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Marca d’água na literatura e a metáfora em Vidas Secas

Eduardo Augusto Alves Ribeiro

A metáfora é um recurso estilístico marcado pela transposição de sentidos figurados e reais, ou seja, visa a estabelecer imagens e fornecer campo para que o leitor amplie a significação, construa os significados. Trata-se, em síntese, da feitura de um ato de comparação mental. Assim, a metáfora é um recurso utilizado de forma abundante na literatura, a arte de ampliar as significações por meio da linguagem verbal. Como define o professor Wolfgang Kayser, todo o texto literário é um conjunto estruturado de frases fixado por símbolos.

Iniciamos, sob esse aspecto, a fixação do título da obra Vidas Secas, com toda significação que ele oferece dentro do contexto, ao passo que, por exemplo, um título como Vidas na Seca teria essa significação literária reduzida. Almas Mortas, de Gogol, seria outro bom exemplo da riqueza dessas imagens literárias como forma de expansão do significado.

Redundante seria tratar da importância da água para a existência humana, não só como fonte biológica, mas como constituição social do ser. Como formação social nos vem logo à mente o povo egípcio e seu Rio Nilo, cujas práticas se repetem ainda nos dias de hoje, guardadas as devidas (e enormes) proporções, em populações ribeirinhas nacionais. Nos textos literários, essa marca da água não é diferente; remete-nos a cenas que ficaram gravadas em nossa memória cultural, como por exemplo, o instante em que Euricléia lava os pés de Ulisses1, mergulhados em uma bacia de água, quando este, após dez anos, disfarçado de mendigo, retorna ao seu reino para reassumir seu lugar de esposo e de rei. Pela água, desvela-se a pureza, forma-se o reconhecimento. A água, neste momento, é o elemento social, cultural e revelador, já que faz surgir a cicatriz pela qual o herói é imediatamente identificado.

O tema água é um argumento recorrente na literatura, quer pela sua ligação direta com a vida, que é uma abordagem própria dos textos literários, quer pela sua força de metaforização, ainda que recorrente a essa mesma vida.

1 Há ensaios que, dialogando com outros textos, tornam-se verdadeiros textos autônomos, obras primas. É o caso de “A cicatriz de Ulisses”, de Eurich Auerbach, presente no seu livro Mimesis.

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VICTOR HUGO: Fonte: http://blog.luispeaze.com

Na apresentação da obra “Os Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo, edição traduzida por Machado de Assis, encontramos a apresentação da força que empregará a narrativa, e que submeterá fortes homens do mar a expensas do coração humano:

“A religião, a sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três lutas são ao mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o templo; precisa criar, daí a cidade; precisa viver, daí a charrua e o navio. Mas há três guerras nestas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da vida. O homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma superstição, sob a forma preconceito e sob a forma elemento. Tríplice ananke (fatalidade) pesa sobre nós, o ananke dos dogmas, o ananke das leis, o ananke das coisas. Na Notre-Dame de Paris, o autor denunciou o primeiro; nos Miseráveis, mostrou o segundo; neste livro indica o terceiro. A estas três fatalidades que envolvem o homem, junta-se a fatalidade interior, o ananke supremo, o coração humano”.

O mar, a água, constituirá o pano de fundo revelador da natureza, que é embate para o homem, contudo, é ele próprio, na constante busca pela vida. Estamos no século XIX, quando Hugo nos demonstra a terceira luta do ser humano, mas se recuarmos até o século XVI, chegaremos à obra que atesta a maturidade da língua portuguesa e a eleva à condição basilar de uma epopéia da dimensão literária de Os Lusíadas, escrita por Luís de Camões e publicada em 1572.

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fonte: http://pt.wikisource.org

A literatura em língua portuguesa desaguou para o mundo, tornando-se universal, pelas águas do Oceano Atlântico, nos versos d’Os Lusíadas. Como classicista, Camões inspirou-se nos moldes da literatura clássica, como em Homero, que eternizou os caminhos marítimos nos versos da Ilíada e da Odisséia, mares vigiados pelo Deus Poseidon. Os versos da obra camoniana foram a fonte da literatura brasileira, numa tentativa inicial, diga-se de passagem, pouco frutífera, do nosso primeiro texto literário e primeira epopéia, pelas mãos de Bento Teixeira, com sua Prosopopéia, que teve o valor histórico de iniciar o período Barroco no Brasil e uma literatura não apenas produzida em nossas terras, como a jesuítica, mas uma literatura brasileira, embora ainda sob a luz do mundo europeu.

Poseidon : Fonte: http://pt.wikipedia.org

Na primeira estrofe das 1.102 que compõem a epopéia camoniana, surge o caminho de partida pelo qual os portugueses trilharão a expansão de seu império, tornado-se dignos de serem cantados pelo poeta, constituindo este o mote (motivo) do louvor: As armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por mares nunca antes navegados, passaram ainda além da Tapobrana (...). Deste mesmo mar, de onde saíram os portugueses para conquistar o mundo durante os séculos XV e XVI, desta mesma água, em vida e metáfora, saíram eles para chegar às terras brasileiras e deixar aqui a fonte que

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contribuiria marcantemente para os primeiros passos de nossa literatura até sua independência definitiva, já no período romântico.

Claro que nem todos os escritores pintaram o mar português de forma romântica e gloriosa. O próprio Camões, em Os Lusíadas, critica a ânsia portuguesa de conquistar outras terras em detrimento da segurança pátria e do convívio familiar, em duas passagens marcantes: O Velho do Restelo (neste momento, fala por meio de uma personagem) e no epílogo (em que o próprio autor fornece um julgamento negativo em relação aos interesses do reino). Na modernidade, esse julgamento crítico se acentua; encontramos em escritoras, como Teolinda Gersão, a apresentação de uma imagem que desconstrói aquela de glórias e vitórias ligadas ao mar português, já que suas águas também foram responsáveis por vários infortúnios e mortes, dentro e fora delas; sobretudo, simbolizam a opressão de um sistema marcado por uma sociedade machista.

Deixemos, portanto, as águas portuguesas para mergulhamos nas brasileiras, a fim de que possamos delimitar o percurso, levados por suas correntezas, e desembocar em uma das maiores fontes de estudo sobre a metáfora água em nossas letras, nas “desidratadas” linhas de Vidas Secas; desidratadas em se tratando do enxágue de palavras e seus usos na forma mais simples e direta, diga-se de passagem, minuciosamente intencionada, e literariamente abundante, fazendo de Graciliano Ramos um dos expoentes máximos da literatura nacional.

Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2040/artigo118298-1.htm

Poderíamos, aqui, citar várias passagens do elemento água que estão inseridas na literatura nacional. Drummond a destaca no final de seu poema Amar, explicitando a metáfora água como recurso de riqueza para a alma humana, para os sentimentos, a pura necessidade espiritual/orgânica: água implícita (...) sede infinita, além da própria metáfora mar que se desenvolve dentro do poema. Contudo, por questões objetivas, passo a ressaltar a metáfora água na obra de Graciliano Ramos.

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O livro Vidas Secas destaca-se pela sua singularidade, retratando, com uma proeza literária, uma espécie de milagre, no mesmo viés em que Machado de Assis foi definido por Harold Bloom, no seu livro Gênio, a vida de retirantes no sertão brasileiro, impressionando pela meticulosidade com a qual o livro foi composto, de forma que o plano de expressão e o plano de conteúdo estivessem intimamente interligados. É como se a imagem da seca, do ambiente, pudesse ser retratada pela estampa de seus personagens e pela linguagem empregada pelo autor. Neste contexto, a água está presente, pela ausência, em todo o livro, a começar pelo título. Claro que esse “milagre”, a qual me referi, em Machado de Assis e em Graciliano Ramos, expressa a força do poder de criação literária, pois tanto em um quanto em outro aparecem condicionantes, de várias ordens, que se agregam para o resultado final de suas obras. Em Graciliano Ramos, seu conhecimento de mundo, enquanto formação e ambientação, aliado a uma revisão incessante do escrito, promove muitas das características formais e expressivas de seus textos.

Vidas Secas é a apresentação da escassez da água no sertão nordestino, mas também é a metáfora de uma vida dura, sofrida, que busca constantemente pela sobrevivência, numa jornada cíclica e interminável, em busca da própria água, de um lugar em que se possa fixar, assim como fez o povo egípcio em torno do seu Rio Nilo. Contudo, seca também é a alma do personagem principal, Fabiano, seca é sua linguagem, seca também é a linguagem do autor, que sintetiza o texto ao seu limite máximo.

A água, enquanto elemento físico, é o motivo que conduz os caminhos das personagens ao longo do romance. Ela motiva suas trajetórias, quando ela se inicia e quando deve se reiniciar. Enquanto elemento social, promove a segregação entre os homens, fortalece aqueles que podem acessá-la e enfraquece os que se mantêm distantes. Por fim, como representação metafórica, surge nas imagens, na linguagem, nos comportamentos e decisões.

Dentre os personagens, com seus sonhos mais absurdos na realidade em que vivem, um deles é cheio de vida, cheio de sentimentos nobres, cheio de água; e não é a Sinhá Vitória, nem o menino mais novo, nem o mais velho, muito menos Fabiano: é a cachorra Baleia, cujo nome carrega uma intensidade no contexto da narrativa tão marcante quanto o nome Raskólnikov, que deriva de uma palavra que em russo significa cisão, cisma, dado o caráter dividido e atormentado do personagem dostoievskiano de Crime e Castigo. Desta mesma maneira, carregando a mesma intensidade de significação, o nome Baleia, gigante mamífero dos mares, o maior do planeta, representa aquele que não se dissocia da água, que é vida, que promove a

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integração da natureza com o homem. Possuidora dessa água, o animal aproxima-se do ser humano; já este, desidratado, animaliza-se e passa a agir pelos instintos, acuado em seu universo de seca, de aridez.

O grande impacto desse clássico do modernismo regionalista brasileiro é a força existente entre a criação literária e o quadro social que é representado, em toda sua amplitude, com a exposição do campo psicológico de seus personagens. E o recurso metafórico propiciado pelo tema água é de suma importância na formação da simbologia, na constituição do ambiente e na constituição psicológica dos homens que nos são apresentados, fazendo que o tema seja ao mesmo tempo um quadro social brasileiro e uma representação da condição universal do homem. Afinal, como elemento universal, a água é capaz não só de nos debilitar fisicamente, como também provoca, ainda que sob metáforas, a desidratação de almas, em consequência, o fortalecimento da opressão, a incapacidade de comunicação e o esvaziamento da coletividade, sensibilidade e da emoção, sentimentos que, após sete décadas da publicação de Vidas Secas, ainda constituem elementos em processo acelerado de extinção na sociedade contemporânea. Enchamos, portanto, nossos corações (além da bexiga) de muita água.

Eduardo Augusto Alves Ribeiro é professor de Língua e Literatura Portuguesas, Língua Italiana, graduado e licenciado em Letras pela USP. Atualmente faz pós-graduação em Língua Portuguesa e desenvolve um trabalho sobre a simbologia no romance português contemporâneo, a partir da obra da escritora Teolinda Gersão.

1 – AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2002.

2 – BLOOM, Harold. Gênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

3 – CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Editora Cultrix, 1974.

4 – DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. São Paulo: Martin Claret, 2002.

5 – GERSÃO, Teolinda. Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo. Publicações Dom

Quixote: Portugal, 4ª ed.,1996.

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6 – HOMERO. Odisséia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

7 – HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

8 – KAYSER, Wolfgang. Análise e Interpretação da Obra Literária. Coimbra:

Armênio Amado Editora, 1985.

9 – RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio, São Paulo: Record, 2000.