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    O ponto de vista no filme documentrio

    Manuela PenafriaUniversidade da Beira Interior

    2001

    ndice1 O documentrio cinema 22 Relao documentarista - intervenien-

    tes 73 Bibliografia 9

    Introduo

    A partir do conceito de "ponto de vista",

    este texto ir discutir uma questo essencialna produo e realizao de documentrios:a relao que o documentarista estabelececom os intervenientes do seu filme. O do-cumentrio ocupa uma posio ambgua epolmica na histria, teoria e crtica do ci-nema. Por um lado, recorre a procedimen-tos prprios do cinema (escolha de planos,preocupaes estticas de enquadramento,iluminao, montagem, separao das fasesde pr-produo, produo, ps-produo,etc.). Por outro lado, enquanto espectadores,exigimos que um documentrio, por man-ter uma relao de grande proximidade coma realidade, deva respeitar um determinadoconjunto de convenes: no direco de ac-tores, uso de cenrios naturais, imagens dearquivo, cmera ao ombro, etc. Estes re-cursos constituem o garante da autenticidadedo representado. Ora, estes recursos que lhe

    so prprios, no lhe so exclusivos. Nadaimpede que um realizador de fico os uti-lize. Os filmes de Lars von Trier realizadosno mbito do movimento Dogma, utilizamalgumas tcnicas prprias do documentrio,como por exemplo, a cmera ao ombro. Poroutro lado, alguns recursos que partida no suposto o documentrio utilizar, podemcontribuir para um esclarecimento e aproxi-mao dos espectadores com a realidade; a

    realidade que tanto se espera que um docu-mentrio nos transmita. Por exemplo, emErrol Morris, a re-criao de acontecimen-tos tem o mesmo valor, est ao mesmo nvel,que as imagens de arquivo (que transmitemprova de autenticidade).Um documentrio pouco se afasta dos pro-cedimentos de produo dos filmes de fic-o. No entanto, consensual que o docu-mentrio no recorre "direco de actores",

    prpria dos filmes de fico. A natureza darelao que um realizador de fico estabe-lece com os actores diferente da naturezada relao que um documentarista estabelececom os "actores"do seu filme. Mais correcta-mente, estes ltimos so designados por in-tervenientes. Um realizador de fico dirigeos actores, ele que constri as personagensque os actores interpretam. ele que decide

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    como devem expressar-se. Um documenta-rista no dirige actores, no constri perso-nagens (pode sim, transmitir uma determi-nada imagem das suas personagens - inter-venientes). O texto que se segue procura dis-cutir a natureza da relao documentarista-intervenientes.

    1 O documentrio cinema

    Apesar de ser sempre estimulante discutir as

    diferenas e semelhanas entre um filme defico e um documentrio (mesmo quando partida se sabe que no se chega a conclusonenhuma) tenho como prioridade centrar-meno campo da produo/realizao de docu-mentrios, independentemente do que hajade diferente ou semelhante com a fico.Um documentrio pauta-se por uma estru-tura dramtica e narrativa, que caracteriza ocinema narrativo. A estrutura dramtica

    constituda por personagens, espao da ac-o, tempo da aco e conflito. A estru-tura narrativa implica saber contar uma his-tria; organizar a estrutura dramtica em ce-nas e sequncias, que se sucedem de modolgico. A suportar tudo isto deve estar umaideia a transmitir. Essa ideia a transmitirconstitui a viso do realizador sobre deter-minado assunto. Consideraes acerca dopresente ou do passado so comuns nos do-cumentrios. No entanto, tambm poss-vel e legtimo manifestar consideraes so-bre o futuro, por exemplo, a partir do nossoconhecimento sobre a I e II Guerras Mun-diais colocar a hiptese do que aconteceriase se repetisse uma guerra mundial. Tendoem conta que o ponto de vista de um plano entendido como representando uma visoindividual, seja a do documentarista, seja ade um interveniente, o ponto de vista deter-

    mina com quem o espectador se identifica eo modo como o espectador l os planos (e ofilme) e interpreta a aco. travs do usoda cmera de filmar e da montagem que odocumentarista define qual o ponto de vistaa transmitir e, consequentemente, qual o n-vel de envolvimento do espectador. Duranteum plano longo ou um plano sequncia, oponto de vista pode alterar-se mas, em ge-ral, podemos dizer que cada plano expressaum determinado ponto de vista. Por tal, os

    espectadores s tm acesso a um ponto devista de cada vez. Num filme narrativo podeoptar-se por um (ou mais) dos seguintes pon-tos de vista:

    Ponto de vista na primeira pessoa - os es-pectadores vm os acontecimentos atravsdos olhos de uma personagem. Esta tcnica muito usada para efeitos de suspense emque necessrio reter informao. difcilutilizar este ponto de vista, uma vez que o

    espectador no v as reaces desse mesmopersonagem.Ponto de vista na terceira pessoa - trata-

    se da aco vista por um observador ideal,muito comum nos filmes de Hollywood. Ra-ramente usado como o nico ponto devista.

    Ponto de vista omnisciente - para que umfilme apresente este ponto de vista necess-rio que sejam dadas indicaes ao espectadorsobre o que as personagens pensam. Nes-tas situaes vulgar recorrer-se voz emoff (tambm denominada voice-over). Aqui,pode cair-se facilmente na explicao, o queno muito inventivo cinematograficamente.

    Ponto de vista ambguo - consiste em al-ternar entre um ponto de vista na terceirapessoa e um ponto de vista na primeira pes-soa (plano subjectivo). Isto pode ser feito

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    dentro de um plano ou com vrios planos,recorrendo montagem.

    A escolha de um ponto de vista umaescolha esttica implica, necessariamente,determinadas escolhas cinematogrficas emdetrimento de outras (seleccionar determi-nado tipo de planos em detrimento de ou-tros - por exemplo, grandes planos, - op-tar por determinadas tcnicas de montagem- por exemplo, montagem paralela - em de-trimento de outras). Cada seleco que se

    faz a expresso de um ponto de vista, quero documentarista esteja disso consciente ouno. Cada plano oferece um determinadonvel de envolvimento, quer isso tenha sidoou no deliberadamente controlado pelo do-cumentarista. Convm salientar que no suposto um filme usar, constantemente, de-terminado ponto de vista. O essencial odocumentarista definir qual o ponto de vistapredominante no seu filme. O nvel de en-

    volvimento/identificao do espectador de-pende do modo como o ponto de vista se-leccionado articulado com a linguagem ci-nematogrfica. Esse nvel de envolvimentopode ser obtido de dois modos: atravs deum controlo grfico (graphic control) e atra-vs de um controlo narrativo (narrative con-trol). (cf. Steven Katz, 1991). O primeiro dizrespeito s caractersticas formais dos pla-nos (composio dos planos - modo comoos elementos esto organizados dentro de umplano, por exemplo, em primeiro plano ouem segundo plano; grandeza dos planos - porexemplo, grande plano, plano mdio; enqua-dramento - posio dos elementos em rela-o s margens do plano - por exemplo, cen-trado, descentrado; iluminao - que parteou partes do plano tm mais ou menos luz;etc.). S a ttulo de exemplo, se se utilizargrandes planos apenas com um dos interve-

    nientes do filme, favorece-se um maior en-volvimento do espectador para com esse in-terveniente. Por seu lado, o controlo narra-tivo depende essencialmente da montagem,do ritmo com que se sucedem os planos, dastcnicas de montagem, etc. Por exemplo, seum interveniente permanecer mais tempo noecr, com ele que o espectador mais se en-volve.

    Estes dois modos, parecem dizer mais res-peito imagem que ao som, no entanto,

    este um elemento importante que podeser trabalhado para criar/reforar determi-nado ponto de vista, atravs, por exemplo,da criao de um som especfico para de-terminado interveniente no filme. poss-vel estabelecer uma correspondncia entreo controlo grfico e o controlo narrativo eas fases de produo de um documentrio:pr-produo (pesquisa e desenvolvimento);produo (filmagens); ps-produo (mon-

    tagem). O controlo grfico est presentenas primeiras duas fases e o controlo narra-tivo na ltima fase. Apesar de ser possvelsepar-los, o controlo grfico deve ser traba-lhado em articulao com o controlo narra-tivo. A pr-produo uma fase de prepara-o para as filmagens. Esta fase caracteriza-se por uma pesquisa e desenvolvimento dotema/assunto a tratar. No h regras a se-guir, aqui trata-se de justificar o interesse deum filme. Assim, h que definir a motiva-o, ou seja, o documentarista deve, antes demais, interrogar-se quanto s razes por quequer fazer determinado filme, definir a abor-dagem ao tema, recolher informao, fazer acaracterizao e seleco dos locais a filmar,a caracterizao dos intervenientes ("perso-nagens"), definir a estrutura do filme, tipo deplanos, etc. Embora no seja regra, o maisdas vezes, esta fase dependente do que o do-

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    cumentarista encontra in loco. Antecipar de-terminados acontecimentos uma tarefa im-possvel, pois os mesmos so por naturezaimprevisveis. Esta situao pode implicarque se altere ou se reformule o que inici-almente estava previsto apresentar no filme.Mesmo quando se pretende partir desco-berta do mundo, entendo que necessria al-guma preparao anterior. Entendo que s possvel distinguir entre o que interes-sante filmar do que no o , se se tiver pen-

    sado sobre o assunto anteriormente. Ou seja,a preparao facilita a tomada de decisesimediatas perante situaes imprevistas. Ex-cepto para documentrios realizados especi-ficamente para televiso, dificilmente se es-crevem guies. Frederick Wiseman dissoexemplo. O seu mtodo igual em todosos filmes. Antes das filmagens faz pesquisadurante cerca de um dia, no local onde irodecorrer as mesmas iro decorrer (no caso,

    em instituies ou locais pblicos america-nos). Robert Flaherty e Joris Ivens so ou-tro exemplo, ambos passavam algum tempoapenas a observar as pessoas antes de inicia-rem as filmagens. Escrever um guio redu-zir a um j sabido o prprio filme. No docu-mentrio, essa situao invivel; por exem-plo, os dilogos, no podem ser previamenteescritos, no so previsveis, e, por tal, nopodem ser escritos com antecedncia. poresta razo que vulgar dizer-se que um do-cumentrio o argumento encontrado. Ditode outro modo, o que o documentarista en-contra in loco, ou seja, contm em si o seuprprio guio e suposto o documentaristaestar atento a isso. O documentarista substi-tui o guio por uma investigao de campo,por um bloco de notas. Este percurso pressu-pe partida uma liberdade que dificilmentese encontra em qualquer outro filme. Por ve-

    zes, um documentrio construdo ao longodo processo da sua produo. A prepara-o ou "pesquisa e desenvolvimento", maisno que a definio clara das intenes dodocumentarista, da abordagem ao tema, daforma como pretende abordar os locais e aspessoas a filmar. No documentrio verifica-se diversidade ou, pelo menos, a possibili-dade de uma grande diversidade temtica.As temticas que merecem ou tm merecidoa ateno dos documentaristas, vo desde as

    que dizem respeito vida animal at aos ta-bus sociais. Os nicos constrangimentos sua possibilidade de diversidade, so-lhe ex-teriores, uma vez que no existe, por exem-plo, a obrigatoriedade de actualidade que anotcia exige. Em certos momentos, h te-mas que dificilmente conseguem ser tratadoscomo, por exemplo, os que envolvem escn-dalos polticos. A diversidade advm da di-versidade e complexidade do nosso prprio

    mundo. E se, por qualquer motivo, no sefilma um acontecimento no momento em queo mesmo decorreu ou habitualmente decorre,usam-se imagens de arquivo ou, ento, faz-seuso da reconstruo. Tal uso foi legitimadopela escola de John Grierson, criador e figuraemblemtica do primeiro movimento docu-mentarista, na Gr-Bretanha (anos 30). Nasimagens de arquivo o ponto de vista no foi,obviamente, escolhido pelo documentaristamas, integrar essas imagens implica uma se-leco, o que permite afirmar que essas mes-mas imagens se adequam ao filme que se esta realizar. O momento das filmagens pro-priamente ditas extremamente importante,no s porque aqui que se estreita a rela-o documentarista-intervenientes mas, tam-bm, porque o material recolhido decisivopara o filme final. O momento em que seliga e em que se desliga a cmera de filmar

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    condiciona a fase seguinte - a ps-produo.Cada plano apresenta um determinado pontode vista, quer o documentarista tenha dissoconscincia ou no. Neste sentido, impor-tante que o documentarista defina qual o n-vel de envolvimento que procura para um de-terminado momento. Cada plano deve serpensado na sua especificidade e em relaocom o todo do filme. Ou seja, necess-rio articular o controlo grfico com o con-trolo narrativo. A procura de espontaneidade

    por parte dos intervenientes no filme colocaa questo, muitas vezes discutida, de a c-mera de filmar alterar o comportamento dosintervenientes do filme. Ora, os interveni-entes no so actores, por tal no poss-vel alterarem completamente o seu compor-tamento. A cmera no um mecanismode alterao de comportamentos; a sua pre-sena torna-se, ao fim de algum tempo, ummecanismo que facilita a expresso de cada

    interveniente. Por um lado, essa facilidadederiva da relao de confiana que o docu-mentarista estabelece com os intervenientese, por outro lado, pelo facto de as pessoasestarem de tal modo envolvidas em determi-nada situao que tendem a esquecer a pre-sena da cmera. Ou ainda, pelo facto deas pessoas verem na cmera um meio quelhes permite ter "voz". O registo de ima-gens e sons do mundo no reflecte, por sis, o valor e interesse do documentrio e,embora condicione, no determina a defini-o do ponto de vista para um filme. Sa organizao/ligao que se cria entre es-sas imagens e sons o momento determi-nante para o ponto de vista. O documenta-rista organiza diversos elementos: entrevis-tas, som ambiente, legendas, msica, ima-gens filmadas in loco, imagens de arquivo,reconstrues, etc. A sucesso de imagens

    implica uma interpretao por parte do do-cumentarista mediante a escolha de tcnicasde montagem. Mesmo quando a interpreta-o do documentarista se esconde por detrsde convenes (como o plano-sequncia) oque se torna patente que essa sua escolharesulta da convico de que a mesma me-rece a aceitao de todos. A sucesso dasimagens e sons tem como linha orientadorao ponto de vista adoptado e encontra na cri-atividade do documentarista o seu principal

    motor. ao seleccionar e combinar as ima-gens e sons registados in loco que o docu-mentarista se expressa. Ao proceder assim,apresenta-nos um ponto de vista sobre deter-minado assunto. Para alm disso, cria umainterpretao que se manifesta pela maior oumenor criatividade que imprime sucessodos elementos que o filme integra. A rela-o contedo-forma (ou seja, o assunto abor-dado pelo filme e o modo como abordado)

    deve ser um todo coerente. O importante no separar o contedo da forma. Neste sen-tido, os melhores documentrios sero aque-les cuja forma se interliga de tal modo com ocontedo, que quase impossvel pensar umsem o outro. Para cada ponto de vista, exis-tir, eventualmente, uma forma que deve serencontrada, qual o documentarista acedepelo uso criativo da linguagem cinematogr-fica. Esta sua autonomia no exclui o factode que a escolha da forma do filme umaopo que depende de vrios condicionalis-mos: sociais, econmicos, culturais, polti-cos, tcnicos, etc. Apesar disso, podemosafirmar que no documentrio a relao en-tre a forma e contedo continuamente cri-ada e recriada. O documentarista tem (secolocarmos de lado constrangimentos essen-cialmente polticos ou econmicos) a possi-bilidade de trabalhar e explorar essa relao

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    forma-contedo. O seu ponto de partida, ouseja, a "contingncia do real", no uma li-mitao. Pelo contrrio, uma fonte ines-gotvel de contedos e formas. So essasformas que impregnadas pela criatividade dodocumentarista fornecem ao documentriouma vida prpria e uma especificidade espe-cial. O nico limite a sua prpria criati-vidade na e pela qual encontra a forma ade-quada manifestao de determinado pontode vista, a respeito de determinado tema.

    Esta questo no se coloca, ou, pelo me-nos, coloca-se de maneira menos acentuada,quando o filme a realizar um trabalho en-comendado. Nesta situao, o documenta-rista vulnervel ao apelido de "propagan-dista". Mas, se o lado propagandstico do do-cumentrio pressupe o objectivo ltimo detransmitir um ponto de vista sobre o mundoe levar a audincia a partilhar esse mesmoponto de vista, todo o documentrio, alis,

    toda a comunicao, propaganda. De qual-quer modo, o documentrio deve ser vistocomo um modo pouco propagandstico. Afico seria muito mais propagandstica, poisa sua mensagem recebida como algo di-ferente: entretenimento. Em contrapartida,o documentrio assume-se como muito maisinterventivo. Em muitas situaes, a ficofunciona melhor que o documentrio. Porexemplo, a tomada de conscincia da doenaSIDA mais facilitada pelo desvio da fico;esta facilita mais a identificao e a projec-o que o testemunho "nu e cru"de pessoasque vivem essa situao. Enquanto conceitomais abrangente, o ponto de vista permite-nos falar da leitura ou viso que determinadofilme, no seu todo, nos apresenta sobre de-terminado assunto, no caso (do document-rio) sobre determinada realidade. A visode um realizador sobre determinado assunto

    manifesta-se ento, de modo formal, ou seja,pela utilizao da linguagem cinematogr-fica. Assim, o espectador poder interpre-tar o filme atravs do olhar do documenta-rista e aperceber-se de que determinada rea-lidade pode ser vista de modo diferente. En-quanto figura o documentarista uma refe-rncia para o documentarismo. O documen-tarista a base em que se subsume o pr-prio documentrio. Em todas as fases de pro-duo -lhe exigida uma grande interveno.

    Pelas suas caractersticas, a produo de do-cumentrios conduzida por equipas reduzi-das. muito usual encontrarmos filmes ondeo realizador tambm produtor, cmera e,em especial, tambm editor. Em suma, o documentarista que com as suas prpriasmotivaes torna patente que, no s o mo-vimento dentro dos planos que importantemas, tambm, o movimento entre os pla-nos, ou seja, a passagem de movimento para

    movimento, que a montagem torna possvel.Embora estes dois movimentos estejam sem-pre presentes em todo e qualquer filme, possvel dar mais relevncia a um em detri-mento do outro. No caso, cabe a cada docu-mentarista estabelecer essa prioridade. Umdocumentrio uma obra pessoal e implicauma necessidade da parte do documentaristaem expressar algo, em dizer algo sobre de-terminado assunto. No se trata de egosmoou narcisismo. Documentaristas que fazemfilmes pessoais, ou seja, sobre eles prprios,sobre temas que a eles lhe interessam ou so-bre temas sobre os quais lhes interessa apre-sentar a sua viso, esto, obviamente, a apre-sentar a sua viso pessoal. Antes de mais,esto a contribuir para o desenvolvimento dognero. Cada filme contribui para o cumpri-mento de uma das principais funes do do-cumentarismo: promover a discusso sobre

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    o nosso prprio mundo; confrontarmo-nosou distanciarmo-nos de ns prprios. Esto,tambm, a incentivar o dilogo sobre dife-rentes experincias, sentidas com maior oumenor intensidade.

    Apresentar novos modos de ver o mundoou de mostrar aquilo que, por qualquer difi-culdade ou condicionalismos diversos, mui-tos no vm ou lhes escapa, ento a princi-pal tarefa de um documentarista. Estes mui-tos a que me refiro, podem ser os especta-

    dores ou os prprios intervenientes de umfilme. O ponto de vista implica que o do-cumentarista sente necessidade em expressaralgo pessoal. precisamente sobre a visopessoal que cada filme nos apresenta que aquesto da sua relao com os intervenientesdo filme se coloca com mais pertinncia.

    2 Relao documentarista -intervenientes

    O documentrio , como vimos, uma obrapessoal. O documentarista no deve ser vistoapenas como um meio para transmitir de-terminada realidade. A partir do momentoem que se decide fazer um documentrio,isso constitui j uma interveno na reali-dade. pelo facto de seleccionar e exercer oseu ponto de vista sobre um determinado as-sunto que um filme nunca uma mera repro-

    duo do mundo. impossvel ao documen-tarista apagar-se. Ele existe no mundo e in-terage com os outros, inegavelmente. O fimltimo apresentar um ponto de vista sobreo mundo e, o mais das vezes, mostrar o quesempre esteve presente naquilo para ondeolhamos mas que nunca vimos. O documen-trio tem por funo revelar-nos (aos inter-venientes e aos espectadores) o mundo em

    que vivemos. Acima de tudo, um documen-trio transmite-nos no a realidade (mesmonos louvveis esforos em transmitir a reali-dade "tal qual") mas, essencialmente, o rela-cionamento que o documentarista estabele-ceu com os intervenientes. No caso de docu-mentrios mais pessoais, o que patente arelao que o documentarista estabelece con-sigo prprio. O processo de produo dosdocumentrios mais do que permitir, exigeuma relao de grande proximidade e envol-

    vimento com o que se filma. A quase neces-sidade que o documentarista tem em respiraro mesmo ar que o objecto que filma e o fas-cnio de colocar no ecr a sua interpretaodo que filmou o que de melhor tem o do-cumentrio, deixarmo-nos envolver e parti-lharmos essa experincia com os outros, no-meadamente com os espectadores. O docu-mentarista percorre um caminho e o filme o resultado desse caminho percorrido, que se

    partilha com os espectadores. Um documen-trio no unidireccional ou seja, neces-srio que o documentarista esteja, constante-mente, aberto para receber informaes, queadvm dos intervenientes. Por tal, fazer umdocumentrio implica estabelecer uma rela-o de compromisso e uma relao de con-fronto com a realidade. Uma relao de com-promisso porque legtimo que os interveni-entes tenham expectativas quanto sua re-presentao no ecr. Robert Flaherty umexemplo desta atitude. Flaherty viveu de1912 a 1919 com o povo inuit, esquims donorte do Canad. Para ele, devia passar-seo tempo necessrio com os intervenientes dofilme para que a histria emergisse por elaprpria, a histria devia ser a histria do lo-cal. Ainda assim, a "ltima palavra" a dodocumentarista (e no caso de Flaherty esta uma questo polmica). A relao de com-

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    promisso implica questes ticas tais comoa de saber se os intervenientes estaro ouno conscientes do impacto que poder terna vida deles o facto de se exporem peranteuma cmera. Quando que os documenta-ristas tm essa certeza? At quando devemfilmar? Quem estabelece os limites entre oprivado e o que pode ser mostrado publica-mente? Onde termina o direito que os espec-tadores tm a determinada informao e co-mea a privacidade que um direito ineg-

    vel dos intervenientes? Um documentaristatem o direito de contar a(s) histria(s) doOutro? Um documentarista um realizadorque, tal como outro qualquer, tem o direitode fazer filmes, de se expressar. O acessocada vez mais facilitado (embora estejamosainda longe de uma situao ideal) aos meiosde produo, incentiva interessantes registosque cumprem a funo de estimular o di-logo sobre o nosso mundo, e respondem, de

    algum modo, s questes ticas que se colo-cam realizao de documentrios. A pro-babilidade de algum fazer um document-rio sobre uma comunidade e falhar em cer-tos aspectos, certas nuances prprias da vidadessa comunidade, assim como interpretarmal o que foi dito pelos intervenientes, elevada. Alguns antroplogos resolvem esteproblema dizendo que basta colocarem-se aeles prprios no filme. Albert Maysles dizque basta o documentarista mostrar empatiae respeito pelos outros para que a verdadesurja. Mas, um documentrio no deve ser julgado por isso, deve ser visto como umainterrogao sobre a realidade, sobre a nossaprpria condio humana. Um document-rio sobre momentos mais profundos que seencontram sob as imagens que vemos.A relao que o documentarista estabelececom os intervenientes , pois, complexa. Os

    planos sequncia e planos longos, muito uti-lizados no documentrio, so a prova dessarelao. Este tipo de planos revelam uma ne-cessidade em no quebrar a unidade, a com-plexidade e ambiguidade de que feita a pr-pria realidade. Em geral, este tipo de pla-nos, implicam a seleco de um ponto devista ambguo em que se apela participa-o dos espectadores para uma leitura cr-tica do filme. A relao de confronto quese estabelece com os intervenientes advm

    do estatuto do documentrio enquanto obracinematogrfica. A viso do documentaristamanifesta-se pelas escolhas que faz ao abor-dar determinado assunto e a imprevisibili-dade inerente realizao/produo de docu-mentrios, entra em constante confronto coma certeza do ponto de vista adoptado, queo documentarista pretende transmitir. En-quanto processo, a realizao/produo deum documentrio implica uma relao es-

    pecial com os intervenientes mas, tambm,com outra entidade que faz parte desse pro-cesso: os espectadores. Os intervenientes eos espectadores tm direitos. Aos primei-ros deve-se o respeito pelas suas expectati-vas e motivaes, aos segundos deve o docu-mentarista oferecer uma viso do mundo queos rodeia. Um documentrio no apenasdo documentarista nem dos intervenientes,tambm dos espectadores. Podendo par-tir de algumas ideias pr-concebidas, deveentender-se o documentrio como um filmeque resulta de um processo que envolve tantoa perspectiva do documentarista, como oconfronto dessa sua perspectiva com a daspessoas directamente envolvidas no filme.Por isso, essencial que um documenta-rista se interrogue sobre as suas motiva-es: porque quer fazer determinado filme?O que quer revelar/apresentar sobre determi-

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    nada realidade? Qual o ponto de vista es-colhido? Para tal, necessrio fazer pes-quisa, ou seja, encontrar histrias da "vidareal". Muitos bons documentrios surgiramda leitura de jornais, ou revistas. dissoexemplo o filme de Errol Morris, Mr. De-ath (1999). Morris soube da existncia deFred A. Leuchter, um especialista em tec-nologia usada para a execuo de humanos(pena de morte) e que foi contratado porErnst Zndel para encontrar provas de que

    o Holocausto nunca existiu, atravs do jor-nal New York Times. Fazer um documen-trio implica uma questo essencial: h quefazer escolhas e questionar essas escolhas.No documentrio h lugar quer para narci-sismos, quer para voyeurismo, quer para adefesa de vozes que no tm a oportunidadede se expressar (ou seja, fazer nossa a lutados outros). Por isso, importante incentivara produo de documentrios, h que permi-

    tir o acesso aos meios de produo, h quedeixar surgir novas vises sobre o mundo.No caso, esta liberdade de expresso (pois disso que se trata) manifesta-se nas cons-trues visuais que um filme nos apresenta.Construes essas que no se devem subme-ter ao modo como os espectadores esto ha-bituados a ver. O documentarista deve poderser livre de fazer as suas prprias escolhasflmicas de modo a transmitir-nos um pontode vista sobre determinada realidade. Novosmodos de ver o mundo, podem implicar no-vas construes visuais. Experimentar o pul-sar da vida das pessoas e dos acontecimen-tos do mundo no ecr o que o document-rio tem de mais gratificante para nos ofere-cer. , sem dvida, um modo de incentivarum conhecimento aprofundado sobre a nossaprpria existncia.

    3 Bibliografia

    KATZ, Steven D., Film directing, shotby shot. Visualizing, from concept

    to screen, Michael Wiese Productions,1991.

    PENAFRIA, Manuela, O filme document-rio. Histria, Identidade, Tecnologia.Edies Cosmos, Lisboa, 1999.

    RABIGER, Michael, Directing the docu-

    mentary, 3a

    Ed., Focal Press, 1999.

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