maquiavel

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nicolau maquiavel O príncipe Tradução maurício santana dias Prefácio fernando henrique cardoso

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Filosofia moderna

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  • nicolau maquiavel

    o prncipe

    Traduomaurcio santana dias

    Prefciofernando henrique cardoso

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  • copyright das notas 1961, 1975, 1981, 1995, 1999 by George Bull copyright da introduo 1999 by Anthony Grafton

    copyright do prefcio 2010 by Fernando Henrique cardoso

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrficoda Lngua Portuguesa de 1990,

    que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    penguin and the associated logo and trade dressare registered and/or unregistered trademarks

    of penguin Books Limited and/orpenguin Group (usa) inc. Used with permission.

    published by companhia das Letras in association with penguin Group (usa) inc.

    ttulo originalDe principatibus

    capa e projeto grfico penguin-companhiaraul Loureiro e cludia Warrak

    traduo dos apndicesLuiz A. de Arajo

    preparaoSilvia Maximini Flix

    revisoAna Maria Barbosa

    Huendel Viana

    [2010]Todos os direitos desta edio reservados

    editora schwarcz ltda.rua Bandeira paulista, 702, cj. 32

    04532-002 So paulo spTelefone: (011) 3707-3500 Fax: (011) 3707-3501

    www.companhiadasletras.com.br

    Dados internacionais de catalogao na publicao (cip)(cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Machiavelli, nicoll, 1469-1527.o prncipe / nicolau Maquiavel ; traduo de Maur-

    cio Santana Dias ; prefcio de Fernando Henrique cardoso ; traduo dos apndices de Luiz A. de Arajo. So paulo : penguin classics companhia das Letras, 2010.

    Ttulo original: De principatibus.isbn 978-85-63560-03-2

    1. poltica i. cardoso, Fernando Henrique. ii. Grafton, Anthony. iii. Ttulo

    10-06227 cdd-320

    ndices para catlogo sistemtico:1. cincia poltica 320

    2. poltica 320

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  • Sumrio

    Mapa 9Maquiavel eterno Fernando Henrique cardoso 11introduo Anthony Grafton 23

    o prncipe

    carta de nicolau Maquiavel ao Magnfico Loureno de Mdici 45

    i. Quais os gneros de principado e por que meios so conquistados 47 ii. Dos principados hereditrios 48 iii. Dos principados mistos 49 iv. por que o reino de Dario, ocupado por Alexandre, no se rebelou contra seus sucessores aps a morte deste 57 v. De que modo se podem administrar cidades ou principados que, antes de conquistados, tinham suas prprias leis 60 vi. Dos principados novos que so conquistados por virtude e armas prprias 61 vii. Dos principados novos que so consquistados por armas alheias e pela fortuna 65

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  • viii. Daqueles que, por atos criminosos, chegaram ao principado 73 ix. Do principado civil 77 x. De que modo se deve avaliar a fora dos principados 81 xi. Dos principados eclesisticos 83 xii. Quais so os tipos de exrcitos e de milcias mercenrias 85 xiii. Das milcias auxiliares, mistas e prprias 91 xiv. como o prncipe deve proceder acerca das milcias 94 xv. Das coisas pelas quais os homens, sobretudo os prncipes, so louvados ou vituperados 97 xvi. Da liberalidade e da parcimnia 99 xvii. Da crueldade e da piedade; e se melhor ser amado que temido 101xviii. como o prncipe deve honrar sua palavra 104 xix. De como escapar ao desprezo e ao dio 107 xx. Se fortalezas e outros expedientes a que os prncipes frequentemente recorrem so teis ou no 117 xxi. como um prncipe deve agir para obter honra 122 xxii. Dos ministros de um prncipe 126xxiii. como escapar aos aduladores 127xxiv. por que os prncipes da itlia perderam seus reinos 129 xxv. em que medida a fortuna controla as coisas humanas e como se pode resistir a ela 131xxvi. exortao a tomar a itlia e a libert-la dos brbaros 134

    Notas George Bull 139Cronologia 149Glossrio de nomes prprios 155Outras leituras 171

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  • 0 100 Milhas

    0 150 Quilmetros5o 100

    50

    Roma

    Npoles

    Messina

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    Bolonha

    Pdua

    Veneza

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    PesaroRimini

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    AquileiaVerona

    Parma

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    T i r r e n o

    REINO DASARDENHA

    REINO DASICLIA

    DUCADO DE MDENA

    DUCADO DE FERRARA

    DUCADO DE MNTUA

    CRSEGA

    itlia em 1500

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  • o prncipe 99

    XViDe liberalitate et parsimonia*23

    partindo, pois, das primeiras qualidades mencionadas acima, digo que seria vantajoso ser considerado liberal. entretanto, se usada de modo a trazer-lhe reputao, a liberalidade causar transtornos ao prncipe; isso por-que, se empregada de maneira virtuosa e na medida cer-ta, ela no ser reconhecida como tal e no o poupar da pecha de avarento; contudo, para manter a fama de liberal entre os homens, preciso lanar mo de todo fausto possvel, de modo que, nessas circunstncias, um prncipe sempre consumir todos os seus recursos e, por fim, se quiser manter a fama de liberal, ter de sobre-carregar extraordinariamente a populao de tributos e fazer tudo o que de praxe para arrecadar dinheiro; e essas medidas, por sua vez, o faro cada vez mais odiado entre os sditos e pouco estimado por todos, que se tor-naro mais pobres. portanto, ao descontentar a maioria e favorecer uns poucos com sua liberalidade, o sobera-no sentir o golpe na primeira adversidade e vacilar ao primeiro perigo; e, caso se aperceba da situao e queira recuar, incorrer imediatamente na infmia do miser-vel. Assim, no podendo usar a virtude da liberalidade sem seu prprio dano to logo ela fosse reconhecida, o prncipe, se for prudente, no dever importar-se com a pecha de miservel; pois com o tempo ele ser considera-do cada vez mais liberal, medida que todos virem que, graas parcimnia, aquilo que arrecada lhe basta, que ele pode defender-se de quem quiser atac-lo e mover campanhas sem onerar seu povo. De sorte que parecer liberal aos que no sero escorchados que so inu-merveis e miservel queles a quem no dar nada que so poucos.

    * Da liberalidade e da parcimnia.

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  • maquiavel100

    em nossos tempos, s vimos realizar grandes feitos aqueles que so tidos por miserveis; os outros desapare-ceram. papa Jlio ii, que se serviu da nomeada de liberal para alcanar o papado, depois no fez questo de mant--lo e se aplicou em mover guerras. o atual rei da Frana fez muitas guerras sem impor tributos extraordinrios a seus sditos, porque substituiu as despesas suprfluas por uma prolongada parcimnia. Se fosse considerado liberal, o presente rei da espanha1 no teria feito nem vencido tantas campanhas. por conseguinte, um prncipe no deve preocupar-se para no ter de roubar seus sditos, para poder defender-se, para no se tornar pobre e desprezado, para no ser forado rapinagem com incorrer na fama de miservel, pois este um daqueles vcios que o permitem reinar. e, se algum me disser que csar ascen-deu ao imprio valendo-se da liberalidade e que muitos outros, por terem sido ou serem considerados liberais, chegaram a postos elevadssimos, respondo que prncipe se nasce ou se busca ser. no primeiro caso, a liberalidade prejudicial. no segundo, de fato necessrio ser e ser tido por liberal, e csar era um dos que queriam ascender ao principado de roma; porm, se depois de t-lo alcan-ado e mantido ele no houvesse reduzido seus gastos, teria destrudo seu imprio.

    e se algum replicar que muitos foram os prncipes que, famosos pela prodigalidade, fizeram grandes coisas com seus exrcitos, respondo que ou o prncipe gasta o que dele e de seus sditos, ou consome os bens de ou-trem. no primeiro caso, ele deve ser parco; no segundo, no deve poupar-se de nenhuma liberalidade. Ademais, o prncipe que conduz exrcitos, que se nutre de butins, de saques e de recompensas, que lida com o bem alheio, pre-cisa ser liberal: do contrrio, no seria seguido pelos sol-dados. com aquilo que no dele nem de seus sditos o prncipe pode ser mais prdigo, como foram ciro, csar e Alexandre, pois despender o que de outrem no dimi-

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  • o prncipe 101

    nui, mas aumenta sua reputao: somente o dispndio do que prprio o prejudica. Mas no h nada que mais se gaste quanto a liberalidade, pois o prncipe prdigo per-de a faculdade de us-la e se torna pobre e desprezado ou, para escapar pobreza, rapace e odiado. Dentre to-das as coisas, um prncipe deve acima de tudo evitar ser desprezado ou odiado e a liberalidade o conduz a am-bas. portanto mais prudente conservar o nome de mise-rvel, do qual nasce uma infmia sem dio, que, por per-seguir a fama de liberal, precisar incorrer na pecha de rapace, que produz uma infmia com dio.

    XViiDe crudelitate et pietate; et an sit melius amari

    quam timeri, vel e contra*24

    passando s outras qualidades citadas acima, digo que todo prncipe deve desejar ser tido por piedoso, e no por cruel; contudo, ele deve estar atento para no usar mal a piedade. csar Brgia era considerado cruel; no entanto, sua crueldade recuperou, uniu e pacificou a ro-manha. Assim, a um exame mais detido, ver-se- que ele foi bem mais piedoso que o povo florentino, que, a fim de evitar a fama de cruel, deixou que pistoia fosse destruda.1 portanto um prncipe no deve preocupar-se com a m fama de cruel se quiser manter seus sditos unidos e fiis, pois com pouqussimos atos exemplares ele se mostrar mais piedoso que aqueles que, por ex-cesso de piedade, permitem uma srie de desordens se-guidas de assassnios e de roubos: estes costumam pre-judicar a todos, ao passo que aqueles, ordenados pelo prncipe, s atingem pessoas isoladas. Dentre todos os

    * Da crueldade e da piedade; e se melhor ser amado que temido.

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  • maquiavel102

    soberanos, o prncipe novo o menos capaz de escapar fama de cruel, j que os estados recentes so cheios de perigos. Virglio afirma pela boca de Dido: Res dura et regni novitas me talia cogunt/ moliri et late fines custo-de tueri.*25 Todavia convm ser comedido nas convices e na ao, sem se deixar tomar pelo medo, procedendo com temperana e humanidade, de modo que a excessiva confiana no o torne incauto nem a desconfiana em excesso o torne intolervel.

    Da nasce uma controvrsia, qual seja: se melhor ser amado ou temido. pode-se responder que todos gosta-riam de ser ambas as coisas; porm, como difcil conci-li-las, bem mais seguro ser temido que amado, caso venha a faltar uma das duas. porque, de modo geral, pode-se dizer que os homens so ingratos, volveis, fin-gidos e dissimulados, avessos ao perigo, vidos de ga-nhos; assim, enquanto o prncipe agir com benevolncia, eles se doaro inteiros, lhe oferecero o prprio sangue, os bens, a vida e os filhos, mas s nos perodos de bo-nana, como se disse mais acima; entretanto, quando surgirem as dificuldades, eles passaro revolta, e o prncipe que confiar inteiramente na palavra deles se ar-ruinar ao ver-se despreparado para os reveses. pois as amizades que se conquistam a pagamento, e no por grandeza e nobreza de esprito, so merecidas, mas no se podem possuir nem gastar em tempos adversos; de resto, os homens tm menos escrpulos em ofender al-gum que se faa amar a outro que se faa temer: porque o amor mantido por um vnculo de reconhecimento, mas, como os homens so maus, se aproveitam da pri-meira ocasio para romp-lo em benefcio prprio, ao passo que o temor mantido pelo medo da punio, o qual no esmorece nunca.

    * A vida dura e o novo reino me constrangem/ a guarnecer at as ltimas fronteiras, Eneida i, vv. 563-4.

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  • o prncipe 103

    Todavia o prncipe deve inspirar temor de tal modo que, se no puder ser amado, ao menos evite atrair o dio, j que perfeitamente possvel ser temido sem ser odiado. isso s ser vivel se ele no cobiar os bens de seus cidados e de seus sditos, bem como as mulheres destes. e, quando for imprescindvel agir contra o san-gue de algum, que o faa por uma justificativa slida e um motivo evidente. Mas o mais importante abster-se dos bens alheios, pois os homens se esquecem com maior rapidez da morte de um pai que da perda do patrimnio; ademais, nunca faltam motivos para atentar contra o bem de outrem, e aquele que comea a viver de rapina sempre encontra razes para apropriar-se do que alheio, ao passo que, para atentar contra a vida, as ra-zes so mais raras e fugazes.

    porm, quando o prncipe est com seus exrcitos e tem sob seu comando multides de soldados, no deve importar-se absolutamente com a fama de cruel, pois sem ela no se mantm um exrcito unido nem disposto ao combate. entre as notveis aes de Anbal, costuma-se ressaltar que ele, comandando um exrcito imenso, cons-titudo de soldados originrios de vrias naes e levados a guerrear em terras estrangeiras, nunca deixou que emer-gissem dissensos, nem entre eles nem contra o prncipe, tanto na m quanto na boa fortuna. e isso s foi possvel graas sua crueldade inumana a qual, acrescida de suas infinitas virtudes, o fez sempre venervel e temvel diante de seus soldados. Sem ela, e sem seus efeitos, toda sua virtude no teria bastado; e os historiadores, pouco ponderados neste ponto, em parte admiram suas aes, em parte condenam seus motivos fundamentais.

    o fato de que suas virtudes no teriam bastado pode ser aferido em um confronto com cipio, homem excep-cional no s em sua poca, mas tambm na memria de todos os tempos, cujos exrcitos se rebelaram na espa-nha; mas tal revs s ocorreu por sua excessiva piedade,

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  • maquiavel104

    j que ele deu a seus exrcitos mais liberdade do que seria conveniente disciplina militar. por isso ele foi criticado por Fbio Mximo no senado e acusado de corromper as milcias romanas. cipio no punira a insolncia do lega-do que havia aniquilado os locrenses,2 nem vingara a morte destes, devido sua natureza complacente; tanto que algum, tentando defend-lo no senado, alegou que havia homens mais capazes de no errar que corrigir os erros alheios. com o tempo, tal natureza teria conspurca-do a fama e a glria de cipio, caso ele persistisse nela estando no poder; porm, vivendo sob o governo do sena-do, essa sua danosa qualidade no somente se ocultou, mas foi a principal causa de sua glria.

    portanto, voltando questo de ser temido e amado, concluo que, se os homens amam de acordo com sua vontade e temem segundo a vontade do prncipe, um prncipe sbio deve assentar-se naquilo que seu, e no no que de outrem, precisando apenas, como foi dito, encontrar meios de escapar ao dio.

    XViiiQuomodo fides a principibus sit servanda*26

    Todos concordam quanto louvvel que um prncipe mantenha sua palavra e viva com integridade, no com astcia; todavia, em nossa poca v-se por experincia que os prncipes que realizaram grandes feitos deram pouca importncia palavra empenhada e souberam en-volver com astcia as mentes dos homens, superando por fim aqueles que se aliceraram na sinceridade.

    Tambm deve ser do conhecimento geral que existem duas matrizes de combate: uma, por meio das leis; outra, pelo uso da fora. A primeira prpria dos homens; a

    * como o prncipe deve honrar sua palavra.

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  • o prncipe 105

    segunda, dos animais. contudo, como frequentemente a primeira no basta, convm recorrer segunda: por isso um prncipe precisa saber valer-se do animal e do ho-mem. este ponto foi ensinado veladamente aos prncipes pelos escritores da Antiguidade, os quais escreveram como Aquiles e tantos outros prncipes antigos foram deixados aos cuidados do centauro Quron, que os man-teve sob sua disciplina. isso quer dizer que, tendo por preceptor um ser metade animal e metade homem, um prncipe deve saber usar de ambas as naturezas: e uma sem a outra no produz efeitos duradouros.

    e, posto que necessrio a um prncipe saber usar do animal com destreza, dentre todos ele deve escolher a raposa e o leo, pois o leo no pode defender-se de ar-madilhas, e a raposa indefesa diante dos lobos; preci-so, pois, ser raposa para conhecer as armadilhas e leo para afugentar os lobos aqueles que simplesmente adotam o leo no entendem do assunto. portanto um soberano prudente no pode nem deve manter a palavra quando tal observncia se reverta contra ele e j no existam os motivos que o levaram a empenh-la. Se to-dos os homens fossem bons, este preceito no seria bom; mas, como eles so maus e no mantm a palavra dada ao prncipe, este tambm no deve mant-la perante eles; ademais, nunca faltaram a um prncipe razes leg-timas para incorrer na inobservncia. A esse respeito po-deriam ser aduzidos infinitos exemplos modernos, a fim de mostrar quanta paz e quantas promessas foram inva-lidadas pela infidelidade dos prncipes: e aquele que mais soube valer-se da raposa se saiu melhor. Mas necess-rio saber camuflar bem essa natureza, ser um grande fin-gidor e dissimulador; e os homens so to simplrios e obedientes s necessidades imediatas que aquele que en-gana sempre encontrar quem se deixe enganar.

    no quero omitir um dos exemplos recentes. Alexan-dre vi nunca fez, nunca pensou em outra coisa seno em

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  • maquiavel106

    enganar os homens, encontrando sempre os meios de poder faz-lo; e jamais houve homem com maior talento para asseverar algo, reforando-o com infindveis jura-mentos, e em seguida descumpri-lo; entretanto seus en-ganos sempre se seguiram ad votum,*27 pois ele bem co-nhecia esse aspecto do mundo.

    A um prncipe, pois, no indispensvel ter de fato todas as qualidades acima descritas, mas imprescindvel que parea possu-las; alis, ousarei dizer o seguinte: ten-do-as e observando-as sempre, elas so danosas, ao passo que, aparentando t-las, so teis como, por exemplo, parecer piedoso, fiel, humano, ntegro, religioso, e s-lo; mas necessrio estar com o esprito de tal modo predis-posto que, ser for preciso no o ser, o prncipe possa e saiba torna-se o contrrio. e h que se compreender que um prncipe, sobretudo o prncipe novo, no pode obser-var todas as coisas pelas quais os homens so chamados de bons, precisando muitas vezes, para preservar o esta-do, operar contra a f, contra a caridade, contra a huma-nidade, contra a religio. porm necessrio que ele te-nha um esprito disposto a voltar-se para onde os ventos da fortuna e a variao das coisas lhe ordenarem; e, como se disse acima, no se afastar do bem, se possvel, mas saber entrar no mal, se necessrio.

    Sendo assim, um prncipe deve ter o extremo cuidado de nunca deixar que saia de sua boca nada que no es-teja repleto das cinco qualidades supracitadas; e que ele parea, ao ser visto e ouvido, todo piedade, todo f, todo integridade, todo humanidade, todo religio de res-to, parecer possuir esta ltima qualidade o que h de mais necessrio. os homens em geral julgam mais com os olhos que com as mos; porque todos so capazes de ver, mas poucos, de sentir; todos veem aquilo que voc parece, poucos tocam aquilo que voc ; e estes poucos

    * Segundo sua vontade.

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  • o prncipe 107

    no ousam opor-se opinio de muitos, que contam com a majestade do estado para defend-los; enfim, nas aes de todos os homens, especialmente nas dos prn-cipes, quando no h juiz a quem apelar, o que vale o resultado final.

    ento que o prncipe faa por conquistar e manter o estado: os meios sero sempre julgados honrosos e me-recero o elogio de todos, pois o vulgo capturado por aquilo que parece e pelo evento da coisa, e no mundo no h seno o vulgo os poucos no tm vez quando a maioria tem onde se apoiar. certo prncipe dos dias de hoje, cujo nome no bom citar,1 prega exclusivamente a paz e a f, sendo inimicssimo de ambas; mas, caso ele observasse uma e outra, perderia sucessivamente a repu-tao e o estado.

    XiXDe contemptu et odio fugiendo*28

    como j tratei das qualidades mais importantes dentre as enumeradas acima, quero agora discorrer brevemente e em termos gerais sobre outras, quais sejam: que o prn-cipe, como em parte j se disse, cuide de escapar a tudo aquilo que o torne odiado ou desprezado, pois, sempre que ele o tiver evitado, ter cumprido sua parte e no ser ameaado por outras infmias. o que o torna mais odioso, como eu disse, ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres de seus sditos, devendo abster-se deles. e, uma vez que no se atente nem contra a honra nem contra os bens dos homens, a maioria deles viver satis-feita; h somente que combater a ambio de uns pou-cos, o que de muitos modos e facilmente se refreia. o que o faz desprezvel ser reputado volvel, leviano, efe-

    * De como escapar ao desprezo e ao dio.

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