manu - a menina que sabia ouvir

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SUMÁRIO

Primeira parle — MANU E SEUS AMIGOS 1. Uma cidade grande e uma menina pequena .............. 7 2. Um dom raro e uma briga comum 10 3. Uma tempestade imaginária e um temporal verdadeiro14 4. Um velho silencioso e um jovem tagarela ................ 21 5. Histórias para o público e histórias particulares .. . . 26

Segunda parte — O TEMPO PERDIDO 6. A soma está certa mas dá errado31 7. Manu procura seus amigos e é procurada por um inimigo 8. Muitos sonhos e algumas dúvidas 57 9. Uma boa assembléia que não acontece e outra má que se realiza ..................................................

10. Furiosa perseguição e calma fuga ............................ 70 11. Os maus tiram o melhor partido de um caso grave . . 78 12. Manu chega ao lugar de onde vem o tempo ............. 84

Terceira parte — A FLORAÇÃO DAS HORAS 13. ...................................................................................................................... Um dia lá mas um ano aqui ............................................................................ 101 14. Refeições demais, informações de menos ................. 112 15. Achado e novamente perdido .................................... 116 16. ...................................................................................................................... Pobreza em meio à fartura .............................................................................. 121 17. .................................................................................................................... Grande medo e maior coragem ................................................................. , 126 18. Olhando para a frente sem olhar para trás 131 19. Os sitiados fazem um pacto ..................................... 136 20. ...................................................................................................................... Os perseguidores perseguidos ..................................................................... 143 21. ...................................................................................................................... O fim que é um novo começo .................................................................... 147 Pós-escrito do autor .................................................

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PRIMEIRA PARTE MANU E SEUS AMIGOS

1. UMA CIDADE GRANDE E UMA MENINA PEQUENA

Há muito tempo, já existiam magníficas cidades em países ensolarados. Ali havia palácios reais e imperiais, largas avenidas, suntuosos templos, feiras com mercadorias do mundo todo, pra- ças nas quais o povo se reunia para discutir as notícias, para ouvir ou fazer discursos. Havia, sobretudo, amplos anfiteatros, parecidos com os nossos circos de hoje, feitos de blocos de pedra. As fileiras de assentos para os espectadores eram em degraus, às vezes for- mando um vasto semicírculo. Alguns eram grandes, outros menores. Alguns eram luxuo- sos, outros, simples e modestos. Esses anfiteatros não tinham teto, e tudo se passava ao ar livre. Por isso, nos de luxo estendiam tapeçarias para proteger o público contra o calor do sol ou as tempestades repentinas. Nos modestos, esteiras davam o mesmo resultado. Desde então passaram-se milhares de anos. As cidades da- quele tempo desmoronaram e dos grandes anfiteatros só restam ruínas. Agora, por entre as pedras caídas, zunem os grilos sua canção. Algumas dessas grandiosas cidades antigas, entretanto, con- tinuam a ser grandes cidades. A vida mudou, claro. O povo anda de ônibus ou de automóvel, tem telefone e luz elétrica. Mas aqui e ali, por entre as casas modernas, algumas colunas, uma arcada, um pedaço de muro, ou mesmo um anfiteatro, são recordações daquele tempo antigo. E foi numa cidade dessas que aconteceu a história de Manu. Para lá da beira da grande cidade, ali onde começam os campos, escondidas num bosque existem as ruínas de um peque- no anfiteatro. Mesmo nos tempos antigos, não fora dos mais im- portantes; era, digamos, para o pessoal modesto. Agora, na épo- ca em que começa a história, as ruínas estavam quase esquecidas. Só alguns professores de arqueologia as conheciam, mas não li- gavam porque nada mais havia ali por descobrir. Não era uma atração e só uns poucos turistas apareciam de vez em quando, tiravam algumas fotos e iam embora. Só o pessoal da terra conhecia aquele estranho edifício. Ali

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deixavam pastar suas cabras, as crianças aproveitavam o espaço plano do centro para jogar bola, e, às vezes, namorados se en- contravam ali à noite. Mas um dia começou a correr o boato de que alguém esta- va morando nas ruínas. Era uma menina, meio esquisita, chama- da Manu. Ela era pequena, magrinha, de modo que seria impossível dizer ao certo se teria apenas oito anos ou já estaria com doze. Seu cabelo preto, abundante e crespo, parecia nunca ter sido cor- tado, nem mesmo penteado. Seus olhos, muito grandes, eram pretos como azeviche, e os pés eram quase da mesma cor, pois que ela andava descalça. Às vezes, no inverno, calçava sapatos, mas eram grandes demais, e desemparelhados. Isso acontecia por- que Manu não tinha nada que fosse comprado ou feito para ela: só tinha aquilo que encontrava, ou que lhe davam. Sua saia, com- prida até o tornozelo, era uma mistura de remendos e cerzidos de várias cores, e por cima ela usava um paletó de homem, gran- de demais, com as mangas enroladas: Manu não quis cortá-las porque ainda estava crescendo, e não sabia se tornaria a encon- trar outro paletó tão bonito e prático como aquele, com tantos bolsos. Por baixo da arena invadida pelo capim, no centro do anfi- teatro em ruínas, restavam umas galerias às quais se podia chegar por um vão aberto no muro de fora, e ali é que Manu se havia instalado. Uma manhã, alguns homens e mulheres da vizinhança foram visitá-la. Manu ficou em pé diante deles, com muito medo que quisessem mandá-la embora, mas eram simpáticos. Eles tam- bém eram pobres, e sabiam como é a vida. — Muito bem — disse um dos homens. — Então você gosta deste lugar? — Gosto — respondeu Manu. — E gostaria de ficar aqui? — Gostaria sim.

— Mas não tem alguém esperando por você em algum ou- tro lugar? — Não.

— Mas de onde é que você veio, menina? Manu fez um gesto vago na direção do horizonte. — Então, quem são seus pais? — insistiu o homem. A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e en- colheu os ombros. — Não precisa ficar com medo — continuou o homem. — Nós não vamos te mandar embora. Nós queremos te ajudar.

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Sem responder, Manu acenou com a cabeça. Ainda não es- tava inteiramente convencida. — Manu é um nome bonito, mas que eu ainda nunca tinha ouvido. Quem te deu esse nome? — Eu mesma. — Mas você não tem um tio, ou uma tia, ou uma avó, ou qualquer parente, com quem você pudesse morar? — Eu moro é aqui, nesta minha casa. — ótimo — retrucou o homem. — Mas você ainda é crian- ça. Quantos anos você tem? Manu hesitou, mas acabou respondendo: ^̂̂̂MMMM^^^^^^^^L — Uns cem. Todos riram, porque pensaram que ela estava brincando. — Falando sério, que idade você tem? Ainda mais hesitante, Manu respondeu: — Cento e dois anos. O pessoal demorou um pouco a perceber que ela repetia, ao acaso, números que tinha ouvido, sem ter noção do que sig- nificavam, pois ninguém lhe havia ensinado a contar. — Escute — disse o homem, depois de ter consultado um outro. — Você se incomodaria se nós avisássemos à polícia que você está aqui? Você podia ser colocada num Asilo Infantil, onde teria boa comida, podia aprender a ler, escrever, somar, e uma porção de outras coisas. Que tal a idéia? Manu replicou, apavorada: — Não. Eu não quero ir pra lá. Eu já estive lá. Tinha outras crianças também. Tinha grades nas janelas. E todos os dias um de nós levava uma surra, sem razão nenhuma. Então, uma noite eu pulei o muro e fugi. Não quero voltar pra lá. . . — Muito bem — disse uma mulher — mas você ainda é pequena. Alguém tem que cuidar de você. — Ê. Eu vou cuidar de mim — respondeu Manu aliviada. — Mas você é capaz? — perguntou a mulher. — Eu não preciso de muita coisa. . . — Sabe, Manu — recomeçou o homem que tinha falado primeiro. — Nós achamos que você podia vir morar na casa de um de nós. Ninguém tem muito espaço, e quase todos têm ban- dos de crianças, mas afinal. . . um a mais ou a menos não faz grande diferença. — Muito obrigada — respondeu Manu, sorrindo pela pri- meira vez. — Muitíssimo obrigada. Mas vocês não podiam só me deixar ficar morando aqui?

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O pessoal cochichou, discutiu, mas por fim todos concor- daram. Assim todos poderiam cuidar de Manu. Seria mais fácil do que se um só ficasse incumbido. Limparam a galeria meio em ruínas onde Manu morava, e arrumaram o melhor possível. Um pedreiro fez um fogãozinho de pedra, um velho cano enferrujado serviu de chaminé. Com uns caixotes, um velho carpinteiro arranjou uma mesinha e duas ca- deiras. As mulheres trouxeram uma cama enferrujada, um col- chão e umas cobertas. O pedreiro, que era dado a artista, pin- tou na parede um bonito quadro de flores. Pintou até uma mol- dura em volta, e o prego no qual ele estaria pendurado. Ficou um lugar bem jeitoso. Depois chegaram os filhos daquela gente, cada um trazendo aquilo que tinha poupado da sua comida: um pedacinho de quei- jo, um pãozinho, uma fruta, e assim por diante. E fizeram uma festa alegre. Assim começou a amizade entre Manu e seus vizinhos.

UM DOM RARO E

UMA BRIGA COMUM

Dali por diante tudo correu bem com Manu. Ela sempre tinha alguma coisa para comer. Tinha um teto, uma cama, e podia acender um fogo. E o mais importante: tinha muitos bons amigos. Parecia que a sorte tinha sido de Manu, e era isso que ela pensava. Entretanto, os outros logo perceberam que a sorte tinha sido deles também. Precisavam de Manu e ficavam se pergun- tando como é que até então se tinham arrumado sem ela. Che- gavam a recear que um belo dia, quando acordassem, não a en- contrassem mais. Foi por isso que Manu passou a ter constantemente visitas em casa. Quem precisasse dela, mas não pudesse ir até lá, man- dava buscá-la. Não é que Manu desse tão bons conselhos, ou sempre en- contrasse as palavras certas para dizer. Não é que ela divertisse o pessoal, cantando, dançando, ou tocando algum instrumento. Não é que ela tivesse poderes mágicos, ou lesse a mão, ou en- xergasse o futuro. O que Manu sabia fazer melhor do que qualquer outra pes- soa, era ouvir. Não é coisa que qualquer um pode fazer. E a ma- neira como Manu ouvia era realmente fora do comum. Manu

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ouvia de um jeito que fazia as pessoas burras terem idéias inte- ligentes. Ela não dizia, nem perguntava, nada que pudesse pôr tais idéias na cabeça das pessoas: ela ficava simplesmente ali sentada, ouvindo com atenção e simpatia. E fitava a pessoa com seus grandes olhos negros, dando-lhe a impressão de que as idéias que surgiam haviam nascido espontaneamente. Ela ouvia de um jeito que fazia as pessoas preocupadas, ou hesitantes, de repente saberem exatamente aquilo que queriam; os tímidos, de repente sentiam-se à vontade e confiantes, os des- graçados e oprimidos de repente sentiam-se felizes e cheios de esperança. Quando alguém percebia que até então sua vida era sem sentido, e um fracasso total, e que era apenas um ser entre milhões, sem importância alguma, ia procurar a menina e con- tar-lhe tudo isso. Então, à medida que falava ia-se tomando cla- ro que, fosse como fosse, só havia um assim no mundo inteiro, e por isso mesmo ele era importante para o mundo naquele seu jeito próprio. Era essa a maneira de ouvir de Manu. Um dia, dois homens foram procurar Manu. Eram inimi- gos, e embora vizinhos recusavam falar um com o outro. Outras pessoas tinham-lhes aconselhado procurar Manu, pois assim não era possível e acabaram concordando. Agora estavam ali sentados, nos lados opostos da arena, errfburrados. Um era o pedreiro que tinha construído o fogão para Manu e pintado o quadro de flor na parede do "salão". Chamava-se Nicolau, e era corpulento, com um bigode preto revirado nas pontas. O outro, magro, parecia semDre cansado, era Nino, dono de um pequeno bar-restaurante no subúrbio, onde os principais fregueses eram uns velhinhos que pediam um copo de vinho e ficavam horas inteiras evocando os temoos antigos. Nino e sua mulher Liliane também eram amigos de Manu, e cos- tumavam levar-lhe coisas gostosas para comer. Quando Manu percebeu que os dois homens estavam briga- dos ficou um momento sem saber qual abordar primeiro. Para não ofender nenhum, ficou olhando para um e para outro, aguar- dando o que iria acontecer. Muitas coisas levam tempo, e tempo era a única riqueza que Manu possuía. De repente Nicolau levantou-se e disse: — Vou-me embora. Vindo aqui mostrei minha boa vonta- de mas como você pôde ver, Manu, o sujeito é teimoso. Não adianta esperar mais. E, de fato, virou-se para ir embora.

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— Para começar — gritou Nino — você não devia ter vin- do. Não pense que eu ia apertar a mão de um trapaceiro. Nicolau voltou-se, vermelho de raiva. — Quem é que é trapaceiro? — perguntou, avançando pa- ra Nino. — Só quero ouvir dizer isso outra vez... — Vou dizer quantas quiser — berrou Nino. — Acho que você pensa que ninguém tem coragem de dizer a verdade na sua cara. Pois eu tenho. Tá bom, avance, avance e venha me ma- tar, como você já tentou uma vez. — Gostaria de ter conseguido — rosnou Nicolau fechando os punhos. — Está vendo, Manu, está vendo como ele mente e calunia a gente. . . O que eu fiz foi só agarrar ele pelo colari- nho e meter essa cara na poça d'agua da lavagem de pratos, atrás daquele restaurante imundo dele. Aquilo não dava nem pra afogar um rato. — E virando-se para Nino, gritou: — Infeliz- mente, está-se vendo que você continua vivo... As mais incríveis acusações continuaram a ser lançadas de um lado para outro, embora Manu não conseguisse entender do que se tratava, e por aue os dois estavam tão furiosos um com o outro. Aos poucos, entretanto, foi se esclarecendo que Nicolau havia cometido aquele crime terrível porque Nino tinha lhe dado uns bofetões diante dos fregueses, no bar, e isso porque Nicolau havia tentado auebrar toda a louça de Nino. — Isso é pura mentira! — exclamou Nicolau, zangado.' — Eu atirei na parede um jarro só, e que já estava rachado. — Mas era meu jarro, não era? — disse Nino. — E você não tinha o direito de fazer uma coisa dessas. Mas Nicolau estava convencido de que o direito estava do seu lado, porque antes disso Nino havia lançado a dúvida sobre sua competência profissional de pedreiro-construtor. — Sabe o que ele falou de mim? — gritou para Manu. — Disse que eu nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bêbado vinte e quatro horas por dia, e que meu tataravô era igual- zinho e foi ele quem construiu a torre inclinada de Pisa! — Ora Nicolau, isso era só brincadeira — atalhou Nino. — Que brincadeira! — rosnou Nicolau. — Não acho gra- ça em brincadeiras dessas... Aí então descobriu-se que a "brincadeira" de Nino era para pagar Nicolau na mesma moeda: uma bela manhã aparecera pin- tado em letras vermelhas, na porta do bar, um trocadilho no qual Nino não achara graça nenhuma. Começaram então a discutir qual das duas "brincadeiras" era a mais engraçada, cada vez se enfurecendo mais.

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De repente os dois pararam. Manu estava olhando para eles, de olhos arregalados, mas nenhum dos dois entendia bem o sig- nificado daquele olhar. Será que ela estava rindo deles? Ou esta- va triste? Sua expressão não deixava adivinhar, mas de repente pareceu aos homens que se estavam vendo como que refletidos num espelho, e começaram a ficar envergonhados. — Muito bem — disse Nicolau. — Eu não devia ter pin- tado aquilo na sua porta, pode ser, Nino. Mas eu não teria feito isso se você não se tivesse recusado a me servir. Isso era contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e você não tinha nada que me tratar daquele jeito. — Ah, não tinha! — retrucou Nino. — Não se lembra do caso do Santo Antônio? Ah, está ficando encabulado... Me deu o golpe, e eu não me conformei com isso. — Dei, é? — gritou Nicolau. furioso outra vez. — Quem deu foi você, mas não conseguiu me tapear. O fato é que na parede do barzinho de Nino havia uma ima- gem de Santo Antônio, que ele tinha cortado de uma revista e emoldurado. Um dia Nicolau quis comprar a imagem, dizendo que a achava linda; Nino foi negociando até conseguir que Nico- lau desse em troca o seu rádio, e ficou rindo por dentro, con- vencido de que tinha levado a melhor. Fechado o negócio, aconteceu que, entre a imagem e o pa- pelão de trás do quadro, apareceu uma cédula alta que Nino nun- ca tinha visto. Então ele descobriu que tivera prejuízo, e ficou muito amolado. Quis que Nicolau lhe devolvesse a nota porque não fazia parte da venda. Nicolau recusou, e daí por diante Nino não quis mais servi-lo. Depois que remontaram à causa inicial da briga os dois ho- mens ficaram em silêncio, até que Nino falou: — Diga com toda a franqueza, Nicolau: antes de nós fazer- mos o negócio você já sabia daquela nota, ou não? — Claro que sabia. Se não, não tinha feito o negócio, tinha?

— Então você tem de confessar que me tapeou. — Como? Você não sabia mesmo que a nota estava ali? — Não. Juro que não. — Está vendo só. . . Então você é que quis me dar o golpe, recebendo o meu rádio em troca de um pedaço de jornal que não valia nada. — Mas como é que você ficou sabendo da nota? — Eu tinha visto um freguês a enfiar ali, em homenagem a Santo Antônio. Nino mordeu o beiço.

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— E valia muito? — Exatamente o valor do meu rádio. Então os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra, encontraram-se no meio da arena, apertaram as mãos e trocaram palmadas nas costas. Depois, abraçaram Manu. Quando afinal foram embora, Manu ficou acenando com a mão até que sumissem, muito contente porque tinham feito as pazes. Manu ouvia tudo com atenção: gatos, cachorros, gafanho- tos e sapos, até a chuva e o vento nas árvores, e tudo isso tinha sua maneira de lhe falar. Algumas noites ela ficava sentada sozinha no grande anfi- teatro de pedra, debaixo do céu estrelado, ouvindo o grande si- lêncio. Sentia-se no centro de algum vasto ouvido que escutasse a música das estrelas e envolvida por uma harmonia suave que ia direto ao seu coração.

3. UMA TEMPESTADE IMAGINÁRIA E UM TEMPORAL VERDADEIRO As crianças adoravam ir ao anfiteatro. Não que Manu ti- vesse idéias fabulosas: ela simplesmente estava ali e tomava par- te nas brincadeiras. Isso é que, não se sabe como, dava às pró- prias crianças idéias formidáveis. Cada dia inventavam brinca- deiras novas. Certa vez, dez ou onze crianças estavam sentadas nas pe- dras, esperando por Manu. No horizonte as nuvens eram escuras e baixas: parecia que dali a pouco ia desabar um temporal. — Eu acho que vou pra casa — disse uma menina que le- vava a reboque a irmãzinha. — Tenho medo de relâmpago e trovão. — E quando você está em casa? — perguntou um garoto de óculos. — Não tem medo? — É. Também tenho. . . — Então fique aqui, que dá na mesma — disse o menino. A menina fez que sim, com a cabeça, mas dali a pouco disse: — Quem sabe Manu não vai mais voltar? — E daí? — falou o outro garoto, de aspecto meio relaxa- do e sem trato. — Nós podemos brincar. — Está certo. Mas vamos brincar de quê? — Quem é que tem alguma idéia? — Eu tenho — disse um menino gordo de voz fina. — Va- mos fingir que esta ruína é um navio de verdade, e nós estamos

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navegando por mares desconhecidos, e tendo aventuras. . . " Eu vou ser o capitão e você aí pode ser o piloto, e você um natura- lista — um professor — porque vai ser uma viagem de desco- brimentos. E o resto pode ser a equipagem. A idéia parecia excelente. Começaram a brincar, mas não paravam de discutir, e a brincadeira não ia para diante. Dali a pouco estavam todos novamente sentados nas pedras, esperando. Por fim Manu chegou. A água assobiava ao longo da proa. O navio de pesquisa, Argo, balançava suavemente à medida que atravessava as ondas, a todo vapor em direção ao Mar de Coral. Nunca um navio se atrevera a atravessar aquelas águas perigosas, cheias de bancos de areia, recifes de coral, e monstros marinhos. Pior de tudo era o Ciclone Incessante, um furacão que varria as águas como uma fera em busca de sua presa. Seu rumo era caprichoso, mas aquilo que ele apanhava ficava reduzido a palito de fósforo. O navio-pesquisa Argo fora especialmente equipado para um encontro com esse tufão. Era todo construído de aço azul, flexível e elástico feito uma lâmina de espada. Poucos comandantes teriam a coragem de enfrentar perigos tão incríveis. O Capitão Gordon tinha essa coragem. Do alto da ponte de comando olhava com orgulho os homens e mulheres de sua equipagem. Ao lado do capitão estava o primeiro oficial, Don Melu, tí- pico lobo-do-mar que já sobrevivera a cento e vinte e sete fura- cões. Atrás deles, na casa de instrumentos, estava o Professor Eisenstein — o chefe científico da expedição — com seus dois assistentes, Maurino e Sara, cujas memórias prodigiosas valiam por uma biblioteca inteira. Um pouco à parte sentava-se, à mo- da oriental, Mimosa, a bela moça nativa daquela região. De vez em quando o professor fazia-lhe perguntas sobre várias caracte- rísticas daquelas águas, e ela respondia no melodioso dialeto Hu- lan, que só o professor entendia. O objetivo da expedição era descobrir a causa do Ciclone Incessante e, se possível, destruí-lo. Mas até então tudo era paz. De repente um grito do vigia interrompeu as reflexões do comandante. — Capitão! Ou estou maluco ou tem mesmo uma ilha feita de vidro na nossa frente! Imediatamente o Capitão e Don Melu olharam pelo teles- cópio, e o Professor, com seus dois assistentes, tomaram ares interessados. Só a bela moça nativa conservou-se calma, pois as tradições de sua tribo proibiam demonstrar curiosidade.

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Chegaram logo à ilha de vidro. O professor desceu pela es- cada de corda no costado do navio e pisou no chão de vidro. Era horrivelmente escorregadio, e ele teve imensa dificuldade em se manter de pé. A pequena ilha era toda redonda, mais alta no centro, onde formava como que uma cúpula. Quando o professor atingiu esse ponto olhou para baixo e pôde ver distintamente alguma coisa brilhando e vibrando bem no coração da ilha. Comunicou o que tinha visto aos outros que, na proa, es- peravam ansiosamente. — Segundo a evidência obtida por ora — disse Maurino, um dos assistentes do professor — eu diria que se trata de um Oggelmump bistrozinalis. — Ê possível — comentou Dara, outro assistente — mas também pode ser uma Shluckula tapetozifera. O Professor Eisenstein endireitou-se, ajustou os óculos, e disse: — Na minha opinião temos aqui uma variedade do Strum- pus quietshinensus comum, porém não podemos ter certeza an- tes de examinarmos por baixo essa criatura. Imediatamente três garotas da equipagem (todas elas mun- dialmente famosas como nadadoras e mergulhadoras) se adian- taram, vestiram seus equipamentos de mergulho e desapareceram nas profundezas do mar azul. Durante algum tempo só se viam algumas bolhas na superfície da água, mas subitamente Sandra, uma das três, reapareceu e disse com voz arquejante: — É uma água-viva gigante! Minhas duas companheiras es- tão presas nos seus tentáculos e não conseguem soltar-se. Temos que socorrê-las antes que seja tarde demais. Imediatamente cem homens-rãs, sob o comando de seu ex- periente chefe, Comandante Franco — apelidado "O Golfinho" — mergulharam. Tremenda batalha se desenrolava lá embaixo. Porém, era tal a força da água-viva gigante que nem mesmo os cem homens-rãs conseguiam libertá-las. O professor franziu a testa e disse aos seus assistentes: — Alguma coisa nestas águas parece estimular o cresci- mento anormalmente grande. Interessantíssimo. Enquanto isso o Capitão Gordon e Don Melu chegavam a uma decisão: — Voltem! — gritou Don Melu. — Voltem todos imediata- mente para o navio. Vamos ter que cortar o monstro em dois pedaços. Não há outro jeito de salvar as meninas.

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"O Golfinho" e seus homens-rãs voltaram para bordo. O Argo deu uma breve marcha à ré, e depois avançou, com toda velocidade, para a água-viva. A proa do navio de aço era cor- tante como navalha. Sem barulho, e quase sem choque, dividiu em duas metades a gigantesca criatura. A manobra era perigosa para as duas moças, porém Don Melu tinha traçado seu rumo com a máxima precisão e dirigiu o Argo exatamente pelo estreito es- paço entre as duas. No mesmo instante os enormes tentáculos, de cada lado da água-viva, ficaram pendurados, flácidos, sem força, e as cativas conseguiram desvencilhar-se. Foram alegremente recebidas a bordo. O Professor Eisens- tein disse-lhes: — Foi minha culpa. Eu nunca deveria tê-las mandado lá. Perdoem-me por tê-las exposto a esse perigo. Com uma risada alegre, uma delas respondeu: — Não há nada que perdoar, professor. Afinal, foi pra isso mesmo que nós viemos. E a outra acrescentou: — Perigo. . . é conosco! Não havia tempo para mais conversa. Ocupados com o tra- balho de resgate, haviam esquecido de manter o vigia alerta, e só no último momento perceberam que o Ciclone Incessante ti- nha surgido e estava agora avançando sobre o Argo. O primeiro e violento assalto envolveu o navio de aço, que foi atirado para o ar, deitado de lado, depois aspirado para o fosso profundo aberto pelas ondas. Marinheiros menos bravos ou experimentados que a equipagem do Argo teriam sido lançados ao mar, ou des- falecido de terror ante tal impacto, mas o Capitão Gordon con- tinuava como se nada houvesse acontecido, e seus homens tam- bém tinham agüentado firme. Só Mimosa, a bela nativa, não es- tando acostumada a essas viagens tempestuosas, tinha-se metido em um barco salva-vidas. Em questão de segundos o ciclone envolveu o navio, jogan- do-o alternadamente para o céu e para o fundo do abismo. A cada minuto que passava sua fúria parecia crescer, enquanto gol- peava inutilmente a nave revestida de aço. Calmamente o Capitão deu suas ordens. Cada homem es- tava em seu lugar. O Professor Eisenstein e seus assistentes esta- vam calculando onde seria o olho do ciclone, pois era para aque- le centro calmo que o navio devia ser orientado. Em seu íntimo, o Capitão admirava o sangue-frio daqueles cientistas que não es- tavam habituados ao mar como cie e sua equipagem. O coruscar de um raio ziguezagueou pelo céu e caiu no Argo,

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eletrizando da proa à popa o navio revestido de aço. Tudo que se tocasse lançava centelhas, mas todo o pessoal já vinha sendo treinado durante meses para poder enfrentar uma emergência dessas, e ninguém se preocupou. A única dificuldade foi que os cabos começaram a ficar rubros e brilhantes como lâmpadas in- candescentes, mas a equipagem calçou luvas de amianto. Felizmente a incandescência não durou muito, pois caiu uma chuva como ninguém ainda tinha-visto — em lençóis com- pactos, sem espaço para o ar entre os pingos. A equipagem foi obrigada a usar capacetes de mergulho e aparelhos respiratórios. Seguiam-se os relâmpagos, ribombava o trovão, o vento gemia e urrava, as ondas subiam à altura dos mastros, a espuma voava por toda parte. Com as máquinas em força total o Argo abriu seu caminho em meio à violência primitiva do ciclone. Finalmente chegaram ao ponto central, e que espetáculo se ofereceu ao olhar! Na superfície da água, que ali era lisa como um espelho porque a força da tempestade aplainara as ondas, pairava um

TT objeto gigantesco. Parecia equilibrado numa perna, e seu con- torno alargando-se da base para o topo dava a impressão de um monstruoso pião; mas rodopiava a tal velocidade que não era possível ver detalhe algum. — É um shumshum gummilastikum! — gritou o Professor, encantado. — Poderia nos explicar o que isso significa? — resmungou Don Melu. — Nós somos simples marinheiros e. . . — Não atrapalhe o professor agora — interrompeu Dará, um dos assistentes. — Esta é a oportunidade única numa vida inteira. Essa criatura rodopiante data, provavelmente, da auro- ra da criação. Deve ter mais de um bilhão de anos. A única va- riedade que conhecemos só pode ser vista ao microscópio, e só se encontra — ocasionalmente — no molho de tomate ou, ainda mais raramente, na tinta verde. Um espécime deste tamanho tal- vez seja o único que ainda sobrevive. — Mas nossa missão é descobrir a causa do Ciclone Inces- sante — gritou o Capitão. — É melhor o Professor nos ensinar a fazer essa coisa infernal parar de rodopiar! — Isso eu sei tanto quanto você — disse o Professor. — Até agora a ciência não teve oportunidade de estudar o assunto. — Então vamos bombardeá-lo, e ver o que acontece.

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— Que pena... — lastimou o Professor. — Imagine, bom- bardear o único espécime vivo do Shumshum gummilastikum! — Mas o canhão anti-monstro já estava apontado para o vasto pião. — Fogo! — ordenou o Capitão. Uma longa língua de chama azul saltou do cano duplo, sem barulho algum, é claro, pois como todo o mundo sabe os canhões anti-monstro bombardeiam com proteínas. O míssil brilhante partiu a toda velocidade em direção ao Shumshum, porém o enorme objeto o fez desviar e, após ter ro- dopiado várias vezes, mais e mais rápido, à volta do Shumshum, o míssil foi aspirado para o alto e desapareceu atrás das nu- vens negras. — Assim não vai! — gritou o Capitão Gordon. — Temos que chegar mais perto dessa coisa aí. — Não podemos chegar mais perto — retrucou, também gritando, Don Melu. — As máquinas já estão trabalhando a toda velocidade, e isso é apenas suficiente para impedir que a tem- pestade nos arraste para trás. — Alguma sugestão, Professor? — perguntou o Capitão. Mas nem o professor nem seus assistentes tinham idéia al- guma. Parecia que a expedição teria de ser abandonada. Nesse momento o Professor sentiu um puxão na manga. Era Mimosa, a bela nativa. — Malumba! — disse ela, com um gesto gracioso. — Ma- lumba oisitu sono. Erweini samba insaltu lobindra. — Babalu? — indagou o Professor, assombrado. — Didi maha feinosi intu ge goinen malumba? A bela jovem nativa acenou alegremente com a cabeça, e respondeu: — Dodo um aufu shulamat wawada. — Que é que ela quer? — indagou o primeiro oficial. — Ela disse que na tribo de seus pais há uma canção mui- to antiga, que pode embalar o Ciclone Incessante até fazê-lo ador- mecer. — Não me faça rir. . . — resmungou Don Melu. — Não devemos ter preconceitos — retrucou o Professor. — Nessas tradições nativas existe, às vezes, um grão de verdade. — Mal não pode fazer — declarou o Capitão. — Diga a ela que cante. Mimosa começou imediatamente a cantar a mais extraor- dinária canção, formada apenas por algumas notas, e um estri- bilho constante.

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Enquanto cantava ia dançando, com muita graça, e ritman- do com palmas a melodia. As palavras simples e a música eram fáceis de guardar. Aos poucos os outros foram aderindo, até que toda a equipagem cantava, dançava, e batia palmas no compasso. E então. . . O pião-gigante começou a rodar mais e mais devagar, até que parou de vez, e começou a afundar. A tempes- tade acabou, a chuva parou, o céu ficou limpo e azul, as ondas se acalmaram. O Argo estava imóvel no mar transparente como se houvesse reinado sempre paz e alegria. — Membros da equipagem — disse o Capitão Gordon, olhando com gratidão para cada um por sua vez. — Quem podia imaginar que nós íamos vencer? Todos sabiam que ele era homem de poucas palavras, por- tanto" sentiram-se ainda mais gratificados quando acrescentou: — Tenho orgulho de vocês. — Eu acho que choveu de verdade — disse a menina com a irmãzinha a reboque. — Eu estou ensopada. De fato, o temporal tinha passado, e as crianças estavam espantadas de ver que tinham esquecido completamente do medo de trovão e dos raios, enquanto estavam no Argo. Durante algum tempo comentaram as aventuras que tinham tido. Depois foram para casa, trocar aquela roupa molhada. Só uma das crianças não estava plenamente satisfeita com o desenrolar da brincadeira. Era o menino de óculos. Despedin- do-se de Manu, disse: — Assim mesmo, foi uma pena a gente afundar o Shums- hum gummilastikum. Afinal, ele era o único sobrevivente de sua espécie. Eu gostaria tanto de descobrir mais coisas sobre ele. . . Num ponto, entretanto, todos concordaram: não havia brin- cadeiras tão boas quanto aquelas que faziam junto cem Manu.

4 . UM VELHO SILENCIOSO WWW.livrosgratis.rg.com.br

Mesmo quem tem muitos amigos tem sempre um ou dois que são mais queridos, e era o que acontecia com Manu. Tinha dois amigos muito especiais. Um era jovem, o outro velho, e Manu não saberia dizer de qual deles gostava mais. O velho chamava-se Beppo Varredor. Na verdade, o seu sobrenome era diferente, mas trabalhava varrendo as ruas e toda a gente o chamava Varredor. Morava perto do anfiteatro, numa

E UM JOVEM TAGARELA

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cabana que ele mesmo havia construído com tijolos e folhas de zinco. Era pequeno, e ainda por cima corcunda, de modo que parecia pouco mais alto do que Manu. Muita gente achava que Beppo não estava muito bom da cabeça, porque quando lhe fa- ziam alguma pergunta apenas sorria sem dizer nada. É que ele costumava refletir, e quando achava que não merecia resposta, não respondia. Quando resolvia que a questão merecia respos- ta, examinava-a novamente, levando duas horas, ou até mesmo dois dias, para responder. Enquanto isso, a pessoa que havia fei- to a pergunta já se tinha esquecido, naturalmente, e aquilo que Beppo lhe dizia parecia fora de propósito. Somente Manu dispunha de tempo para esperar uma res- posta, e depois entender o que lhe dizia. Ela sabia que Beppo demorava tanto porque fazia questão de nunca dizer alguma coisa que não fosse verdade. Todas as manhãs, muito cedo, ele ia na sua velha bicicleta até um grande almoxarifado. Ali esperava, no pátio, com os com- panheiros de trabalho, até lhe darem uma vassoura, um carrinho de mão, e indicarem as ruas que tinha de varrer. Varria as ruas devagar, mas com muita regularidade, tomando uma respiração a cada passo e a cada movimento da vassoura. De vez em quan- do olhava para longe, com ar pensativo, depois recomeçava. Quando se deslocava assim, uma rua suja na sua frente, uma limpa atrás, acontecia virem à sua cabeça grandes idéias; mas idéias sem palavras. Depois do trabalho, quando sentava perto de Manu, costumava contar-lhe os seus altos pensamentos, e en- quanto ela ouvia a língua dele se soltava e surgiam as palavras.

— Sabe como é, Manu — disse ele uma vez. — É assim. Às vezes você tem na sua frente uma estrada muito longa. Você acha que nunca será capaz de chegar até o fim. Isso acontece quando você quer trabalhar mais e mais rápido. Cada vez que você olha, a estrada parece que não encurtou nada, então a gente se esforça ainda mais e começa a ficar aflito, de modo que no fim está exausto e não pode continuar, enquanto a estrada à sua frente continua tão comprida como sempre. Não é esse o jeito de fazer as coisas. — Pensou um pouco, e continuou: — O que se deve fazer, é nunca pensar na estrada inteiramente de uma vez só. Está entendendo? Você tem que pensar somente naquilo

Houve outra pausa para meditação antes de ele prosseguir: Fazendo assim dá prazer, o que é importante, e o traba-

que vem a seguir.

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lho sai bem feito. E é como deve ser. — Após uma última pausa, concluiu: — De repente, você se dá conta de que, passo a passo, chegou ao fim da longa estrada, sem ter percebido e sem ter per- dido o fôlego. Certa vez chegou, sentou-se perto de Manu e esta percebeu que ele refletia profundamente, e tinha alguma, coisa especial a dizer. Súbito, Beppo olhou-a bem de frente e disse: — Eu nos reconheci. Passou-se muito tempo antes que ele continuasse, muito baixinho: — Acontece às vezes — ao meio-dia — quando tudo está adormecido ao sol. O mundo torna-se transparente — como água cristalina. E pode-se enxergar até o fundo dele. Em silêncio, balançou a cabeça e depois continuou, na mes- ma voz suave: — Existem outras épocas lá embaixo, no fundo. Calou-se novamente, refletindo, e de repente falou no seu tom habitual: — Hoje estive varrendo junto à antiga muralha da cidade. No muro há cinco pedras de cores diferentes, colocadas assim, está vendo? — e com o dedo riscou na areia um grande T. Com a cabeça de lado, olhou um momento, e sussurrou: — Eu reco- nheci essas pedras. Após uma pausa ainda mais longa prosseguiu em tom he- sitante: — Elas pertencem a outra época, ao tempo em que a mu- ralha foi erguida. Muita gente trabalhou nisso. Porém houve duas pessoas que colocaram aquelas pedras na muralha. Era um sinal, sabe? Eu o reconheci. Beppo esfregou os olhos. As palavras dele saíam com difi- culdade: — Eu nos reconheci, você e eu. Tornei a nos ver. Por isso muita gente sorria ao ouvir Beppo Varredor dizer coisas assim. Ou, quando ele virava as costas, fazia o gesto sig- nificativo de tocar com o dedo na testa. Mas Manu gostava dele e dava grande valor às suas palavras. Outro grande amigo de Manu era jovem, e exatamente o contrário de Beppo Varredor. Era um rapaz bonito, com olhos sonhadores, e incrivelmente bem-falante. Era sempre espirituoso e alegre, e dava umas risadas tão gostosas que os outros tinham que rir junto, quisessem ou não. Seu nome inteiro era Girolamo, mas era conhecido simplesmente como Guido. Guido, como Beppo, tinha o apelido tirado do seu emprego, só que, na verdade, não tinha emprego nenhum. Mas às vezes

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ele acompanhava turistas, e por isso ficou conhecido como Gui- do Guia. Assim que apareciam turistas na vizinhança ia falar com

T8 eles, propondo mostrar-lhes as ruínas. Se aceitavam, ele come- çava a discursar, contando as histórias mais fantásticas, inven- tando nomes, datas e acontecimentos, deixando o pessoal ator- doado. Alguns visitantes viravam as costas com ar zangado, po- rém a maioria tomava aquilo como verdade e pagava bom di- nheiro quando Guido passava o boné. Os vizinhos se divertiam com Guido, mas de vez em quan- do diziam que não era muito direito receber dinheiro por um monte de mentiras. — Todos os poetas inventam coisas — dizia então Guido. — E, seja como for, o pessoal recebe alguma coisa em troca do seu dinheiro, não é? E se aquilo que eu conto está ou não está num livro de guia — que diferença faz? Quem sabe lá se as his- tórias no livro também não foram inventadas, só que ninguém se lembra mais? De outra vez ele disse: — Quem sabe o que é verdade e o que não é? Quem sabe o que aconteceu aqui há mil ou dois mil anos? Você, por exem- plo, sabe? — Não — confessaram os outros. — Estão vendo. . . — exclamou Guido. — Como é que vocês podem declarar que minhas histórias são mentiras? As coi- sas podem ter acontecido justamente do jeito que eu conto, e, nesse caso, é verdade. Era difícil encontrar resposta para isso. Mas poucos turis- tas se interessavam em ver o anfiteatro, de modo que Guido tinha que arranjar uma porção de outros empregos. Conforme a opor- tunidade, servia de guardador de carros, testemunha de casamen- to, passeador de cachorros, portador de cartas de amor, ajudante num enterro, vendedor de souvenirs, fornecedor de carne para gatos, e muita coisa mais. O sonho de Guido era tornar-se rico e famoso, morar num palácio rodeado de imenso parque, comer em baixela de ouro e dormir em lençóis de seda. — E vou conseguir — retrucava quando os outros caçoavam — e aí vocês vão lembrar do que eu dizia. . . Mas trabalho sério e perseverança não eram muito do seu agrado. — Assim não é vantagem — costumava dizer para Manu.

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— Quem quiser pode ficar rico desse jeito. Mas olhe só para as pessoas que venderam corpo e alma por um punhado de dinheiro — olhe como é que ficaram! Eu não vou me deixar prender nessa corrida de ratos. Ainda que às vezes só tenha dinheiro para uma xícara de café, serei sempre eu mesmo. Embora pareça impossível existir amizade entre duas pes- soas tão diferentes quanto Guido e Beppo, o fato é que eram amigos. O velho Beppo era a única pessoa que nunca criticava Guido por sua leviandade, e o bem-falante Guido a única pes- soa que jamais caçoava do velho Beppo. Isso talvez tivesse que ver

TT com a maneira de Manu ouvir os dois. Nenhum dos três suspeitava que, em breve, uma sombra cairia sobre sua amizade — não somente essa amizade, mas so- bre toda a vizinhança, uma sombra que vinha crescendo e já se es- tendera, escura e fria, por sobre a grande cidade. Era uma espécie de invasão silenciosa e imperceptível, adi- antando-se diariamente, e à qual ninguém se opunha porque nin- guém tinha tomado consciência do fato. Mas os invasores — quem eram eles? Até o velho Beppo deixou de notar a presença dos homens cinzentos que vinham ocupando a cidade. Entretanto, não eram invisíveis. As pessoas os viam, porém não reparavam neles. Tinham o dom misterioso de parecerem insignificantes. Gra- ças a isso eles conseguiam trabalhar em segredo, ainda com mais facilidade porque não precisavam se esconder. E, naturalmente, já que ninguém reparava neles, ninguém se preocupava em sa- ber de onde tinham vindo, e continuavam a vir, pois cada dia surgiam mais. Circulavam pelas ruas em elegantes automóveis cinzentos, entravam em todas as casas, encontravam-se em todos os restau- rantes. De quando em quando anotavam alguma coisa em seus caderninhos. Os homens vestiam-se de cinzento, usavam chapéu-coco cin- zento, fumavam pequenos charutos cinzentos, e cada um levava uma pasta cinza-aço. Nem Guido tinha reparado que alguns desses cavalheiros andavam pelo anfiteatro, escrevendo febrilmente em seus cader- ninhos. Somente Manu os havia visto, quando, uma noite, suas si- lhuetas escuras destacaram-se à beira das ruínas, encostando as cabeças como se estivessem conferenciando. Não se podia ouvir uma palavra. Porém, desceu pela espinha de Manu um arrepio de frio como nunca ela sentira igual. Enrolou-se mais no seu paletó, mas não adiantou porque não era um frio comum. Na-

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quela noite Manu não conseguiu captar a música distante, que tantas vezes chegava aos seus ouvidos. Mas no dia seguinte a vida continuou como sempre, e Manu não pensou mais nos es- tranhos visitantes. Ela também os esqueceu.

5. HISTÓRIAS PARA O PÚBLICO E HISTÓRIAS PARTICULARES Pouco a pouco, Manu tinha-se tornado indispensável para Guido. Ele adorava aquela menina esfarrapada, e gostaria de levá-la consigo por toda a parte. Como já dissemos, sua grande paixão era inventar histórias. Antigamente algumas de suas histórias não davam certo: ou ele ficava sem idéias, e continuava repetindo a mesma história, ou copiava algo que tivesse visto no cinema ou lido no jornal. Mas desde que conhecera Manu elas haviam repentinamente criado 20 asas. Era principalmente quando Manu estava ouvindo, que sua

imaginação funcionava. Chegaram turistas que queriam ver o anfiteatro, (Manu es- tava sentada nas pedras, um pouco à parte) e Guido começou: "Senhoras e Senhores, como estou certo de que todos sabem, a Imperatriz Strapazia Augustina viu-se forçada a empreender inú- meras guerras a fim de defender siu reino contra os constantes

0

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F ataques dos Picks e dos Cocks. Certa ocasião, após ter subjugado mais uma vez esses povos, ameaçou exterminá-los se o seu rei, Xaxotraxolus, não lhe entregasse como indenização o seu peixe dourado. A Imperatriz tinha ouvido que o Rei Xaxotraxolus ti- nha um peixinho que ia virar ouro puro assim que ficasse grande,

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e estava resolvida a possuir essa raridade. Quando soube dessa exigência o Rei Xaxotraxolus deu uma risadinha marota, escon- deu o verdadeiro peixinho dourado e mandou para a Imperatriz um filhote de baleia dentro de uma terrina de sopa guarnecida de pedras preciosas. A Imperatriz ficou meio espantada, pois ti- nha imaginado o peixe dourado muito menor. Mas — pensou — quanto maior melhor, porque então o peixe vai render muito mais ouro. É verdade que no momento o peixe não mostrava qualquer sinal de ouro, o que a preocupou um pouco, mas o en- viado do Rei explicou que o peixe só ia ficar dourado quando atingisse seu maior tamanho, e era essencial que o seu desenvol- vimento não fosse prejudicado em nada. Com isso a Imperatriz Strapazia teve de se contentar. O peixinho ia crescendo dia a dia. Foi ficando grande e gordo. Logo a terrina de sopa ficou pequena demais para ele. A Imperatriz instalou-o na sua banheira. Mas dali a pouco também já estava grande demais para a banheira. Foi preciso colocá-lo na piscina da Imperatriz. Todos os dias ela ficava durante horas sentada à beira da piscina, olhando o peixe crescer, só pensando no ouro que ia render. Afinal até a piscina im- perial se tornou muito pequena para o peixe. Foi então que a Im- peratriz Strapazia mandou seu povo construir o edifício cujas ruínas estamos vendo aqui. Era um gigantesco aquário redondo, e ali pelo menos havia espaço bastante para o peixe. Agora a Im- peratriz passava o dia e a noite vigiando o peixe, para verificar se já estava virando ouro. Não confiava em ninguém, nem nos es- cravos, nem nos parentes: tinha medo que lhe roubassem o pre- cioso peixe, então ficava ali sentada, emagrecendo dia a dia de- vido ao medo e à aflição. Nunca fechava os olhos: estava sempre de olhos fitos no peixe, que espadanava alegremente na água, sem a mais ligeira intenção de algum dia virar ouro. A Impera- triz foi abandonando cada vez mais os negócios de Estado, e era exatamente isso que os Picks e Cocks estavam esperando. Sob o comando do Rei Xaxotraxolus lançaram um ataque, e dessa vez conquistaram o país inteiro num instante. Quando finalmente a Imperatriz Strapazia recebeu essas notícias, se atirou dentro des- de aquário aqui, e afogou-se junto ao peixe que fora o túmulo de todas as suas esperanças. Para comemorar a vitória, o Rei Xa- xotraxolus mandou matar a baleia, e durante uma semana inteira o povo todo comeu filé frito de baleia." Com essas palavras Guido encerrou suas explicações de guia, deixando o público visivelmente impressionado e olhando res- peitosamente para as ruínas. Só um homem, meio cético, indagou:

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— Quando é que isso tudo se supõe ter acontecido? Mas Guido, que tinha respostas sempre prontas, não va-

Como o senhor sabe, a Imperatriz Strapazia foi contem- porânea do famoso filósofo Noiosiu-o-Velho. O perguntador não podia, é claro, confessar que não tinha a menor idéia de quando teria vivido o famoso filósofo Noiosiu, portanto pôde apenas responder: Ah. . . Muito obrigado. Todos os turistas estavam encantados. Nunca lhes falaram dos tempos antigos de maneira tão vivida e interessante. Modes- tamente Guido estendeu o boné, e os turistas mostraram-se mais que generosos. Desde a chegada de Manu Guido nunca havia contado duas vezes a mesma história. Quando Manu estava entre os ouvintes, ele tinha a impressão de que dentro dele se tinha aberto uma comporta, despejando torrentes de idéias novas e invenções, sem nem ter que fazer o esforço de pensar. Ao contrário, muitas vezes tinha de tentar frear sua imaginação, para não ir longe de- mais, como naquela vez em que tinha apavorado duas senhoras americanas com a seguinte história: "Todo o povo de seu belo e livre país sabe, minhas senho- ras, que o notoriamente cruel tirano Marxentius Communis, cog- nominado "O Vermelho", concebeu o plano de alterar o mundo inteiro para sua própria conveniência. Mas os homens continua- vam sempre os mesmos e se recusavam a mudar. Então, na ve- lhice, Marxentius ficou louco. Quando sua loucura chegou ao auge ele concebeu a idéia de largar o mundo como estava, en- quanto ele próprio ia criar um outro mundo novinho. Para isso mandou construir um globo exatamente do tamanho do antigo, contendo uma cópia exata de tudo que existia nele: cada casa, cada árvore, cada montanha, cada oceano. A humanidade toda foi forçada, sob pena de morte, a trabalhar nessa empresa gi- gantesca. Começaram por construir a base sobre a qual ia ser pousado o novo globo. E os restos dessa base são o que as se- nhoras estão vendo aqui. Depois começaram a construir o pró- prio globo, e quando afinal ficou pronto tudo que havia no velho mundo foi copiado, com imensa dificuldade. Naturalmente, era preciso grande quantidade de material, e o único lugar onde podia ser conseguido era na própria terra antiga. Então a terra foi ficando, pouco a pouco, menor, enquanto crescia o novo globo. Afinal, para completar o novo mundo tiveram de usar

cilou:

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até o último restinho do velho mundo. Naturalmente, também toda a humanidade teve de se mudar para o mundo novo, já que o velho tinha sido todo gasto. Quando Marxentius Commu- nis compreendeu que agora, apesar de tudo, as coisas eram as mesmas que sempre tinham sido, enrolou-se em seu manto e saiu em majestosa atitude. Para onde foi ninguém sabe. Então as senhoras estão vendo que esta depressão em forma de cratera, hoje em ruínas, outrora formava a base para o globo de Mar- xentius Communis que repousava sobre o mundo anterior. Por- tanto, as senhoras precisam visualizar tudo isso ao contrário." As duas americanas empalideceram, e uma perguntou: — E que aconteceu com o mundo de Marxentius Com- munis? — A senhora está em pé nele. Este mundo é o novo globo. Dessa vez não adiantou Guido espichar o boné. As duas velhotas gritaram de susto e saíram correndo. Aquilo de que o nosso Guido gostava mais do que tudo, era de contar histórias só para a pequenina Manu, quando nin- guém mais estava ouvindo. Eram geralmente contos de fadas. Inventados especialmente para eles dois, eram completamente di- ferentes das outras histórias que Guido contava, mesmo as mais românticas e poéticas. SEGUNDA PARTE

O TEMPO PERDIDO

6 . A SOMA ESTÁ CERTA MAS DÁ ERRADO

Há na vida um grande mistério que é o Tempo. Existem calendários e relógios que o medem, mas significam pouco, por- que às vezes uma hora parece uma eternidade, ao passo que de outras vezes passa como um relâmpago. Ninguém sabia disso melhor que os homens cinzentos. Nin- guém possuía com tanta intensidade a compreensão do valor da vida contida em uma hora, um minuto ou até um segundo. Pos- suíam a seu modo, assim como a sanguessuga "possui" a vítima da qual chupa o sangue; mas o fato é que possuíam esse con- ceito, e manobravam seus negócios de acordo. Eles tinham pla- nos para utilizar o tempo que os homens gastavam; e era essen- cial que ninguém percebesse suas atividades. Aos poucos, tinham

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conseguido estabelecer-se na vida da grande cidade e de seus ha- bitantes. Sem que ninguém notasse, eles progrediam dia a dia e gra- dualmente iam dominando a humanidade. Possuíam uma lista de todos aqueles que poderiam ser úteis aos seus planos, sem que as vítimas tivessem a mais ligeira suspeita. Tratava-se, por exem- plo, do barbeiro, Seu Fusi. Não sendo um cabeleireiro famoso, era respeitado na sua profissão e vivia bem, sem ser rico nem pobre. Um dia Seu Fusi estava na porta da loja, esperando os fre- gueses. Estava sozinho, olhando a chuva pingando na calçada. Era um dia cinzento, triste, e no coração de Seu Fusi a atmos- fera também era cinza e melancólica. "A vida vai passando", pensava ele, "e para mim tem sido apenas o clique-clique da tesoura, umas conversinhas com os

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clientes, e muita espuma de sabão. Afinal, que é que eu real- mente consegui? Quando eu morrer será como se nunca tivesse existido."

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Não é que Seu Fusi tivesse alguma coisa contra as conver- sinhas: ele até gostava de manifestar suas opiniões e ouvir as críticas dos clientes. Também nada tinha contra o clique-clique das tesouras, ou contra a espuma de sabão. Gostava imenso do seu trabalho, e sabia que o executava bem. Especialmente no barbear debaixo do queixo, ninguém manobrava a navalha com tanta habilidade. Assim mesmo, havia momentos em que nada disso parecia valer a pena. Toda a gente tem momentos assim, de tristeza e melancolia. "Minha vida é um fracasso", pensava Seu Fusi. "Se ao me- nos pudesse levar uma vida categorizada, eu seria uma pessoa muito diferente." Seu Fusi não sabia bem em que consistia essa "vida categorizada": imaginava algo de importante e luxuoso, como o que ele via nas revistas sofisticadas. Aborrecido, continuou suas reflexões: "A questão é que meu trabalho não me deixa tempo para essas coisas. Para viver uma vida categorizada a gente tem que dispor de tempo, precisa de liberdade. Mas eu vou passar minha vida inteira aprisionado entre o clique-clique das tesouras, as conversinhas, e a espuma de sabão." Justo nesse momento um elegante carro cinzento parou à porta da barbearia. Um senhor de terno cinza desceu, e entrou na loja. Colocando sua pasta cinza-aço sobre a mesa em frente do espelho, pendurou no cabide seu chapéu-coco cinza, sentou- se na cadeira de baTbear, tirou do bolso um caderninho que co- meçou a folhear, sempre tirando baforadas de um pequeno cha- ruto cinzento. Seu Fusi fechou a porta porque, de repente, começara a fazer um frio esquisito na lojinha. — Que é que o senhor deseja? — perguntou. O senhor cinzento, sem um sorriso, falando numa voz sem expressão, que poderia ser qualificada como cor de cinza res- pondeu: — Eu venho de parte do Banco Poupa-Tempo. Sou o agente tfi XYQ/384/b. Nós sabemos que você tenciona abrir uma conta conosco. — Eu? — indagou Seu Fusi, sem compreender. — Ora, vejamos, meu caro senhor: o seu tempo está sen- do desperdiçado por entre o clique-clique das tesouras, as con- versinhas e a espuma de sabão. Quando morrer, será como se nunca tivesse existido. Se dispusesse de tempo para levar uma vida categorizada, você seria uma pessoa muito diferente. Só o que lhe falta é tempo. Estou certo?

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— Ê exatamente isso que eu estava pensando agora mes- mo — murmurou Seu Fusi, tremendo porque, apesar da porta estar fechada, o frio aumentava na lojinha. — Está vendo? — disse o senhor cinzento, com ar muito seguro, tirando baforadas do seu charutinho. — Mas como é que você há de encontrar tempo? O único jeito é poupá-lo! Veja,

2™ Seu Fusi, você desperdiça o seu tempo com a maior impru- dência, conforme eu posso lhe provar por meio de uma sim- ples conta de somar. Um minuto tem sessenta segundos. Uma hora tem sessenta minutos. O agente N? XYO/384/b tirou do bolso uns pedaços de giz cinzento, e começou a escrever números no espelho do bar- beiro. — Sessenta vezes sessenta são três mil e seiscentos. Então, uma hora tem três mil e seiscentos segundos. Um dia tem vinte e quatro horas. Portanto, três mil e seiscentos vezes vinte e quatro dá oitocentos mil e quatrocentos segundos por dia. Como você sabe, um ano tem trezentos e sessenta e cinco dias (excluindo o ano bissexto), o que dá trinta e um milhões, qui- nhentos e trinta e seis mil segundos por ano. Ou trezentos e quinze milhões, trezentos e sessenta mil segundos em dez anos. Até que idade você acha que vai viver, Seu Fusi? — Be-bem. . . — gaguejou o barbeiro, assombrado. — Eu espero viver até os setenta ou oitenta, se Deus quiser. — Muito bem — prosseguiu o senhor cinzento. — Vamos calcular por baixo, supondo que sejam apenas setenta anos. Te- ríamos trezentos e quinze milhões, trezentos e sessenta mil, ve- zes sete. Dá dois mil duzentos e sete milhões, quinhentos e vin- te mil segundos. — E escreveu no espelho, em números bem grandes: 2.207.520.000. Sublinhou várias vezes a cifra, e ex- plicou: — Está vendo. Seu Fusi, essa é a fortuna à sua disposição. Seu Fusi engoliu em seco e enxugou a testa. A soma era de atordoar. Ele nunca percebera que era tão rico. — Ê — continuou o agente — é uma cifra impressionante, não é? Mas vamos examiná-la melhor. Qual é sua idade? — Quarenta e dois. — E quantas horas, em média, dorme por noite? — Cerca de oito — confessou Seu Fusi. O agente fez um cálculo-relâmpago: — Quarenta e dois anos e oito horas por dia vem a ser quatrocentos e quarenta e um milhões, quinhentos e quatro mil segundos, e essa quantidade de tempo deve, sem dúvida al-

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guma, ser considerada perdida. Agora, quantas horas por dia você dedica ao trabalho? — Umas oito horas — respondeu Seu Fusi, já meio desani- mado. — Então temos que repetir a mesma quantidade na colu- na do débito — continuou o agente, implacável. — E, natural- mente, temos também que deduzir outro período de tempo, pois você precisa comer. Quanto tempo por dia você gasta em co- mer, incluindo todas as refeições? — Não sei exatamente — disse Seu Fusi muito nervoso. — Creio que umas duas horas. — Acho muito pouco — contestou o agente — mas vá lá. . . Supondo que esteja certo, isso dá, em quarenta e dois anos, cento e dez milhões, trezentos e setenta e seis mil segundos. Con- tinuando — conforme nós sabemos, você mora com sua velha mãe. Todos os dias passa uma hora inteira com ela, isto é, sen- ta-se junto dela e conversa, embora ela seja surda e mal consiga ouvir uma palavra do que você diz. Isso também conta como » tempo desperdiçado, que sobe a cinqüenta e cinco milhões, cen- to e oitenta e oito mil segundos. Outra coisa: você tem um periquito, inteiramente desnecessário, cujo trato exige diariamen- te um quarto de hora do seu tempo, o que soma treze milhões, setecentos e noventa e sete mil segundos. — Ma-mas... — tentou argumentar Seu Fusi. — Não interrompa! — comandou o agente, multiplicando mais e mais rápido. — Como sua mãe tem reumatismo, você mesmo tem que fazer parte do serviço da casa. Tem de fazer as compras, limpar os sapatos, e várias outras tarefas ingratas. Quanto tempo diário isso lhe custa? — Talvez uma hora, mas... — Resultado, cinqüenta e cinco milhões, cento e oitenta e oito mil segundos desperdiçados. Além disso, sabemos que você vai ao cinema uma vez por semana, passa uma noite por semana com o Grupo de Canto Coral, vai ao bar duas noites por se- mana, e as restantes passa com amigos, ou lendo um livro. Em suma, você desperdiça tempo em ocupações inúteis durante cerca de três horas diariamente, o que soma cento e sessenta e cinco milhões, quinhentos e sessenta e quatro mil segundos. E tem aquele seu segredinho, sabe. . . Seu Fusi estava com tanto frio que seus dentes começaram a bater. — Sabem disso também? Eu pensei que fosse um segredo entre mim e Dona Daria, e. . .

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— No mundo de hoje não existe segredo — interrompeu o agente N? XYQ/384/b. — Responda à minha pergunta: você I tenciona casar com Dona Daria? — Não, de jeito nenhum. . . — Isso mesmo — continuou o homem cinza. — Dona Da- ria terá que ficar a vida inteira numa cadeira de rodas, porque é paralitica das pernas. Entretanto, você vai visitá-la todos os dias durante meia hora, e leva flores. . . Por quê? — Ela fica tão feliz. . . — respondeu Seu Fusi, quase cho- rando. — Mas para você é tempo desperdiçado, que soma vinte e sete milhões, quinhentos e noventa e quatro mil segundos. E se considerarmos que você costuma todas as noites passar um quarto de hora sentado junto da janela, pensando no que aconteceu du- rante o dia, temos que debitar mais treze milhões, setecentos e noventa e sete mil segundos. Agora vamos ver quanto tempo lhe resta, Seu Fusi. A conta escrita no espelho era esta:

Sono 441.

Trabalho 441 .504 Refeições 110 .376 Mãe 55 .188 Periquito 13 .797 Compras etc. 55 188 Amigos, Grupo 165 .564 Coral etc.

"Segredo" 27. 594. Janela 13 797 TOTAL 1.324 512

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segundos .000 .000 .000 .000 .000 .000 •I

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Esta soma representa o tempo que você desperdiçou até agora. Que tem a dizer? Seu Fusi não tinha absolutamente nada a dizer. O homem cinza balançou a cabeça com ar pensativo: — É, é isso mesmo. O total já ultrapassa mais da metade do seu capital inicial. Mas agora precisamos ver o que de fato lhe resta dos seus quarenta e dois anos. Como já sabe, um ano tem trinta e um milhões, quinhentos e trinta e seis mil segun- dos, e isso, multiplicado por quarenta e dois, vem a ser mil tre- zentos e vinte e quatro milhões, quinhentos e doze mil segundos. Abaixo da soma anterior, escreveu: Tempo perdido até hoje Menos tempo disponível até agora RESULTADO 1.324.512.000 segundos 1.324.512.000 segundos 0.000.000.000 segundos Isso pronto, guardou o giz no bolso, e esperou que os zeros tivessem tempo de fazer seu efeito sobre Seu Fusi. E de fato, produziram um efeito e tanto. Arrasado, Seu Fusi pensou: "En- tão é esse o balanço de minha vida até hoje". . . Estava tão impressionado com a conta, detalhada como era até o último sjgundo, que sem duvidar a aceitou. E a adição estava mes- mo perfeitamente certa. Era um dos truques que os homens cin- zentos utilizavam para enganar as pessoas sempre que podiam. — Francamente, acho que você não pode continuar assim — recomeçou o agente Nv XYQ/384/b com voz suave. — Não gostaria de começar a poupar um pouco do seu tempo, Seu Fusi? Seu Fusi fez sinal que sim. Seus lábios estavam azuis de frio.

000 000 000

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— Por exemplo — continuou a voz cinzenta do agente ro ouvido do barbeiro. — Se você tivesse começado, há vinte anos, a poupar uma hora por dia, agora teria um capital de vinte e seis milhões, duzentos e oitenta mil segundos. Se tivesse poupa- do duas horas diárias teria, é claro, o dobro dessa soma, ou seja, cinqüenta e dois milhões, quinhentos e sessenta mil segundos. E eu lhe pergunto. Seu Fusi, que são duas miseráveis horinhas comparadas a esse total? — Nada! — gritou Seu Fusi. — Uma coisa à toa. . . — Fico satisfeito vendo que você compreende isso — con- tinuou o agente. — E se agora calcularmos quanto você teria economizado em mais vinte anos assim, chegamos à simpática soma de cento e cinco milhões, cento e vinte mil segundos. Todo esse capital estaria à sua disposição quando você chegasse aos sessenta e dois anos. — For-formidável! — gaguejou Seu Fusi, os olhos quase saltando das órbitas. — Espere um instante, ainda tem mais: o Banco Poupa- Temoo não somente cuida do tempo que você poupou, mas ain- da lhe paga os juros sobre isso. Quer dizer que, de fato, você teria muito mais ainda. — Quanto mais? — indagou Seu Fusi, ofegante. — Isso dependeria de você — explicou o agente. — Con- forme a quantia que poupasse e o tempo que deixasse suas eco- nomias frutificando conosco. — Frutificando? como assim?.. . — Muito simples — explicou o cavalheiro cinzento. — Se durante cinco anos você não retirar seu tempo poupado, nós de- positamos o equivalente em sua conta. Em outras palavras, suas economias dobram cada cinco anos. Em dez anos, já valem qua- tro vezes a quantia original, em quinze anos oito vezes, e assim por diante. Se há vinte anos atrás você tivesse começado a pou- par meramente duas horas por dia, no aniversário dos seus ses- senta e dois anoA você teria à sua disposição duzentos e cinqüen- ta e seis vezes a soma que teria poupado até hoje. Chegaria a vinte e seis mil novecentos e dez milhões, setecentos e vinte mil segundos. Tornou a puxar do bolso o giz cinzento. Escreveu no es- pelho o número: 26.910.720.000 segundos. Pela primeira vez um ligeiro sorriso entreabriu seus lábios. — Você pode verificar que isso vem a ser mais dez vezes equivalente à duração de sua vida inteira. E pode ser conseguido

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simplesmente pela economia de duas horas diárias. Diga-me se não acha que é uma oferta interessante. — Claro que é! — respondeu o barbeiro, já quase des- maiando. — Claro que é. Eu sou cretino por não ter começado a poupar tempo desde muitos anos. Só agora estou percebendo isso, e confesso que fico desesperado. — Não há motivo para isso — retrucou suavemente o ho- mem cinzento. — Nunca é tarde demais. Se quiser, podemos co- meçar hoje mesmo. Vai ver como vale a pena. — Eu gostaria muito. . . Que é que tenho de fazer? — Meu caro senhor — e o agente ergueu as sobrancelhas — estou certo de que sabe como poupar tempo! Só o que você

37 tem de fazer é trabalhar mais rápido, e deixar de lado tudo que não é essencial. Em vez de dedicar meia hora a cada freguês, dedique apenas um quarto de hora. Poupe o tempo que tem des- perdiçado em conversas com eles. Reduza para a metade a hora que você passa com sua mãe. Melhor ainda, mande-a para um Asilo de Velhos, bom e barato, onde tomarão conta dela, e você estará poupando uma hora inteira por dia. Largue esse periquito que não serve para nada. Visite Dona Daria cada quinze dias, se fizer questão. Acabe com o quarto de hora que você gasta rememorando os acontecimentos diários. Acima de tudo, desper- dice menos tempo com o Canto Coral, e leitura de livros, e os seus supostos amigos. A propósito, eu lhe aconselho a colocar um bom relógio, bem grande, na sua loja, para poder controlar a atividade de seu empregado. — Tudo isso está muito bem — disse Seu Fusi. — Eu pos- so fazer tudo isso, mas o que acontece com o tempo que eu economizo? Que é que eu faço com ele? Tenho de entregar para guardar? A quem? Ou eu mesmo é que guardo em algum lugar? Como é que funciona a coisa? O agente tornou a mostrar aquele ligeiro sorriso. — Deixe tudo por nossa conta. — Ah, então está bem — respondeu o barbeiro, boquia- berto. — Confiarei em vocês. — Pode ter absoluta confiança, meu caro senhor — disse o agente, levantando-se da cadeira. Apanhou o chapéu e a pasta. — Um minuto! — gritou Seu Fusi. — Não devíamos fazer alguma espécie de contrato? O agente N? XYQ/384/b, já na porta, virou-se, lançando para Seu Fusi um olhar ligeiramente contrariado.

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— Para que serviria? Sua palavra basta. Adeus, Seu Fusi. Com isso, o agente entrou no seu elegante carro cinza, e partiu rapidamente. Seu Fusi só se sentiu um pouco melhor quando a fumaça do charuto do agente desapareceu. Ao mesmo tempo foram também desbotando os números no espelho, e quando tinham de- saparecido completamente Seu Fusi já não conseguia lembrar-se da visita do senhor cinzento, embora lembrasse a decisão toma- da no final, que ele agora acreditava ter sido inteiramente sua. A decisão de começar a poupar tempo, de modo a começar vida nova numa data incógnita do futuro, tinha-se incrustado em seu coração como uma farpa envenenada. Nisso chegou o primeiro freguês do dia. Seu Fusi o recebeu secamente, executou o estrito mínimo de serviço, e não conver- sou nada, de modo que terminou em vinte minutos em vez de meia hora. Tratou desse jeito todos os fregueses. Feito assim, o trabalho já não lhe dava prazer algum, porém isso agora já não tinha importância. Tomou mais dois ajudantes e ficou de olho neles, fiscalizando para aue não perdessem um minuto. Cada mo- vimento era calculado até a uma fração de segundo, e agora uma

tabuleta pendurada na barbearia de Seu Fusi dizia: _ TEMPO POUPADO É TEMPO DOBRADO Seu Fusi escreveu uma carta seca para Dona Daria, dizendo que infelizmente, devido à falta de tempo, não poderia mais vi- sitá-la. Vendeu o periquito para uma loja de animais. Colocou a mãe num bom e barato Asilo de Velhos, onde passou a visitá-la uma vez por mês. Nas outras coisas também seguiu todos os conselhos dados pelo homem cinzento, convencido de que eram todas idéias suas. Foi ficando cada vez mais atormentado e irri- tável, pois a coisa mais estranha era que, apesar de todo o tempo que ele economizava, nunca lhe sobrava tempo. O tempo desa- parecia misteriosamente, e nunca mais voltava. Os d:as foram ficando mais e mais curtos, a princípio sem que percebesse, de- pois ostensivamente. Antes que o barbeiro desse por isso. mais uma semana tinha passado, e outro mês, e outro ano. e depois outro e outro. E quando, por acaso, se deu conta de que os dias estavam voando mais e mais depressa, só redobrou seus esforços desesperados para poupar o tempo.

O que aconteceu com Seu Fusi já tinha acontecido com mui- ta gente da cidade grande. Cada dia maior número de pessoas começava aquilo a que chamavam "economizar tempo". Todos os dias a televisão, o rádio, a imprensa, anunciavam

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novos expedientes para poupar o tempo, de maneira a deixar as pessoas livres para viver uma "vida categorizada" num vago fu- turo. Muros e tapumes estavam cobertos de anúncios com figu- ras descrevendo todas as formas possíveis de prosperidade, e por baixo, em letras fluorescentes, brilhavam frases tais como:

A SORTE ESTÁ COM OS POUPADORES DE TEMPO! OU O FUTURO PERTENCE A QUEM POUPA TEMPO! OU APROVEITE SUA VIDA — POUPE TEMPO!

A realidade, entretanto, era muito diferente. De fato, os Poupadores de Tempo vestiam-se melhor do que o pessoal que morava perto do velho anfiteatro. Ganhavam mais dinheiro, e assim possuíam mais para gastar, mas tinham um ar mal-humo- rado, cansado ou cínico, e o olhar hostil. Naturalmente nunca lhes havia chegado ao ouvido a expressão: "Por que não vai falar com Manu?" Não tinham ninguém que os ouvisse de modo a sentirem-se inteligentes, corteses, ou até felizes. Mas ainda que tal pessoa existisse, era pouquíssimo razoável que alguém fosse procurá-la, a não ser que o assunto pudesse ser resolvido em menos de cinco minutos — se não, seria considerado desperdício de tempo. Para eles já não existia a arte de comemorar adequa- damente qualquer ocasião, alegre ou solene. Sonhar, era quase um crime. Mas, o que menos toleravam era o silêncio, pois quando estava tudo quieto ficavam apavorados, com um começo de suspeita acerca do rumo que esta vida tinha tomado. Por esse 32 motivo faziam barulho assim que o silêncio ameaçava surgir. Não era um barulho alegre, como sc ouve num recreio de crian- ças; era um barulho irritado, agressivo, que se tornava cada dia mais alto na grande cidade. Já não se considerava importante que o homem gostasse do seu trabalho, ou se orgulhasse dele. A única coisa importante era que trabalhasse cada um o mais possível, no menor tempo pos- sível. Por isso, letreiros foram colocados nas fábricas e nos escri- tórios, dizendo:

O TEMPO É VALIOSO — NÃO O PERCA! OU TEMPO É DINHEIRO — ECONOMIZE!

Avisos semelhantes foram pendurados acima das mesas de gerentes e poltronas de executivos; apareceram nos consultórios médicos, nas lojas, restaurantes, até nas escolas e creches. Nin- guém foi esquecido.

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Por fim. a própria cidade foi mudando. Os antigos bairros foram demolidos, e ergueram-se novas construções. Era muito mais barato, e sobretudo mais rápido, construir todas as casas iguais. No lado norte da cidade grande já haviam surgido novos conjuntos residenciais. Em fileiras intermináveis alinhavam-se blo- cos de apartamentos, cada um tão igual ao outro como dois fei- jões numa vagem, e como todas as casas pareciam iguais todas as ruas também pareciam iguais. Essas ruas idênticas cresciam mais e mais, estendendo-se em linhas retas até o horizonte: um deserto simétrico. A vida para o pessoal que morava ali decorria exatamente da mesma maneira, pois ali tudo era medido e cal- culado com precisão, chegando ao último centímetro e ao último segundo. Enquanto eles todos estavam poupando tempo, ninguém queria confessar que sua vida se tinha tornado cada dia mais infeliz, mais monótona, mais sem alma. Quem mais sentia isso eram as crianças, pois ninguém mais tinha tempo para elas. Mas tempo é vida. E a vida reside no coração. E quanto mais o pes- soal poupava, menos possuía. 7 . MANU PROCURA SEUS AMIGOS E É PROCURADA POR UM INIMIGO — Não sei porque é — disse Manu um dia — mas me pa- rece que nossos velhos amigos vêm me visitar muito menos. Há alguns que não vejo há um tempo enorme. Guido Guia e Beppo Varredor estavam sentados junto dela nos degraus do anfiteatro, onde crescia o capim, assistindo o pôr-do-sol. — É — confirmou Guido — também acho. Cada vez tam- bém acho menos pessoas que queiram ouvir minhas histórias. Alguma coisa está errada. — Mas o que é? — indagou Manu. Guido sacudiu os ombros, e apagou as letras que tinha es-

33 crito numa velha lousa. Algumas semanas antes Beppo, o Var- redor, havia trazido para Manu a lousa que encontrara num mon- te de entulho. Desde então Guido passava todos os dias algum tempo ensinando o alfabeto a Manu, e como esta tinha muito boa memória, dali a pouco já podia ler direitinho. Beppo Varre- dor, que tinha ficado pensando na pergunta de Manu, respondeu: — É verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por toda a parte. Já faz muito tempo que reparei. — Reparou em quê? — perguntou Manu. Beppo pensou um pouco antes de responder: — Nada de bom. — Fez nova pausa antes de prosseguir: — Está esfriando.

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— Tolice! — exclamou Guido, passando o braço em torno dos ombros de Manu, num gesto de consolo. — Seja como for, mais e mais crianças continuam a vir aqui. — É por isso — disse Beppo — é justamente por isso. — Que é que você quer dizer? — indagou Manu. Beppo demorou muito para responder: — Elas não vêm para estar conosco. Vêm apenas à pro- cura de um refúgio. Todos três olharam para o centro da arena, onde algumas crianças estavam brincando de um novo jogo de bola que haviam inventado naquela mesma tarde. Entre elas estavam alguns ve- lhos amigos de Manu. Mas além desses havia várias crianças que só tinham começado a aparecer nos últimos dias, entre os quais um menino pequeno que naquela tarde vinha pela primeira vez. Cada dia vinham mais e mais crianças que não tinham a mínima idéia de como brincar. Ficavam ali sentadas e aborreci- das, só olhando para Manu e seus amigos. De vez em quando interrompiam de propósito a brincadeira dos outros e estragavam tudo; no começo houve muita discussão e briga, mas não dura- ram, porque a presença de Manu afetava até as crianças novas, e breve começaram a ter boas idéias, e juntar-se às outras com entusiasmo. Mas quase todos os dias chegavam novas crianças, algumas vindas do lado oposto da grande cidade, e então as ou- tras tinham que começar tudo de novo, pois basta uma de má vontade para estragar o jogo. Havia também outra coisa, que co- meçara uns dias antes e Manu não entendia. Cada vez mais, as crianças traziam consigo brinquedos, brinquedos caros que não eram bons de brincar, tais como tanques de controle remoto que andavam em círculo porém não podiam fazer mais nada. Eram brinquedos caríssimos, .Amo os amigos de Manu nunca haviam possuído, e muito menos ela própria. Mas neles nada era deixado à imaginação. Muitas vezes as crianças ficavam ali sentadas du- rante horas, de olhos fitos naqueles brinquedos que rodopiavam, zuniam, bamboleavam, fascinadas mas sem interesse porque não sabiam o que fazer com aquilo. Acabavam por voltar às antigas brincadeiras, com umas caixas vazias, uma velha toalha de mesa, um punhado de pedrinhas. Naquela tarde parecia haver algo atrapalhando o jogo. Uma a uma, as crianças foram desistindo, até que afinal todas estavam sentadas em roda de Manu, Beppo e Guido. Gostariam que Gui- do lhes contasse uma história, mas não era possível, porque o garotinho que naquela tarde aparecera pela primeira vez tinha

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levado um rádio transistor e, sentado sozinho, ouvia um pro- grama de anúncios, no volume máximo. — Você não pode abaixar esse barulho estúpido? — per- guntou, em tom agressivo, Franco, o menino de aspecto rela- xado. — Eu posso tocar meu rádio tão alto quanto eu quiser. — Ele tem razão — disse o velho Beppo. — Nós não po- demos proibi-lo. O máximo que podemos é pedir que não faça isso. Franco tornou a sentar, mal-humorado: — Então ele devia ir para algum outro lugar. A tarde in- teira ele atrapalhou tudo. — Com certeza ele tem suas razões — disse Beppo, olhan- do para o garoto com expressão de simpatia. — Garanto que tem. O garoto não disse nada, mas dali a pouco baixou o rádio, olhando para outro lado. Manu levantou e foi sentar perto dele. Ele desligou o rádio, e durante alguns momentos fez-se silêncio. — Conta uma história, Guido — pediu uma das crianças que só começara a aparecer havia pouco tempo. — É, conta, por favor! — gritaram os outros. — Conta uma história engraçada — não, uma de meter medo — não, uma de fada — não, uma história de aventuras! Pela primeira vez na sua vida Guido não estava disposto a contar histórias. Por fim, pediu: — Eu gostaria muito mais que vocês me contassem alguma coisa, alguma coisa sobre vocês e suas casas, o que é que vocês fazem o dia todo, e porque estão aqui. As crianças ficaram quietas. De repente as fisionomias tinham- se tornado tristes e fechadas. Afinal uma delas disse: — Nós agora temos um carro muito bonito. Nos sábados, quando Papai e Mamãe têm tempo, eles lavam o carro, e se eu me comportei bem tenho licença de ajudar. Quando eu for gran- de vou ter um assim. Uma menininha disse: — Eu posso ir ao cinema todos os dias, se quiser, para meus pais me largarem num lugar seguro, porque eles infeliz- mente não têm tempo para mim. — Fez uma pausa, e acrescen- tou: — Mas eu não gosto de ser largada num lugar seguro, então eu venho aqui, escondido, e poupo o dinheiro do cinema. — Eu já tenho doze discos de contos de fada — disse um menino pequeno. — E posso tocar quando quero. Primeiro, quan- do meu pai voltava do trabalho sempre me contava histórias,

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e era ótimo. Mas agora ele nunca está em casa, ou então está muito cansado e não tem vontade de contar histórias. — E sua mãe? — perguntou Manu. — Ela também está fora de casa o dia inteiro, agora. — É — disse Maria — na minha casa é a mesma coisa, mas por sorte eu tenho Dedé. — Beijou a irmãzinha que estava sentada no seu colo, e continuou: — Quando eu chego da es- cola esquento a comida, depois faço meus deveres, e depois nós ficamos rodando por aí, até ficar escuro. Agora a gente quase sempre vem pra cá. Com movimentos de cabeça, as crianças concordavam com o que ela dissera, pois era mais ou menos aquele o padrão de vida de todas elas. — Eu acho ótimo meus pais não terem tempo para cuidar de mim — disse Franco (embora ele não parecesse nada conten- te) — se não eles começam a discutir e acabam me dando uma surra. De repente o menino com o transistor virou-se para eles e disse: — Eu agora estou ganhando muito mais dinheiro pra gastar. — Claro — atalhou Franco. — Eles nos dão mais dinheiro para ficarem livres de nós. Eles não gostam mais de nós, não gos- tam mais de nada. — É mentira! — gritou zangado o garotinho do rádio. — Meus pais gostam muito de mim. Eles não têm culpa de não te- rem tempo. É o jeito que as coisas são. Mas em troca eles me deram este transistor que custa muito caro. Isso prova que eles gostam de mim, não? Ninguém respondeu. E de repente o menino começou a cho- rar. As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os olhos. Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas. — É — falou o velho Beppo, após uma longa pausa. — Está ficando frio. — Eu acho que daqui a pouco não vou mais poder vir aqui — disse Paulo, o menino de óculos. — Por que não? — indagou Manu, surpreendida. — Porque meus pais dizem que vocês todos são uns boas- vidas que não servem pra nada — explicou Paulo. — Dizem que vocês estão roubando o tempo que é de Deus. e é por isso que vocês têm tanto tempo. Dizem que há gente demais como vocês, e é por isso que os outros têm menos tempo. E não querem que eu venha mais aqui, para não ficar igualzinho a vocês.

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Algumas das crianças, que já tinham ouvido a mesma coisa, concordaram com um movimento de cabeça. Guido encarou cada uma das crianças por sua vez: — E é isso que você também acha de nós? Por que conti- nua vindo aqui apesar disso? Seguiu-se um breve silêncio, que Franco rompeu: — Eu não ligo. De qualquer jeito, meu velho sempre diz que eu quando crescer vou ser ladrão. — Ah, é? — perguntou Guido, erguendo as sobrancelhas. — E você também acha que nós somos ladrões? As crianças olhavam para o chão, encabuladas. Por fim Pau- lo, examinando com o olhar o velho Beppo, disse baixinho: — Então, você não é?... Ouvindo isso, o velho varredor de ruas ergueu-se ao má- ximo de sua altura (que não era muita), levantou solenemente a mão, e declarou: — Eu nunca — nunca, na minha vida inteira — nunca roubei o menor tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e Deus é testemunha! — Eu também — disse Manu. — Eu também — repetiu Guido, muito sério. Impressionadas, as crianças estavam caladas. Nenhuma delas duvidava da palavra dos três amigos. — E já que estamos nesse assunto, quero dizer mais uma coisa — continuou Guido. — As pessoas costumavam vir pro- curar Manu para que ela, ouvindo o que tinham a dizer, pudesse ajudá-las a se conhecerem a si mesmas. Mas agora, nem pen- sam mais nisso. As pessoas gostavam de vir escutar minhas his- tórias também, porque as histórias as distraíam das preocupa- ções. Mas nisso também nem pensam mais. Dizem que já não têm tempo para essas coisas. Mas vocês já notaram uma coisa estranha? É realmente muito estranho ver para que eles já não têm tempo. Outro dia encontrei na cidade um velho amigo, o barbeiro Fusi. Fazia algum tempo que eu não o via, e quase não o reconheci, tão diferente ele estava: aflito, cansado, irri- tado, em suma, infeliz. Costumava ser um sujeito simpático, que cantava com boa voz, e propunha as idéias mais originais. Agora, de repente, ele não tem tempo para mais nada disso. Não é mais Seu Fusi, o barbeiro: virou um fantasma de sua antiga pessoa. Estão entendendo o que eu quero dizer? Se esse fosse o único, eu diria que ele ficou meio ruim da cabeça, mas por todos os lados encontra-se gente assim. E cada dia aparecem mais e eu

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às vezes fico imaginando se não é algum tipo de loucura conta- giosa. — Se for isso, temos que acudir aos nossos amigos! — disse Manu, apavorada. Essa noite passaram muito tempo discutindo qual a me- lhor maneira de agir; porém não suspeitavam da existência e constante atividade dos homens cinzentos-. No decorrer dos dias seguintes Manu foi procurar os velhos amigos, para perguntar por que não iam mais visitá-la. O pri- meiro foi Nicolau, o pedreiro. Mas ele não estava em casa. Os outros moradores só sabiam que ele agora estava trabalhando num grande conjunto residencial, no lado oposto da cidade, e ganhando muito dinheiro. Só voltava para casa quando já eram altas horas. Também agora quase sempre percebia-se que ele tinha bebido, e era difícil manter a relação de amizade. Manu resolveu esperar sua volta, e sentou-se na escada, di- ante da porta. Aos poucos foi ficando escuro, e ela adormeceu. Devia ser já muito tarde quando acordou com o barulho de pas- sos cambaleantes e uma voz rouca cantando. Era Nicolau, aos tropeções. Quando viu a menina parou, boquiaberto. — Oi, Manu! — resmungou, encabulado de ser visto na- quelas condições. — Então você continua viva, heim? E que é que está fazendo aqui? — Procurando você — respondeu Manu timidamente. — Ora, mas que anjo. . . — disse Nicolau com um sorriso. Sabe que há muito tempo estou querendo ir te ver, mas hoje em dia não tenho tempo para nada que seja. . . Fez um gesto vago, e sentou-se pesadamente ao lado de Manu. — Vida particular. Você não adivinha o que eu estou fazen- do agora, menina. As coisas não são mais como eram. Os tem- pos mudaram. Lá onde estou trabalhando agora eles fazem tudo no dobro da velocidade. A gente trabalha que é um inferno. Continuou falando, e Manu ouvindo com atenção. À medi- da que ela ouvia, ele ia parecendo menos entusiasmado. — Tudo isso que eu estive dizendo é um monte de boba- gens — falou de repente, com tristeza. — Sabe, Manu, eu estou de novo bebendo demais. Muitas vezes passo da conta. Se não fosse assim eu não podia agüentar aquilo que estamos fazendo lá. Quero dizer: vai contra a consciência de um operário hones- to. Muita areia demais no cimento, por exemplo. Vai durar uns quatro ou cinco anos e aí basta soprar em cima pra cair tudo em pedaços. Tudo trabalho ordinário, mal feito! E isso ainda não é

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pior. Pior, é o tipo de casas que estamos construindo. Não são casas, são.. . são gaiolas! £ da gente ficar doente.. . Mas afinal, que tenho eu de me preocupar? Enquanto estiver recebendo o meu dinheiro está bem, não é? Mas o que eu sentia antigamente era outra coisa: costumava ter orgulho do meu trabalho quando construíamos alguma coisa que valesse a pena ver, e agora. . . Um belo dia, quando eu tiver ganho o bastante, largo tudo isso e vou fazer coisa completamente diferente. Ficou de cabeça baixa, os olhos perdidos no espaço. Dali a pouco continuou, baixinho: — Quem sabe eu devia recomeçar a ir te visitar, e contar tudo disso tudo. Que tal amanhã? Ou então depois de amanhã? Tenho que ver como é que encaixo isso. Mas vou sem falta. — Combinado — respondeu Manu, alegre, e então se des- pediram porque ambos estavam muito cansados. Porém Nicolau não apareceu no dia seguinte, nem no ou- tro dia. Não apareceu nunca. Com certeza ele já não tinha mais tempo.

A seguir Manu foi procurar o dono do bar-restaurante, Nino, e sua mulher Liliane. A casa velhinha, meio descascada, com uma trepadeira crescendo junto à porta, ficava num arrabalde da cidade. Manu deu a volta por trás, como costumava fazer. A porta estava aberta, e muito antes de chegar lá Manu já ouvia a briga violenta dos dois. Liliane batia as panelas no fogão, seu rosto gorducho reluzindo de suor. Nino gritava com ela e gesticulava. Deitado no berço, a um canto, o bebê berrava. Sem barulho, Manu sentou-se, apanhou nos braços o bebê, acalentando-o de- vagar, até que ele parou de gritar. Marido e mulher interrompe- ram o bate-boca e olharam naquela direção. — Ah, é você, Manu — disse Nino, com um breve sorriso. — Que prazer te ver de novo! — Quer comer alguma coisa? — perguntou Liliane, meio brusca. Manu balançou negativamente a cabeça. — Então o que é que você quer? — indagou Nino, irrita- do. — Neste momento não temos tempo para te atender. — Eu só vim perguntar por que há tanto tempo vocês não me aparecem. — Ora, não sei porque é — respondeu Nino ainda mais irritado. — Agora nós temos outras coisas em que pensar, sabe?

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— Ê isso! — gritou Liliane sacudindo as panelas. — Ele tem mesmo outras coisas em que pensar... Tais como livrar-se dos nossos queridos fregueses antigos — agora é só no que ele pensa! Lembra-se, Manu, daqueles velhos que costumavam sen- tar na mesa do canto? Pois Nino mandou eles embora — botou pra fora! — Não foi assim — protestou Nino. — Eu só pedi, com bons modos, que eles procurassem outro bar-restaurante. Como dono eu tenho o direito de fazer isso. — Ora, o direito, o direito! — exclamou Liliane, exaspera- da. — Você simplesmente não pode fazer uma coisa dessas. Você sabe muito bem que eles não vão encontrar outro bar. E eles aqui não incomodavam ninguém. — Claro que não incomodavam ninguém! — gritou Nino. — Porque os fregueses decentes, pagantes, não vinham aqui en- quanto aqueles velhos barbudos estivessem amontoados ali no canto. E eles só podem gastar um copo de vinho barato por noite, o que não dá lucro nenhum. Isso não pode continuar assim. O aluguel subiu. Tudo está subindo. Onde é que eu vou arran- jar o dinheiro, se transformar meu bar-restaurante num asilo de velhos? Por que é que eu tenho de cuidar dos outros? Ninguém cuida de mim. A gorda Liliane bateu com uma frigideira no fogão. Com as mãos nas cadeiras gritou: — Acontece que um desses velhos sem vintém, como você diz, é meu tio Ettore, e eu não vou ficar quieta aqui ouvindo você xingar minha família. O Tio é um homem bom e honesto, mesmo se ele não tem tanto dinheiro quanto esse seu público pagante! — Eu já disse a ele que pode vir se quiser mas ele não quer. — Claro que não quer, sem os velhos amigos! — Então não posso fazer mais nada! — berrou Nino. — Não quero passar o resto de minha vida com um bar-restaurante de segunda classe, só para benefício de seu Tio Ettore. Eu quero fazer algo da minha vida! Quero endireitar isso aqui, e não estou fazendo isso só por minha causa, é igualmente por você e por nossa filha. Será que você não entende, Liliane? — Não, não entendo — retrucou Liliane secamente. — Se a única maneira de você melhorar de vida é sendo sem co- ração, então pode se arrumar sem minha ajuda. Um belo dia eu levanto e vou embora.

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Dizendo isso, ela tirou dos braços de Manu a criança, que tinha recomeçado a chorar, e correu para fora da cozinha. Durante algum tempo Nino não disse nada. Por fim con- fessou: — É. Eu sei que eles eram bons sujeitos. Eu até gostava deles. Sabe, Manu, eu fico com pena de verdade, mas que é que eu podia fazer? Os tempos mudaram. Após outro silêncio, ele tornou a falar: — Afinal, quem sabe Liliane tinha razão. Desde que aque- les velhos camaradas deixaram de aparecer, o bar me parece di- ferente: frio, sabe como é? Eu mesmo já não me sinto bem ali. Mas, se hoje em dia todos agem assim, por que devo eu ser o único a fazer alguma coisa de diferente? Ou você acha que eu devia? Com um movimento quase imperceptível Manu acenou que sim. Nino olhou para ela, e também acenou com a cabeça. — Foi bom você ter vindo — disse Nino. — Eu tinha es- quecido completamente que nós costumávamos dizer "Vá falar com Manu" quando havia alguma dificuldade. Mas agora eu vou recomeçar a te visitar, e vou levar Liliane. Depois de ama- nhã é nosso dia de folga e nós vamos aparecer lá. De acordo? — De acordo — respondeu Manu. Então Nino deu lhe um saco cheio de laranjas e maçãs, e Manu foi para casa. No dia combinado Nino e a mulher foram, de fato, visitar Manu, levando o bebê, e uma cesta cheia de coi- sas gostosas. — Imagine só, Manu — disse Liliane, radiante. — Nino foi procurar Tio Ettore e os outros velhos — cada um deles — desculpou-se e pediu que voltassem. — Ê — continuou Nino com um sorriso, cocando a orelha. — Isso é o fim da minha idéia de fazer do bar um local de mais classe, mas estou de novo gostando de lá. Foi uma tarde esplêndida, e quando eles partiram promete- ram voltar breve. Manu foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um. Todos prometeram voltar. Mas alguns não cumpriram a pro-

TT messa, ou não puderam cumprir porque não tinham tempo. En- tretanto, muitos voltaram, e tudo ficou sendo quase como era antes. Isso demonstrava que Manu estava interferindo nos pla- nos dos homens cinzentos, e eles não iam permitir que ela fizesse isso. Poucos dias depois, Manu encontrou uma boneca nos de- graus de pedras do antigo anfiteatro. Já havia acontecido as cri-

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anças esquecerem, ou simplesmente largarem ali, um daqueles brinquedos caros com os quais era impossível brincar, porém Manu não se lembrava de ter visto alguma criança com uma bo- neca assim tão fora do comum. Era quase do tamanho da pró- pria Manu, e tão bem feita que quase poderia passar por um pe- queno ser humano. Mas não parecia uma criança ou um bebê; era como uma moça elegante, ou um manequim de vitrina. Usava um vestido curto, vermelho, e sandálias de salto alto. Manu ficou olhando para ela, fascinada. Depois estendeu a mão e pegou na boneca que, imediatamente, piscou os olhos, moveu os lábios, e disse numa voz esganiçada: — Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita. Manu recuou, assustada, porém respondeu automaticamente: — Bom dia. Meu nome é Manu. A boneca moveu novamente os lábios, dizendo: — Eu sou sua. Toda a gente tem inveja porque eu sou sua. — Acho que você não é minha, não — retrucou Manu. — Creio que alguém se esqueceu e largou você aqui. Pegou a boneca e levantou-a. Os lábios tornaram a mover- se e ela disse: — Eu gostaria de ter algumas coisas mais. — Ah, é? — respondeu Manu, e refletiu um momento. — Eu não sei se você gostaria das coisas que eu tenho. Mas espere um instante: vou mostrar, e você pode dizer se gosta de alguma delas. Carregando a boneca, passou pelo buraco no muro que dava para o seu quarto. Puxou de debaixo da cama uma caixa cheia dos seus tesouros, e abriu-a diante de Bibi. — Está aqui: isto é só o que eu tenho. Mas se você gostar de alguma coisa, é só dizer. E mostrou para a boneca uma pena de pássaro multicor, uma pedrinha com bonitos veios, um botão de metal dourado, e um pedacinho de vidro colorido. Como a boneca não respon- desse, Manu deu-lhe um cutucão. A voz esganiçada recomeçou: — Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita. — Já sei — respondeu Manu. — Mas Bibi, você disse que gostaria de ter algumas coisas mais. Olhe, eu tenho uma linda concha cor-de-rosa, você gostaria? — Eu sou sua. Toda a gente tem inveja porque eu sou sua. — Sei, você já disse isso. Se você não gosta de nenhuma das minhas coisas, quem sabe nós podíamos inventar um brin- quedo? Vamos?

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— Eu gostaria de ter algumas coisas mais — repetiu a bo- neca. — Eu não tenho nada mais — respondeu Manu. Carregou novamente a boneca e escalou a abertura no muro. Uma vez fora, colocou a boneca no chão e sentou-se em frente dela. — Vamos fingir que você veio me visitar — sugeriu Manu. — Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita.

— Que prazer recebê-la em minha casa. De onde a senho- ra veio, Madame? — falou Manu. — Eu sou sua. Toda a gente tem inveja porque eu sou sua.

— Tá bem, mas escute, se você continuar repetindo as mes- mas coisas nós não podemos brincar. — Eu gostaria de ter algumas coisas mais — continuou a boneca, piscando os olhos. Manu tentou outra brincadeira, e quando não deu certo experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nenhuma servia. Se a boneca não dissesse nada, Manu teria respondido por ela, e poderiam ter uma esplêndida conversa. Porém o sim- ples fato de que Bibi podia falar estragava qualquer tentativa de conversar. Dali a pouco Manu começou a sentir uma coisa que nunca na sua vida havia sentido, e como era novidade levou algum tempo até identificar o que era — tédio. Gostaria de lar- gar ali a boneca perfeita, e ir brincar de alguma outra coisa. Mas ficou ali sentada, fitando a boneca que a olhava fixamente com seus olhos de vidro azul. Era como se as duas se tivessem hip- notizado mutuamente. Por fim Manu conseguiu desviar o seu olhar da boneca e assim fazendo teve um ligeiro choque de susto, pois ali perti- nho estava um elegante automóvel cinzento que ela não ouvira chegar. No carro estava um senhor, vestido de um terno cor de teia de aranha e um chapéu-coco cinzento. Fumava um charu- tinho cinzento, e seu rosto também era da cor das cinzas. O ho- mem já devia estar observando Manu desde algum tempo, pois fez-lhe um cumprimento de cabeça e sorriu: e embora o dia es- tivesse muito quente, de repente Manu sentiu um calafrio. O ho- mem abriu a porta do carro, desceu, carregando uma pasta cin- za cor de aço. — Que linda boneca você tem! — disse numa voz esqui- sita, sem entonação. — Com certeza todas as suas amigas inve- jam você por isso. — Eu encontrei ela aqui — murmurou Manu, meio sem jeito.

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— Não diga! — exclamou o homem. — Você é a Favorita da Sorte. Manu apertou mais em torno do corpo seu largo paletó, pois estava ficando mais frio. O homem continuou: — Devo dizer que você não me parece feliz com isso, me- nina. Manu sacudiu a cabeça. Subitamente parecia-lhe que toda felicidade fugira do mundo para sempre, e sentia alguma coisa que era como um alarme de perigo. — Eu já estive a observá-la durante algum tempo — con- tinuou o senhor cinzento — e parece-me que você não tem idéia de como brincar com uma boneca tão maravilhosa. Quer que eu lhe mostre a maneira certa? Manu olhou para ele com uma expressão de surpresa, e fez sinal que sim. — Eu gostaria de ter algumas coisas mais — disse de re- pente a boneca. — Está ouvindo, menina — prosseguiu o homem. — Ela mesma até lhe ensina. É claro que você não pode brincar com uma boneca tão maravilhosa do mesmo jeito que com outra qualquer. Ela não foi feita para isso. Você tem sempre que lhe ir dando alguma coisa para poder brincar. Olhe para isto, me- nina. Abriu a mala do carro: — Em primeiro lugar, ela precisa quantidade de roupas. Aqui, por exemplo, está um adorável vestido de noite para ela. — Pegou o vestido e jogou para Manu. — E aqui um casaco de peles feito de mink verdadeiro, e aqui um pijama de seda, e uma roupa de tênis, e um conjunto para esquiar, e um maio de banho, e uma roupa de montaria, e um pegnoir, e outro vestido, e outro, e outro, e mais outro... Ia jogando uma coisa atrás da outra, formando uma pilha cada vez mais alta entre Manu e a boneca. — E se perder a graça basta arranjar mais algumas coisas para a sua boneca. Tornou a debruçar-se sobre a mala do carro, e recomeçou a jogar coisas para Manu. — Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de pele de cobra verdadeira, e dentro um batonzinho de verdade e caixinha de pó-de-arroz. E aqui uma maquininha de retrato, e uma raquete de tênis, e isto aqui é uma televisão para boneca que funciona mes- mo, e aqui uma pulseira e um colar e uns brincos, e um revólver de boneca, e umas meias de seda, e um chapéu com pluma, e um

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chapéu de palha, e um conjunto para jogar golfe, e um livrinho de cheques, e um vidrinho de perfume, e uns sais para banho, e lo- ções para o corpo... Continuou: — É muito simples. É só você ir arranjando sempre mais coisas, e assim nunca sentirá tédio. E depois, nós temos o com- panheiro para Bibi. Dizendo isso, tirou da mala um boneco. Era do mesmo ta- manho que Bibi, e, como ela, perfeito em todos os detalhes, mas era um rapaz. O homem cinzento explicou: — Este é Bubi. Também tem uma quantidade de coisas. E quando até isso ficar sem graça, nós terons uma amiga para Bibi, com suas roupas que só servem nela. E Bubi também tem um amigo, e esses amigos têm outros amigos, a coisa pode con- tinuar indefinidamente. O senhor cinzento, satisfeito, puxou outra baforada. — Naturalmente, você gostaria de ter todas estas coisas lindas, não é? Muito bem, eu vou lhe dar isso tudo — não tudo de uma vez, é claro, mas aos poucos — e muito, muito mais ainda. E você não precisa fazer nada em troca. A única coisa é brincar do jeito que eu ensinei. Que tal? O homem cinzento sorria para Manu, esperando a respos- ta. Quando ela continuou em silêncio, só olhando para ele mui- to séria, acrescentou às pressas: — E aí então não vai mais precisar dos seus amigos, não é? Quando todas essas coisas lindas forem suas, e você ainda puder ganhar mais outras, vai ter muito com que se divertir, não é? E você ficará satisfeita, não é? Você quer mesmo ter esta boneca maravilhosa, não é? Manu sentia vagamente que tinha uma batalha pela frente, ou melhor, que já estava em pleno combate, embora sem saber o motivo da batalha nem contra quem estava combatendo. Mas, à medida em que ouvia o visitante, ia sentindo, reforçada, a mes- ma impressão que tivera com a boneca. Ouvia a voz falando, ou- via as palavras ditas, mas não conseguia perceber quem estava falando. Sacudiu a cabeça. — Como, como? — disse o senhor cinzento erguendo as sobrancelhas. — Você ainda não está satisfeita? Que é que ain- da está faltando nesta boneca perfeita? Manu disse baixinho: — Acho que ninguém pode ter amor por ela. — Isso não tem a mais leve importância.

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Manu olhou-o bem de frente, encarando-o. O homem a assustava, mas ela sentia pena deie, embora não soubesse expli- car por quê. — Mas eu tenho amor por meus amigos — retrucou. O homem cinzento fez uma careta, como se tivesse um aces- so de dor de dente, mas loço se controlou e, com um sorriso cor- tante como uma navalha, disse: — Vamos conversar, Manu. Ouça com atenção o que cu vou dizer. Era isso que Manu vinha tentando fazer, desde o começo, mas era muito mais difícil ouvi-lo do que ouvir qualquer outra pessoa. Com outras pessoas ela tinha a impressão de penetrar- lhes o espírito, compreender o que elas estavam pensando, e sen- tir a sua maneira de ser. Mas com este visitante era impossível. Cada vez que ela tentava, tinha a impressão de estar mergulhan- do de cabeça num vazio escuro, como se ali não houvesse nin- guém. Até então nunca havia encontrado coisa assim. O cavalheiro cinzento começou a lição: — A única coisa que importa na vida é o sucesso, é tor- nar-se alguém, é ter posses. Se você é um sucesso, é alguém, tem posses, tudo o mais segue automaticamente — amizade, amor, honras, e assim por diante. Agora, você me diz que tem amor aos seus amigos. Vamos examinar o caso com toda imparcialidade. Soprou no ar alguns anéis de fumaça, e Manu enfiou os pés por baixo da saia, agasalhando-se o melhor possível dentro do paletó. — A primeira questão que surge é esta: que é que seus amigos ganham, de fato, com a sua existência? Você os prejudi- ca em tudo, você é feito uma pedra amarrada no pescoço, você impede o progresso deles na vida! Talvez você até agora não tenha percebido isso, Manu, mas você está prejudicando seus amigos pelo simples fato de existir. Na verdade, e sem que seja essa sua intenção, você é inimiga deles. É isso que você chama ter amor? Manu não sabia o que responder. Nunca tinha olhado.as coisas sob esse aspecto. Teve um momento de incerteza: quem sabe se ele estava com a razão? — Por isso — continuou o senhor cinzento — é que nós precisamos proteger seus amigos contra você. Se você gostar real- mente deles, vai nos ajudar. Nós queremos que eles tenham su- cesso. Nós somos os verdadeiros amigos. Nós temos que agir para que você não se meta com eles, e é por isso que estamos dando a você todas estas coisas lindas.

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— Quem é "nós"? — perguntou Manu, com os lábios trê- mulos. — Nós, do Banco Poupa-Tempo. Eu sou o agente N? BLW/553/c. Pessoalmente, não desejo a você nada de mal, po- rém com o Banco Poupa-Tempo não se brinca. Nesse momento Manu lembrou-se do que Beppo e Nico- lau haviam dito a respeito da poupança do tempo ser mania contagiosa. Como gostaria que seus dois amigos estivessem ali a seu lado. . . Nunca se sentira tão sozinha. Mas apelou para toda a sua coragem. O homem disse: — Não adianta tentar. Você não é parada para nós. Manu agüentou firme. — Não há ninguém que tenha amor por você? — sussurrou. O homem cinzento contorceu-se dolorosamente, e de re- pente pareceu encolher. Numa voz sem timbre, como feita de cinzas, respondeu: — Devo dizer que nunca encontrei ninguém como você. palavra que não, embora eu conheça muita gente. Se houvesse mais pessoas como você, nós em breve teríamos de fechar o Banco Poupa-Tempo, e nos desmancharíamos no nada — pois com o que iríamos nos sustentar? Parou de repente. Fitava Manu, e parecia estar lutando con- tra alguma coisa que não podia entender e com a qual não sa- bia lidar. Seu rosto tornou-se mais cor de cinza. Quando recomeçou a falar, foi como se o fizesse contra a sua vontade, como se as palavras jorrassem espontaneamente, sem que ele tivesse forças para impedir. Seus traços tornavam- se cada vez mais desfigurados pelo horror daquilo que lhe estava acontecendo. E agora, por fim, Manu pôde ouvir sua verdadeira voz. — Ninguém pode saber que nós existimos. Tomamos o cui- dado de fazer com que ninguém nunca se lembre de nós. . . pois é só enquanto somos desconhecidos que podemos íazer nosso negócio, roubar o tempo dos outros em horas, em minutos, em segundos. . . pois todo o tempo que eles poupam está perdido para eles. . . Nós nos apoderamos desse tempo. . . Vocês hu- manos não sabem o que o tempo vale! Mas "nós" sabemos, e estamos sugando vocês. . . e precisamos mais. . . e mais. . . por- que nós somos cada vez mais numerosos. . . mais e mais... — As últimas palavras haviam saltado da garganta do homem como um estertor sinistro. Ele apertou as duas mãos sobre a boca, os

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olhos saltando fora das órbitas enquanto encarava fixamente Manu. Após um momento, pareceu emergir de uma espécie de transe. Gaguejou: — Que-que a-aconteceu? Vo-você a-aí escutando? Eu es- tou doente, e você é que me fez ficar doente! Depois mudou para um tom persuasivo: — Eu disse uma porção de asneiras. Esqueça, menina. Você precisa também esquecer de mim, como todo o mundo esquece. Precisa! Precisa! — e agarrou Manu. Ela movia os lá- bios mas não conseguia falar. De repente, o homem levantou-se de um salto, olhou para trás como se estivesse sendo perseguido, agarrou sua pasta cinza e correu para o carro. Aconteceu então algo muito estranho. Coma uma explosão às avessas, todas as bonecas e seus perten- ces, que estavam espalhados por ali, voaram para dentro da mala do carro, cuja tampa bateu fechando-se, e o carro partiu ron- cando! Manu continuou sentada no mesmo lugar durante muito tempol tentando compreender aquilo que acabara de ouvir. Pou- co a pouco foi passando aquele frio horrível que sentia. Ela não esqueceu nada, porque ouvira a verdadeira voz do homem cin- zento.

8. MUITOS SONHOS EULGUMAS DÚVIDAS

Na\tar\ie daquele dia Guido e Beppo apareceram. Encon- trariam Manu ainda meio pálida e aflita, e, inquietos, indagaram é o qüe sà tratava.

T6 NfanuVcomeçou a contar o que acontecera. Enquanto falava o velho, Bespo não despregava dela os olhos. Não disse nada, mesmo quanflp Manu acabou de contar. GUÍOT, ao contrário, ouvira mostrando-se mais animado. [Pôs a mãoVovrobro de Malu, dizendo: — Agora, Manu, chegou a hora da nossa vitória! Você descobriu uma coisa que até agora ninguém sabia direito o que era. Assim vamos poder salvar a cidade inteira! Só nós três: Beppo, eu e você. — Sim — respondeu Manu ligeiramente perplexa. — Mas como é que vamos poder fazer isso?

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— Ah bom — retrucou Guido. — Vamos ter que estudar o assunto. Mas uma coisa é evidente. Agora que nós sabemos que eles existem e como estão agindo, precisamos combatê-los, isto é. a não ser que você tenha medo! Manu acenou com a cabeça, timidamente: — Eu acho que eles não são gente como nós. o homem que veio me ver tinha algo diferente. E o frio é terrível. E se existem muitos deles, isso é mesmo um perigo. Tenho medo, sim. — Ora, bobagem! — gritou Guido entusiasmado. — Esses senhores cinzentos só podem levar avante seus negócios sinistros enquanto ninguém os identificar. Só o que temos a fazer é ter certeza de que as pessoas os reconhecem, pois quem os identi- ficar uma vez pode lembrar-se deles. Assim eles não poderão nos fazer mal algum. Estamos ao abrigo dos ataques. — Você acha? — perguntou Manu, meio duvidosa. — Claro que acho! — continuou Guido, os olhos brilhan- do. — Se não fosse assim, seu visitante não teria partido em tal disparada. Eles tremem só de pensar em nós. — Mas talvez eles se escondam de nós. — Nesse caso nós temos é que atraí-los para fora do seu esconderijo. — De que jeito? Acho que eles são muito espertos... — Nada mais simples! — e Guido estourou na risada. — Nós vamos pegá-los com a isca adequada a eles. Se a gente apa- nha camundongo com toucinho, é com tempo que temos de pe- gar os ladrões de tempo. E disso temos muito. Por exemplo, você poderia ficar sentada aqui, fazendo de isca para atraí-los, e então Beppo e eu saltávamos fora de nosso esconderijo e agarrávamos os tais homens. — Mas eles já me conhecem — objetou Manu. — Ora, não importa — continuou Guido, fervilhante de novas idéias. — Então basta a gente fazer alguma outra coisa. O homem cinzento falou num Banco Poupa-Tempo. Deve ser um prédio, e certamente estará na cidade, e só o que temos a fazer é encontrá-lo. E não será difícil, pois garanto que é um 5i edifício muito esquisito, como um cofre gigantesco feito de con- creto. Já estou vendo. Quando o encontrarmos, vamos entrar, cada um de nós com uma pistola automática em cada mão, e eu falo: "Entreguem já todo o tempo roubado!" — Mas nós não temos pistolas... — interrompeu Manu, aflita.

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— Então vamos sem pistolas — respondeu Guido grandilo- qüente. — Aí cies vão ficar ainda mais assustados. — Seria uma boa idéia ter mais gente, e não só nós três, para encontrarmos mais depressa o Banco Poupa-Tempo. — A idéia é ótima — respondeu Guido. — Nós devíamos mobilizar todos; os nossos velhos amigos, e todas as crianças que costumam vir aqui. Proponho partirmos imediatamente, nós três, e que cadá um de nós conte o caso a cada pessoa que encontrar, e cada uma dessas p***se adiante as notícias para outras. Vamos todos nos encontrar aqui amanhã, às três horas, para um Gran- de Conselho. Partiram imediatamente. Manu numa direção, Beppo e Guido em outra. Depois de já terem caminhado um pouco, Beppo — que até então havia mantido o silêncio — de repente parou. — Escute, Guido. Estou preocupado. — E por quê? Beppo fitou-o por alguns momentos antes de dizer: — Eu acredito em Manu. — É claro. Mas por que está preocupado? — Porque, se o que Manu contou é verdade, precisamos pensar muito, e com cuidado, antes de fazer qualquer coisa. Se é realmente questão de lidar com um bando secreto de crimi- nosos, só podemos enfrentá-los quando estivermos bem prepara- dos. Se os desafiarmos simplesmente, talvez estejamos colocando Manu numa situação muito perigosa. Eu não estou preocupado com você, nem comigo, mas se também envolvermos crianças no caso, elas estarão correndo perigo. — Ora, bobagens! — exclamou Guido rindo. — Você está sempre preocupado com alguma coisa. É claro que quanto mais gente tivermos conosco, melhor. — Eu acho que você não acredita que é verdade o que Manu contou — retrucou Beppo, muito sério. — Depende do que você entende por "verdade". Beppo, você não tem imaginação. O mundo todo não passa de uma grande história, e nós todos somos parte dessa história. Seja como for, eu acredito realmente em tudo o que Manu nos con- tou, creio tanto quanto você. Beppo não teve resposta, mas as palavras de Guido não afastaram seus receios. Quando se separaram, partindo em dire- ções opostas para avisar a todos os amigos e todas as crianças sobre a reunião do dia seguinte, Guido ia de coração leve, Beppo sentia o seu muito pesado.

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No dia seguinte, às três horas da tarde, nas ruínas do an- tigo anfiteatro ressoavam gritos entusiastas e o burburinho de muitas vozes. Infelizmente, os amigos adultos de Manu não ti- nham comparecido (exceto Guido e Beppo, é claro) mas ali es- tavam cinqüenta ou sessenta crianças. Quando se tornou evidente que não chegariam mais rctar- datários, Guido o Guia levantou-se e com gesto grandiloqüente pediu silêncio. — Amigos — começou Guido em voz alta. — Vocês todos sabem mais ou menos do que se trata. Até agora, mais e mais pessoas têm-se visto cada vez com menos e menos tempo, apesar de tentarem poupar o tempo de todo modo possível. Mas como vocês verão, é justamente o tempo que procuraram poupar que foi perdido. Como pode acontecer tal coisa? Manu descobriu isso. O tempo das pessoas tem sido positivamente roubado delas por um bando de ladrões de tempo, e precisamos da ajuda de vocês para acabar com essa quadrilha de criminosos de sangue frio. Se vocês todos estão dispostos a colaborar, a escura sombra que se estende pesadamente sobre nossa gente poderá ser afastada de um golpe. Não acham que é uma coisa pela qual vale a pena lutar? Fez uma pausa, e as crianças bateram palmas. — Mais adiante — continuou Guido — discutiremos o que pretendemos fazer. Primeiro, porém, Manu vai contar o encon- tro que teve com um desses bandidos e como ele próprio se de- nunciou. — Um momento — disse o velho Beppo, erguendo-se. — Ouçam, crianças! Sou contra Manu falar. Ela não deve fazer isso. Se ela falar, vai arriscar-se — e também a vocês todos — ao maior perigo... — Oh! -deixe que ela fale! — gritaram várias crianças. — Deixe Manu falar! Outras vozes juntaram-se a essas, e por fim bradavam to- dos em coro: — Manu! Manu! O Velho Beppo sentou-se, tirou os óculos e esfregou os olhos. Manu levantou-se perplexa, sem saber a qual desejo satis- fazer: de Beppo ou das crianças. Finalmente começou sua nar- ração, que os pequenos ouviam encantados. Quando terminou, seguiu-se pesado silêncio. Enquanto Manu falava, um estranho constrangimento se apoderou deles. Não supunham que aqueles ladrões do tempo fossem tão sinistros. Um pequenino começou a soluçar alto e foi depressa acalmado.

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— Bem! — disse Guido, rompendo o silêncio. — Quem se arrisca a unir-se a nós na luta contra os homens cinzentos? — Por que Beppo não queria que Manu contasse o que aconteceu com ela? — perguntou Franco. Guido sorriu, respondendo com segurança: — Beppo pensa que os homens cinzentos consideram como inimigos todos os que conhecem seu segredo e hão de perse- gui-los. Eu, porém, estou certo de que o contrário é que é ver-

T9 dade: todo aquele que conhece esse segredo se acautela e fica precavido contra tfles, de modo que os homens cinzentos não podem prejudicá-lo. . . — E continuou: — De qualquer forma, uma coisa é certa: temos de ficar unidos e ser cautelosos, mas sem deixar que nada nos assuste. É por isso que torno a per- guntar: quem quer juntar-se ao nosso grupo? — Eu! — disse Cláudio, levantando-se, um pouco pálido. Outros seguiram seu exemplo, meio hesitantes a princípio, depois com crescente entusiasmo. Afinal, todos os presentes ade- riram. — E agora, Beppo — perguntou Guido apontando para as crianças. — Que diz você? — Muito bem! — respondeu Beppo inclinando tristemente a cabeça. — Eu estou com vocês, é claro! — Certo! — Guido voltou-se de novo para as crianças. — Vamos discutir nosso plano de ação. Quem sugere alguma coisa? Todos puseram-se a refletir e Paulo, o menino de óculos, falou: — Como é que eles fazem? Quero dizer, como é que se pode realmente roubar o tempo? Como funciona isso? — Sim! — gritou Cláudio. — Afinal que é o tempo? Ninguém soube responder. — De qualquer forma — disse Paulo, tirando os óculos — primeiro que tudo temos de encontrar um cientista para nos ajudar. De outro modo não conseguiremos nada. — Qual, você com seus cientistas! — exclamou Franco. — Não poderíamos confiar neles! Supondo que achássemos um que conhecesse tudo sobre o assunto, como havíamos de saber se ele não estava mancomunado com os ladrões de tempo? Aí mes- mo é que ficávamos numa enrascada! A objeção pareceu válida. Nisso uma menina, visivelmente bem-educada, pôs-se de pé e declarou:

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— Acho que a melhor coisa a fazer é ir à polícia e con- tar tudo! — De mal a pior — protestou Franco. — Que pode fazer a polícia? Não se trata de ladrões comuns. E de duas uma: ou a polícia os conhece há muito, e nesse caso é óbvio ser incapaz de combatê-los, ou não sabe coisa alguma dessa trapalhada, e não dará nenhuma solução. É o que eu penso. Seguiu»se um silêncio, misto de frustração e desânimo. — Mas temos de fazer alguma coisa! — disse afinal Paulo. — E devemos agir o mais depressa possível, antes que os ladrões tenham idéia do nosso plano. Novamente Guido ergueu-se e começou a falar: — Meus queridos amigos, já examinei a questão a fundo. Já formulei centenas de planos, rejeitando todos até encontrar um, capaz de atingir o nosso alvo — desde que fiquemos unidos, é claro. Eu quis apenas saber se algum de vocês teria uma idéia

37 melhor. Pois bem, agora vou dizer-lhes o que vamos fazer. Como vocês sabem — continuou — a força dos homens cinzentos está no fato de poderem agir em segredo sem serem reconhecidos. Portanto, o meio mais simples e eficiente para torná-los inofen- sivos é cada um conhecer a verdade a respeito deles. Para con- seguir isso, faremos uma imensa demonstração pública na qual todas as crianças tomarão parte. Vamos pintar cartazes e faixas, desfilaremos pelas ruas e convidaremos todo o povo da cidade a vir a este velho anfiteatro a fim de contarmos tudo. Quando a imensa multidão de gente estiver reunida, revelaremos o terrível segredo. Então — então, no mesmo instante, o mundo se transfor- mará! Ninguém mais poderá roubar tempo do outro. Cada qual terá o quanto necessita, pois daí em diante haverá de novo tem- po suficiente. Seremos capazes de realizar isso, meus amigos, se ficarmos unidos e tivermos uma vontade firme. Será que temos? A resposta foi uma enorme aclamação de júbilo. Guido concluiu: — Vai ser domingo à tarde. Até lá, temos de conservar o mais absoluto segredo quanto ao nosso plano. Nos dias seguintes reinou secreta mas febril atividade entre as crianças. Algumas delas fizeram cartazes e faixas enquanto outras, que tinham boa letra, imaginaram e escreveram frases bem atra- entes como estas, por exemplo: POUPAR TEMPO PARA QUEM? — POR QUE VOCE NAO TEM MAIS TEMPO? — NÓS AS CRIANÇAS LHE CONTAREMOS! — VENHA AO

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ANFITEATRO NO PRÓXIMO DOMINGO AS TRÊS HORAS — VENHA E SABERÁ PORQUE O TEMPO JA NAO É MAIS SEU! — NÓS LHE DIRE- MOS PARA ONDE ELE FUGIU 1 — AS TRES DA TARDE. DOMINGO NO ANFITEATRO Cada cartaz anunciava a hora e o lugar do encontro. Afinal, estando tudo pronto, as crianças colocaram-se em linha no anfiteatro, tendo à frente Guido, Peppo, Manu e numa longa fila dirigiram-se para a cidade, empunhando cartazes e faixas. Faziam ao mesmo tempo um barulhão com apitos e tam- pas de panelas, gritavam as frases atraentes, e entoavam uma canção especialmente composta por Guido para a oportunidade. Uma ou duas vezes a polícia interveio para dispersar os manifestantes, quando a passeata interrompia o trânsito. Mas as crianças não desanimavam: reuniam-se em outro lugar e co- meçavam tudo de novo. Fora isso nada ocorreu de maior, e apesar da mais aguda vigilância não conseguiram descobrir ne- nhuma pista dos homens cinzentos. Vendo o desfile, muitas outras crianças, que até então nada sabiam a respeito, aderiram à marcha, crescendo seu nú- mero a centenas ou até milhares. De toda parte, na grande ci- dade, crianças afluíam agora pelas ruas, numa interminável pro- cissão, convidando os adultos para a importante assembléia que deveria mudar a face do mundo.

9 . UMA BOA AS SEMBLÉIA QUE NÃO ACONTECE E OUTRA MÁ QUE SE REALIZA A grande hora marcada chegara e tinha passado. Passou, sem que nenhum dos convidados tivesse aparecido. De fato, os adultos, especialmente visados, mal notaram a passeata das cri- anças. Assim tudo havia sido em vão. As sombras alongavam-se. Em breve seria noite e as crian- ças começaram a tiritar, pois esfriara muito. Algumas crianças levantaram-se e saíram silenciosamente, logo acompanhadas por outras. Ninguém proferia uma palavra. O desapontamento fora demasiado grande. Afinal, Paulo chegou-se a Manu: — Não adianta esperar mais. Não vem mesmo ninguém! Com essas palavras, foi-sc embora. Em seguida Franco aproximou-se declarando:

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— Não se pode fazer nada! É inútil contarmos com os adul- tos. Tivemos a prova hoje. Aliás, eu já não confiava neles, e agora não quero mais saber de gente grande. Dizendo isso, saiu seguido por muitos companheiros. Por fim, quando escureceu de todo, as crianças que ainda ali se acha- vam perderam toda esperança e partiram também. Manu ficou sozinha com Beppo e Guido. Após alguns ins- tantes o velho varredor de rua levantou-se. — Você já vai? — perguntou Manu. — Preciso ir — respondeu Beppo. — Puseram-me em ser- viço extra. — Mas à noite? — É! Só por esta vez. Estão nos mandando descarregar ca- minhões de entulho nos depósitos de lixo. Tenho de ir agora para lá. — Mas é domingo! E você nunca teve de fazer isso antes. — Não; mas disseram que é só por esta vez, porque de outra forma nunca conseguiriam acabar o trabalho. Dizem que é por falta de pessoal. — Que pena! — suspirou Manu. — Gostaria que você hoje ficasse aqui! — Eu também! Não tenho vontade nenhuma de ir traba- lhar, mas tem de ser. Então, boa-noite e até amanhã! — Montou na velha bicicleta que rangia, e pedalou desaparecendo na es- curidão.

32 Guido parecia distraído, assobiando uma toada melancóli- ca. Assobiava lindamente, e Manu ouvia-o quando ele parou de repente e disse: — Também devo ir-me embora. Hoje é domingo, e traba- lho como guarda-noturno. Não contei que é essa a minha última profissão? Já ia quase me esquecendo. E como Manu continuasse em silêncio, Guido acariciou-lhe os cabelos, tentando consolá-la: — Não leve isso tão sério, Manu! Amanhã as coisas podem mudar! Vamos pensar em algo de novo. . . numa nova história, não é? — Mas não se tratava apenas de uma história — respon- deu Manu baixinho. Guido pôs-se de pé: — Sim, eu sei, mas falaremos disso amanhã, está bem? E são horas de você ir para a cama. Sem mais, partiu assobiando sua toada melancólica. Manu permaneceu sentada sozinha no grande anfiteatro de pedra. A

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noite não tinha estrelas e o céu estava pesado de nuvens. Come- çou a soprar uma brisa esquisita, não era ui£ vento forte, mas soprava constantemente, trazendo estranho frio. Era, por assim dizer, uma brisa cinzenta. Em certo lugar, bem distante da grande cidade, havia um gigantesco depósito de lixo. Até tarde, pela noite adentro. Beppo e seus companheiros de trabalho com grandes pás tiravam o lixo dos caminhões, que de faróis acesos esperavam em fila para serem descarregados. Logo que um se esvaziava, outro o substituía ime- diatamente. Finalmente, lá pela meia-noite, o serviço ficou pronto. Além de velho, Beppo não era muito forte e sentia-se exaus- to. Sentou-se num balde de plástico virado, procurando tomar fôlego. — Que é que há? Está sentindo alguma coisa, meu velho? — perguntou um companheiro. — Estou bem — disse Beppo. — Podem ir! Só vou des- cansar aqui mais um instante. — OK! — gritaram os homens. — Boa-noite! — E foram- se embora. Estava tudo quieto. Apenas os ratos remexiam no lixo, guin- chando de vez em quando. Beppo deitou a cabeça nos braços e adormeceu. Foi subitamente acordado por uma rajada de ar frio. Não sabia quanto tempo teria dormido, mas olhou em torno e ficou logo inteiramente desperto. • Em cada montanha de lixo, achavam-se os homens cinzen- tos, em elegantes ternos, chapéu-coco na cabeça, pasta cinza- aço nas mãos e pequenos charutos cinzentos entre os lábios. Es- tavam todos de pé, silenciosos, com o olhar fixo no cimo do mais alto monte de lixo, onde havia uma espécie de cátedra de juiz, à qual estavam sentados três homens que, aliás, em nada mais se distinguiam dos outros. No primeiro momento Beppo ficou assustado. Receava ser descoberto. Logo, porém, observou que os homens não desvia- vam os olhos do tribunal, como se estivessem hipnotizados. Tal- vez nem pudessem ver Beppo. ou pensassem que ele fosse apenas uma coisa jogada fora. Decidiu pois ficar ali mesmo, absoluta- mente quieto. A voz do homem dentro do tribunal quebrou o silêncio: — Que o agente N9 BLW/553/c se apresente diante da Suprema Corte. A ordem foi repetida mais abaixo e ressoou como distante eco. Abriu-se então caminho entre a multidão e um homem su- biu lentamente ao cimo do monte de lixo. Nada o diferenciava

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dos demais, a não ser que seu rosto cinzento se tornara quase branco. Chegou por fim à frente do tribunal. — Desde quando está trabalhando para o Banco Poupa- Tempo? — perguntou o homem do centro. — Há onze anos, três meses, seis dias, oito horas, trinta e dois minutos e — neste momento preciso — dezoito segundos. Embora esse diálogo se realizasse baixinho e a grande dis- tância, o velho Beppo não perdia uma palavra. O homem do centro continuou inquirindo: — O senhor está ciente de que considerável número de crianças desta cidade desfilaram carregando faixas e cartazes por toda parte, e conceberam até o monstruoso plano de convidar todos os moradores para uma assembléia na qual pretendiam es- clarecer o auditório sobre nossas atividades? — Estou ciente disso — respondeu o agente. — Como justifica o fato de essas ;rianças saberem real- mente tudo a nosso respeito e nossas diligências? — prosseguiu o juiz implacável. — Não posso absolutamente justificá-lo — disse o agente. — Mas, se me for permitida uma observação, lembro à Suprema Corte que conseguimos com facilidade tornar a projetada assem- bléia nula e sem efeito, simplesmente não deixando às pessoas tempo para dela participar. E sugiro à Suprema Corte que não dê a esse caso mais importância do que merece: trata-se apenas de uma brincadeira infantil. Mesmo que se tivesse realizado a reu- nião, estou certo de que as crianças nada teriam a revelar ao auditório, exceto alguma tola história inverossímil. Na minha opinião, deveríamos ter deixado realizar-se a assembléia com o fim de... — Prisioneiro, cale-se! Deixe isso à decisão dos chefes. O prisioneiro sabe muito bem que nada, nem pessoa alguma repre- senta maior perigo para nossa obra do que a infância. — Sim, eu sei — confessou humildemente o réu. — As crianças são nossas inimigas naturais — declarou o juiz. — Se não fossem elas, há muito tempo que toda a huma- nidade estaria em nosso poder. É muito mais difícil persuadir crianças a poupar tempo do que adultos. Por isso temos uma lei rigorosa: Só tratar com crianças em última instância. O prisio- neiro conhece essa lei? — Sim, sem dúvida, senhor — murmurou o acusado, ofe- gante. — Não obstante, temos prova irrefutável de que um de

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nós — repito, um de nós, — não só falou a uma criança como nos traiu contando a verdade a nosso respeito — afirmou o juiz. — O prisioneiro saberá por acaso qual de nós fez isso? — Fui eu — replicou o agente N<? BLW/553/c, inteiramen- te perturbado. — E qual o motivo para transgredir nossa rigorosa lei? — indagou o julgador. O réu tentou defender-se: — Como essa criança tem notável influência sobre as pes- soas, dificultando muito nosso trabalho, agi com a intenção de servir os interesses do Banco Poupa-Tempo. — Suas intenções não nos interessam — retrucou o juiz com gélida indiferença. — Só levamos em conta as conseqüên- cias. E, no seu caso, agente N"? BLW/553/c, estas foramrdesas- trosas: não só não ganhamos tempo algum, como ainda por cima fomos traídos! Alguns de nossos segredos vitais foram revelados a uma criança. O acusado reconhece isso? — Reconheço — disse o agente baixando a cabeça. — Então confessa-se culpado? — Sim, mas peço à Suprema Corte que leve em considera- ção as circunstâncias atenuantes. Fiquei verdadeiramente como que sob a ação de um feitiço: a maneira como aquela criança me ouviu, lisonjeou-me, arrancando todos os meus segredos. Não posso explicar como isso aconteceu, mas juro que foi assim. — Suas desculpas não apresentam o mínimo interesse. Nos- sas leis são invioláveis e não fazemos exceção. Contudo, vamos dirigir nossa atenção para essa criança notável. Como se chama? — Manu. — Quem é ela? — Uma menina. — Onde mora? — Nas ruínas de um velho anfiteatro. — Bem — disse o juiz, escrevendo tudo no seu caderninho de notas. — O réu pode ficar certo de uma coisa: essa criança não nos prejudicará mais. Usaremos de todos os recursos possíveis para essa finalidade. Que isso lhe traga algum consolo, pois va- mos prosseguir para chegarmos à sentença que o espera. O prisioneiro começou a tremer e murmurou a custo: — Qual é a sentença? Os três homens do tribunal juntaram as cabeças, segredando algo entre eles, e o do centro voltou-se para o réu declarando:

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— O veredicto unânime que recai sobre o agente N"? BLW/553/c, é o seguinte: é acusado de crime de alta traição.

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— Ele próprio admitiu a sua culpa. A sentença determinada por nossa lei é que lhe seja imediatamente retirado todo o tempo. — Piedade! Piedade! — clamou o réu. Mas dois homens, que se achavam de pé a seu lado, arran- caram a pasta cinza-aço de suas mãos e o charuto de sua boca. No momento exato em que o criminoso perdeu seu charutinho, começou a tornar-se cada vez mais transparente. Seus gritos fo- ram-se enfraquecendo mais e mais, e ali estava ele com as mãos cobrindo o rosto dissolvendo-se literalmente em nada: por fim, era apenas um punhado de cinzas redemoinhando ao vento. E também essas logo sumiram. Todos os homens cinzentos partiram em silêncio. Mergulha- ram na escuridão e somente uma brisa cor de cinza ficou flutu- ando sobre os lúgubres montes de lixo nos arrabaldes da cidade. Beppo Varredor permaneceu sentado, imóvel, fitando o pon- to no qual o agente havia desaparecido. Tinha a impressão de ter sido transformado numa pedra de gelo, e só agora estar de- gelando. Ficara sabendo por experiência própria que de fato existem coisas como os homens cinzentos. Mais ou menos à mesma hora — o relógio da igreja distan- te bateu meia-noite — a pequena Manu achava-se ainda nos de- graus de pedra do anfiteatro e não se decidira ainda a ir para a cama. De repente, sentiu uma coisa roçando levemente seus pés descalços. Era uma grande tartaruga, de cabecinha erguida, olhan- do para ela, de boca entreaberta como que num sorriso. Os olhinhos pretos e vivos brilhavam do modo mais cordial e pare- ciam até querer falar. Manu fez-lhe gentilmente cócegas sob o queixo: Ora, quem será você? perguntou baixinho. Seja como for, estou contente que tenha vindo visitar-me, Tartaruga! Não sabia dizer se ela não o havia notado até aquele mo- mento, ou se foi justo naquele instante que se tornaram visíveis nas costas da tartaruga letras luminosas, aparentemente forma- das pelos desenhos de sua carapaça. — Venha comigo — soletrou Manu devagar. — Vá andando, que eu acompanho! — disse baixinho. Passo a passo seguiu a tartaruga, que lentamente, muito lentamente, a conduzia para fora do anfiteatro de pedra, toman- do depois a estrada rumo à grande cidade.

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1 0. FURIOSA PERSEGUIÇÃO E CALMA FUGA

Beppo montou na velha bicicleta e saiu pedalando pela noi- te a fora. As palavras do juiz cinzento ainda ressoavam em seus ouvidos: "Vamos dirigir nossa atenção para essa criança notá- vel... Ela não nos prejudicará mais... Usaremos todos os re- www.livrosgratis.rg.com.br

cursos ... " Não havia dúvida, Manu corria grande perigo. Ele tinha de ir ver imediatamente a menina e protegê-la. Pedalava a toda a pressa, o cabelo branco esvoaçando. A distância até o anfiteatro era grande. — As ruínas estavam brilhantemente iluminadas pelos faróis de uma frota de elegantes carros cinzentos que as cercavam. Dezenas de homens cinzentos percorriam de cima a baixo os degraus co- bertos de capim, procurando a criança por todos os cantos. Fi- nalmente, alguns descobriram no muro o buraco que dava aos aposentos de Manu e ali penetraram, espiando embaixo da cama e até dentro do pequeno fogão de pedra. Depois saíram, sacudindo a poeira de seus elegantes ternos cinza. — O pássaro bateu asas! — disse um deles. — Não estou gostando deste caso — declarou outro. — Até parece que ela foi avisada a tempo por alguém! — Impossível! — disse o primeiro. — Para que alguém lhe tivesse dado aviso, teria de conhecer nossa intenção antes mes- mo que a tivéssemos formulado. Os homens cinzentos olharam-se alarmados. — Se tal pessoa a tiver realmente prevenido — observou preocupado um deles — ela decerto não se encontra mais aqui e estamos perdendo tempo nesta busca. — Que sugere, então? — Acho que deveríamos informar imediatamente o alto co- mando de modo a organizar-se uma operação em larga escala. Antes de tudo vamos procurar minuciosamente por todos os bairros. Entretanto, se enquanto isso a menina tiver recebido a ajuda de alguém, estaremos cometendo grave erro. — Besteira! — retrucou outro, zangado. — Nada impede que o alto comando organize depois a operação total, em que cada agente disponível tome parte, a fim de perseguir a menina. Ela não terá a mínima chance de nos escapar. E agora, ao tra- balho! £ grande nosso risco. ..

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Naquela noite, em todos os bairros, os moradores estranha- ram o incessante barulho dos automóveis, correndo a toda velo- cidade. Até à madrugada, tudo foi esquadrinhado pelos agentes. Ninguém pôde pregar olho! Enquanto isso acontecia, a pequena Manu, guiada pela tar- taruga, atravessava a grande cidade, que não dorme mesmo nas horas mais tardias. A multidão movimentava-se apressadamente, empurrando quem se achasse à sua frente, acotovelando-se ou entrando em longas filas. A estrada achava-se bloqueada pelos carros, enquanto os enormes ônibus, lotados ao máximo, ronca- vam a fim de abrir caminho. Anúncios em neon brilhavam em cada parede. Manu, que jamais havia visto nada disso, caminhava como num sonho, de olhos arregalados, sempre acompanhando a tar- taruga. Atravessaram grandes praças e ruas bem iluminadas. Viam

TT passar a seu lado carros velozes e estavam cercadas de pedestres, mas ninguém prestava atenção à menina e à tartaruga. No meio daquele intenso movimento nunca levaram encontrões nem foram atropeladas. Era como se a tartaruga soubesse antecipada e pre- cisamente o momento exato em que não havia pedestres ou carros para atrapalhá-las. Não precisavam apressar-se nem diminuir o passo ou esperar, e Manu admirava-se de como era possível se adiantarem tão depressa, caminhando tão devagar! Quando Beppo Varredor chegou por fim ao anfiteatro a tênue luz da lanterna de sua bicicleta mostrou-lhe imediatamente os sinais dos pneus à volta das ruínas. Alarmado, correu para o buraco no muro e pôs-se a chamar: — Manu! — primeiro em voz baixa, depois mais alta: — Manu! Manu! Nenhuma resposta. Com a garganta seca, Beppo sentiu-se quase engasgado de aflição. Entrou no quarto de Manu, escuro como breu, tropeçou, deu um mau jeito e torceu o tornozelo. Com dedos trêmulos, con- seguiu riscar um fósforo e olhar em torno de si. A mesinha e as duas cadeiras feitas de caixotes estavam de pernas para o ar; o colchão e as cobertas reviradas. De Manu, nem sinal! Beppo mordeu os lábios, sufocando um soluço rouco: — Meu Deus — murmurou — meu Deus! Levaram minha menininha! Cheguei tarde! Que devo fazer agora? Que posso fazer? Nesse momento o fósforo começou a queimar seus dedos e ele o jogou fora, ficando em completa escuridão. Depois, passou de novo pelo buraco no muro e saiu, tão depressa quanto lhe

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permitia o tornozelo machucado. Pegou a bicicleta e lá foi peda- lando, à procura de Guido. Beppo sabia que Guido ultimamente estava ganhando um dinheirinho extra, passando as noites de domingo de vigia numa pequena oficina de conserto de automóveis, que era também de- pósito de carros velhos. Quando Beppo chegou, deu fortes pan- cadas na porta. Guido manteve-se primeiro em completo silêncio. Depois, reconhecendo a voz de Beppo, abriu, meio atordoado: — Que negócio é esse? Detesto que me acordem assim de repente! — É por causa de Manu! — explicou Beppo ofegante. — Uma coisa terrível aconteceu à menina! — Manu, que é que houve com ela? — Eu mesmo não sei — arquejou Beppo. — Mas só pode ser algum mal! E contou ao amigo tudo o que vira na Suprema Corte, no alto do monte de lixo; as marcas dos pneus em volta do anfitea- tro, e o desaparecimento de Manu. Levou algum tempo para contar tudo isso, pois apesar de sua inquietação pela menina não sabia explicar as coisas mais depressa. — Eu senti isso desde o começo — continuou. — Sabia que nada de bom ia sair daquela passeata. . . agora eles estão se vingando: raptaram Manu! Oh! Guido, temos de socorrer a menina. . . mas como? Que fazer? À medida que Beppo falava Guido ia-se tornando cada vez mais pálido. Até então, tinha considerado o caso como uma es- plêndida brincadeira, dando-lhe apenas a importância que dava aos jogos e histórias que inventava. Agora, pela primeira vez na vida, via uma história tomar corpo independentemente dele, -e suas mais brilhantes idéias não poderiam cancelar uma só palavra da realidade. Parecia-lhe ter virado pedra. — Sabe, Beppo — disse depois de uma pausa. — Pode ser que Manu tenha saído só para dar uma volta. Ela às vezes faz isso. Certa ocasião, ficou durante três dias e três noites passeando pelos campos. Quero dizer que talvez não haja motivo para nos preocuparmos assim! — E as marcas dos pneus junto ao a.-fiteatro? — perguntou Beppo zangado. — E o colchão e cobertas jogadas fora da cama? — Bem... — respondeu Guido evasivamente. — Vamos supor que alguém tenha realmente estado lá, isso não prova que tenham encontrado Manu! Ela já devia ter saído, do contrário não teriam dado busca e remexido tudo.

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— Guido, não seja idiota, os homens cinzentos são uma realidade! Temos de agir imediatamente! — Calma, Beppo! — murmurou Guido meio desanimado. — Decerto que temos de agir... mas primeiro é preciso pensar cuidadosamente no que podemos fazer. Afinal, nem sabemos por onde começar para procurar Manu! Beppo deixou-se cair numa cadeira junto à mesa, com a cabeça entre as mãos, e suspirou: — Francamente, não sei o que será melhor fazer... não sei! — De qualquer forma — respondeu Guido — acho que devemos esperar até amanhã ou mesmo até depois de amanhã, antes de tomar alguma iniciativa. Até lá, provavelmente tudo es- tará resolvido pelo melhor e estaremos rindo desta confusão! — Você acha mesmo? — murmurou Beppo, subitamente tomado por extremo cansaço. Os acontecimentos do dia tinham sido quase excessivos para um homem de sua idade. — Decerto! — afirmou Guido. Tirou os sapatos de Beppo, ajudou-o a atravessar a oficina, levou-o para sua cama, enro- lando o tornozelo num pano molhado, e repetiu baixinho: — Vai dar tudo certo! Tudo vai acabar bem! Quando viu Beppo adormecido, suspirou fundo e deitou-se no chão, enrolando o paletó para servir de travesseiro. Mas não conseguiu dormir. Durante toda a noite ficou pensando nos ho- mens cinzentos: pela primeira vez em sua vida, até agora des- preocupada, experimentou o que fosse o medo. O alto comando do Banco Poupa-Tempo organizou uma operação em larga escala: cada agente da grande cidade foi noti- ficado para interromper o que estivesse fazendo a fim de dedicar-

T0 se inteiramente à procura de Manu. As ruas pululavam de homens cinzentos: alguns instalaram-se no alto dos edifícios, outros raste- javam pelos encanamentos de esgoto, outros vigiavam estações ferroviárias e aeroportos, enquanto muitos fiscalizavam ônibus e bondes; em resumo — estavam em toda parte. Mas não encon- traram Manu. — ôi. Tartaruga, aonde está me levando? — perguntou Manu a certa altura. Ambas atravessavam nesse momento um escuro pátio interno. Não tenha medo foi a resposta que apareceu na carapaça da tartaruga. — Não estou com medo — disse Manu após ter soletrado aquelas palavras. Dizia-o porém mais para se tranqüilizar, pois sentia-se de fato meio assustada. O caminho pelo qual a conduzia

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a tartaruga tornava-se cada vez mais estranho e tortuoso. Já ha- viam atravessado parques, pontes, metrôs, portões, grandes vestí- bulos, e por vezes até passagens subterrâneas. Se Manu soubesse que um verdadeiro exército de homens cinzentos estava no seu encalço, certamente ainda ficaria muito mais atemorizada. Mas não tinha a menor idéia disso, assim acompanhava pacientemente a tartaruga, passo a passo. Tal como a tartaruga anteriormente abrira caminho através do tráfego, também agora parecia saber exatamente o momento em que iam surgir os inimigos. Acontecia os homens cinzentos chegarem a um lugar onde ambas tinham estado havia um ins- tante apenas; de modo que perseguidores e perseguidos de fato nunca se encontravam. — É uma sorte eu já saber ler tão bem, não é? — perguntou a menina, inocentemente. Nas costas da tartaruga, como luminoso sinal de aviso, bri- lhou a palavra: silêncio. Embora ignorando o motivo da ordem, Manu obedeceu. Três vultos escuros passaram bem perto delas. Nesse lado da cidade que agora percorriam, as casas torna- vam-se cada vez mais feias e miseráveis e a rua apresentava enor- mes buracos, cheios de água estagnada. Ali tudo era sombrio e deserto. O alto comando do Banco Poupa-Tempo recebeu notícia de que a menina Manu tinha sido vista. — Bem! — veio a resposta. — Já a capturaram? — Não. Foi como se a terra se abrisse subitamente e tivesse engolido a criança. Assim, perdemos de novo sua pista. — Como pode isso acontecer? — £ o que nós também nos perguntamos. Alguma coisa aí está errada! — Onde se encontrava ela, a última vez que a viram? — Pois aí é que está o fato estranho: achava-se numa par- te da cidade inteiramente desconhecida para nós. — Semelhante distrito não existe — afirmou o alto co- mando. — Mas tem de existir. É — como se pode descrevê-lo? — é como se esse distrito estivesse situado na fronteira do tempo e a menina caminhasse ao longo desse limite. — O quê? — berrou o alto comando. — Descubram de novo a pista. A menina tem de ser capturada a todo custo. A princípio, Manu pensou que fosse o sol nascendo... mas aquela luz fora do comum apareceu de repente, no momento

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exato em que virou a esquina daquela rua. Ali já não era noite e também ainda não era dia. Era uma luz que tornava os con- tornos extremamente agudos e claros; no entanto, não parecia vir de parte alguma, ou antes — de toda parte ao mesmo tempo, de modo que as longas, escuras sombras projetadas na rua pelas menores pedras tomavam todas as direções: uma árvore era ilu- minada pela esquerda, uma casa pela direita e um monumento pela frente. Também as casas eram diferentes de quantas Manu vira até então. Eram quase ofuscantes de tão brancas. Por trás das janelas, densas sombras escuras tornavam impossível ver se realmente vivia gente ali dentro. Mas de certo modo, Manu tinha a impressão de que aquelas casas não haviam sido construídas para pessoas ali morarem, e sim para um misterioso desígnio. Aqui as ruas apresentavam-se completamente desertas. Tudo era imóvel. Não soprava a mais leve aragem. Manu espantava-se por ver como se adiantavam rapidamente, embora a tartaruga parecesse mover-se mais devagar que nunca.

Longe desta estranha parte da cidade, ali onde reinava a noite, três elegantes carros de faróis acesos corriam a toda velo- cidade pelas ruas esburacadas. Em cada carro achavam-se vários homens cinzentos. No primeiro, um deles localizou Manu, justa- mente quando ela virava para entrar na rua das casas brancas, onde começava aquela claridade fora do comum. Quando ela dobrou a esquina, aconteceu uma coisa incrível: os motoristas pisavam com força no acelerador e as rodas gira- vam, mas os autos não saíam do lugar. Era como se estivessem numa esteira rolante, movendo-se tão depressa quanto eles, em direção oposta. Ao perceberem isso, os homens cinzentos pularam de seus carros, praguejando, e tentaram ir a pé no encalço de Manu, agora apenas visível ao longe. Quando, porém, tiveram de parar para tomar fôlego, viram que estavam somente a poucos metros do ponto de partida. Manu desaparecera na distância, entre as casas brancas como neve. Longe, bem longe, em meio ao labirinto das ruas e praças brancas como neve, Manu ia seguindo a tartaruga. E, justamente porque iam tão devagar, a rua parecia deslizar a seu lado, en- quanto as casas passavam voando. A tartaruga virou de novo uma esquina. Manu acompanhou-a e ficou imóvel, deslumbrada! Essa rua era inteiramente diversa 62 de todas as outras.

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Era mais uma estreita alameda que uma rua. De ambos os lados, as casas muito juntas, pareciam palácios de vidro em mi- niatura. Todos resplandeciam suavemente em tonalidades cam- biantes como da madrepérola. A rua terminava diante de uma casa isolada, em cujo centro via-se uma grande porta de bronze verde com esplêndidos orna- mentos. Manu olhou para a placa da rua, na parede, acima de sua cabeça. Era de mármore branco e tinha em letras de ouro gra- vado este nome: Alameda do Nunca. A menina levara apenas um instante para decifrar as letras, mas a tartaruga já se achava lá adiante, quase no fim da rua, em frente à última casa. — Espere por mim, Tartaruga! — gritou Manu, porém não pôde ouvir sua própria voz. A tartaruga, no entanto, pareceu tê-la ouvido: parou e olhou em volta. Manu tentou segui-la, mas quando começou a caminhar pela Alameda do Nunca teve a sensação de estar lutando contra poderosa corrente ou forte ventania. Lutou contra a misteriosa força que a retinha, agarrando-se à beirada da rua, e até andando de gatinhas. Tudo inutilmente! — Não consigo ir para frente! — gritou à tartaruga que descansava na outra extremidade da rua. — Por favor, me ajude! O animal voltou lentamente e quando chegou perto da me- nina apareceu em cima dela este aviso: ande de costas! Documente, Manu experimentou. Virou nos pés, começou a andar para trás e não encontrou mais nenhuma dificuldade em ir adiante. Mas ao mesmo tempo em que caminhava voltada para trás, também seus pensamentos, sua respiração, seus sentimentos, tudo parecia regredir — de fato, estava vivendo para trás. Por fim bateu com as costas numa coisa sólida. Virou-se e viu que estava diante de uma casa construída em curva, fechando a rua. Teve um ligeiro susto; vista de perto, a porta de bronze magnificamente lavrado era enorme. — Serei capaz de abrir esta porta? — pensou Manu duvi- dando. Nesse mesmo instante os dois colossais batentes se abriram de par em par. Manu deteve-se ainda um momento, pois notou umas pala- vras bem acima da entrada. O letreiro, sustentado por um licorne branco, era o seguinte: mansão de lugar nenhum. Logo que entrou, a monumental porta cerrou-se com o ruído de um trovão distante.

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Encontrava-se agora num alto corredor muito longo. À di- reita e à esquerda, em intervalos regulares, estátuas nuas de ho- mens e mulheres pareciam sustentar o teto. Aqui não havia mais vestígio daquela misteriosa corrente contrária. Manu seguia a tartaruga, que rastejava pela comprida ga- leria, ao fim da qual parou, diante de uma pequenina porta, tão pequena que mal dava para a menina entrar. Na carapaça da tartaruga apareceu esta palavra: chegamos! Manu ajoelhou-se para ler, à altura de seus olhos, o pequeno letreiro escrito na pequenina porta: Mestre da hora do segundo minuto. Respirou fundo, e puxou resolutamente o pequeno ferrolho. Quando se abriu a diminuta portinha,. ouviu do interior harmo- niosa melodia, feita de vários sons: tiquetaques, zunidos, carri- Ihões. Acompanhou a tartaruga, e o ferrolho da pequena porta fechou-se atrás dela.

11. OS MAUS TIRAM O MELHOR PARTIDO DE UM CASO GRAVE

Na luz cinzenta de infindáveis corredores e galerias, agentes do Banco Poupa-Tempo apressavam-se de um lado para outro. Todos os membros do Governo haviam sido convocados para uma Assembléia Extraordinária! Na enorme sala de conferências, os homens cinzentos mem- bros do Executivo do Banco estavam em sessão. Cada um com sua pasta cinzenta e seu charutinho cinzento. Só faltavam os cha- péus-coco. O Presidente levantou-se à cabeceira da longa mesa. Duas extensas filas de faces cinzentas voltaram-se para ele: — Senhores, a situação é muito séria. Quase todos os agen- tes disponíveis foram empregados na procura da menina Manu. Essa busca durou seis horas, treze minutos, oito segundos. Os agentes nela empenhados foram forçados a negligenciar seu pró- prio trabalho, que consiste em recolher tempo. A tal deficit, te- mos de acrescentar o tempo que também nossos homens perde- ram com isso. Estes dois itens representam um prejuízo de tempo que, de acordo com os mais exatos cálculos, soma um débito de três mil setecentos e trinta e oito milhões, duzentos e cinqüenta e nove mil, cento e quatorze segundos. Ora, Senhores, isso é mais do que o período de uma vida humana. Não é necessário que lhes diga o que tal perda significa para nós. O Presidente parou, apontando com gesto eloqüente para um cofre de aço gigantesco, com várias combinações de números

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fechaduras de segurança, embutido na parede da sala, e pros- seguiu: — Nossas reservas de tempo não são inesgotáveis. Senho- res. E se ao menos essa perseguição tivesse dado resultado! Mas a menina escapuliu de nossas mãos. Para o futuro, hei de opor- me categoricamente a qualquer empreendimento que exija tão elevados gastos. Temos de poupar, e não desperdiçar! É só o que tenho a dizer. Obrigado! Nisso, do lado oposto da longa mesa um outro orador ergueu-se, e todos os rostos voltaram-se para ouvi-lo. — Senhores — começou ele — a prosperidade do Banco Poupa-Tempo nos toca a todos muito de perto. Parece-me no entanto inteiramente desnecessário perturbarmo-nos com este caso, e muito menos transformá-lo numa espécie de catástrofe. Nada está mais longe da realidade. Sabemos que nosso estoque de tem- po tem maciças reservas, e prejuízos semelhantes não nos põem seriamente em perigo. Que significa a duração de uma vida huma- na para nós? Uma simples ninharia! Contudo estou de acordo com nosso respeitável Presidente: fato semelhante nunca mais deve acontecer. Aliás, o caso da menina Manu é único. Jamais ocorreu antes, e é absolutamente improvável que possa ocorrer de novo. Em conclusão, nosso Presidente nos acusa justamente por termos deixado a pequena escapar. Mas qual era nosso in- tuito? Tornar a menina inofensiva. Ora, Manu desapareceu, fugiu para além do reino do Tempo. Estamos livres dela. Acho, pois, que temos motivo para estarmos contentes com tal resultado. O orador sentou-se com um sorriso satisfeito e aplausos iso- lados saudaram sua argumentação. Um terceiro orador levantou-se: — Serei breve — disse. — Não se trata de uma criança comum. Ela possui certos dons, extremamente perigosos para nós e nossos negócios. Temos de permanecer vigilantes. Não pode- mos descansar enquanto essa menina não estiver completamente em nosso poder. É o único meio de termos a certeza de que não nos prejudicará mais. Se foi capaz de passar além das fronteiras

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do tempo, será igualmente capaz de voltar a qualquer momento. E voltará. Sentou-se. Os demais membros do governo baixaram os olhos, num silêncio submisso.

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— Senhores — declarou então um quarto orador. — Temos de reconhecer que há um estranho poder envolvido nesse caso. Tudo indica que Manu tenha recebido ajuda para fugir-nos. Os senhores sabem a quem me refiro: trata-se do Senhor do Tem- po, a quem às vezes chamamos de Mestre Hora. Ao escutarem esse nome, alguns dos homens cinzentos en- colheram-se como se tivessem levado uma pancada, enquanto ou- tros puseram-se de pé, gritando e gesticulando. — Senhores, por favor! — prosseguiu o orador, estendendo os braços. — Peço-lhes seriamente que se controlem! Bem sei que pronunciar tal nome não é — vamos dizer, coisa de bom- gosto. Mas temos de encarar os fatos objetivamente. Se Aquela Pessoa veio em auxílio de Manu, deve ter tido razões para isso, e essas são certamente contra nós. Em resumo, senhores, deve- mos considerar que Aquela Pessoa não só fará a criança voltar, mas que lhe dará também armas para nos combater. A menina será então para nós perigo mortal! Temos, pois, de estar prepa- rados para sacrificar não apenas a duração de uma vida humana, como de outras mais. Sim, senhores, em último recurso temos de arriscar tudo. Repito — tudo! Do contrário, nossa avareza pode sair-nos infernalmente cara. Penso que me entenderam. A agitação cresceu entre os homens cinzentos, e começaram a falar todos juntos. Um quinto orador pulou da cadeira e ace- nou violentamente com os braços: — Silêncio! Silêncio! — gritava ele. — O nosso colega su- geriu toda espécie de catástrofes possíveis, mas ele próprio não tem a menor idéia de como resolvê-las. Deve dizer-nos o que po- demos realmente fazer. Vamos enfrentar um perigo inteiramente desconhecido. Esse é o problema a solucionar! O barulho da sala transformou-se em tumulto. Um sexto orador teve dificuldades para fazer-se ouvir. — Senhores, por favor! Peço-lhes que se mantenham tran- qüilos e razoáveis. Mas admitindo que a menina Manu volte — de certo modo armada por Aquela Pessoa — não há absoluta- mente necessidade que nenhum de nós tome pessoalmente parte na luta. Não estamos aptos para tal encontro, como ficou demons- trado pelo infeliz caso do nosso desventurado agente Nv BLW/ 553/c, há pouco liquidado. Nada disso é preciso. Afinal, temos suficiente número de cúmplices entre os seres humanos. Se sou- bermos usar das pessoas com inteligência e discrição, poderemos dominar a menina e os perigos que ela causa, sem nunca apare- cermos abertamente. Essa tática será econômica, sem riscos e alta- mente eficaz. Houve um suspiro de alívio na assembléia reunida. A suges- tão agradou a todos, e teria sido sem dúvida aceita imediata- mente se um sétimo orador não tivesse pedido a palavra:

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— Senhores, continuamos a discutir como nos livrar da me- nina Manu, e encarando francamente esse fato. o que nos leva a isso — é o medo. Mas o medo, meus senhores, é mau con- selheiro. Parece-me que estamos perdendo uma oportunidade realmente única: diz um provérbio "se não puder vencê-los, alie- se a eles". Por que não procuramos conquistar a menina para o nosso lado? — Adiante! Continue! Escutem! — gritaram várias vozes juntas. — Ê óbvio — prosseguiu o orador — que essa criança achou o caminho para encontrar Aquela Pessoa — caminho esse que temos procurado em vão, desde o princípio. Ora, a menina provavelmente achará de novo esse rumo e poderá guiar-nos até lá. Negociaremos então com Aquela Pessoa, segundo nossos pró- prios métodos. Estou certo de que seremos rapidamente donos da situação, não tendo mais de suar e esforçar-nos para ganhar- mos algumas horas, minutos ou segundos. De um só golpe seremos possuidores do tempo pertencente à humanidade; e possuir todo o tempo dos homens é ter ilimitado poder! Imaginem, senhores, se alcançarmos nosso alvo! No entanto, Manu — de quem dese- jam livrar-se — é a única que é capaz de ajudar-nos a atingi-lo! Um silêncio de morte reinou na sala. Depois, um dos presentes exclamou: — Mas todos sabem que é impossível contar mentiras a essa menina! — Ora, quem falou em mentir? — perguntou o orador. — Nós lhe diremos com inteira franqueza quais são os nossos planos. — Nesse caso, ela não nos ajudará! — gritou um outro. — Essa idéia é simplesmente absurda! Um nono manifestante juntou-se à discussão: — Não concordo, meu amigo. Teríamos sem dúvida de lhe oferecer alguma coisa que a atraísse. Prometendo, por exemplo, tanto tempo quanto quisesse para seu próprio uso... — Promessa que jamais cumpriríamos — interrompeu um participante da assembléia. — Promessa que teríamos de cumprir — replicou o outro, com gélido sorriso. — Ela saberia imediatamente se não tcncio- nássemos fazer o que prometemos. — Não, não! — declarou o Presidente, batendo com o pu- nho fechado na mesa. — Não posso de modo algum consentir em tal coisa! SAdwcrmos de dar-lhe tanto tempo quanto desejar, isso nos custàiAAHÉfortuna! — Nem tAAAHL-etrucou o orador acalmando-o. — Quan- to tempo gastaAMMiiAgi uma criança? Admitindo que seja uma despesa pequena masAronslanie. que e isso ao lado do que ga- nharíamos em trocarABrcmpo total de toda a humanidade! A

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quantia gasta por fffEm seria simplesmente registrada na coluna de débito de nossa conta, c pensem nas vantagens que teríamos! O orador sentou-se e todos puseram-se a refletir nos lucros em vista. Levantou-se então o sexto manifestante: — De qualquer modo, isso não daria certo! — Por que não? — Pelo simples motivo que essa criança infelizmente dispõe de todo o tempo de que necessita. Não adianta procurar subor- ná-la com uma coisa que ela já tem de sobra! — Teremos então de retirar-lhe o tempo — concluiu o no- no orador. — Meus Senhores — disse o Presidente aborrecido. — Ve- jam que estamos sempre na mesma! É um círculo vicioso, pois não conseguimos nos apoderar da menina, esse é o problema. Nas loneas fileiras dos membros do governo houve um sus- piro de desânimo. — Tenho uma sugestão — anunciou um décimo orador. — Essa criança só vive para seus amigos. Sua alegria é dar o seu tempo aos outros. Vamos imaginar o que aconteceria se não lhe restasse ninguém com quem partilhar o tempo! Se a menina não quer cooperar conosco voluntariamente, temos de nos apoderar de seus amigos. Tirou da pasta um fichário e abriu-o: — As principais pessoas a considerarmos são um certo Beppo Varredor e Guido Guia. Tenho também uma longa lista das crian- ças que costumam visitá-la freqüentemente. Bastará afastá-los com- pletamente de Manu, que ficará inteiramente só. Que valor terá então o seu tempo? Transformar-se-á num fardo ou até em mal- dição. Mais cedo ou mais tarde será incapaz de suportá-lo, e aí estaremos nós, prontos para impor nossas condições. Ela nos mos- trará o caminho desejado para em troca ter de volta seus amigos. Os homens cinzentos, momentos antes mergulhados em tris- teza, levantaram a cabeça: havia cm cada face um sorriso de triun- fo nos lábios magros.

1 2 MANU CHEGA AO LUGAR DE ONDE VEM O TEMPO

Manu achava-se agora na maior sala jamais vista. Possantes pilares sustentavam o teto alto, apenas vislumbrado, na penumbra reinante. Hão havia janelas. A claridade dourada e tênue que cin- tilava na extraordinária sala provinha de inúmeras velas, dispostas por toda parte.

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Os milhares de sons que Manu ouvira ao entrar resultavam de inumeráveis relógios de todo tamanho e feitio. Havia minúsculos relógios de bolso ornados como jóias, despertadores comuns de metal, ampulhetas, relógios que tocavam música acompanhada por bonequinhas que dançavam, relógios de sol, relógios de madeira, de mármore, de vidro, e outros, movidos por um jato d'agua. Nas paredes, estavam pendurados toda espécie de relógios-cuco, reló- gios com grandes pesos, relógios com pêndulos que oscilavam len- ta e seguramente, enquanto outros apresentavam pequeninos e de- licados pêndulos movendo-se muito depressa de um lado para ou- tro. À altura de um primeiro andar, havia um balcão ao redor de toda a sala, ao qual se chegava por uma escada em caracol. Mais acima, destacava-se um segundo balcão; ainda acima outro e mais outro. Viam-se também relógios no feitio do globo terrestre, mos- trando as horas em todas as partes do mundo, e grandes plane-

6T tários com o Sol, a Lua, as estrelas. No centro da sala. erguia-se como que uma floresta de relógios antigos, desde as pêndulas de tamanho habitual até verdadeiros relógios de torre de igreja. Não havia um só momento em que um desses relógios não estivesse dando horas ou tocando carrilhões, pois cada um indi- cava uma hora diversa. O ruído resultante não era, porém, desagradável; era um murmúrio constante, lembrando o de um bosque num dia de verão. Manu passeava pela sala, de olhos arregalados diante de um relógio musical, ricamente trabalhado, no qual duas delicadas fi- gurinhas — um rapaz e uma moça — estavam de mãos dadas, temo se fossem dançar. Escutou de repente atrás de si uma voz agradável dizer: — Ah! Então está de volta, Cassiopeia! E trouxe a pequena Manu? Voltou-se e viu, num dos atalhos da floresta de relógios an- tigos, um elegante senhor de cabelos prateados, curvando-se a fim de conversar com a tartaruga. O senhor usava longa jaqueta bor- dada a ouro, calções de seda azul, meias brancas e sapatos com grandes fivelas douradas. Sob a jaqueta apareciam no pescoço e nos punhos folhos de preciosa renda. O cabelo prateado terminava num pequeno rabinho, partindo da nuca. Manu nunca tinha visto semelhante vestuário, mas alguém menos ignorante reconheceria imediatamente a moda de duzentos anos atrás. — Estou aqui! — gritou Manu. Com um sorriso encantador e de mãos estendidas, o dono da casa dirigiu-se para ela. À medida que se aproximava, pare- cia a Manu que ele se ia tornando mais jovem a cada passo. Quando afinal se encontraram, segurou-lhe as mãos carinho- samente, parecendo então apenas pouco mais velho do que a pró- pria Manu.

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— Bem-vinda! — exclamou alegremente. — Afetuosas boas- vindas à Mansão de Lugar Nenhum. Deixe que me apresente: sou Mestre da Hora do Segundo Minuto. — Estava mesmo me esperando? — perguntou Manu admi- rada. — Decerto, pois até mandei minha tartaruga Cassiopeia es- pecialmente para buscar você! Do bolsinho do colete tirou um pequeno relógio cravejado de brilhantes, abriu-o e disse: — De fato, chegaram com extraordinária pontualidade. Sorrindo, mostrou o relógio à menina. Manu notou que não havia ponteiros nem números; apenas duas espirais, finamente desenhadas, postas uma sobre a outra, movendo-se cm direção contrária, muito devagar. Na interseção das linhas apareciam de quando em quando minúsculos pontos lumi- nosos. — Este é o relógio do destino, cujas horas marca fielmente: uma delas está agora se iniciando. — O que é um relógio do destino? — perguntou Manu. — Bem — explicou Mestre Hora. — No curso da existência ocorrem às vezes momentos especiais em que cada ser e cada coisa no universo, até mesmo as estrelas mais distantes, tudo coin- cide de maneira única e perfeita, permitindo acontecimentos que seriam impossíveis antes ou depois daquele momento. Infelizmen- te, a maioria das pessoas não sabe aproveitar tais instantes e assim as horas astrais passam sem serem percebidas. Mas quando alguém as reconhece, grandes coisas acontecem então no mundo. — Talvez seja preciso ter um relógio como o seu para reco- nhecê-las — observou Manu. Mestre Hora sacudiu a cabeça negativamente e sorriu: — O relógio por si mesmo não adiantaria a ninguém. Ê pre- ciso saber como se lê! Com um rápido estalo fechou de novo o reloginho e colo- cou-o no bolso do colete. Depois, notando o olhar de espanto de Manu diante de seu vestuário, considerou cuidadosamente sua rou- pa, franziu a testa e disse: — Oh! Mas creio que estou muito atrasado na moda! Que descuido, o meu! Vou já consertar isso! Estalou os dedos e imediatamente apareceu de sobrecasaca e colarinho duro. — Estou melhor assim? — perguntou na dúvida. Vendo po- rém a expressão perplexa da menina, acrescentou rapidamente: — Não, decerto que não! Onde estou com a cabeça? Estalou de novo os dedos e surgiu com um vestuário estra- nho, que nem Manu nem ninguém poderia ter visto antes, pois só seria usado cem anos mais tarde.

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Pela terceira vez deu outro estalo e apareceu com uma rou- pa de acordo com a moda atual: — Assim está bem, não é? E agora, minha querida menina, é tempo de convidá-la para uma refeição. Você fez uma longa viagem e há de apreciar o que lhe vou oferecer. Tomou-a pela mão, guiando-a através da floresta de reló- gios. A tartaruga os acompanhava de perto. Chegaram por fim a uma saleta, cujas paredes eram formadas pela parte de trás das inúmeras e gigantescas caixas de relógios. A um canto, via-se uma mesinha dc pernas recurvadas e um elegante sofá com pol- tronas combinando. Sobre a mesa, estavam uma grande chocolateira e duas pe- quenas xícaras juntamente com pratinhos, garfos e facas, tudo de ouro puro. Numa cestinha havia pãezinhos, tostados, torradinhos; e num pratinho, manteiga de um amarelo dourado; outro conti- nha mel que parecia ouro líquido. Mestre Hora serviu o chocolate quente nas duas xícaras e disse com um gesto cheio de carinho: — Agora, minha cara hóspede, sirva-se à vontade! Manu não o deixou repetir o conselho. Até aquele momento nem sabia que se tomava chocolate, e pãezinhos com manteiga e mel eram algo muito raro em sua vida. Jamais tinha provado coisa tão deliciosa! Assim, no começo ficou inteiramente entretida com a maravilhosa refeição, saboreando-a de boca cheia, e não pen- sando em nada. O alimento fez com que se sentisse repousada, desaparecendo todo o cansaço, embora não tivesse dormido um instante sequer durante toda a noite. Mestre Hora sabia que sua pequena hóspede tinha de satis- fazer a fome de muitos anos. Ele próprio não comia quase nada. só o bastante para fazer-lhe companhia. Afinal Manu ficou realmente satisfeita e sorvendo o choco- late, lançou um olhar curioso para seu anfitrião: quem seria ele? Compreendia que não se tratava de uma pessoa comum, mas nada sabia a seu respeito, a não ser o nome. Colocou então a xícara no pires e perguntou: — Por que mandou a tartaruga me buscar? — Para protegê-la dos homens cinzentos — respondeu Mes- tre Hora com toda seriedade. — Então todos à sua procura, por toda parte, e o único lugar onde você está segura é aqui comigo. — Eles me fariam algum mal? — perguntou espantada a me- nina. — Sim, decerto! — suspirou Mestre Hora. — Fariam mes- mo! — Mas por quê? — Porque têm medo de você — explicou Mestre Hora à criança surpresa — pois você causou-lhes um dano mortal.

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— Como? Não fiz nada contra eles! — retrucou Manu. — Oh! Fez sim! Por sua causa um deles se traiu, você con- tou o segredo a seus amigos e em seguida queriam dizer a todo mundo a verdade acerca dos homens cinzentos. Não acha que é o bastante para torná-los seus inimigos mortais? — Mas a tartaruga e eu atravessamos todo o centro da grande cidade — respondeu Manu. — Se estivessem à minha pro- cura teriam me encontrado facilmente, pois andávamos muito de- vagar. Mestre Hora apanhou a tartaruga que se acomodara a seus pés, pôs o animal no colo, coçou-lhe gentilmente o pescoço e perguntou sorrindo: — Que acha, Cassiopeia, poderiam ter capturado vocês? Na carapaça da tartaruga apareceu a palavra Nunca, e as letras brilhavam tão alegremente que se poderia jurar ter-se ou- vido também um riso disfarçado. — Cassiopeia pode enxergar um pouco do futuro — ex- plicou Mestre Hora. — Não muito, ainda assim, com antecipa- ção de meia hora. Ela sabe o que vai acontecer nesse espaço de tempo, sabia portanto se ia encontrar os homens cinzentos ou não. Mas voltando a você e seus amigos — prosseguiu Mestre Hora — quero felicitá-los. Seus cartazes e faixas me impressionaram muito bem. — O senhor leu o que escrevemos? — perguntou Manu, encantada. — Li tudo, palavra por palavra! — Foi uma pena! Acho que ninguém mais leu nada — disse a menina. Mestre Hora acenou afirmativamente com a cabeça: — Sim. foi pena! E os responsáveis por isso foram os ho- mens cinzentos. — O senhor os conhece bem? — indagou Manu. — Sim, eu os conheço e eles me conhecem.

— O senhor costuma estar com eles? — continuou a crian- ça a indagar. — Não. eu nunca saio da Mansão de Lugar Nenhum. — Então, os homens cinzentos às vezes vêm aqui para ver o senhor? Mestre Hora sorriu: — Não se aflija, Manu! Ainda que eles conhecessem o ca- minho para a Alameda do Nunca, não poderiam entrar aqui. Mas de qualquer modo, não sabem o caminho. Manu ficou um momento pensativa. A explicação tranqüi- lizou-a; tinha porém vontade de saber mais a respeito de Mestre Hora; assim, continuou a perguntar:

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— E como é que o senhor sabe de tudo isso? Quero dizer, de nossos cartazes e dos homens cinzentos? — Estou sempre de olho neles e em tudo quanto a eles se relaciona — declarou Mestre Hora. — Por isso, estive também vigiando você e seus amigos. — Mas o senhor não disse que nunca sai desta casa? — Nem é preciso! — e Mestre Hora foi-se tornando visi- velmente mais jovem à medida que falava. — Afinal de contas, tenho os meus óculos universais. — Tirou seus pequenos óculos de aro de ouro e entregou-os a Manu: — Você não quer olhar através deles? A menina pôs os óculos, piscou, envesgou os olhos e disse: — Não vejo nada! De fato, só via uma confusão de brilhantes, cores, luzes e sombras que a deixavam completamente tonta. — É assim mesmo — explicou Mestre Hora. — Sempre acontece isso no começo. Não é fácil ver através dos óculos uni- versais. Mas você vai se acostumar! Levantou-se, ficou por trás da cadeira de Manu, pôs deli- cadamente suas mãos nas hastes dos óculos c moveu devagar. Imediatamente, focalizou-se a imagem. Ela viu primeiro o grupo dos homens cinzentos nos três carros, perto da rua onde começava aquela estranha claridade, no momento em que os carros iam em marcha a ré em vez de seguir para a frente. Olhando mais para longe, viu na distância outros grupos nas ruas da cidade, gesticulando e falando agita- damente uns com os outros, como que pedindo as últimas in- formações. — É de você que estão falando — explicou Mestre Hora. — Não compreendem como você conseguiu escapar-lhes. — Por que têm eles o rosto tão cinzento? — perguntou Manu, observando-os. — Porque se conservam vivos alimentando-se de matéria morta — respondeu Mestre Hora. — Eles vivem do tempo que realmente pertence à humanidade. E o tempo morre quando é arrancado daquele a quem cabe por direito. Cada um tem o seu tempo próprio, que só é vivo enquanto lhe pertence. — Então os homens cinzentos não são gente? — Não; apenas tomam a forma humana. — O que são eles, então? — Na realidade, não são nada. — E de onde é que eles vêm? — Eles só vêm a ser porque as pessoas lhes dão oportuni- dade para existir — isso é o bastante para produzi-los. E agora que as pessoas lhes estão dando oportunidade para dominá-las, será também o bastante para criá-los.

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— Mas supondo que não possam mais roubar tempo de ninguém, que acontecerá? — Voltarão ao nada de onde vieram. Mestre Hora tomou os óculos de Manu e guardou-os no bolso. — Infelizmente — continuou depois de uma pausa — eles têm agora muitos cúmplices entre a humanidade. Isso é o pior de tudo. — Eu não deixarei ninguém roubar o meu tempo! — afir- mou Manu decididamente. — Espero que não — disse Mestre Hora. — Mas venha comigo, quero mostrar a você a minha coleção. Agora parecia de novo um velho. Tomou Manu pela mão e levou-a de volta à enorme sala, onde lhe mostrou toda espécie de relógios: pôs em andamento alguns que começaram a tocar música, explicou-lhe o planetário, e a alegria que essas coisas maravilhosas causavam à sua pe- quena visitante fez com que tomasse novamente o aspecto jovem. Enquanto passeavam, perguntou à menina: — Você gosta de charada? — Gosto muito! O senhor sabe alguma? — Sei — disse ele sorrindo. — Sei até uma que é muito difícil de se decifrar. Pouca gente consegue resolvê-la. — Que bom! Quero aprender essa charada para depois en- sinar a meus amigos. — Estou curioso por ver se você será capaz de decifrá-la. Preste bem atenção — recomendou Mestre Hora. Numa grande e misteriosa casa vivem três irmãos. Cada um é diferente do outro. No- entanto, se você procurar distinguir irmão de irmão, descobrirá que todos três se parecem muito entre si. O primeiro não está em casa — ainda não chegou. O segundo estava, mas chegou e se foi. O terceiro, o menor dos três, está em casa, pois se não estivesse seus dois irmãos não poderiam existir. Contudo, a existência do terceiro só pode ser avaliada por- que o primeiro se transformou no segundo. E, se você olhar bem para o terceiro o primeiro e o segundo é que virão à sua lembrança. Decifra a charada: são os três realmente um só? São apenas dois? Ou talvez nenhum? E se, cara menina, seus nomes você descobrir saberá que são três poderosos reis governando juntos um grande reino,

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e são eles próprios esse reino, que dominam em pé de igualdade.

Manu ouvira atentamente. Depois, suspirou: — Santo Deus! Esta é mesmo difícil! Não tenho a menor idéia da resposta e nem sei por onde começar. — Experimente! — disse Mestre Hora, estimulando-a. Manu repetiu a adivinhação, procurando o sentido; em se- guida, sacudiu a cabeça c confessou: — Não sei mesmo! Enquanto isso, Cassiopeia, que os tinha acompanhado, esta- va junto de Mestre Hora e observava Manu cuidadosamente. — Bem, Cassiopeia, você que sabe tudo com meia hora de antecedência, responda: Manu resolverá a charada? — perguntou Mestre Hora. A resposta apareceu nas costas da tartaruga: resolverá. — Está vendo? — disse ele à menina. — Você vai acertar, Cassiopeia nunca se engana! Manu franziu a testa, esforçando-se para adivinhar. O que podiam ser os três irmãos morando na mesma casa? Evidente- mente não se tratava de seres humanos. Aqui, porém, eram três irmãos que de certo modo se trans- formavam um no outro? Seria alguma coisa como flor e fruto, semente? Talvez fosse isso: a semente era o menor dos três "ir- mãos", e sem a semente a flor e o fruto não existiriam. Mas na charada olhando-se para o "terceiro irmão", eram o primeiro e o segundo que se v i a m . . . Não dava certo também! Os pensamentos da menina percorriam todos os campos; por mais que se esforçasse não conseguia encontrar uma pista. Mas Cassiopeia afirmara que ela acharia a resposta... Começou então a repetir lentamente a charada. Quando pronunciou as palavras: "O primeiro não está em casa, ainda não chegou" viu a tartaruga piscando para ela e na sua carapaça apareceram depressa, desfa- zendo-se imediatamente, estes dizeres: aquilo que eu sei. Embora não estivesse olhando para a tartaruga, Mestre Hora sorriu e disse: — Fique quieta, Cassiopeia, não precisa dar palpites. Manu vai encontrar sozinha a resposta. Naturalmente a menina leu o que aparecera nas costas da tartaruga e começou a imaginar o que significaria aquilo. Que é que Cassiopeia sabia? — que ela ia decifrar a charada? mas isso não adiantava muito! Que mais podia ser? Ah! Cassiopeia tinha conhecimento das coisas "antes" de acontecerem... então co- nhecia. . .

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— O futuro! — exclamou Manu. — O primeiro não está em casa — ainda não chegou, isto quer dizer o futuro. O segundo estava, mas chegou e se foi — significa o passado. Mestre Hora acenou afirmativamente, sorrindo satisfeito. — Mas — continuou a menina pensativa — agora é o mais difícil: o que será o terceiro? É o menor dos três, sem ele os dois outros não podem e x i s t i r . . . e é o único que está em c a s a . . . Refletiu u m pouco e gritou de repente: — É "agora!" Ê este momento! O passado é formado pelos momentos que se foram; o futuro pelos que ainda vão chegar e nenhum dos dois pode existir sem o presente. Acho que acertei! As faces de Manu estavam coradas de entusiasmo. — Mas o que quer dizer o seguinte: "A existência do ter- ceiro só pode ser avaliada. Por que o primeiro se transformou no segundo?" Ah! já sei, deve significar que o presente só existe por- que o futuro já virou o passado. Olhou para Mestre Hora, cheia de espanto: — É verdade, e eu nunca tinha pensado nisso antes. Mas então existe realmente o presente, ou só o passado e o futuro? Agora, por exemplo, quando falo no presente, ele já se tornou pas- s a d o . . . assim, compreendo também que olhando para o terceiro irmão, é o primeiro e o segundo que nos vêm à mente. Afinal, po- deríamos dizer que só existe um único irmão — o presente; como poderíamos dizer que só existem, na realidade, o passado e o fu- turo. Ou talvez nenhum deles, pois cada qual só tem existência em relação aos outros dois. Puxa! fiquei de cabeça quente! — Mas a charada ainda não acabou — disse Mestre Hora. — Qual é o grande reino que os três governam juntos, e que eles próprios constituem? Manu voltou-se para ele, perplexa. Que seria isso? Onde é que o presente, o passado e o futuro se encontram juntos? Seu olhar percorreu a sala imensa, fixando-se nos milhares de relógios. Com expressão subitamente iluminada, exclamou então: — É o Tempo! Isso significa o Tempo! E pulava de alegria. — Diga-me agora qual é a casa em que moram os três ir- mãos — acrescentou Mestre Hora. — Deve ser o mundo — respondeu a menina. Desta vez foi Mestre Hora quem bateu palmas de conten- tamento:

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— Bravo! Parabéns, Manu! Você é boa nas charadas! Isso muito me alegra. Manu estava ainda com o pensamento naquela adivinhação e fez de repente esta pergunta: — Diga-me: que é afinal o Tempo? — Você já o descobriu sozinha! — respondeu Mestre Hora. — Mas eu quero saber o que ele é em si mesmo? Se exis- te, deve ser alguma coisa! O que é realmente o Tempo? — Seria bom que você própria também encontrasse essa res- posta — disse Mestre Hora. Manu ficou longo tempo pensativa. Depois, murmurou ab- sorta: — Ele existe, isso é certo. Mas não se pode agarrar o Tem- po, nem conservá-lo. Será como uma espécie de perfume? Mas se é uma coisa que está sempre passando, deve vir de algum lugar. Será como o vento? Não; já sei: talvez seja como uma espécie de música, que não se ouve porque está sempre tocando... mas penso que eu já a escutei às vezes, muito baixinho. — Sei disso — confirmou Mestre Hora — e foi por esse motivo que pude mandar buscar você. — Deve porém haver mais alguma coisa — continuou Ma- nu, sempre meditando. — A música vinha de muito longe, e no entanto parecia ressoar no mais profundo de mim mesma. Talvez o Tempo também seja assim? Parou, confusa, e acrescentou meio desnorteada: — Quero dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na água por causa do vento. Oh! creio que estou dizendo uma por- ção de tolices!

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— Pois eu acho que você descreveu tudo muito bem! — exclamou Mestre Hora. — E por isso vou contar um segredo: todo o tempo dos homens provém da Mansão de Lugar Nenhum, no fim da Alameda do Nunca. Manu olhou-o cheia de admiração e disse baixinho: — É o senhor mesmo quem faz o Tempo? — Não, menina, eu sou apenas o distribuidor; meu dever é dar a cada ser humano o tempo que lhe é consignado. — E o senhor não pode arranjar facilmente um jeito para que esses ladrões não possam mais roubar o tempo das pessoas? — perguntou Manu. — Não; as pessoas têm de decidir elas mesmas quanto ao uso que fazem do seu tempo. E devem também ter cuidado com ele. Só o que me cabe fazer é reparti-lo. Manu lançou um olhar à sua volta e perguntou: — É por isso que o senhor tem tantos relógios? Um para cada pessoa? — Não, Manu. Esses relógios são apenas meu prazer — minha distração predileta — são simplesmente uma cópia muito imperfeita de algo que cada um tem no seu próprio coração. Assim como você tem olhos para ver a luz, ouvidos para escutar os sons. tem também um coração para entender o Tempo. E todo o tempo que não é apreendido pelo coração é tão desperdiçado como se- riam as cores do arco-íris para um cego ou o canto da cotovia para um surdo. — Que acontecerá quando meu coração parar de bater? — perguntou Manu. — Então, o tempo terá terminado para você. Ou pode-se também dizer que você mesma é que voltará através do tempo, através de todos seus dias e noites, meses e anos: voltará através de toda a sua vida, até chegar à grande porta semicircular de pra- ta, por onde no princípio você entrou e pela qual sairá de novo. Diga-me: Você gostaria de ver de onde vem o tempo? — Muito! — sussurrou ela. — Pois vou levar você lá — disse Mestre Hora. — Mas você terá de ficar inteiramente silenciosa, sem perguntar nem dizer nada.

Mestre Hora curvou-se então e carregou-a, segurando-a fir- memente nos braços. Parecia de repente ter-se tornado muito grande e incrivelmente velho, como árvore muito antiga ou mon- tanha primitiva. Pôs as mãos sobre os olhos da menina, e foi como se frios e leves flocos de neve caíssem sobre seu rosto. Manu tinha a impressão de que ele a levava por um longo e escuro corredor, mas sentia-se segura e não tinha medo algum. No começo, pensou estar ouvindo as batidas de seu próprio co- ração; logo, porém, pareceu-lhe cada vez mais que elas eram o eco dos passos de Mestre Hora.

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O percurso foi longo, mas por fim ele a colocou de pé, e com o rosto ainda bem junto ao seu, olhando-a fixamente, pôs um dedo nos lábios. Um crepúsculo dourado envolveu a menina. Aos poucos, Manu viu que estava sob uma cúpula imensa, tão alta como a abóbada celeste, toda de ouro. No cimo, bem no centro, havia uma abertura circular pela qual uma verdadeira coluna de luz se irradiava sobre um lago, também redondo, do mesmo tamanho da abertura do alto, cuja superfície negra era tão lisa e imóvel qual a de escuro espelho. Pouco acima da água, algo parecendo uma brilhante estrela resplandecia na coluna luminosa, movendo-se com majestosa len- tidão. Observando melhor, Manu viu que era um enorme pêndulo, oscilando de um lado para outro sobre o espelho negro do lago. Não estava suspenso de nenhum ponto, e pairava no ar como se fosse imponderável. Quando o pêndulo estelar se aproximou da margem do lago, um grande botão de flor surgiu sobre a água escura. Quanto mais perto chegava o pêndulo, mais desabrochava o botão, até abrir- se completamente sobre a superfície lisa. Era a flor mais mara- vilhosa que Manu jamais havia visto: parecia feita apenas de uma quantidade de brilhantes cores, tão belas como a menina nunca imaginara que existissem. O pêndulo estelar deteve-se um instante sobre a flor e Manu, completamente absorta nessa visão, estava inconsciente de tudo mais a seu lado. O perfume da flor parecia-lhe uma coisa que sempre havia desejado, sem saber o que fosse. Aos poucos, porém, devagar, muito devagar, o pêndulo co- meçou a afastar-se, e enquanto se distanciava Manu viu com as- sombro que a flor maravilhosa começava a murchar. As pétalas caíam, uma após outra, mergulhando na escura profundeza. Quan- do o pêndulo chegou ao centro, nada restava daquela extraordiná- ria beleza. Naquele exato instante, porém, outro botão começou a surgir da água, desta vez do lado oposto, e foi-se abrindo à medida que o pêndulo se aproximava. Manu viu que outra flor maravilhosa ali desabrochava, ainda mais bela do que a anterior, e deu a volta do lago para apreciá-la mais de perto. Era inteiramente diversa da flor antecedente: suas cores pa- reciam à menina ainda mais ricas e suntuosas; seu perfume tam- bém era outro, ainda mais delicioso. E quanto mais Manu a con- templava, mais lindos detalhes nela descobria. De novo, porém, o pêndulo oscilou para longe e todo aquele esplendor desvaneceu-se, caindo, pétala por pétala, na insondável profundeza do lago. Lenta, lentamente, o pêndulo moveu-se para a outra mar- gem, e desta vez aproximou-se de outro ponto, ligeiramente dis- tante do anterior, onde começou a surgir novo botão, que foi gra-

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dualmente dcsabrochando. Extasiada, Manu admirava essa flor — verdadeiro milagre de beleza — que superava todas as outras. Quase chorou alto, ao ver também essa perfeição murchar e desaparecer no lago sombrio. Mas lembrou-se da promessa que fizera a Mestre Hora e ficou muda. Agora, na outra margem, no lugar onde se achava o pêndulo, surgia da água outro botão pres- tes a se abrir. Aos poucos, foi a menina compreendendo que cada nova flor era sempre diferente das anteriores e que aquela que floria agora — no momento presente — lhe parecia sempre a mais bela de todas. Não se cansava de apreciar aquela cena, quando tomou cons- ciência de que mais alguma coisa ali ocorria constantemente sem que o tivesse notado. A coluna de luz irradiando do alto da cúpula não era ape- nas visível — Manu começou também a ouvi-la. No princípio era apenas um leve sussurro como o som distante do vento so- prando no cimo das árvores. Logo, porém, o som aumentou, fazen- do pensar numa cascata despencando das alturas ou em grandes on- das rebentando contra rochedos da costa. Foi percebendo que aquele ruído era composto de inúmeras melodias separadas, que modulavam e se uniam para formar harmonias sempre novas. Era música e. ao mesmo tempo, coisa inteiramente diversa. De repen- te M;inu descobriu — era a música que ela ouvira por vezes, longe, muito ao longe, quando se punha a escutar o silêncio sob o céu estrelado. O som tornara-sc agora mais nitido e irradiante. A menina começou então a suspeitar ser essa luz sonora que fazia surgir as flores das profundezas do sombrio lago, dando a cada uma sua beleza própria, única. Quanto mais atentamente ouvia, com maior clareza podia distinguir as vozes individuais, que aliás não eram vozes huma- nas: pareciam vibrações de metais preciosos. Além disso, no fundo, ressoavam vozes de outra espécie, vindas de incomensu- rável distância. Tornavam-se cada vez mais claras e Manu pôde aos poucos ouvir as palavras que elas cantavam. Palavras numa língua que jamais ouvira, e que no entanto compreendia: o Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe revelavam seus nomes reais e verdadeiros. Esses nomes é que determinavam aquela ma- ravilhosa força pela qual, todos unidos, suscitavam a floração das horas, que continuamente floriam e se desvaneciam. Subitamente Manu compreendeu que aquelas palavras se di- rigiam a elal Todo o universo — desde a mais longínqua estrela, voltava-se para ela como se uma única face, inconcebivelmente vasta, a contemplasse e lhe falasse. Sentiu-se invadida por um sentimento maior do que o temor.

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Nesse instante, viu Mestre Hora que silenciosamente lhe ace- nava. Correu para ele, refugiou-se nos seus braços e escondeu o rosto no seu peito. De novo ele colocou as mãos sobre os olhos da menina, tão suavemente como flocos de neve; tudo se tornou escuro, silen- cioso, e Manu sentiu-se segura enquanto era carregada de volta pelo sombrio corredor. Quando chegaram outra vez à saleta entre os relógios, ele deitou-a no sofá. — Mestre Hora — murmurou a criança — nunca pensei que o tempo dos homens fosse tão imenso! — O que você viu e ouviu, Manu, não foi o tempo de todos os homens, foi apenas o tempo que é o seu — replicou Mestre Hora. — Em todas as pessoas existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas só podem chegar lá as que consentem em que eu as leve. E também não se pode vê-lo com os olhos comuns.

— Mas onde é que eu estive? — No seu próprio coração — respondeu ele, acariciando suavemente o cabelo da menina.

— Mestre Hora, quanto tempo posso ainda ficar aqui? — Até você sentir que deve voltar para junto de seus amigos. — Posso contar a eles o que as estrelas disseram? — Pode, mas você não será capaz disso. Primeiro as pala- vras têm de crescer dentro de você. — Mas eu queria contar a eles — a todos eles — tudo quan- to vi e ouvi! E também cantar o que as vozes cantavam. . . assim, acho que tudo endireitava outra vez! — Se você o quer realmente, Manu, tem de preparar-se para uma longa espera. — Não me importo de esperar. — Você terá de esperar, tal como a semente precisa dormir dentro da terra, talvez durante todo um ciclo solar, para que brote. Tranqüila, Manu respirou fundo e adormeceu.

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UM DIA LÁ MAS UM ANO AQUI Manu acordou e abriu os olhos. Ficou muito admirada ao ver-se nos degraus do velho anfiteatro. Não tinha estado na Man- são de Lugar Nenhum com Mestre Hora, havia apenas alguns ins- tantes? Como voltara tão depressa? Estava escuro e frio. No nascente brilhava o primeiro clarão da madrugada. Lembrava-se perfeitamente de tudo quanto lhe acontecera: a fuga acompanhando a tartaruga através da grande cidade, as ruas com aquela estranha luz e as casas ofuscantes de tão brancas, a Alameda do Nunca, a sala cheia de relógios, os pãe- zinhos com mel e o delicioso chocolate, bem como cada palavra de sua conversa com Mestre Hora. Acima de tudo, porém, recor- dava o que se passara sob a cúpula de ouro. Bastava-lhe fechar os olhos para rever de novo as vozes do Sol, da Lua, das estrelas, tão nitidamente que podia até cantarolar a melodia para acompa- nhá-las. Ao fazer isso, palavras começaram a tomar forma em seu coração: palavras que realmente exprimiam o perfume das flores e a beleza das cores, inexistentes na terra ou no mar. Eram as vozes que, na memória de Manu, falavam as palavras e suce- deu então algo de extraordinário: não só se lembrava de tudo que vira e ouvira mas havia ainda muito, muito mais! Milhares de imagens da floração das horas brotavam na sua mente como se jorrassem de uma fonte mágica, inextinguível, suscitando sempre palavras novas. Bastava ouvir atentamente seu coração para ser capaz de acompanhar as vozes, que cantavam coisas lindas e mis- teriosas. Ao pronunciá-las Manu percebeu que agora entendia seu verdadeiro sentido. Era sem dúvida o que o Senhor do Tempo dissera por inter- médio de Mestre Hora, ao avisá-la de que as palavras tinham de nascer dentro dela mesma! Ou teria sido tudo apenas um sonho? Acontecera realmente tudo aquilo? Manu estava ainda absorta naquelas reflexões quando viu alguma coisa rastejando no meio da arena. Era uma tartaruga, vagarosamente à procura de uma planta saborosa para comer. Apressadamente a menina desceu e ajoelhou-se perto do ani- mal, que mal ergueu a cabeça, continuando a mordiscar aqui e ali. — Bom-dia — disse Manu. — Você é a tartaruga de Mes- tre Hora, não é? — De quem mais? — Não queria interromper seu almoço, mas desejava saber como é que eu voltei para cá. — Por sua vontade — apareceu nas costas do bichinho. — É engraçado — observou Manu. — Não consigo lembrar- me disso. E você, Cassiopeia, por que não ficou com Mestre Hora em vez de voltar para perto de mim?

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— Minha vontade — foi a resposta em letras luminosas, e com isso terminou a conversa, pois a tartaruga estava interessa- da em continuar sua refeição. Sentada nos degraus de pedra, Manu pensava com alegria em Beppo, Guido e nas crianças. A música ressoava continua- mente em seu coração, e começou a cantar cada vez mais alto e com maior segurança, ao sol da manhã. Parecia-lhe agora que os pássaros, os grilos e até as velhas pedras estavam à escuta. Não podia saber que por muito tempo seriam esses seus úni- cos ouvintes. Não sabia que sua ausência fora muito longa e que, enquanto isso, as coisas tinham mudado. Guido foi uma presa relativamente fácil para os homens cin- zentos. Tudo começou um ano atrás, logo depois que Manu desa- pareceu sem deixar nenhuma pista. Um longo artigo a respeito de Guido saíra então no jornal com o título "O último verdadeiro contador de histórias" indicando onde e quando podia ser encon- trado, e dizendo ser ele uma atração que não se podia perder. A notícia atraiu cada vez mais gente ao velho anfiteatro para ouvir Guido que, é claro, não se opunha a tal sucesso. Contava histórias como de costume, aproveitando qualquer coisa que lhe vinha à cabeça; no fim, passava o boné de guia, e a audiência enchia-o de moedas e notas. Em breve foi contratado por uma agência dc viagens, que lhe pagava uma comissão para incluí-lo em seus programas. Os turistas chegavam em grandes ônibus e Guido viu-se obrigado a horários determinados. No começo sen- tiu muito a ausência de Manu, pois de certo modo faltavam agora asas às suas histórias, e ele recusava terminantemente contar duas vezes a mesma, ainda que lhe oferecessem salário dobrado. Depois de alguns meses foi descoberto pelo rádio e pela televisão. Aparecia na TV três vezes por semana, contando his- tórias a milhares de telespectadores e ganhando dinheiro em quantidade. Foi então viver no mais rico e elegante bairro da cidade, onde alugou uma bela e moderna casa, em meio de vasto jardim. Deixou também de chamar-se Guido e voltou ao pomposo nome de Girolamo. Naturalmente, há muito que já não inventava histórias novas, como fazia a princípio: não tinha tempo para isso, e era obrigado a poupar seus recursos, esticando por vezes a mesma idéia para encher cinco histórias diferentes. Certo dia, quando apesar dessas medidas não teve meios de satisfazer à crescente procura que o assediava, fez uma coisa que jamais deveria ter feito: contou uma das histórias que inventara unicamente para Manu. História devorada e logo esquecida pelo público com a rapi- dez habitual. Continuavam porém a exigir dele sempre mais e mais

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fábulas e Guido, atordoado pela velocidade com que os compro- missos se sucediam, foi tornando públicas todas as histórias que inventara só para Manu. . . Mas depois de ter contado a última, sentiu-se de repente completamente vazio — oco. E se capacitou de que jamais teria novas idéias. Começou então a repetir todas as suas velhas histórias, modificando-as ligeiramente e dando-lhes outros nomes. Ninguém parecia perceber isso, e ele era mais re- quisitado que nunca. No entanto, às vezes, à noite, deitado na cama sob o edre- dão de cetim, tinha saudades dos dias de antigamente, quando vivia perto de Manu, do velho Beppo, das crianças, e era real- mente capaz de contar histórias. Tornava-se porém impossível voltar atrás, mesmo porque Manu desaparecera sem deixar vestígio. A princípio Guido fizera vários e sérios esforços para encontrá-la; agora já não tinha mais tempo para isso. Dispunha de três eficientes secretárias, que re- digiam seus contratos, taquigrafavam as histórias que ele ditava, encarregavam-se de toda a publicidade, marcavam sua agenda e nunca havia data em que se pudesse encaixar a busca de Manu. Quase nada ficara do antigo Guido. . . um dia, porém, ele procurou juntar o pouco que ainda restava e decidiu pensar se- riamente na sua vida. Era agora um homem cujas palavras valiam e eram ouvidas por milhões de pessoas. Quem mais indicado para dizer-lhes a verdade? Contaria tudo acerca dos homens cinzentos, dizendo que não se tratava de mais uma história inventada por ele, e pediria até o auxílio de seus ouvintes para ajudá-lo a encontrar Manu. Tomou tal resolução uma noite em que sentiu saudades dos velhos amigos, e pela manhã estava sentado à sua bela escrivani- nha, disposto a fazer um rascunho de seu projeto. Não tinha ainda escrito uma só palavra, quando o telefone tocou. Guido atendeu e ficou duro de pavor. Uma voz estranha, átona, cinzenta, começou a falar-lhe; e enquanto ele ouvia um frio interior o penetrava, parecendo vir da medula dos ossos. — No seu próprio interesse nós o aconselhamos a desistir de seus planos — disse a voz. — Quem fala? — perguntou Guido. — Você sabe perfeitamente quem é. Nós não precisamos de apresentação. É verdade que até agora você não teve o prazer de nos encontrar; mas há muito que é nosso de corpo e alma. Não me diga que você o ignora! Guido apelou para toda sua coragem: — Não, não vou desistir de coisa nenhuma. Não sou mais o insignificante Guido de antigamente. Veremos se vocês podem impedir-me de alguma coisa.

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A voz deu uma risada sem expressão, e subitamente Guido começou a bater os dentes. — Você não é ninguém — continuou a voz. — Nós é que fizemos o que você é hoje: um simples boneco de borracha que enchemos de gás. Mas se nos contrariar, nós o esvaziamos. Você é e sempre foi um romântico sonhador: costumava ser o Príncipe Girolamo disfarçado num pobre-diabo chamado Guido; hoje você é esse pobre-diabo fantasiado de Príncipe Girolamo. Contudo deve ser-nos grato, pois nós fizemos com que seu sonho se rea-

É mentira! — protestou Guido. — Vejam só! — exclamou a voz com outro riso inexpres- sivo. — Você é a última das criaturas que nos pode falar na ver- dade. — Que é que fizeram com Manu? — perguntou Guido num sussurro. — Ora, não canse sua cabeça-de-vento quanto a isso. Você não pode socorrê-la, muito menos se quiser contar histórias a nosso respeito. Se o fizer, o único resultado será ver sua fama desaparecer tão depressa quanto surgiu. Evidentemente, quem de- cide é você! Não acha mais agradável ser rico e famoso? Então deixe-nos de fora, ouviu? Continue contando ao povo o que ele quer ouvir. — Mas como poderei continuar, agora que sei como as coi- sas realmente são? — indagou Guido com esforço. — Deixe-me dar um bom conselho: não se leve tão a sério, rapaz! Não há nada a fazer com você! — É — murmurou Guido. — Se eu pensar assim. . . Nesse instante escutou que desligavam e ele também colo- cou o fone no gancho. Caiu de bruços sobre sua escrivaninha, sacudido por soluços. Dali por diante perdeu toda dignidade. Abandonou o pro- jeto que formulara e continuou como até então, mas sentia-se in- timamente frustrado. No princípio sua imaginação conduzira-o por um atalho florido, que ele seguia alegremente; agora, no entanto, só contava mentiras. Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o público. Sabia-o, e começou a odiar sua profissão, não tinha mais o menor prazer no seu trabalho. Sabia agora a quem devia tudo aquilo: não ganhara nada; perdera tudo. Mas seu veloz automóvel continuava levando-o por toda par- te, de programa em programa; voava nos mais rápidos aviões e onde quer que se encontrasse estava sempre ditando a suas se- cretárias as mesmas velhas histórias com alguma roupagem dife- rente. Todos os jornais comentavam sua extraordinária "fecundi- dade literária".

lizasse.

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Beppo Varredor foi para os homens cinzentos um problema bem mais árduo. Desde que Manu desaparecera, ele sentava-se no anfiteatro sempre que seu trabalho o permitia, e lá ficava à espera. Sua inquietude e aflição aumentavam cada vez mais e por fim, não suportando o peso daquela ansiedade, apesar de todas as justas objeções de Guido, resolveu dar parte à polícia. — Afinal — pensava ele — é preferível que Manu seja le- vada a um orfanato, mesmo com grades nas janelas, do que ficar prisioneira dos homens cinzentos. Se ela já uma vez fugiu do asilo, talvez possa escapar de novo. . . Mas a primeira coisa a fazer é encontrar a menina. Dirigiu-se, pois, ao distrito policial mais próximo, no subúr- bio da cidade. Ficou por algum tempo parado diante da porta, girando o boné entre os dedos e recorrendo a toda sua valentia para entrar. — Que deseja? — perguntou o polícia, ocupado em preen- cher um longo e complicado formulário. Beppo demorou um pouco até poder pronunciar estas pala- vras: — Aconteceu uma coisa terrível. — Ah! — disse o polícia, sempre escrevendo. — De que se trata? — De nossa pequena Manu — respondeu Beppo. — Ê uma criança? — Sim, uma menina. — Ê sua filha? — Não — replicou Beppo, confuso. — Ou por outra, é; mas não sou seu pai. — Então ela é filha de quem? — Ninguém sabe — murmurou o varredor. — Com quem mora essa criança? — Sozinha, no velho anfiteatro; isto é, morava, mas agora não está mais lá. — Um momento — pediu o funcionário. — Se entendi bem, trata-se de uma menina errante que vivia naquelas ruínas, e agora desapareceu. Como é mesmo o seu nome? — Manu — disse Beppo, enquanto o agente tomava notas. — Manu de quê? Dê o nome completo, por favor! — Mas é só Manu! O policial cocou o queixo, contrariado. — Assim não é possível! Quero ajudar o senhor, mas não posso redigir um relatório desse jeito. Primeiro que tudo, diga- me seu próprio nome. — Beppo Varredor. — Não perguntei qual o seu emprego, quero o seu nome todo!

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— Mas é esse mesmo — respondeu Beppo humildemente. O polícia escondeu o rosto entre as mãos e murmurou, de- sesperado: — Deus me dê paciência! Os detalhes particulares ficam para depois. Agora conte-me a história toda do começo ao fim — o que realmente aconteceu, e como aconteceu. — Toda a história? — indagou Beppo, na dúvida. — Tudo de importante. Só Deus sabe como estou ocupado, não tenho um momento a perder! Preciso terminar esta pilha de formulários até a hora do almoço. Recostou-se e fechou os olhos com cara de mártir, enquanto Beppo, no seu modo original e minucioso, narrava o caso todo, desde o imprevisto aparecimento de Manu e seu extraordinário dom de saber ouvir até à cena dos homens cinzentos, reunidos no depósito de lixo, que ele tinha presenciado. — Nessa mesma noite a menina desapareceu — concluiu afinal. O polícia lançou-lhe um demorado olhar de pena e declarou: — Em outras palavras: era uma vez uma menina de cuja existência não temos provas, que foi raptada por uma espécie de espíritos e levada Deus sabe para onde. E mesmo disso não há certeza. Ora, o senhor espera que a polícia vá se incomodar com semelhante história? — Sim, por favor! — disse Beppo. A essa altura o agente debruçou-se por cima da mesa e gri- tou furioso: — Chega! Saia já daqui! Senão mando prender você por desrespeito à autoridade. — Desculpe — murmurou Beppo. — Não tive essa inten- ção, o que eu queria. . . — Fora! — rugiu o agente. Beppo obedeceu e saiu. Nos dias seguintes procurou vários outros distritos, mas a cena era sempre a mesma. Os policiais mandavam-no embora ou diziam-lhe gentilmente que fosse para casa, enquanto outros tentavam consolá-lo com promessas para se livrar dele mais depressa. Certa vez, no entanto, Beppo entrou em contato com um agente mais velho e com menos senso de humor que seus colegas. Ouviu toda a história com fisionomia impassível e declarou fria- mente: — Este homem é maluco. Temos de saber se ele é um pe- rigo para a segurança pública ou não. Prendam-no numa cela. Assim, Beppo passou metade do dia na cadeia, até que dois policiais o levaram de automóvel através da cidade a um grande edifício branco com grades nas janelas. Era um hospital para doentes nervosos. Ali passou por um exame completo. Os médi-

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cos especialistas e as enfermeiras eram gentis com ele e pareciam até muito interessados na sua história, pois tinha de repeti-la sem- pre. Não descobriam doença alguma; contudo não o deixavam ir embora. Deram-lhe uma cama num grande dormitório, onde havia bom número de doentes. Uma noite acordou e na débil luz notur- na percebeu alguém de pé a seu lado. Primeiro distinguiu ape- nas a ponta de um charuto aceso; depois reconheceu o chapéu- coco e a pasta cinzenta que um vulto escuro trazia. Quando com- preendeu tratar-se de um dos homens cinzentos, sentiu frio até a medula dos ossos e já ia gritar por socorro. — Quieto! — ordenou uma voz cinzenta, saída da escuridão. — Fui autorizado a lhe fazer uma proposta. Escute e não fale até que eu lhe diga. Você já teve provas da extensão do nosso poder. Por acaso, a suposição de que sua amiguinha Manu é nossa prisioneira está certíssima. No entanto, pode perder a espe- rança de encontrá-la: isso jamais acontecerá. E seus esforços para libertar a menina não a ajudam em nada: pelo contrário, ela terá de pagar por todas as tentativas que você fizer. Daqui por diante, tenha cuidado com seus atos e palavras. O homem cinzento soprou uma série de anéis de fumaça e continuou: — A proposta que lhe fazemos é a seguinte: Manu voltará, desde que você nunca mais fale em nós e nas nossas atividades. Além disso, terá de nos dar cem mil horas de tempo poupado. Não se preocupe com o modo pelo qual entraremos de posse des- se tempo — isso é nossa parte. A você, cabe poupar o tempo. Se estiver de acordo, faremos com que dentro de poucos dias você seja mandado para casa; se não, ficará aqui para sempre e Manu continuará conosco. Beppo engoliu em seco algumas vezes e por fim resmungou: — Concordo! — Ainda bem que você é sensato! — disse o homem cin- zento. — Mas não se esqueça: silêncio absoluto e cem mil ho- ras! Logo que as tivermos lhe mandaremos Manu de volta. Co- mece pois quanto antes seu trabalho. Com isso, o homem cinzento saiu, deixando após si o toco do charuto que fumava, luzindo fracamente no escuro como um fogo-fátuo. Daí por diante Beppo nunca mais contou a sua história. Quando lhe perguntavam porque tinha inventado tudo aquilo, en- colhia tristemente os ombros, em silêncio. Depois de alguns dias mandaram-no para casa. Ele, porém, não foi para casa. Dirigiu-se para o grande edi- fício onde, com seus companheiros, costumava apanhar a vassou- ra e o carrinho de mão. Pegou a vassoura, foi para a grande ci-

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dade e começou a varrer. Agora, não mais no seu antigo ritmo, mas premido por terrível pressa, sem a menor satisfação, aflito somente por poupar tempo. Sentia-se desgostoso e, se não fosse por Manu, teria preferido morrer de fome a ser infiel a si mesmo. Era preciso no entanto resgatar a menina e o único jeito que co- nhecia de poupar tempo era aquele. Varria dia e noite sem parar. Quando se sentia por demais exausto sentava-se no banco de um parque ou mesmo no meio-fio e tirava um cochilo. De vez em quando, sempre varrendo, comia qualquer coisa. À sua cabana junto ao anfiteatro nunca mais voltou. Veio o outono, depois o inverno; em seguida a primavera e o verão, mas Beppo quase não percebia mais as estações, var- rendo, varrendo, a fim de poupar as cem mil horas exigidas. A tarefa mais difícil para os homens cinzentos era pôr nos seus moldes as crianças que haviam sido amigas de Manu. Mes- mo depois do desaparecimento da menina elas continuavam a se reunir no anfiteatro sempre que podiam, e inventavam novas brin- cadeiras. Algumas caixas e cestos vazios eram o bastante para embarcarem em longas e arriscadas viagens ao redor do mundo ou construírem castelos e altas montanhas. Além disso, faziam planos para o futuro, contando histórias umas às outras, como se Manu ali estivesse. Nunca duvidaram de que ela voltaria; não falavam nisso, mas estavam unidas numa silenciosa certeza; Manu lhes pertencia e era o secreto laço de união entre todas. Os ho- mens cinzentos foram impotentes contra essa força, e resolveram usar de outro método e contornar o caso. Dirigiram-se então aos adultos, encarregados de cuidar da infância. Não a todos, é claro, mas àqueles que se mostravam um instrumento dócil a seus planos. . . e esses, infelizmente, não eram poucos. Serviram-se das próprias armas das crianças, usando-as contra elas; algumas pessoas recordaram-se daquela passeata in- fantil com cartazes e faixas, manifestando agora sua desaprovação: — Não é possível que as crianças continuem entregues a si mesmas desse modo! Não se pode culpar os pais, pois o ritmo da vida moderna não lhes deixa tempo para cuidar dos filhos. O Es- tado é que deve fazer alguma coisa! — Está tudo errado! — diziam outras. — Crianças sem su- pervisão corrompem-se e tornam-se criminosas. Devem ser reco- lhidas pelas autoridades públicas em estabelecimentos adequados, a fim de que sejam mais tarde membros úteis e eficientes da so- ciedade. — Elas são a matéria-prima do futuro — argumentavam ainda. — Será a época da propulsão a jato e dos cérebros eletrô- nicos; especialistas e técnicos serão necessários para servir tais máquinas e em vez de prepararmos nossas crianças para o mundo

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de amanhã, deixamos que desperdicem anos de seu precioso tem- po em tolas brincadeiras. Instalaram-se então os chamados 'Depósitos de Crianças' em todos os bairros: grandes casas, às quais levavam crianças que não tinham quem tomasse conta delas. Era rigorosamente proibi- do aos pequenos brincar na rua, nos parques ou em qualquer outra parte. Os amigos de Manu não escaparam desse regulamento. Pou- co a pouco, tornaram-se miniaturas dos Poupadores-de-Tempo: mal-humorados, aborrecidos, hostis, e mesmo quando deixados a si próprios, já não sabiam brincar. A única coisa que lhes restava era fazer barulho. Não um barulho alegre, sadio, mas uma algazarra frenética, agressiva. Os homens cinzentos, porém, nunca se aproximaram das crianças. Bastou-lhes tecer em volta da grande cidade uma forte e espessa rede, de forma que nem a mais engenhosa criança pu- desse escapar por entre suas malhas. O plano obteve completo su- cesso. Tudo estava pronto para quando Manu voltasse: o velho anfiteatro fora inteiramente esquecido e abandonado.

Manu continuava sentada nos degraus de pedra, esperando por seus amigos. Esperou o dia todo, mas não apareceu ninguém! O sol baixava no horizonte. As sombras alongavam-se e o frio vinha chegando. Afinal, a menina levantou-se. Sentia fome, o que jamais acontecera antes, pois sempre vinha alguém trazer-lhe alguma coisa para comer. Hoje, até Guido e Beppo pareciam ter-se es- quecido dela. Tinha sido sem dúvida um pequeno descuido, pen- sava Manu, e decerto amanhã eles viriam. Desceu para junto de Cassiopeia. — Desculpe, por favor — disse. — Sinto ter acordado você, mas queria saber por que nenhum de meus amigos veio me ver hoje? Na carapaça da tartaruga apareceu a resposta: Não ficou ne- nhum. Manu leu as palavras sem compreender o sentido. — Bem — disse então — certamente virão amanhã. — Nunca mais — foi a resposta de Cassiopeia. — Que quer dizer isso? O que aconteceu com meus amigos? — Foram todos embora. Manu sacudiu a cabeça e disse baixinho: — Não, não pode ser verdade. Você deve estar enganada, Cassiopeia. Ontem eles estavam todos aqui para o comício que falhou. — Você dormiu muito tempo.

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Manu lembrou-se então do que lhe dissera Mestre Hora: ela teria de dormir durante todo um ciclo solar, como a semente dor- me na terra. — Quanto tempo eu dormi? '— Um ano e um dia. Demorou a assimilar a resposta. Por fim, gaguejou: — Mas... mas Beppo e Guido, tenho certeza de que estão à minha espera! — Não ficou nenhum — repetiu a tartaruga. Com os lábios trêmulos, Manu sussurrou: — Como é possível? Não pode ter desaparecido tudo, tudo quanto. . . Uma única palavra brilhou lentamente na carapaça do ani- mal: Passado. Pela primeira vez a menina sentiu a força dessa palavra, e o coração pesado. — Mas. . . — murmurou, desamparada — eu ainda estou aqui. . . Teve vontade de chorar; as lágrimas, porém, não vieram. Após alguns instantes percebeu que a tartaruga se esfregava nos seus pés descalços, e na carapaça leu este consolo: — Eu estou com você. — Sim — respondeu, tentando gentilmente um sorriso. — Você está comigo, Cassiopeia, e fico muito contente. Agora, va- mos para a cama. Apanhou a tartaruga, e através do buraco de entrada na pa- rede carregou-a para seu quarto. À luz do sol poente, Manu veri- ficou que ali tudo estava tal como tinha deixado (Beppo arruma- ra a desordem feita pelos homens cinzentos) só que teias de ara- nha pendiam de todo lado e grossa camada de poeira cobria o chão e os móveis. Sobre a mesa feita de caixotes, estava uma carta, bem em evidência, apoiada numa lata, tudo envolvido em teias de aranha. Para Manu — dizia o envelope. Abriu-a e leu o seguinte bilhete: Querida Manu, eu me mudei. Se você voltar, me procure logo. Estou muito preocupado por sua causa, e sentindo muita falta de você. Espero que nada de ruim tenha acontecido. Se você tiver fome, vá ter com Nino. Ele me mandará a conta e eu paga- rei tudo; coma, pois, à vontade, sim? Nino contará o resto a você. Continue me querendo bem; eu gosto sempre muito de você. Seu amigo — Guido. Apesar de Guido ter escrito em letra muito clara e legível, Manu demorou a soletrar a carta. Quando terminou, desaparece- ra o último clarão do crepúsculo. Sentia-se, porém, confortada.

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Enquanto lia a carta, Manu via nitidamente Guido na sua lembrança; nunca lhe ocorreu no entanto que o bilhete ali estava à sua espera há quase um ano. Encostou o rosto na folha de papel e não sentiu mais frio.

14. REFEIÇÕES DEMAIS, INFORMAÇÕES DE MENOS No dia seguinte Manu tomou a tartaruga debaixo do braço e saiu a caminho do restaurante de Nino. — Você vai ver, Cassiopeia — dizia ela — como agora as coisas vão mudar! Nino sabe onde estão Guido e Beppo e pode- remos também chamar as crianças. Hoje de noite poderemos até dar uma festinha: falarei a eles das flores, da música, de Mestre Hora, de tudo. Estou louca para ver meus amigos! Mas antes de mais nada, o que desejo mesmo é um bom almoço, pois a fome é muita, sabe? A menina tagarelava assim alegremente, apalpando a carta de Guido, no bolso do casaco. A tartaruga olhava-a apenas com seus velhos e sábios olhos, sem nada replicar. Manu começou a cantarolar enquanto caminhava e logo pôs- se a cantar: a melodia e as palavras das vozes ecoavam em sua memória tão claramente quanto na véspera. Diante do restaurante de Nino pensou ter-se enganado. Em vez da velha casa com a pintura descascada via um longo caixo- te de concreto com enormes janelas de vidro em todo o compri- mento. A rua em frente fora asfaltada e estava cheia de carros. À entrada do novo estabelecimento um anúncio luminoso dizia:

LANCHONETE RÁPIDA DE NINO

Manu entrou e foi aos poucos distinguindo o que havia no 97 interior, pois o local estava apinhado de gente. Ao longo da pa-

rede envidraçada das janelas estavam mesinhas altas, que mais pareciam cogumelos. Não havia cadeiras. Do lado oposto, via-se extensa barreira de brilhantes varas de metal formando como que um gradil, por trás do qual — a intervalos regulares — destaca- vam-se as vitrinas contendo sanduíches de queijo, presunto, sal- sichas variadas, pudins, bolos e toda espécie de comedorias, in- teiramente desconhecidas para a pequena. Manu era empurrada de um lado para outro, ou para frente, pois todos se movimentavam, carregando bandejas com pratos, talheres, garrafas, à procura de uma mesinha onde comer. Uns

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comiam apressadamente, enquanto outros esperavam para tomar o lugar. Vez por outra, trocavam palavras agressivas. De fato, todos pareciam descontentes, insatisfeitos. Entre o gradil e as vitrinas de comida, imensa fila movimen- tava-se vagarosamente, cada qual se servindo. Manu estava per- plexa: então cada um tirava o que queria, sem ter de pagar nada? Talvez fosse tudo de graça? Isso explicaria aquela multidão! Afinal, depois de algum tempo, conseguiu enxergar Nino! Escondido por trás daquela gente toda, achava-se ao fim do gra- dil de metal, diante de uma máquina registradora, e ninguém po- dia sair sem passar por ele: era o homem a quem se pagava. — Nino! — gritou Manu, acenando com a carta de Guido, e tentando esgueirar-se por entre o povo. Mas Nino não podia vê-la nem ouvi-la. A máquina registra- dora na qual batia incessantemente fazia muito barulho e exigia toda a sua atenção para receber dinheiro e dar troco. Manu tomou coragem, trepou no gradil e conseguiu furar a fila, aproximando-se do caixa, o que suscitou reclamação dos fre- gueses. Ao ouvir aquele burburinho. Nino levantou os olhos e vendo a menina teve uma alegre exclamação: — Manu! Que surpresa! Enfim você voltou! Sua fisionomia aborrecida iluminou-se, mas teve de atender à clientela indignada: — Diga a essa garota malcriada que fique na fila como to- dos nós! Desaforo! Isso não se faz! O caixa levantou as mãos, pedindo calma, e dirigiu-se à me- nina, dizendo-lhe: — Guido pagará tudo, você come o que quiser, mas por fa- vor agora entre na fila e espere sua vez. Empurrada para trás, Manu teve de fazer como os outros: apanhou uma bandeja e tendo de segurá-la com as duas mãos, sobre ela colocou Cassiopeia, para escândalo dos que a cercavam. Passou em seguida pelas vitrinas, escolheu o que queria, e vendo-se afinal de no/o diante de Nino, perguntou-lhe acerca de Guido. — Guido é hoje famoso — respondeu o dono da lanchonete. — Aparece sempre na TV e fala também no rádio. Nós nos orgu- lhamos dele, pois é um dos nossos! — Mas por que não procura mais os amigos? — indagou Manu. — Não tem mais tempo para isso, e ninguém mais vai ao velho anfiteatro — explicou Nino já meio nervoso com os fre- gueses que reclamavam: — A fila não pode parar! Que conversa mole é essa aí na frente? Toca pra diante! — Onde é que Guido mora? — insistiu a menina.

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— Dizem que ele tem uma bela casa no meio de um par- que, no bairro de Green Hill. Mas agora, Manu, por favor vá andando! Embora desejasse ficar ali e saber mais coisas, a pequena foi levada pela onda de gente até uma mesinha, onde colocou a ban- deja para comer. A mesa era muito alta e ela mal enxergava o prato; mesmo assim, faminta como estava, comeu até o último bocado. Ficou farta, mas precisava ainda falar com Nino, e o único jeito era entrar de novo na fila, apanhar outra bandeja e escolher outros pratos. Quando finalmente chegou ao caixa, pediu notícias de Beppo. Nino contou-lhe que Beppo ficara muito inquieto por sua causa e que fora à polícia, pedindo auxílio para procurá-la. — Vivia falando em homens cinzentos, ou coisa parecida, e foi então internado num hospital — disse Nino. — Depois não soube mais nada dele. Os clientes se impacientavam com a conversa que fazia parar a fila. E novamente Nino pediu à menina que fosse an- dando. Manu teve que acompanhar o movimento, e comer outro al- moço, que desta vez não teve o sabor do primeiro. . . não lhe ocorria, porém, a possibilidade de deixar resto no prato. Queria ainda descobrir o que acontecera com as crianças que costumavam visitá-la, e a única maneira de se aproximar de Nino para obter a informação era outra fila, outra bandeja, outro al- moço, para evitar que o pessoal se zangasse com ela. Quando chegou diante do caixa, este começou a suar ao vê- la outra vez, mas Manu não desistiu: — Onde estão as crianças que vinham brincar no anfiteatro? — Agora tudo mudou. Os garotos que não têm quem cuide deles são levados para um Depósito de Crianças, onde estão pro- tegidos e aprendem alguma coisa. — Meus amigos? — perguntou a menina, surpresa. — Mas é isso que eles queriam? — Crianças não podem resolver sobre sua vida e não têm de dar opinião. Assim pelo menos não ficam pelas ruas, isso é o principal — respondeu Nino, impaciente, batendo ao acaso na máquina registradora. E como os fregueses já começassem a re- clamar da conversa, acrescentou: — Manu, sempre que quiser, venha aqui para comer, mas seja boazinha e veja que não posso ficar de prosa com você. Aliás, você também devia ir para um Depósito de Crianças e não ficar vagando sozinha por aí! E é o que vai acontecer, se te pegarem! A menina nada respondeu. Empurrada pela fila, viu-se dian- te de uma mesinha, sobre a qual colocou a bandeja e teve de co-

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mer o terceiro almoço, que tinha gosto de papelão. Ao terminá- lo, sentiu-se enjoada. Carregou Cassiopeia e foi saindo sem olhar para trás. Che- gando ao velho anfiteatro, disse à tartaruga: — Eu não podia falar com Nino nem das flores, nem da música. . . Mais tarde, afirmou com segurança: — Amanhã, vamos procurar Guido e tenho certeza de que você vai gostar muito dele, Cassiopeia! Nas costas da tartaruga apareceu apenas um grande ponto de interrogação.

15. ACHADO E NOVAMENTE PERDIDO

Na outra manhã, Manu levantou cedo e saiu com a tartaru- ga debaixo do braço, para procurar a casa de Guido. Até Green Hill era uma caminhada longa e Manu, embora habituada a andar descalça, sentiu os pés doendo quando lá che- gou. Sentou-se no meio-fio para descansar um pouco. Era' real- mente um bairro elegante: ruas largas, muito limpas, quase va- zias. Os verdes e macios gramados que se estendiam à sua frente ofereciam tentador convite para virar cambalhotas, mas não se via ninguém passeando ou brincando na relva. Os proprietários talvez nunca tivessem tempo para isso. — Queria muito saber se vou descobrir onde mora Guido — disse a menina a Cassiopeia. — Vai saber daqui a um instante — foi a resposta na cara- paça da tartaruga. Nisso, ouviu atrás de si uma voz que gritava: — Que está fazendo aqui, garota maltrapilha? Voltou-se e viu um homem vestindo um colete de listras, que lhe pareceu estranho. Ignorava que empregados de gente rica usa- vam uniforme assim. Manu levantou-se e disse: — Bom-dia! Estou procurando a casa de Guido. Nino me disse que ele mora por aqui. O homem de colete listrado olhou com certa suspeita para a menina. Por trás dele, o portão ficara entreaberto e Manu pôde ver um casal de galgos saltando pelo gramado, onde jorrava um

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repuxo d'agua. Sob uma árvore toda florida descansavam dois pavões. — Oh! que lindos pássaros! — exclamou a pequena. Já se aprontava para entrar e vê-los mais de perto, quando o homem a agarrou pela gola do casaco: — Fique aí! Que audácia, menina! — E largando Manu apressou-se em limpar as mãos no lenço, como se tivesse tocado em algo repugnante. — Estou à procura de Guido Guia, ele está à minha espera. O senhor não conhece esse nome? — Por aqui não tem guia nenhum — replicou o homem, voltando-lhe as costas. Entrou no jardim e já ia fechando o por- tão quando lhe veio subitamente uma idéia: — Não pode ser do célebre narrador de histórias, Girolamo, que você está falando? — É ele mesmo! É esse seu verdadeiro nome — exclamou Manu radiante. — O senhor sabe onde ele mora? — Mas ele está mesmo à sua espera? — indagou o empre- gado. — Claro que está! Guido é meu amigo e paga tudo quanto eu como na lanchonete de Nino. O homem do colete listrado ergueu as sobrancelhas e sa- cudiu os ombros, resmungando: — Esses artistas! Quanta maluquice têm na cabeça! Enfim, se você acha mesmo que ele dá importância à sua visita, a casa é a última, bem no fim da rua. Dizendo isso, bateu violentamente as grades. A última casa na extremidade da rua era cercada por um alto muro e o portão da entrada feito de sólido metal, todo fe- chado, não permitia espiar lá dentro. Não havia placa nem cam- painha. — Será realmente esta a casa de Guido? — perguntou Ma- nu. — Não parece. . . — Mas é — foi a resposta da tartaruga. — Ainda que Guido esteja em casa, como vai saber que estou aqui fora esperando? — Ele vem logo — brilhou nas costas do bichinho. — Você tem certeza? Mas em lugar da esperada resposta, a palavra que surgiu na carapaça foi esta: — Adeus. Manu deu um pulo. — Cassiopeia, que quer dizer isso? Aonde vai? — Estarei à sua procura — foi a réplica ainda mais miste- riosa da tartaruga. Exatamente nesse momento escancararam as grades e um belo carro saiu a toda velocidade. Manu teve tempo de saltar

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para o lado a fim de não ser atropelada, mas caiu. O automóvel passou voando e logo adiante parou com uma freada tão forte que os pneus rangeram. A porta abriu-se e Guido saltou, dirigindo-se rapidamente, de braços estendidos, ao encon- tro da menina. Manu, minha Manuelinha! É você mesma? A pequena já estava de pé e correu para Guido, que a car- regou nos braços, dando-lhe mil beijos, e dançando com ela pela rua. Você não se machucou? — perguntou, quase sem fôlego. Em vez de esperar a resposta, falava, muito excitado: — Foi pena eu ter assustado você, mas é que estou numa pressa louca. Estou de novo atrasado! Onde é que você ficou escondida? Vai me contar tudo direitinho. Já tinha desistido de sua volta! Recebeu minha carta? Ainda estava lá? Bem! E tem ido comer na lancho- nete de Nino? Oh! Manu, temos tanto que conversar! Tanta coisa aconteceu durante esse tempo! E o velho Beppo onde anda? Há séculos que não o vejo. Mas como é que você está? Agora é sua vez de falar. E todas as crianças? Ah! Manu, penso tanto naquele tempo, quando estávamos todos juntos e eu costumava contar his- tórias para você. Aquilo é que era bom tempo! Hoje é tudo dife- rente, completamente diferente. Manu tentara várias vezes responder às perguntas do ami- go, mas como ele não parava de falar, ficou apenas ouvindo e olhando para Guido. Este mudara bastante: estava muito bem vestido e perfumado, mas de certo modo parecia inteiramente es- tranho ao antigo Guido. Enquanto isso, quatro pessoas tinham descido do carro e juntaram-se a eles: um motorista com uniforme de couro, e três moças de fisionomias duras e maquiagem carregada. — A menina se machucou? — perguntou uma delas, em tom mais de censura que de cuidado. — Não, nada! — afirmou Guido. — Foi só o susto.

— Que tinha ela de estar pendurada no portão? — disse a segunda. — Mas é Manu! — explicou Guido, rindo. — Ê minha que- rida amiguinha Manu! — Ah! Então essa garota existe mesmo? — indagou com surpresa a terceira moça. — Sempre pensei que fosse invenção sua. Temos de dar logo a notícia para a imprensa: — reunido afinal com a princesa encantada — ou qualquer coisa assim. O público vai vibrar! Será o furo do ano! — Não — declarou Guido — prefiro que não façam isso. — Mas você vai gostar de sair nos jornais, não é? — disse a moça a Manu, com um sorriso.

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— Não se metam com essa criança — interveio Guido zan- gado. — Se não andarmos depressa perderemos o avião — avi- sou uma das secretárias, consultando seu relógio. — E o senhor sabe o que isso significa! — Céus! — gritou Guido, exasperado. — Não posso nem trocar algumas palavras com esta menina, depois de tão longa separação? Mas você está vendo por si mesma, Manu, que estou na mão de feitores de escravos, que nunca me deixam só — nunca! Então vamos embora! Manu vai conosco até o aeroporto; conversaremos no caminho e depois meu motorista a levará de volta para casa, OK? Não esperou que Manu respondesse; agarrou-a pela mão e puxou-a até o carro. As três secretárias sentaram-se no banco de trás; Guido ia na frente, ao lado do chofer, levando a pequena no colo. — Bem, Manu, agora você vai contar tudo que te aconte- ceu, direitinho, do princípio ao fim. Como é que você desapare- ceu tão de repente? Quando Manu se dispunha a falar de Mestre Hora e das maravilhosas Flores, uma das moças debruçou-se para a frente: — Com licença, tenho uma idéia maravilhosa: vamos apre- sentar a menina à Companhia de Filmes para o Público. Ela será a estrela perfeita para a pequena de sua história de aventuras, que vai ser filmada agora. Imagine o sucesso: o papel de Manu representado pela própria Manu! — Não ouviu o que eu disse? — respondeu Guido violen- tamente. — Não quero esta criança metida nisso, de jeito ne- nhum! — E voltando-se para a pequena: — Desculpe, Manu, você talvez não compreenda, mas não posso deixar esse bando de hienas meter os dentes em você também! As três secretárias ficaram ofendidas. Guido gemeu, enxu- gou a testa e tirou do bolso uma caixinha de prata, da qual to- mou uma pílula, que engoliu. Durante alguns momentos reinou silêncio. Depois, Guido voltou-se para o banco de trás: — Não me levem a mal, não quis ofendê-las mas meus ner- vos estão no fim. — Não se preocupe, já estamos acostumadas com suas ex- plosões — respondeu uma das moças. — Dentro de cinco mi- nutos estaremos no aeroporto; antes, não seria possível fazermos uma rápida entrevista com Manu? — Chega! — berrou Guido com a paciência esgotada. — Serei eu o único a falar com Manu. E ainda mais: vou conversar com ela em particular, o que significa um colosso para mim. Quantas vezes tenho de repetir isso?

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As secretárias calaram-se. Guido, exausto, esfregava os olhos, e com um riso amargo confessou à menina: — Veja, Manu, onde eu cheguei! E ainda que quisesse não podia mais voltar atrás. A coisa mais perigosa do mundo é a realização de todos os sonhos da gente. . . pelo menos, foi o que aconteceu comigo. Não restou mais nada para eu sonhar! Estou ■nortalmente farto disso tudo! Olhou melancolicamente pela janela do carro e concluiu: — A única coisa que eu devia fazer agora seria — calar a boca, não contar mais histórias, talvez até o fim de minha vida. Ou pelo menos até que todos me tivessem esquecido e eu vol- tasse a ser um pobre-diabo desconhecido. Mas ser pobre e ape- sar disso não ser capaz de sonhar. . . isso seria o inferno, Manu. Por isso é que fico onde estou; aqui é também um inferno, mas pelo menos um inferno confortável. O que adianta no entanto dizer tais coisas? Você não pode entender isso! Manu olhava apenas para o amigo; compreendia que ele estava terrivelmente doente, e suspeitava que os homens cinzen- tos tivessem sua parte no caso. Mas como poderia ajudar Guido, se ele não queria auxílio? Nesse instante o carro parou no aeroporto. Todos desce- ram e as recepcionistas precipitaram-se para o artista da TV, pedindo que se apressasse pois o avião já ia levantar vôo. Re- pórteres ainda tiraram algumas fotos; não havia porém tempo para entrevistas. Guido curvou-se para Manu, contemplou-a longamente e com lágrimas nos olhos falou-lhe tão baixinho que ninguém mais ouviu: — Escute, Manu, fique comigo! Levarei você nesta viagem e em todas que fizer, você ficará morando na minha bela casa, vestindo roupas de seda e cetim como uma princesinha de verda- de. Não terá nada a fazer senão ficar junto de mim e ouvir-me. Talvez então eu volte a ser capaz de inventar de novo histórias como aquelas que eu te contava, lembra? Basta você dizer — sim — Manu. e tudo dará certo outra vez! Ajude-me! A menina desejava socorrer o amigo e sentia dor no cora- ção de tanta pena dele, mas sabia que não era essa a maneira certa de auxiliá-lo. Primeiro ele teria" de voltar a ser o verda- deiro Guido, e ela não o ajudaria em nada se deixasse de ser a verdadeira Manu. Seus olhos encheram-se também de lágrimas, mas sacudiu a cabeça negativamente. Guido compreendeu. Despediu-se com ar triste e foi ime- diatamente arrastado pelas secretárias. De longe, acenou-lhe ain-

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da, e Manu respondeu a seu adeus. Depois, desapareceu no avião. Durante todo seu encontro com Guido Manu não consegui- ra dizer uma só palavra, e tinha tanto que contar a ele! Parecia- lhe agora que justamente ao encontrá-lo, é que o tinha verdadei- ramente perdido. Dirigiu-se devagar para a saída do aeroporto, e de repente um choque a abalou: perdera também Cassiopeia!

1 6 . POBREZA EM MEIO ÀFARTURA

— Para onde? — perguntou o motorista a Manu, quando esta se sentou a seu lado, no elegante carro de Guido. A menina ficou olhando ao longe com ar embaraçado. Que poderia dizer? Aonde desejava de fato ir? Tinha de procurar Cassiopeia. . . mas onde? Quando, em que lugar a perdera? Es- tava certa de que ela não estivera presente durante o encontro com Guido. Então talvez fosse bom procurar diante da casa dele? Lembrou-se das palavras que lera na carapaça da tartaruga: Adeus e Estarei à sua procura. É claro que Cassiopeia sabia com ante- cedência que ficaria perdida e por isso sairia à procura de Manu Mas onde é que Manu devia procurá-la? — Então? Que é que resolve? — disse o chofer, tamborilan- do no volante. — Tenho mais o que fazer do que levar você a passear. — Para a casa de Guido, faz favor — pediu Manu. O motorista olhou surpreendido:

— Pensei que devia levar você pra casa. . . ou agora você vai ficar morando com a gente? — Não — respondeu a menina — mas perdi uma coisa na rua e preciso encontrar o que perdi. Isso convinha bem ao chofer, pois de qualquer modo tinha de regressar à mansão de Guido. Quando lá chegaram, Manu saltou logo do carro' e começou sua busca por toda parte, cha- mando baixinho: "Cassiopeia! Cassiopeia!" — Afinal, que é que você está procurando? — perguntou o motorista, da janela do carro. — Ê a tartaruga de Mestre Hora. Ela chama-se Cassiopeia, sabe o futuro com meia hora de antecedência, e faz aparecer le- tras luminosas na sua carapaça. Preciso encontrar a tartaruga, o senhor não quer me ajudar?

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— Não tenho tempo para brincadeiras idiotas! — resmun- gou o chofer, entrando com o carro pelo portão. Manu continuou a procurar sozinha, olhando por todos os lados e cantos mas em vão. Quando por fim chegou ao velho anfiteatro, era tarde da noite. Apesar da escuridão, investigou to- dos os escaninhos, sem resultado. Deitou-se na cama e, pela pri- meira vez, achou-se inteiramente só. Passou os dias seguintes vagando pela cidade, na esperança de encontrar Beppo Varredor. Já que ninguém sabia indicar seu paradeiro, confiava na sorte para dar com ele por simples acaso. Oh! como Cassiopeia fazia falta! A tartaruga lhe diria com se- gurança: espere ou vá adiante. Sozinha, porém, tanto receava perder Beppo esperando quanto caminhando. . . e não sabia o que fazer. Procurava também encontrar seus pequenos amigos, mas não via crianças em parte alguma, e lembrou-se do que Nino lhe contara sobre os Depósitos de Crianças. O fato da própria Manu nunca ter sido levada para lá, pela polícia ou por algum adulto, devia-se à constante vigilância dos hoiríehA Cinzentos, aos quais isso não convinha. Uma vez por dia, costumava comer alguma coisa na lan- chonete de Nino, sempre muito ocupado, como da primeira vez, e com quem não conseguia conversar. As semanas transformaram-se em meses, e Manu continua- va só. Certa tarde, ao crepúsculo, encostara-se à balaustrada de uma ponte, quando viu à distância, em outra ponte, um vulto magro e curvado, varrendo, varrendo sem parar, que lhe pa- receu ser Beppo. Gritou por ele, acenou com as mãos e pôs-se a correr para encontrá-lo; mas quando chegou ao local o homem tinha desaparecido. — Não devia ser Beppo — pensou a menina. — Não era desse jeito que ele varria! Às vezes ficava em casa, sem sair do anfiteatro, na esperan- ça de que Beppo pudesse passar por lá para saber se ela tinha voltado. Uma coisa, no entanto, nunca a abandonou — a lembrança viva, sempre presente, das flores, da mús<ca, de tudo quanto acontecera com Mestre Hora. Bastava-lhe fechar os olhos e es- cutar seu coração para rever as brilhantes, magníficas cores, e ouvir a música das esferas. Tão facilmente quanto no primeiro dia, era capaz de dizer as palavras e entoar as melodias, embo- ra estas variassem constantemente e nunca se repetissem. Passava horas e horas recitando e cantando para si própria: apenas as árvores, os pássaros, as velhas pedras a escutavam. De vez em quando ia até à casa de Guido e esperava lon- gamente diante da entrada, na esperança de vê-lo de novo. Es-

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tava resolvida a concordar com tudo: a morar com Guido, ouvi- lo e conversar com ele, quer as coisas voltassem a ser como an- tigamente, quer não. Mas as grades nunca mais se abriram. Apenas alguns meses decorreram dessa forma; a Manu, po- rém, parecia ser esse o tempo mais longo de sua vida, pois o tempo verdadeiro não se calcula pelos relógios ou calendários. Nem é possível explicar-se a solidão que experimentava. A única coisa que se pode dizer é que — se encontrasse o caminho para ir ter com Mestre Hora, e ela o tentara muitas vezes — pediria a ele que lhe retirasse o tempo, ou que lhe permitisse ficar para sempre na Mansão de Lugar Nenhum. Mas sem Cassiopeia não descobria a direção para lá, e Cassiopeia estava mesmo desapa- recida. Certo dia, no entanto, aconteceu algo de inesperado: Manu encontrou-se de repente com três crianças que costumavam brin- car no anfiteatro. Eram Paulo, Franco e Maria, a menina que levava sempre consigo a irmãzinha Dedé. Todos tinham mudado muito. Vestiam uma espécie de uniforme cinzento e seus rostos tinham uma expressão estranhamente vazia e inexpressiva. Mesmo diante da alegria com que Manu lhes falou, mal sorriram. — Há tanto tempo que estou à procura de vocês! — excla- mou ela, quase' sem fôlego. — Querem vir agora ao anfiteatro? Os três trocaram olhares desconfiados e sacudiram a cabeça negativamente. — Bem, então irão amanhã? ou depois de amanhã? — in- sistiu Manu. De novo, os três sacudiram a cabeça. — Não temos mais licença de gastar tempo inutilmente — respondeu Paulo. — Mas não era inutilmente! — disse Manu. — Bem, era divertido, mas não é isso o que importa — acrescentou Maria. As três crianças puseram-se a andar depressa e Manu cor- reu atrás delas: — Aonde é que vocês vão? — À aula de brincar — respondeu Franco. — Lá apren- demos a brincar. — Brincar de quê? — indagou ainda Manu. — Vamos brincar de fichas — disse Paulo. — Ê muito -útil, mas a gente tem de se concentrar terrivelmente. — Como é o jogo? — Faz de conta que cada um de nós é uma ficha, na qual estão escritos vários dados diferentes como nosso peso, altura, idade e assim por diante; nunca, porém, correspondendo ao que somos realmente, pois seria muito fácil. Às vezes, também, dão-

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nos apenas um longo número, como por exemplo: MUX/763/y. Somos então embaralhados e postos num arquivo; aí um de nós deve tirar determinada ficha e fazer perguntas de modo a elimi- nar todas as outras e só ficar a ficha exata. Quem o conseguir mais depressa, ganha. — E isso é divertido? — perguntou Manu duvidando. — Será útil para nosso futuro — explicou Paulo. Enquanto isso tinham chegado aos portões de uma grande casa cinzenta, à cuja entrada estava escrito: Depósito de Crianças. — Tenho tanta coisa pra contar a vocês — disse Manu. — Talvez a gente se encontre um outro dia — respondeu Maria tristemente. De todo lado, à volta deles, vinham crianças que entravam, firmes, pelas grades abertas. Em todas, a expressão da fisiono- mia era idêntica à dos três amigos de Manu. — Era muito mais alegre com você! — disse Franco de re- pente. — Tínhamos sempre um mundo de idéias novas para in- ventar nossas brincadeiras; mas dizem que assim não aprende- mos nada. — Vocês não podem fugir? — perguntou Manu. Os três sacudiram a cabeça, olhando em torno para ver se ninguém tinha escutado. — No começo experimentei algumas vezes — murmurou Franco. — Mas não adianta, sempre pegam a gente de volta. — Não diga isso — aconselhou Maria. — Afinal agora es- tão cuidando de nós. Ficaram todos silenciosos, o olhar vago e sombrio. Por fim, Manu tomou coragem e pediu: — Não podem levar-me com vocês? Estou sempre tão so- zinha! Aconteceu então uma coisa muito estranha: antes que uma das crianças pudesse responder, foram todas tragadas para den- tro da casa, como se um gigantesco aspirador de pó as tivesse engolido, e as grades fecharam-se violentamente atrás delas. Manu viu a cena, horrorizada. No entanto, após um mo- mento, aproximou-se do portão para tocar a campainha ou bater, a fim de pedir novamente para brincar com seus amigos, fosse qual fosse o jogo obrigatório. Mal deu um passo, porém, ficou gelada de medo: entre ela e o portão estava um dos homens cinzentos. — É inútil — disse ele com o charuto no canto da boca. — Não adianta experimentar, não é do nosso interesse que você entre aí.

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— Por que não? — perguntou a menina, sentindo de novo um arrepio gélido. — Porque temos outros planos para você — explicou o ho- mem, soprando a fumaça, que cingiu o pescoço de Manu como um espesso laço, e só aos poucos se foi diluindo. — Por quê? — conseguiu a menina articular com dificul- dade. — Porque queremos que nos preste um servicinho — res- pondeu o homem. — Se você tiver juízo poderá beneficiar-se, e também a seus amigos. Não quer? Manu acenou em silêncio e o homem disse-lhe: — À meia-noite nos encontraremos para discutir o assunto. Com essas palavras desapareceu. Apenas volutas de fumo ficaram pairando no ar. O homem cinzento não mencionara onde seria o encontro.

17. GRANDE MEDO E MAIOR CORAGEM

Manu estava com medo de voltar ao velho anfiteatro. Ti- nha certeza de que o homem cinzento iria encontrá-la naquele lugar, à meia-noite, e a idéia de se ver lá sozinha com ele a en- chia de terror. Não. não queria mais vê-lo, nem ali nem em local algum. Qualquer que fosse sua proposta, não beneficiaria realmente nem a ela nem a seus amigos. Mas onde poderia esconder-se dele? O lugar mais seguro parecia-lhe ser no meio da multidão. Já tinha verificado que a gente passando nas ruas não dava aten- ção nem a ela nem ao homem cinzento. Mas caso ele quisesse agredi-la, ela gritaria e certamente o povo viria em seu socorro. Além disso, dizia consigo mesma, seria mais difícil encontrá-la no meio de muita gente. Durante o resto da tarde e pela noite a dentro, Manu jun- tou-se pois à turba de pedestres nas ruas e praças mais movi- mentadas. Seus pés doíam de cansaço. Fazia-sc cada vez mais tarde, e a menina, já quase dormindo, continuava a andar, an- dar, andar. "Só um momento de repouso", pensou ela afinal, "um mo- mentinho apenas, e ficarei mais alerta!" A certa altura, viu junto ao meio-fio uma camioneta para entrega de encomendas, sobre a qual se empilhavam caixas e

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sacos vazios. Manu instalou-se nela, recostando-se num saco, que lhe pareceu muito fofo. Acomodou-se e antes que o percebesse, exausta, caiu num profundo sono. Foi, porém, perseguida por sonhos aflitivos. Viu o velho Beppo usando sua vassoura como uma longa vara de equilibris- ta, enquanto andava numa corda que oscilava sobre um abismo sombrio, e cujas extremidades perdiam-se na escuridão. Manu queria ajudá-lo, mas ele não a ouvia: estava muito longe e muito alto. Depois, viu Guido puxando de sua boca uma infindável tira de papel. Por mais que ele puxasse, a tira não tinha fim e tam- bém não se rasgava. A menina procurou correr em seu auxílio, mas ficou com os pés enredados nas fitas de papel e quanto mais se esforçava por se libertar mais se emaranhava. Viu em seguida as crianças. Estavam achatadas como car- tas de baralho e cada carta apresentava um padrão de pequenas perfurações. As cartas eram embaralhadas e depois tinham de se ordenar sozinhas para serem outra vez perfuradas com novos orifícios. As crianças-baralhos choravam silenciosamente. Foram porém logo embaralhadas de novo, caindo uma sobre a outra com um ruído de matraca. Manu tentava gritar: "Parem, Parem!" Mas o barulho sufo- cava sua voz débil e tornava-se cada vez mais forte, mais forte, a ponto de acordá-la. No começo, não sabia onde se encontrava, era noite escura; lembrou-se em seguida que tinha subido na camioneta. Esta se pusera em movimento e o motor é que fazia aquele barulho. Ma- nu enxugou as faces molhadas de lágrimas. Em que lugar estaria? Talvez a camioneta já estivesse em movimento há algum tempo, sem que ela o percebesse. Atravessavam uma parte da cidade inteiramente deserta, àquela hora tardia. O carro não ia com grande velocidade e, sem refletir, Manu pulou ao chão. Queria voltar para as ruas movimentadas, onde se sentiria mais segura contra os homens cinzentos. Mas lem- brou-se de seus sonhos e ficou parada. Recordando-se de tudo que sonhara, renunciou a fugir: até o momento, só havia pensado em si mesma, na sua solidão, nos seus temores, no meio de salvar-se. Na realidade, porém, seus amigos precisavam de ajuda e era ela quem os podia auxiliar. Por mais remota que fosse a possibilidade de os homens cinzentos os libertarem, ela devia pelo menos tentar. Quando chegou a essa conclusão sentiu misteriosa mudança dentro de si. Seu medo, seu desamparo tinham atingido o máxi-

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mo e agora, numa súbita reviravolta, foi capaz de superá-los: sentiu-se corajosa, confiante como se nenhum poder da terra fosse capaz de feri-la. Ou melhor, cessou inteiramente de se preo- cupar com o que lhe pudesse acontecer. Daqui por diante, queria encontrar os homens cinzentos; c queria a todo custo. "Preciso voltar imediatamente para o anfi- teatro" pensou Manu. "talvez não seja tarde demais e ele tenha esperado por mim". A coisa era mais fácil de dizer que de fazer: a menina igno- rava onde estava e não sabia que direção tomar. Apesar disso, pôs-se a caminho, ao acaso. Percorreu ruas e ruas, sempre deser- tas e escuras, num silêncio absoluto, pois estando descalça não ouvia nem o ruído de seus passos. Chegou por fim a uma vasta praça. Não era uma daquelas praças bonitas dos bairros elegantes com jardins, fontes, árvores, mas apenas um imenso espaço vazio, margeado por casas cujos contornos sombrios se destacavam contra o céu. Quando Manu alcançou o centro da praça, o relógio de al- guma igreja na vizinhança bateu horas. . . muitas batidas. . . tal- vez fosse meia-noite. O som ainda ecoava no silêncio noturno quando a menina viu surgirem simultaneamente, da extremidade de cada rua con- vergindo para a praça, luzes que se iam tornando cada vez mais fortes à medida que se aproximavam. Compreendeu que eram os holofotes de inúmeros carros. Para qualquer lado que se voltasse, luzes ofuscantes a envolviam, obrigando-a a proteger os olhos com a mão. Eles tinham vindo! A menina não contava com tão gran- de número de adversários, e por um instante toda sua coragem desapareceu: estava completamente cercada, não tinha jeito de fugir e encolheu-se o mais que pôde dentro de seu velho casaco. Lembrou-se então das flores das horas, das vozes na gran- de sinfonia e sentiu-se revigorada, com novo ânimo. Diminuindo a força dos motores, os carros vieram se apro- ximando sempre mais. até encostarem os pára-choques um no outro, formando um círculo fechado em cujo centro estava Ma- nu. Ela não distinguia quantos eram os homens cinzentos, pois tinham descido dos carros mas ficavam no escuro, por trás dos holofotes. Percebia no entanto que eram muito numerosos. E sen- tiu frio. Por algum tempo ninguém falou. Finalmente uma voz cin- zenta disse: — Então esta é a menina Manu que certa vez julgou poder

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nos desafiar! Vejam agora seu fracasso: não passa de uma coi- sinha miserável! — Cuidado! — disse em tom mais baixo um dos homens. — Sabemos o perigo que essa criança pode ser para nós. Não há jeito de enganá-la. Manu ouvia em silêncio. Afinal um deles começou de novo a falar: — Vamos ser francos um com o outro. Você está sozinha, pobre criança e seus amigos fora de seu alcance. Não ficou ne- nhum com quem possa partilhar seu tempo. Esse foi exatamente nosso plano. Que significam agora para você suas horas solitá- rias? Uma desgraça que a arruina. Você está isolada de todo o resto da humanidade. Manu ouviu e continuou silenciosa. — Mais cedo ou mais tarde — prosseeuiu a voz — chegará um momento em que você não poderá mais supoitar isso; talvez amanhã, daqui a uma semana ou um ano. Não nos importa saber exatamente quando, pois estaremos à espera, certos de que você acabará recorrendo a nós, de joelhos e implorando: "Farei o que quiserem se me livrarem deste fardo." Ou será que você já che- gou a esse ponto? Basta dizer uma palavra. Manu sacudiu a cabeça negativamente. — Você não quer nossa ajuda? — perguntou a voz num tom gélido. Uma onda de intenso frio, vinda de todos os lados, envolveu a menina. Ela, porém, cerrou os dentes e de novo sacudiu a ca- beça. — Essa criança sabe o que é realmente o tempo — sibilou outra voz. — Isso prova que ela esteve de fato com Aquela Pessoa — silvou em resposta a primeira voz. E, mais alto, dirigindo-se a Manu: — Você conhece Mestre Hora? Desta vez a menina acenou afirmativamente. — E você esteve mesmo com ele? De novo Manu fez sinal que sim. — Então você deve conhecer a floração das horas? Pela terceira vez foi afirmativa a resposta. Oh! como conhe- cia aquela maravilha! Seguiu-se novamente longa pausa. A voz que recomeçou a falar vinha agora de outra direção: — Você tem amor a seus amigos, não tem? Manu acenou que sim.

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— E você gostaria de libertá-los de nosso poder, não é? Manu acenou outra vez afirmativamente. — Pois você pode fazer isso, se quiser. Tremendo dos pés à cabeça, a pequena aconchegou o casa- co bem junto ao corpo. — Nós também desejamos um conhecimento pessoal com esse Mestre Hora, mas não sabemos onde ele se encontra. Que- remos que você nos guie até lá, só isso. Em troca desse servici- nho você terá seus amigos livres, e poderá levar com eles a mes- ma vida de antigamente, alegre e contente. Não é uma proposta que vale a pena? Pela primeira vez Manu abriu a boca; falar custou-lhe imen- so esforço, tão gelados estavam seus lábios. — Que desejam com Mestre Hora? — perguntou lentamente. — Desejamos conhecê-lo — respondeu asperamente a voz. — Basta isso para você. O frio aumentava sempre mais. Manu ficou silenciosa e aten- ta. Notou certo movimento entre os homens cinzentos, que pare- ciam tornar-se inquietos. — Não compreendo! — disse a voz. — Pense em você mes- ma e em seus amigos! Por que preocupar-se com Mestre Hora? Ele tem idade suficiente para cuidar de si. Aliás, se ele for ra- zoável e quiser cooperar conosco amigavelmente, não tocaremos num só cabelo de sua cabeça. Se não, temos meios de forçá-lo. — Forçá-lo a quê? — indagou a menina com os lábios roxos. Subitamente a voz soou estridente e cansada ao declarar: — Estamos fartos de juntar aos poucos horas, minutos e segundos das pessoas. Queremos de uma vez todo o tempo per- tencente à humanidade e é isso que Mestre Hora tem de nos entregar. Horrorizada, Manu fitava a escuridão de onde provinha a voz. — E que acontecerá então com as pessoas? — perguntou. — As pessoas? — ganiu a voz. — Há muito que sãc su- pérfluas no mundo. Nós governaremos o mundo! O frio era agora tão terrível que Manu, embora pudesse ainda abrir os lábios, não conseguia emitir som algum. — Mas não se preocupe, Manu — continuou a voz, repen- tinamente mansa e quase agradável — você e seus amigos serão uma exceção: serão os únicos remanescentes capazes de brincar e de contar histórias. Não se metam mais em nossos negócios, e nós os deixaremos em paz.

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Outra voz levantou-se, vinda de outro lado: — Você sabe que dissemos a verdade. Cumpriremos o pro- metido; e agora leve-nos à morada de Mestre Hora. Manu experimentou falar e a muito custo pôde pronunciar estas palavras: — Mesmo que eu pudesse, não faria isso! Várias vozes ergueram-se ameaçadoras: — Como? Que quer dizer você? Claro que pode nos levar lá! Você esteve com Mestre Hora, tem de saber o caminho! — Não consigo mais achá-lo — murmurou a menina. — Já tentei . . . só- Cassiopeia é que sabe! — Quem é Cassiopeia? — É a tartaruga de Mestre Hora. — Onde está ela? Quase inconsciente de frio, Manu gaguejou: — Ela. . . voltou comigo. . . mas. . . mas depois perdeu-se! Houve um terrível alvoroço de vozes confusas, e a menina escutou esta ordem: — Declarem caso de emergência extrema! A tartaruga tem de ser encontrada. Toda tartaruga tem de ser examinada. A tal Cassiopeia precisa ser encontrada. A todo custo! Aos poucos, cessaram as vozes. Fez-se completo silêncio e Manu foi voltando a si daquela semi-inconsciência. Estava in- teiramente só na enorme praça, sobre a qual soprava agora uma rajada de vento.

1 * . OLHANDO PARA A FRENTE SEM OLHAR PARA TRÁS

Manu não tinha idéia do tempo que passara. Só muito de- vagar voltou o calor a seus membros gelados. Sentia-se paralisada e incapaz de tomar qualquer decisão. Devia voltar para o velho anfiteatro e meter-se na cama, quando toda esperança para si mesma e para os amigos estava para sempre perdida? Inquietava-se também por Cassiopeia. Imaginem se os ho- mens cinzentos a encontrassem? A menina começou a censurar- se amargamente por ter mencionado a tartaruga, mas tinha fica- do tão atordoada que nem avaliara a conseqüência do que pu- desse dizer.

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"E talvez" pensou Manu para se consolar. "Cassiopeia já tenha voltado para junto de Mestre Hora! Espero que não esteja mais à minha procura. Seria melhor para ela e para mim — se... " Nesse instante, enquanto se atormentava com repreensões pelo que dissera, sentiu alguma coisa roçando de leve seus pés descalços. Abaixou-se, viu diante de si a tartaruga, e, aos poucos, co- meçaram a brilhar no escuro estas palavras: Aqui estou de novo. Sem refletir, Manu agarrou-a e enfiou-a dentro do seu ca- saco. Depois, endireitou-se e ficou à escuta, espiando no escuro com medo que os homens cinzentos pudessem ainda estar pela redondeza. Mas tudo permaneceu em silêncio. Cassiopeia debatia-se furiosamente dentro do casaco, ten- tando libertar-se. Apertando-a fortemente de encontro ao peito. Manu espiou para dentro do casaco e sussurrou: — Fique quieta, por favor. — Por que todo esse alvoroço? — Você não pode ser vista — murmurou a menina. Agora, na carapaça do bichinho, apareceu esta pergunta: — Você não está contente? — Oh! muito, muito! — murmurou Manu quase soluçando. — Você nem imagina o quanto estou alegre! Beijava e tornava a beijar o bico de Cassiopeia. — Você esteve realmente à minha procura durante todo esse tempo? — Decerto — foi a resposta luminosa. — E como me encontrou exatamente neste lugar e neste momento? — Sabia com antecedência. Manu contou-lhe baixinho tudo que acontecera, perguntan- do finalmente: — Que devemos fazer agora? Cassiopeia escutara com atenção e nas suas costas veio a resposta: — Vamos ter cem Mestre Hora. — Neste momento? — gritou Manu horrorizada. — Mas os homens cinzentos estão à sua procura por toda parte! Este é o único lugar onde não há nenhum deles. Não seria mais razoável ficarmos aqui? As letras luminosas insistiram na idéia: — Vamos, eu sei!

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— Então iremos direto ao encontro deles! — declarou a menina. — Não encontraremos nenhum — foi a réplica da tarta- ruga. Bem, se ela estava tão certa disso, podia-se ter confiança, c Manu colocou-a no chão. Depois, pensando na longa e fati- gante jornada que teriam de fazer, sentiu que suas forças não agüentariam até o fim, e disse muito pesarosa: — Vá sozinha, Cassiopeia, eú não posso continuar. Vá so- zinha e leve minhas saudades a Mestre Hora. — Estamos pertinho! Ao ler essas palavras na carapaça de sua protetora Manu olhou em volta, cheia de espanto. Pouco a pouco, porém, reco- nheceu ser aquela parte deserta e pobre da cidade o lugar de onde tinham passado para o outro bairro, todo de casas brancas, iluminado por aquela estranha luz. Sendo assim, ela talvez pu- desse agüentar até à Alameda do Nunca e chegar à Mansão de Lugar Nenhum. — Nesse caso, vou também! Mas não posso levar você nos braços para não demorarmos tanto? — Infelizmente não — respondeu Cassiopeia. — Por que você tem de rastejar sempre sozinha? — per- guntou ainda a menina, e recebeu da tartaruga esta resposta: — Porque o caminho está em mim! E com isso Cassiopeia começou a andar, seguida por Manu, passo a passo. Mal a tartaruga e a menina tinham dobrado uma das estrei- tas ruas que partiam da praça, vultos escuros começaram a mo- vimentar-se ao longo das casas do largo. Eram os homens cin- zcntos, que ali tinham ficado espionando a cena e agora vigiavam secretamente o par que se pusera a caminho. A espera tinha sido longa, mas não imaginavam que o resultado fosse tão promissor. — Lá vão elas! — sussurrou uma voz cinzenta. — Vamos agarrá-las? — Claro que não! — murmurou outra. — É deixar que continuem. A tartaruga nos indica o caminho por sua própria e livre vontade, ainda que não intencionalmente. De novo um gélido riso de zombaria ecoou por entre as es- curas sombras ao redor da praça. — Avisem a todos os agentes da cidade que a busca está suspensa. Todos os agentes devem vir aqui juntar-se a nós, ob- servando porém o maior cuidado: ninguém deve impedi-las e o caminho deve estar sempre livre diante delas. E agora vamos tran- qüilamente seguir nossas duas guias involuntárias.

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Assim é que Manu e Cassiopeia não encontraram de fato um único de seus perseguidores. Quando isso ia acontecer, estes se desviavam e sumiam a tempo para em seguida juntarem-se a seus companheiros. Formavam-se fileiras cada vez maiores, sempre escondidas pelas altas paredes ou pelas esquinas das ruas, acom- panhando sem barulho as duas fugitivas. Manu nunca estivera tão cansada em sua vida. Parecia-lhe às vezes que ia cair no chão e dormir ali mesmo. Forçava-se po- rém a mais um passo, depois a mais outro, e ao fim de um ou dois minutos a caminhada tornava-se mais fácil. Se ao menos a tartaruga pudesse rastejar um pouco mais depressa! Mas não ha- via nada a fazer. Manu não olhava mais para os lados, tinha os olhos fixos nos seus pés e em Cassiopeia. Após um tempo que lhe pareceu uma eternidade, percebeu que o chão sobre o qual pisava estava ficando mais claro. Viu que tinham finalmente chegado àquela parte da cidade iluminada por estranha luz — nem aurora nem crepúsculo — onde todas as sombras caíam em direções diferentes. Manu readquiriu coragem, pois já não podiam estar mui- to longe de Mestre Hora. E, como da vez anterior, a menina observou que andando devagar adiantavam-se mais. Era como se a rua deslizasse sob seus pés tanto mais rapidamente quanto mais lentamente cami- nhavam. Esse era o mistério daquele lugar. Da outra vez, os homens cinzentos o ignoravam, quando em seus velozes carros tentaram perseguir Manu, e ela assim lhes escapou. Agora, porém, o caso era outro: não tencionavam apanhar as fugitivas, e para acompanhá-las puseram-se em idêntico ritmo, descobrindo o segredo. Aos poucos, as alvas ruas foram-se en- chendo do batalhão de perseguidores que, diminuindo o passo, mais e mais perto chegavam das duas. Era uma extraordinária corrida às avessas: quanto mais devagar mais depressa! O caminho através daquelas ruas de sonho dava voltas e mais voltas, penetrando sempre adiante até chegar à esquina da Alameda do Nunca. Cassiopeia já entrara na Alameda, cm direção à Mansão de Lugar Nenhum, e Manu, lembrando-se que só de costas pudera se adiantar naquela estranha rua, virou nos pés para agora fazer o mesmo. Qual não foi seu pavor ao ver então, avançando ombro a ombro, em cerradas fileiras, a perder de vista, o exército dos ho- mens cinzentos. De olhos arregalados de medo e fixos nos ladrões do tem- po, Manu deu um grito — mas não ouviu sua própria voz —

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e correu para a Alameda do Nunca. Aconteceu nesse momento um fato incrível: quando a pri- meira fila dos perseguidores tentou penetrar na Alameda do Nunca, diante do olhar atônito de Manu, eles se dissolveram cm nada. Primeiro, seus braços estendidos se desfizeram, depois seus corpos e pernas se desvaneceram e por último suas faces, com uma expressão de assombro e terror. Não só a menina presenciara o que linha acontecido; tam- bém os homens que estavam mais próximos o tinham visto. Es- tacaram imediatamente, firmando-se nos calcanhares para resistir ã pressão dos que vinham atrás, c houve por momento verdadei- ros choques. Manu pôde ainda ver suas caras furiosas ao ergue- rem contra ela o punho ameaçador. Não ousaram, porém, per- segui-la mais. Afinal, a menina chegou ã Mansão de Lugar Nenhum. As grandes portas de bronze abriram-se, Manu entrou, percorreu a galeria com as estátuas dc pedra, abriu a pequena porta, esguei- rou-sc através dela e correu pela grande sala cheia de relógios até à saleta, onde se atirou no sofá escondendo o rosto nas almo- fadas, de modo a não ver nem ouvir mais nada. 19. OS SITIADOS FAZEM UM PACTO

Finalmente, Manu emergiu das profundezas de um sono sem sonhos. Sentia-se maravilhosamente disposta e repousada. Ouviu então uma voz suave que dizia: — Não foi culpa da menina, mas você Cassiopeia — por que agiu desse jeito? Abriu os olhos e viu Mestre Hora sentado à mesinha em frente ao sofá, olhando pesaroso para a tartaruga a seus pés, com quem conversava. — Como não lhe ocorreu que os homens cinzentos a se- guiriam? — Sei com meia hora de antecedência — apareceu escrito na carapaça da tartaruga: — Mas "não penso" com antecedência. Mestre Hora sacudiu a cabeça e suspirou: — Oh! Cassiopeia. Cassiopeia, você às vezes é um mistério até para mim! Manu sentou-se. — Ah! Nossa amiguinha acordou — disse gentilmente Mes- tre Hora. — Espero que você esteja bem! — E os homens cinzentos? — perguntou Manu.

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— Eles nos sitiaram. Cercaram a Mansão de Lugar Ne- nhum por todos os lados, isto é, chegaram tão perto quanto pu- deram. — Mas não podem vir aqui dentro, não é? — Não; você mesma viu. Ao chegarem à Alameda do Nun- ca eles se dissolvem em nada. — Qual a causa disso? — indagou a menina. — Ê a ressaca do Tempo — explicou Mestre Hora. — Você sabe que na Alameda do Nunca tudo é feito ao reverso. Ora, ao redor desta Mansão o Tempo tem seu movimento inver- tido: normalmente o tempo flui para dentro das pessoas, que envelhecem à medida do tempo que absorvem. Na Alameda do Nunca, porém, o tempo flui para fora delas e você pode dizer que rejuvenesce ao percorrer essa Alameda. Não rejuvenesce mui- to, é claro, justo o tempo gasto até alcançar o fim dessa rua. — Não reparei nisso — disse Manu surpresa. — Bem — explicou Mestre Hora. — Isso não importa tan- to para os seres humanos, pois eles usufruem de muito mais tem- po do que apenas aquele que possuem dentro de si. Com os ho- mens cinzentos o caso é diferente: é o tempo roubado que os sustenta, e quando enfrentam a ressaca do Tempo tudo quanto roubaram flui fora deles, como o ar foge de uma bola de borra- cha que arrebenta. E no fim não resta absolutamente nada. Manu pôs-se a refletir e após um momento perguntou: — Não seria possível fazer todo o Tempo correr ao con- trário? Só por uns instantes? Toda gente ficaria um pouquinho mais jovem, o que não teria importância, mas os homens cinzen- tos se dissolveriam em nada. — Seria certamente boa idéia, mas receio que não se possa executar. As duas correntes se equilibram; se cancelarmos uma, a outra também Vai parar. E então cessaria o tempo.. . Mestre Hora ficou silencioso, empurrou os óculos universais para a testa e, muito pensativo, começou a andar de um lado para outro, murmurando: — Isso é. . . quem sabe. . . Manu o acompanhava ansiosamente com o olhar, e também Cassiopeia estava atenta. Afinal, sentou-se e disse para Manu: — Você deu-me uma idéia, mas não depende só de mim que seja praticável. Cassiopeia, minha cara, diga-me, na sua opi- nião qual a melhor coisa a fazer para quei. está sitiado? — Almoçar — apareceu em letras luminosas na carapaça. — Realmente! — concordou Mestre Hora. — É uma boa coisa.

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Imediatamente a mesinha estava posta para a refeição. Ou já estaria ali preparada sem que Manu o tivesse notado? De qual- quer forma, ali se achavam as xicrinhas de ouro, com as demais peças do aparelho, a chocolateira fumegante, o mel, a manteiga, os pãezinhos dourados. Desde sua primeira visita Manu pensava muitas vezes com saudade naquelas coisas deliciosas, e sentou-se à mesa com grande apetite. Desta vez tudo lhe pareceu ainda mais saboroso e tam- bém Mestre Hora comeu com agrado. Após alguns momentos, Manu, ainda com a boca cheia, per- guntou: — Os homens cinzentos querem que o senhor lhes entregue todo o tempo pertencente à humanidade, mas o senhor não fará tal coisa, não é? — Não, minha menina, nunca o farei — respondeu Mestre Hora.

— Eles dizem no entanto que poderão forçá-lo a isso — insistiu Manu. — Antes de discutirmos mais eu gostaria que você mesma os observasse — e tirando seus pequenos óculos de aro de ouro Mestre Hora os entregou à menina. Como da primeira vez, no começo ela só viu uma confusão de cores e formas que a deixavam tonta; mas agora pôde focalizar a imagem mais depressa e viu o imenso exército de sitiantes. Ombro a ombro, ali estavam os homens cinzentos, em inter- mináveis fileiras. Não se alinhavam apenas à entrada da Alameda do Nunca, mas espalhavam-se ao longe, formando um grande cír- culo que se estendia por toda aquela parte da cidade de casas brancas, tendo a Mansão de Lugar Nenhum como centro. Não havia uma brecha no cerco. Manu notou então um fato esquisito. A princípio julgou que os vidros dos óculos universais estivessem embaciados, pois uma estranha névoa tornava indistintos e nublados os contornos dos homens cinzentos. Verificou depois que a névoa erguia-se das ruas onde eles se encontravam. Em alguns lugares já havia uma neblina espessa e opaca; em outros estava apenas começando. Os homens cinzentos permaneciam imóveis. Como de costu- me, cada um tinha o chapéu-coco na cabeça, a pasta cinzenta na mão e o charuto aceso na boca. As nuvens de fumaça que estes produziam não se dispersavam, porém, como habitualmente: no ar parado, sem a menor brisa, a fumaça flutuava sem se desfazer, depositando-se ao longo das ruas e sobre a fachada das casas bran- cas como neve. Condensaram-se depois numa parede asquerosa

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que subia, lenta mas incessantemente, cercando a Mansão de Lu- gar Nenhum com um muro cada vez mais alto. Manu viu também que de momento a momento maior núme- ro de homens chegavam para tomar o posto dos que vinham re- vezar. Que significava aquilo? Tirou os óculos e olhou interrogativamente para Mestre Hora, que lhe disse: — Você já viu bastante? Então dê-me os óculos, faz favor. Enquanto os colocava, continuou: — Você perguntou se eles poderiam forçar-me a alguma coi- sa. A mim mesmo, como você sabe, não podem atingir. Poderão, no entanto, infligir à humanidade uma chaga pior do que tudo quanto até agora têm feito. £ com tal ameaça que tentarão me coagir. Eu distribuo a cada criatura humana sua porção de tempo e os homens cinzentos não podem impedi-lo nem interceptar o tempo que eu concedo. Mas podem envenená-lo com a fumaça de seus charutos. Repare que eles não largam o charuto cinzento, pois sem ele deixarão de existir. — De que espécie são esses charutos? — indagou a pe- quena. — Você se lembra da floração das horas, não é? — pergun- tou Mestre Hora. — Eu disse então que toda criatura humana tem em si um templo de ouro do Tempo como aquele — é o seu coração. Quando uma pessoa admite a entrada dos homens cin- zentos no seu templo, estes podem arrebatar-lhe mais e mais des- sas flores. As flores das horas assim roubadas não podem morrer, pois não foram vividas; e também não podem viver, pois foram arrancadas a seus verdadeiros proprietários. Anseiam constante- mente, com cada fibra de seu ser, por voltar a quem de direito pertencem. Manu ouvia, quase sem fôlego. — Você precisa saber, Manu, que o mal tem seus mistérios — como o bem. Ignoro onde os homens cinzentos guardam as flores das horas roubadas. Só sei que por sua própria frieza eles as congelam, impedindo que voltem a seus legítimos donos. Em algum ponto, profundamente escondido sob a terra, deve haver gigantescos depósitos, onde jaz todo o tempo congelado. Ainda assim, a floração das horas não morre. As faces de Manu ardiam de indignação. — Os homens cinzentos vão continuamente abastecer-se nes- ses depósitos: arrancam as pétalas das flores, deixam-nas mur- char até que fiquem completamente secas e cinzentas e com elas enrolam seus charutinhos. Até esse momento, ainda existe um

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resto de vida nas pétalas, e como os ladrões não podem se ali- mentar do tempo vivo acendem os charutos para fumá-los. É so- mente nessa fumaça que o tempo morre realmente e é esse tempo dos homens — agora morto — que conserva vivos os homens cin- zentos. Manu tinha-se levantado e exclamou: — Oh! pensar em todo esse tempo morto.. . — De fato é impressionante. Aquele muro de fumaça lá fora, cercando a Mansão de Lugar Nenhum, é todo feito de tempo morto. Ainda disponho de bastante céu aberto para enviar aos homens o tempo intacto; mas quando essas densas nuvens de fu- mo tiverem formado uma completa abóbada em redor e acima de nós, então uma certa quantidade do tempo espectral dos homens cinzentos vai misturar-se com cada hora que eu mandar à huma- nidade. E quando as pessoas absorverem esse tempo poluído fica- rão doentes — mortalmente enfermas. Cheia de espanto. Manu fitava Mestre Hora sem compre- ender: — Que espécie de doença é essa? — perguntou baixinho. — No começo mal se percebe. Mas um dia o homem não tem disposição para coisa alguma; nada o interessa, ele está pro- fundamente aborrecido. Essa apatia não passa; piora de dia para dia, de semana para semana. Sente-se vazio, descontente com tudo. Depois, aos poucos, até esse sentimento desaparece: o homem fica inteiramente insensível, indiferente — como se cinzento — alie- nado do mundo, que já não lhe diz nada. Não tem mais cólera nem entusiasmo, esqueceu o riso e as lágrimas. Torna-se intima- mente gélido, e não pode amar a ninguém e a coisa alguma. Quan- do a doença atinge esse grau é incurável, não há recuperação pos- sível. O homem agita-se de um lado para outro, com o rosto inex- pressivo, cinzento como o dos homens cinzentos, e na verdade torna-se então um deles. Essa doença chama-se Tédio Mortal. Manu estremeceu: — Se o senhor recusar entregar-lhes todo o tempo da huma- nidade, eles vão fazer todas as pessoas ficarem iguais a eles? — Sim — respondeu Mestre Hora — e é por isso que ten- tarrj me coagir. Levantou-se e continuou: — Aguardei até agora, na esperança de que os homens se libertassem dessas pestes por seus próprios esforços. Já não posso esperar mais. Tenho de fazer alguma coisa, mas não posso realizá- la sozinho! E olhando para Manu:

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— Você quer ajudar-me? — Quero — sussurrou a menina. — Terei de expô-la a nem sei que perigos — disse Mestre Hora. — Dependerá de você que o mundo pare para sempre ou que recomece a viver de novo. Sente-se bastante corajosa para enfrentar tal risco? — Sim! — c dessa vez a voz de Manu tinha um tom deci- dido. — Muito bem! — declarou Mestre Hora. — £ preciso você prestar muita atenção ao que vou explicar, pois terá de resolver tudo sozinha c eu não poderei mais ajudá-la. Nem eu, nem nin- guém! Manu acenou com a cabeça, os olhos fitos em Mestre Hora, com atenção concentrada. — Você precisa saber — disse ele — que eu jamais durmo. Se acontecesse eu cair no sono, nesse instante exato o tempo te- ria de parar, e o mundo inteiro ficaria completamente imobiliza- do. Ora, tendo cessado o tempo, os homens cinzentos não pode- riam mais roubá-lo. É verdade que ainda poderiam existir por alguns momentos, pois possuem grandes reservas de tempo; quan- do essas se esgotassem, porém, eles se dissolveriam em nada. — Então é fácil — declarou a menina. — Infelizmente, não é absolutamente fácil; se fosse, eu não precisaria de seu auxílio. Quando o tempo cessar, não poderei acor- dar novamente, e o mundo ficará absolutamente imóvel para toda eternidade. Mas tenho o poder de dar a você — exclusivamente a você — uma flor das horas. Uma única, é claro, pois só uma floresce de cada vez. Desse modo, mesmo que o tempo pare, você ainda será dona de uma hora. — Assim, poderei acordá-lo! — exclamou Manu. — Se fosse só isso. . . — continuou ele — mas numa hora apenas nada ganharíamos, as reservas de tempo dos homens cin- zentos são grandes, não se esgotariam tão depressa, e depois eles continuariam a existir. Não; os problemas que você terá de re- solver são bem mais difíceis! Logo que nossos adversários perce- berem que o tempo cessou — e eles o perceberão muito depressa, porque não terão meios de renovar seu estoque de charutos —, suspenderão o cerco, a fim dc se dirigirem a seus depósitos. Aí, é preciso que você os siga, Manu, e descubra esse lugar secreto, pois terá de impedir que alcancem as suas reservas: no momento em que não tiverem mais charutos, perderão a existência. Em se- guida, há ainda outra coisa a fazer e talvez a mais difícil: logo que o último homem cinzento se extinguir você terá dc libertar

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todo o tempo roubado; somente quando ele voltar a seus legítimos donos é que o mundo sairá da imobilidade e acordará de novo. E para executar tudo isso você terá apenas uma única hora. Manu olhou com ar desanimado; não calculara que as difi- culdades e perigos fossem tantos. — Quer tentar assim mesmo? — perguntou Mestre Hora. — É a única chance! Manu ficou silenciosa. Duvidava que fosse capaz de realizar tudo aquilo. De repente, leu nas costas de Cassiopeia: — Vou com você. Que ajuda poderia dar-lhe a tartaruga? Sentiu no entanto um raio de esperança confortá-la. A idéia de não empreender so- zinha a difícil missão dava-lhe coragem. — Vou tentar — disse resolutamente. Mestre Hora e Manu sorriram um para o outro. — O senhor vai dar também uma flor das horas a Cassio- peia? — perguntou Manu.

— Não — explicou ele. — Cassiopeia não precisa; é uma criatura fora do tempo. Ela carrega em si o seu próprio tempo e continuaria rastejando pelo mundo inteiro, ainda que tudo mais tivesse parado para sempre. — Bem — disse Manu tomada de súbito desejo de ação. — Qual a primeira coisa a fazer agora? — É nos despedirmos! — respondeu Mestre Hora. Manu engoliu em seco e murmurou baixinho: — Será que nunca mais nos veremos? — Sim, havemos de nos encontrar de novo; mas antes disso, cada hora de vida levará a você lembranças minhas, pois conti- nuaremos amigos, não é? — Decerto! — afirmou Manu. — Agora preciso ir-me; você não deve acompanhar-me nem perguntar para onde vou. Meu sono não é um sono comum e é melhor que você não o presencie. Mais uma recomendação: logo que eu partir daqui, abra imediatamente as duas portas, a peque- nina com meu nome e a grande porta de bronze que dá para a Alameda do Nunca, pois assim que o tempo cessar tudo ficará completamente imóvel e nenhuma força do mundo poderá abrir essas portas. Você compreendeu bem tudo e será capaz de exe- cutar a tarefa? — Compreendi — respondeu Manu — mas como saberei o momento em que o tempo parar? — Não se preocupe, você saberá logo.

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Mestre Hora levantou-se, acariciou o cabelo despenteado da menina e disse: — Adeus, Manu, tive muita alegria que você me ouvisse também! — Mais tarde hei de falar do senhor a toda gente — repli- cou ela. Subitamente, Mestre Hora pareceu incrivelmente velho e saiu rapidamente da saleta. Manu apanhou Cassiopeia e abraçou-a. Estava agora irre- vogavelmente engajada na maior aventura de sua vida.

20. OS PERSEGUIDORES

A primeira coisa que Manu fez foi abrir as duas portas. Feito isso, voltou correndo para a grande sala dos relógios e com Cassiopeia debaixo do braço ficou à espera do que pudesse acontecer. Subitamente houve uma espécie de terremoto, mas em vez de ser a terra que tremeu, foi um tremor do tempo. Não há pa- lavras capazes de descrevê-lo. Um som jamais escutado por ne- nhum ouvido humano acompanhou esse fenômeno: era como se um imenso gemido subisse das profundezas dos séculos. Depois tudo terminou. No mesmo instante as inúmeras vozes dos carri- Ihões, os zunidos e tiquetaques na sala dos relógios cessaram re- pentinamente. Os pêndulos oscilantes pararam no ponto em que se encontravam: nada, absolutamente nada mais tinha movimento. O silêncio era total. O tempo tinha cessado. Manu percebeu que, inesperadamente, segurava uma grande flor das horas, de maravilhosa beleza. Deu cautelosamente um passo à frente, e verificou que podia andar com a facilidade ha- bitual. Na mesinha tinham ficado as sobras da refeição, e Manu sentou-se numa das pequenas poltronas; agora, porém, as almofa- das estavam duras como mármore e muito inconfortáveis. Na sua xícara restava ainda um gole de chocolate, mas não pôde levan- tar a xícara do pires. Experimentou mergulhar o dedo no líquido,

Et que se tornara no entanto sólido como vidro. Com o mel aconte- ceu o mesmo, e tampouco conseguiu apanhar as migalhas de pão. Cessando o tempo, tudo se tornara imóvel e inalterável.

PERSEGUIDOS

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Cassiopeia começou a agitar-se e Manu, olhando para ela, leu este aviso: — Você está perdendo tempo! Céus! era verdade. Correu para fora e recuou precipitada- mente. Seu coração batia descompassado: os homens cinzentos não estavam levantando o cerco! Pelo contrário, avançavam pela Alameda do Nunca, onde o tempo que costumava fluir para trás também havia parado, e dirigiam-se agora para a Mansão de Lu- gar Nenhum! Isso não fora previsto no plano. Manu voltou em disparada para a grande sala dos relógios e escondeu-se por trás de um deles. Ouviu em seguida os passos dos homens cinzentos que se aproximavam: um por um, espremeram-se através da estreita por- tinha e reuniram-se na sala dos relógios. — Então é esta nossa nova morada! Ê imponente! — disse um deles. — Foi Manu quem nos abriu a porta, eu vi — declarou ou- tra voz cinzenta. — É uma menina de juízo. Só queria saber como conseguiu persuadir o velho. Uma terceira voz idêntica respondeu: — Na minha opinião, Aquela Pessoa teve dc desistir. O fato de que a ressaca do Tempo cessou na Alameda do Nunca signi- fica que foi ela quem o determinou, pois certamente compreen- deu que tinha de submeter-se a nós. Agora vamos liquidá-la de uma vez. Mas onde se terá metido? Os homens cinzentos puseram-se a olhar em volta, quando um deles exclamou, numa voz mais cinzenta do que nunca: — Alguma coisa está errada! Vejam! Vejam, os relógios es- tão parados. Todos! Até aquela ampulheta! Que significa isso? Estava ainda falando quando se ouviram passos apressados, c outro homem cinzento se esgueirou pela porta. Entrou gesti- culando e disse aos gritos: — Acabamos de receber notícias de nossos agentes da cida- de. Seus carros não andam, tudo parou. O mundo está parado. Ê impossível arrancarmos a menor parcela de tempo, seja dc quem for. Todo nosso sistema de reservas faliu: não existe mais o Tem- po. Mestre Hora fez cessar o Tempo! Reinou por um momento silêncio de morte. Depois um de- les perguntou: — Que é que disseram? Nosso sistema de reservas faliu? Então que será de nós quando tivermos esgotado os charutos que trouxemos conosco? Começaram a gritar todos juntos, num tremendo alvoroço:

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— Hora pretende destruir-nos! Precisamos chegar ao nosso depósito de reservas de tempo! — Sem carro? É impossível, meus charutos só vão durar mais vinte e sete minutos. — Os meus apenas quarenta e oito. — Dê-me alguns! — Está louco? — Ê cada qual por si! O bando todo precipitou-se para a pequena porta, tentando sair. De seu esconderijo, Manu observava como lutavam, em pâ- nico, empurrando, puxando uns aos outros. Cada um queria pas- sar à frente do companheiro. Para isso, arrancava o charuto da boca do que estava mais perto, e quando isso acontecia este per- dia instantaneamente toda força: com as mãos estendidas, o rosto cinzento contorcido pelo terror, ia-se tornando mais e mais trans- parente até desaparecer por completo. Nada restava dele — nem mesmo o chapéu-coco. No final da batalha, só ficaram na sala três homens, que conseguiram sair sem atropelo pela porta estreita. Manu, sempre com a tartaruga debaixo do braço e a flor das horas na outra mão, correu atrás deles. Agora tudo dependia de* que não os perdesse de vista. Ao passar pela grande porta de bronze, viu que os ladrões do tempo já tinham chegado ao fim da Alameda do Nunca. Ali se achavam outros grupos, em meio às espirais paradas de fuma- ça, vociferando em tumulto. Ao verem os três companheiros cor- rendo, fizeram o mesmo. Em breve, outros juntaram-se a eles e daí a pouco todo o imenso exército dos homens cinzentos estava em plena fuga, em direção da grande cidade, perseguido, à distância, por uma meni- na com uma tartaruga debaixo do braço e uma flor na mão. Mas como era agora estranho o aspecto da grande cidade! Nas ruas e avenidas viam-se filas e filas de carros com os moto- ristas imóveis, as mãos no volante ou na alavanca de mudanças; ciclistas imobilizados com o braço estendido, indicando que iam virar a esquina; nas calçadas, todos os pedestres, homens, mulhe- res e crianças, cães e gatos, todos parados, rígidos. Até a fumaça dos cachimbos estava suspensa no ar. No cruzamento das ruas guardas com o apito na boca per- maneciam inalteráveis na posição em que estavam dirigindo o trânsito. Acima da praça pairava um bando de pombos, imobiliza- dos em pleno vôo. E lá no alto, um avião parecia pintado no céu. Os homens cinzentos atravessavam correndo a cidade imó- vel, Manu sempre seguindo-os de longe para não ser vista. Aliás, eles não reparavam em coisa alguma, na ânsia da corrida. Sem

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fôlego, muitos deixaram cair da boca o imprescindível charuto, desvanecendo-se imediatamente. Em seu desespero, alguns, cujo charuto estava no fim, arrancavam simplesmente o de um outro e desse modo diminuía constantemente o número dos ladrões do tempo. Aqueles que levavam alguma reserva em suas pastas pro- curavam escondê-la, pois quando os outros a descobriam avança- vam sobre eles, formando-se verdadeiras batalhas, durante as quais muitos charutos caíam ao chão, eram pisados no tumulto, e os homens cinzentos desfaziam-se em nada. Outra dificuldade que encontravam era a massa compacta de povo que enchia as ruas do centro da cidade, e os obrigava a abrir caminho a custo, como se atravessassem densa floresta. Para Manu. pequenina e magrinha, o trajeto era mais fácil; estava aten- ta à flor das horas que levava na mão, e vendo que esta começa- va apenas a abrir-se, achou que não havia motivo para se preo- cupar: o tempo devia chegar para realizar sua tarefa. Aconteceu então algo que fez Manu esquecer-se de tudo mais: numa rua transversal viu de repente Beppo Varredor. Alucinada de alegria, correu para ele gritando: — Beppo, tenho estado à sua procura por toda parte! Onde tem andado? Oh! meu querido Beppo! E sem pensar nas conseqüências, atirou-se ao pescoço do amigo, ricocheteando com tal força que se machucou e as lágri- mas lhe vieram aos olhos. Beppo pareceu-lhe mais curvado que antigamente; envelhe- cido, magro, pálido, abatido pelo trabalho incessante. Segurava uma vassoura já muito usada de tanto varrer. Manu o encontrara afinal, mas o encontro de nada adianta- va pois não podia vê-la nem ouvi-la. E talvez fosse essa a última vez em que estariam juntos. . . Se as coisas não saíssem confor- me os planos, o velho Beppo ali ficaria para toda a eternidade. A tartaruga começou a arranhar o braço da menina, e na sua carapaça apareceu este conselho: — Vá adiante! Manu voltou depressa para a rua principal e teve um susto: não havia nenhum homem cinzento à vista! Perdera a pista dos ladrões do tempo! Olhou interrogativamente para Cassiopeia e leu esta resposta: — Continue, você vai achá-los! Ora, se Cassiopeia sabia com antecedência que ela os encon- traria, não importava qual o rumo a tomar: qualquer caminho daria certo. Pôs-se então a correr segundo seu capricho: às ve- zes virava à direita; outras, à esquerda; ou ia simplesmente em frente.

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Chegou por fim na parte norte da cidade, ao bairro recém- construído, com casas todas idênticas e ruas retas que se esten- diam a perder de vista. A menina já estava quase perdendo a coragem quando avis- tou de repente um homem cinzento virando uma esquina. Man- cava, tinha as calças rasgadas, perdera o chapéu e a pasta, mas entre os lábios apertados ainda havia um toco de charuto aceso. Manu seguiu-o ao longo das infindáveis fileiras de casas até o ponto onde se abria uma brecha: em vez de uma casa, ali se erguia um alto tapume com uma porta entreaberta, pela qual o homem entrou precipitadamente. Acima da porta destacava-se um aviso:

CUIDADO! ALTAMENTE PERIGOSO

EXPRESSAMENTE PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS NÃO AUTORIZADAS

2 1 O FIM QUE É UM NOVO COMEÇO

Manu demorou a ler a tabuleta de aviso e quando penetrou no interior do tapume não viu vestígio do homem cmzento. Diante dela estendia-se uma imensa e profunda vala. Esca- vadeiras e outras máquinas para construção ali se enfileiravam. Uma rampa íngreme levava ao fundo da vala e vários caminhões achavam-se imobilizados a meio caminho. Aqui e acolá, operários estavam rígidos, parados na posição em que se encontravam no momento em que o tempo cessou. Para onde se dirigir agora? A menina não descobria nenhum meio de acesso que o homem cinzento pudesse ter usado. Olhou para Cassiopeia, mas a tartaruga também parecia ignorá-lo. Desceu então até o fundo da longa escavação e pôs-se a olhar em volta. Inesperadamente, deu com um rosto conhecido: era Nicolau, o pedreiro. Como todos os outros, ele estava imóvel, porém numa atitude muito curiosa: tinha a mão em concha ao redor da boca, como se estivesse gritando algo a um companheiro, e com a outra mão apontava para a extremidade de um enorme tubo de canalização, que emergia a seu lado, no fundo da vala. Parecia estar olhando para Manu, e a menina não hesitou. Tomou aquilo como um sinal e meteu-se dentro do tubo. Mal penetrou nele, começou a escorregar, pois o tubo des- cia com forte declive e tomava direções diferentes, de modo que Manu parecia estar numa montanha russa. Quanto mais o tubo se aprofundava na terra, mais frio ia

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se tornando o ambiente. Até que desembocou numa passagem sub- terrânea, onde reinava uma luz cinzenta, que parecia emanar das próprias paredes. Manu pôs-se de pé, e como estava descalça pôde correr sem fazer o menor barulho. À medida que avançava, começou a ouvir o ruído de passos à sua frente e seguiu o som. A passagem subterrânea ramificava-se em todas as direções, formando uma verdadeira rede sob todo o novo bairro recém- construído. A certa altura, a menina escutou um burburinho de vozes; adiantou-se cautelosamente e espiou às escondidas. Viu à sua frente uma gigantesca sala, em cujo centro havia uma mesa de conferências extraordinariamente longa, à qual es- tavam sentados, em duas fileiras, os homens cinzentos. Ou me- lhor — o pequeno grupo a que estavam reduzidos. Seu aspecto era lamentável: as roupas rasgadas, cortes e gaios nas cabeças ca- recas, as fisionomias alteradas pelo pavor. Seus charutos, porém, continuavam acesos. Manu observou que na extremidade da sala estava entrea- berta uma enorme porta, como de um cofre-forte. Soprava uma corrente de ar gelado. Escutou então um dos homens dizer: — Temos de usar nossas reservas com muita economia, e fazermos racionamento, pois ignoramos o tempo que terão de durar. — Quanto mais cedo começarmos a economizar, tanto me- lhor! — continuou o primeiro. — Se apenas alguns sobreviverem a tal desastre já será o suficiente. Temos de considerar os fatos objetivamente: o número dos presentes ainda é muito grande. É preciso reduzi-lo. Para isso, proponho numerar todos os que aqui se acham e tirar-se a sorte para ver os que ficam. Essa é a voz da razão. A cada um dos homens foi assinalado um número, e o que presidia a sessão tirou do bolso uma moeda: — Vamos jogar cara ou coroa: cara, serão os números pa- res, que vão permanecer; coroa os ímpares — que serão extintos. Atirou a moeda para o ar e apanhou-a: — Cara — ficam os números pares — os outros desapare- cerão. Um lamento ergueu-se entre os perdedores, que se subme- teram no entanto sem protesto à ordem dada. Os ganhadores ar- rancaram-lhes o charuto, e no mesmo instante dissolveram-se em nada. O silêncio que se seguiu foi interrompido pela voz do pre- sidente:

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— Senhores, ainda somos muito numerosos, e vamos repe- tir esta medida de emergência. Por quatro vezes refez-se o cruel processo, até que em volta da grande mesa de conferências não restassem mais que seis ho- mens olhando um para o outro com olhar de aço. Manu observara tudo, horrorizada. Notou que diminuindo o número dos ladrões do tempo diminuía também o frio reinante na sala, agora já quase suportável. — Seis é um mau número — disse um deles. — Chega! — protestou outro. — Não há necessidade de reduzir mais o nosso grupo; se seis não conseguirem sobreviver à catástrofe também três não o conseguirão. Por um momento reinou completo silêncio, até que um de- les comentou: — É uma sorte que a porta do frigorífico tenha ficado en- treaberta, senão nenhuma força deste mundo poderia abri-la e es- taríamos perdidos. — A sorte não é tanta assim — replicou outro — pois en- quanto a porta ficar aberta a temperatura vai subindo na câmara fria; gradativamente as flores das horas começarão a degelar e, como sabem, não poderemos mais impedir que voltem a seus le- gítimos donos. — Não acha que nosso próprio frio é suficiente para con- servar geladas as reservas? — Infelizmente somos apenas seis, e o senhor pode avaliar por si mesmo a quantidade de frio que podemos produzir. Parece- me que fomos precipitados diminuindo nosso grupo de modo tão drástico. Isso não nos trará vantagens. — Teremos de ficar aqui, talvez durante anos, simplesmen- te encarando uns aos outros? — perguntou um deles. Manu começou a refletir. Certamente não tinha cabimento permanecer ali, quieta, à espera. Quando não houvesse mais ho- mens cinzentos as flores das horas degelariam por si, mas no mo- mento eles ainda existiam e continuariam a existir se ela não to- masse uma iniciativa. Mas que era possível fazer, se os frigorífi- cos estavam abertos, de modo que os ladrões podiam abastecer- se à vontade? Cassiopeia pôs-se a arranhá-la, e Manu leu na sua carapaça: — Feche a porta. — É impossível — murmurou a menina. — Ninguém pode movê-la. — Toque com a flor — foi a resposta.

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Manu colocou então cuidadosamente a tartaruga no chão, depois enfiou dentro do casaco a flor, que já começara a murchar e perdera várias pétalas. Sem que os homens cinzentos o percebessem, pôs-se a raste- jar sob a mesa de conferências, e chegou até sua extremidade. Es- tava agora entre os pés dos ladrões do tempo, e o coração batia- lhe como se fosse estourar. Delicadamente, tirou a flor do casaco, prendeu a haste entre os dentes e continuou serpenteando no meio das cadeiras, até alcançar a porta aberta. Tocou-a com a flor ao mesmo tempo que a empurrava. A porta girou silenciosamente nas dobradiças e fechou-se em segui- da com um estrondo de trovão. O som repercutiu repetidamente na grande sala e depois ecoou mil vezes nas passagens subterrâ- neas. Os homens cinzentos, não supondo nem de longe que alguém mais — fora eles próprios — tivesse escapado à imobilidade uni- versal, continuavam sentados, pasmos, olhando para a menina. Sem perder tempo, Manu passou por eles, precipitando-se para a saída da sala. Logo, porém, os ladrões, recuperados do cho- que da surpresa, puseram-se a persegui-la aos gritos: — É aquela abominável menina! É Manu! Ela tem uma flor das horas e temos de tomá-la; é o único meio de nos salvarmos, do contrário será o nosso fim. Enquanto isso. Manu já tinha desaparecido num dos corre- dores e os homens iam no seu encalço, conhecendo muito melhor do que ela todas as ramificações da grande rede sob a terra. A menina corria ao acaso, e por vezes quase ia de encontro aos adversários, mas sempre conseguia evitá-los no momento exato. Cassiopeia também, a seu modo, tomava parte na batalha, sal" vando mais de uma vez Manu de ser apanhada. Embora só pu- desse rastejar lentamente, como conhecia com antecedência o lu- gar em que eles passariam, dava jeito de colocar-se a tempo no meio do caminho, de maneira a fazer com que os homens cinzen- tos tropeçassem e caíssem uns por cima dos outros. Naturalmente,

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ela própria levava pontapés e era chutada de encontro à parede, mas isso não a impedia de continuar a fazer o que sabia com an- tecedência que faria. No ardor da perseguição, alguns deles, loucos de ganância pela flor das horas, perderam seus charutos e desfizeram-se em nada. Finalmente restaram apenas dois. Manu fugiu de volta à sala de conferências e os dois últimos perseguidores tentavam em vão apanhá-la, correndo ao redor da mesa. Vendo que não conseguiam, separaram-se e resolveram cer- car a menina. Já não havia possibilidade de poder escapar, e Manu parou, de costas para a parede, num canto da sala. olhando ater- rorizada para os dois homens que se aproximavam. Segurava a flor das horas apertada contra o peito; restavam apenas três de suas brilhantes pétalas. Um dos homens já esticava a mão para se apoderar da flor quando o outro o empurrou para trás: — Não! a flor é minha! é minha! Na luta que começou entre ambos, um arrancou o charuto da boca do outro, que com um gemido espectral foi-se tornando transparente até se desfazer em nada. O último dos homens cinzentos, com um toco de charuto nos lábios, avançou para Manu e disse-lhe ofegante:

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— Dê-me a flor! Ao falar, no entanto, o charuto caiu de sua boca e rolou no chão. O homem atirou-se ao solo, de braço estendido para apa- nhá-lo, mas não o alcançou. Voltou seu rosto cor de cinza para Manu, tentou com esforço soerguer o corpo e levantando a mão trêmula, murmurou suplicando: — Por favor, querida menina, dê-me a flor! Manu continuava como que pregada naquele canto da sala. Apertou a flor das horas ao coração e sacudiu a cabeça negativa- mente, incapaz de emitir um som. O último dos homens cinzentos acenou devagar e murmurou: — Está bem, agora tudo acabou, tudo acabou. — E extin- guiu-se. Atordoada, imóvel, Manu tinha os olhos fixos no lugar em que ele estivera deitado no solo. Mas Cassiopeia começou a ar- ranhá-la e na sua carapaça surgiram estas palavras: — V á abrir à porta. Manu tocou a porta com a flor, na qual ainda havia uma última pétala, e abriu-a completamente. Com o desaparecimento do último ladrão do tempo, o frio tinha diminuído. De olhos arregalados de espanto, Manu entrou nos gigantescos depósitos onde se enfileiravam as inúmeras flores das horas, como pequeninas taças de vidro, cada uma mais linda que a outra — não havendo duas iguais — que representavam centenas de milhares — talvez milhões — de horas de vida. A atmosfera tornou-se mais quente, e agora parecia a de uma estufa. Então, justo no momento em que a última pétala da flor de Manu começou a cair, levantou-se de repente como que uma tem- pestade. Nuvens de flores das horas rodopiavam em volta da me- nina e a envolviam. Parecia uma cálida ventania de primavera. Era porém um vendaval provido de nuvens de tempo liberado. Como em sonho, Manu olhou em volta e viu Cassiopeia no chão, diante de si. Na carapaça apareceram, luminosas, estas pa- lavras: — Voe para casa, Manu, voe para casa! Foi a última vez que Manu viu Cassiopeia. Dali por diante, a tempestade da floração das horas tornou-se tão forte que car- regou Manu para fora das galerias subterrâneas, voando por cima dos telhados das casas, num imenso turbilhão de flores que cres- cia sempre mais. Era como se a menina fizesse parte de uma dan- ça triunfal acompanhando maravilhosa música, uma dança na qual flutuava para o alto e para baixo, e era impelida numa roda-viva sem fim. Depois, a nuvem da floração das horas baixou suavemente. As flores caíram como flocos de neve sobre o mundo congelado

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e, como flocos de neve, derretiam brandamente, tornando-se de novo invisíveis ao voltarem para seu verdadeiro lugar — o cora- ção dos homens. No mesmo instante reiniciou-se o tempo: tudo despertou e começou a se mover. Os carros tocaram para diante, o guarda de trânsito apitou, os pombos voaram. Ninguém notou que durante a última hora o mundo tinha parado. Tudo se passou num abrir e fechar de olhos. No entanto, algo havia mudado; a diferença é que, de re- pente, agora, uma a uma, as pessoas possuíam todo o tempo do mundo. Naturalmente cada qual se sentia radiante, mas ninguém sabia que, na realidade, era o próprio tempo poupado por um e por outro que de certa forma milagrosa lhes era agora devolvido. Quando Manu retomou consciência, viu-se novamente na grande cidade, naquela rua transversal onde encontrara o velho Beppo. Ali estava ele ainda, exatamente como o tinha deixado, en- costado à vassoura, pensativo, o olhar perdido ao longe, segundo seu hábito. Sem saber por que, Beppo subitamente não tinha mais pressa e ignorava o motivo que o fazia sentir-se tão animado e alegre. — Quem sabe se já poupei as cem mil horas para resgatar Manu? — pensou então. Nesse mesmo instante alguém o puxou pela manga. Voltou- se e viu Manu a seu lado. Não há palavras que possam descrever a alegria desse en- contro! Riam c choravam ao mesmo tempo. Afinal, Beppo pôs a vassoura no ombro, encerrando o trabalho naquele dia, e saíram os dois de braço dado, a caminho do velho anfiteatro. Tinham tanto que contar um ao outro! Na grande cidade, também, reinava um aspecto que não se via há muito: crianças brincavam no meio da rua, enquanto os motoristas obrigados a esperar as observavam sorrindo ou até desciam do carro para juntar-se às brincadeiras. Em toda parte via-se gente parada, conversando amavelmente, indagando com simpatia da saúde e bem-estar uns dos outros. Pessoas que se di- rigiam a seu trabalho agora tinham tempo para admirar as flo-

A res nas jardineiras das janelas ou para dar migalhas aos passa- rinhos. Muita gente, porém, nunca descobriu a quem devia agrade- cer aquela mudança, nem soube o que realmente sucedera duran- te o tempo que pareceu ter passado num abrir e fechar de olhos.

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E mesmo que alguém contasse o que acontecera, a maioria não havia de acreditar. Os únicos que sabiam e acreditavam eram os amigos de Ma- nu; assim, quando Beppo e a menina chegaram ao anfiteatro, ali estavam todos eles à espera: Guido Guia, Paulo, Mássimo, Fran- co. Maria com sua irmãzinha Dedé, Cláudio e as outras crianças; Nino e Liliane, os donos do bar com seu bebê; Nicolau o pedrei- ro, e as demais pessoas da vizinhança, que costumavam visitar Manu e às quais ela gostava de ouvir. Houve uma alegre festa, que durou até o pôr-do-sol e o apa- recimento das primeiras estrelas. Depois, sentaram-se todos nos degraus cobertos de capim e o silêncio se fez. Manu levantou-se então e foi para o centro da grande arena. Lembrou-se da música das esferas, da maravilha da floração das horas, e com voz clara começou a cantar. Enquanto isso, na Mansão de Lugar Nenhum, o tempo tendo recomeçado acordou Mestre Hora de seu primeiro e único sono. Sentado numa cadeira junto à elegante mesinha, ele sorria agora ao observar Manu e seus amigos, através de seus óculos univer- sais. Estava ainda muito pálido e parecia convalescer de uma do- ença grave. Mas seus olhos brilhavam. Nisso, sentiu alguma coisa roçando seus pés. Tirou os óculos, abaixou-se e viu a tartaruga ali a seu lado. — Cassiopeia — disse carinhosamente, coçando-lhe o pes- coço. — Vocês duas saíram-se muito bem! Vai ter de me contar tudo, pois desta vez eu não pude observá-las. — Mais tarde — apareceu nas costas da tartaruga, que deu um espirro. — Você se resfriou. . . Foi sem dúvida por causa do frio da atmosfera criada pelos homens cinzentos — concluiu Mestre Hora. — Você deve estar exausta e gostará de um bom repouso; recolha-se pois à sua carapaça. Cassiopeia saiu por ali rastejando, achou um canto escuro, sossegado, e se recolheu. Nas suas costas, apareceram então de- vagar estas letras, visíveis apenas aos que leram esta história: FIM

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PÓS-ESCRITO DO AUTOR

Alguns de meus leitores talvez ainda tenham muitas pergun- tas a fazer; receio no entanto não poder satisfazê-los. Devo con- fessar que escrevi esta história unicamente de memória, exatamen- te como me foi contada. Jamais conheci Manu e seus amigos; ignoro o que lhes terá acontecido depois, e como se acham hoje. Mesmo em relação à grande cidade, estou reduzido a simples es- peculações. A única coisa que posso acrescentar ao assunto é isto: Aconteceu certa ocasião encontrar-me numa longa viagem (na qual aliás ainda estou) e uma noite ter como companheiro no mesmo compartimento do trem um passageiro muito estranho — estranho no sentido de que era impossível definir sua idade. No começo, julguei estar sentado defronte a um homem muito velho; logo, porém, percebi que devia ter-me enganado, pois ele me pa- receu de repente muito jovem. Contudo, também essa impressão era falsa. De qualquer maneira, contou-me toda a história duran- te nossa longa viagem noturna. Quando terminou, ficamos ambos silenciosos por alguns mo- mentos. O misterioso passageiro acrescentou então algo que pen- so não dever omitir de meus leitores. Eis o que me disse: — Contei-lhe esta história como se tivesse acontecido recen- temente; mas poderia também contá-la como se ainda estivesse por acontecer. Para mim, não há grande diferença. Suponho que ele tenha descido na estação seguinte, pois após algum tempo reparei que estava sozinho no compartimento. Infe- lizmente nunca mais o vi; mas se por acaso tornasse a encontrá- lo. há muita coisa que gostaria de lhe perguntar.