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2018

HARRISON LEITE

Manual de

DIREITOFINANCEIRO

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A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO E O DIREITO FINANCEIRO

1. ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO

O estudo do direito financeiro perpassa pela análise do fenômeno financeiro, tomado esse no sentido de observar gradativamente a razão da obtenção de ingresso de recursos nos cofres públicos. A necessidade de arrecadação maior ou menor oscila com o “tamanho”1 do Estado, a justificar maior ou menor tributação.

E, como o custo da atuação do Estado deve ser suportado pela sociedade, que, nos regimes democráticos, determina o nível de sua presença e da participação que deseja, a ela compete, por seus representantes, impor as linhas fundamentais dos gastos oficiais que pretende suportar, para que o Estado, meio e não fim, preencha suas finalidades essenciais de serviço ao povo, por intermédio do governo2.

O fenômeno financeiro, assim, estuda a finalidade principal do Estado, que é a realização do bem comum, e a consequente necessidade de desenvolver diversas atividades, chamadas de atividades estatais, para que esse bem geral seja alcançado. Desse modo, o Estado não visa à proteção das necessidades individuais do homem, mas, sim, à satisfação das necessidades públicas.

É que, se por um lado, o homem consegue satisfazer suas necessidades individuais pelo seu próprio esforço, como se dá com a alimentação, vestuário etc., por outro, as necessidades coletivas privadas podem ser satisfeitas pelo esforço coordenado da sociedade e por grupos regulamentados, como ocorrem com as associações de classes e os grupos profissionais es-pecificados. As necessidades coletivas públicas, por sua vez, só o Estado poderá atendê-las, de modo que tomou para si a responsabilidade para a sua satisfação, como estradas, usinas hidrelétricas, segurança e justiça.

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Sobre o tema, afirma Edvaldo Brito3:As necessidades humanas são essas carências e desejos que o homem tem, por ser animado, porque ele também raciocina, porque ele também tem inteligência, acima do instinto. Por-tanto, como essas carências são variadas, impõe-se a sua classificação nas seguintes espécies: necessidades individuais; necessidades comuns; necessidades coletivas, incluindo-se, nessas últimas, a chamada necessidade pública, na qual há um componente importante, qual seja, o da avocação, feita pelo Estado, para que ele as satisfaça, não só por causa da natureza delas, como, também, pela natureza dele. A segurança pública é desse tipo, somente ele pode atuar nesse campo.

Deixando-se de lado o critério das classificações, o certo é que necessidades coletivas públicas são aquelas que devem ser satisfeitas pelo poder público, através da prestação de serviços públicos, delegáveis ou não a particulares, sem perderem, contudo, a natureza de essencialidade. Como afirma Aliomar Baleeiro, necessidade pública “é toda aquela de interesse geral, satisfeita pelo processo do serviço público. É a intervenção do Estado para provê-la, segundo aquele regime jurídico, que lhe dá o colorido inconfundível”4. Para Regis Fernandes de Oliveira, a definição de necessidade pública perpassa, sobretudo, por uma decisão política, pois “o Estado é quem vai dizer, para usar verbo vicário, no texto constitucional e nas leis posteriores, quais as necessidades que vai encampar como públicas”.5 E completa:

Evidente está que, para aqueles que perfilham filosofia de que existem necessidades intrínsecas do ser humano, o Estado não pode deixar de atender a alguns interesses básicos. Todavia, pondere-se que entre o ser e o dever ser há bastante distância. Entre o que deve o Estado atender, seja por definição jusnaturalista, seja por posição positivista, e aquilo que dentro da realidade pode ele resolver, ficam os imponderáveis econômico, político e social6.

A par das funções nitidamente estatais, o Estado poderá exercer outras, até mesmo de ordem econômica, que não afetam a sua existência, e, mais do que isso, poderão lhe render receitas para cobrir os custos com a prestação dos serviços públicos.

É que cada vez mais estes custos se tornam crescentes, mormente em Estados intervencio-nistas e protetivos, em que aumentam as necessidades públicas com o aumento da atuação do Estado na assistência social, previdência e seguridade, tal como se dá com o Estado brasileiro. Sendo assim, mais do que justificável a ação estatal de obtenção de receita pública para prestar os serviços públicos que atenderão essas necessidades coletivas públicas.

A satisfação dessas necessidades, inegavelmente, implica gastos públicos, que devem ser meticulosamente analisados e geridos através de um orçamento público. Se, porventura, a receita arrecadada não for suficiente para custear os gastos, o Estado poderá obter emprés-timos públicos, também chamados de créditos públicos, com o fim de atingir o equilíbrio entre receitas e despesas.

O conjunto que envolve esses quatro fenômenos, quais sejam, receitas públicas, despesas públicas, orçamento público e crédito público chama-se atividade financeira do Estado.

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Essa atividade financeira coincide com a própria atividade essencial do Estado, que é a promoção do bem comum, alcançada com a busca e a aplicação dos recursos financeiros com o intuito de atender às necessidades públicas. As necessidades coletivas públicas, doravante chamadas de ‘necessidades públicas’, cumpre lembrar, não se confundem com as necessida-des coletivas privadas, doravante chamadas de ‘necessidades coletivas’. Estas são apenas o somatório das necessidades individuais percebidos a cargo de um grupo específico, regidas pelo princípio da autonomia da vontade. As necessidades públicas são comumente satisfeitas pelo processo do serviço público, ou, como afirma Aliomar Baleeiro, “A necessidade torna-se pública por uma decisão dos órgãos políticos”7.

Assim, as necessidades públicas são as que o Estado deve satisfazer em virtude da exis-tência de uma norma jurídica. Decorrem, portanto, de um dever legal, estando sob a égide do direito público. Como derivam da lei, estão adstritas ao campo da legalidade, de modo que a Administração Pública não desfruta de liberdade para satisfazê-las ou não.

Quando a Constituição Federal estabelece as competências dos entes federativos, imbuin-do-os do dever de cuidar de determinado assunto, cria uma obrigação de fazer algo. Gera, consequentemente, necessidade de cumprimento do dever, portanto, necessidade pública.

Essas necessidades são satisfeitas através da prestação de serviços públicos pelo Estado, objetivando o atendimento das que surgem como decorrência da vida social.

Quando o Estado atua na busca dos seus objetivos fundamentais, expressos no art. 3º da Constituição Federal, ele nada mais faz do que atender as necessidades públicas através do exercício de uma atividade que lhe é substantiva e essencial.

Nesse sentido, sumariza José Souto Maior Borges8:A atividade financeira consiste, em síntese, na criação, obtenção, gestão e dispêndio do di-nheiro público para a execução de serviços afetos ao Estado. É considerada por alguns como o exercício de uma função meramente instrumental, ou de natureza adjetiva (atividade-meio), distinta das atividades substantivas do Estado, que visam diretamente a satisfação de certas necessidades sociais, tais como educação, saúde, construção de obras públicas, estradas etc. (atividades-fins).

Enfim, percebe-se que a atividade financeira do Estado é um instrumento para a realiza-ção do próprio fim estatal, pois lhe fornece os meios para a obtenção de recursos financeiros, a forma de geri-los e aplicá-los, munindo o Estado com os instrumentos necessários à sua atuação na sociedade.

2. DIREITO FINANCEIRO

O direito financeiro consiste no ramo do direito público que estuda as finanças do Estado em sua estreita relação com a sua atividade financeira. Ou seja, é o conjunto de regras e princípios que estuda a atividade financeira do Estado, compreendida esta como receita, despesa, orçamento e crédito públicos.

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Tem estreita relação com a ciência das finanças. Esta consiste na atividade pré-normativa, que alcança os âmbitos econômico, social, político ou estatístico, servindo-lhe de norte no sentido de estabelecer as regras que regerão a atividade financeira do Estado. Ou seja, o desenvolvimento das normas do direito financeiro está estribado também na ciência das finanças, que oferece o caráter informativo, teórico e especulativo daquela.

Assim, enquanto a ciência das finanças se preocupa com o estudo da atividade fi-nanceira do Estado em seu sentido teórico e especulativo, o direito financeiro estuda seu aspecto jurídico. Logo, quando da elaboração do orçamento público, por exemplo, a ciência das finanças oferece importante auxílio ao ente político, fornecendo-lhe dados e os meios para que o legislador escolha a decisão política acertada.

Dado o crescimento dos estudos em torno do direito financeiro, e pela estreita ligação existente entre as despesas públicas e o seu controle, passou a ser objeto do direito financeiro também todo o estudo envolvendo o controle desses gastos. Nessa linha, o direito financeiro engloba os mecanismos de fiscalização financeira e orçamentária, nos termos dos arts. 70-75 da CF/88, envolvendo aí os Tribunais de Contas, o controle externo e o sistema de controle interno de cada Poder.

Portanto, para além do seu campo comum de atuação, podemos dizer que o direito finan-ceiro também se ocupa dos temas envolvendo o controle da atividade financeira do Estado.

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2.1. Autonomia do Direito Financeiro

Embora o direito seja incindível, é sabido que a sua divisão se dá apenas por questões de ordem didática9, para facilitar o seu estudo. Assim, justifica-se estudar um ramo em apartado quando o mesmo possui institutos e princípios próprios, a ponto de não mais fundamentar o seu estudo como mero apêndice de outro.

E tal se dá com o direito financeiro, embora nem sempre tenha sido assim10. Ele possui um sistema próprio de normas (art. 24, I da CF/88), bem como o capítulo II do Título VI da Constituição Federal, alusivo às finanças públicas (arts. 163 a 169 da CF/88), além de um plexo de artigos espalhados no corpo da Constituição Federal, que tratam dos empréstimos públicos, financiamento dos direitos fundamentais, discriminação de despesas públicas en-tre as diferentes esferas de governo, princípios constitucionais, responsabilidade pelos gastos públicos, precatórios e parâmetros para a concessão de incentivos financeiros.

Sendo assim, não se justifica estudar o direito financeiro juntamente com o direito tributário, ramo que lhe é mais próximo, visto que, enquanto o direito financeiro estuda a atividade financeira do Estado, aí incluída as receitas públicas, o direito tributário preocupa--se apenas com uma parte desta receita, a receita tributária, a demonstrar maior amplitude do direito financeiro.

Na verdade, o direito tributário, enquanto ramo autônomo, é muito mais novo que o direito financeiro. A autonomia do direito tributário surgiu quando da publicação do Código Tributário Nacional, Lei n. 5.172/66, instante a partir do qual os seus institutos tornaram-se mais difundidos e estudados isoladamente.

Mas antes dessa cisão, o direito tributário era todo ele incluído na disciplina do direito financeiro, na parte do estudo referente às receitas públicas.

Ocorre que o Estado brasileiro tornou-se expert no incremento da sua receita tributária, de modo que a carga tributária brasileira cresceu para mais de 35% em relação ao Produto Interno Bruno (PIB) do país nas últimas década. Essa avalanche arrecadatória fez com que os institutos do direito tributário ficassem cada vez mais sofisticados juridicamente, a ponto de todo o foco da Atividade Financeira do Estado voltar-se apenas para a arrecadação, deixando de lado o destino dos recursos e seu planejamento.

Daí ter o direito tributário se tornado, nas últimas décadas, uma das matérias de maior estudo e relevância, com efusiva publicação de literatura jurídica, dada a complexidade dos seus temas e as vultosas somas de valores envolvidos. Os concursos públicos, que, no passado,

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sequer cobravam os seus institutos, passaram a ter nessa disciplina elevado grau de atenção, tendo em vista que o desconhecimento do direito tributário poderia levar o Estado à falên-cia econômica, tantas eram as inconstitucionalidades alegadas nas normas instituidoras de tributos.

Tudo isso deixou o direito financeiro à deriva, matéria de estudo mais de tecnicistas, como contadores e economistas, de pouca afeição aos juristas. O foco do direito financeiro estava nos tributos, na sua criação, nas normas de competência tributária, na imunidade, na isenção, no fato gerador, nos princípios constitucionais, nas alíquotas, nas bases de cálculo, enfim, tantos eram os institutos novos, que direcionaram os cidadãos/contribuintes apenas para a preocupação com o dinheiro que saía do bolso e pouca reflexão sobre o destino do dinheiro que carreavam aos cofres públicos.

Esse foco justificou o estudo acurado do direito tributário e o abandono do direito fi-nanceiro nas faculdades de direito.

Parafraseando Nelson Saldanha11, o cidadão/contribuinte passou a ficar muitíssimo atento ao “jardim”, lado privado da vida social, e não à “praça”, lado público12. Seu foco era tão somente não pagar tributos de maneira exagerada ao Estado, livrando-se ao máximo da sua sanha arrecadatória, com pequena preocupação se o destino do recurso estava ocorrendo com atenção ao interesse público.

Nesse sentido, afirma Fernando Facury Scaff13:

Na opinião comum dos juristas pátrios, o Direito Tributário representa o bolso do cidadão, possuidor de bens, valores e patrimônio, que o Estado arbitrário, atrabiliário e mau gestor do patrimônio público, quer lhe arrancar sob o peso de leis abusivas, que sempre violam a Constituição e, em última ratio, sua inviolável capacidade contributiva.

(...)

Por outro lado, o Direito Financeiro é aquela área do Direito onde se discutem aspectos públicos, de interesse da comunidade, tais como interesse público, necessidades públicas ou a teoria da escassez dos recursos. É aquela área do Direito onde se busca a aplicação dos recursos públicos em prol do bem comum, através do manejo dos Princípios da Legitimidade e Economicidade, ou seja, de coisas intangíveis, dificilmente mensuráveis, com baixo nível de formalidade e alto grau de subjetividade.

O Direito Tributário limita a arrecadação; o Direito Financeiro busca a melhor utilização dos recursos arrecadados em prol do bem comum. Um é vinculado a uma ideia individual, de retirada de dinheiro do bolso privado; o outro é vinculado a uma ideia de bem público, de satisfação das necessidades públicas. Um busca limitar a arrecadação — e só se arrecada de quem tem bens —; o outro visa a utilização desses bens arrecadados de quem tem, para uso em prol de quem não tem ou de quem tem menos recursos.

Em suma, o Direito Tributário representa o jardim, o que se esconde no recôndito da casa, no bolso das pessoas, nas contas correntes, na contabilidade das empresas; e o Direito Financeiro corresponde à praça, onde se debatem as questões públicas, onde o orçamento público é

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discutido e votado, onde a Lei de Responsabilidade Fiscal limita os gastos a serem efetuados em itens orçamentários que muitas vezes necessitam de maior investimento público.

A doutrina tributária clássica sempre foi enfática no sentido de que a destinação do produto de arrecadação de um tributo em nada interfere na sua natureza. Isso porque as espécies tributárias são determinadas apenas pelas suas materialidades. “A relação tributária é regida pelo direito tributário; a destinação dos dinheiros é questão não tributária, mas constitucional-financeira, de direito orçamentário”14

Afirmar que o direito tributário acaba no seu pagamento, e que o destino da receita é tema do direito financeiro, aumenta o fosso entre esses dois ramos, na contramão da moderna doutrina que vê na aplicação correta das receitas dos tributos sua legitimação, a ponto de o desvio no destino dos tributos de receita vinculada macular o próprio tributo (Cap. 2, item 11).

A separação acima pregada, em certo modo, decorre da interpretação do art. 4o, II do Código Tributário Nacional, para quem “A natureza jurídica específica do tributo é deter-minada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: (...) II – a destinação legal do produto da sua arrecadação”. Pago o tributo, o destino dado com o produto da sua arrecadação tornou-se irrelevante ao direito tributário para definir a natureza jurídica do tributo.

Em que pese tratar-se de definição realçada ainda na década de 60 (Lei n. 5.172/66), certo é que, com o advento da nova roupagem constitucional dada às contribuições especiais, o tema da destinação da receita dos tributos assumiu maior importância em matéria tributária. Isso porque sua distinção dos impostos encontra-se justamente na aplicação das suas receitas, no fim que motivou a sua criação. De modo que, para esses tributos, a relação jurídico-tributária se estenderia para além do “DARF”, até a correta aplicação das receitas arrecadadas.

Essa espécie tributária aproxima os dois ramos do direito e traz o equilíbrio necessário para se concluir que o grande ideal de um país é que as receitas tributárias arrecadadas, mormente as vinculadas, alcancem o seu desiderato legal, sob pena de má-fé na relação fisco/contribuinte e do crescimento da desimportância com a “praça” se comparada ao “jardim”.

Ideal é o país transformar a praça num grande jardim para todos ou, ao contrário, trans-formar os jardins individuais em grandes praças. E só com a vigilante arrecadação de tributo, acompanhada também da vigilante aplicação dessas receitas é que poderão ser alcançadas as finalidades do Estado Social e reduzidas as desigualdades, com o ônus tributário recaindo em maior proporção sobre a parcela com maior capacidade contributiva e com o orçamento servindo de instrumento para realização do Estado Social previsto na Constituição Federal.

Como o Brasil alcançou o ponto de equilíbrio na atividade tributária, com maior estabi-lização nas relações Fisco/Contribuinte, resta agora dotar o direito financeiro com a mesma atenção reservada aos estudos tributários. E essa é a crescente que se percebe na realidade jurídica brasileira.

O direito financeiro, outrora deixado de lado pelos estudos efervescentes do direi-to tributário, ressurge agora com toda força, voltando a ser disciplina obrigatória nas

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academias e nos concursos públicos, tendo os seus temas gozado de prestígio, nos últimos anos, no cenário nacional.

Até porque não pode um advogado, público ou privado, desconhecer a principal norma que rege os gastos públicos; não pode um magistrado decidir sem levar em consideração os aspectos orçamentários; não pode um promotor invocar a proteção de direitos sem atenção aos seus custos; não pode um defensor exigir justiça individual sem atenção aos demais ca-sos semelhantes, e não podem o Legislativo e o Executivo decidirem o destino dos recursos públicos desfocados da justiça social.

Temas de direito financeiro fizeram parte do recém impeachment presidencial e têm sido responsáveis por diversas mudanças na Constituição Federal, sendo que, nos últimos anos, há maior efervescência legislativa com atenção ao orçamento, bem como maior participação social nos seus institutos. Procura-se conhecer melhor o orçamento público e os meandros dos gastos públicos, o que tem sido possível pela maior transparência das contas públicas impostas pela legislação brasileira.

Dessa forma, o direito financeiro assume papel de disciplina altaneira, sendo assun-to diário do discurso político, nos diversos rincões do país, conferindo com isso maior visibilidade a um ramo outrora restrito a poucos operadores do direito.

É matéria de elevado valor cívico, que, se abordada sem exageros, poderá contribuir para a melhoria do país, dada a maior participação social no destino e na correta aplicação dos vultosos recursos arrecadados. É certo que ainda continua sendo, para muitos, uma zona escarpada e difícil, capaz de induzir em erro quem nela penetre. Mas esse mundo misterioso precisa ser desvendado, para que não fique na zona de poucos, até porque, se pouco estudada e conhecida, pode ser burlada sem a percepção dos seus principais fiscais.

O dever desse manual é propor, de um certo modo, leveza aos temas alcançados pelo direito financeiro.

Cumpre lembrar que a distinção doutrinária entre o direito financeiro e o direito tributário não possui qualquer suporte constitucional. Ao contrário, a Constituição criou um sistema em que esses dois ramos se comunicam com total fluidez, tendo em vista que diversas normas constitucionais determinam o destino da receita dos tributos, vinculando-os a um fim suportado constitucionalmente.

Para além disso, a Constituição criou um sistema de repartição de receitas de tributos entre os entes federativos (arts. 157-162); de aplicação de um percentual mínimo da receita de tributos na proteção de direitos sociais, como saúde (art. 198) e educação (art. 212); de proteção da seguridade social (art. 165, § 5o, III); hipóteses de intervenção decorrentes da proteção de direitos sociais quanto aos gastos mínimos na saúde e na educação (art. 34, VII, “a” e art. 35, III); tributos com receita que só se justifica se destinada à seguridade social (art. 149 e art. 195), tudo a demonstrar o diálogo entre o direito financeiro e o direito tributário.

A complementariedade é real e todo estudioso deve ficar atento ao necessário equilíbrio imposto pela Constituição e necessário à evolução e melhoria do país. Esses dois ramos têm papel fundamental no alcance dessa finalidade.

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Por fim, para ratificar a propalada autonomia do direito financeiro, o próprio art. 24, I da Constituição Federal a reconhece, ao afirmar que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I – direito tributário, financeiro (...)” separou os ramos.

A existência de um sistema normativo próprio, aí incluídas a LC n. 101/2000 e a Lei n. 4.320/64, para além dos princípios que lhe são peculiares, alimentam o estudo em apartado desse ramo, que se mostra como terreno fértil para novos horizontes profissionais, a merecer atenção ainda maior do operador do direito, tendo em vista os diversos institutos carentes de análise profunda pela ciência do direito.

2.2. Fontes do direito financeiro

Tema dos mais complexos do direito é o estudo das suas fontes. Sua utilização se dá apenas para fins didáticos, tendo em vista a sua insuficiência como meio de alcance da completude do surgimento do direito.

O estudo das fontes do direito financeiro determina o local de onde se extrai o compor-tamento financeiro que deverá ser positivado. Divide-se em fonte material, que exprime os fatos financeiros, e que, isoladamente, pouco significa, e em fonte formal, que é a forma de exteriorização desses fatos.

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A dualidade fonte formal e fonte material é encontradiça em manuais de introdução ao curso do direito. Novas formas de classificação são dadas pela filosofia do direito, teoria geral do direito e sociologia do direito, o que não é o foco do presente trabalho.

Iniciaremos com o estudo das fontes formais, distinguindo-as em instrumentos primários e secundários. Fazem parte dos instrumentos primários a lei e os estatutos normativos que têm vigor de lei. Estes são os únicos veículos credenciados a promover o ingresso de regras inaugurais no universo jurídico brasileiro15. Compõem o rol dos instrumentos secundários os demais diplomas regradores da conduta humana, com juridicidade condicionada às dis-posições legais, quer emanem preceitos gerais e abstratos, quer individuais e concretos16. São secundários por esta razão: não apresentam, de per si, a força vinculante capaz de alterar as estruturas do mundo jurídico-positivo17. Por esta razão, presente a característica de relação hierárquica entre as fontes, sendo as secundárias de hierarquia inferior.

2.2.1. Fontes Formais

2.2.1.1. Fontes Principais

A) Constituição Federal

Inegavelmente, a Constituição Federal está repleta de temas alusivos ao direito finan-ceiro. Do início ao final, não é raro encontrar um artigo que faça menção à lei de diretrizes orçamentárias, à responsabilidade fiscal, ao orçamento, dentre outros assuntos, todos objetos de estudo do direito financeiro.

Delineando os temas com tratamento individuado, em bloco, na Constituição Federal e que dizem respeito ao direito financeiro, tem-se: a) o subsistema de repartição de receitas tributárias (arts. 157 a 162); b) o subsistema de empréstimos públicos (art. 163); c) o subsis-tema monetário (art. 164); d) o subsistema dos orçamentos (art. 165 a 169) e e) o subsistema de fiscalização contábil, financeira e orçamentária (arts. 70 a 75).

À evidência, tais colocações não implicam que o Texto Constitucional não seja povoado de outros dispositivos pertinentes à matéria, mas o núcleo da sua estrutura encontra-se nos blocos acima referidos.

Quando se trata da Constituição Federal, não se pode esquecer das Emendas Constitu-cionais, que, em direito financeiro, não têm qualquer especificidade, devendo-se observar as regras de direito constitucional atinentes à matéria.

B) Leis Complementares

A CF/88 determina que, em certas hipóteses, a matéria do direito financeiro deve ser tratada através de lei complementar. Essas leis têm elevada importância nesse ramo do direito e estão delimitadas nos arts. 161, 163 e 165, § 9º, ambos da CF/88, sendo costumeiramente cobrados em provas de concurso.