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REVISTA DE CRÍTICA LITERARIA LATINOAMERICANA Año XXXVIII, N o 75. Lima-Boston, 1 er semestre de 2012, pp. 397-417 MAKUNAIMA: UM HERÓI A SERVIÇO DA ORDEM SOCIAL Fábio Almeida de Carvalho Universidade Federal Fluminense/ Universidade Federal de Roraima Resumo O trabalho apresenta Makunaima enquanto personagem principal do mais conhecido e extenso lendário oral dos habitantes originários do extremo norte da América do Sul, na tríplice fronteira Brasil, Venezuela e Guiana –etno- graficamente designada de região circum-Roraima–, com o objetivo de exami- nar a função cultural que exercia antes de assumir o posto de “herói da nossa gente” brasileira, por intermédio da obra de Mário de Andrade. Palavras-chave: lendário, Makunaima, herói, cultura. Abstract This work presents Makunaima as the main character of the best-known and extensive oral legendary tradition of the inhabitants from the extreme north of South America, the triple border between Brazil, Venezuela and Guyana –etnographically designated as the circum-Roraima region, in order to examine the cultural role this character had before becoming the “heroe of our people” through the work of Mário de Andrade. Keywords: legendary, Makunaima, heroe, culture, Mário de Andrade. Macunaíma, emblema da cultura brasileira Em diferentes momentos da história brasileira, a literatura de- sempenhou o papel de configurar, consolidar e disseminar uma noção da identidade nacional e, nesse movimento, ora mais ora menos, tem conferido ao indígena “o papel de legítimo represen- tante de uma origem nacional, anterior à presença do colonizador”, “aquele que desde sempre aqui viveu, e lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros” (Jobim, Formas da Teoria 101). Mas a apropriação da figura do índio se deu ora com conotação positiva

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REVISTA DE CRÍTICA LITERARIA LATINOAMERICANA Año XXXVIII, No 75. Lima-Boston, 1er semestre de 2012, pp. 397-417

MAKUNAIMA: UM HERÓI A SERVIÇO DA ORDEM SOCIAL

Fábio Almeida de Carvalho Universidade Federal Fluminense/ Universidade Federal de Roraima

Resumo

O trabalho apresenta Makunaima enquanto personagem principal do mais conhecido e extenso lendário oral dos habitantes originários do extremo norte da América do Sul, na tríplice fronteira Brasil, Venezuela e Guiana –etno-graficamente designada de região circum-Roraima–, com o objetivo de exami-nar a função cultural que exercia antes de assumir o posto de “herói da nossa gente” brasileira, por intermédio da obra de Mário de Andrade. Palavras-chave: lendário, Makunaima, herói, cultura.

Abstract

This work presents Makunaima as the main character of the best-known and extensive oral legendary tradition of the inhabitants from the extreme north of South America, the triple border between Brazil, Venezuela and Guyana –etnographically designated as the circum-Roraima region, in order to examine the cultural role this character had before becoming the “heroe of our people” through the work of Mário de Andrade. Keywords: legendary, Makunaima, heroe, culture, Mário de Andrade.

Macunaíma, emblema da cultura brasileira Em diferentes momentos da história brasileira, a literatura de-

sempenhou o papel de configurar, consolidar e disseminar uma noção da identidade nacional e, nesse movimento, ora mais ora menos, tem conferido ao indígena “o papel de legítimo represen-tante de uma origem nacional, anterior à presença do colonizador”, “aquele que desde sempre aqui viveu, e lutou heroicamente contra os colonizadores estrangeiros” (Jobim, Formas da Teoria 101). Mas a apropriação da figura do índio se deu ora com conotação positiva

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(consubstanciada no mito da vida natural do bom selvagem), ora negativa (formulada na caracterização do bárbaro e em toda matiz de incivilidade, que vai do canibalismo antropófago ao desregra-mento sexual atribuído ao ameríndio). E disso resultou que a “figura do nativo foi preenchida com uma conceituação definida pelos ter-mos contraditórios em que se estrutura” (Jobim, Formas 95).

Desse modo, num movimento que se pode atestar que assume as dimensões de emblema de um programa coletivo organizado em favor da instituição do caráter nacional brasileiro, em mais de um momento o índio foi empregado como elemento principal para concretização da “cor local” e, nessa qualidade, é que tem sido alçado à condição de fator ativo e de longa duração no processo de elaboração de uma caracterização para a cultura brasileira.

Para que se possa assumir como válida essa interpretação faz-se necessário tão somente considerar que desde o movimento inicial de descoberta do Novo Mundo e da consequente construção do projeto de fixação do processo civilizatório, viajantes, pensadores e literatos europeus, bem como cientistas e escritores brasileiros, oriundos de diferentes campos de atividades e com orientações as mais diversas, se apropriaram da figura do indígena com o intuito de demarcar o que há de específico no locus cultural brasilicus. Com efeito, desde a “Carta”, documento em que Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Cabral, informa a Dom Manuel, rei de Portugal, sobre o achamento da Nova Terra, a figura do indígena tem ocupado um lugar de destaque na cultura e, de modo particular, nas letras do Brasil.

Assim é que a figura indígena tem desempenhado a função de elemento identificador da brasilidade e tem servido de esteio para a estruturação de entrechos de lendas, de mitos, de poemas, de epo-peias, de romances, de filmes, de óperas, de enredo de escolas de samba, de histórias em quadrinho, dentre tantas outras criações de espírito que por cá vingam. Esse cenário tem propiciado o surgi-mento de heróis e heroínas como Ubirajara, Paraguaçu, Iracema, Peri e Tininim, dentre tantos outros. Não obstante, é Macunaíma, herói da narrativa homônima de Mário de Andrade, talvez a estrela maior dessa constelação de personagens indígenas fundadoras de identidades culturais, porque dentre as demais se destaca.

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A personagem de Mário de Andrade se inscreve na tradição de caráter satírico-nacionalista da literatura brasileira, onde logrou o êxito de se tornar o herói prototípico da gente desse país. O fato de não ter nenhum caráter específico e de encarnar as tradições de todas as partes do Brasil foram fulcrais para que a personagem da rapsódia modernista assumisse o status de ícone de brasilidade, capaz de frequentar “artigos de jornais e revistas”, fazer partes de “conversas do cotidiano boêmio”, enfim, de compor o repertório da classe média escolarizada, que reconhece no herói, mais que em qualquer outro, talvez, um conjunto de traços e coisas relacionadas a diferentes esferas da realidade brasileira (Santiago 193).

Essa é a parte mais conhecida pelo grande público leitor brasileiro do percurso percorrido por aquele que, às expensas de ser reconhecido como herói da nossa gente brasileira, talvez seja o mais transnacional dentre quantas personagens tem gestado a nossa literatura. Por outro lado, bem poucos brasileiros sabem que Mário de Andrade entrou em contato com o herói da nossa gente a partir da leitura do Tomo II de Zum Roraima vom Orinoco (1924), obra monumental do etnógrafo Theodor Koch-Grünberg que, patro-cinado pelo Baessler-Institut de Berlim, fez uma viagem em que percorreu milhares de quilômetros na companhia dos índios do extremo norte da América do Sul e manteve próxima e íntima convivência durante pouco mais de dois anos com os habitantes daquela isolada e pouco conhecida região e colheu o lendário dos povos Taurepang e Arekuna. Os textos das lendas dão corpo aos Mitos e Lendas dos Índios Taulipang e Arekuná.

Mas antes de passar a compor o acervo da cultura acadêmica alemã na condição de protagonista de um lendário que iria marcar de forma profunda a criação literária brasileira, até o início da segunda década do século XX, Makunaima era quase exclusi-vamente herói no âmbito da região circum-Roraima, onde circulava na condição de herói transformador da cultura Pemon1. É objetivo

                                                                                                                         1 Importante nesse sentido é o trabalho do antropólogo Paulo Santilli

(2001), que atesta que os índios que habitam o território adjacente ao Monte Roraima se auto-nomeiam, reciprocamente, Pemon (habitantes dos campos e savanas, dos altiplanos e planícies das vertentes meridionais e orientais do Monte Roraima) e Kapon (“povo do alto, povo do céu”, porque designa

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desse texto examinar a função social desempenhada pelas narrativas desse lendário e o papel desse herói que sendo da nossa, é também herói de outras gentes.

Makunaima, herói Pemon

De acordo com os Pemon, índios habitantes do extremo norte

da América do Sul, na tríplice fronteira entre Brasil, Guiana Inglesa e Venezuela –região etnograficamente designada de “circum-Rorai-ma”–, o estado inicial da natureza é marcado pelo caráter comuni-tário perfeito, pela solidariedade e pelo pleno bem-estar de todos os seres que povoam o mundo. Para os Pemon, o tempo dos ances-trais, designado piato daktai ou piato ekareyi, é considerado bom, correto e verdadeiro e, em razão desses caracteres, poder-se-ia pro-por que constitui uma espécie de versão indígena do mito da idade do ouro ou do paraíso perdido2.

Nesse tempo primordial e de perfeita harmonia, todos os seres vivos e não vivos (animais, plantas, ar, terra, fogo, montanhas, pedras, casas, portas, rios, utensílios domésticos, etc.) podiam assu-mir a forma humana, sendo que a recíproca também acontecia com frequência –sob determinadas circunstâncias. E, segundo registra Gutiérrez Salazar (12), esse é um traço cultural que costuma ser reiterado pelos nativos da região mediante o emprego do marcador de abertura das “histórias dos antigos”: “piape to ichi yaktai, tukare

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       àqueles que vivem nas terras montanhosas de floresta). Conforme esse autor, apesar de se diferenciarem recíproca e mutuamente, por meio dessas duas categorias classificatórias mais abrangentes, formuladas para estabelecer desig-nações contrastivas, os Kapon (designativo que engloba os Akawaio e os Patamona) e os Pemon (que abrange os Kamarakoto, Arekuna, Taurepang e Macuxi) se consideram “parentes”, porque são descendentes comuns dos heróis míticos Makunaima e Insikiran.

2 Ao procedermos desse modo, empregando termos comparativos para aproximar elementos que apresentam valores distintos em culturas diversas, temos consciência de que estamos propondo a aceitação de uma interpretação cultural bastante livre ou, antes, fazendo uma espécie de “tradução cultural livre”. Afinal, sabemos que, conforme o dito italiano, “traduzir é trair”; não obstante, buscaremos realizar traduções que respeitem as particularidades de cada cultura que aborda e que, desse modo, se aproximem tanto quanto possível das matrizes culturais em que os objetos da tradução foram originados.

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re ichipoe pemon pe”, que pode ser traduzido por “no tempo dos antigos, todas as coisas eram pessoas como os Pemon”.

Em contraste, no tempo presente (sereware), em que os seres e coisas do mundo perderam a condição humana e foram reduzidos à sua real situação de animais, pedras, plantas, rios, portas, dentre outras coisas, os homens estão obrigados a conviver com toda sorte de perigos e de malefícios. No tempestuoso tempo do agora, a exis-tência impõe a necessidade de viver em íntima relação com seres e coisas degradadas depois do rompimento do período inicial de bem-estar comunitário, tendo o homem de enfrentar a oposição e a discórdia constante entre os que habitam o mundo.

Conscientes dos riscos que correm os indivíduos e a sociedade desde a degradação do piato daktai até os presentes dias, no tempo do sereware, os habitantes ancestrais das adjacências do Monte Roraima vivem em busca e em função da reconquista do “tempo antigo”. Para tanto, os índios dispõem de um instrumento dotado de grande valor cultural, haja vista que é capaz não apenas de combater de forma eficiente o mal disseminado no mundo e de pro-piciar tranqüilidade e segurança contra as forças malignas que dificultam a convivência entre os seres, mas também de promover a edificação de sucessivas gerações: a narrativa.

Para Armellada (qtd. in. Sá, Rain Forest Literatures 8), a narrativa constitui um poderoso instrumento de transmissão de conheci-mentos tradicionais entre os Pemon, pois serve não apenas para explicar diferentes aspectos da conformação do mundo, mas tam-bém para estruturar modos e estratégias de defesa pessoal e coletiva frente aos perigos da vida –dentre outras finalidades sociais que assume e funções que desempenha. Esse autor, que morou décadas entre esses nativos, atesta a existência de três tipos característicos de narrativas a dar concreção ao imaginário desses povos: a) as narra-tivas produzidas no cotidiano e que se efetivam em múltiplas situações do dia-a-dia das aldeias e demais espaços de uma comu-nidade indígena; b) as canções, em que o canto é usualmente acom-panhado de instrumentos musicais, e c) o tarén, prática verbo-ritual de fatura mágico-religiosa, à qual adiante retornaremos.

Esse conjunto narrativo de corte lendário circula oralmente e tematiza os feitos, façanhas e proezas dos ancestrais comuns dos

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povos indígenas da região circum-Roraima e exibem alto valor explicativo sobre aspectos vários do estado de coisas do mundo e da vida. Exemplo claro de como as variações narrativas dão conta das diferenciações internas entre subgrupos étnicos dessa região, nos é fornecido por Paulo Santilli (2001), para quem:

Embora os povos [...] compartilhem o tema da ascendência dos irmãos Macunaíma e Enxikiráng, os filhos do sol, os Kapon se dizem originários de uma mulher feita de tronco de árvore [...], ao passo que os Pemos relatam sua origem a partir dessa mulher, mas feita de rocha de argenta [...]. Na versão Taurepan [...], essa figura primordial feminina é constituída de terra; ou de barro, na versão macuxi, que habitam a área de campos no vale do Rio Branco [...]. Os diversos materiais de que é feita a primeira mulher podem ser lidos como mais um indicativo da diferença entre grupos, manifesta na geografia: árvores, rochas e barro (ou terra) expressam três extratos ambientais que caracterizam a porção específica do território ocupado por esses povos [...] em um eixo que vai do mais alto ao mais baixo, à floresta que recobre o alto da cordilheira, ocupada pelos Kapon, às escarpas da cordilheira e aos campos que a margeiam, ocupados pelos Pemon (Pegomon Patá 63). Essas práticas verbo-sociais de alto valor explicativo estruturam

um lendário que, tal como acontece com outros conjuntos narrativos de povos de tradição ágrafa, é produção coletiva e anônima, uma vez que circulava (e ainda circula) na boca dos contadores de história de etnias diversas das comunidades de distintas micro-regiões. Nesse circuito de comunicação a fonte na-rradora responsável pelo discurso importa menos que o ato de apropriação da narrativa por parte do sujeito que narra a história, sobressaindo antes sua identidade coletiva, suas características particulares de narrador e as necessidades de contar a história num lugar e num momento precisos, em função de alguma finalidade ou objetivo imediato.

Armellada (Tauron panton 11) assegura que entre os Pemon não há indivíduos socialmente imbuídos da exclusiva função de narrar histórias, como costuma ocorrer com outras sociedades humanas –o que não implica dizer que não existam especialistas da arte de narrar. Designados de sak, os contadores de histórias são fruto do processo de seleção coletiva das funções a serem ocupadas pelos membros do corpo social e do consequente comprometimento que

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os indivíduos estabelecem com a transmissão da memória por meio do lendário narrativo comum. Esses indivíduos assumem a iniciativa pela manutenção, transmissão e execução das manifestações verbo-rituais da cultura e gozam de status próprio nas comunidades e, por isso, desfrutam de algum prestígio que, não raras vezes, se con-cretiza na liberação parcial de tarefas nas esferas mais imediatas da produção, em determinadas ocasiões, a fim de poderem exercer e de se especializarem no domínio dessa arte.

As manifestações verbo-rituais (para nós, também “literárias”) tradicionais dos Pemon ligam-se diretamente ao ciclo da vida coletiva das comunidades, sendo sua ocorrência mais relacionada às atividades comuns do grupamento humano do que aos traços individuais de quem as produz e executa. Não obstante, apesar do caráter pragmático, utilitarista e imediatamente interessado das rea-lizações verbo-rituais dos Pemon, e mesmo da constatação da existência de certos laivos de discurso histórico a estruturar o entrecho dessas narrativas de corte lendário, somos da opinião que isso não elide a dimensão artística nem a integridade estética desses artefatos/construtos verbais.

A fim de dar sustentação a esse pressuposto, recorremos ao modelo crítico proposto por Antonio Candido em Literatura e sociedade, que propicia à investigação literária operar com os bene-fícios gerados de uma concepção ampliada de literatura, concebida enquanto sistema simbólico de comunicação inter-humano que se caracteriza pela estilização formal, bem como pela ordenação ar-bitrária das coisas, seres e sentimentos, e por certa gratuidade do ato de produção e recepção. Essa concepção distendida da arte verbal permite circunscrever e abarcar realizações artísticas originárias não somente da esfera da literatura propriamente dita, senão também do folclore, do mito, da fábula e da lenda –produtos da atividade verbal considerados, as mais das vezes, destituídos de valor estético.

Outro importante aspecto estruturador das narrativas diz res-peito ao caráter fragmentário e multifuncional que assumem, tal co-mo fica patente tanto nas versões colhidas por Koch-Grünberg quanto por outros estudiosos, casos de Gutiérrez Salazar (Los pemo-nes y su código ético, 2001) e de Armellada (Tauron panton. Cuentos y leyendas de los indios pemón, 1989) –mas também nas que tivemos o-

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portunidade de conhecer ao longo do nosso trabalho como assessor de um projeto de coletânea do lendário dos índios de Roraima3. Raras são as grandes unidades narrativas. E o caráter fragmentado e pluri-funcional desses textos se efetiva em razão de as narrativas serem produzidas e se inserirem naquilo que se poderia caracterizar como estrutura conversacional ou dialógica do cotidiano e/ou do rito. Nesse circuito de comunicação o sentido é dado não apenas pelo conteúdo do que é narrado, senão também pelo contexto em que a narrativa se insere e pelo próprio ato de narrar.

Isso ocorre em razão de que os relatos orais geralmente tendem a remeter a um campo discursivo mais amplo que aquele estru-turado pelo contexto do texto narrativo em si, ou seja, pelo cotexto, uma vez que costumam envolver aspectos referentes à comunidade e a sua simbologia. Para Antonio Candido (58), as palavras que compõem esse tipo de narrativa “não podem ser desligadas do contexto [o grifo não é nosso], – isto é, da pessoa que as interpreta, do ato de interpretar e, sobretudo da situação de vida e de con-vivência, em função das quais foram elaboradas e são executadas”.

A consequência disso é que os textos dessa modalidade de relato exibem lacunas que somente podem ser devidamente preenchidas com background social. Discutindo esse aspecto das narrativas tradi-cionais dos índios americanos, Sérgio Medeiros (Makunaima e Jurupari 22) defende que uma “mesma narrativa pode assumir, em diferentes contextos e performances papéis diversificados e até contra-ditórios”. Apoiado na descrição dos níveis da narrativa cunhada por Barren Toelken, Sérgio Medeiros (21) propõe a existência de quatro “níveis semânticos” para as narrativas do lendário dos Pemon, que segundo ele dependem da “maneira específica” de narrar –ao que deveríamos acrescentar a dependência da função presumível da história no curso do diálogo em que se insere: nível I: entrete-nimento (no qual é fornecida uma história completa com ênfase no caráter cômico da situação); nível II: ensinamento moral (o performer atua como pedagogo e dá ênfase aos tabus e aos valores expressos                                                                                                                          

3 Projeto Anikê, desenvolvido pela Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIR), em 2003-2004, com assessoria de docentes da Univer-sidade Federal de Roraima, que visava a habilitar professores indígenas para a coleta, transcrição, versão, tradução e sistematização da memória dos antigos, com o fito de construir material didático para as áreas de história e de geografia.

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na narrativa); nível III: terapia (que se apresenta como uma narrativa fragmentada, na qual são selecionadas certas passagens consideradas terapêuticas); nível IV: malefício (no qual é ofertada uma narrativa de enredo desintegrado e que acarreta a suposta desintegração da pessoa a que se intenta atingir). O autor acrescenta, todavia, que existem outras possibilidades de emprego.

Em resumo, podemos propor que as narrativas apresentam estruturas e formas que se diferenciam de acordo com a função que exercem ao serem narradas, ocorrendo de as mesmas sequências de eventos apresentarem diferentes extensões, cujos limites são estabe-lecidos de acordo com as finalidades e as situações particulares em que são contadas. Daí podermos concluir que os textos do lendário dos Pemon têm seu funcionamento regulado pela insurgência de situações específicas e que, exatamente por isso, é que são execu-tados em momentos convenientes e sob a premência de determi-nadas demandas imediatas.

O mecanismo constitui estratégia cultural que permite recorrer às experiências do passado (do piato daktai) por meio da narrativa, do canto e da evocação ritual para ensinar sobre o mundo e, por conseguinte, ajudar a prevenir a sociedade e os indivíduos para lidar com perigos e embates no período posterior à chegada do mal, no sereware. A sua estrutura consiste na apresentação das origens do mal, seguida da enunciação da obrigação de combatê-lo, bem como da conduta a seguir e do erro que se deve a todo custo evitar. Trata-se, segundo concebemos, de um tipo de produção textual que assu-me função social em que sobressai o complexo valor terapêutico-formativo-educacional, mas que apresenta, também, uma dimensão lúdica e artística digna de ser seriamente considerada, conforme de-monstramos no presente estudo.

Esse aspecto é, para nós, uma prova de que, à diferença do que ocorre em sociedades de tradição letrada, em sociedades de tradição ágrafa ou iletrada, fenômenos ligados às esferas mais imediatas do cotidiano, relacionados sejam a aspectos políticos ou econômicos, sejam a aspectos familiares ou da vida social das comunidades, dentre outros, ganham um sentido estético direto, motivando ime-diatamente certo tipo de emoção que se transforma em arte.

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Embora os gêneros narrativos praticados pelos Pemon sejam diferentemente dotados de forças capazes de intervir na realidade social e cósmica e de ajudar a encontrar soluções para problemas diversos ligados à existência, sobressai em importância a prática do taren (ou taremu ou taremuru), que pode ser definida, conforme Salazar (Los pemones y su código ético 50), como uma espécie de “práctica del tipo mágico-simpático que usan los Pemón en múl-tiples situaciones, para causar males, prevenirlos o curarlos”. Essa prática desfruta de particular poder de mitigação dos males do mundo. Digno de nota é que, sendo estruturalmente caracterizado pela repetição cerimonial e ritual, existe um taren para cada situação e, por esse aspecto, trata-se de um instrumento que tende a se multiplicar, de acordo com as necessidades de cada contexto e de cada época.

Conforme Salazar (Los pemones y su código ético 50-51), a estrutura ritual do taren se subdivide em quatro momentos distintos e comple-mentares: o primeiro constitui a apresentação narrativa ou a história da origem do mal, ao passo que o segundo consiste na apresentação do contrário, espécie de seção narrativa que contém o antídoto para o mal. Estes dois momentos iniciais são denominados panton ou, mais especificamente, ekaré, termos que podem ser traduzidos por “história dos antigos” ou “relato do início”. Às etapas da apre-sentação narrativa, seguem o teremú (o canto), porque, uma vez identificado o mal, o seu contrário somente pode ser retirado por intermédio de um canto solene que funciona como elemento destruidor do princípio da maldade; por fim, o esesati, que designa o ato de invocação e de apropriação dos nomes dos portadores de po-deres de cura. Eis que esse é o contexto em que brotam a narrativa e o canto sagrado que por vezes lhe acompanha e em que contar e cantar desempenham funções relevantes e valores vitais para os indivíduos da região circum-Roraima.

Devido à função e ao valor de que é instituído, o taren torna-se instrumento verbo-ritual e princípio estruturador da vida, visto que é capaz de harmonizar forças opostas no mundo por meio da narra-tiva, do canto e da invocação. O emprego do taren como instru-mento de equilíbrio cósmico e social se espraia por diferentes dimensões da vida dos indígenas da região circum-Roraima, instau-rando um estado de complementaridade indispensável para a manu-

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tenção da harmonia pessoal e coletiva e entre a realidade cotidiana e a dimensão cósmica.

Trata-se, no fundo, de um sistema ideológico centrado no ho-mem e na sua capacidade de transformar a realidade, o que permite afirmar ser este um fundamento antropológico, visto que fornece os princípios e as razões para os fenômenos do mundo, ou seja: explica as causas, mas também fornece os meios para que possam ser anuladas as dimensões maléficas que atentam contra a existência. Para os Pemon, o grande repertório de taren é instrumento pode-roso, porque mantenedor do equilíbrio entre o bem e o mal em múltiplas dimensões.

As diferentes formas narrativas ganham vida mediante a ação de uma galeria de personagens dentre as quais se destacam o herói cultural Makunaima. Conforme Gutiérrez Salazar, os filhos de Vei, os Makunaima, foram os responsáveis pelo dano inicial, que marca a entrada do mal no mundo primordial de caráter comunitário, pois que romperam o estado de solidariedade reinante no tempo dos antigos:

Los dos hemanos Makunaimá, muy caminadores y poco amigos de trabajar, sintieron envidia de cuanto bien encontraban en sus viajes. Movidos de este torcido vicio, por curiosidad y malicia, comenzaron a emplear el “mui-mandok” (maleficio) o arte mágico de inducir el mal en los demás, con fórmulas exotéricas [sic]. Así aparecieron el mal, la enfermedad, la incomprensión y la muerte (Los pemones y su código ético 28). Segundo a lógica que estrutura as narrativas desses povos de

tradição ágrafa, os mesmos malefícios causados por Makunaima oportunizam o ensinamento de lições sobre o estado de coisas do mundo e, por conseguinte, propiciam a aprendizagem de princípios importantes para a manutenção das relações sociais do grupo e para o equilíbrio cósmico.

Tal é o mecanismo que estrutura, por exemplo, o episódio da árvore de todos os frutos, que foi derrubada por Makunaima a fim de que pudesse colhê-los de uma única vez. Nesse episódio, decorre da derrubada do Vazaká o período de fome grande na maloca; não obstante, é o mesmo ato da derrubada que enseja o acontecimento da grande enchente, evento responsável, tanto pela distribuição dos

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peixes pelos igarapés e rios da região, quanto pelo fato de Makunama ter plantado a palmeira inajá, com o intento de ter onde se abrigar durante o período da grande inundação. Desse modo, o ato de derrubada da árvore de todos os frutos oportuniza não apenas o afloramento da ambição e da ganância, visto que também concorre para ensejar o cultivo das plantas e o domínio das técnicas de agricultura, bem como para a distribuição dos recursos da pesca pelos rios da região.

No episódio IV da “Leyenda de los Makunaima”, Cesáreo Armellada (Tauron panton 46-48) fornece bom exemplo do caráter dos Makunaima: trata-se do caso em que os filhos do Sol não pescam porque não possuem anzóis e descobrem que a Garça-pescadora dispõe desse valioso instrumento. Decidem, então, comprar-lhe o anzol e, diante da recusa do pássaro, que lhes dá um artefato feito de cera, com o qual também não conseguem pescar, o irmão menor, Chikê, resolve roubá-lo e, para tanto, se transforma no peixe Aimará, mas acaba sendo fisgado e morto. O irmão mais velho reconhece que o pescado é Chikê e pede o peixe à Garça, que reluta, mas acede ao pedido. Finalmente, na terceira tentativa, o mais jovem se transforma em arraia e rouba o anzol da Garça, que, privada do seu instrumento de pesca, decide ir a Ikén, na Guiana inglesa, a fim de buscar metal para manufaturar anzóis. Transfor-mados em andorinha e beija-flor, os Makunaima seguem o pescador e observam quando ele retira matéria-prima (que parecia ser argila, mas, na verdade, era ferro!). Depois que a Garça se vai, os irmãos também recolhem material e fazem machados, facões e anzóis, mas Chikê decide fazer também uma escopeta e o irmão mais velho o desaconselha, por ser perigoso.

O breve raconto relata as façanhas dos Makunaima nas andanças que fizeram pelo mundo após a maioridade. Anteriormente a esses fatos, sabe-se que Vei partiu em viagem, antes do nascimento do filho menor, Chikê, prometendo logo retornar. Como o pai não cumpriu a promessa, depois do nascimento do menino, a mãe, Tuenkaron, sai em viagem com os filhos para procurar o esposo e acaba pousando na casa da Sapa, onde morre envenenada ao catar a Velha e violar o interdito que proíbe a deglutição dos piolhos que ficam em torno da orelha, tendo em seguida o corpo devorado pelos filhos e pelo esposo da feiticeira –o Tigre. Informados pelo

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pássaro Kachipirau das condições em que Tuenkaron foi morta, os Makunaima vingam a morte da mãe queimando a Sapa no roçado. Literalmente sem pai nem mãe, eles saem pelo mundo fazendo estripulias –quando se deparam com a Garça.

A motivação para que os filhos de Vei comecem a empregar artes mágicas para se apoderar do que não lhes pertence é a necessidade ou carência de um bem material –o anzol, instrumento de posse exclusiva do pássaro-pescador e que facilita a obtenção de alimentos para o grupo. Índice desse estado de coisas é que a carência é formulaicamente repetida na abertura das narrativas: “por aquel tiempo los Makunaima no teníam anzuelos, ni hachas, ni cuchillos”, conforme encontramos em Armellada (Tauron panton 46). Da constatação dessa carência e da busca dos meios para repará-la é que advém a “falha original”, qual seja: a preguiça e a inveja, propi-ciadoras da entrada do mal no mundo.

Mas o resultado da carência inicial é a abundância final de instrumentos e de ferramentas que facilitam o trabalho, propiciam o abastecimento material do grupo e que assume a forma de machado, facão, anzol e até de escopeta –símbolo dos perigos da civilização. A dimensão explicativa do episódio fornece pistas sobre a maneira que as técnicas, os meios e os modos empregados para manter a sobrevivência do grupo constituem matéria importante para a criação da arte verbal e para a formação do patrimônio ima-terial desse povo.

Isso torna significativo que do roubo ao pássaro de bico metalizado e que se alimenta apenas de peixes resulte a aprendi-zagem da construção de artefatos feitos em metal. A lógica narrativa estabelece a norma de conduta para o combate do mal, que é amenizado por força de uma espécie de antídoto, cujo funcio-namento é estruturalmente semelhante ao ato causador. Conforme essa lógica é que o ato, à primeira vista univocamente grosseiro, de o herói esfregar o fruto da palmeira inajá no pênis antes de dar para o irmão comer, no episódio da “grande enchente”, ganha sentido positivo, pois é o que faz com que adquira delicioso sabor.

Disso resta que, do mesmo modo que podem ser legitimamente considerados os deturpadores da cultura, por terem sido os causa-dores do rompimento e da perda do período de perfeição comu-

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nitária, Makunaima também é reconhecido como o criador de muitas das coisas importantes do mundo, a exemplo dos próprios homens, que tinham sido eliminados da face da terra pelo incêndio universal e tiveram de ser refeitos (primeiro em cera, quando derreteram ao calor do sol, depois em barro, quando assumiram forma definitiva), bem como do cachorro, animal tão estimado pelos Pemon, que foi criado a partir da cera de abelha para comer os ossos, as espinhas de peixe e os restos de comida que molestavam os pés dos irmãos quando andavam descalços pela casa.

Para os indígenas da região Makunaima é demiurgo com existência concreta no mundo e as marcas de sua passagem podem ser percebidas ainda hoje nas diversas realizações que deixou sobre a face da terra, quando transformou homens, mulheres, formigas e feridas em pedras –muitas pedras4–, folhas de plantas em arraia, grãos de areia em mosquito pium, troncos de árvores em montes e cachoeiras, dentre outros prodígios. Trata-se de um sujeito que des-de menino era esperto e que todos respeitavam pela astúcia de pegar anta no laço e de seduzir a mulher do irmão, mas também porque era detentor de forças extraordinárias e portador de poderes mági-cos, sendo capaz de nutrir a família nas épocas de grande estiagem.

Era, enfim, temido, por ser portador de poderes para castigar a todos os que se interpunham à realização de seus desejos mais imediatos, como ocorre quando muda a maloca de lugar levando consigo a abundância alimentar da comunidade, para se vingar dos irmãos mais velhos, que lhe deram para comer apenas as tripas da anta que ele próprio caçara. O herói é, ao mesmo tempo, muito corajoso, em certas ocasiões, e igualmente covarde, em outras; é esperto, sagaz e inteligente, capaz de soluções brilhantes, num mo-mento e, no outro, bobo e ingênuo, sendo presa fácil, estupida-mente enganada por seus espertos opositores. Transformador e desastrado, capaz de atos sempre exagerados, Makunaima é uma mistura extremada das dimensões constitutivas da personalidade humana.

                                                                                                                         4 Para que se possa dimensionar a importância da geologia e, em especial,

das pedras para a cultura Pemon, cf. Lúcia Sá, Rain Forest Literatures. Amazonian Texts and Latin American Culture.

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A modo de caleidoscópio, os episódios narrativos se estruturam como fragmentos de relatos que se juntam em figurações diversas, apesar de comporem uma sequência narrativa maior e cuja unidade se estabelece por meio de um fio de condução em que Makunaima é protagonista principal, mas não o único ou mais importante. O arranjo ordenador dos eventos varia de acordo com a finalidade de cada situação em que brota a necessidade de contar a história. Um exemplo: a fim de explicar etiologicamente a abundância de pimenta brava nas encostas das serras, quase sempre as contendas entre Makunaima e Piaima/Currupira são segmentadas para dar destaque especial ao episódio em que, em vez de cortar os cabelos do opositor, os irmãos plantam pimentas embaixo do couro cabeludo do monstro. Quando a planta cresce, os galhos da pimenteira semeiam os caminhos das encostas das serras, onde costuma transitar Piaima/Currupira. Da segmentação e do destaque desse evento decorre especial “efeito de sentido” que explica a existência de grande quantidade de pimenta brava nesses locais.

Assim, dada a impossibilidade de a personagem ser qualificada como exatamente “bom” ou “mau”, dado o caráter múltiplo e ambíguo, Makunaima pode ser identificado como um trickster, ou seja, como herói cultural, safado e contraditório, adulterador da cultura pemon. Conforme explica Ellen Basso (qtd. in Sá, “Tricksters e metirosos...” 251), os tricksters espantam pelas “contradições do caráter moral” [...] ou, antes, por “aquilo que Boas chamou de ‘problema de discrepância psicológica’ entre as características aparentemente incongruentes ‘do herói cultural’ (que torna o mundo seguro para os seres humanos) e o ‘bufão egoísta’ (que comicamente age de maneira inapropriada)”. Makunaima, com efeito, é um trickster que se caracteriza por apresentar dupla face: de um lado o tolo salvador, de outro, a esperteza desastrada.

A presença constante de traços de contradição e de ambiguidade de caráter e a consequente ausência de maniqueísmo, de que são exemplares não apenas Makunaima, mas também personagens como Jurupari e o Coyote, dentre outros, impossibilita que os pro-tagonistas tradicionais dos conjuntos lendários americanos possam ser rigorosamente classificados como heróis ou vilões –como em geral acontece com os dos contos de fada europeus. Esse típico

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traço de personalidade dos heróis americanos perturbou durante muito tempo, não apenas estudiosos da literatura, mas também do folclore, da etnografia e de áreas contíguas que, não em raras ocasiões, apontaram a ausência de lógica como principal traço caracterizador desses personagens.

É, pois, na condição de herói de uma cultura ágrafa que Makunaimî/Makunaima ganha concretude por meio de um conjunto de narrativas que explicam fatos diversos como a ocorrên-cia de fenômenos naturais e de acidentes geográficos, bem como a forma de alguns animais e a existência de certas constelações avis-táveis da região do Monte Roraima, mas também como teriam sido criadas algumas das fórmulas mágicas de cura, dentre outras coisas, como a escassez de árvores e o fato de existirem poucas frutas na região dos campos naturais, em contraste com a maior abundância delas na face norte do Roraima –para onde tombou o tronco da árvore Vazaká. Além disso, estabelecem um conjunto de regras tácitas, potencialmente capazes de manter a harmonia social e cósmica do grupo.

E exatamente por apresentarem essa ambiguidade básica de terem sido os introdutores do mal no mundo ao mesmo tempo em que foram os criadores de coisas importantes, boas e essenciais para o homem, os Makunaima serviram de instrumento de transmissão de conhecimento a essa população de tão particular cosmovisão. Eles povoam o conjunto de realizações verbais a que se poderia designar como uma importante porção da mitopoética pemon. Trata-se de realização de caráter oral e coletivo, típica da expressão dos povos detentores de uma cultura voco-expressiva tradicional, a qual é designada pelos Macuxi de Roraima como “Makunaima Pantoni”.

Apesar de protagonizar o lendário de diferentes povos de uma região que compreende uma área de razoável uniformidade etno-gráfica e cultural, circunscrita às adjacências do Monte Roraima, a personagem mantinha até a segunda década do século XX uma circulação que se pode caracterizar como restrita –quando consi-derada a sua posterior história de deslocamentos e de reinserções culturais. Era esse o circuito e o contexto que davam existência ao conjunto de narrativas orais em torno do demiurgo tangolomango até o início da segunda década do século XX.

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Em razão disso e ao levarmos em consideração o nomadismo, a errância cultural5 e a personalidade cambiante do herói indígena, podemos acusar, desde os primórdios, ausência de homogeneidade identitária de Makuniamî/Makunaima. A função da narrativa e o caráter do herói se alteram dependendo da ocasião e da necessidade de cada situação particular, servindo ora ao puro entretenimento, ora ao ensinamento moral, mas também como terapia ou malefício. Desde a origem Makunaima apresenta identificações flutuantes, amoldáveis a diferentes situações. Prova disso também é o fato de que o herói pode assumir a forma de animais, de plantas e dos mais diversos seres e coisas, além de ser naturalmente cambiante quando, por exemplo, é capaz de mentir e de lograr descaradamente os irmãos, bem como de assumir a forma ora de menino ora de homem feito, quando quer seduzir sua cunhada.

Desde o estágio primeiro de sua circulação o herói Pemon não se presta a ser talhado como portador de uma caracterização deli-neada em contornos bem definidos, haja vista que manifesta traços de identidade plural e de identificação culturalmente errante, uma vez que marcada pela variação, pela ambiguidade e pela contradição. Prova disso é que, como vimos anteriormente, as narrativas se modificam e alteram de acordo com as situações específicas em que são contadas, bem como de uma cultura ou de uma região para outra. Tal é o que acontece em relação aos nomes e à quantidade de irmãos de Makunaima, que mudam constantemente, conforme variantes etno-geográficas, entre outras variações sensíveis que permanecem vivas na cultura circum-Roraima até os dias de hoje

Em comum, as diferentes versões ressaltam os traços mais gerais da personalidade do herói, tais que o fato de ter sido o responsável pela introdução do mal que rompeu com a harmonia original do universo e de ser, por outro lado, o criador de muitas das coisas boas e necessárias do mundo, essenciais à existência do homem ‒caso da conquista do fogo, roubado por meio de ardil ao pássaro Mutum. Assim, se numa dimensão lhe eram reconhecidas as                                                                                                                          

5 Para Gutiérrez Salazar, por ideologia e por imperativos geofísicos o pemon é num certo sentido “itinerante, sem ser um nômade. Hoje está aqui, amanhã estará lá, porque a terra se empobrece com o uso indiscriminado” (Los pemones y su código ético 16).

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capacidades de cura de grande pajé, de caçador marupiara e de criador de coisas consideradas boas, noutra sobressai o caráter a um só tempo panema e cambiante, tangolomango e sensual, o com-portamento insolente; em suma, o fato de ter sido o introdutor do mal no mundo –a inveja.

Nesse estágio primeiro de existência, a personagem protagoniza um ciclo lendário mantido por meio de um conjunto de narrativas orais que desempenha –para usar de uma categoria cunhada por Antonio Candido (Literatura e sociedade 54)–, uma acentuada “função social”, haja vista que posta a serviço da definição e do estabe-lecimento das relações sociais dos que através dele se expressam, bem como da satisfação de necessidades espirituais e materiais e da manutenção da ordem social própria aos habitantes ancestrais daquela região. Ao discutir os “Estímulos da criação literária”, Antonio Candido (72) ensina que, se na literatura erudita, “a arte opera a partir de um certo nível de estilização da realidade, atuando de preferência sobre motivos já afastados das necessidades imediatas. Na literatura primitiva, dado o fato do grupo estar muito mais diretamente condicionado por elas, a sua presença é crua, e elas se tornam fatores de poesia”.

É na condição, portanto, de povoador do mundo para os povos Macuxi, Taurepang, Arekuna e Kamarakoto, que até a segunda década do século XX Makunaimî/Makunaima era quase um ilustre desconhecido para o restante da sociedade brasileira e do mundo. Digno de menção é que esta era até a primeira década do século XX uma região “primitiva” e quase inexplorada, sobre a qual se dispu-nha de pouquíssimas informações, em geral coletadas por alguns viajantes e aventureiros, dentre os quais se destacam os irmãos Richard e Robert Schomburgk, que tinham viajado pelos campos gerais do Rio Branco e haviam navegado as corredeiras do Urari-coera antes de Koch-Grünberg6.

                                                                                                                         6 Richard e Robert Schomburgk fizeram, antes de Koch-Grünberg, na

condição de naturalistas e de funcionários da Coroa britânica, viagens pela tríplice fronteira Brasil-Guyana-Venezuela, cuja finalidade era servir de arbitragem à fixação das fronteiras desses países, mas se notabilizaram pela qualidade dos dados etnográficos, linguísticos e de história natural apresen-tados. É importante notar que Koch-Grünberg leu a obra de ambos, e tudo o mais quanto podia sobre os índios da região do Rio Branco, do Brasil como um

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Tal qual ocorre com as personagens das sagas da cultura popular dos quatro cantos do planeta, os feitos do herói-criador e suas consequências eram conhecidas de uma geração após a outra por meio da transmissão oral da tradição narrativa. E era nessa condição de herói da tradição oral de povos distintos que ocupavam um terri-tório que se estendia por mais de uma nação (o termo se encontra aqui empregado tanto no sentido de estado-nação, quanto no de nação indígena) que Makunaima teve sua existência assegurada ao longo dos tempos. Em suma, era um herói regional, apesar de trans-nacional, que tinha uma circulação inter-étnica, servindo, assim, à concreção do imaginário de vários povos culturalmente aparen-tados, malgrado suas particularidades internas.

Grosso modo, essas eram as máscaras que moldavam as múltiplas e diversificadas personae do herói nos tempos primevos de sua circulação enquanto protagonista do lendário de franca circu-lação na região circum-Roraima, antes de o etnógrafo alemão Theo-dor Koch-Grünberg ter feito a viagem verdadeiramente cinemato-gráfica em que teve a oportunidade de habitar por dois anos entre os índios dessa região –quando realizou o trabalho de coleta e sistematização, bem como a divulgação do lendário dos índios Arekuna e Taurepang.

Desde então, o personagem errático, cambiante e múltiplo, espécie bem acabada de trickster, passou a circular por e em outras regiões e, por consequência disso, logrou assumir outras formas e funções sociais, senão também assimilou novas caracterizações. Mas essa é uma faceta dessa questão que merece ser mais profunda-mente investigada e que, ademais, está além das pretensões que se colocam no horizonte das intenções desse breve ensaio.

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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       todo e de suas adjacências antes de empreender a grande viagem e escrever a sua monumental obra.

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