manto diafano nr 1 10jun2016

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Voto de desconfiança Voto de desconfiança Revista eletrônica ∙ nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016 Política e economia nos tempos de Temer Encaixotando Brasília Neoliberalismo

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Voto de desconfiançaVoto de desconfiança

Revista eletrônica ∙ nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016

Política e economia nos tempos de Temer

Encaixotando Brasília

Neoliberalismo

nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

Revista eletrônica Nº 1 ∙ 10 jun 2016 ∙ Brasília/DF

VERBENA EDITORA

CONSELHO EDITORIAL:Ronaldo Conde AguiarHenrique Carlos de Oliveira de CastroArnaldo Barbosa BrandãoArno Vogel

COLABORADORESRodrigo Stumpf GonzálezHenrique Carlos de Oliveira de CastroArnaldo Barbosa Brandão

EDITORESBenício SchmidtFabiano Cardoso

DIRETOR EXECUTIVOCassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICOSimone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDAwww.verbenaeditora.com.br

5Política e economia nos tempos de Temer

7Presidencialismo de coalizão com voto de desconfiança

10Neoliberalismo

12Encaixotando Brasília

14Leia-se com um barulho desses

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nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

A Verbena Editora é uma casa editorial formada por professores e pesquisadores nas diversas áreas das Ciências Sociais, destinada a publicar materiais de referência para

as discussões políticas que se fazem necessárias no momento atual. Acreditamos que a democracia é construída a partir do entendimento coletivo das necessidades sociais e, portanto, só pode florescer em um ambiente de diálogo. Para o fortalecimento do diálogo e da democracia, entendemos que é preciso construir um quadro analítico que se distancie do atual momento em que a mídia é pautada por uma intensa batalha de narrativas, resultante da respectiva disputa acirrada pelo poder político.

Diante dessa perspectiva, apresentamos nossa contribuição através da revista semanal “O Manto Diáfano”, título que faz referência à citação de Eça de Queirós:

“Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.

Enquanto concebíamos este projeto, esta frase nos pareceu exemplificar com bastante picardia o momento atual. A citação é oriunda do romance “A Relíquia”, e tornou-se seu subtítulo. Este romance foi publicado em 1887, na forma de folhetins da Gazeta de Notícias da cidade do Porto. Por todas as referências, nos pareceu uma forma de homenagear o célebre autor português e também destacar nossa linha editorial, destinada a discutir política e literatura. Além de ser uma provocação oportuna e necessária: a de definirmos qual o lado estamos dispostos a encarar nesta realidade atual – a nudez forte da verdade, ou o manto diáfano da fantasia?

Esperamos trazer aos leitores, todas as semanas, artigos com análises da situação política e econômica do Brasil e do mundo, de diferentes perspectivas, desde que democráticas. Também aspiramos discutir e disponibilizar ao público um pouco da produção literária atual em suas diversas faces. Neste sentido, estaremos publicando sempre trechos de livros que tratem de questões atuais e também, a cada edição um capítulo de uma novela literária, reverenciando e revivendo a tradição dos periódicos antigos, dos quais tantos bons trabalhos vieram a público, incluindo aí o clássico de Eça de Queirós de quem tomamos emprestada a citação.

Desejamos, ao longo das edições, que nosso veículo semanal se construa como um ponto de partida para as necessárias discussões do momento atual, e acreditamos contribuir com isto, dentro dos limites de nossas capacidades e esforços com a construção de um futuro democrático e solidário para o país.

Os Editores

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nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

EDITORIAL

Nesse número um de nossa revista eletrônica e pensando em sacudir a poeira de dis-putas rasas e muitas vezes inúteis, abordamos alguns ângulos desafiadores da con-

juntura política brasileira. O governo interino de Michel Temer, ainda em disputa por fatos e evidências que o levarão, ou não, à perenidade curta a expirar em 2018, introduz sutis mudanças nos procedimentos de formação do próprio governo do País.

Do presidencialismo de coalizão vigente, Temer comanda um ajuste ao parlamentarismo ainda não consagrado legalmente, mas em operação prática. Faz uma apresentação de-mandando a presença de técnicos, primordialmente, para ceder ministérios a 11 partidos políticos. Praticamente, divide setorialmente a administração federal, conferindo a eco-nomia a nomes bem conhecidos e com razoável aprovação pública, devida a trajetórias e experiências anteriores no próprio Estado; reservando aos políticos profissionais os de-mais comandos. Difícil arranjo, pois nasce de um governo que não apresentou programa definido em 2014 e vê sua crise de legitimidade atingida por graves decorrências econô-micas e financeiras em 2018. Daí nasce um governo interino, também sem detalhados programas, mas com metas clássicas de ajuste fiscal, emagrecimento dos gastos públicos e redefinição de padrões para a continuidade de políticas sociais.

A incerteza corre solta pelo Planalto, gerando apatia, desânimo, ansiedade e alguma forte esperança por parte de diferentes setores da sociedade brasileira. O momento é de rápido amadurecimento de projetos de reforma política, incluindo aí a possibilidade do desvoto, equivalente ao recall dos sistemas parlamentaristas. Não temos essa tradição, mas nada nos impede de adotá-la como norma. Todo este material navega no âmbito de um con-texto extremamente debatido e questionado por sua eficácia, fortemente embasado em políticas conhecidas como expressão do neoliberalismo. Terminamos com uma alusão romântica à construção de Brasília, cuja criação está permanentemente sendo posta em dúvidas por especialistas e pelo público. Uma alusão ao nosso permanente processo de construção da nacionalidade, de nossa identidade.

Boa leitura e longa vida ao Manto Diáfano!

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nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

Um novo governo, ainda interino, assumiu o poder em 12 deste maio de 2016. Não se tra-

ta de uma simples mudança, ou solução passageira a inúmeros impasses que a política e a economia bra-sileiras enfrentam.

Politicamente, a interrupção do Governo Dilma começou pelo pedido de “recontagem dos votos nas eleições de 2014”, encaminhado pelo PSDB, devi-damente negado pelo TSE. Em seguida foi proto-colado pedido de cassação da chapa Dilma-Temer, pela prestação de contas de campanha, programas enganosos e assim por diante. Isso está em processo, agora sob o comando de Gilmar Mendes, presidente do TSE. Matéria pendente.

Além disso, houve muitos movimentos de opi-nião contra os desmandos do governo, além do início do desvelamento das pedaladas fiscais, que atingiram basicamente o FGTS, programas rela-tivos à safra agrícola corrente, o programa Minha Casa Minha Vida e, principalmente os repasses ao BNDES sob a forma de empréstimos subsidiados a empresas nacionais, a chamada “Bolsa Empresário”. O total envolvido nestes repasses legalmente inde-vidos chegou a R$ 55,8 bilhões, sendo que para os empresários atingiu o montante de 17,3 bilhões. A Bolsa Escola não esteve envolvida nestas operações,

Política e economia nos tempos de Temer

ao contrário do propagado pelo Governo Dilma, como justificativa das operações.

Isso justificou o pedido de impedimento da pre-sidente, iniciado por três juristas de São Paulo junto ao STF e depois levado ao Congresso, em sucessivas votações, suspendendo o mandato da eleita por até 180 dias.

Assume um novo governo, sob a liderança do Vice-Presidente Temer, com a promessa de recons-truir o sistema de decisões nacionais, baseado em um modelo inicialmente técnico, provido por espe-cialistas em detrimento dos tradicionais ministérios comandados por políticos profissionais. Todavia, as forças que sustentavam o Governo Dilma, capita-neadas pelo PT, ameaçaram não aprovar nenhuma iniciativa de Temer junto ao Congresso Nacional. Dado o fato, o novo grupo dirigente, rapidamente, se recompôs com os parlamentares instalando mi-nistros de onze partidos políticos, seguindo o velho e consagrado método brasileiro de partilha política da administração federal. O que seria um “novo pre-sidencialismo” sob Temer passou a ser um “embrio-nário parlamentarismo”, sob a mesma batuta. Não é desprezível este detalhe, para considerações sobre o presente e o futuro do sistema político brasileiro!

O ambiente político será desanuviado dos ex-cessos de clivagens ideológicas, em troca de maior pragmatismo das urgências sobre decisões necessá-rias, no sentido de restabelecer padrões mínimos de normalidade no funcionamento da máquina estatal. Liberais, mais do que intervencionistas, os novos dirigentes, apoiados em sólida maioria parlamentar, vão deflagrar projetos de amplas reformas e ações de dinamização na participação internacional do país, principalmente no âmbito do comércio internacio-nal. De fato, mesmo que seja pelo movimento base-ado na Lei da Gravidade, o parlamentarismo deve avançar como modelo decisório, independente do presidencialismo legalmente vigente; como, aliás,

Benício Schmidt

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil / Fotos Públicas / 31 mai 2016

nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

Como será feita a combinação entre a austeridade, desestatização e manutenção das

políticas de bem-estar social? Problema grave de engenharia política e econômica.

ficou muito claro no discurso inaugural de Michel Temer como presidente interino.

No tocante à economia também haverá fortes mudanças de direção. A redução dos gastos públicos com vistas à diminuição da dívida pública (hoje em 75% do PIB), à renegociação das dívidas de Estados e Municípios frente à União, a abertura da econo-mia aos investimentos estrangeiros, à redefinição da política de concessões nos serviços públicos e à projetada venda de ativos públicos ao capital pri-vado, nacional e estrangeiro. Outro aspecto central será o debate sobre a desvinculação das receitas da União (DRU), do atual nível de 20% para 30%, com

isso afetando principalmente os gastos federais com educação e saúde, hoje com alocação obrigatória de recursos orçamentários.

Há, ainda nos subterrâneos do Palácio do Pla-nalto, projetos de mudanças que afetam aos traba-lhadores. A Lei de Greve do funcionalismo público, ainda a ser regulamentada, deverá definir setores es-senciais e punições seletivas à prática. Nas relações de trabalho, em geral, é possível identificar movi-mentos em direção à prevalência das negociações frente à “legislação rígida“, identificada na CLT; com extensões sobre a possível terceirização ampliada na

produção econômica. Há uma proposta, ainda em-brionária, de extinção da unicidade sindical e do imposto sindical, com claros efeitos sobre a vida das organizações sindicais atuais.

Quanto à política de elevação real do salário mí-nimo – prática afirmativa dos últimos anos – há uma proposta de que ela seja substituída por uma regra que seja sustentável no longo prazo e atue de forma contracíclica. Regra esta ainda indefinida.

Todas estas reformulações, ainda sendo gestadas, serão certamente confrontadas com as condições reais econômicas e sociais. Pela primeira vez, por exemplo, a demanda de recuperação judicial chega

ao nível das grandes empresas, em 2015-16. Fenômeno que tem atin-gido majoritariamente a pequenas e médias, chega agora ao caso de grandes empresas, geralmente li-gadas ao circuito produtivo do se-tor de óleo e gás, em conseqüência direta do desmantelamento deste complexo produtivo, em todo o território nacional. A isso pode ser acrescentado o resistente endivida-mento das famílias, atingindo cerca

de 68% delas, como desenlace do crescimento nega-tivo do PIB e do desemprego.

Como será feita a combinação entre a austeri-dade, desestatização e manutenção das políticas de bem-estar social? Problema grave de engenharia po-lítica e econômica.

Aos trabalhadores e suas entidades representati-vas cabe o diagnóstico deste novo ambiente criado a partir da substituição de Dilma Presidencialista por Temer Parlamentarista. Não é só uma mudança simbólica, mas de regime de negociação e decisão, com claras opções ideológicas distintas. ■

www.verbenaeditora.com.br

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Os dois sistemas de governo clássicos, parla-mentarismo e presidencialismo, se distin-

guem pela natureza do cargo e do mandato do Poder Executivo. Enquanto no presidencialismo a mesma pessoa é Chefe de Estado e Chefe de Governo, com eleição direta e mandato fixo, no parlamentarismo elas estão separadas e o Chefe de Governo, tem es-colha e permanência no cargo dependente do apoio de uma maioria do legislativo.

Além desta distinção, conforme os modelos de democracia de Arend Lipjhart, diferenciam-se de-mocracias majoritárias, baseadas na regra de pre-dominância da vontade da maioria (parlamentar) e democracias consensuais, nas quais as decisões são tomadas por amplos acordos entre setores divergen-tes. Enquanto há parlamentarismos consensuais e majoritários, o presidencialismo seria predominan-temente majoritário.

O Brasil é um modelo híbrido. Como presiden-cialismo tem a eleição do Chefe do Poder Executi-vo por maioria absoluta com mandato fixo. Porém a fragmentação partidária no Congresso Nacional exige uma composição com um número grande de partidos, o que levou à denominação de Presiden-cialismo de Coalizão, o que nos afastaria do modelo majoritário para se aproximar do consensual.

O processo de afastamento da Presidente Dilma, em curso no Congresso provoca mudanças em am-bos os aspectos, se constituindo em uma verdadeira emenda constitucional informal, criada pelas deci-sões de ambas as casas do legislativo, com o bene-plácito do STF.

Ao se admitir a aplicação do afastamento por motivações predominantemente de avaliação polí-tica dos resultados do Governo, adicionada da res-ponsabilização da Presidente por atos não pratica-dos por ela, mas por auxiliares e mesmo membros do seu partido que não ocupam cargos públicos, se reforça a natureza de norma penal em branco da acusação que leva ao afastamento, cujo preenchi-mento não se dá por lei adicional, mas pelo simples convencimento de uma maioria qualificada da ava-liação negativa dos atos não apenas da Presidente, mas de seu governo e partido.

Ora, tal julgamento de natureza exclusivamente política é característico do voto de desconfiança do parlamentarismo, em que uma maioria pode afastar o Chefe de Executivo por convencimento político que ele não deve mais permanecer no cargo.

Os processos ocorridos na Câmara e em curso no Senado para julgamento da presidente são teatrais,

Presidencialismo de coalizão com voto de desconfiançaComo o afastamento de Dilma Roussef é uma reforma constitucional disfarçada

Rodrigo Stumpf González – Cientista Político

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pouco ou nada tem a ver com julgamento de infra-ções à lei. As próprias declarações dos parlamen-tares e a escolha de um representante da oposição para relator no Senado demonstram que a decisão política já está tomada, seguindo-se o rito para dis-

farçar a natureza puramente política do convenci-mento da maioria pelo afastamento. Trata-se da crônica de uma morte anunciada, em que todos os personagens sabem o desfecho final, mas não que-rem manifestá-lo publicamente perante a vítima.

Desta forma se está instalando na constituição brasileira um voto de desconfiança por maioria qualificada, que permite substituir o Chefe do Poder Executivo antes do fim do mandato. A criação do precedente, chancelado pela inércia do STF, opera com emenda constitucional tácita que, por um lado, aproxima o presidencialismo brasileiro do parla-mentarismo, quebrando a regra do mandato fixo e instaurando a responsabilidade do executivo peran-te o legislativo e não perante o eleitorado. No futuro, qualquer grupo parlamentar capaz de agregar dois terços de ambas as casas pode almejar substituir o presidente pelo vice, ou ambos para convocar novas eleições ou escolher indiretamente um substituto. A definição de limite de mandato torna-se condicio-nal à manutenção de apoio da maioria qualificada e não de acordo com o texto constitucional. Poderia se argumentar que o STF pode mudar sua interpre-tação, mas isto seria pouco provável sem que haja uma renovação da maioria dos membros da corte, o que pode demorar décadas para ocorrer, tendo em vista a idade dos atuais ministros e o aumento da idade para aposentadoria compulsória

Por outro lado, muda o modelo democrático bra-sileiro, que deixa de ser consensual para se tornar majoritário, uma vez que a Constituição deixa de ser

Trata-se da crônica de uma morte anunciada, em que todos os personagens sabem o desfecho

final, mas não querem manifestá-lo publicamente perante a vítima.

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O poderoso presidencialista De Gaulle rendeu-se a ele para acabar com as barricadas nas ruas em 68. E a Grécia e Islân-dia foram os últimos episódios no caso na Europa. No Brasil com fragilidades democráticas indiscutíveis, nos dez casos de presidentes eleitos (incluindo Tancredo, as duas gestões Lula e duas Dilma), em cinco acaba-mos experimentando a solução do vice ou presidente interino. Não é pouco e é a prova que nos-so presidencialismo híbrido é a causa da crise e não a solução do voto de desconfiança. Toda se-mente híbrida pode nos causar surpresas, pois não é genuína. A polinização é inevitável desde que haja abelhas, marimbondos, beija flores e besouros.

Os EUA souberam equilibrar o voto universal para presidente com sua diversidade em tamanho e tradição com o peso dos votos dos delegados, como assistimos mais uma vez. Nós não, trans-formamos imberbes territórios em estados onde os votos para

senador valem mais de dez vezes que os de SP, MG e RJ, para ficar somente nos maiores. E ficamos com o gosto amargo do experi-mento, elegendo no Amapá um desprestigiado senador do Mara-nhão e um novato do Paraná, de um só golpe de marketing. Pode-ria ser feito em Roraima, o menor deles, ou Rondônia. E isto sem contar o desiquilíbrio que ocorre para a Assembleia dos deputa-dos. Noutros termos, copiamos o modelo inicial Americano, mas não seus ajustes.

Na prática supervalorizamos o voto presidencialista (este uni-versal). Introduzimos oportu-nismo nas campanhas, onde se pode prometer no final de linha três refeições por dia para cada habitante sem explicar como. E nos últimos dois eventos a ele-mentar obrigação de apresentar um programa de governo não foi cumprida. (Está na hora do TSE declarar em suas normas que o candidato a presidente, governa-dor e prefeito que não apresentar seu programa detalhado e com

O voto de desconfiança é uma evolução civilizatória.Ricardo Prata Soares – Sociólogo e Cientista Político

responsabilidade fiscal, fica ex-cluído automaticamente da elei-ção). Basta isto para impedir o estelionato eleitoral. E esquece-mos que o Congresso é o único bastião com representação de todas as forças vivas da nação, com sua diversidade de região, de interesses, de experiência, de pluripartidarismo e de soluções de sustentabilidade.

Entendo que a correção desta hibridez presidencialista é a for-malização do ‘desvoto’, como na proposta de Fábio Konder Com-parato, a cada dois anos e duran-te a eleição regulamentar. Para presidentes e governadores a re-visão seria na eleição para pre-feito e vice-versa. Isto elimina-ria este recurso de ficar pedindo impeachment a cada presidente eleito meses depois da posse. E se o presidente tiver rejeição supe-rior a 50%, o vice assume interi-namente. Afinal vice é para estas coisas mesmo como nos ensina nossa trajetória (agora no fun-damental II) de aprendizado em democracia representativa. ■

amparo para as minorias, permitindo-se a tomada de decisões pela maioria inclusive com a flexibiliza-ção da constituição por via interpretativa.

O leitor pode perguntar-se então, se o afastamen-to de Dilma é um golpe. Depende da concepção de democracia subjacente. Se conforme o modelo con-sensual considerarmos que é necessário um estrito respeito às regras do jogo, estamos diante de uma ruptura institucional. Se a perspectiva for do mode-

lo majoritário, a maioria parlamentar sempre tem razão. Sua legitimidade é a confiança atribuída aos membros do poder legislativo.

Porém, mesmo nos países que adotam modelo majoritário, esta é a regra do jogo, que não costuma ser mudada conforme muda o vento. O problema de inovações feitas no calor da disputa política é seu efeito de Caixa de Pandora. Depois de aberta, não se pode fechá-la e o futuro torna-se menos previsível. ■

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Neoliberalismo

Um tema que tem sido tratado nos meios aca-dêmicos de forma recorrente é o chamado

neoliberalismo, termo utilizado indiscriminada-mente para abranger uma série de ações, posturas, posições, atitudes e políticas1. No entanto, o debate sobre o conceito propriamente dito tem sido feito na medida inversa da polêmica. De fato, a maioria dos debates ou tem se limitado a enumerar as suas carac-terísticas e as suas origens, ou o tem tratado como um neologismo, derivado do liberalismo clássico2.

Isso não implica a inexistência de conceito. En-tre as tentativas de sua conceituação, duas me pare-cem adequadas, por sua amplitude e objetividade. A primeira é dada por Beeson e Firth, ao analisa-rem o impacto das reformas neoliberais nas políti-cas públicas na Austrália dos anos 1980. Segundo os autores, although not simply an economic doctrine, ‘neoliberalism’ is a convenient shorthand for a ran-ge of ideas, practices and approaches to the conduct of government that are associated with a normative preference for small states and a reliance on market mechanisms to determine economic outcomes. (BEE-SON & FIRTH, 1998, p. 215). A definição, no entan-to, peca porque se limita basicamente a caracterizar o fenômeno. Essa limitação, contraditoriamente, é a sua maior virtude, uma vez que consegue deixar claro o foco do estudo.

A segunda definição é dada em recente livro de Lynne Phillips. Como os autores anteriores, ele carac-teriza o neoliberalismo como um processo de crescen-te confiança nos mecanismos de mercado para a or-ganização da sociedade e das atividades econômicas. No entanto, ele vai além. Utilizando Hans Overbeek e Kees van der Pijl, ele define neoliberalismo como (...) the current profit-seeking project of transnational

capital that derives its moral support from neoconser-vative values (PHILLIPS, 1998, p. xvi). Essa definição é útil basicamente por reconhecer o neoliberalismo como um projeto político de determinado grupo so-cial, que necessita se tornar hegemônico. Para tanto, precisa fazer parte da vida cotidiana das pessoas, seja pela promessa de que os problemas sociais e econô-micos seriam resolvidos, seja por utilizar valores já arraigados na sociedade, como a defesa da proprieda-de privada. Por outro lado, por entendê-lo como um projeto político, o neoliberalismo seria dependente, entre outras coisas, da estrutura socioeconômica da sociedade e da sua inserção no mercado internacio-nal. Em suma, haveria diferentes neoliberalismos.

A importância da definição de Lynne Phillips é que abre caminho para que se estudem empirica-mente os diferentes tipos de neoliberalismos exis-tentes. Isso não é menor, uma vez que, na maioria dos estudos, o neoliberalismo tem sido tratado como um fenômeno macro, sem que sejam estuda-dos os seus aspectos micro, ou seja, em pouco ou nada se estudam as opiniões das pessoas. Assim, um estudo de cultura política que trate o neolibe-ralismo deve, além de fazer uma revisão com vistas a situar academicamente o problema, formar bases para a construção de indicadores que possam servir para o estudo.

De fato, já se tornou senso comum a caracteri-zação da nova conformação que o mundo experi-menta de neoliberal3. Segundo os seus defensores, o neoliberalismo significaria a redenção da sociedade, na medida que permitiria o aumento da produção e da riqueza (MAMALAKIS, 1995; SHEARMUR, 1993; STUDLAR, McALLISTER & ASCUI, 1990). Para tanto, bastaria reorganizar a sociedade de acor-

Henrique Carlos de Oliveira de Castro – Cientista Político

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nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

do com as suas “formas naturais”: haveria tarefas típicas de Estado e tarefas típicas da sociedade civil. E mesmo os defensores dessa visão naturalista da sociedade não conseguem chegar a um acordo: se há um consenso entre eles de que a economia estaria entre as tarefas típicas da sociedade civil, não con-seguem decidir quais seriam as naturais ao Estado: até as classicamente defendidas como inerentes a ele – segurança, saúde, educação – deveriam ser geridas segundo as regras do mercado.

No entanto, a sociedade humana é fruto da ati-vidade deliberada. Em outras palavras, mesmo com o perigo de ser redundante, deve-se reafirmar que a sociedade humana é uma construção humana. Não existe uma forma natural de organização social, mas ela é uma construção intelectual, no sentido de que os diferentes tipos de organização da sociedade sur-gem de proposições humanas para a resolução de problemas humanos concretos4. Como exemplos da atividade intelectual humana na construção da sociedade, podemos citar dois grandes fenômenos políticos deste século: a Revolução Russa de 1917 e a solução proposta para a Depressão de 1930. A Revolução Russa de 1917 foi construída com base nas propostas de Lênin e de outros intelectuais or-gânicos do movimento socialista europeu da virada do século. As obras “O desenvolvimento do Capita-lismo na Rússia” e “O imperialismo, Fase Superior do Capitalismo” de Lênin, por exemplo, foram de singular valia para explicar como poderia, ao con-trário do que Marx propunha, um país atrasado como a Rússia ser o primeiro a experimentar uma Revolução Socialista. Quanto à Depressão de 1930,

a solução foi encontrada por um economista cha-mado Keynes, que propugnou o fim do capitalismo concorrencial e defendeu a necessidade da presença do Estado para regular as distorções que o próprio desenvolvimento do capitalismo acarreta.

Naturalmente entender que a sociedade humana é uma construção não implica uma visão conspira-tiva de mundo, que enxerga meia dúzia de pessoas, em um gabinete enfumaçado e secreto, propondo e executando mudanças no mundo (HUGON, 1999). O papel do intelectual nos processos de mudança – como foi o caso da implementação das políticas neoliberais – está justamente em sua possibilidade de entender o mundo que o cerca e apontar solu-ções, que poderão (ou não) ter viabilidade política e social. Neste sentido, há intencionalidade na ação política e na construção histórica, e fenômeno neo-liberal não é exceção. ■

1 David A. Baldwin, na introdução de livro por ele editado, em que é feito um debate entre neoliberalismo e neorrealismo, manifesta a sua inconfor-midade com o uso indiscriminado dos termos, que estariam (...) so deeply embedded in the literature that litle can be done (BALDWIN, 1993, p.10).

2 Um belo apanhado sobre o neoliberalismo, que reproduz as duas tendên-cias acima enumeradas pode ser encontrado no “Dossiê liberalismo/neo-liberalismo” da Revista USP, número 17, de 1993.

3 Na caracterização de governos, o termo neoliberal geralmente tem sido utilizado de forma negativa. No início do seu primeiro mandato, o Presi-dente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em um misto de irritação e desagravo, que continuava sendo social-democrata, que o Brasil não era a Inglaterra e que seu governo não poderia ser taxado de neoliberal, sendo, na realidade, “neossocial”. Fosse um político qualquer, não o renomado sociólogo e cientista político Fernando Henrique Cardoso, o inusitado da criação deste novo termo poderia ser considerado apenas uma bobagem a mais. No entanto, a reação do presidente indica quão negativo é o termo.

4 Uma análise do neoliberalismo como opção política e construção históri-ca pode ser encontrada em Hugon (1999).

Retomando a tradição dos an-tigos folhetins, a revista O Manto Diáfano traz a novela “Encaixo-tando Brasília”, oriunda do ro-mance homônimo de Arnaldo Barbosa Brandão, publicado pela Verbena Editora em 2012.

O texto de Arnaldo conta a história política de Brasília a par-tir de uma ficção desenvolvida no período da posse do primeiro

governador da cidade. Com uma narrativa ágil, permeada por tira-das de humor e picardia que ca-racterizam a escrita do autor, Ar-naldo nos leva por uma narrativa alucinante, com um desfecho inu-sitado, onde os personagens e suas características psicológicas são apresentados em contraste com a organização do espaço urbano e da vida política da cidade.

Nos próximos números você poderá acompanhar o desenrolar desta novela, esperamos que apro-veitem a leitura. Aos leitores mais ávidos, que desejem encontrar-se rapidamente com o desenrolar da história, lembramos que o livro Encaixotando Brasília encontra--se disponível para aquisição em nossa loja virtual e nas melhores livrarias do país.

Encaixotando Brasília

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Capítulo 1

ENCAIXOTANDOBRASÍLIA

Ele soltou mais uma vez sua risadinha e completou:

— Rapaz, estás mal da cabeça, continuas confundindo ficção com realidade.

Se eu tivesse uma risadinha como aque-la guardada no bolso da calça azul, que vestia todos os dias, jamais teria me estrepado, não estaria agora nesta situação, tomando estes re-médios de tarja preta e misturando ficção com realidade, como diz o Gaúcho. Pensei em come-çar o tal discurso com um verso do João Cabral, que ele vivia declamando em altos brados pelo pátio da prisão, quando estávamos no Oiapo-que. Antes que dormisse de novo, rabisquei em letra de forma num papelzinho e botei debaixo da caixinha de Haldol na mesinha de cabeceira:

“Cultivar o deserto como um pomar as avessas.”

Os lobos-guarás terminavam sua ronda noturna, silenciosos como hienas, a maio-ria estava debaixo das cagaiteiras que ficavam próximas ao Palácio do Buriti, onde hoje está o Faraó curtindo sua merecida solidão, naque-le caixotão horrível de mármore branco. Mais pra cima, continua lá o cimo do morro, não há mais vestígios dos pequizeiros, cagaitas e lobei-ras, limparam tudo para botar em pé a cruz da primeira missa, temos esse hábito: rezar mis-

O sonho

Terminada a primeira eleição para gover-nador de Brasília, meu telefone tocou na ma-drugada. Era o Gaúcho. Olhei o relógio, vi de relance a escuridão estrelada e decretei: “mui-to cedo, o governador que se dane”. Lua cheia, noite clara no cerrado, vagalumes pra todo lado, o sono escapou por entre as estrelas mais uma vez, noites claras deixam-me excitado, aí perco o sono e começo a rever os fantasmas do passado, até que aparecem as primeiras man-chas vermelhas no céu para os lados do Lago Paranoá. Lembro que o Gaúcho tocou sua pri-meira alvorada às seis, logo voltaria a encher o saco, tinha a mania de imitar uma corneta quando me ligava cedo, fazia de sacanagem só para me ouvir dizer palavrões. Queria que es-crevesse o discurso de posse, aí veio com aque-la conversa fiada de sempre:

— Quem melhor do que você, compa-nheiro, meu discípulo de literatura? Olha, quero um discurso a La Fidel, delirante e de-morado, com muitos trovões e relâmpagos, se não chover depois não é culpa nossa, é dos americanos.

— Que Fidel porra nenhuma, nunca gos-tei de ditadores caribenhos, só faço exceção ao coronel Aureliano Buendía, aquele que fez trinta e duas revoluções e perdeu todas.

Arnaldo Barbosa brandão

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sas, derrubar as árvores e tacar fogo no capim, é uma maneira de dizer a todos que chegamos. Num passado, nem tão distante, era ali que os boiadeiros costumavam juntar o gado à tardi-nha, quando o bem-te-vi empoleirava-se no galho mais alto e entoava seu canto de guerra e o gavião fazia seu rasante na ânsia de pegar os filhotes do bem-te-vi. De lá era possível avistar toda a região em volta, desde os morrotes da região de Sobradinho, que impediam a visão de Planaltina, até o vale onde corriam o Vicen-te Pires, o Bananal e o Torto, que, por muito tempo, foram o bebedouro do gado, depois la-vanderia pública e agora, bem depauperados, ainda contribuem com o Lago Paranoá. Era o ponto mais alto, não havia dúvida, dali dava pra sonhar com uma cidade paradisíaca, ou seja, com uma anticidade.

— Um bom lugar para botar a caixa d’água, disse o coronel que acompanhava JK desde Be-lo-Horizonte.

Os outros homens riram, como se a suges-tão fosse brincadeira, JK deu uma gargalhada e aproveitou para destacar-se do grupo, ao lado do coronel e do engenheiro magro. Logo atrás vi-nha um homem grandalhão e louro, o único que usava botas, chapéu de couro e calça de monta-ria. Chegou a cavalo e falava alto, trazia na garu-pa uma mulher alourada de cabelos aos ventos, que, pelas roupas, parecia ser cigana. JK perce-beu a presença do homem grandalhão e via-se, pela saudação, que eram amigos próximos.

— Nonô, acho que esta porra é uma ilha, o horizonte me diz que é uma ilha. Já pensou bem no que você está querendo criar? Uma ci-dade pra políticos, que deste matagal vão de-cidir sobre a vida do meu compadre que mora no Urubuquaquá, nos cafundós de Minas, dis-se o homem, ao mesmo tempo em que apeava.

— Não é ilha não, temos um mapa, é terra firme, embora nesta vastidão quem pode asse-gurar alguma coisa? Atualmente tudo é decidi-do no Rio, de frente pro mar, talvez seja melhor decidir de frente para o matagal.

— Nonô, você por acaso acha que estes ca-ras vão morar aqui? Vão morar de frente pro mar, isto sim, e é por lá que tomarão as deci-sões. Aposto uma cerveja que isto aqui é uma ilha, sinto o cheiro de água salgada por perto, ou então, um dia foi mar. Em todo caso aposta-mos uma cerveja. Onde será que se toma uma cerveja por aqui?

— O mais perto é em Luziânia, um lugare-jo onde tiravam ouro, ou então em Chapadi-nha, melhor tomarmos esta cerveja no Catete mesmo, lá é garantido, cerveja gelada, sinuca e pouca amolação. Bernardo, você vai no meu avião para o Rio, aproveitamos pra conversar, precisamos de um goiano como você para fa-zer a Belém-Brasília andar, e depois quem sabe não se candidata a governador de Goiás.

— Não me deseje uma desgraça dessas, homem.

JK deu outra gargalhada. Os quatro eram das Gerais, território mapeado por Guimarães Rosa, que sem saber de nada andava ali por perto, revestindo pedrisco por pedrisco as pa-redes de sua grande obra, não queria moderni-zar nada, ao contrário, pensava em restituir às palavras seu sentido original, ou como ele disse poucos anos antes de morrer:

“Eu queria libertar o homem do peso da temporalidade, devolver-lhe a vida na sua for-ma original”.

Não queria pouco. Acreditava que as pa-lavras têm vida e seus personagens viviam de verdade, em um mundo paralelo. Vai se saber? Afinal o homem tinha partes com o anjo-dos--abismos-insondáveis. JK também não queria pouco, sonhava com a capital de um império nos trópicos e tinha em mente o único que ti-nha dado certo, só que há milhares de anos. O Brasil é assim mesmo, sempre se espera demais dele, não percebem que estamos na periferia do mundo há muitos séculos, não é a toa que nos botaram na parte de baixo do mapa-mún-di, os que desenham os mapas estão sempre no centro ou na parte de cima. ■

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

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nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

Estava sentado, ainda tentando decidir se pro-varia o chá preto a inglesa, com leite, ou se

não testaria a hipótese da intolerância à lactose e partiria para o chá preto convencional. Em princí-pio parecem decisões simplórias, mas a quantidade de tipos de chás nesta padaria de quase esquina faz da tarefa algo mais difícil do que escolher um livro para ler apenas olhando a lombada. O fato de achar que um chá de erva-doce não combina com leite faz com que, para um dia quase frio como o de hoje, um chá de hibisco possa ser mais salutar; ou ainda, por conta das notícias que, como dizia meu avô, de tão ruins nos causam depressão cívica, talvez um chá de melissa ou camomila seja mais adequado; em todo caso, há ainda o chá de guaco que, além de sabo-roso, é algo anti-inflamatório, ou ainda o de alfava-ca, saboroso e cheiroso. De qualquer forma, talvez o melhor seja manter-se junto aos clássicos e o de cidreira é desses, quase um Joyce.

Adalberto chegou com uma certa inquietação. Demorou a entrar na padaria porque não decidia quantas tragadas dar no cigarro antes de apagá-lo ao mesmo tempo em que, com a mão, sinalizava para que eu esperasse porque queria falar algo comigo. Adalberto é desses que sempre têm o que falar; é sempre importante o que tem a dizer, mas, ao mes-mo tempo, faz preâmbulos, inserções, muda de as-sunto, esquece o que ia dizer, para, finalmente, dizer e depois ficar perguntando: “não é, não é?”. Quando finalmente decidiu-se a entrar, depois de dar quatro tragadas finais no careta, já começou dando bons dias aos que estavam dentro da padaria, atitude não muito comum nesse bairro de classe média típica.

Puxou uma cadeira da mesa ao lado e sentou-se junto a mim. Colocou o celular em cima da mesa e pe-diu para prepararem um café e um misto no pão fran-cês. Olhou pra mim, com olhos arregalados e disse:

— E aí, meu querido, você viu essa? Que trinta por-cento dos brasileiros nunca compraram um livro!?

Acho que fiquei tão espantado com o início do assunto direto, sem rodeios, que até esqueci de dizer bom dia e já fui logo entrando no assunto também.

— Sério? Onde você leu isso?— Ah, saiu aí, em vários jornais.Por mais que as pesquisas sobre leitura no Brasil

sempre acabem em respostas desastrosas, desalen-tadoras e desesperançosas, sempre me assusto com esses índices baixos. Mas em todo caso, esta me pa-receu mais uma pesquisa dentre tantas outras e por isso ainda havia a vaga esperança de que pudesse ser um dado antigo, uma pesquisa ressuscitada de algum compartilhamento sem critério das redes so-ciais. Adalberto continuou:

— Diz também que o brasileiro não lê nem cinco livros por ano. E que o livro mais lido em qualquer tipo de lista é A Bíblia. Porra! Não leem, e quando leem, leem A Bíblia? Aí fica difícil!

— Ah, vai! O problema não é ler A Bíblia. Mas interpretar e achar que aquilo é verdade! Mas al-gumas pesquisas de leitura sempre me incomoda-ram no quesito qualidade. Você há de concordar comigo que ler Paulo Coelho é bem diferente de ler Saramago, né?

— É, mas como que se avalia isso em pesquisa de opinião?

Leia-se com um barulho dessesFabiano Cardoso

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nº 1 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jun 2016o manto diáfano

— Sei lá. Talvez fazendo uma lista de autores e pedindo pro entrevistado dar sua opinião de quais seriam os mais difíceis de se ler.

— Porra! – É, Adalberto fala muito palavrão – Mas o povo nem lê, vai lá saber opinar qual livro é mais difícil ou mais importante de ler do que outro?

— É, tem gente que é bastante indecisa. Se der muita opção é capaz do cérebro travar e a opção mais marcada ser a “outro motivo”.

Adalberto ficou olhando pra mim com uma cara de serena raiva, um quê de esperando que eu disses-se mais alguma coisa, qualquer coisa, para ele ex-plodir em impropérios; ou apenas baixar a cabeça, olhar a mesa quase vazia, apenas com um celular so-bre ela, e resignar-se perante a impotência dos que sabem muito, sabem tanto que nada podem fazer. Neste entreato quase de final crescente de orques-tra, quase de melancolia, tirei meu celular do bolso e acessei o Google em busca da tal reportagem. Aca-bei achando.

“44% da população brasileira não lê e 30% nun-ca comprou um livro, aponta pesquisa Retratos da Leitura.” Já pelo título, realmente, dá pra se assustar, como sempre. Quarenta e quatro por cento de qua-se duzentas milhões de pessoas é coisa pra dedéu! Mesmo que boa parte seja de crianças que ainda não estão em fase de alfabetização ou de, sequer, esco-lher ou comprar um livro para ler. Neste momento me lembro de uma ida à Argentina, durante a crise de dois mil e dois. O que eu via de gente na rua, nas praças, nos cafés que estavam a ler um livro era impressionante. Mas é óbvio que isso não se deu de um dia para outro. Muito menos por conta de uma faísca de literatos, como uma moda, como um vis-lumbre idiota de quando se achou que a leitura no Brasil iria, finalmente, alavancar porque José Sara-mago ganhara o Prêmio Nobel. É triste saber que a cultura literária no Brasil dependa de brisas efême-ras, de uma novela que faça sucesso, de um filme, de uma minissérie.

Aí, bato o olho na informação da matéria: sessen-ta e sete por cento diz não ter tido influência para ler, mas que, dos que tiveram, trinta e três por cen-to foram influenciados por uma mulher. Me vêm à memória as prateleiras de livros na casa de minha mãe que, de tanto olhar as lombadas dos livros, por

curiosidade, um dia, puxei um; por sorte, O Homem Nu. Minha mãe viu isso e depois passou a deixar a escada perto da prateleira.

Nisso, uma senhora que estava sentada numa mesa um pouco distante de nós, se levanta para ten-tar aumentar o volume do televisor fixado no supor-te da parede. Cena, aliás, um tanto grotesca, pois a mulher – não muito jovem – teve que, de início, se equilibrar na ponta dos pés, quase a cair em cima de outra mesa até desistir e puxar a cadeira de madeira, dessas de bar, dobráveis e tentar subir nela. Adalber-to, saído do transe da desilusão, se levantou e disse à senhora que ela não precisava se incomodar – após perguntar-lhe o que desejava. Ele deu um berro em direção ao caixa pedindo que, com o controle remo-to, aumentassem o volume do televisor.

O programa em questão era um desses em que há problemas a serem resolvidos, de utilidade pública e o escambau! Nada de mais, mas, infelizmente, mi-nha concentração diminuiu e não consegui prestar atenção em quase nada que estava na reportagem. Já não bastassem as letras miúdas em uma tela de celu-lar também diminuta. Ao mesmo tempo, um carro com uma música bem alta estaciona em frente à pa-daria. Pronto! Minha concentração foi às trinchei-ras da primeira guerra e por lá ficou, provavelmente ferida de morte.

Adalberto se levantou dizendo que precisava ir. Passou no balcão e pegou o misto e o café para levar. Sabia que me encontraria na padaria àquela hora e que gostaria, apenas, de me dar a triste notícia. Es-tava com cara de quem perdera um parente. Mas Adalberto era um tanto exagerado e dado a humo-res de lua, como dizem.

Por minha vez, pedi um chá de cidreira e fiquei a ver o programa no televisor, que, a essa altura do campeonato, perdido, por sinal por falta de elenco no plantel, não dava pra saber do que se tratava o quadro. Lembrei de outra pesquisa de opinião dita por uma amiga à época da faculdade onde se dizia que, independente do curso feito, os estudantes di-ziam que os livros de literatura clássica foram os mais importantes para suas formações.

A música do carro estava tão alta que resolvi cance-lar o chá, me levantei e fui beber em casa quando, pela trilhonésima vez, tentaria recomeçar a ler Ulisses. ■