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AMITAV GHOSH MAR DE PAPOILAS Tradução de Marta Mendonça A VIDA APAIXONADA DE UM GENIAL LIBERTINO Tradução de Maria Emília Ferros Moura

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AMITAV GHOSH

MAR DE PAPOILAS

Tradução deMarta Mendonça

A VIDA APAIXONADADE UM GENIAL LIBERTINO

Tradução de Maria Emília Ferros Moura

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FICHA TÉCNICA

Título original: Sea of PoppiesAutor: Amitav GhoshCopyright © 2008 by Amitav Ghosh Todos os direitos reservados.Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2009Tradução: Marta MendonçaFotografia: Corbis/VMICapa: Ana Espadinha/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, Maio, 2009Depósito legal n.o 290 873/09

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 BARCARENAE-mail: [email protected]: http://www.presenca.pt

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Para NayanNo seu décimo quinto aniversário

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A Viagem do Ibis

PérsiaTibete

China

Índia

Índia

África

Mar daArábia

OCEANO

ÍNDICO

Baía de Bengala

Ilhas Andamão

Calcutá

Saugor Roads Sundarbans

Ilha de Ganga-Sagar

Área em destaqueCantão

Penang

Singapura

Port Louis

Benares

Ghazipur

Chhapra Patna

Barauni Pirpainti

Sahibganj

Bhagalpur

Calcutá0 Milhas

200

100 200

0 Quilómetros

0 Milhas

1000

500 1000

0 Quilómetros

Rio H

ooghly

MungerBakhtiyarpur

MAURÍCIAS

Cape Town

Rio das PérolasGanges

Rio Ganges

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AGRADECIMENTOS

Mar de Papoilas deve muito a vários estudiosos, dicionaristas, lin-guistas e historiadores do século XIX, em especial a Sir George Grierson,pelo seu Report on Colonial Emigration from the Bengal Presidency, de 1883,pela sua gramática da língua bhojpuri e pelos seus artigos sobre as can-ções tradicionais bhojpuri, publicados em 1884 e 1886; a J. W. S.MacArthur, antigo chefe da Fábrica do Ópio de Ghazipur, pelo seu Noteson an Opium Factory (Thacker, Spink, Calcutá, 1865); ao tenente ThomasRoebuck, pelo seu léxico náutico, publicado em Calcutá, An English andHindostanee Naval Dictionary of Technical Terms and Sea Phrases As AlsoThe Various Words of Command Given In Working A Ship, With ManySentences Of Great Use At Sea; To Which Is Prefixed A Short Grammar OfThe Hindostanee Language (reeditado em Londres, em 1813, por Black,Parry & Co., editores da Hon. East India Company; revisto posterior-mente por George Small e reeditado por W. H. Allen & Co., sob otítulo: A Laskari Dictionary Or Anglo-Indian Vocabulary Of Nautical TermsAnd Phrases In English And Hindustani, Londres, 1882); a Sir Henry Yule& A. C. Burnell, autores de Hobson-Jobson: A Glossary of Colloquial Anglo--Indian Words And Phrases, And Of Kindred Terms, Etymological, Historical,Geographical And Discursive; e ao juiz do Supremo Tribunal de Calcutá,pelo seu veredicto no caso de falsificação de 1829, de PrawnkissenHoldar (editado por Anil Chandra Das Gupta, em The Days of JohnCompany: Selections from Calcutta Gazette 1824-1832, West BengalGovernment Press, Calcutá, 1959, páginas 366-68).

Este livro foi profundamente enriquecido pelo trabalho de muitosestudiosos e historiadores contemporâneos e quase contemporâneos.A lista completa de livros, de artigos e de ensaios que contribuíram parao meu entendimento daquele período é demasiado longa para a repro-duzir aqui, mas seria negligente da minha parte não manifestar o meureconhecimento e a minha gratidão pelo trabalho das seguintes pessoas:Clare Anderson, Robert Antony, David Arnold, Jack Beeching, Kingsley

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Bolton, Sarita Boodhoo, Anne Bulley, B. R. Burg, Marina Carter, Hsin--Pao Chang, Weng Eang Cheong, Tan Chung, Maurice Collis, SaloniDeerpalsingh, Guo Deyan, Jacques M. Downs, Amar Farooqui, PeterWard Fay, Michael Fisher, Basil Greenhill, Richard H. Grove, AmalenduGuha, Edward O. Henry, Engseng Ho, Hunt Janin, Isaac Land, C. P.Liang, Brian Lubbock, Dian H. Murray, Helen Myers, Marcus Rediker,John F. Richards, Dingxu Shi, Asiya Siddiqi, Radhika Singha, MichaelSokolow, Vijaya Teelock, Madhavi Thampi e Rozina Visram.

Pelo seu apoio e assistência durante diversas fases da escrita destelivro, os meus agradecimentos a Kanti & Champa Banymandhab, aGirindre Beeharry, ao falecido Sir Satcam Boolell e à sua família,a Sanjay Buckory, a Pushpa Burrenchobay, a May Bo Ching, a CareemCurreemjee, a Saloni Deerpalsingh, a Parmeshwar K. Dhawan, a GregGibson, a Marc Foo Kune, a Surendra Ramgoolam, a VishwamitraRamphul, a Achintyarup Ray, a Debashree Roy, a Anthony J. Sim-monds, a Vijaya Teelock, a Boodhun Teelock e a Zhou Xiang. Estoueternamente grato às seguintes instituições: ao Museu Nacional daMarinha, em Greenwich, na Inglaterra; ao Instituto Mahatma Gandhi,nas ilhas Maurícias; e aos Arquivos Nacionais das Ilhas Maurícias.

Os versos citados no capítulo 2 (Ág mor lágal ba...) foram retirados deuma canção recolhida por Edward O. Henry (Chant The Names of God:Music and Culture in Bhojpuri-Speaking India, San Diego State UniversityPress, San Diego, 1988, página 288). Os versos citados no capítulo 5 (Sãjhbhailé...) pertencem a Bhojpuri Traditions in Mauritius, de Sarita Boodhoo,Mauritius Bhojpuri Institute, Port Louis, 1999, página 63. Os versos cita-dos no capítulo 17 (Májha dhára mé hai bera merá...) pertencem a umacanção recolhida por Helen Myers, Music of Hindu Trinidad: Songs from theIndian Diaspora, University of Chicago Press, Chicago, 1998, página 307.Os versos citados no capítulo 18 (Talwa jharáilé...), bem como os citadosno capítulo 21 (... uthlé há chháti ke jobanwá...), pertencem a cançõesrecolhidas por Sir George Grierson, para o seu artigo «Some BhojpuriFolksongs», Journal of the Royal Asiatic Society, 18, página 207, 1886. A suatradução é da minha responsabilidade.

Sem o apoio de Barney Karpfinger e de Roland Philipps, o Ibis ja-mais teria atravessado a baía de Bengala. Durante alguns momentoscríticos da sua viagem, quando se achava parado em kalmariyas, JamesSimpson e Chris Clark foram o vento que soprou nas suas velas. Os meusfilhos, Lila e Nayan, viram-no atravessar várias tempestades, e a minhamulher, Deborah Baker, foi a melhor malum do mundo. Tanto eu comoeste navio frágil estamos-lhes eternamente agradecidos.

Amitav GhoshCalcutá

2008

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A visão de um navio, de mastro alto, a navegar no oceano, assaltoua mente de Deeti, num dia de resto perfeitamente normal, mas elasoube de imediato que aquela aparição era um sinal do destino, poisjamais vira uma embarcação assim, nem mesmo em sonhos. Afinal decontas, vivia no Norte do estado de Bihar, a seiscentos e cinquenta qui-lómetros da costa, e a sua aldeia situava-se de tal forma no interior, queo mar lhe parecia tão distante como o mundo dos mortos. Era o abismoda escuridão, onde o sagrado Ganges desaparecia na Kala Pani, ou«Água Negra».

Aconteceu no final do Inverno, num ano em que, estranhamente,as papoilas demoraram a largar as suas pétalas. Quilómetro após quiló-metro, de Benares em diante, o Ganges parecia correr no meio de doisglaciares idênticos, com ambas as margens cobertas por uma camadaespessa de flores com pétalas brancas. Parecia que a neve dos Himalaiashavia descido sobre as planícies, à espera da chegada do festival Holi,com a sua abundância de cores primaveris.

A aldeia onde Deeti vivia ficava nas imediações da cidade de Ghazi-pur, cerca de oitenta quilómetros a leste de Benares. Como todos os seusvizinhos, Deeti estava preocupada com o atraso da sua plantação depapoilas. Naquele dia, levantou-se cedo e executou as suas tarefasrotineiras, indo buscar um dhoti lavado para o seu marido, HukamSingh, e preparando o roti e o achar que este comeria por volta do meio--dia. Assim que a refeição do marido ficou pronta e embrulhada, eladirigiu-se para a sua sala de oração privada; mais tarde, depois de tomarbanho e mudar de roupa, Deeti faria uma puja como deve ser, com florese oferendas. Vestida com o seu sari de noite, limitou-se a ficar à entrada,com as mãos unidas e os joelhos dobrados ligeiramente.

Pouco depois, o chiar de umas rodas anunciou a chegada da carroçade bois que levaria Hukam até à fábrica onde este trabalhava, em Gha-

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zipur, a cinco quilómetros dali. Embora não fosse longe, a distância erademasiado comprida para Hukam Singh ir a pé, porque tinha sofri-do um ferimento na perna, quando servira como sipaio no regimentobritânico. A sua deficiência não era grave ao ponto de necessitar demuletas, pelo que Hukam Singh se dirigiu para a carroça sem grandedificuldade. Deeti foi logo atrás, com a água e a comida do marido, eentregou-lhe o embrulho de pano depois de ele ter subido.

Kalua, o homem gigante que conduzia a carroça de bois, não semexeu para ajudar o seu passageiro a subir e teve o cuidado de virar acara. Pertencia à classe dos trabalhadores do couro, e Hukam Singh,um Rajput de classe alta, acreditava que olhar para o rosto dele seria ummau presságio para o resto do dia. Ao subir para a traseira da carroça,o antigo sipaio sentou-se virado de costas, com o seu embrulho equi-librado no colo, para impedir que entrasse em contacto com os pertencesdo condutor. E foi assim que eles seguiram, condutor e passageiro, en-quanto a carroça chiava ao longo da estrada para Ghazipur, a conversa-rem amigavelmente, mas sem nunca trocarem olhares.

Também Deeti tivera o cuidado de esconder o seu rosto na presençado condutor. Só quando voltou para dentro de casa, a fim de acordarKabutri, a sua filha de seis anos, é que deixou a ghungta do seu sariescorregar-lhe da cabeça. Kabutri estava enroscada na sua esteira e, pelassuas expressões faciais, Deeti percebeu que a filha se encontrava asonhar. Quando estava prestes a acordá-la, parou a mão no ar e deu umpasso atrás. No rosto adormecido da filha, via os traços do seu própriorosto: os mesmos lábios carnudos, o nariz arredondado e o queixoarrebitado. Na criança, aqueles traços eram claramente visíveis, mas emsi já eram algo indistintos. Após sete anos de casamento, ela própriaera pouco mais do que uma criança, embora já tivessem surgido algunsfios brancos no seu cabelo negro e forte. A pele do seu rosto, seca eescurecida do sol, começava a escamar e a gretar à volta da sua bocae dos seus olhos. Ainda assim, e apesar do carácter vulgar e fatigado dasua aparência, havia algo nela que saltava imediatamente à vista: os seusolhos cinzento-claros, algo bastante invulgar para aquela região dopaís. A cor dos seus olhos — ou a ausência de cor — era tal, que a faziaparecer cega e clarividente, simultaneamente. Este facto perturbava osmais jovens e reiterava os seus preconceitos e as suas superstições, aoponto de, às vezes, lhe gritarem insultos — chudaliya, daiwana —,como se ela fosse alguma bruxa. Porém, bastava Deeti virar os olhosna direcção deles, para os fazer fugir em debandada. Apesar de tiraralgum prazer do seu poder desconcertante, Deeti estava contente poraquela ser uma característica que não transmitira à sua filha. Adoravaos olhos escuros de Kabutri, tão negros como o seu cabelo brilhante.

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Contemplando o rosto sonhador da filha, Deeti sorriu e tomou a decisãode não a acordar; dali a três ou quatro anos, a menina casaria e sairia decasa. Quando fosse acolhida na residência do seu futuro marido, teriatempo mais do que suficiente para trabalhar. O melhor seria passar osanos que lhe restavam a descansar.

Depois de ter dado uma dentada num roti, Deeti saiu para o exte-rior, para o pátio de terra batida que dividia a habitação, feita de lama,dos campos de papoilas. À luz do sol-nascente, ela viu, para grandealívio seu, que algumas flores haviam começado a largar as suaspétalas. No campo imediatamente ao lado, o irmão mais novo do seumarido, Chandan Singh, já se encontrava na rua, com a sua nukha deoito lâminas em riste. Ele usava os pequenos dentes da ferramenta parafazer uns furos nas cápsulas expostas; se a resina escorresse livrementedurante a noite, no dia seguinte traria a família para sangrar as flores.O timing tinha de ser perfeito, porque a preciosa resina só fluía duranteum breve período da vida da planta. Um dia a mais ou a menos, e assuas cápsulas passavam a ter tanto valor como as ervas daninhas.

Chandan Singh, que também a avistara, não era o tipo de pessoapara deixar alguém passar por ele sem lhe dizer nada. Um jovem dequeixo descaído, com uma prole de cinco filhos, jamais perdia umaoportunidade para recordar a Deeti a sua escassez de rebentos.

— Ka bhaíl? — gritou-lhe ele, lambendo uma gota de resina frescada ponta da sua nukha. — Então, outra vez a trabalhar sozinha? Nãopodes continuar assim. Precisas de um filho para te ajudar. Não é comose fosses infértil...

Acostumada aos modos do cunhado, Deeti não teve qualquerdificuldade em ignorá-lo. Voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o seupróprio campo, com um cesto de verga largo à cintura. Entre as filei-ras de flores, o chão achava-se coberto de pétalas tão finas como opapel, e ela apanhou-as às mãos cheias, colocando-as no interior do seucesto. Uma ou duas semanas antes, teria tido o cuidado de caminharde lado, de forma a não roçar nas flores, mas hoje avançava nervosa eagitadamente, sem se incomodar com o facto de o seu sari arrancarmolhos de pétalas das cápsulas em maturação. Quando o seu cestoficou cheio, levou-o de volta e esvaziou-o junto ao choola exterior ondeconfeccionava a maior parte das refeições. Aquela parte da entrada dacasa ficava à sombra de duas mangueiras enormes, que haviam come-çado a desenvolver os rebentos que mais tarde se transformariam nosprimeiros botões da Primavera. Aliviada por estar à sombra, Deeti aga-chou-se junto ao fogão e colocou uma pilha de lenha por cima das bra-sas da noite anterior, que continuavam incandescentes, no meio dascinzas.

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Kabutri estava acordada e, quando o seu pequeno rosto espreitou naombreira da porta, a mãe já perdera a sua disposição tolerante.

— Tão tarde? — ralhou-lhe ela. — Onde estiveste? Kám-o-káj nahoi? Julgas que não há trabalho para fazer?

Deeti mandou a filha fazer um monte com as pétalas de papoila,enquanto ela alimentava a fornalha e aquecia uma tawa de ferro pesada.Assim que a frigideira ficou bem quente, deitou uma mão-cheia depétalas para o seu interior, prensando-as com a ajuda de um panoenrolado. À medida que iam aquecendo, as pétalas escureciam e uniam--se umas às outras. Um ou dois minutos mais tarde, estavam idênticasao roti de farinha de trigo que Deeti preparara para o almoço do marido.«Roti» era também o nome pelo qual aqueles invólucros eram conhe-cidos, embora servissem um propósito totalmente diferente dos seushomónimos: seriam vendidos à fábrica de ópio Sudder, em Ghazipur,onde seriam utilizados para revestir os recipientes de cerâmica quetransportavam o ópio.

Kabutri, entretanto, amassara um pouco de atta e fizera alguns rotisverdadeiros. Deeti cozinhou-os rapidamente, antes de apagar o lume.Os rotis foram postos de lado, para serem comidos mais tarde, com osrestos do dia anterior: batatas cozidas, envoltas numa pasta de sementesde papoila. A sua mente concentrou-se novamente na sua sala de ora-ção privada; com a hora da puja do meio-dia a aproximar-se, estava naaltura de ir tomar banho ao rio, lá em baixo. Depois de massajar óleode semente de papoila no cabelo de Kabutri e no seu próprio cabelo,Deeti pendurou o seu outro sari no ombro e conduziu a filha até àságuas do rio, do outro lado do campo.

O campo de papoilas terminava num banco de areia que descia atéao Ganges. Demasiado aquecida pelo sol, a areia queimava as solas dospés descalços de ambas. O peso da compostura maternal escapuliu-sedos ombros vergados de Deeti e esta desatou a correr atrás da filha, quesaltitava à sua frente. A uns escassos passos da margem, gritaram umainvocação ao rio — Jai Ganga Mayya ki... — e sustiveram a respiração,antes de se lançarem à água.

Quando vieram à tona, começaram a rir às gargalhadas. Naquela al-tura do ano, e após o choque inicial, a água era incrivelmente refrescante.

Embora ainda faltassem algumas semanas para o calor intenso doVerão, a corrente do Ganges já começara a diminuir. Virada para Bena-res, na direcção oeste, Deeti levantou a filha para esta despejar umamão-cheia de água, numa homenagem à cidade sagrada. Juntamentecom a oferenda, uma folha fluiu das mãos colocadas em forma de con-cha da criança. Ambas se viraram e ficaram a observá-la a correr rioabaixo, rumo à foz de Ghazipur.

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As paredes da fábrica de ópio de Ghazipur achavam-se parcialmenteescondidas pelas mangueiras e pelas jaqueiras, mas a bandeira britânicaera perfeitamente visível acima da folhagem, assim como o campanárioda igreja onde os capatazes da fábrica rezavam. No local de junção dafábrica com o Ganges, uma barca pateli, com um único mastro, exibiao estandarte da Companhia das Índias Orientais. Trouxera um carrega-mento de ópio, proveniente de uma das remotas subagências da firma,e que estava a ser descarregado por uma longa fila de coolies.

— Mãe — perguntou Kabutri, erguendo os olhos para a sua mãe —,para onde vai aquela barca?

Fora aquela pergunta que dera origem à visão de Deeti. A sua menteevocou de imediato a imagem de um navio enorme, com dois mastrosaltos. Suspensas nos mastros viam-se umas velas colossais, de um brancodeslumbrante. A proa do navio terminava numa figura com um longobico, como uma cegonha ou uma garça. Um homem encontrava-sejunto à proa e, embora ela não o visse nitidamente, ele transmitia-lhea sensação de uma presença diferente e desconhecida.

Deeti sabia que aquela visão não estava materializada à sua frente,como, por exemplo, a barca atracada junto à fábrica. Ela nunca vira omar, jamais saíra daquele lugar e nunca falara outra língua que nãoo bhojpuri; contudo, não tinha a menor dúvida de que aquele navioexistia algures e que se dirigia na sua direcção. A mera ideia aterrori-zava-a; nunca pusera a vista em algo que se assemelhasse àquela apari-ção, além de que não fazia a menor ideia do que significava.

Kabutri sabia que algo de estranho se passava e esperou um ou doisminutos antes de perguntar:

— Mãe? Para onde estás a olhar? O que foi que viste?O rosto de Deeti era uma autêntica máscara de medo, e ela respon-

deu, numa voz trémula:— Vi um jahaz... Um navio.— Aquela barca ali?— Não, um navio como eu nunca vi. Parecia um pássaro gigante,

com velas que mais pareciam asas e um bico muito comprido.Olhando de relance para o rio, Kabutri disse-lhe:— Consegues desenhar o que viste?Deeti acenou com a cabeça e ambas saíram da água. Trocaram rapi-

damente de roupa e encheram um cântaro com água do Ganges, para apuja. Quando regressaram a casa, Deeti acendeu uma lamparina e con-duziu Kabutri até à sala de oração. A divisão era um tanto escura, comas paredes escurecidas da fuligem, e cheirava imenso a óleo e a incenso.Havia um pequeno altar, com umas estatuetas de Shivji e de BhagwanGanesh, assim como umas imagens emolduradas de Ma Durga e de Shri

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Krishna. Porém, a sala era um santuário não só dedicado aos deuses mastambém ao panteão pessoal de Deeti, pelo que continha várias lembrançasda sua família e dos seus antepassados: relíquias como os tamancos demadeira do seu pai; um colar de contas rudraksha que a sua mãe lhe dei-xara; e umas impressões desbotadas dos pés dos seus avós, tiradas nas suaspiras fúnebres. As paredes em redor do altar achavam-se repletas de dese-nhos feitos pela própria Deeti, esboços desenhados em rodelas de péta-las de papoila: os retratos, a carvão, de dois irmãos e de uma irmã, todosfalecidos em criança. Também havia imagens de familiares vivos, mas nãopassavam de esboços feitos em folhas de mangueira. Deeti acreditava quedava azar desenhar retratos realistas de pessoas que ainda não haviamdeixado este mundo. Como tal, o seu querido irmão mais velho, KesriSingh, estava retratado por meia dúzia de traços, representativos da suacarabina de sipaio e do seu bigode com as pontas reviradas.

Ao entrar na sua sala de oração privada, Deeti pegou numa folha demangueira verde, mergulhou a ponta do dedo num recipiente com sin-door e desenhou, com meia dúzia de traços, dois triângulos semelhantesa umas asas, suspensos numa armação curva e comprida que termi-nava num bico curvado. Podia tratar-se de um pássaro em pleno voo,mas Kabutri reconheceu a imagem de imediato: uma embarcação comdois mastros e as velas desfraldadas. A rapariga estava admirada por amãe ter desenhado aquilo como se se tratasse de um ser vivo.

— Vais pô-lo na sala de puja? — perguntou-lhe ela.— Sim — respondeu Deeti.A criança não compreendia por que razão o navio tinha um lugar

no panteão da família.— Mas porquê? — inquiriu.— Não sei — retorquiu Deeti, também ela surpreendida com a

certeza das suas palavras. — Só sei que pertence lá, não apenas o navio,mas todos os que se encontram no seu interior. Também eles têm umlugar nas paredes na nossa sala de puja.

— Mas quem são eles? — insistiu a criança, admirada.— Ainda não sei — respondeu-lhe a mãe. — Mas, quando os vir,

saberei.

* * *

A escultura da cabeça de um pássaro montada no gurupés do Ibisera invulgar o suficiente para servir de prova, a quem dela necessitasse,de que se tratava do navio que Deeti vira na sua mente, quando seachava meio submersa nas águas do Ganges. Mais tarde, até os mari-nheiros mais experientes acabariam por admitir que o desenho dela era

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uma interpretação incrivelmente evocativa da embarcação, em especialporque fora elaborado por uma pessoa que jamais pusera os olhos numaescuna, nem noutro navio qualquer.

A seu tempo, e entre as multidões de gente que passariam a consi-derar o Ibis o seu antepassado, ficaria assente que tinha sido o próprio rioa facultar aquela visão a Deeti, e que a imagem do Ibis havia sido trans-portada rio acima, qual corrente eléctrica, logo que a embarcação tinhaentrado em contacto com as águas sagradas. Isso aconteceu, mais precisa-mente, na segunda semana de Março de 1838, pois foi nessa altura queo Ibis ancorou ao largo da ilha Ganga-Sagar, onde o rio sagrado ia desem-bocar na baía de Bengala. Naquele lugar, enquanto o Ibis esperava porum piloto para o levar até Calcutá, Zachary Reid teve o seu primeirocontacto com a Índia: uma mata cerrada de manguezais e um bancode lama que parecia desabitado até começar a expelir os seus barcos demercadorias, uma pequena frota de canoas e barcos a remos, destinadosà venda de fruta, de peixe e de vegetais, aos marinheiros recém-chegados.

Zachary Reid era um homem robusto e de estatura mediana, com a pelecor do marfim e os cabelos negros muito brilhantes e encaracolados, quelhe caíam sobre os olhos. As suas pupilas eram tão negras como a suamelena, embora fossem salpicadas de cor de avelã. Em criança, os estra-nhos diziam-lhe que os seus olhos podiam ser vendidos, como se fossemdiamantes, a uma duquesa qualquer (mais tarde, quando chegou a vez deele ser incluído no altar de Deeti, muito se diria sobre a intensidade do seuolhar). Porque ele ria com facilidade e revelava uma atitude descontraída,as pessoas davam-lhe menos idade, mas Zachary apressava-se logo a cor-rigi-las. Filho de uma antiga escrava de Maryland, orgulhava-se de saber asua idade correcta, assim como a sua data de nascimento. Como tal, respon-dia-lhes que tinha vinte anos, nem mais e nem menos.

Todos os dias, Zachary tinha o hábito de pensar em, pelo menos, cincocoisas dignas de louvor, um costume que lhe fora incutido pela mãe,como uma forma de corrigir uma língua que, por vezes, era demasiadoafiada. Desde que ele deixara a América, o próprio Ibis figurava no seuregisto diário de coisas louváveis. Não que o navio fosse particularmenteelegante ou veloz; pelo contrário, o Ibis era uma escuna com um aspectoantiquado, nada esguia nem esplendorosa, ao contrário dos veleiros pelosquais a cidade de Baltimore era conhecida. Possuía um tombadilhoestreito, um castelo de proa elevado, com um pequeno convés junto àproa, e uma cabina de través, que servia de cozinha e de cabina para osmestres de bordo e os camareiros. Com o seu convés principal desorde-nado e a sua boca larga, o Ibis era frequentemente confundido com umabarca aparelhada como uma escuna pelos marinheiros mais antigos. Sehavia alguma verdade nisso ou não, Zachary desconhecia; contudo, nunca

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o vira senão como a escuna que ele era, quando se inscrevera para fazerparte da sua tripulação. Aos olhos de Zachary, a mastreação do Ibis erainvulgarmente graciosa, com as suas velas alinhadas a todo o compri-mento do navio, em vez de transversais à linha do casco. Ele compreendiapor que motivo aquela embarcação, com as suas velas dianteiras firmesao vento, fazia lembrar um pássaro de asas brancas, em pleno voo. Com-parativamente, os outros navios de mastros altos, com o seu amontoadode lonas quadradas, eram bastante deselegantes.

Zachary sabia que o Ibis havia sido construído como um navionegreiro, ou seja, para transportar escravos. Aliás, essa era a razão porque a embarcação tinha mudado de dono: desde a abolição formal docomércio de escravos, as embarcações navais britânicas e americanashaviam começado a patrulhar a costa ocidental de África, e o Ibis nãoera suficientemente veloz para as iludir. Tal como acontecera com mui-tos outros navios negreiros, o novo proprietário da escuna adquirira-acom o intuito de a utilizar para outro tipo de comércio: a exportaçãode ópio. Tratava-se de uma firma denominada Burnham Bros, umacompanhia de navegação e sociedade comercial, com vastos interesseseconómicos na Índia e na China.

Os representantes da empresa não perderam tempo e solicitaram quea escuna fosse enviada para Calcutá, onde o dono da firma, BenjaminBrightwell Burnham, residia. O Ibis seria readaptado assim que chegasseao seu destino, e essa era a razão por que Zachary fora aceite a bordo.Tinha trabalhado durante oito anos no estaleiro Gardiner, em Fell’s Point,Baltimore, pelo que era mais do que qualificado para supervisionar asalterações ao antigo navio negreiro; porém, em termos de navegação,percebia tanto de navios como qualquer carpinteiro habituado a traba-lhar em terra, sendo aquela a sua primeira viagem sobre o mar. Zacharyinscrevera-se com o intuito de aprender o ofício de marinheiro; por issosubira a bordo cheio de entusiasmo, transportando uma saca de lona quecontinha pouco mais do que uma muda de roupa e uma flauta irlandesaque o pai lhe oferecera, em criança. No entanto, o Ibis proporcionara-lheuma aprendizagem rápida e severa, uma vez que, do princípio ao fim,a sua viagem fora brindada com uma lista interminável de problemas.O Sr. Burnham tinha tanta pressa para levar a sua nova escuna para aÍndia, que esta viera de Baltimore com pouca tripulação, navegando comum total de dezanove pessoas, das quais nove, incluindo Zachary, seachavam registadas como «negras». Para além da falta de mão-de-obra,também as suas provisões eram escassas, em termos de qualidade e dequantidade, e isso dera origem a alguns confrontos entre camareiros emarinheiros, e entre imediatos e proeiros. Posteriormente, a embarcaçãodeparou-se com um mar agitado e o seu costado começou a deixar entrar

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água. Entretanto, Zachary descobriu que a entrecoberta, o local onde acarga humana da escuna fora sempre acomodada, se encontrava crivadade vigias e de condutas de ar, criadas por várias gerações de prisioneirosafricanos. O Ibis transportava um carregamento de algodão, para financiaros custos da viagem, e, após a inundação, os fardos ficaram tão ensopadosque tiveram de ser lançados ao mar.

Ao largo da Patagónia, o mau tempo forçou a embarcação a umamudança de rota, quando a ideia original era atravessar o Pacífico e con-tornar a ilha de Java. Em vez disso, o Ibis zarpou em direcção ao caboda Boa Esperança, deparando-se novamente com mau tempo e ficandoretido na zona das calmarias equatoriais, durante quinze dias. Com atripulação alimentada a meias rações, a comer pão cheio de bichos ecarne podre, seguiu-se um surto de disenteria. Quando o vento tornoua levantar, três homens já tinham morrido e dois dos tripulantes negrosachavam-se acorrentados, por se terem recusado a comer o que lheshavia sido servido. Com a falta de mão-de-obra, Zachary pôs as suas fer-ramentas de carpinteiro de parte e tornou-se um gajeiro experiente,trepando os enfrechates para envergar a vela de mezena.

Aconteceu que o segundo-imediato, um homem impiedoso e odiadopor todos os negros da tripulação, caiu borda fora e afogou-se. Era doconhecimento de todos que a sua queda não tinha sido acidental, poréma tensão na embarcação chegara a um ponto tal que o capitão do navio,um irlandês de Boston com uma língua bastante afiada, deixou a situa-ção passar em branco. Zachary foi o único membro da tripulação a fazeruma oferta quando os objectos pessoais do falecido foram leiloados,ficando assim na posse de um sextante e de um baú cheio de roupa.

Pouco tempo depois, como não fazia parte da tripulação do tomba-dilho ou do castelo de proa, Zachary passou a ser o elo de ligação entreaquelas duas zonas do navio, exercendo as funções de segundo-imediato.Embora já não fosse o novato do início da viagem, ainda não se sentiaà altura das suas novas responsabilidades. Os seus esforços não bastarampara aumentar a moral a bordo e, quando a escuna atracou na Cidadedo Cabo, a tripulação desapareceu do dia para a noite, espalhando oboato de que aquela embarcação era um inferno flutuante, com um salá-rio miserável. A reputação do Ibis ficou tão prejudicada que se tornouimpossível recrutar um único americano ou europeu, e nem mesmo ospiores zaragateiros e beberrões se prestavam a tal. Os únicos marinhei-ros dispostos a subir a bordo eram os lascarins1.

1 Lascarim — marinheiro indígena que trabalhava em embarcações europeias.(NT)

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Era o primeiro contacto de Zachary com aquele tipo de marinheiro.Sempre pensara que os lascarins pertenciam a uma tribo, ou a umanação, tal como os Cherokees e os Sioux. Descobriu que eles provinhamde lugares completamente distintos e que a única coisa que tinham emcomum era o oceano Índico. Entre eles achavam-se os chineses e osafricanos, os árabes e os malaios, os bengaleses e os goeses, os tâmilese os povos de Arakan. Chegavam em grupos de dez ou quinze pessoas,com um representante para cada um. Era impossível separar aquelesgrupos, tinham de ser contratados por inteiro, e, embora constituíssemuma mão-de-obra barata, tinham as suas próprias ideias sobre a quan-tidade de trabalho a fazer e a percentagem de homens que partilha-ria cada tarefa, o que implicava contratar três ou quatro lascarins paratarefas que podiam ser realizadas por um único marinheiro experiente.O capitão comentou que aqueles eram os pretos mais preguiçosos queele jamais vira, mas, aos olhos de Zachary, eles eram mais ridículos doque propriamente preguiçosos. Para começar, havia a questão das suasindumentárias: andavam sempre descalços e muitos deles pareciam nãoter outra roupa senão um bocado de cambraia enrolado à cintura. Unsvestiam uma espécie de fraldas e outros envergavam uns saronguessemelhantes a saiotes, enrodilhados à volta das suas pernas esqueléti-cas, pelo que, por vezes, o convés parecia a recepção de um bordel.Como é que um homem podia trepar a um mastro descalço e embru-lhado num bocado de pano, como se fosse um recém-nascido? Emborafossem tão espertos como qualquer outro marinheiro que Zacharyconhecera, ainda assim, ele ficava desconcertado ao vê-los a trabalharno cordame, pendurados como macacos nos enfrechates. Sempre que ossarongues deles esvoaçavam ao vento, Zachary desviava o olhar, commedo do que pudesse ver.

Com alguma relutância, o capitão decidiu contratar uma unidadede lascarins chefiada por um tal de Serang Ali. Tratava-se de um indi-víduo com uma aparência absolutamente incrível, cujo rosto era dignoda inveja de Genghis Khan: magro, estreito e comprido, com os olhospretos muito atentos, encaixados nas maçãs do rosto salientes. O bi-gode, duas mechas leves como plumas, pendia-lhe até ao queixo, emol-durando-lhe a boca irrequieta, cujos cantos estavam manchados devermelho-vivo. Era como se ele desse estalidos com os lábios, após beberdirectamente das veias de uma égua, qual tártaro sedento de sangue.A descoberta de que a substância que tingia a boca do serang era de ori-gem vegetal, em nada tranquilizou Zachary. Certo dia, quando viu oSerang Ali a cuspir um líquido vermelho para o mar, reparou na quan-tidade de barbatanas de tubarão que se acercaram do navio. Quão ino-fensivo seria aquela planta, se até um tubarão a confundia com sangue?

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A ideia de viajar até à Índia, na companhia daquela tripulação,era tão desagradável que o primeiro-imediato decidiu desaparecer tam-bém, abandonando o navio com tanta pressa que deixou um saco cheiode roupa para trás. Quando foi informado de que o imediato deixara aembarcação, o capitão resmungou: «Foi-se embora? Não me admira.Eu também me punha a mexer, se já me tivessem pago.»

O porto de escala seguinte eram as ilhas Maurícias, onde o Ibis deve-ria trocar a sua carga de sementes por um carregamento de ébano e demadeira. Como não apareceu outro oficial antes da partida da escuna,Zachary fez as vezes do primeiro-imediato; e foi assim que, no decorrerda única viagem, por virtude das deserções e das mortes, ele passou deum simples marinheiro novato à posição de primeiro-marinheiro, edepois de carpinteiro a segundo-imediato, com uma cabina própria.O que mais lhe custou na transição do castelo de proa para a cabina foio desaparecimento da sua flauta irlandesa algures aquando da mudança,que ele acabou por dar como perdida.

Anteriormente, o capitão ordenara a Zachary para comer as suasrefeições na entrecoberta — «Não quero misturas à mesa, mesmo quesejas só um mestiço clarinho» —, mas agora, em vez de comer sozinho,ele insistia para que Zachary se sentasse à sua mesa, onde ambos eramservidos por uma série de grumetes lascarins, um grupo desordenadode laundas e de chuckaroos.

Assim que o navio zarpou, Zachary foi forçado a mais uma apren-dizagem, não em termos náuticos, mas em relação aos hábitos da novatripulação. Em vez dos habituais jogos de cartas dos marinheiros, ouvia--se o ruído seco dos dados, nos jogos de pachcheesi jogados em tabulei-ros de xadrez, feitos de corda. O som alegre das canções de bordo deulugar a novas melodias, estranhas e dissonantes, e o próprio cheiro dobarco começou a mudar, com o odor a especiarias a começar a impreg-nar-se nas madeiras. Responsável pelas provisões do navio, Zachary tevede se familiarizar com os novos mantimentos, totalmente distintos dopão e da carne salgada habituais. Aprendeu a dizer resum, em vez de«rações» e viu-se aflito para proferir palavras como dal, masala e achar.Habituou-se à expressão malum para «imediato», serang para «mestre»,tindal para «contramestre» e seacunny para «timoneiro». Viu-se obri-gado a memorizar um novo vocabulário de navegação, que soava leve-mente como a língua inglesa, mas, ao mesmo tempo, não: o cordamepassou a ser ringeen, a expressão «alto» era bas, e o grito da ronda domeio-dia passou de «tudo em ordem» para alzbel. O convés era tootuk,e os mastros eram dols; uma ordem passou a ser uma hookum e, em vezde estibordo e bombordo, de proa e popa, Zachary tinha de dizer jamnae dawa, agil e peechil.

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Uma coisa que se mantinha inalterável era a divisão da tripulação emduas rondas, cada uma chefiada por um tindal. A maior parte dos assun-tos do navio era da responsabilidade dos dois tindals, pelo que pouco seviu do Serang Ali nos primeiros dois dias. Todavia, no terceiro dia,Zachary subiu ao convés, de madrugada, e foi recebido com jovialidade.

— Olá, Malum Zikri! Já comer?Embora tivesse ficado surpreendido, Zachary deu consigo a falar

com o serang com uma descontracção invulgar; parecia que o dialectodaquele homem tinha soltado a sua própria língua.

— De onde és, Serang Ali? — perguntou-lhe.— Serang Ali ser Rohingya, do lado de Arakan.— E onde aprendeste a falar dessa maneira?— Barcos ópio — foi a resposta. — Do lado China, senhor

americano falar assim. Asp’rante marinha como Malum Zikri.— Não sou nenhum aspirante — corrigiu-o Zachary. — Alistei-

-me como carpinteiro deste navio.— Ce’to — respondeu o serang, num tom algo paternalista. — Ce’to,

tudo mesma coisa. Malum Zikri ser senhor em breve. Não ter mulher?— Não — replicou Zachary, dando uma gargalhada. — E tu?

Serang Ali ter mulher?— Mulher Serang Ali morrer — respondeu-lhe ele. — Bater bota,

ir Céu. Talvez Serang Ali encontrar outra mulher...Uma semana mais tarde, o Serang Ali abeirou-se novamente de

Zachary:— Malum Zikri! Capitão muito doente. Precisar méd’co. Não

comer nada. Fazer muito chichi. Cabina capitão cheirar muito mal.Zachary encaminhou-se para a cabina do capitão. Este explicou-lhe

que não havia qualquer problema, que apenas estava com uma ligeiradiarreia. E que não se tratava de disenteria, pois não havia indícios desangue. «Eu sei tomar conta de mim. Não é a primeira vez que tenhocólicas e diarreia.»

Contudo, alguns dias mais tarde, como o capitão estava demasiadofraco para sair da cabina, Zachary ficou responsável pelo diário de bordoe pelas cartas de navegação. Tendo frequentado a escola até aos doze anos,Zachary era capaz de fazer uma caligrafia bonita, ainda que demorassealgum tempo, pelo que a actualização do diário de bordo não era umproblema. Todavia, no que dizia respeito à navegação, a situação eracompletamente diferente: apesar de ele ter aprendido aritmética noestaleiro, não se sentia muito à vontade com os números. Ainda assim,durante toda a viagem, fez por observar o capitão e o primeiro-imediato,enquanto estes faziam as suas leituras do meio-dia, tendo, por vezes,colocado algumas questões que recebiam resposta de acordo com a

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disposição dos oficiais, quer por meio de explicações resumidas, quercom maus modos. Servindo-se do relógio do capitão e do sextante queherdara do imediato falecido, Zachary passava imenso tempo a tentarcalcular a posição do navio. As suas primeiras tentativas resultaramnum pânico total, com os seus cálculos a colocarem a embarcação váriasmilhas fora de rota. Todavia, quando proferiu a hookum para a mudançade rota, descobriu que a navegação do navio nunca estivera ao seu cargo.

— Malum Zikri pensar lascarim não saber navegar navio? — disse--lhe o Serang Ali, com indignação. — Lascarim saber muito navegação.Malum Zikri ver.

O protesto de Zachary, de que se encontravam cerca de trezentasmilhas fora de rota, foi recebido com uma resposta brusca:

— Malum Zikri fazer raio barulho por causa da hookum? MalumZikri aprender navegar. Não saber navegar. Não ver Serang Ali espertoda cabeça? Levar navio para Por’Li, três dias. Malum Zikri ver.

Precisamente três dias mais tarde, e tal como prometido, as colinasdas ilhas Maurícias avistavam-se a jamna, com a cidade de Port Louisaninhada na baía, mais abaixo.

— Homessa! — exclamou Zachary, relutantemente. — Extraordi-nário. Tens a certeza de que estamos no sítio certo?

— Eu dizer! Serang Ali Número Um navegação!Posteriormente, Zachary veio a descobrir que o Serang Ali pilotara

o navio o tempo todo, utilizando um método de navegação que combi-nava o cálculo de posição, ou tup ka shoomar, como ele lhe chamava,com a leitura frequente das estrelas.

O capitão achava-se demasiado doente para desembarcar, por issocoube a Zachary tratar dos negócios do proprietário do navio na ilha,incluindo a entrega de uma carta ao dono da plantação, situada a cercade dez quilómetros de Port Louis. Zachary estava a preparar-se paradesembarcar com a carta, quando foi interceptado pelo Serang Ali, queo olhou de cima a baixo, com um ar preocupado.

— Malum Zikri ter problema se ir Por’Li assim.— Porquê? Não vejo qual é o problema.— Malum ver. — O Serang Ali deu um passo atrás e examinou

Zachary, atentamente. — Que raio roupa ser essa?Zachary envergava a sua indumentária de trabalho: umas calças de

lona e a banyan típica dos marinheiros, uma túnica larga, feita de umalgodão grosseiro e pesado, algo desbotada. Após várias semanas no mar,tinha a barba por fazer e o seu cabelo encaracolado estava sujo de óleo,de alcatrão e de sal. Porém, nada daquilo lhe parecia inconveniente; afinalde contas, apenas ia entregar uma carta. Encolheu os ombros e disse:

— O que tem?

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— Malum Zikri ir assim Por’Li, já não voltar — avisou o SerangAli. — Muitos emissários recrutadores em Por’Li. Muito negreirosquerer escravos. Malum ser apanhado, ser escravo, levar muitas tareias.Nada bom.

As palavras do serang deram-lhe que pensar. Zachary regressou à suacabina e examinou as coisas que acumulara aquando da morte e da deser-ção dos dois imediatos do navio. Um deles era muito vaidoso, e tinha tantaroupa dentro do baú que Zachary se sentiu intimidado. O que é quecombinava com o quê? O que vestir a cada altura do dia? Uma coisaera olhar para aquelas peças vistosas nos outros, e outra coisa era vesti-las.

Mais uma vez, o Serang Ali veio em seu auxílio. Entre os lascarins,havia gente com outras capacidades para além da navegação, nomea-damente um kussab que havia trabalhado como criado pessoal do donode um navio; um camareiro que era também um darzee, e que ganhavaalgum dinheiro extra a costurar e a remendar peças de vestuário; e umtopas que aprendera a arte de barbear e que era o balwar da tripulação.Sob as orientações do Serang Ali, a equipa pôs as mãos ao trabalho,assaltando os sacos e os baús de Zachary, escolhendo roupa, tirandomedidas, dobrando e cortando. Enquanto o camareiro-alfaiate e os seuschuckaroos se entretinham com as bainhas e os punhos, o topas-barbeiroconduziu Zachary até aos embornais situados a sotavento e, com a ajudade alguns laundas, sujeitou-o a uma valente esfrega. Zachary não ofere-ceu qualquer resistência, até os topas aparecerem com um líquido escuroe perfumado, com a intenção de o despejarem no seu cabelo.

— Eh! O que é isso?!— Champô — respondeu-lhe o barbeiro, fazendo o gesto de esfre-

gar com as mãos. — Champoar ser muito bom...— Champô? — Zachary jamais ouvira falar daquela substância.

Embora estivesse avesso à ideia, acabou por ceder e, para sua surpresa,não se arrependeu, pois nunca sentira a cabeça tão leve e o seu cabelonunca cheirara tão bem.

Algumas horas mais tarde, Zachary fitava a sua imagem quase irre-conhecível no espelho, vestido com uma camisa de linho branca, umascalças curtas de montar, uma jaqueta assertoada de Verão e um lençobranco impecavelmente atado no pescoço. O cabelo, cortado, penteadoe preso com uma fita azul que lhe caía sob as costas, achava-se cobertocom um chapéu preto e lustroso. Aos seus olhos, não lhe faltava nada;porém, o Serang Ali ainda não estava satisfeito.

— Não ter relógio? Tiquetique?— O quê?— Relógio. — O serang enfiou a mão no seu colete, como se

estivesse à procura de um relógio de bolso.

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A ideia de ele ter dinheiro para comprar um relógio deu-lhe vontadede rir.

— Não — respondeu-lhe Zachary —, não tenho relógio.— Ce’to. Malum Zikri esperar um minuto.O serang expulsou os outros lascarins da cabina e desapareceu durante

dez minutos. Quando regressou, trazia algo escondido nas dobras do seusarongue. Fechou a porta atrás dele, desapertou o nó da cintura eentregou um relógio de prata reluzente a Zachary.

— Com a breca! — A boca de Zachary escancarou-se, ao olhar paraaquele relógio, pousado na palma da sua mão, qual ostra resplande-cente. As faces revelavam uns desenhos complexos em filigrana e acorrente era composta por três fios de prata, cuidadosamente entrela-çados. Ao abrir a tampa, ele contemplou, incrédulo, os ponteiros emmovimento e os dentes da engrenagem.

— É lindíssimo! — Zachary reparou que, no interior da tampa,havia um nome gravado em letras pequenas. Leu-o em voz alta: —Adam T. Danby. Quem era ele? Conhecia-o, Serang Ali?

O serang hesitou por uns instantes e depois abanou a cabeça:— Não, não. Comprar relógio casa penhores, na Cidade do Cabo.

Agora pertencer a Malum Zikri.— Não posso aceitar, Serang Ali.— Tudo bem, Malum Zikri — disse o serang, esboçando um raro

sorriso. — Não fazer mal.Zachary estava sensibilizado com aquele gesto.— Obrigado, Serang Ali. Nunca ninguém me deu nada assim.

— Posicionou-se em frente ao espelho, com o relógio na mão e o chapéuna cabeça, e desatou a rir. — Eh! Aposto que vão fazer de mim presi-dente de câmara.

O Serang Ali acenou afirmativamente.— Malum Zikri agora ser sahib importante. Muito fino. Se dono

plantação tentar recrutar, fazer dumcao.— Dumcao? — exclamou Zachary. — O que é isso?— Fazer muito barulho, gritaria. «Dono plantação sacana, fornica-

dor irmã. Eu ser sahib pucka, não me poder recrutar.» Malum Zikri levarpistola. Se sacana tentar prender, disparar cara dele.

Zachary enfiou a pistola no bolso e desembarcou com algum nervo-sismo. Mas assim que alcançou o cais, apercebeu-se de que ninguémlhe prestava grande atenção. Dirigiu-se para um estábulo, a fim de alu-gar um cavalo, e o proprietário francês fez-lhe uma vénia, tratando-opor «senhor» e fazendo os possíveis para lhe agradar. Zachary saiu mon-tado a cavalo, com o moço da estrebaria a correr atrás dele, para lheindicar o caminho.

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A cidade era pequena, composta por meia dúzia de casas que se per-diam num amontoado de barracas e de outras habitações semelhantesa cabanas. Do outro lado, o caminho enveredava por entre zonas de flo-resta densa e canas-de-açúcar altas e emaranhadas. As colinas e ospenhascos circundantes tinham uns formatos estranhos e disformes,situados acima das planícies, como se um bestiário de animais gigan-tescos tivesse sido imobilizado ao tentar escapar das garras da Terra.De vez em quando, ao atravessar os inúmeros campos de canas-de--açúcar, deparava-se com grupos de homens que baixavam as suas gada-nhas para o ver passar. Os capatazes inclinavam a cabeça e levavam oschicotes à aba dos seus chapéus, em sinal de respeito, ao mesmo tempoque os trabalhadores o fitavam num silêncio inexpressivo, fazendo-osentir-se aliviado por ter uma arma no bolso. Ainda Zachary se encon-trava a uma longa distância, já a casa da plantação surgia no horizonte,por entre uma avenida de árvores que começavam a perder a sua cascaem tons de mel. Ele esperava ver uma mansão, como nas plantações emDelaware e em Maryland, mas aquela casa não possuía pilares majes-tosos, nem grandes frontões; tratava-se de uma casa de madeira tér-rea, com uma enorme varanda a toda a volta. O proprietário, Monsieurd’Epinay, encontrava-se sentado na varanda, vestido unicamente comceroulas e suspensórios. Zachary não deu muita atenção a esse facto,pelo que ficou bastante surpreendido quando o dono da casa se descul-pou pela falta de indumentária, explicando, num inglês hesitante, quenão esperava a visita de cavalheiros àquela hora do dia. Deixando o seuconvidado entregue aos cuidados de uma criada africana, Monsieurd’Epinay entrou em casa e apareceu meia hora depois, completamentevestido, para presentear Zachary com uma refeição composta por váriospratos, todos acompanhados de excelentes vinhos.

Mais tarde, foi com alguma relutância que Zachary olhou para o seurelógio de bolso e anunciou que estava na hora de partir. Ao caminha-rem para o exterior, Monsieur d’Epinay deu-lhe uma carta que deveriaser entregue ao Sr. Benjamin Burnham, em Calcutá.

— As minhas canas-de-açúcar estão a apodrecer nos campos, senhorReid — explicou-lhe o plantador. — Diga ao senhor Burnham quepreciso de mais homens. Agora que já não podemos ter escravos nasilhas Maurícias, preciso de coolies, senão estou condenado. Dê-lhe umapalavrinha por mim, está bem?

Juntamente com o aperto de mão de despedida, Monsieur d’Epinayofereceu-lhe um aviso:

— Tenha cuidado, senhor Reid, esses olhos sempre abertos. As mon-tanhas estão cheias de escurinhos, de bandidos e de escravos em fuga. Umcavalheiro sozinho tem de ter imensa cautela. Nunca largue a sua arma.

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Zachary saiu a trote da plantação, com um sorriso nos lábios e apalavra «cavalheiro» a zunir-lhe nos ouvidos. Havia imensas vantagensem ser apelidado daquela forma, vantagens que se tornariam por demaisevidentes quando ele chegasse às docas de Port Louis. Com o cair danoite, as vias estreitas em torno do bazar lascarim encheram-se demulheres, e a figura de Zachary, envergando a sua jaqueta e o seuchapéu, tinha um efeito electrizante nelas. Como tal, as roupas passaramrapidamente a figurar na sua lista de coisas dignas de louvor. Graças àmagia delas, ele, Zachary Reid, quase sempre ignorado pelas prostitutasde Fell’s Point, tinha agora várias mulheres agarradas aos seus braços;elas enfiavam os dedos por entre os seus cabelos, premiam as ancas deencontro ao seu corpo, e brincavam distraidamente com os botões feitosde corno das suas calças de seda. Uma dessas mulheres, que dava pelonome de Madagascar Rose, era a rapariga mais bonita que ele algumavez vira, com flores atrás das orelhas e os lábios pintados de vermelho.Após dez meses seguidos no mar, Zachary queria ser arrastado para oquarto dela, enfiar o nariz entre os seus seios cor de jasmim e passar alíngua sobre os seus lábios cor de baunilha. Porém, de repente, apareceuo Serang Ali, vestido com o seu sarongue, a bloquear-lhe a passagem,com o rosto esguio e aquilino comprimido num esgar de reprovação.Assim que o avistou, a rosa de Madagáscar murchou e foi-se embora.

— Malum Zikri não ter raio cérebro? — perguntou-lhe o serang,com as mãos na cintura. — Ter água na cabeça? Querer mulher-flor?Não ser um sahib importante agora?

Zachary não estava com disposição para ouvir lições de moral.— Não me chateies, Serang Ali! Não sabes que nunca se arranca

um marinheiro prestes a entrar numa gruta?— Porquê Malum Zikri pagar por cambalhotas? — inquiriu o

serang. — Porquê não ver exemplo polvo? Ser peixe muito feliz.Aquela observação deixou Zachary completamente atónito.— O polvo? — perguntou-lhe. — Mas o que é que o polvo tem a

ver para o caso?— Não ver? — replicou o Serang Ali. — O senhor Polvo ter oito

mãos. Ser muito feliz. Sempre sorriso. Porquê Malum não fazer igual?Dez dedos não chegar?

Zachary atirou os braços no ar, num gesto de resignação, e deixou--se levar daquele lugar. No caminho de regresso ao navio, o Serang Alipassou o tempo a sacudir-lhe o pó das roupas, a compor-lhe o lenço ea pentear-lhe o cabelo. Era como se Zachary fosse uma propriedade sua,por tê-lo ajudado a transformar-se num sahib. Por muito que Zacharybarafustasse e lhe batesse nas mãos, o serang não parava quieto, comose estivesse perante uma figura da nobreza, equipada com tudo o que

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era preciso para ser bem-sucedida na vida. Ocorreu a Zachary que essedeveria ser o motivo por que o Serang Ali quisera afastá-lo das mulheresfáceis do bazar; também o seu acasalamento teria de ser combinado esupervisionado. Pois estava redondamente enganado.

O capitão, ainda enfermo, estava ansioso para chegar a Calcutá, equeria içar a âncora o mais depressa possível. Ao tomar conhecimentoda decisão do capitão, o Serang Ali apressou-se a discordar:

— Capitão muito doente — disse ele. — Se não chamar méd’co,ele morrer. Bater bota depressa.

Zachary estava disposto a ir procurar um médico, mas o capitão nãoo deixava.

— Não quero cá nenhuma sanguessuga a enfiar-me o dedo pelobalaústre acima. Eu estou bem, é só uma diarreia. Assim que zarpar-mos, recuperarei as minhas forças.

No dia seguinte, a brisa aumentou e o Ibis fez-se ao mar. O capitãoconseguiu arrastar-se até ao tombadilho e declarou sentir-se a toda avela, mas o Serang Ali não era da mesma opinião.

— Capitão ter cólera. Malum Zikri ver... Língua dele ser preta.Melhor Malum Zikri não chegar perto capitão. — Mais tarde, o serangdeu a Zachary uma decocção malcheirosa, feita de raízes e de ervas.— Malum Zikri beber para não ficar doente. Cólera muito terrível.

Seguindo os conselhos do serang, Zachary mudou de dieta, trocandoos guisados típicos dos marinheiros, à base de vegetais, de pão e de carneseca, por um cardápio lascarim de karibat e de kedgeree, uns pratos picantesfeitos com arroz, lentilhas e picles, e servidos com pedaços de peixe, frescoou seco. No início, Zachary teve alguma dificuldade em habituar-seàqueles sabores tão condimentados, mas apercebeu-se rapidamente de queas especiarias lhe estavam a fazer bem, purgando-lhe as entranhas, peloque depressa se habituou àqueles paladares pouco familiares.

Doze dias mais tarde, tal como o Serang Ali previra, o capitão mor-reu. No caso dele, os pertences não foram leiloados, mas atirados bordafora, e a cabina principal foi lavada e arejada, para ser cauterizada peloar salgado.

Quando o corpo foi deitado ao mar, Zachary leu uma passagem daBíblia, e fê-lo com uma emoção tal que recebeu um elogio por partedo Serang Ali.

— Malum Zikri parecer padre importante. Porque não cantar can-ção igreja?

— Não sei — respondeu-lhe Zachary. — Nunca soube cantar.— Ce’to — disse o Serang Ali. — Eu ter amigo cantor. — Fez sinal

a um grumete alto e esquelético chamado Rajoo. — Este launda per-tencer missão. Padre ensinar samo.

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— Salmo? — perguntou Zachary, surpreso. — Qual deles?Em jeito de resposta, o jovem lascarim começou a cantar: «Porque

é que os pagãos se enraivecem...»Com receio que o sentido do salmo passasse despercebido a Zachary,

o serang teve o cuidado de fazer a tradução:— Aquilo querer dizer — sussurrou ele ao ouvido de Zachary —,

porquê pagãos fazer tanto barulho? Não ter trabalho para fazer?Zachary soltou um suspiro.— Parece-me que está tudo dito.

* * *

Quando o Ibis lançou ferro na foz do rio Hooghly, haviam passadoonze meses desde a sua partida de Baltimore, e os únicos membros datripulação original que restavam eram Zachary e Crabbie, o gato de corruiva.

Com Calcutá a dois ou três dias de distância, Zachary estava mais doque ansioso por se pôr a caminho. Vários dias passaram, enquanto a tri-pulação esperava impacientemente pela chegada de um piloto. Zacharyestava a dormir na sua cabina, vestido apenas com um sarongue, quandoo Serang Ali entrou de rompante e lhe disse que um barco bandar haviaatracado junto a eles.

— Chegou o s’nhor Dumcao.— O senhor quem?— Piloto. Fazer muita gritaria — explicou-lhe o serang. — Malum

Zikri vai ouvir.Zachary inclinou ligeiramente a cabeça e escutou uma voz que

ecoava no portaló:— Eu seja cego s’alguma vez vi um grupo de sacanas tão miserável

com’este! Merecem é um valente pontapé nesses cus, seus preguiçosos!Do qu’é que estão à espera, vestidos com esses farrapos e c’os pendu-ricalhos à bolina, comigo especado aqui ao sol?!

Vestindo uma camisola interior e umas calças, Zachary saiu da suacabina e viu um inglês robusto e com um ar irritado a percorrer o con-vés, com uma bengala feita de junco de Malaca. Achava-se vestido deuma forma extravagantemente antiquada, com o colarinho da camisasubido, um casaco de abas e uma faixa à cintura. O seu rosto, com umatonalidade suína, as patilhas de carneiro2, as bochechas carnudas e os

2 Em inglês, mutton chops tanto pode significar «patilhas» como «costeletas decarneiro». (NT)

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lábios cor de fígado, parecia ter sido «montado» na bancada de umtalho. Atrás dele, via-se um grupo de carregadores e de lascarins,carregados com recipientes, malas de couro grandes e outra bagagem.

— Mas vocês são todos débeis mentais ou quê?! — As veias dasfontes do piloto estavam salientes, enquanto ele gritava para a tripu-lação que não se mexia. — Onde está o imediato? Já lhe deram a kubberde qu’o meu barco chegou? Não fiquem aí especados, toc’à mexer, antesqu’eu vos dê c’a minha bengala, sua cambada de labregos! Ponho-vosa cantar qu’é um instante!

— Peço desculpa, senhor — disse Zachary, dando um passo emfrente. — Peço desculpa por tê-lo feito esperar.

O piloto semicerrou os olhos, em jeito de desagrado, fitando asroupas engelhadas e os pés descalços de Zachary.

— Com a breca, homem! — exclamou ele. — Desleixou-se umbocado, não? Não pode ser assim, afinal de contas, é o único sahib abordo. A não ser que queira ser gozado p’los seus escurinhos.

— Peço desculpa, cavalheiro... Estou só um pouco desalinhado.— Zachary estendeu-lhe a mão. — Sou o segundo-imediato, ZacharyReid.

— Chamo-me James Doughty — replicou o recém-chegado, aper-tando vigorosamente a mão a Zachary. — Antigo piloto do BengalRiver Service e actual arkati principal da Burnham Bros. O Burra Sahib,ou seja, o senhor Ben Burnham, pediu-me pr’assumir o comando destenavio. — Acenou levemente ao lascarim posicionado atrás do leme.— Aquele é o meu timoneiro; sabe exactamente o que fazer. Era capazde subir o rio Brahmaputra c’os olhos fechados. O que me diz de deixar-mos a navegação entregue ao labrego e irmos à procura d’uma pingade loll-shrub?

— Loll-shrub? — Zachary coçou o queixo. — Lamento, senhorDoughty, mas não faço ideia do que isso é.

— Clarete, meu rapaz — respondeu-lhe o piloto. — Por acaso nãotem uma pinguinha disso a bordo? Senão, um copo de brande tambémserve.