia os problemas da terra (Ribeiro cita como exemplo a

constante queixa quanto à falta de estradas e ao possível destino trágico que teriam os

índios se deixados à ganância dos portugueses e dos brancos da terra) e teria lutado para a

sua solução. Teria lutado também a favor da defesa da liberdade. Por tudo isso, Vieira teria

feito um diaguóstico dos problemas da colônia, que seria tratada pelo padre como "um

enfermo" que precisaria de cuidados básicos; assim, "ele tirou um luminoso e ainda válido

raio-x ou tomografia dos países pobres que compõem % da humanidade ainda hoje,

imutavelmente" (p. 361). Por fim, Vieira, ao escrever sermões com "sotaque brasileiro"

reconhecível, também teria trabalhado para a construção de uma literatura nacional, não só

no conteúdo, o que seria notável pelo seu interesse com relação aos problemas do Brasil

colônia, como também na forma.

Ribeiro encerra seu texto aproximando os dois autores (ambos, apesar de possuírem

uma "cultura erudita refinada", conseguiam falar bem aos incultos), e fazendo novamente

crítica negativa das obras do século XVI.

"Entre a vida comum e a arte: a festa barroca". Maria Lúcia Montes

O texto analisa o relato do grande evento festivo do Triunfo Eucharistico, ocorrido

em Vila Rica em 1730, feito por Simão Ferreira Machado. Essa análise é feita buscando

detectar características do que Montes chama de "festa barroca" e a permanência dessas

características em uma "mentalidade brasileira". Montes, antes propriamente de apresentar

seu objeto, a festa e, principalmente, seu relato, propõe uma contextualização sócio­

histórico-econômica de Minas Gerais, de uma forma geral, e, em específico, de Vila Rica e

apresenta determinados posicionamentos metológicos para a execução de sua empresa. Para

cumprir o objetivo de seu texto, isto é, "compreender o lugar que nessa sociedade ocupa o

fenômeno da festa, e, assim, lançar um novo olhar sobre o Barroco no Brasil, em cujo

âmbito ela sem dúvida se inscreve" (p. 364), a estudiosa afirma que precisa se afastar do

que chama de "enfoque canônico da História da Arte e suas armadilhas de periodização",

que não permitiriam a compreensão da especificidade de um fenômeno estético "residual"

("barroco", segundo a perspectiva de Affonso Á vila), e de questões estilísticas, que se

perderiam na questão das fronteiras entre "maneirismo", "barroco" e "rococó" e nas

conseqüentes questões de atribuição de autoria. Querendo então se manter afastada dessas

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questões, Montes prevê que se volte à "própria vida social, em busca de um foco que nos

permita entender o universo de sentido que constitui o solo originário comum onde se

enraízam as diferentes formas de criação da arte", para que se possa compreender "a

importância e o significado que nela encontra a festa", que seria tomada como "lugar da

confluência da vida social" (p. 364). Esse lugar estabelecido pela festa, como "fenômeno

cultural de condensação", seria um índice privilegiado de "mentalidade": "documento vivo

da sociedade em que se produz, a festa nos fala a respeito dela através do próprio modo de

sua produção, dos grupos sociais que a promovem, dos símbolos e signos que mobiliza,

permitindo-nos entrever o processo social de construção dos significados com que se

impregna a experiência de vida de seres humanos que, nossos semelhantes nosso

antepassados- no entanto são outros, na distância histórica que deles nos separa" (p. 364).

Colocados então esses pressupostos teóricos e metodológicos, Montes executa uma

longa descrição da referida festa de Vila Rica tal como relatada pelo texto de Simão

Ferreira Machado, além de comparar essa festa com outras do Brasil colônia e de, também,

analisar o próprio relato em que sua descrição repousa. Resumindo a sua longa análise

sobre essa festa, tida como "barroca", poderíamos dizer que ela se ampara em dois

aspectos: o primeiro seria a característica da "cultura barroca", que Montes chama de

"cultura do espetáculo", na qual se teatraliza o poder e se repõe o lugar específico de cada

classe e grupo social num eixo do poder que preside toda a organização da festa; o segundo

seria o aspecto de "jogo lúdico" dessa festa "barroca", que se constrói a serviço da

experimentação criativa, reapropriando-se do velho, do arcaico, para produzir o novo.

Nesse dois aspectos, a mistura de registros, eruditos e populares, de classes, dominadores e

dominados, e de etnias se faz presente: "a festa (re)produz como forma de sociabilidade e

pedagogia de valores, ao mesmo tempo em que se organiza a vida da futura nação, no

cadinho onde se fundem raças etnias e culturas afro-ameríndias e européias, sob o império

colonial português que se estende no rastro da expansão mercantilista européia do século

XVI" (p. 372). Assim, as características dessa festa "barroca" são estendidas a um "mundo

barroco", a um tipo específico de experiência de "estar-no-mundo": "o termo Barroco

pretende significar a tradução de uma experiência de mundo marcada pela contradição que

cinde sem separar totalmente e integra de modo precário duas metades indissociáveis de

uma vivência histórica ao mesmo tempo moderna e arcaica: de um lado, o sentimento

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moderno de poder criador do indivíduo, livre das amarras teológicas e sOCiaiS que em

outras eras restringiam sua capacidade infinita de experimentação e expressão; de outro, o

sentimento arcaico de sua limitação radical, frente a um mundo que, material e

espiritualmente, escapa ao seu controle" (p. 378). Seria por meio dessa "experiência

barroca" que a sociedade colonial ter-se-ia constituído enqumto mentalidade e enqumto

nação que se iniciava.

A partir disso, Montes detecta uma permmência dessa experiência "barroca" de

criação principalmente na produção popular brasileira (por exemplo, atribui "barroco" e

suas características ao carnaval e a outras festas populares), apesar de toda a vontade, que

teria se dado a partir do XIX, de se gestar um moderno modelo, advindo das elites, de

sociabilidade, de arte e de criação. Por isso, argumenta a estudiosa, "nossas hermças

barrocas" são mais visíveis até hoje no mundo popular do que na cultura erudita. No

entmto, seria a partir desses persistentes resíduos "barrocos" que se compreenderia a

sociedade brasileira e seus valores culturais: "em nosso universo marcado por uma

sensibilidade e uma visão de mundo de feições arcaicas, o ideal tipicamente moderno da

construção de uma sociedade que se quer democrática, fundada no primado da lei mas

tendo como contrapartida o isolamento do indivíduo, pareça algo tão difícil de

alcmçar"(p.382).

"Cronologia do Barroco no Brasil", Carlos Eugênio Marcondes de Mouras, e "Barroco Brasileiro: um bibliografia seletiva", Edson Nery da Fonseca.

O catálogo finaliza com uma cronologia a respeito de "barroco" no pais, em que se

listaJTI, mo a mo, construções de obras importmtes, dados biográficos de artistas e outros

fatos julgados relevmtes, e uma bibliografia sobre "barroco brasileiro", subdividida em

"Estudo Gerais", "Estudos Especializados" (sobre arquitetura e artes plásticas do Brasil em

geral e especificamente de cada estado com produção relevmte, sobre literatura, sobre

música e ourivesaria) e "Periódicos".

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2. "Estudos" do catálogos Brasil Barroco, entre céu e terra

"Encontro do Novo Mundo, 500 anos depois", Ana Maria de Moraes Belluzzo

A historiadora da arte propõe, "antes de pousar os olhos sobre as peças em

exposição", "interrogar o próprio estatuto do olhar I ançado ao longo da histórias obre a

América". A premissa aplicada a esse estatuto teria como base a idéia de que

representações artísticas operam trocas culturais. A partir disso, analisa dois momentos do

que chama de produção de representações sobre o novo mundo: o primeiro, chamado de

"encontro do Novo Mundo", seria relativo à primeiras representações dos europeus a

respeito das terras recém-descobertas; o segundo, denominado "colonização da América",

compreenderia pela expressão dos já habitantes da América Portuguesa, feitas através das

artes religiosas e das "formas barrocas". Ambos movimentos, também denominados pelo

par "latência e subsistência", seriam constituídos por formas e figuras advindos do Velho

Mundo e são analisados por Belluzzo como movimentos de produção de imagens a respeito

da América que revelariam mecanismos de funcionamento psico-cognitivos.

Enunciado então o propósito do texto, Belluzzo propõe uma diferenciação geral

entre os dois movimentos já referidos para, depois, analisá-los mais individualmente. De

forma esquemática, poderíamos dizer que o primeiro movimento seria constitutivo da

identidade européia; a figuração da América, nesse sentido, seria uma, ao mesmo tempo,

atividade imaginativa e construção do desconhecido. Já o segundo, movimento de

mestiçagem, apontaria para a experiência artística da evangelização. Segundo Belluzzo, o

intuito seria o de colonizar o espírito, o que mediaria a produção de imagens e das

representações. Mas essas imagens e representações devem ser entendidas no conjunto dos

exercícios da crença religiosa cristã; para essa, a função da imagem não seria o de despertar

indignações, nem a de demonstrar verdades (como as representações do primeiro

movimento), mas invocar um mistério. A partir da atualização do "modelo barroco", a

produção de imagens, apesar de ser controlada pelo poder colonizador e evangelizador, não

seria propriamente imposta, mas assimilada; assim abrir-se-ia campo para a experiência

subjetiva na colônia.

Os dois movimentos de construção de representações são propostos e analisados de

forma mais detalhada, diferenciando-os como dois movimentos históricos distintos. Disso

seria importante registrar aqui que, desses movimentos, proviria uma sedimentação de

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formas na construção de uma imagem do Brasil. Do primeiro movimento, principalmente

das imagens a respeito do Brasil feita por viajantes estrangeiros, seriam assimilados

determinados aspectos que os próprios brasileiros tomariam como constitutivos da

representação do país: "com o passar do tempo, o imaginário derivado da relação colonial

européia viria contribuir para a dimensão pré-consciente e para a memória nacional, sendo

introjetado pelos brasileiros como imagem do pais. Ao se tornar indissociável de nossa

experiência, a visão dos viajantes espelha a condição de nos vermos através de seus olhos"

(p. 53). Do segundo, a partir da produção de imagens e de propagação da fé, "a experiência

barroca pode ter favorecido certos modos de ser, reiterados no Brasil contemporâneo em

outras manifestações culturais marcadas pela mesma intensificação da atividade imediata e

sensível. Seja o apelo aos sentidos e à sensualidade. Seja o lugar consignado até hoje às

sensações e às imagens que desencadeia. Seja a disposição para perceber o mundo pela

sensibilidade e pelo afeto. Em suma, pela primazia do momento de exteriorização sensível

ou pela ênfase na visão fenômenica" (pp. 59-60)

"Entre a ordem e ao caos. Colonialismo, escravidão e barroco no Brasil", Nicolau Sevcenko

Trata-se de uma versão ampliada do texto "Barroco: arte da fantasia", constante do

catálogo da exposição Universo Mágico do Barroco Brasileiro e já descrito quando

tratamos desse catálogo (cf. infra). Alguns parágrafos são adicionados exatamente no meio

do texto, mas as premissas e conclusões são os mesmo. Os parágrafos adicionados trazem

dados contextuais sobre a mineração em Minas Gerais e, principalmente, sobre o controle

estatal dela. São também trazidos dados sobre a escravidão. Como novidade em relação à

primeira versão contida no outro catálogo, tem-se a idéia de que haveria na colônia a

articulação de diferentes padrões de identidades, que concorreriam entre si e confrontariam

a cultura européia portuguesa e cristã. Como prova desses padrões diferentes de identidades

são citados um embrião de nacionalismo e as tentativas de criação de proto-nações guarani,

banto, iorubá e haussa-malês.

Por meio da citação desses confrontos, é adicionado um aspecto complementar de

"barroco", tal como tratado no texto anterior; além do júbilo, a celebração "barroca"

também daria conta de, catarticamente, assimilar os confrontos tidos na colônia: "não

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podendo recompor o que se estilhaçou, o barroco dramatiza a alienação, o conflito e a dor,

expondo a hybris que corrói a sociedade no mesmo gesto com que expurga as forças

destrutivas (pp. 65-6)

Revisitando a escultura barroca brasileira", Maria Helena Ochi Flexor.

A historiadora da arte afirma que, com a virada do século, se faz necessário

reavaliar conceitos e rever a bibliografia a respeito da escultura barroca no Brasil. Essa

revisão é feita a partir de alguns exemplos de esculturas existentes na Bahia, o que serviria

de parâmetro para as produções do Rio de Janeiro, Minas Gerias e Recife, além de outros

pólos produtores. Flexor parte do princípio de que a escultura barroca estaria em voga a

partir de 1720 e de que o modelo barroco, no Brasil, atravessaria o XVIII, XIX e chegaria

até o século XX. Aponta também para um "anacronismo programático" da produção,

segundo o qual os modelos apareceriam tardiamente em relação à Metrópole. Através disso,

Flexor argumenta que qualquer divisão cronológíca da produção seria arbitrária porque essa

produção não obedeceria divisões temporais, principalmente devido aos meios de

comunicação do período e ao vasto território da colônia.

A revisão bibliográfica se inicia com Manuel Querino, CUJOS estudos senam

transformados em referências básicas para críticos e historiadores posteriores. Flexor

censura Querino por esse crítico do inicio do século XX possuir um olhar "neoclássico" que

veria "barroco" como imperfeição. Querino também teria feito atribuições que a

pesquisadora questiona tendo como base estudos mais recentes. Aplica as mesmas críticas

para o autor da primeira bibliografia de Aleijadinho, Rodrigo José Brêtas.

Flexor afirma que o momento histórico em que tais críticos escreveram coincidira

com o p eriodo posterior à proclamação da República. Por isso, Q uerino, M arieta Alves,

Affonso Ruy, dentre outros críticos, almejariam a defesa de um "produto nacional", o que

interferiria no modo de atualização das esculturas. Segundo Flexor, as esculturas analisadas

por esses críticos, mesmo que denotassem falta de habilidade do artífice, eram valorizadas;

nesse caso, quando não se conseguia argumentar o valor estético, atribuíam-nas a mestiços

ou tomariam-nas por traços mestiços supostos, valorizado como tipo nacional. Outro autor

criticado é Marieta Alves, por não conseguir levantar muitos nomes de escultores para o

seu Dicionário de Artistas e Artífices na Bahia e por atribuir isso a um suposto plano

inferior que os escultores ocupariam dentro da produção artística do período.

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A partir desses problemas levantados com relação a essas referências iniciais a

respeito da escultura "barroca", Flexor propõe alguns conceitos que deveriam ser levados

em consideração na análise das obras. O primeiro diria respeito à noção em voga de artista

no período compreendido entre os séculos XVI e XVIII. A noção se construiria a partir do

trabalho coletivo em oficinas, o que faz com que as obras, além de serem anônimas, sejam

também coletivas. Passa a dar mais detalhes sobre o modo de organização das oficinas,

citando documentos comprobatórios. A forma de organização do trabalho de produção

artística conduziria a uma noção diferente de autoria, o que seria agravado pelo fato de que

as obras seriam baseadas em modelos já reproduzidos anteriormente. Nesse sentido,

"mestre" seria considerado aquele que se aproximaria de um outro mestre já reconhecido.

Nesse sentido, não seriam válidos conceitos de "plágio" ou mesmo de "auto-plágio", muito

menos a noção de artista como gênio, já que o culto à personalidade individual seria

exclusiva à figura do Rei. Assim, a notoriedade individual que o conceito de artista do

século XIX não se aplicaria aos artífices "barrocos".

Além de problematizar a noção de autoria e de artista, Flexor também aponta

também para a dificuldade do estabelecimento da época precisa de produção das obras, já

que elementos adicionais iam sendo adicionados às imagens. Na mesma direção, aponta

para a impossibilidade de sistematização de um estilo regional de produção de obras, já que

muitas imagens teriam sido importadas de Portugal e, depois, reproduzidas no Brasil.

Flexor aponta também para a indistinção entre as formas de arte, principahnente no que

tange a diferenciação dos oficios de escultor, entalhador e imaginário.

Devido as todos esses conceitos levantados, Flexor afirma que a "produção barroca"

feita na colônia deveria ser considerada portuguesa, ainda que seja possível identificar um

"sotaque brasileiro" motivado pela adaptação de modelos, técnicas, materiais e mão-de­

obra disponíveis na colônia e ainda que seja possível perceber algum artista, como

Aleijadinho, que conseguiria produzir com autonomia um estilo pessoal. Por fim, conclui

que a escultura só poderia ser considerada no conjunto de outras produções (pintura, talha,

arquitetura e mesmo o espaço público). E, com José Alberto Gomes Machado, afirma que

"o barroco brasileiro foi simultaneamente o apogeu e a superação do barroco português" (p.

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"O Barroco no país do açúcar", José Luiz Mata Menezes

O texto se inicia com uma epígrafe (de um Pereira, 1995 -porém, como não há uma

bibliografia no final do artigo, não é possível conhecer de quem ela efetivamente seja) que

questiona os usos de "barroco" e a aplicação de adjetivos às obras rubricadas pelo termo.

Segundo a epígrafe, os artistas do XVII e do XVIII não fizeram arte para que ela fosse

chamada de "barroca", que seria uma noção historicamente estranho a eles. Assim, a

explicação dessa produção artística deveria se fazer à luz da cultura artística, isto é, a partir

da reconstrução de um sistemas onde textos e obras se explicariam mutuamente.

No entanto, a forma como o artigo se desenvolve demonstra que ele não leva, de

forma radicai, as propostas da epígrafe que o abre. Possivelmente, Menezes tenha

entendido "cultura artística" e "reconstrução de sistemas de textos e obras" como

necessidade de enumeração de dados contextuais, pois seu artigo desenvolve "barroco" de

forma absolutamente parecida dos outros textos contidos nos catálogos e advindos da

história da arte; apresenta apenas o diferencial de, vez por outra, elencar algum dado

econômico a respeito das regiões cujas produções artísticas analisa e dos encomendadores

dessas obras. No entanto, apesar do diferencial trazido por esses dados e de uma maior

discrição no uso de adjetivos qualificadores de "barroco", o conjunto do texto é muito

parecido com aqueles que possivelmente a epígrafe critique.

O artigo começa efetivamente com a definição da expressão "O Barroco no pais do

açúcar". Ela se referiria à região do Nordeste brasileiro, compreendido pela área hoje

compreendida entre Bahia e Rio Grande do Norte, e às obras, rubricadas por "barroco",

produzidas nessa região entre os séculos XVII e XVIII, mais precisamente, entre 1537 e

1800. O "no pais do açúcar" presente na expressão diria respeito à agroindústria açucareira

típica da região, tomada como propiciadora das obras, e indicaria a preponderância do

aspecto econômico usado por Menezes na explicação das obras e dos periodos de produção

delas. Assim, analisa caracteristicas econômicas do nordeste do periodo. A região teria

peculiaridades desde o XVI que o tomaria produtor de cultura e apontaria para perfis

determinados de encomendadores e artistas, apesar desse perfil não ser muito explorado no

texto.

Segundo Menezes as capitanias seriam desiguais em termos de crescimento

econômico. As principais e as mais desenvolvidas seriam as capitanias da Bahia e de

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Pernambuco, as quais dedica maior atenção. Um outro diferenciador dessas capitanias seria

a presença de holandeses, que teria se dado de forma mais rápida na Bahia e que teria

perdurado por mais de vinte anos em Pernambuco. O resultado dessa presença seria uma

maior diversidade de formação étnica, com a fixação de luteranos, calvinistas e judeus.

Depois de elencar essas características mais gerais, trata de forma rápida de como

sena o perfil da sociedade da região. Segundo ele, trata-se de uma sociedade de

"dominadores e dominados", dividida, na área rural, entre proprietários de engenhos,

escravos e trabalhadores livres; nas áreas urbanas, seria composta também por comerciantes

e administradores públicos, religiosos, índios, localizados mais nas margens urbanas, e

cristãos-novos ( que, segundo Menezes teriam mantido, no íntimo, a fé original: mesmo

encomendando arte religiosa, eles não acreditariam no que patrocinariam). A partir desse

esquema geral da sociedade, traça também um rápido perfil da "formação cultural" dos

encomendadores das obras; "formação", possivelmente entendida por Menezes, apesar de

não deixar claro, como grau de instrução formal e não como horizonte cultural de recepção

e produção das práticas artísticas: os religiosos, seculares e coventuais (sendo que os

últimos, principalmente os jesuítas teriam "formação cultural" mais elevada); os judeus

conversos, "letrados e de formação invejável"; "gente do governo", "em geral cultos";

quantidade grande de analfabetos nos estratos mais numerosos da população, embora "não

sem sensibilidade"; e finalmente escravos e mulatos, que teriam nivel social inferior mas

excelente competência e sensibilidade. O esquema dessas "formações culturais" é referido

para "procurar o perfil dos encomendadores", o que, entretanto, não se faz.

Menezes traça também algumas diferenças entre os dois pólos principais da região

que analisa, isto é, Bahia e Pernambuco. Quanto à Bahia, propõe quatro periodos de

produção - a diferença entre esses periodos seria relativa à presença ou não de inquisidores,

o que garantiria maior ou menor liberdade de "ação e pensamento". Já em Pernambuco, há

uma interrupção na produção artística dados a invasão holandesa e o incêndio em Olinda

em 1631. No entanto, depois da expulsão dos holandeses, grande atividade de construção

teria se dado em virtude de reconstruir ou ampliar os templos variados.

Depois desse grande enquadramento contextual, passa a tratar dos estilos artísticos

em voga. Para tratar de "barroco", entendido principalmente no século XVII, alega ser

importante analisar o que teria vindo antes. Assim analisa particularidades dos estilos e

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exemplifica com obras. Aponta principalmente para o despojamento arquitetônico e para o

destaque dado aos retábulos. Os modelos para a criação de ambos seriam muito próximos

dos portugueses. A partir disso, faz um grande quadro de estilos, que compreenderia

"renascimento", "maneirismo", "barroco" e "rococó", e analisa especificidades de cada um

levando em consideração obras particulares e diferentes tipos de produção (arquitetura,

talha, pintura e escultura). Por fim, conclui que "no país do país do açúcar um rico acervo

se construiu, às custas de uma gente que, detendo o poder e a culpa, patrocinou inúmeros

artistas e artesões na execução de casas-grandes, verdadeiros 'escuriais do nordeste', de

igrejas e casas conventuais, cumprindo assim uma tradição lusitana e fiel ao interesse de

realizar nos trópicos, mesmo sem compreender esteticamente, o que de melhor se tinha em

termos de criação artística" (p. 94)

"Barroco, estilo de vida, estilo das Minas Gerais", Affonso A vila

O texto trata de propor um grande panorama do que Á vila chama de "estilo de vida"

da região de Minas Gerais no período colonial, o que engloba desde dados contextuais a

respeito da mineração até análises de obras arquitetônicas importantes. Á vila inicia

propondo uma metáfora para esse "estilo de vida"; segundo ele, esse estilo e a forma de

ocupação de Minas Gerais poderia ser visualizada com facilidade pelos aficionados em

westerns. Sem muito esforço em substituir a paisagem, diz ele que é possível propor a

analogia com relação á escalada migratória do início do ciclo do ouro em Minas Gerais,

que, além dos próprios bandeirantes, teria assistido o estabelecimento de nordestinos e

portugueses. A analogia também funcionaria para explicar o ambiente caótico dos

primeiros anos da mineração e da fundação dos primeiros núcleos urbanos. Ao contrário da

maioria dos fixamentos urbanos da colôrúa, segundo Á vila, o território mineiro foi se

estruturando, devido ao ouro e ao controle estatal da exploração dele, em um organismo

político e administrativo.

Á vila também trata da influência da Igreja sobre a "formação mineira". No início

dessa formação, os bandeirantes levariam consigo, em suas missões exploratórias, oratórios

e santos de devoção. A partir desses objetos, eram constituídas capelas, que depois se

transformariam em templos de um crescente grau de sofisticação. O estilo de construção é o

"barroco", que teria permitido a expressão de uma sensibilidade nativa. As construções

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religiosas senam, inicialmente, executadas por portugueses e depois por nativos,

"impregnados de uma nova sensibilidade criativa responsável pelo amadurecimento de uma

linguagem arquitetônica e artística de forte índole autônoma, que representaria mesmo a

grande contribuição original do Brasil para a cultura ocidental da época" (p. 97).

Mas a Igreja, além de fomentadora desse patrimônio artístico, também operava na

formatação da vida social da região no período com seus ritos, crenças e eventos que

funcionariam como padrões estabilizadores de comportamento e como integração das

diferentes classes sociais. Á vila aponta para uma peculiaridade do estabelecimento da

Igreja na região. Em 1874, com a criação do bispado de Mariana, a presença eclesiástica

teria se firmado e, assim, se consolidado socialmente. Ao mesmo tempo os abusos e o

aspecto coercitivo da Igreja na colonização do Brasil teriam sido neutralizados em Minas

devido à proibição das ordens religiosas na região. Como complemento da ação oficial da

Igreja, no lugar das ordens religiosas e na ausências de missões e conventos, teriam surgido

organizações laicas ligadas ao aparato eclesiástico -as Irmandades, as Ordens Terceiras, as

Confrarias e as Arquiconfrarias -, que extrapolavam o estatuto de meras agregações

religiosas, funcionando como representação social classista, corporativa e racial com

atribuições, além das tipicamente religiosas, assistenciais, mutuárias e de seguridade

funeral. Também dariam conta do que Ávila chama de uma expressão pluralista social e

racial. Se, no o trabalho de mineração, a exploração era cruel e evidente, na indústria de

construção e de produção de objetos artísticos e religiosos, haveria uma atenuação das

relações exploratórias por meio das associações leigas: nas festas, todos os estratos sociais

se uniam; na produção artística, o trabalho de negros e mestiços seria valorizado pela

peculiar criatividade.

Á vila trata também do aspecto "espetaculoso" das principais celebrações litúrgicas,

que seriam caracterizadas por um êxtase coletivo festivo e religioso da população das vilas,

"bem ao feitio de sua alma originalmente barroca" (p. 98). A partir da análise que faz das

festas, que são tratadas como "happening monumental", Á vila trata do que chama "estilo

de vida barroco", que seria motivado por um cenário constituído pelo "ambiente feérico dos

templos revestidos de ouro, entre os acordes da música sacra e as imagens rebuscad.1s dos

sermonistas" (p. 98).

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Além das festas, Á vila analisa também a "arquitetura barroca". Depois de fazer

alguns comentários a respeito de algumas obras, afirma que a arquitetura dos templos, de

urna simplicidade inicial até uma sofisticação maior e crescente, seria o palco para "o

fervor religioso das populações pioneiras e do gosto inato pela pompa ornamental do culto"

(p. 99). Após esses comentários, estabelece classificações cronológicas sobre os estilos

arquitetônicos empregados. Inicialmente, teria se dado o que chama de "primeiro barroco"

ou "estilo jesuítico", que se caracterizaria pela arquitetura pesada, fachada de linhas

modestas e ênfase ornamental no interior. Ao longo do tempo, modificações do risco da

fachada teriam ocorrido, assim como uma ênfase ainda maior na decoração interior,

principalmente no que tocaria à "elegante talha de ornamentação". Cita arquitetos e obras

dos dois estilos e se concentra em Manoel Francisco Lisboa. O filho desse arquiteto seria

Aleijadinho, que teria executado a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, obra que

corroboraria, "na plenitude, uma imaginação arquitetônica já de feição brasileira" (p. 1 00).

Os detalhes construtivos e ornamentais dessa igreja são analisados, e outros arquitetos

importantes são citados.

A partir da discussão que faz a respeito da decoração dos templos, Á vila trata da

escultura da região no período. Em madeira ou em pedra sabão, esse tipo de produção teria

alcançado uma "poderosa singularidade" no contexto da arte colonial em Minas. A esse

propósito, afirma que o "gênio do artista mineiro" teria sido perpetuado por Aleijadinho

através das esculturas monumentais dos Passos e dos Profetas em Congonhas. Trata

também de Manoel da Costa Ataíde, tomado companheiro de Aleijadinho na arte de

decoração dos templos e que, na pintura, teria alcançado também níveis de genialidade.

Por fim, terminando de fazer essa aproximação geral de "barroco" como estilo

artístico e de vida em Minas, diz que só seria possível perceber "a força da expressão

cultural e a grandeza artística da chamada civilização do ouro em Minas" se se analisassem

as próprias cidades onde essa civilização teria se constituído: a "atmosfera", o "ambiente" e

o "contexto peculiar" do período poderiam até hoje, segundo Á vila, ser visualizados nas

chamadas "cidades históricas de Minas Gerais". Cita dados demográficos das cidades no

período colonial, dados que denotariam, além de uma importância econômica, uma espécie

de circuito cultural ali vigente. Haveria nas cidades uma grande produção artística e

intelectual, que incluía "muitos homens de espírito refinado" e mesmo aqueles portadores

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de "inteligências renovadoras". Finalmente, conclui o texto reforçando a importância das

Minas Gerais na produção artística do período colonial e aduzindo, através de breve análise

de formas de divertimento popular, que naquele local e época peculiaridades brasileiras

seriam sedimentadas - cita, por exemplo, o "batuque", tipo de música popular do período,

que é tomado por Ávila como precursor do samba.

"Antônio Francisco Lisboa, O Aleijadinho. Misticismo barroco e elegância rococó na arte religiosa do século das Luzes", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

O texto trata de oferecer uma panorama geral a respeito da biografia e da obra de

Aleijadinho, argumentando o valor dela. Oliveira inicia o seu artigo com uma epígrafe de

Robert Smith, que dá o tom do texto da estudiosa. Em linhas gerais, na epígrafe, em inglês,

afirma-se que Aleijadinho seria um dos maiores artistas do XVIII, não apenas porque teria

se sobressaído no manejamento da "linguagem rococó" que teria adotado, mas porque teria,

de certa forma, escapado dos confinamentos dessa linguagem. Mestre absoluto em

decoração "rococó" e renovador espiritual, Aleijadinho teria criado imagens poderosas

independentes do estilo de sua época. Nota-se estreita relação entre essa epígrafe e a

conclusão do texto de Oliveira.

Após a epígrafe, Oliveira fornece alguns dados biográficos supostos de Aleijadinho

relativos ao nascimento (data, local, filho bastardo e mestiço de um arquiteto) e à morte

(data, local, pobreza, sofrimento causado pela doença cujos efeitos lhe deram nome). A

partir desses dados propõe duas perguntas a respeito de Aleijadinho: "como conciliar

aspectos aparentemente tão negativos - filiação ilegítima e escrava, handicap fisico e

penúria econômica, com intensa produtividade de uma longa carreira artística, marcada por

obras de excepcional qualidade [ ... ]?"; como podem as obras de Aleijadinho, "todas

situadas em cidades de Minas Gerais", revelarem "perfeito conhecimento dos estilos

europeus do momento, tendo-se em vista a formação local e em grande parte autodidata do

Aleijadinho e o fato de sua única experiência de viagem fora da região mineira restringir-se

a uma breve estadia no Rio de Janeiro para responder a um processo de paternidade?" (p.

I 05). Ambas as perguntas apontam para questões a respeito da gênese das obras de

Aleijadinho: a primeira detém-se nos impedimentos de vida e saúde; a segunda, nos

impedimentos de conhecimento de repertório para a produção artística. No entanto, os dois

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impedimentos referidos funcionam, na narrativa construída para explicar Aleijadinho, como

peripécias a serem resolvidas pelo enredo e como argumentos que reforçariam a qualidade,

já tomada, das obras.

Oliveira afirma que essas duas perguntas vêm sendo respondidas por pesquisadores

desde 1920, quando, impulsionados pelo modernismo e pelo início dos "estudos

científicos" sobre "barroco coloníal", sucessivas gerações de estudiosos têm se formado.

Oliveira propõe uma resposta, principalmente á primeira pergunta, a partir da biografia,

feita em 1858, por Rodrigo José Ferreira Brêtas, tida como documento chave para o

entendimento de Aleijadinho. Depois de citar alguns trechos desse documento, que dizem

respeito a características fisicas e de personalidade do artista, assim como à doença e ao

modo de trabalho dele, a estudiosa afirmar que há inúmeras hipóteses sobre o diagnóstico

da doença de Aleijadinho. Entretanto, afirma também que o diagnóstico é menos relevante

que a influência que a doença teria tido sobre a obra. Citando obras e as datas de confecção

delas, diz que a maior concentração da produção artística teria se dado justamente no

momento dos primeiros sintomas da doença. Daí concluí que a doença, na verdade, teria

dado uma contribuição positiva ao desenvolvimento da carreira artística de Aleijadinho.

Além dessas datas de produção de obras citadas, Oliveira argumenta a favor dessa

conclusão também a partir do número escasso de obras que Aleijadinho teria feito sem a

doença e cita ainda o agravante de que a maioria dessas obras teria atribuição incerta. A

doença, segundo Oliveira, teria dado a sua contribuição positiva porque levaria o artista a

um abandono progressivo de outros interessas em prol de uma "dedicação total e exclusiva

ao universo da criação". Para reforçar essa idéia de dedicação, cita as longínquas distâncias,

dados os meios de transportes da época, que Aleijadinho teria percorrido para construir seu

legado em muitas cidades mineiras. Tudo isso levaria Aleijadinho a praticar um ritmo

a!ucinante de trabalho; esse ritmo, para Oliveira, seria "determinado talvez por um

sentimento de premoníção de precariedade do tempo de que dispunha diante da obra a

realizar ou de um inconsciente jogo de compensação substitutiva para driblar a doença e

seus percalços" (p. I 07)

Depois então de responder à primeira pergunta proposta, Oliveira passa à segunda, a

que se refere ao aparente impedimento que Aleijadinho teria em conhecer os estilos de arte

que tão bem utilizaria. Para tanto, começa por citar Germain Bazin, que, no primeiro

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contato com a obra do artista mineiro, alegaria ter descoberto um gênio e o "último dos

grandes escultores barrocos". Desenvolvendo a descoberta d" B azin, Oliveira diz que se

trata de um artista religioso que estaria em sintonia com a "tradição cultural do barroco

contra-reformista", ainda que vivesse no "século das Luzes". Alinhando Aleijadinho a essa

tradição, afirma que o artista figuraria entre os melhores nomes da escultura religiosa

européia e, particularmente, espanhola (na portuguesa não haveria equivalente em

qualidade ).No entanto, as únicas ligações com essas fontes européias seriam "as cenas

reproduzidas nas estampas de Bíblias e Missais usados pelo clero da Capitania de Minas

Gerais, bem como os Registros de Santos em publicação avulsa, essenciais para a

determinação da iconografia dos personagens sacros." (p. 108). Anota também uma

influência germânica (na tipologia fisionômica das imagens e nos planejamentos em sulcos

profundos e arestas vivas, características que seriam típicas de Aleijadinho) e analisa o que

seria a maior obra escultórica do artista: o conjunto de esculturas de Congonhas.

Aleijadinho também é tomado como gênio na arquitetura, além da escultura.

Oliveira cita obras e detém-se no que seria a obra prima arquitetônica do artista: a igreja de

São Francisco de Assis de Ouro Preto. Por fim, conclui que algumas qualidades de

Aleijadinho "identificam de imediato a produção de todo artista maior". Enumera então

essas qualidades, todas elas mostram que não haveria um real impedimento no contato com

as matrizes européias de sua arte: "o que impressiona é a adequação das escolhas de

modelos relativamente aos temas tratados, a sintonia com os movimentos artísticos

internacionais da época, e a profunda originalidade dessa obra, ao mesmo tempo universal e

plenamente inserida na cultura regional e local" (p. 11 O)

"Especulações em torno da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto", Lygia Martins Costa

A estudiosa, movida inicialmente por uma evocação estética e prazerosa ocasionada

pela igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, propõe uma especulação mais

profunda a respeito dessa obra de Aleijadinho. Afirma haver um problema de classificação

estilística da igreja, já que muitos brasileiros conhecedores de arte não aceitariam a rubrica

"rococó" através da qual a obra é etiquetada nos compêndios internacionais que tratam do

termo. Cita também uma resolução para esse problema: o pesquisador John Bury teria

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classificado a igreja como caudatária de um "estilo Aleijadinho". No entanto, insistindo em

"rococó", Costa faz uma análise da igreja visando uma forma de aplicar esse termo à obra.

Primeiramente trata de "aspectos formais" da igreja. Assinala, assim, "três fatores

imediatos e aparentemente simples [que] explicam boa parte de sua singularidade e

grandeza": sentido de harmonia, unidade múltipla e originalidade arquitetônica. Depois de

fazer alguns comentários sobre esses três fatores, analisa a igreja externa e internamente.

Sobre o exterior, tece considerações sobre a fachada e sobre a "modulação de curvas e

contra curvas" a qual são submetidas torres e frontispícios, além de focalizar o frontão, a

portada e as fachadas laterais. Em suma, a planta demonstraria duas seções efetivas (a

primeira relativa à articulação do frontispício e torres com a nave; a segunda a propósito da

dilatação em curva na altura do arco-cruzeiro), o que apontaria para inovações que

distinguiriam a igreja dos outros templos mineiros caracterizados pela planta em retângulo

regulador. Sobre o interior, em linhas gerais, Costa defende uma integração plástica, da

mesma forma como ocorre o exterior. Para afirmar isso, analisa a talha, o retábulos, os

altares laterais, as pinturas e as esculturas que fazem parte do conjunto do templo.

Após jogar luz sobre esses aspectos formais, Costa faz algumas "considerações

estéticas" sobre a obra, tomada c orno não tendo similar em seu tempo. Estilisticamente,

Aleijadinho refletiria o "rococó europeu", estilo tido como "fruto de uma sociedade

dominante não mais 'una"'. Indica também influências francesa, germânica e italiana na

decoração. Com relação ao que chama de "ajuste de leveza com a solidez", cita as soluções

que dos arquitetos da Europa Central, que teriam proposto arranjos inferiores ao que teria

feito Aleijadinho, pois estariam presos a pesados exteriores "barrocos" e ao mesmo tempo

se valeriam de algum elemento de origem recente, possivehnente "rococó". Aleijadinho,

"sem os compromissos de uma sociedade artística erudita", teria transposto o impasse da

dicotomia exterior/interior e teria consciência da necessidade de quebrar a solidez da

arquitetura anterior, possivehnente "barroca". Trabalhando supostamente com essas

questões formais de "seu tempo", Aleijadinho teria i do ainda mais I onge: "e foi além­

religioso como todo povo das Minas, deu-lhe ainda um sentido oculto de gravidade e

misticismo, não ocorrente no discurso erudito da arquitetura contemporanea européia" (p.

116).

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Por fim, Costa tenta resolver o problema de classificação estilística proposto no

início do artigo. Diz ela que a igreja parece ser "a grande realização dos princípios estéticos

do 700" e atribui "rococó" à obra. Entretanto, afirma que, para essa classificação fazer

sentido, seria preciso abstrair de "rococó" o "veio mundano" e a conotação de frivolidade,

tão contrárias "ao sentido másculo de coesão, densidade e mistério que toda [ ... ] [a obra de

Aleijadinho] carreia" (p. 117). Não seria possível assim vincular a busca formal e espiritual

do artista à "volubilidade de um decorativismo faceiro", sintomático de "rococó", exceto se

esses aspectos "rococós", que Costa chama de "mundanos", sejam retirados. Finalizando,

conclui: "a rigor, Antônío Francisco Lisboa, em dia com a arte do mundo civilizado, nunca

aceitou limitações prescritas. Aos preceitos em moda sempre impôs sua personalidade, a

potência de sua inventiva, bem como os cambiantes da emoção do momento que vivia. Tal

qual os gêníos de todos os tempos" (p. 117)

"Barroco e o mundo contemporâneo", Benedito Nunes

Benedito Nunes trata, em seu artigo, das "formas de recepção" de "barroco" no

"mundo contemporâneo". Mais especificamente, analisa fases de apropriação do legado do

"barroco mineiro" por pensadores brasileiros. Seu texto se inícia citando emoções que teria

causado o conjunto dos Profetas de Aleijadinho em Congonhas na primeira vez que o teria

visitado, por ocasião da Semana de Poesia de Vanguarda em 1963. Essas emoções,

causadas por "barroco", teriam lhe aberto a sensibilidade para outro "barroco" que Nunes

alega ter "em c asa" - o estudioso é professor da U níversidade Federal do Pará e se diz

morador de Belém do Pará; refere-se assim a igrejas "barrocas" do seu local de

procedência. Nunes atribui a essa aproximação à "arte religiosa barroca" uma queda

inconsciente na "órbita de influência da terceira fase de recepção do barroco", que teria

alcançado seus pontos culminantes em 1967, com a publicação, pelo C entro de Estudos

Mineiros, de Resíduos Seiscentistas em Minas de Affonso Ávila e, depois, com o

aparecimento da revista Barroco, dirigida pelo mesmo Á vila.

Para explicar o que seria essa "terceira fase de influência do barroco" que teria

agido sobre ele, Nunes trata do todo o conjunto dessas fases. A primeira, que se situaria no

final do XIX, se caracterizaria por um "respeitoso sentimento de veneração para com os

testemunhos, os vestígios, da suntuosa civilização do ouro". O registro desse sentimento

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teria sido feito por Olavo Bilac nos textos escritos por ocasião de sua viagem a Minas

Gerais. Mais caracteristicas dessa fase seriam os tons melancólicos usados para referir-se

aos resíduos do ciclo de ouro, tomados como indícios da riqueza em meio a decadência, e

da aversão à palavra "barroco" e das manifestações decorrentes do termo, o que Bílac,

devido ao seu "equilíbrio clássico", recusaria.

A segunda fase teria sido iniciada por "um ato paradoxal de turismo interno, à busca

do exótico e do novo, dentro do tradicional e velho". Nunes se refere à viagem do grupo do

modernismo paulista a Minas, acompanhando Blaise Cendras, tomada como manifestação

do que seria essa segunda fase de recepção de "barroco", de modo geral, e de "barroco

mineiro", em específico. Essa fase teria consagrado e ampliado "a palavra barroco,

conferindo-lhe a conotação de índice de originalidade nacional" (p. 120). Ao invés de

melancolia, "as ruínas disformes" de Minas seriam "tomadas como sugestão para uma arte

nova que se chamara pau-brasil nos quadros de Tarsila e nos poemas de Oswald do

periodo" (p. 121).

A partir da visita modernista, essa segunda fase de apropriação de "barroco" teria

como ponto culminante a criação do Patrimônio Histórico e Artístico N aciona! pleiteada

por Mário de Andrade e por Rodrigo de Melo Franco depois da referida viagem a Minas.

Também seria notável nessa fase o inicio de produção ensaística a respeito de "barroco", o

que corroboraria uma "ampliação conotativa da palavra barroco no sentido de um

designativo da originalidade artística brasileira" (p. 121). Como exemplo dessa produção

ensalstica, cita o célebre texto de Mário de Andrade a respeito de Aleijadinho e o analisa

mais detalhadamente.

A terceira fase de recepção de "barroco" teria sido propiciada pelo "alargamento da

conotação da palavra barroco", executada pela fase anterior e trataria, especificamente, da

rearticulação interna do conceito de "barroco" enquanto estilo artístico. Teria sido

possibilitada pelos estudos sobre "barroco" nas décadas de 50 e 60, principalmente

motivadas por uma apropriação das categorias de Wõlfflin na construção de um "estilo

barroco". No Brasil, a idéia de um "estilo barroco" já teria sido introduzida por Afrânio

Coutinho em 1959 através de sua periodologia da história literária.

Assim, a rearticulação do conceito de "barroco" executada pela essa última fase

seria constituída por elementos conceituais de várias ordens ( religiosas, políticas, hístóricas

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e estéticas). Como elemento estético, cita a o uso das categorias de H. Wõlfflin. Como

elementos sócio-políticos, cita os estudos que relacionam "barroco" à ascese e catequese

católica, particularmente jesuítica. Na junção desses dois tipos de elementos ter-se-ia uma

paradoxo: uma liberdade criadora ao lado de uma repressão sócio-político-religiosa. Para a

aplicação de "barroco" na Brasil, ter-se-ia um outro problema: a identificação de um tipo de

arte tomada como típica do XVII pelos estudos referidos em pleno XVIII mineiro.

O turning point e a resolução desses dois problemas teria sido feita, segundo Nunes,

por Affonso Ávila em seu Resíduos Seiscentistas já referido. Primeiro, "barroco" no

setecentos mineiros não seria tomado como retardatário; tratar-se-ia de uma retomada, de

uma avivamento e de uma adaptação de modelos que já estariam esterilizados no continente

europeu. Essas adaptações seriam, na perspectiva de Ávila que Nunes cita, referentes à

construção de uma "barroco" tipicamente brasileiro e mineiro, através do uso dos materiais

disponíveis no meio e dos componentes da paisagem (luz, cores e topografias) , além da

religiosidade tomada como típica de Minas. Com relação ao paradoxo de "barroco" criado

pela combinação dos estudos estéticos com os sócio-políticos, Nunes afirma que Á vila

propõe que "entre o favorecimento da forma visual expansiva -e da forma verbal eloqüente

das imagens, ou da forma concertante dos sons, pois que a adaptação estendeu-se à poesia e

à música - e do desfavorecimento da conquista espiritual do apostolado jesuítico,

interpuseram a liberdade do jogo, a tendência lúdica manífesta naquele 'cozido coloníal de

música, teatro e religião' do qual já falara Mário de Andrade[ ... ]" (p. 123).

As postulações de Ávila, segundo Nunes, elevariam a noção de "estilo barroco" "à

categoria de estilo de vida e o estilo de vida a uma forma de cultura". Nesse sentido, aponta

Nunes, Ávila estaria em sintonía com Lezama Lima e Severo Sarduy, pois proporia uma

"idade barroca mineira".

Por fim, Nunes aduz que essas idéias citadas senam a plataforma da revista

Barroco, criada por Ávila em 69 e tomada pelo estudioso como ponto culminante da

terceira fase de recepção de "barroco". Para finalizar, usa os tipos de História propostos por

Niestzche para classificar as três fases tratadas ao longo do texto: a primeira seria típico

caso de "história antiquária; a segunda, "história monumental"; a terceira, "crítica". Depois

de tratar em linhas gerias dos assuntos abordados pela revista referida, Nunes conclui que

"se é certo, como diz Lezama Lima, que as imagens são o que subsistem de uma cultura

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quando ela falece, e o que pode a ela reconduzir-nos, estas que desfilam para o leitor da

revista de Affonso Ávila põem-no sob a sedução do barroco que há tantos anos atrás me

cativou" (p. 124)

"O barroco nas Missões", Armindo Trevisan

Trevisan trata da produção, principalmente escultórica, feita nas "reduções"

jesuíticas na província do Paraguai, às margens dos rios Paraná e Uruguai, de 1626 a 1767.

Inicialmente, explica o que seriam essas missões dos jesuítas e, depois, passa a analisar

como seria a arte produzida nelas. Assim, trata do tipo mais comum de produção, de como

essa produção se inseriria no trabalho catequético das missões, do estilos das produções e,

por fim, analisa a expressão indígena através delas.

Primeiramente, essa arte missioneira, produzida por integrantes da Companhia e

pelos índios "reduzidos", não visaria, segundo Trevisan, à fruição estética. Teria sim um

sentido pedagógico-catequético e visava explorar o "talento imitativo" que os indígenas

apresentavam tendo em vista sua conversão à fé católica.

O tipo de produção mais comum seria a escultura, o que atenderia a duas

necessidades: a primeira seria a de prover os templos de imagens capazes de apoiar

visuahnente a pregação dos missionários; a segunda, iniciar os "reduzidos" nas artes

manuais, uma das prerrogativas da pedagogia da Ordem. Nas dinâmicas catequéticas, as

imagens também teriam papel imprescindível, já que os índios não eram alfabetizados; por

isso, o aprendizado religioso se basearia nas imagens.

Dito isso, Trevisan passa a buscar peculiaridades da arte missioneira. Segundo ele, a

maior característica das produções das missões seria o caráter lu'brido. Como haveria um

desinteresse com relação à pureza estética, pois o intuito da produção era de cunho

pedagógico, modelos artísticos se misturariam, particularmente notar-se-ia modelos

retardatários relativamente àqueles em voga na metrópole no mesmo período. Nota assim

um "renascimento retardatário, impregnado de gosto gótico e até mesmo românico". No

entanto, o modelo mais atuante seria o "barroco", principahnente aquele advindo de escolas

italianas, sul-alemãs e flamengas. Arrola, como mestre indireto de grande parte da escultura

das missões, o escultor espanhol Martinez Montaiiéz, cujo "realismo ou classicismo, só

embrionariamente barroco, dilui-se nas imagens missioneiras" (p. 128)

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Trevisan continua a buscar mais características desse tipo de arte. Afirma que a

maioria das estátuas eram talhadas na madeira, o que explicaria o motivo da arte

missioneira ser tomada, muitas vezes, como inabilidade técnica, dado que o material

(madeira) apresentava dificuldades próprias e que haveria uma precariedade dos

instrumentos usados nas missões para executar a talha. Outras características apontadas

seriam as imagens policromadas e a articulação de algumas peças, que sugeririam ser

produzidas tendo em vista uma série. Seria comum também encontrar cavidades nas

imagens de madeira, para o que haveria uma série de hipóteses. Segundo Trevisan,

entretanto, tais cavidades seriam motivadas por um motivo prático: diminuir o peso das

estátuas e impedir que elas rachassem devido ao ressecamento natural da madeira

empregada.

O pesquisador diz encontrar uma "coisa fascinante na pedagogia jesuítica": o uso de

cerimônias, nas quais as esculturas tinham um papel fundamental, e fato de os indios se

deixarem conquistar pelo esplendor das peças. Uma "coreografia barroca", utilizada em

danças, festas e outras manifestações coletivas das reduções, encantaria os indígenas, já que

essas encenações satisfariam um "sentido lúdico" próprio deles.

Quando trata dessa "coreografia", Trevisan se detém um pouco mais nas

conseqüências de "barroco" na catequese e na produção escultórica das reduções.

"Barroco" não seria apenas um estilo de produção artística, mas "uma espécie de

cosmovisão dentro de uma moldura católica mais ou menos variável" (p. 130). Enquanto

linguagem, "barroco" seria útil aos jesuítas pelos três aspectos que engendra, todos

interessantes para a catequese: um aspecto lúdico, outro visual e, por fim, um persuasório.

Dessa forma, o "triunfalismo jesuíta" teria encontrado em "barroco" as armas que carecia.

Trevisan anota que haveria inclusive uma certa tendência jesuítica a "barroco"; como prova

disso, cita os Exercícios de Santo Inácio, que previam, assim como "barroco", a

mobilização de todos os sentidos em favor do combate interior.

Além de "barroco", os jesuítas teriam transmitido outras características próprias à

imaginária das missões. Trevisan anota a recorrência do culto ao Cristo crucificado e à

Virgem assim como da devoção dos três principais santos da ordem: Santo Inácio, São

Francisco Xavier e São Francisco BOJ:ja. A tipologia da representação da santidade também

teria aspectos caros aos jesuítas. O modelo da imaginária seria o que seria proveniente do

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século XVI, segundo o qual as imagens, ao invés de serem apresentados de forma hierática

e sóbria, seriam construídos para criar o efeito de êxtase espiritual principahnente a partir

da torsão do corpo das imagens, o que seria tomado como indício do contato com o divino.

Trevisan aínda investiga o que chama de "rosto indígena" na arte missioneira.

Depois de algumas especulações teóricas de cunho antropológico, define que existiria "uma

facies indígena, uma aura étnica razoavelmente qualificável". Essa facies poderia ser

identificada nas imagens produzidas pelos índios, o que ficaria visível na construção de

imagens do Cristo ou dos santos com traços guaranis. Isso seria explicado pela falta de

interesse que os índios teriam em produzir imagens de cunho apenas mimético. Os guaranis

gostariam, segundo Trevisan, encontrar uma expressão para o seu sentimento. Nesse

sentido, o pesquisador aponta que eles teriam encontrado essa expressão, "apesar do

movimento contrário do estilo que lhe foi incutido. Anti barroco por natureza, [o índio]

acabou barroquizando-se, principahnente nos últimos anos da existência das missões,

quando, ao adquirir um sentido maís claro de sua própria situação dentro do novo mundo

espiritual, chegou a entrever Cristo [ ... ], sua autêntica humanidade. É então que surgem as

primeiras peças de irrespondível acento étnico" (p. 135).

Por fim, Trevisan apresenta as suas conclusões a respeito da arte missioneira que

analisou. Para ele, essa arte pertenceria ao acervo nacional e latino-americano "na medida

em que os indígenas conseguiram se expressar através dela". Diz que não importa se essa

expressão tenha sido indireta precária ou clandestina, já que uma facies indígena teria se

instalado dentro de "barroco", tomado como "cerne da arte colonial da América Latina". E

aínda aponta: "pode-se sustentar que esse barroco é crioulo, uma vez que foi indigenízado

na sua expressão. Isso explica, entre outras razões, por que as suas produções são de

tendências arcaízantes [ ... ]. O barroco missioneiro, por si só, demonstra a criatividade dos

índios: é um barroco infeliz, saudosista, por tender à busca do tempo perdido. O da

mentalidade arcaica sempre presente nele". (p. 135)

"Barroco no Rio de Janeiro ", Augusto Carlos da Silva Telles

O texto faz um inventário de obras arquitetônicas importantes dos séculos XVI,

XVII e XVIII do Rio de Janeiro. Antes disso, porém, propõe uma breve moldura histórica

relativa a episódios importantes, como a anexação de Portugal à Espanha, as invasões dos

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holandeses no Nordeste. Anota também que a metrópole teria contratado alguns arquitetos,

principalmente italianos, para edificações de obras de defesa, civis e religiosas. Esses

arquitetos teriam trazido consigo um estilo "pós-renascentista" e "rococó". "Barroco",

propriamente, só seria notado no Rio de Janeiro no século XVIII. Telles também faz alguns

comentários a respeito da importância do Rio de Janeiro para a colônia, citando que a

cidade, por causa de sua baía, funcionava como base militar, e a transferência do governo

geral de Salvador.

Depois dessa breve moldura histórica, arrola as principais edificações do Rio de

Janeiro no periodo colonial, iniciando pelas construções religiosas. Segundo Telles, as

edificações mais antigas teriam se perdido. No entanto, alguns exemplares significativos

seriam remanescentes das sucessivas fases de modernização da cidade que destruíram o

acervo colonial numeroso. Como exemplares remanescentes, cita os retábulos maneiristas

da antiga igreja do Colégio dos jesuítas. Analisa e dá detalhes a respeito da construção do

conjunto monástico de São Bento, além de enumerar também o convento de Santo Antônio

e a igreja de São Francisco da Penitência. Afirma que a movimentação de paredes,

característica típica das "igrejas borromínicas", teriam pouca representação no Rio de

Janeiro, com exceção da igreja da Nossa Senhora da Glória do Outeiro (proposta como

"jóia barroca inserida na paisagem carioca") e da igreja de São Pedro dos Clérigos (que

teria sido demolida em 1940). Elenca também três igrejas de meados dos setecentos que

seriam organizadas com planos poligonais ou ovalados: Igreja de Nossa Senhora Mãe dos

Homens, de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora da Boa Morte.

Analisa com mais detalhes a igreja de Nossa Senhora do Carmo (inicialmente, igreja

conventual carmelita, depois, Capela Real, Imperial e Catedral) e quatro capelas que são

tomadas como obras-primas de talhas "rococós": a Capela do Santíssimo Sacramento da

igreja de São Bento, Relíquias do Mosteiro de São Bento, a do Noviciado da Igreja da

Ordem Terceira do Carmo e a da Nossa Senhora das Vitórias da igreja de São Francisco de

Paula. As duas últimas são analisadas mais brevemente, pois teriam as talhas atribuídas ao

Mestre Valentim.

Além de fazer esse inventário da construção religiosa, Telles também enumera

alguns exemplares da arquitetura civil. Poucos exemplares, advindos do período colonial,

teriam sido mantidos. A partir do XVIII, com a transferência do Governo Geral, Telles

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afirma que edifícios de vulto forma construídos. Cita alguns e se detém no mais importante

deles: a Residência dos Governadores, depois Paço Real e Imperial. Trata ainda do Passeio

Público e do chafariz do Largo do C armo, o bras de mestre Valentim executadas sob os

auspícios do vice-rei Luiz de Vasconcelos.

"A Poesia do Barroco", Haroldo de Campos

Haroldo de Campos inicia seu artigo retomando as idéias centrais de seu Seqüestro

do Barroco. Diz ele que a literatura brasileira não teve origem pontual datável em termos

de formação ou etapas. Afirma que a metáfora orgânica costuma ser invocada na descrição

histórica da literatura; no entanto, defende que esse modelo não pode ser único, nem dotado

de maior pertinência hermenêutica para o caso brasileiro, particularmente, e latino­

americano, de modo geral. Assim, questionando as idéias de formação e de escalonamento

progressivo a um telas, propõe que a literatura brasileira nasceu adulta, expressando-se em

uma linguagem regida por um código universal. Dessa forma, as tentativas de proposição

da particularidade da literatura brasileira deveria "articular-se como 'diferença' em relação

a essa panóplia de universalia, eis o nosso 'emergir' como literatura. Não uma questão

substancialista, de origem, mas um problema de vertigem: de 'salto vertiginoso'(Unsprung,

para dizer como Walter Benjamin) no cenário ecumênico do Barroco" (p. 145). A produção

da "diferença" da literatura brasileira, segundo Haroldo de Campos, deveria ser "moda!" e

não "ontológica". Para reforçar a idéia de "inicio vertiginoso" dessa literatura, cita Mário

F austino, que afirma: "É surpreendente, frisamos uma vez mais, o alto nível técnico com

que principiou a poesia no Brasil, em todas as suas correntes" (p. 145).

Resolvido então o problema da "origem" o concretista passa a tratar de "nosso

maior poeta barroco", Gregório de Matos, apresentado como contemporãneo de Hemando

Domínguez Camargo, Sor Juana Ines de la Cruz e de Juan dei V alie y Caviedes, e sustenta

que ele seria "um praticante virtuosista seja da poesia lírica, seja da poesia religiosa, seja da

sátira", modalidade que teria lhe valido o epíteto "Boca do Inferno". Além dessa atribuição

de valor virtuosístico, a importãncia de Gregório de Matos também é defendida em termos

funcionais: o poeta teria praticado uma crítica desabusada aos costumes da época, o que

constituiria em uma espécie de "crônica" histórica dos costumes e uma fonte preciosa à

pesquisa histórica. A ponta também que o poeta teria construido uma I inguagem híbrida,

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uma língua "trans-étnica". Haroldo de Campos aínda identifica um seguidor notável da

"sátira gregoriana" no século XIX, Luiz Gama e seu A Bodarrada e trata de um outro

"poeta barroco", Manuel Botelho de Oliveira, celebrado como "primeiro poeta brasileiro a

ser estampado".

Depois de tratar dessas dois escritores, Haroldo de Campos afirma que "barroco"

poderia ser considerado como "uma constante formal da sensibilidade brasileira" que

percorreria, ao longo de espaços e tempos, "o nosso espaço cultural": "no campo das artes

plásticas, isto fica bastante claro, quando um Sartre vê similitudes entre a arquitetura do

Aleijadinho e o construtivismo curvilíneo de Niemeyer; quando a crítica moderna detecta

traços expressionistas nas esculturas de madeira que encenam, em Congonhas, os passos da

paixão" (p. 146). Sustenta que o mesmo se daria na poesia e, para tanto cita Antonio

Candido, que teria "seqüestrado" "barroco" da Formação da Literatura Brasileira, mas

que, em L iteratura de Dois Gumes, teria se r edirnido, incluindo "barroco" em um outro

modelo historiográfico aplicado à literatura brasileira. Segundo o Candido que Haroldo de

Campos aprova, "o 'estilo barroco' passa então a ser percebido como característico de uma

'línguagem providencial' que, pelo 'senso de extremos e das oposições' (por sua

capacidade de adequar-se à 'realidade insólita ou desconhecida'), teria sido capaz de gerar

'modalidades tão tenazes de expressão, que, apesar da passagem das modas literárias, muito

delas permaneceu como algo congenial ao pais'" (p. 147).

Depois de apresentar essas duas posturas historiográficas distíntas de Candido,

Haroldo de Campos pondera que o que chama de "ideal romântico de literatura íntegrada"

só poderia ser sustententado com a exclusão ou mínimização do "contraste barroco". No

entanto, diz ele que hoje parece incontroverso que "barroco" teria atravessado o século

XVII e contaminaria "arcadismo". Mas "barroco", enquanto "marco transepocal",

transbordaria ainda além. Enfileira como "barroco" Odorico Mendes, Souzândrade, Cruz e

Souza e Affonso Á vila.

Por fim, sustenta que "parte extremamente relevante da produção literária

brasileira", assim como a hispano-americana, poderia ser encarada "sob a ótica do

Neobarroco". Finaliza dizendo que não seria por mera coincidência que Oswald de

Andrade e Lezama Lima teriam, cada um a sua maneira, elogiado o estilo.

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3. "Estudos" do catálogo Arte Barroca, Mostra do Redescobrimento

"A Imagem religiosa no Brasil", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

Oliveira, curadora do módulo Arte Barroca, faz um estudo das imagens religiosas

produzidas na colônia luso-brasileira que fazem parte da mostra, propondo uma grande

moldura a respeito do uso de imagens em cultos religiosos, primeiramente, de forma geral,

e, depois, especificamente, no âmbito do catolicismo da era "barroca". São analisadas

também as formas de produção de imagens na colônia, através, principalmente nos séculos

XVI e XVII, de oficinas conventuais das ordens religiosas estabelecidas no Brasil colônia,

que são tomadas individualmente, e, num segundo momento, já no século XVIII, das

confrarias leigas. A respeito desse segundo momento, Oliveira propõe escolas regionais de

produção.

Seu texto inicia-se pelo capítulo que tem o título de "A imagem religiosa na tradição

cristã e seu emprego na era barroca", em que se traça coordenadas geraís a respeito da arte

religiosa visando enquadrar a produzida na colônia durante o período de tempo dito

"barroco". Partindo do pressuposto de que o uso da imagem sagrada como suporte do culto

religioso seria algo universal, Oliveira propõe uma classificação das imagens religiosas a

partir de três categorias básicas que dariam conta das representações usadas nas religiões

históricas: a primeira categoria diria respeito a representações de deuses e divindades que

personificariam o sagrado pela própria natureza; a segunda seria relativa ao que chama de

"seres intermediários", o que englobaria as imagens de anjos e gênios; por fim, a terceira

diría respeito á representação de "homens e mulheres excepcionais", tomados como

modelos ou intercessores, taís como os santos cristãos e os bodhisattvas do budismo.

A partir dessas primeiras considerações, a curadora passa a tratar do uso de imagens

no cristianismo. Segundo ela, as comunidades cristãs primitivas, visando se diferenciar do

paganismo greco-romano, rejeitavam figuras antropomórficas. As primeiras figuras

humanas na simbologia visual cristã teriam surgido no século III, o que seria comprovado

pelas representações de cenas bíblicas encontradas nas catacumbas de cristãos do século

referido. No entanto, o que teria sido sedimentado pela tradição católica seria, como

figuração na imagem de culto, a representação da santidade. Os primeiros santos teriam

sido os mártires cristãos perseguidos pelo império romano.

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Até a Idade Média, a atribuição de santidade seria, segundo Oliveira, informal e

espontânea, baseada principalmente em tradições e lendas locais. Somente a partir do

século XII haveria, por parte de Roma, o reconhecimento oficial dos santos para o culto, o

que, desde então, seria competência exclusiva do papa, que testaria o candidato a santo pelo

exercícios das virtudes teologais e cardinais, assim como pela confirmação de milagres

atribuídos a ele. Na ocasião da canonização, também seriam estabelecidas as linhas gerais

de iconografia que permitiriam o reconhecimento das imagens do novo santo. Essas linhas

gerais seriam definidas a partir das regras mais genéricas da representação de santidade,

como a auréola ou nimbo (comuns a todos os santos) e os outros elementos que

identificariam a classe do santo (palma do martírio, livro e lírio para, respectivamente,

mártires e confessores, doutores da igreja e virgens), assim como os traços que

determinariam a individualidade particular de cada santo.

A multiplicação das imagens no culto católico teria causado reações iconoclastas. A

segunda delas seria decorrente da reforma protestante, que teria ocasionado a destruição de

imagens na Alemanha e na Inglaterra. Combatendo a Reforma, o catolicismo teria, segundo

Oliveira, reafirmado o uso das imagens no concílio de Trento, em que foram defmidas

também diretivas a respeito do uso de imagens nos cultos.

Assim, tratando das diretrizes do uso de imagens na Contra-reforma, Oliveira

caminha para o que chama de "esculturas devocionais da Época Barroca", proposta como

uma "nova era da arte religiosa católica" que seria, a partir do Concílio de Trento, baseada

em uma série de escritos teóricos. Essas determinações teóricas previam o uso de imagens

tendo em vista a identificação dos santos pelos fiéis, o que seria melhor traduzido pela

escultura, que transformariam os conteúdos religiosos em "figurações vivas, passíveis de

serem percebidas e tocadas na sua realidade corpórea tridimensional". Essa produção

também se pautaria pelo o que Oliveira chama de "realismo" estabelecido pelo uso de

policromia, o que determinaria o uso de madeira como o material da "estatuária barroca".

Segundo a curadora, a "verdadeira pátria da escultura devocional barroca" seria a Espanha.

A esse respeito, dita centros produtores e escultores. Portugal também teria um papel

importante a desempenhar nessa estatuária, mas a produção portuguesa estaria imbuída do

que Oliveira chama de características lusitanas, tais como a maior sobriedade, serenidade e

melancolia.

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A encomendadas imagens na" era barroca" partiria, segundo O li v eira, da Igreja,

inicialmente através das ordens religiosas e depois do dito "setor privado da Igreja", isto é,

as confrarias de leigos. A curadora propõe quatro funções da imagem religiosa no período:

as imagens serviriam para compor os retábulos dos templos, para serem levadas pelas

procissões, para constituírem conjuntos cenográficos (como presépios e vias sacras); e,

finalmente, para serem colocadas em oratórios de culto doméstico. Cada uma das funções

previstas para as imagens determinariam características formais e estilísticas das imagens.

Por exemplo, as imagens destinadas a comporem conjuntos retabulares, além de denotarem

"expressividade dramática", deveriam se adequar ao conjunto estilístico da composição em

que seriam inseridas; as imagens processionais seriam compostas através do que Oliveira

chama de "figurações vivas", o que preveria o uso de adereços nas esculturas.

Ainda elaborando um panorama geral a respeito da "escultura devocional barroca",

Oliveira também faz considerações a respeito da iconografia e dos estilos artísticos que as

imagens denotariam. Mesmo sendo as diretrizes de Trento bastante genéricas, segundo a

curadora, a Igreja teria mantido um controle eficaz e sistemático da arte religiosa produzida

no período. As representações de nudez, de temas profanos e de figurantes considerados

desnecessários seriam veementemente rejeitadas, por exemplo. Os temas religiosos

deveriam, assim, ser tratados pelas chaves de elevação, austeridade e nobreza para que as

imagens cumprissem a sua missão de "instruir o povo, confirmá-lo na fé cristã e suscitar

uma sensibilidade emotiva, favorável às práticas devocionais" (p. 43).

Entretanto, mesmo definindo as normas gerais de composição das imagens baseadas

nas decorrências de teorias de decoro, a Igreja não teria fixado uma opção estilística precisa

com relação à produção das esculturas. Assim, a preocupação básica do artista, segundo a

curadora, seria a de insuflar um autêntico espírito religioso que justificasse seus fins e

garantisse sua utilidade para a Igreja.

Com relação ao estilo das obras, Oliveira cita Weisbach, para quem toda a produção

escultórica da contra-reforma seria "barroca". Ainda que concordando em linhas gerais com

tal classificação, a curadora propõe a divisão dessa produção em três períodos distintos, que

são associados a contextos socioculturais específicos: "maneirismo", que concatenaria as

produções do século XVI e as do início do XVII; "barroco", que especificaria a produção

do XVII; e, por fim, "rococó", que englobaria as produções do final do XVII e de todo o

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século XVIII O estilo "maneirista" do primeiro período traduziria um "espírito austero e

combativo" da Igreja contra-reformista. As imagens das santidades, além de transmitir as

idéias de ascese e de mística contemplativa, deveriam dar conta da ação combativa e

heróica a serviço da fé. Nesse sentido, novos santos formam estabelecidos, e os temas

favoritos das esculturas seriam as experiências místicas e as visões, o que,

conseqüentemente, preveria a representação de santos que teriam experimentado esse

êxtase religioso.

Por sua vez, o estilo dito "barroco" representaria a substituição da serenidade e da

austeridade pelo deleitamento e maravilhamento e também denotaria uma maior tolerância

eu m menor controle do campo artístico por parte da Igreja, o que t ería ocasionado um

"transbordamento retórico". Esse transbordamento também daria conta do otimismo

triunfal da Igreja, que teria ocupado as quatro partes do mundo. Dessa forma, também se

explicaria, segundo Oliveira, a monumentalidade e opulência das Igrejas e o fausto teatral

das cerimônias litúrgicas, o que as imagens refletiriam. Particularmente com relação à

escultura "barroca", a curadora aponta para uma "intensificação da expressão fisionômica"

das imagens. Mesmo Portugal, avesso, segundo Oliveira, a "exageros patéticos", também

teria exemplares típicos desse "transbordamento retórico" das imagens "barrocas",

principalmente no período de D. João V.

Por fim, o estilo "rococó" apontaria para um novo tipo de sensibilidade religiosa.

Essa sensibilidade teria como parâmetros uma visão mais tranqüila e suave do triunfo da

Igreja associada a um sentimento de confiança i limitada na graça divina e na vitória do

catolicismo. O estilo, segundo a curadora, seria mais "sensualista" e menos dogmático, o

que refletiria" iluminismo". Nessa direção, a experiência místicas eria tomada como um

gozo contemplativo, um sentimento de beatitude na união com Deus. Assim, a eloqüência

gestual de "barroco" cederia espaço para a elegância, o que teria tomado a representação da

graça em valor estético.

Depois de desenvolver um pouco mais as características desses três estilos e de

exemplificar com algumas obras, Oliveira abre o segundo capítulo de seu texto, que se

pauta pela produção escultórica das oficiais conventuais das ordens religiosas na colônia

brasileira do sé cu! o X VII. Antes de tratar especificamente da imaginária de cada ordem

religiosa, a curadora faz um pano rama geral a respeito dessa produção. Segundo e la, os

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colonizadores teriam trazido consigo o fervor religioso português, o que é exemplificado

com a denominação dos acidentes geográficos da colônia baseada no calendário litúrgico.

A tradição da imaginária religiosa também seria herança lusitana notada desde os primeiros

tempos da colonização. No entanto, do primeiro século de colônia luso-brasileiro pouco se

conservou. Oliveira trata mais detalhadamente das poucas imagens remanescentes do

século XVI e dá particular atenção às imagens da virgem com o menino e a Nossa Senhora

da Conceição das matrizes de Itanhaérn e São Vicente, que teriam "traços mamelucos", o

que faria com que fossem consideradas as "primeiras imagens autenticamente 'nacionais'

de nossa história" (p. 48).

A respeito, enfim, da produção do século XVII, Oliveira aponta para o predomínio

das oficias conventuaís, o que dotaria as imagens de urna mesma ordem de um "ar de

família" e de unidade estilística, mesmo quando produzidas em oficias separadas por

grande distância. O material preferido na confecção das esculturas seria o barro cozido,

excetuando-se os jesuítas, "cuja atividade missionária de caráter mais abrangente e

retórico" exigiria imagens de grande porte esculpidas em madeira. A curadora aponta

também para a prática corriqueira de i rnportação de i rnagens de Portugal, o que, c orn o

tempo, seria gradualmente substituída pela produção local.

Depois dessas primeiras considerações, Oliveira aborda especificamente, em

subcapítulos, a produção de cada ordem religiosa. A primeira a ser tratada é a produção

escultórica da O rdern de S ão Bento. A curadora reporta às p esquisas D orn C lernente da

Silva-Nigra que indicam três monges escultores beneditinos de alto nível: os ceramistas frei

Agostinho da Piedade e Frei Agostinho de Jesus e o escultor em madeira frei Domingos da

Conceição Silva. Oliveira faz um resumo da vida e da obra desses escultores e se detém em

alguns aspectos particulares de sua produção. Sobre o primeiro, o frei Agostinho da

Piedade, afirma que seu estilo pessoal teria influenciado a produção posterior. As imagens

confeccionadas por ele teriam corno caracteristica um pronunciado arcaísmo de tradição

renascentista, e a espiritualidade delas seria constituída através de formas visuais que

denotariam introspecção e silêncio.

Mas se, de um lado, Agostinho da Piedade apresentaria um hieratisrno e um

"silêncio introspectivo", de outro, Agostinho de Jesus, com urna "expressividade algo

ingênua", próxima de "barroco", teria feito com que houvesse urna interpelação direta da

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imagem com o espectador, já as figuras olhariam, segundo Oliveira, diretamente nos olhos

dos fiéis. Ainda sobre frei Agostinho de Jesus, a curadora argumenta que, estando o

escultor preso ao isolamento de São Paulo do século XVII, ele teria conseguido introduzir

em sua produção "valores expressivos e estéticos de cunbo regional", originalidade que, nas

demais regiões, só seria notada no século XVIII. Já as imagens atribuídas ao frei Domingos

da Conceição são tomadas por Oliveira como reflexo, a partir de uma visão "barroca", do

mesmo tipo de "espiritualidade concentrada", que seria típica da ordem beneditina.

No subcapítulo seguinte, Oliveira trata das imagens franciscanas e carmelitas,

bastante populares na época segundo ela, pois estariam impregnadas no cotidiano das

populações brasileiras do período. Haveria uma presença maciça de franciscanos, seja

como conventuais, observantes ou capuchinhos. Ressalta-se também o maior números de

santos da ordem canonizados e mesmo a popularidade deles no imaginário cristão, já que

haveria, entre os santos advindos da ordem ou preferidos dela, inclusive santidades pardas e

negras. Depois de explicar brevemente como teria se dado o estabelecimentos das ordens

franciscana e carmelita no Brasil, Oliveira queixa-se que não há estudos e historiadores da

arte à altura da qualidade dos acervos sob a guarda dessas ordens, o que impossibilitaria

uma análise mais detalhada deles.

A próxima ordem cuja produção é abordada pela curadora é a Companhia de Jesus.

Oliveira aduz que, ao contrário das outras ordens, cujas instalações acompanhavam o

povoamento da colônia, os jesuítas teriam um projeto missionário definido que

freqüentemente engendraria conflitos com os interesses mais imediatistas dos

colonizadores. Como exemplo desses conflitos, a estudiosa cita a defesa dos índios

empreendida pelos jesuítas, o que seria conseqüência da meta prioritária da ordem, a

evangelização de todos os povos do mundo. Esse objetivo catequético básico teria também

se desdobrado em outros projetos pedagógicos-institucionais, como o estabelecimento dos

colégios jesuítas destinados aos colonos.

Oliveira aponta também para uma maior eficácia que a Companhia de Jesus teria

com relação às outras ordens, o que deveria ser creditado à organização centralizada e

disciplinada e aos métodos mais modernos de ensino e de evangelização usados pelos

jesuítas. Eles também seriam hábeis na capacidade de adaptação à natureza e conseguiam

dominar as línguas indígenas e valer-se da mão-de-obra indígena na confecção de

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imaginária. Com relação às características das imagens, Oliveira as diferencia das

produzidas pelas outras ordens, que senam caraterizadas pela espiritualidade

contemplativa, afirmando que seriam programaticamente direcionadas ao ensino e ao

convencimento persuasivo. Anota também que as esculturas, no início do estabelecimento

da ordem no Brasil, seriam importadas de Portugal e que depois, conforme as necessidades

específicas de cada missão, seriam produzidas na colônia. Finaliza diferenciando obras

portuguesas e brasileiras, além de citar obras e artífices jesuítas mais importantes.

Ainda dentro do capítulo que trata da produção das ordens, Oliveira aborda

rapidamente a escultura missioneira do Rio Grande do Sul. Depois de dar coordenadas

gerais a respeito das reduções jesuíticas no sul do Brasil e do Paraguai e no norte da

Argentina e de contabilizar 300 peças remanescentes das reduções, afirma que haveria uma

diferença estilística entre as imagens das missões do século XVII e as do XVIII. Essa

diferença diria respeito aos "valores plásticos da cultura guarani" que teriam sido

assimilados pelas esculturas, o que a leva a concluir que haveria uma originalidade dessa

produção na medida em que se misturaria protótipos europeus com a traços de identidade

indígena. Essa mistura geraria "um dos casos mais singulares de fusão cultural da história

da arte ocidental" (p. 58).

Depois de tratar da produção das ordens, a curadora inicia um novo capítulo

chamado "As escolas regionais do século XVIII", em que analisa a produção de imaginária

pelas oficinas de leigos, o que seria típico dos setecentos, e em que propõe escolas

regionais de produção com características estilísticas próprias. O segundo ponto analisado

no capítulo é proposto como decorrência do primeiro: quando há a decadência das ordens,

que garantiam uma produção similar em termos estilísticos mesmo se os pólos produtores

fossem separados por grandes distâncias, e quando a produção leiga toma o espaço deixado

pelas ordens, os centros produtores começariam a se desenvolver de forma independente,

motivados, em grande parte, pelos especificidades e ciclos econômicos distintos e pelas

necessidades religiosas particulares das regiões em que se situam. Haveria também uma

maior diversidade dos responsáveis pela confecção das obras, que passariam a ser, dados o

declínio das ordens e a expulsão dos jesuítas em 1759, organizações leigas (confrarias,

irmandades e ordens terceiras) diversas. A diversidade dos produtores geraria também uma

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grande diversidade de "expressão", como diz a curadora: como cada associação leiga teria

seu santo padroeiro, as imagens ganhariam em diversificação.

Oliveira afirma que também seria notável a mudança no estatuto do artífice, antes

religioso em oficina conventual, agora quase "profissional liberal", principalmente no que

diz respeito aos oficias mecânicos, ou seja, os pintores e entalbadores. Escultores e

imaginários fariam parte da mesma categoria dos entalbadores, com a diferença que o uso

dos termos na época denotariam que imaginário seria aquele que esculpia imagens em

madeira e que escultor tomaria pedra e metais como material. Ainda sobre a diferenciação

dos termos usados na referência dos produtores de imagens religiosas, a curadora aponta

ainda que a designação de estatuário seria aplicada para os escultores tidos como excelentes

e "santeiro" seria o termo popular para "oficial de fazer santos". Oliveira afirma também

que, entre os entalbadores, era numerosa a presença de mulatos e, em menor grau, negros

forros e libertos. Tanto os mulatos quantos os negros, mesmo quando demonstrassem

talento artístico, dificilmente teriam conseguido a qualificação de mestre, o que, segundo

Oliveira, "aumenta ainda mais o mérito de artistas excepcionaís oriundos de camadas

sociaís inferiores e que lograram alcançar essa distinção, como Valentim de Fonseca e

Silva, no Rio de Janeiro, e Antônio Francisco Lisboa, em Minas Gerais" (p. 60).

Depois desse enquadramento inicial, a curadora trata das "escolas regionais",

começando pela baíana, que, segundo ela, devido a um contexto sócio-religioso-político,

seria a maís abrangente em termos de produção de imaginária. Essa abrangência diria

respeito à qualidade das esculturas produzidas na região e ao fato de que essa produção

teria se dado em série, prevendo a exportação de peças para outras regiões da colônia. Com

relação às caracteristicas das imagens produzidas na Bahia, Oliveira aponta para um

refinamento de gestos e atitudes das figurações, movimentação erudita dos planejamentos e

policromia de cores vivas com douramento vibrante. Além se citar referências

bibliográficas a respeito dessa produção, elenca os escultores maís importantes, taís como

Félix Pereira Guimarães, Francisco das Chagas, conhecido como "o Cabra", e Manoel

Inácio da Costa, para o qual dá particular atenção.

Se nas imagens baianas, devido à produção em série, seria possível se notar uma

padronização, tanto em termos técnicos quanto em estilísticos, na mineira, em que a

produção seria mais artesanal e que, dado ao isolamento da região relativamente às regiões

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litorâneas, um estilo próprio local teria sido construído, seria notável uma diversificação na

produção de imaginária. Oliveira aduz também que, em Minas Gerais, na ausência de

ordens religiosas, proibidas expressamente pela coroa desde o início da colonização da

região, a religião, ao invés de ser imposta, seria aspecto próprio mesmo da rotina dos

moradores, o que a tradição local dos santeiros e das festas comprovaria. Ainda sobre a

diversidade das peças, a curadora afirma que as peças mineiras seriam originais, em relação

à produção de esculturas do século XVIII, porque seriam fruto de um auto-didatismo não­

acadêmico que daria conta de criar soluções plásticas próprias tendo em vista a ausência de

modelos ou informações precisas a respeito da produção artística de outras regiões do

colônia e da metrópole.

Em termos estilísticos, as imagens mineiras seriam mais sóbrias, com uso mais

discreto de policromia de douramento, teriam uma uniformidade de cores e economia no

uso de ornatos nas padronagens. Oliveira destaca ainda as feições, que denotariam

ingenuidade, e as figurações de planejamento nem sempre lógico, apesar da

"movimentação barroca". Sobre os artífices mineiros, Oliveira afirma que a fama

avassaladora de Aleijadinho teria eclipsado estudos e reconhecimento de outros artistas.

Trata da vida e obra de Francisco Xavier de Brito, de Aleijadinho e seus sucessores, mestre

de Pitanga, pe. Félix Antônio Lisboa, seu irmão, e do mestre de Sabará. Ainda cita obras de

Francisco Vieira Servas, particularmente seus anjos tocheiros, e Manoel Dias de Assis e

Souza, entre outros.

A análise das escolas regionais termina com a breve análise das produções de

Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão. Cita autores e obras de cada uma dessas dessa

região e, mesmo apontando para a falta de estudos específicos que permitiriam a

destacamento de características particulares de cada uma delas, afirma encontrar, em

Pernambuco, uma certa originalidade; no Rio de Janeiro, notáveis traços portugueses; e,

finalmente, no Maranhão, características estilísticas próprias.

4. "Estudos" do catálogo Brazil: Body and Sou!

"Brazil in Historical Context''. Michael M Hall

O texto é um breve panorama da história do Brasil tendo em vista um leitor pouco

familiarizado com ela. Trata desde do estabelecimento colonial até a reeleição do

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presidente Fernando Henrique Cardoso. Nota-se que não se trata propriamente de uma

história gloriosa. Hall aponta para a dizimação de índios e para a devastação ecológica

executadas a partir da colonização portuguesa, para a situação de exclusão social em que se

encontravam os escravos, ainda que teriam encontrado, segundo o historiador, uma

estrutura social menos rígida do que a constatada na escravidão norte-americana, e para o

fato de o Brasil ter sido o último país do hemisfério a ter abolido a escravatura. Os períodos

imperiais e republicanos são descritos como teatro de interesses econômicos e políticos das

classes dominantes e das nações industrializadas. Por fim, o texto conclui, de forma

bastante pessimista, que o Brasil, apesar de ter uma das maiores economias do mundo,

entra no novo milênio ocupando os últimos lugares nos rankings de indicadores sociais e de

distribuição de renda.

"The messages ofbrazilian rituais: popular celebrations and Carnival", Roberto DaMatta

DaMatta, numa chave multiculturalista e antropológica, analisa o que chama de

"rituais brasileiros" (celebrações cívicas, religiosas, populares e "orgiásticas"), como parte

integrante da cultura do país e, principahnente, do que denomina ser seu uruverso

simbólico. Alegando que essa análise seria bastante propícia no contexto da exposição

Body and Sou!, pois ofereceria um pretexto para a discussão histórica, geográfica e sócio

cultural da cultura brasileira em meio a um tempo dominado por um cosmopolitismo

globalizado, o antropólogo propõe que as festividades brasileiras que analisa dotam de

homogeneidade e de constãncia a sociedade brasileira: de um lado, frente a constantes

instabilidades que redundariam em mudanças constitucionais, políticas e monetárias, os

rituais brasileiros se mostrariam intocáveis ao longo da história, mantendo as linhas gerais

de organização da "brasilidade" intactas; de outro, obrigados a conviver com os desmandos

e autoritarismos das classes dominantes, os brasileiros encontrariam nesses eventos tanto a

provisão de auto-estima necessária para garantir uma continuidade social quanto a inversão

dos modelos de dominação impostos a eles, reacendendo esperanças enquanto sociedade e

cultura.

Destacada então a importãncia desses rituais, DaMatta os analisa em diferentes

níveis. Primeiramente, afirma que eles constituem um triãngulo vital, baseado na triade

comemoração cívica, religiosa e popular ou profana, para a convivência social. Depois

propõe que, na verdade, as celebrações funcionariam como ponte entre dois tipos de

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sociabilidade em curso no Brasil: a primeira, dominada pelo mercado, que instituiria

relações individualistas, abstratas e universais; a segunda seria baseada nas relações

pessoais que os indivíduos construiriam e que serviriam de proteção contra regras fortes e

impessoais de controle rígido do comportamento público. Os rituais, principalmente os

profanos, como o carnaval, ocupando um espaço especial entre esses dois padrões de

sociabilidade substituíriam o mundo de ordem social baseado na segregação do espaço e

tempo pelo o que DaMatta chama de "visão relaciona!'', implícita e mágica. Essa visão, ou

visão de mundo, como às vezes a denomina o antropólogo, seria uma forma diferente de

orientação emocional, intelectual e cognitiva e inverteria, assim, as rotinas sociais, os

papéis dos gêneros e os valores sacros. As celebrações, para tanto, demandariam gasto e

engajamento coletivo. A "visão de mundo relaciona!'' prevista nesses rituais seriam

permeadas de atitudes e gestos que contrastariam com as atitudes modernas da rotina diária

e substituiriam a igualdade política, formal e legal (abstrações em formas de leis no

contrato de convívio social coletivo), por uma igualdade substantiva que daria conta de

representar e de agir apontando para "equivalências morais", tais com morte, sofrimento,

ínveja, desejo e necessidades psicológicas diversas. Segundo DaMatta, dessa forma,

propondo essa igualdade substantiva, as celebrações dramatizariam a necessidade que todos

teriam de cantar, dançar, comer, beber, fazer sexo e, acima de tudo, rir, o que relativizaria a

seriedade e ridicularizaria a pompa e o poder.

O carnaval e outras celebrações brasileiras também são analisados pelo seu caráter

contraditório que dissolveria oposições tais como natureza e cultura, mundo fisico e

metafisico, morte e vida, homem e mulher, adulto e criança, trabalho e lazer. Nesse

sentido, são interpretados como atos provenientes de uma intencionalidade humana

posicionada contrariamente às fundações de sistemas culturais governados pela

compartimentalização, individualismo, anonimato e trabalho como punição e obrigação.

Essas festividades também tornariam humanizado o cruel, segundo o antropólogo, ambiente

urbano da América Latina e, assim, decretariam periodicamente a liberdade e a união de

todos. Elas dissolveriam também laços de relações convencionais e libertariam os

indivíduos para se agregarem em associações livres baseadas em interesses comuns e de

livre escolha, como as escolas de samba, blocos, etc. DaMatta assinala também que haveria

uma inversão da ordem do poder, já que os indivíduos provenientes dos substratos sociais

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menos poderosos senam aqueles que estariam no comando e na organização das

festividades, o que inspiraria inveja e desdém nas classes altas. Isso ficaria claro nas

freqüentes queixas de que o esforço gasto nas festividades poderia ser aplicadas em algo

mais útil ou mesmo na indignação moral que a sensualidade dos rituais motivaria.

DaMatta diferencia a inda o que chama de "rituais de ordem", que reforçariam as

posições sociais (tais como as festas oficiais de celebração da independência ou da

proclamação da república, além de festejos orientados pelo mercado, como o dia dos

namorados) dos "rituais orgiásticos". Aponta também para o carnaval oficial das últimas

décadas, já domesticado e comercial, e para a sobrevivência dos rituais mais subversivos na

carnavalização de certas procissões religiosas, motivadas sobretudo pelo o que chama de

"mulatismo", proposto c orno aspecto fundamental da cultura brasileira, que operaria nos

festejos referidos pela mistura de símbolos católicos com credos africanos e pela fusão de

sagrado e profano. Ainda assinala a convivência dos rituais oficiais e universais, como as

comemorações cívicas, e dos rituais mais específicos e orgiásticos. Nesse sentido, afirma:

"from a anthopological point of view it is interesting to observe that the dual agenda of

rituais is testimony, not of an ill-constructed modernity or of an indigent and backward

underdevelopment, but of an imaginative way of conjugating local aspects with the

universalistic aspects imposed by the modem agendas originating, from top to bottom, as

political and civilizing schemes" (p. 51). A partir disso, propõe que a mensagem das

celebrações brasileiras revelam "a singular and altemative modernity for a social world

that, while undoubtedly worried about economic growth, social order, and democratic

institutions, is cornmitted to the plight o f the oppressed and faithful to a forgotten sense o f

human solidarity".

"The Baroque Culture of Brazil", Affonso A vila

Em seu texto, Á vila propõe um contexto cultural que explique o surgimento de

"barroco", estabelece algumas bases interpretativas e conceitua-o como um fenômeno

cultural e estético com dinâmicas complexas de funcionamento. Como introdução, alega

que "barroco" seja uma "arte do consumo". Nesse contexto, "consumo" é entendido como

"um conceito cultural envolvendo a circularidade de formas representativas e funções

traçadas da mentalidade, da vida religiosa e mesmo de estruturas sócio-econômicas que

existiram tanto no nível coletivo quanto no individual" (p. 114).

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Inicia sua teorização de "barroco" recorrendo às supostas etimologias do termo e

assume que elas seriam a base dos preconceitos, advindos de posturas clássicas e

tradicionalistas, que o termo encerraria. Afirma que essas posturas, no Brasil, teriam

sustentado que "barroco" teria causado mais de um século de terror obscurantista.

Contrapondo-se a essas posturas, assegura que "barroco", no Brasil e na América Latina,

além de suscitar interesse turistico e cultural, seria um elemento "metabolizador" de

distintivos espirituais e intelectuais responsáveis pela identidade nacional e continental. No

entanto, alega que, para argumentar essas posições, assim como para propor o valor de

"barroco" como dinâmica cultural circular, deseja se desfazer de um ranço com a

universidade e com o conhecimento acadêmico compartimentalizador, incapaz, portanto, de

perceber a cultura "barroca" como um todo. Assim, propõe um "modelo científico" de

análise do fenômeno "barroco" que daria conta de sua referida circularidade e de suas

decorrências semi óticas. Antes, porém, de pôr em funcionamento esse aparato crítico, Á vila

enuncia coordenadas históricas gerais para a localização de "barroco" no tempo.

Na época do descobrimento das Américas, a humanidade estaria, segundo Ávila,

cheia de paroxismos e paradoxos - de um lado, motivado por utopias edênicas, o homem

partia para a exploração do novo; de outro, pressionado pela contra-reforma e pelo

Absolutismo, via-se oprimido. "Barroco", nesse sentido, seria a vazão dessas contradições:

"the Baroque completely e mbodied, breathed, and expressed, through its ideological and

cultural channels, the duality of apprehension and hope that was essentialy a fusion of

devotional spirítuality (Paradise) and irrepressible terrestrialization of the senses (the

forbidden union of Adam and Eve)" (p. 116).

Seria esse o contexto da migração de "barroco" para Brasil. "Barroco assim teria se

espalhado segundo três modalidades distintas. A primeira, relativa ao que Á vila chama de

"barroco litorâneo, seria a disseminação de "barroco" ao longo da costa brasileira de norte a

sul, espalhando fé, conhecimento e padrões de comportamento ético e recreativos. A

segunda modalidade seria aquela que teria caminhado em direção ao interior e às fronteiras

da colônia; seria um "barroco" mais simples e disperso, e seu exemplar mais típico seria o

"barroco missioneiro" das "reduções" jesuíticas. Mas a modalidade mais elevada e de

desenvolvimento mais coeso seria a terceira, aquela que corresponderia ao "barroco

mineiro", já residual em termos cronológicos. Sobre a especificidade desse "barroco",

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Á vila aponta para a ausência de ordens religiosas, o que teria tido conseqüências decisivas

para a confecção de arte e para o estilo de vida. Esse estilo de vida também teria sido

propiciado pela mineração e pela Igreja, que não teria condicionado apenas a arte mas a

formação da região como um todo, principalmente na tarefa de atrair, congregar e estimular

novas formas de vida comunitária e social. A culminância disso seria notada nas festas

"barrocas", que também seriam características de todo "barroco latino-americano". No

entanto, as festividades "barrocas" teriam tido um caráter mais programático em Minas

Gerais, pois, agindo como uma força maior na suspensão das ordens das coisas, anularia

distinções sociais tendo em vista uma união coletiva. As festas de Minas Gerais,

particularmente o Triunfo Eucarístico, seriam, nas palavras de Á vila, um ponto de encontro

democrático de brancos, negros e mestiços. Essa união social, que Á vila atribui a uma

"circularidade barroca", seria característica importante na identidade da América Latina e

do Brasil.

Depois de tratar dessas três modalidades de assimilação no Brasil, Á vila propõe

quatro marcos fundamentais que identificariam e definiriam "barroco" em termos formais e

ideológicos. O primeiro deles é chamado de "intenção persuasiva e impacto", explicado

como ditame contra-refonnista que pregaria uma maior eficiência na comunicação

devocional da arte religiosa. O segundo, de certa forma, decorrência do primeiro, seria o

que Á vila chama de "primazia do visual", advindo da necessidade do imediatismo das

mensagens contra-refonnistas. Á vila aponta que "a primazia do visual" não teria sido

desenvolvido apenas na criação artística mas em outras áreas relacionadas ao "estilo de

vida barroco", embasado na tendência programática em direção ao uso da sugestão ótica, da

captura do olhar no ritual e na ornamentação da igreja, além da valorização da cor, da luz e

da paisagem nos espaços arquitetônicos. O terceiro marco seria relacionado ao que Á vila

chama de "geometria da curva", proposta como decorrência da visualidade demandada por

"barroco". Aponta, a esse respeito, para as reapropriações da ilusão do movimento de

massa borromínica. Finalmente, o quarto marco, característica decisiva na visão de mundo

e no estilo de vida que "barroco" envolveria, é denominado por "rebelião através do jogo".

Elementos 1 údicos e a noção de jogo estariam impregnados na arte e na" vidas ocial" e

denotariam, segundo Ávila, um desejo subjetivo de liberdade e de vôo dirigido contra a

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força contra-reformista vigente. Á vila defende ainda que a noção de "pacto lúdico" seria o

critério mesmo definidor de "barroco" como fenômeno histórico e cultural.

Depois dessas considerações, Á vila desenvolve uma longa discussão teórica sobre o

que chama de "circularidade cultural do Barroco". Essa circularidade é definida de

diferentes formas e em diferentes niveis. Primeiramente, seria um aspecto formal de

"barroco" previsto na "geometria de curvas", que insinuaria círculos e elipses. Essas formas

geométricas são interpretadas como decorrências psicológicas, cognitivas e socioculturais

do estilo de vida que "barroco" engendraria. Num ponto de vista mais sociocognitivo, a

circularidade referida diria respeito a padrões sociais integrativos que "barroco"

asseguraria. C orno estilo de v ida, seria capaz de integrar diferentes estratos sociais num

padrão cognitivo, suspendendo divisões de classes e de raça. Essa característica de

"barroco", tomada como conseqüência de sua "circularidade cultural", ficaria mais evidente

nos festejos coletivos. Por último, e de forma mais insistente, a referida circularidade seria

relativa a complexos mecanismos de assimilação e absorção de "barroco" em diferentes

tempos e espaços. Num espécie de moto-contínuo, a história da arte teria, segundo a

perspectiva de Á vila, assistido a surgimentos e ressurgimentos de "barroco". Assim, é

explicada a disseminação de "barroco" por toda a Europa no século XVII e, na seqüência,

por toda a América Latina. Esse movimento constante e circular de assimilação e

reapropriação teria produzido inúmeros "barrocos" com características próprias em todos os

territórios em que teria se dado, assim como teria causado o surgimento de "barroco" em

tempos diferentes, como o "barroco mineiro residual", do XVIII e do inicio do XIX, e

mesmo os aparecimentos mais recentes, fundamentahnente na América Latina, de obras

artísticas e racionalidades tidas como "barrocas".

"Brazilian Baroque Art ", Cristina A vila

Cristina Á vila analisa a produção de talha de madeira, estatuária e pintura de teto

durante o período colonial. Para cada desses tipos de produção, propõe uma tipologia e

elenca obras e artistas importantes. Sobre a talha em madeira, destaca quatro tendências,

propostas como estilos: "maneirista", "estilo nacional português", "estilo D. João V" ou

"estilo joanino" e "rococó". A primeira tendência teria como fundamentos os retábulos com

colunas retas, ornamentados com decoração floral na terceira parte inferior da coluna,

margeando painéis ou nichos de imagens. Já o "estilo nacional português" apresentaria não

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mais colonas retas mas cohmas torsas, chamadas de "salomônicas". As colunas seriam

construídas em arquivoltas concêntricas e haveria uma profusão de ornamentação. As

colunas salomônicas também seriam característica básica do estilo joanino. Típico também

seria o coroamento das colunas em arco, com figuras angelicais na frente do conjunto que

serviriam como suporte visual para as colunas. Por fim, a tendência "rococó" seria

caracterizada por uma "dignidade" arquitetônica, o que significaria uma simplificação

estrutural e conseqüente revalorização do altar principal, talhado em arcos plenos e

coroamentos.

Sobre a e statuária, Á vila diz que, c orno os estudos estariam em um estado a inda

preliminar, não seria possível estabelecer com grande segurança uma tipologia mais rígida.

No entanto, aponta para algumas características já conhecidas a respeito das

particularidades da produção de cada século. No XVI, as imagens teriam uma aparência

menos acabada e pouca sugestão de movimento. Assinala que os corpos seriam desenhados

de forma desproporcional sobre um eixo vertical. A pouca movimentação que a imagem

sugeriria estria concentrada nas áreas dos joelhos e dos braços. No entanto, as cabeças

permaneceriam rígidas, e as faces estampariam uma expressão de vazio dramático. As

imagens quinhentistas teriam ainda policromia mínima pouco variada e pedestais simples.

No século XVII, as imagens ainda denotariam imobilidade. Da mesma forma, a cabeça,

agora fora de proporção com o resto do corpo, estaria fixa em uma posição rígida. A face,

no entanto, sugeriria uma expressão discreta e doce. Á vila aponta ainda para outras

características agora mais salientes, como a estilização dos cabelos. As imagens do XVIII,

por sua vez, já demonstrariam um movimento do corpo e seriam pensadas geometricamente

sobre um eixo que, de forma simétrica, dividiria a composição da massa. Outras

características são apresentadas, como a utilização de vidro para a confecção dos o lhos.

Depois de 1760, condicionadas pelo estilo "rococó", as imagens denotariam um movimento

ascendente, caracterizado por Ávila como pleno de espiritualidade e assimetria. No XIX,

porém, influenciadas pelo "neoclassicismo", a estatuária teria a suavização dessas

características "rococós" e apresentariam torsões falsas e poses rígidas.

Depois de apresentar essa tipologia e essa classificação estilística, Á vila desenvolve

o que chama de "análise cronológica". Nessa análise, organiza os tipos de produção em

escolas regionais e localiza, no tempo, a predominância de determinados estilos em locais

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específicos de produção, além de enumerar obras e artistas significativos. Sua análise se

inicia tratando da produção das ordens religiosas, elencando retábulos e estatuária

significativos de jesuítas, beneditinos e franciscanos. Com relação à produção leiga,

observa, no XVIII, o desenvolvimento de estilos regionais de relativa autonomia. Com

relação à Babia, sublinha as produções de Francisco das Chagas, o cabra, e de Manoel

Inácio da Costa. Propõe características peculiares da produção pernambucana e dá maior

atenção às obras de Minas Gerais, tratando principalmente de Aleijadinho e de Francisco

Vieira Servas.

Por fim, analisa a pintura de teto, que teria ainda menos tipologias já aceitas.

Basicamente, divide esse tipo de produção em dois grandes períodos: o primeiro dos

painéis e caixotões decorados; o segundo, posterior a 1737, caracterizado por pintura

ilusionista trompe l 'oeil, que teria encontrado sua maior expressão em Minas Gerais.

"Brazilian Baroque Architecture ", Augusto C. da Silva Telles

Valendo-se da mesmo moldura histórica e conceitual de seu texto "Barroco no Rio

de Janeiro", constante do catálogo Brasil Barroco (cf. infra), em que trata especificamente

de obras arquitetônicas coloniais do Rio de Janeiro, Telles expande o inventário de obras

proposto para fazer uma grande enumeração de construções executadas em toda colônia

brasileira, além de destacar estilos regionais determinados cronologicamente e propõe

contextos particulares como molduras.

"The Ma in Altar o f São Bento de O linda", Augusto C. da Silva Telles

Telles trata do altar principal da igreja de São Bento de O linda, inteiramente exposto

em Nova Iorque. Argumenta que o altar pode ser considerado uma obra-prima sem

precedentes e sucessores na arte colonial brasileira. Depois de descrever os detalhes do

retábulo do altar, cita bibliografia que sustenta que se trata de obra de algum mestre

português das regiões de M inho ou Braga, dadas determinadas s imilitudes com o bras I á

existentes. Ao descrever os estilos de talha empregados na obra, classifica-a como a mais

alta realização da talha "barroco-rococó" do Nordeste brasileiro.

Depois dessas considerações iniciais, visando inserir o altar no contexto da história

beneditina e no desenvolvimento da arquitetura religiosa brasileira, faz um histórico da

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Ordem de São Bento, de seu estabelecimento no Brasil e dos principais monastérios e

igrejas construídas na colônia brasileira.

"Toward a Phenomenology o f Brazil 's Baroque Modernism ", David K. Underwood

Underwood vale-se de "barroco" como moldura conceitual para explicar, de forma

geral, o modernismo brasileiro e, de modo específico, as obras de Niemeyer. Essa moldura,

primeiramente, é proposta a partir do pressuposto de que o modernismo brasileiro teria

nascido de uma busca espiritual por identidade cultural baseada na exploração da estética

da paisagem tropical e da "condição colonial barroca". Tratar-se-ia de um projeto que

buscava o que U nderwood chama de "unidade barroca de corpo e a !ma" não apenas na

pintura e na escultura mas também na arquitetura. Nesse sentido, afirma que os "três

grandes arquitetos modernistas", Lúcio Costa, Roberto Burle Marx e Oscar Niemeyer,

teriam definido um ethos brasileiro através de dois elementos, depois propostos como

indissociáveis: o "barroco tropical" e a "estratégia modernista da antropofagia". Os maiores

exemplos do uso concomitante desses elementos seriam as obras de Niemeyer, que teriam

as qualidades formais e rituais de "barroco" assim como o erotismo primitivista do

modernismo antropofágico.

Depois de explicitar essas teses que serão desenvolvidas, propõe que a relação que

haveria entre "barroco" e Brasil faria com que o termo não denotaria apenas um estilo

artístico passageiro. Citando The Baroque Prevalence in Brazilian Art, de Leopoldo

Castedo, elenca quatro atributos "barrocos" que estariam presentes tanto na arte como no

perfil psicológico do povo brasileiro: universalidade, intimidade com o divino, sensualidade

e audácia. Além desses atributos, destaca qualidades formais "barrocas" que seriam fácil e

especialmente encontradas na expressão brasileira: dissolução das linhas de contorno,

predominãncia excessiva da curva e dinamismo arrebatador. A inda trata de um último e

mais saliente atributo de "barroco": expressão de caráter multimidiático, Gesamtkunstwerk,

que contaminaria todas as formas de expressão e que não poderia ser contido por nenhuma

delas em específico.

Ainda sobre a relação entre "barroco" e Brasil, propõe que só no Brasil, e não no

restante da América hispânica, haveria um "barroco" de fato. Para argumentar essa

exclusividade do Brasil com relação a "barroco", reporta-se á introdução de Emanuel

Araújo ao catálogo Universo Mágico do Barroco Brasileiro, segundo o qual a "alma

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brasileira" teria sido tomada por um "espírito barroco" de "emoção contagiosa" e "êxtase

coletivo". Recorre também a outros textos do catálogo referido para reafirmar a intrínseca

relação entre "barroco" e Brasil e as características multimidiáticas, de "fé contagiante" e

de "emoção coletiva".

Usando o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty para entender o que chama de

corpo e alma brasileiros condicionados pela dimensão ética de "carnalidade" de "barroco",

Underwood propõe uma relação entre "barroco" e "modernismo antropofágico". O último

que, assim, como o primeiro, pregaria a união de corpo e alma através de um retorno para

um "fisicalidade primordial" e para sua inerente espiritualidade. Assim, tanto o "espírito

barroco" quanto a estratégia modernista brasileira, a antropofagia, operariam uma síntese

ritual de oposto, unindo carnalidade e espiritualidade.

A junção desse "espírito barroco" e da estratégia modernista antropofágica,

elementos assim complementares, seria a chave para a obra do arquiteto Oscar Niemeyer.

Dessa forma, Underwood analisa e interpreta algumas obras do arquiteto e, no final de seu

texto, de artistas brasileiros contemporâneos, como Tunga e Cildo Meireles.

"The Baroque, the Modem, and Brazilian Cinema", Robert Stam e Ismail Xavier

O texto propõe uma moldura interpretativa para os filmes durante a exposição do

Guggenheim. De forma geral, o cinema brasileiro é tomado como indicador de

especificidades do Brasil. Seguindo as diretrizes da mostra, essas especificidades são

propostas através de "barroco" e de "modernismo". Os filmes refletiriam esses dois eixos

da "cultura visual brasileira" direta e indiretamente, segundo os autores do artigo. De forma

direta, alguns filmes selecionados tematizam os dois períodos históricos assinalados pelos

termos "barroco" e "modernismo": os documentários Santuário, de Lima Barreto, e Música

Barroca Mineira, de Joaquim Pedro de Andrade, bem como os longas ficcionais Xica da

Silva, de Carlos Diegues, Chico Rei, de Walter Lima Jr., e Os inconfidentes, de Joaquim

Pedro de Andrade, tematizariam diretamente "barroco", enquanto os filmes Limite, de

Mário Peixoto, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, teriam a mesma relação direta

com o "'modernismo".

No entanto, a relação indireta que os filmes teriam com os dois períodos referidos é

o ponto central do artigo. Os filmes refletiriam, de um lado, o "baroqueness ofBrazil" e, de

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outro, o caráter antropofágico do mesmo país, tal como suposto em suas "práticas artísticas.

Uma série de elementos são referidos para caracterizar o caráter "barroco" do Brasil: ''tbe

irregular, the assymethrical, the excessive, the grotesque, the sensual, the melancholy, the

frenetic, the transrealist", assim como uma religiosidade popular, "estruturas labirínticas",

"coabitação de contrários", "especialização da fé", "mistura de sagrado e profano",

"aspiração messiãnica"; todos esses elementos seriam abundantes no cinema brasileiro,

segundo os autores do estudo.

Combinando Walter Benjamin (que definiria "barroco" como alegoria) e Fredric

Jamenson (que proporia que a cultura do terceiro mundo seria necessariamente alegórica),

Stam e Xavier reforçam, ao mesmo tempo, o caráter "barroco" e alegórico do cinema

brasileiro e já antecipam como esse cinema se relaciona com o segundo eixo fundamental

das "práticas culturais brasileiras": a alegoria da periferia seria também operante nos filmes

nacionais. Essa alegoria, essencialmente, para os autores do artigo, seria operada de

maneira antropofágica nos filmes. Colocados esses parâmetros gerais de avaliação do

cinema nacional, os autores do artigo narram uma evolução histórica do cinema brasileiro,

demonstrando como em cada período de produção cinematográfica os padrões "barrocos" e

"antropofágicos" surgiriam.

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