mapa mesa ii canto ufc

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relato | canto-ufc 01 O primeiro relato feito pela Talita nos dá uma dimensão de quão longa e resistente tem sido a luta das Comunidades, que enfrentam há 3 anos a possibilidade de remoção para as obras de mobilidade que serão [e estão sendo] realizadas. Ela conta pra gente sobre o Direito à Cidade, que de tão etéreo em nossa cidade, é preciso que recontemos sempre sobre ele para não esquecer o que significa: o direito de viver com dignidade e justiça social na cidade. Fala que, na legislação brasileira, ele representa uma vitória das lutas sociais da década de 1980. O teórico David Harvey o define como o direito de transformar a cidade. Direito esse que, hoje, poucos tem o privilégio de dizer que possuem na quinta cidade mais desigual do mundo. O direito à cidade, dialético, percebemos, só é possível para todos: se uns não tem, toda a cidade dói. E Fortaleza tem doído muito na última década. As remoções forçadas representam violações de direitos não só para a população diretamente afetada, mas para toda a sociedade, pois violam, dentre outros, o direito à participação, uma vez que os projetos que envolvem remoções normal- mente são divulgados somente quando já estão concluídos ou em fases bem avançadas e a população não é consultada em nenhuma instância; e o direito à informação, quando estas são omitidas e negadas à população e entidades que as venham a requerir junto aos órgãos públicos. Há, inclusive uma série de impre- cisões nos dados que o próprio governo divulga, como é o caso do número de remoções devido às obras do VLT, que flutua entre 1.700 a 5.000 famílias afetadas. Ciclo de seminários promovidos pelo Observatório de Políticas Públicas - UFC Mesa: Copa 2014 - Violações do direito à moradia. Quarta, 10 de junho de 2013. Convidados: André Lima Sousa - Observatório de Políticas Públicas Talita Furtado - Coletivo Flor de Urucum Maria das Graças - Moradora da comunidade do Mucuripe Alisson - Morador da comunidade dos Jangadeiros Nete - Moradora da comunidade Dom Oscar Romero Penha - Moradora da comunidade Pio XII Lúcia - Moradora da comunidade João XXIII Cássia - Moradora da comunidade Trilhos do Senhor João Batista - Morador da comunidade Rio Pardo Samuel - Morador da comunidade Lauro Vieira Chaves Tiago - Morador da comunidade Caminho das Flores Ribamar - Morador da comunidade Raízes da Praia Ivoneide - Moradora da comunidade Poço da Draga Essa mesa foi a segunda promovida pelo Seminário Copa 2014 e Políticas Públi- cas. E como a primeira, extremamente rica. Nosso relato é longo, mas tanto mais é a luta de todas as comunidades que ouvimos com atenção dedicada nesta noite. >> Lembramos dos urbanistas modernos ao citar quatro funções da cidade: morar, trabalhar, circular e lazer. Pergunta- mos: quantas hoje são possíveis aqui? A violência que nos oprime e enclausura é parte do mesmo pensamento que entende que pessoas são removíveis, que espaços são matéria antes de identidade, construção social e humana. Que o privado de uns deve ser comutado na conta de todos. E, assim, já não moramos, circulamos, divertimos; apenas trabalhamos: para que os uns morem, circulem, divirtam-se. << >> Em Fortaleza, mas no Brasil também, vive-se uma política urbana feita por publicitários, em que projetos viram imagens ultrarrealistas [ou seriam ultraimaginárias?]. E nós, arquitetos urbanistas, que tivemos a ilusão de achar que cidade se faz com planejamento, participação, informação e, só depois, com proposição embasada… <<

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O primeiro relato feito pela Talita nos dá uma dimensão de quão longa e resistente tem sido a luta das Comunidades, que enfrentam há 3 anos a possibilidade de remoção para as obras de mobilidade que serão [e estão sendo] realizadas. Ela conta pra gente sobre o Direito à Cidade, que de tão etéreo em nossa cidade, é preciso que recontemos sempre sobre ele para não esquecer o que significa: o direito de viver com dignidade e justiça social na cidade. Fala que, na legislação brasileira, ele representa uma vitória das lutas sociais da década de 1980. O teórico David Harvey o define como o direito de transformar a cidade. Direito esse que, hoje, poucos tem o privilégio de dizer que possuem na quinta cidade mais desigual do mundo. O direito à cidade, dialético, percebemos, só é possível para todos: se uns não tem, toda a cidade dói. E Fortaleza tem doído muito na última década.

As remoções forçadas representam violações de direitos não só para a população diretamente afetada, mas para toda a sociedade, pois violam, dentre outros, o direito à participação, uma vez que os projetos que envolvem remoções normal-mente são divulgados somente quando já estão concluídos ou em fases bem avançadas e a população não é consultada em nenhuma instância; e o direito à informação, quando estas são omitidas e negadas à população e entidades que as venham a requerir junto aos órgãos públicos. Há, inclusive uma série de impre-cisões nos dados que o próprio governo divulga, como é o caso do número de remoções devido às obras do VLT, que flutua entre 1.700 a 5.000 famílias afetadas.

Ciclo de seminários promovidos pelo Observatório de Políticas Públicas - UFCMesa: Copa 2014 - Violações do direito à moradia.Quarta, 10 de junho de 2013.

Convidados:André Lima Sousa - Observatório de Políticas PúblicasTalita Furtado - Coletivo Flor de UrucumMaria das Graças - Moradora da comunidade do MucuripeAlisson - Morador da comunidade dos JangadeirosNete - Moradora da comunidade Dom Oscar RomeroPenha - Moradora da comunidade Pio XIILúcia - Moradora da comunidade João XXIIICássia - Moradora da comunidade Trilhos do SenhorJoão Batista - Morador da comunidade Rio PardoSamuel - Morador da comunidade Lauro Vieira ChavesTiago - Morador da comunidade Caminho das FloresRibamar - Morador da comunidade Raízes da PraiaIvoneide - Moradora da comunidade Poço da Draga

Essa mesa foi a segunda promovida pelo Seminário Copa 2014 e Políticas Públi-cas. E como a primeira, extremamente rica. Nosso relato é longo, mas tanto mais é a luta de todas as comunidades que ouvimos com atenção dedicada ne�a noite.

O padrão de segregação que vem sendo adotado para as obras da Copa de 2014 não difere daquele que sempre foi o padrão das políticas públicas da cidade, sendo mais como uma corporificação deste. E se assusta não é senão por ainda, em 2013, não termos repensado métodos de cem anos atrás para construir a cidade de hoje. Ela denuncia: nosso Plano Diretor Participativo de Fortaleza, com adultos 5 anos, ainda não teve nenhuma de suas leis regulamentadas. Ele, que foi ardua-mente construído com ampla discussão e participação popular utilizando instru-mentos do Estatuto da Cidade, foi ignorado. Isso nos apresenta um cenário árido: a voz popular tem tido pouca relevância para os que legislam na Casa do Povo. Esperamos, mas de pé.

Talita fala mais diretamente das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), citando o caso da ZEIS do Lagamar, que já possui um conselho gestor ativo, que segundo a lei do Plano Diretor, teria poder de veto sobre qualquer proposta apresentada para a área da comunidade, mas que, com a Lei Geral da Copa, esse direito se anula para obras relacionadas ao evento.

A mesa convida então cada comunidade ali representada a contar sua hi�ória, suas lutas e vitórias. Há flores crescendo no asfalto. Escutemos!

D. Maria das Graças nos conta sobre as casas do Mucuripe que já começaram a rachar por conta dos tratores que diariamente trabalham nas proximidades da comunidade e não há qualquer tipo de comunicação que explique por quê ou dê algum tipo de alento a essas pessoas. As novas casas que são prometidas estão localizadas próximo ao Conjunto José Walter, a 15 km de onde vivem, longe do mar, base da vida e do trabalho da maioria dessas pessoas que terão de se mudar. Ninguém perguntou se eles queriam ir e eles não querem. Se é pra ter remoção, que seja pra perto de onde já vivem.

Alisson diz que a Copa é uma desculpa para a implantação do VLT e o VLT é uma desculpa para as remoções e explica: O VLT não vai até o Castelão, portanto não é para a Copa, e nem é necessário remover as pessoas pra que ele seja construído. Na sua fala, humaniza e traz para a realidade o que o governo e a grande mídia tem virtualizado e omitido. São pessoas ali, com laços e história. As árvores estão sendo cortadas extensivamente. Um casal de idosos entrou em depressão por conta da ameaça. Faleceram. As casas que vão ficar estão rachando por conta dos tratores

e provavelmente serão também removidas. O VLT e a Copa não passam de desculpas para a valorização especulativa daquelas terras. A área para onde os moradores originais serão removidos não é contemplada pelo VLT.

Nete nos alerta: remover não é só derrubar uma casa, derrubam antes nossas árvores, nossos afetos e vínculos, aquilo que fez dali o nosso lugar. E, eventual-mente, o que sobra é construção, tijolo. Diz também aos desavisados: já temos casas, que eles [governo] deem uma a quem não tem! Querem participar do progresso, não ser excluídos dele. Diz que a Copa que tanto empolgava hoje é um sinal de tristeza. Perdeu-se o futebol, ficaram os entulhos.

Penha conta a sua história: sua família chegou à comunidade do Pio XII nos tempos de sua avó – hoje ela tem cinco netos e sua família permanece na comu-nidade. Quando casou, por falta de recursos para comprar uma casa, construiu a sua no quintal da sogra. Pra Penha, pro Estado, pro mercado imobiliário e pra todo mundo a terra (o lugar, o território) vale mais que a contrução.

Lúcia mora a poucas quadras da Assembleia Legislativa, mas vive a uma distância intransponível das decisões que tem sido tomadas ali dentro, o que ganha uma dimensão mais cruel quando essas decisões versam sobre o seu destino. Lúcia classifica esse distanciamento das comunidades tanto da tomada de decisões quanto dos projetos para a cidade como higienização social. É duro admitir, mas é libertador ter a consciência de que o martelo do juiz derruba casas, árvores, víncu-los, pessoas, destrói o público. É um martelo vândalo, para usar um termo bem contemporâneo.

Cássia vive numa comunidade próxima à linha férrea. Lembra das primeiras casas, feitas com palha de coqueiro, nos tempos em que a principal ameaça eram as fagulhas das "marias fumaça". Hoje, a ameaça que eles sofrem se embasa na acusação de que são invasores, por falta de um documento de propriedade. Só que os acusadores chegaram depois. Bem depois. Cássia então nos convida a pensar. "Quem são os reais invasores?". Diante de uma Constituição que nos deve-ria amparar e que foi conquistada com o esforço popular, o governo e parte da sociedade civil tem ignorado o direito fundamental à dignidade dessas pessoas. Ela conclui "A moradia a gente já tem, o que o governo quer é tirar ela da gente".

João Batista começa a sua fala demonstrando alegria em estar ali. "Vou começar pela parte boa, que é estarmos todos juntos aqui nos conhecendo". Nos provoca a pensar numa nova maneira de se fazer política, mais comprometida com as causas das pessoas e menos com as das empresas. Nos instiga a lutar pelo direito à voz nessas decisões, direito esse legitimado pela nossa força. "A gente passa o dia no sol pra garantir o ar-condicionado deles". Desabafa, ao dizer que sente sua dignidade abalada "eu não tô me sentindo gente, eu tô me sentindo um produto descartável".

Samuel é nosso velho conhecido. Quando ele começa a fala já sabemos que vamos nos emocionar. Ele define a situação como um caso claro de especulação imobiliária. Os moradores das comunidades afetadas lutam pela moradia que já tem e que, aos olhos de alguns governantes, não é digna. "O governo não enxerga pessoas, enxerga casas". Reforça o poder da luta. Sua comunidade é um exemplo vivo: com o auxílio da Universidade, desenvolveram um projeto alternativo que prevê um número mínimo de remoções – das 667 casas que seriam removidas pelo projeto oficial, apenas 22 sairiam no projeto alternativo. Após negociações, esse número aumentou para 51. Também com a assessoria da UFC, descobriram um terreno da prefeitura próximo a comunidade e com espaço o suficiente para reassentar todas as famílias que deveriam ser removidas. Encerra com a denúncia "O Estado tem servido para reprimir o povo, não para proteger".

Tiago fala sobre a pressão que a sua comunidade vem sofrendo: é a única das que serão afetadas pelas obras da copa que está sendo processada pelo Estado. São 35 processos que pressionaram a comunidade a ceder e deixar suas casas. Conta sobre o caso de um senhor que sofre de Alzheimer, cujo máximo de autonomia consiste em caminhar sozinho pelas ruas da comunidade. "Será que ele vai conse-guir andar sozinho no José Walter?".

Ribamar conta o caso de sua comunidade, que não está ameaçada pelas obras da copa, mas por um projeto de reurbanização da praia do futuro. Há um esforço em criar o conselho gestor para a implementação da ZEIS do Serviluz, mas a mesma prefeitura que se reúne com os moradores para a criação de um conselho gestor, demarca as casas que deverão ser removidas. O destino apontado pelo governo é um terreno no Morro da Vitória, onde já existe uma outra comunidade.

Ivoneide vive num dos assentamentos humanos mais antigos da cidade, o Poço da Draga, próximo ao que foi o primeiro porto de Fortaleza. Há 107 anos, a comuni-dade carece de infra estrutura básica, como saneamento. As ameaças de remoção tem se renovado ao longo dos anos, sem qualquer garantia de permanência, uma vez que nunca foi desenvolvido um trabalho de regularização fundiária e, mesmo com tanto tempo de ocupação, legalmente não são donos daquela terra.

>> Lembramos dos urbanistas modernos ao citar quatro funções da cidade: morar, trabalhar, circular e lazer. Pergunta-mos: quantas hoje são possíveis aqui? A violência que nos oprime e enclausura é parte do mesmo pensamento que entende que pessoas são removíveis, que espaços são matéria antes de identidade, construção social e humana. Que o privado de uns deve ser comutado na conta de todos. E, assim, já não moramos, circulamos, divertimos; apenas trabalhamos: para que os uns morem, circulem, divirtam-se. <<

>> Em Fortaleza, mas no Brasil também, vive-se uma política urbana feita por publicitários, em que projetos viram imagens ultrarrealistas [ou seriam ultraimaginárias?]. E nós, arquitetos urbanistas, que tivemos a ilusão de achar que cidade se faz com planejamento, participação, informação e, só depois, com proposição embasada… <<

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O primeiro relato feito pela Talita nos dá uma dimensão de quão longa e resistente tem sido a luta das Comunidades, que enfrentam há 3 anos a possibilidade de remoção para as obras de mobilidade que serão [e estão sendo] realizadas. Ela conta pra gente sobre o Direito à Cidade, que de tão etéreo em nossa cidade, é preciso que recontemos sempre sobre ele para não esquecer o que significa: o direito de viver com dignidade e justiça social na cidade. Fala que, na legislação brasileira, ele representa uma vitória das lutas sociais da década de 1980. O teórico David Harvey o define como o direito de transformar a cidade. Direito esse que, hoje, poucos tem o privilégio de dizer que possuem na quinta cidade mais desigual do mundo. O direito à cidade, dialético, percebemos, só é possível para todos: se uns não tem, toda a cidade dói. E Fortaleza tem doído muito na última década.

As remoções forçadas representam violações de direitos não só para a população diretamente afetada, mas para toda a sociedade, pois violam, dentre outros, o direito à participação, uma vez que os projetos que envolvem remoções normal-mente são divulgados somente quando já estão concluídos ou em fases bem avançadas e a população não é consultada em nenhuma instância; e o direito à informação, quando estas são omitidas e negadas à população e entidades que as venham a requerir junto aos órgãos públicos. Há, inclusive uma série de impre-cisões nos dados que o próprio governo divulga, como é o caso do número de remoções devido às obras do VLT, que flutua entre 1.700 a 5.000 famílias afetadas.

O padrão de segregação que vem sendo adotado para as obras da Copa de 2014 não difere daquele que sempre foi o padrão das políticas públicas da cidade, sendo mais como uma corporificação deste. E se assusta não é senão por ainda, em 2013, não termos repensado métodos de cem anos atrás para construir a cidade de hoje. Ela denuncia: nosso Plano Diretor Participativo de Fortaleza, com adultos 5 anos, ainda não teve nenhuma de suas leis regulamentadas. Ele, que foi ardua-mente construído com ampla discussão e participação popular utilizando instru-mentos do Estatuto da Cidade, foi ignorado. Isso nos apresenta um cenário árido: a voz popular tem tido pouca relevância para os que legislam na Casa do Povo. Esperamos, mas de pé.

Talita fala mais diretamente das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), citando o caso da ZEIS do Lagamar, que já possui um conselho gestor ativo, que segundo a lei do Plano Diretor, teria poder de veto sobre qualquer proposta apresentada para a área da comunidade, mas que, com a Lei Geral da Copa, esse direito se anula para obras relacionadas ao evento.

A mesa convida então cada comunidade ali representada a contar sua hi�ória, suas lutas e vitórias. Há flores crescendo no asfalto. Escutemos!

D. Maria das Graças nos conta sobre as casas do Mucuripe que já começaram a rachar por conta dos tratores que diariamente trabalham nas proximidades da comunidade e não há qualquer tipo de comunicação que explique por quê ou dê algum tipo de alento a essas pessoas. As novas casas que são prometidas estão localizadas próximo ao Conjunto José Walter, a 15 km de onde vivem, longe do mar, base da vida e do trabalho da maioria dessas pessoas que terão de se mudar. Ninguém perguntou se eles queriam ir e eles não querem. Se é pra ter remoção, que seja pra perto de onde já vivem.

Alisson diz que a Copa é uma desculpa para a implantação do VLT e o VLT é uma desculpa para as remoções e explica: O VLT não vai até o Castelão, portanto não é para a Copa, e nem é necessário remover as pessoas pra que ele seja construído. Na sua fala, humaniza e traz para a realidade o que o governo e a grande mídia tem virtualizado e omitido. São pessoas ali, com laços e história. As árvores estão sendo cortadas extensivamente. Um casal de idosos entrou em depressão por conta da ameaça. Faleceram. As casas que vão ficar estão rachando por conta dos tratores

e provavelmente serão também removidas. O VLT e a Copa não passam de desculpas para a valorização especulativa daquelas terras. A área para onde os moradores originais serão removidos não é contemplada pelo VLT.

Nete nos alerta: remover não é só derrubar uma casa, derrubam antes nossas árvores, nossos afetos e vínculos, aquilo que fez dali o nosso lugar. E, eventual-mente, o que sobra é construção, tijolo. Diz também aos desavisados: já temos casas, que eles [governo] deem uma a quem não tem! Querem participar do progresso, não ser excluídos dele. Diz que a Copa que tanto empolgava hoje é um sinal de tristeza. Perdeu-se o futebol, ficaram os entulhos.

Penha conta a sua história: sua família chegou à comunidade do Pio XII nos tempos de sua avó – hoje ela tem cinco netos e sua família permanece na comu-nidade. Quando casou, por falta de recursos para comprar uma casa, construiu a sua no quintal da sogra. Pra Penha, pro Estado, pro mercado imobiliário e pra todo mundo a terra (o lugar, o território) vale mais que a contrução.

Lúcia mora a poucas quadras da Assembleia Legislativa, mas vive a uma distância intransponível das decisões que tem sido tomadas ali dentro, o que ganha uma dimensão mais cruel quando essas decisões versam sobre o seu destino. Lúcia classifica esse distanciamento das comunidades tanto da tomada de decisões quanto dos projetos para a cidade como higienização social. É duro admitir, mas é libertador ter a consciência de que o martelo do juiz derruba casas, árvores, víncu-los, pessoas, destrói o público. É um martelo vândalo, para usar um termo bem contemporâneo.

Cássia vive numa comunidade próxima à linha férrea. Lembra das primeiras casas, feitas com palha de coqueiro, nos tempos em que a principal ameaça eram as fagulhas das "marias fumaça". Hoje, a ameaça que eles sofrem se embasa na acusação de que são invasores, por falta de um documento de propriedade. Só que os acusadores chegaram depois. Bem depois. Cássia então nos convida a pensar. "Quem são os reais invasores?". Diante de uma Constituição que nos deve-ria amparar e que foi conquistada com o esforço popular, o governo e parte da sociedade civil tem ignorado o direito fundamental à dignidade dessas pessoas. Ela conclui "A moradia a gente já tem, o que o governo quer é tirar ela da gente".

João Batista começa a sua fala demonstrando alegria em estar ali. "Vou começar pela parte boa, que é estarmos todos juntos aqui nos conhecendo". Nos provoca a pensar numa nova maneira de se fazer política, mais comprometida com as causas das pessoas e menos com as das empresas. Nos instiga a lutar pelo direito à voz nessas decisões, direito esse legitimado pela nossa força. "A gente passa o dia no sol pra garantir o ar-condicionado deles". Desabafa, ao dizer que sente sua dignidade abalada "eu não tô me sentindo gente, eu tô me sentindo um produto descartável".

Samuel é nosso velho conhecido. Quando ele começa a fala já sabemos que vamos nos emocionar. Ele define a situação como um caso claro de especulação imobiliária. Os moradores das comunidades afetadas lutam pela moradia que já tem e que, aos olhos de alguns governantes, não é digna. "O governo não enxerga pessoas, enxerga casas". Reforça o poder da luta. Sua comunidade é um exemplo vivo: com o auxílio da Universidade, desenvolveram um projeto alternativo que prevê um número mínimo de remoções – das 667 casas que seriam removidas pelo projeto oficial, apenas 22 sairiam no projeto alternativo. Após negociações, esse número aumentou para 51. Também com a assessoria da UFC, descobriram um terreno da prefeitura próximo a comunidade e com espaço o suficiente para reassentar todas as famílias que deveriam ser removidas. Encerra com a denúncia "O Estado tem servido para reprimir o povo, não para proteger".

Tiago fala sobre a pressão que a sua comunidade vem sofrendo: é a única das que serão afetadas pelas obras da copa que está sendo processada pelo Estado. São 35 processos que pressionaram a comunidade a ceder e deixar suas casas. Conta sobre o caso de um senhor que sofre de Alzheimer, cujo máximo de autonomia consiste em caminhar sozinho pelas ruas da comunidade. "Será que ele vai conse-guir andar sozinho no José Walter?".

Ribamar conta o caso de sua comunidade, que não está ameaçada pelas obras da copa, mas por um projeto de reurbanização da praia do futuro. Há um esforço em criar o conselho gestor para a implementação da ZEIS do Serviluz, mas a mesma prefeitura que se reúne com os moradores para a criação de um conselho gestor, demarca as casas que deverão ser removidas. O destino apontado pelo governo é um terreno no Morro da Vitória, onde já existe uma outra comunidade.

Ivoneide vive num dos assentamentos humanos mais antigos da cidade, o Poço da Draga, próximo ao que foi o primeiro porto de Fortaleza. Há 107 anos, a comuni-dade carece de infra estrutura básica, como saneamento. As ameaças de remoção tem se renovado ao longo dos anos, sem qualquer garantia de permanência, uma vez que nunca foi desenvolvido um trabalho de regularização fundiária e, mesmo com tanto tempo de ocupação, legalmente não são donos daquela terra.

>> Então é de interesse social até que um interesse privado apareça? <<

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O primeiro relato feito pela Talita nos dá uma dimensão de quão longa e resistente tem sido a luta das Comunidades, que enfrentam há 3 anos a possibilidade de remoção para as obras de mobilidade que serão [e estão sendo] realizadas. Ela conta pra gente sobre o Direito à Cidade, que de tão etéreo em nossa cidade, é preciso que recontemos sempre sobre ele para não esquecer o que significa: o direito de viver com dignidade e justiça social na cidade. Fala que, na legislação brasileira, ele representa uma vitória das lutas sociais da década de 1980. O teórico David Harvey o define como o direito de transformar a cidade. Direito esse que, hoje, poucos tem o privilégio de dizer que possuem na quinta cidade mais desigual do mundo. O direito à cidade, dialético, percebemos, só é possível para todos: se uns não tem, toda a cidade dói. E Fortaleza tem doído muito na última década.

As remoções forçadas representam violações de direitos não só para a população diretamente afetada, mas para toda a sociedade, pois violam, dentre outros, o direito à participação, uma vez que os projetos que envolvem remoções normal-mente são divulgados somente quando já estão concluídos ou em fases bem avançadas e a população não é consultada em nenhuma instância; e o direito à informação, quando estas são omitidas e negadas à população e entidades que as venham a requerir junto aos órgãos públicos. Há, inclusive uma série de impre-cisões nos dados que o próprio governo divulga, como é o caso do número de remoções devido às obras do VLT, que flutua entre 1.700 a 5.000 famílias afetadas.

O padrão de segregação que vem sendo adotado para as obras da Copa de 2014 não difere daquele que sempre foi o padrão das políticas públicas da cidade, sendo mais como uma corporificação deste. E se assusta não é senão por ainda, em 2013, não termos repensado métodos de cem anos atrás para construir a cidade de hoje. Ela denuncia: nosso Plano Diretor Participativo de Fortaleza, com adultos 5 anos, ainda não teve nenhuma de suas leis regulamentadas. Ele, que foi ardua-mente construído com ampla discussão e participação popular utilizando instru-mentos do Estatuto da Cidade, foi ignorado. Isso nos apresenta um cenário árido: a voz popular tem tido pouca relevância para os que legislam na Casa do Povo. Esperamos, mas de pé.

Talita fala mais diretamente das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), citando o caso da ZEIS do Lagamar, que já possui um conselho gestor ativo, que segundo a lei do Plano Diretor, teria poder de veto sobre qualquer proposta apresentada para a área da comunidade, mas que, com a Lei Geral da Copa, esse direito se anula para obras relacionadas ao evento.

A mesa convida então cada comunidade ali representada a contar sua hi�ória, suas lutas e vitórias. Há flores crescendo no asfalto. Escutemos!

D. Maria das Graças nos conta sobre as casas do Mucuripe que já começaram a rachar por conta dos tratores que diariamente trabalham nas proximidades da comunidade e não há qualquer tipo de comunicação que explique por quê ou dê algum tipo de alento a essas pessoas. As novas casas que são prometidas estão localizadas próximo ao Conjunto José Walter, a 15 km de onde vivem, longe do mar, base da vida e do trabalho da maioria dessas pessoas que terão de se mudar. Ninguém perguntou se eles queriam ir e eles não querem. Se é pra ter remoção, que seja pra perto de onde já vivem.

Alisson diz que a Copa é uma desculpa para a implantação do VLT e o VLT é uma desculpa para as remoções e explica: O VLT não vai até o Castelão, portanto não é para a Copa, e nem é necessário remover as pessoas pra que ele seja construído. Na sua fala, humaniza e traz para a realidade o que o governo e a grande mídia tem virtualizado e omitido. São pessoas ali, com laços e história. As árvores estão sendo cortadas extensivamente. Um casal de idosos entrou em depressão por conta da ameaça. Faleceram. As casas que vão ficar estão rachando por conta dos tratores

e provavelmente serão também removidas. O VLT e a Copa não passam de desculpas para a valorização especulativa daquelas terras. A área para onde os moradores originais serão removidos não é contemplada pelo VLT.

Nete nos alerta: remover não é só derrubar uma casa, derrubam antes nossas árvores, nossos afetos e vínculos, aquilo que fez dali o nosso lugar. E, eventual-mente, o que sobra é construção, tijolo. Diz também aos desavisados: já temos casas, que eles [governo] deem uma a quem não tem! Querem participar do progresso, não ser excluídos dele. Diz que a Copa que tanto empolgava hoje é um sinal de tristeza. Perdeu-se o futebol, ficaram os entulhos.

Penha conta a sua história: sua família chegou à comunidade do Pio XII nos tempos de sua avó – hoje ela tem cinco netos e sua família permanece na comu-nidade. Quando casou, por falta de recursos para comprar uma casa, construiu a sua no quintal da sogra. Pra Penha, pro Estado, pro mercado imobiliário e pra todo mundo a terra (o lugar, o território) vale mais que a contrução.

Lúcia mora a poucas quadras da Assembleia Legislativa, mas vive a uma distância intransponível das decisões que tem sido tomadas ali dentro, o que ganha uma dimensão mais cruel quando essas decisões versam sobre o seu destino. Lúcia classifica esse distanciamento das comunidades tanto da tomada de decisões quanto dos projetos para a cidade como higienização social. É duro admitir, mas é libertador ter a consciência de que o martelo do juiz derruba casas, árvores, víncu-los, pessoas, destrói o público. É um martelo vândalo, para usar um termo bem contemporâneo.

Cássia vive numa comunidade próxima à linha férrea. Lembra das primeiras casas, feitas com palha de coqueiro, nos tempos em que a principal ameaça eram as fagulhas das "marias fumaça". Hoje, a ameaça que eles sofrem se embasa na acusação de que são invasores, por falta de um documento de propriedade. Só que os acusadores chegaram depois. Bem depois. Cássia então nos convida a pensar. "Quem são os reais invasores?". Diante de uma Constituição que nos deve-ria amparar e que foi conquistada com o esforço popular, o governo e parte da sociedade civil tem ignorado o direito fundamental à dignidade dessas pessoas. Ela conclui "A moradia a gente já tem, o que o governo quer é tirar ela da gente".

João Batista começa a sua fala demonstrando alegria em estar ali. "Vou começar pela parte boa, que é estarmos todos juntos aqui nos conhecendo". Nos provoca a pensar numa nova maneira de se fazer política, mais comprometida com as causas das pessoas e menos com as das empresas. Nos instiga a lutar pelo direito à voz nessas decisões, direito esse legitimado pela nossa força. "A gente passa o dia no sol pra garantir o ar-condicionado deles". Desabafa, ao dizer que sente sua dignidade abalada "eu não tô me sentindo gente, eu tô me sentindo um produto descartável".

Samuel é nosso velho conhecido. Quando ele começa a fala já sabemos que vamos nos emocionar. Ele define a situação como um caso claro de especulação imobiliária. Os moradores das comunidades afetadas lutam pela moradia que já tem e que, aos olhos de alguns governantes, não é digna. "O governo não enxerga pessoas, enxerga casas". Reforça o poder da luta. Sua comunidade é um exemplo vivo: com o auxílio da Universidade, desenvolveram um projeto alternativo que prevê um número mínimo de remoções – das 667 casas que seriam removidas pelo projeto oficial, apenas 22 sairiam no projeto alternativo. Após negociações, esse número aumentou para 51. Também com a assessoria da UFC, descobriram um terreno da prefeitura próximo a comunidade e com espaço o suficiente para reassentar todas as famílias que deveriam ser removidas. Encerra com a denúncia "O Estado tem servido para reprimir o povo, não para proteger".

Tiago fala sobre a pressão que a sua comunidade vem sofrendo: é a única das que serão afetadas pelas obras da copa que está sendo processada pelo Estado. São 35 processos que pressionaram a comunidade a ceder e deixar suas casas. Conta sobre o caso de um senhor que sofre de Alzheimer, cujo máximo de autonomia consiste em caminhar sozinho pelas ruas da comunidade. "Será que ele vai conse-guir andar sozinho no José Walter?".

Ribamar conta o caso de sua comunidade, que não está ameaçada pelas obras da copa, mas por um projeto de reurbanização da praia do futuro. Há um esforço em criar o conselho gestor para a implementação da ZEIS do Serviluz, mas a mesma prefeitura que se reúne com os moradores para a criação de um conselho gestor, demarca as casas que deverão ser removidas. O destino apontado pelo governo é um terreno no Morro da Vitória, onde já existe uma outra comunidade.

Ivoneide vive num dos assentamentos humanos mais antigos da cidade, o Poço da Draga, próximo ao que foi o primeiro porto de Fortaleza. Há 107 anos, a comuni-dade carece de infra estrutura básica, como saneamento. As ameaças de remoção tem se renovado ao longo dos anos, sem qualquer garantia de permanência, uma vez que nunca foi desenvolvido um trabalho de regularização fundiária e, mesmo com tanto tempo de ocupação, legalmente não são donos daquela terra.

escritório modelo de arquitetura e urbanismo - ufc

Page 4: Mapa mesa ii   canto ufc

MAPA De conflitos territoriais em fortalezaem construção*

Limite Bairros Fortaleza

Comunidade Mucuripe1

Comunidade Jangadeiros2

Comunidade Rio Pardo3

Comunidade Dom Oscar Romero4

Comunidade Trilhos do Senhor5

Comunidade João XXIII6

Comunidade Pio XII7

Comunidade Lauro Vieira Chaves8

Comunidade Caminho das Flores9

Comunidade Raízes da Praia11

Comunidade Poço da Draga10

Começo e fim de linha do VLT

Conj. HabitacionalCidade Jardim

Acquario

Projeto de urbanizaçãoAldeia da Praia

LEGENDA

centro

pref. josé walter

parangaba

cais doporto2

76

89

1

5

34

15km

10

N11

*as comunidades afetadas pela obra do VLT [gov. estadual] totalizam 22, das quais estão representadas no mapa apenas as 9 presentes na do Seminário relatado; ademais, as comunidades Poço da Draga, afetada pela construção do Acquario [gov. estadual]; e Raízes da Praia, afetada pelo projeto Aldeia da Praia gov. municipal].