maigret e os homens de bem · por isso tomei a liberdade de lhe telefonar ... os dois tinham ido ao...

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- 1 de 76 - MAIGRET E OS HOMENS DE BEM (Maigret et les Braves Gens - 1961) Georges Simenon CAPÍTULO 1 Em vez de resmungar, tateando no escuro à procura do aparelho, como era costume quando o telefone tocava de madrugada, Maigret deu um suspiro de alívio. Já não lembrava com nitidez o sonho do qual fora arrancado, mas sabia que era um sonho desagradável: tentava explicar a alguém importante, cujo rosto não via, a alguém que estava muito descontente com ele, que a culpa não era sua, que era preciso ter paciência, só uns dias de paciência, porque ele havia perdido o costume, se sentia apático, descontente consigo mesmo. Que confiassem nele, não ia demorar. E, principalmente, que não o olhassem com ar de reprovação ou ironia. Alô... Enquanto aproximava o fone do ouvido, sua mulher, apoiada no cotovelo, acendia o abajur. Maigret? Perguntaram. Sim. Não reconhecia a voz, apesar de lhe parecer familiar. Aqui é Saint-Hubert... Um comissário de polícia mais ou menos da sua idade, que ele conhecia desde o início da carreira. Tratavam-se pelo sobrenome e se chamavam de senhor. Saint-Hubert era alto e magro, ruivo, um tanto vagaroso e formal, louco para pôr os pingos nos ii. Acordei o senhor? Acordou. Desculpe. De qualquer jeito, acho que uma hora ou outra o pessoal do Quai des Orfèvres vai ligar para avisar, porque eu já liguei para o Ministério Público e para a PJ. Maigret, sentado na cama, pegava um cachimbo que havia deixado se apagar na mesinha-de- cabeceira ao deitar. Olhava à procura de fósforos. Sua mulher se levantara para pegá-los na

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MAIGRET E OS HOMENS DE BEM (Maigret et les Braves Gens - 1961)

Georges Simenon

CAPÍTULO 1

Em vez de resmungar, tateando no escuro à procura do aparelho, como era costume quando o telefone tocava de madrugada, Maigret deu um suspiro de alívio. Já não lembrava com nitidez o sonho do qual fora arrancado, mas sabia que era um sonho desagradável: tentava explicar a alguém importante, cujo rosto não via, a alguém que estava muito descontente com ele, que a culpa não era sua, que era preciso ter paciência, só uns dias de paciência, porque ele havia perdido o costume, se sentia apático, descontente consigo mesmo. Que confiassem nele, não ia demorar. E, principalmente, que não o olhassem com ar de reprovação ou ironia. — Alô... Enquanto aproximava o fone do ouvido, sua mulher, apoiada no cotovelo, acendia o abajur. — Maigret? Perguntaram. — Sim. Não reconhecia a voz, apesar de lhe parecer familiar. — Aqui é Saint-Hubert... Um comissário de polícia mais ou menos da sua idade, que ele conhecia desde o início da carreira. Tratavam-se pelo sobrenome e se chamavam de senhor. Saint-Hubert era alto e magro, ruivo, um tanto vagaroso e formal, louco para pôr os pingos nos ii. — Acordei o senhor? — Acordou. — Desculpe. De qualquer jeito, acho que uma hora ou outra o pessoal do Quai des Orfèvres vai ligar para avisar, porque eu já liguei para o Ministério Público e para a PJ. Maigret, sentado na cama, pegava um cachimbo que havia deixado se apagar na mesinha-de-cabeceira ao deitar. Olhava à procura de fósforos. Sua mulher se levantara para pegá-los na

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lareira. A janela estava aberta para uma Paris ainda morna, pontilhada de luzes, e se ouviam táxis trafegando ao longe. Há cinco dias que haviam voltado de férias, e era a primeira vez que os acordavam daquele jeito; para Maigret, era como uma volta ao contato com a realidade, com a rotina. — Estou ouvindo, murmurava tirando baforadas do cachimbo, enquanto a mulher segurava o fósforo aceso acima do fornilho. — Estou no apartamento do Sr. René Josselin, na Rua Notre-Dame-des-Champs, 37 B, bem ao lado do convento das Irmãs dos Pobres... Acabaram de descobrir um crime... Não sei muita coisa a respeito, porque cheguei há uns vinte minutos... Está ouvindo? — Estou. A mulher estava a caminho da cozinha, para preparar café, e Maigret lhe dirigia um olhar cúmplice. — O caso parece complicado; provavelmente delicado... Por isso tomei a liberdade de lhe telefonar... Tinha medo que se limitassem a mandar um daqueles investigadores da guarda civil... Ele escolhia as palavras, e se notava que não estava sozinho no aposento. — Eu sabia que o senhor estava de férias há pouco tempo. — Voltei semana passada. Era quarta-feira. Mais exatamente quinta, pois o despertador, na mesinha-de-cabeceira da mulher de Maigret, marcava 2h10. Os dois tinham ido ao cinema, menos para ver o filme, bem medíocre, do que para voltar aos velhos hábitos. — O senhor tem a intenção de vir? — Só demoro o tempo de me vestir. — Sou pessoalmente grato. Conheço um pouco os Josselins. É gente de quem não se espera uma tragédia... Até mesmo o cheiro do fumo era profissional: cheiro do cachimbo que fora apagado na véspera e aceso de novo na madrugada, ao se acordar com um chamado de urgência. O cheiro do café também era diferente do cheiro daquele do café da manhã. E o cheiro de gasolina que penetrava pela janela aberta... Há oito dias que Maigret tinha a impressão de estar atolado. Pela primeira vez, tinham ficado três semanas inteiras em Meung-sur-Loire, sem o menor contato com a PJ, sem que o chamassem a Paris para um caso urgente, como acontecera nos outros anos. Tinham ficado cuidando da casa e do jardim. Maigret havia pescado com vara, jogado bisca com o povo do lugar e, depois da volta, não conseguia tomar pé na vida cotidiana. Paris também não, ao que parecia. Não reencontraram a chuva nem o ar fresco do fim das férias. Os ônibus de turistas continuavam pelas ruas, carregando estrangeiros de camisa colorida, e, embora muitos parisienses já tivessem voltado, muitos outros lotavam trens para sair. A PJ e sua sala pareciam um tanto irreais para Maigret, que se perguntava às vezes o que fazia ali, como se a vida de verdade estivesse longe, à margem do Loire. Era provavelmente desse mal-estar que provinha o sonho, cujos detalhes ele tentava inutilmente lembrar-se. A Sra.

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Maigret voltava da cozinha com uma xícara de café fumegante, entendendo de imediato que aquele despertar abrupto, em vez de enfurecer o marido, o reconfortava. — Onde é? — Em Montparnasse... Na Rua Notre-Dame-des-Champs... Ele vestira a camisa e a calça; estava amarrando os sapatos quando o telefone tocou de novo. Dessa vez era a PJ. — Aqui é Torrence, chefe... Acabamos de ser avisados que... — Que um homem foi morto na Rua Notre-Dame-des-Champs... — Já está sabendo? Está pensando em ir lá? — Quem está no departamento? — Dupeu, interrogando um suspeito de roubo de joias, Vacher... Espere... Lapointe está chegando... — Diga a ele que me espere no local... Janvier estava de férias. Lucas, que voltara na véspera, ainda não reassumira o posto no Quai des Orfèvres. — Chamo um táxi? Perguntou um pouco depois sua mulher. Lá embaixo, ele encontrou um motorista que o conhecia e, pela primeira vez, ficou contente com isso. — Para onde, chefe? Ele deu o endereço, encheu outro cachimbo. Na Rua Notre-Dame-des-Champs, avistou um veículo preto da PJ e Lapointe, em pé na calçada, fumando e batendo papo com um policial. — Terceiro andar à esquerda, anunciou . Lapointe. Maigret e Lapointe transpuseram a soleira de um prédio de classe média, bem cuidado, e viram luz na zeladoria; através do tule da cortina, o comissário acreditou reconhecer um investigador do sexto arrondissement interrogando a zeladora. O elevador mal parou, uma porta se abriu e Saint-Hubert se adiantou para recebê-los. — O Ministério Público não vai chegar antes de meia hora... Entre... O senhor vai entender por que fiz questão de lhe telefonar... Penetraram num vestíbulo amplo; depois, Saint-Hubert empurrou uma porta entreaberta, e eles se encontraram numa sala de visitas calma, onde não havia ninguém, a não ser o corpo de um homem caído num sofá de couro. Razoavelmente alto e gordo, estava encolhido; a cabeça, com os olhos abertos, pendia para o lado. — Pedi que a família ficasse em outro cômodo... A mulher está sendo atendida pelo médico da família, o Doutor Larue, que por acaso é amigo meu... — Está ferida? — Não. Estava fora quando ocorreu a tragédia. Vou lhe explicar em poucas palavras o que consegui saber até agora. — Quem mora no apartamento? Quantas pessoas? — Duas... — O senhor falou de família... — O senhor vai entender... O casal Josselin mora sozinho aqui desde que a filha se casou... Ela se casou com um médico jovem, um pediatra, o Doutor Fabre, que é assistente do professor Baron no hospital Enfants-Malades... Lapointe fazia anotações. — Esta noite, a Sra. Josselin e a filha foram ao teatro Madeleine... — E os maridos?

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— René Josselin ficou sozinho durante algum tempo. — Não gostava de teatro? — Não sei. Acho que não gostava de sair à noite. — O que ele fazia? — Há dois anos, nada. Antes era dono de uma cartonagem, na Rua Saint-Gothard. Fabricava caixas de papelão, principalmente caixas de luxo para o comércio de perfumes, por exemplo... Por motivo de saúde, transferiu o negócio... — Idade? — Sessenta e cinco ou sessenta e seis... Ontem à noite, então, ficou sozinho... Depois o genro veio ficar com ele, não sei a que horas chegou, e os dois jogaram xadrez.... De fato, numa mesinha, se via um jogo de xadrez, com as peças dispostas como se a partida tivesse sido interrompida. Saint-Hubert falava baixo, e, em outros cômodos, já que as portas não estavam totalmente fechadas, se ouvia um vaivém. — Quando as duas mulheres voltaram do teatro... — A que horas? — Meia-noite e quinze... Quando voltaram, conforme eu dizia, encontraram René Josselin na posição que o senhor está vendo... — Quantas balas? — Duas... As duas na região do coração... — Os moradores não ouviram nada? — Os vizinhos do lado ainda estão de férias... — O senhor foi avisado imediatamente? — Não. Elas chamaram antes o Doutor Larue, que mora pertinho, na Rua Assas, e cuidava de Josselin. Mesmo assim demorou um pouco, e só à 1h10 recebi um telefonema do meu comissariado, que acabava de ser avisado. Foi o tempo de me vestir e vir correndo... Fiz poucas perguntas, porque é difícil fazer outra coisa no estado em que a mulher dele se encontra... — E o genro? — Chegou um pouco antes do senhor. — O que ele diz? — Foi difícil achá-lo, acabou sendo encontrado no hospital, aonde tinha ido ver uma criança, uma encefalite, se entendi bem... — Onde está agora? — Por aí... Saint-Hubert apontava para uma das portas. Ouviam-se cochichos. — Pelo pouco que fiquei sabendo, não houve roubo, e não descobrimos vestígios de arrombamento... Os Josselins, pelo que sabem, não têm inimigos... É gente de bem, que não se mete em complicação. Alguém bateu. Era Ledent, jovem médico-legista conhecido de Maigret, que apertou a mão de todos antes de pôr a maleta sobre uma cômoda e abri-la. — Recebi um telefonema do Ministério Público, disse. — O representante da promotoria está vindo aí. — Gostaria de fazer umas perguntas para a moça, murmurou Maigret, cujo olhar passeara várias vezes pela sala.

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Ele entendia os sentimentos de Saint-Hubert. O cenário era não só elegante e confortável, como também se respirava paz, vida familiar. Não era uma sala luxuosa; era um cômodo gostoso de se morar, em que cada móvel dava a impressão de ter sua utilidade e sua história. O grande sofá de couro amarelado, por exemplo, era, evidentemente, o sofá no qual René Josselin tinha costume de se sentar todas as noites; na frente, do outro lado da sala, o televisor ficava bem no seu campo de visão. O piano de cauda durante alguns anos servira a uma jovem cujo retrato se via na parede, e, perto de outro sofá, menos profundo que o do chefe da família, havia uma bela mesa estilo Luís XV. — Quer que a chame? — Prefiro falar com ela em outro cômodo... Saint-Hubert bateu a uma das portas, desapareceu por um momento e voltou até Maigret, que entrevia um dormitório, um homem inclinado sobre uma mulher deitada. Outra mulher, mais jovem, se dirigia para o comissário, murmurando: — Se o senhor quiser me acompanhar até meu quarto de solteira... Quarto que continuava de solteira, ainda com suvenires, bibelôs, fotografias, como se quisessem que, embora casada, ela reencontrasse na casa dos pais as cenas da juventude. — O senhor é o comissário Maigret, não é? Ele respondeu que sim com a cabeça. — Pode fumar seu cachimbo... Meu marido fuma cigarros desde a manhã até a noite, menos quando está atendendo as crianças, claro... Usava um vestido bem elegante e, antes de ir ao teatro, passara pelo cabeleireiro. Suas mãos retorciam um lenço. — Prefere ficar em pé? — Sim... O senhor também, não é?... Ela não conseguia ficar parada, ia e vinha sem saber onde pousar o olhar. — Não sei se o senhor imagina o efeito disso tudo... Todos os dias a gente ouve falar de crimes pelos jornais, pelo rádio, mas não imagina que isso possa acontecer com a gente... Coitado do meu pai!... — A senhora era muito apegada a seu pai? — Ele era um homem de uma bondade excepcional... Eu era tudo para ele... Sou filha única... Sr. Maigret, o senhor precisa conseguir entender o que aconteceu, precisa nos dizer... Ninguém me tira da cabeça que foi um erro terrível... — A senhora acha que o assassino se enganou de andar? Ela o olhou como quem se agarra a uma tábua de salvação, mas em seguida balançou a cabeça. — Não pode ser... A fechadura não estava arrombada... Meu pai deve ter aberto a porta... Maigret chamou: — Lapointe!... Pode entrar... Apresentou-o, e Lapointe corou quando se viu num quarto de moça. — Se me permite, quero fazer umas perguntas. Quem teve a ideia de ir ao teatro ontem à noite, a senhora ou sua mãe? — É difícil dizer. Acho que minha mãe. É sempre ela que insiste para eu sair. Tenho dois filhos, o mais velho tem três anos, e o outro, dois meses. Quando meu marido não está no consultório, onde não costumo ir falar com ele, está fora, no hospital, ou visitando doentes. Ele é um homem que se dedica inteiramente à sua profissão. Então, de vez em quando, duas ou três vezes por mês, minha mãe me telefona, convidando para sair com ela. Ontem à noite estavam apresentando uma peça que eu tinha vontade de ver...

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— Seu marido não estava livre? — Não antes das nove e meia. Era muito tarde. Além do mais, ele não gosta de teatro... — A que horas a senhora veio? — Por volta das oito e meia. — Onde a senhora mora? — No Bulevar Brune, perto da Cidade Universitária. — Veio de táxi? — Não. Meu marido me trouxe de carro. Ele tinha um intervalo entre duas consultas. — Ele subiu? — Deixou-me lá embaixo. — Ia voltar depois? — Era o que acontecia quase sempre quando eu saía com minha mãe. Paul, esse é o nome do meu marido, vinha ficar com meu pai assim que terminavam as consultas, e os dois jogavam xadrez ou ficavam vendo televisão enquanto nos esperavam. — Foi isso o que aconteceu ontem? — Pelo que ele acabou de me dizer, sim. Ele chegou por volta das nove e meia. Começaram uma partida. Aí, meu marido recebeu um telefonema... — A que horas? — Ele não teve tempo de me explicar. Sei que saiu e, mais tarde, quando subimos, mamãe e eu, encontramos o espetáculo que o senhor bem sabe... — Onde estava o seu marido a essa hora? — Telefonei imediatamente para casa, e Germaine, a empregada, disse que ele não tinha voltado. — A senhora não teve a ideia de avisar a polícia? — Não sei... Nós ficamos meio perdidas, mamãe e eu... Não entendíamos... Precisávamos de alguém para nos aconselhar, e fui eu que tive a ideia de chamar o Doutor Larue... Ele é ao mesmo tempo amigo e médico de papai... — A ausência de seu marido não a deixou surpresa? — Logo de início achei que ele havia sido retido por alguma urgência... Depois, quando o Doutor Larue estava aqui, telefonei para o hospital... Foi lá que consegui falar com ele... — Qual foi a reação dele? — Ele me disse que viria imediatamente... O Doutor Larue já tinha chamado a polícia... Não tenho certeza se estou dizendo tudo na ordem certa... Durante todo esse tempo eu cuidava de minha mãe, que tinha um ar de quem não sabia onde estava... — Que idade ela tem? — Cinquenta e um anos. Ela é bem mais nova que meu pai, ele se casou tarde, com trinta e cinco anos... — A senhora poderia chamar seu marido? Com a porta aberta, Maigret ouviu vozes na sala, a voz do representante da promotoria, Mercier, e a de Étienne Gossard, jovem juiz de instrução que, como os outros, tinha sido tirado da cama. Os homens da perícia não demorariam a invadir a sala. — O senhor quer falar comigo? O homem era jovem, magro, nervoso. A mulher voltara com ele e perguntava timidamente: — Posso ficar? Maigret acenou que sim. — Doutor, fui informado de que o senhor chegou aqui por volta das nove e meia.

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— Um pouco mais tarde, não muito... — O senhor já tinha terminado de atender? — Achava que sim, mas, na minha profissão, nunca se tem certeza. — Imagino que, quando sai de casa, o senhor deixa com a empregada algum endereço onde possa ser encontrado. — Germaine sabia que eu estava aqui. — É sua empregada? — É. Ela também fica cuidando das crianças quando minha mulher sai. — Como estava seu sogro quando o senhor chegou? — Como sempre. Vendo televisão. O programa não estava interessante, e ele sugeriu uma partida de xadrez. Começamos a jogar. Por volta das dez e quinze, o telefone tocou... — Era para o senhor? — Era. Germaine me disse que havia uma urgência na Rua Julie, número 28... É no meu bairro... Germaine não entendeu bem o nome, Lesage ou Lechat, ou talvez Lachat... A pessoa que telefonou, ao que parece, estava muito aflita... — O senhor saiu logo em seguida? — Sim. Disse ao meu sogro que voltaria, se o doente não me tomasse muito tempo, caso contrário, iria diretamente para casa... Era essa a minha intenção... Levanto muito cedo, por causa do hospital... — Quanto tempo o senhor ficou com o doente? — Não havia doente... Fui falar com uma zeladora, e ela me olhou surpresa, afirmando que no prédio não havia ninguém que tivesse um nome parecido com Lesage ou Lechat, e que ela não sabia de nenhuma criança doente... — O que o senhor fez? — Pedi licença para telefonar para casa e questionei Germaine... Ela repetiu que era mesmo o número 28... Por via das dúvidas, toquei a campainha no 18 e no 38, mas sem resultado... Como já estava na rua, aproveitei e passei pelo hospital, para ver um paciente que me preocupava... — Que horas eram? — Não sei... Fiquei mais ou menos meia hora cuidando da criança... Depois, dei um giro pelas salas com uma enfermeira... Até que vieram me avisar que minha mulher estava ao telefone... — O senhor foi a última pessoa que viu seu sogro vivo... Ele parecia preocupado? — Nem um pouquinho... Foi comigo até a porta e disse que ia terminar sozinho a partida... Ouvi o barulho da corrente, quando ele fechou... — Tem certeza? — Ouvi o barulho característico da corrente... Posso até jurar... — Quer dizer que ele deve ter se levantado para abrir a porta para o assassino... Diga-me uma coisa, minha senhora: quando a senhora chegou com sua mãe, imagino que a corrente não estava trancada? — Se estivesse, não entraríamos... O médico fumava, soltando pequenas baforadas rápidas, acendendo um cigarro após o outro, preocupado, olhando fixamente ora para o tapete, ora para o comissário. Dava a impressão de estar tentando em vão resolver um problema, e a mulher não estava menos agitada que ele. — Amanhã vou precisar repetir essas perguntas com detalhes, peço desculpas... — Eu entendo...

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— Agora está na hora de ir falar com esse pessoal do Ministério Público. — Vão levar o corpo embora? — Vai ser preciso... Não se pronunciava a palavra autópsia, mas se adivinhava que a mulher estava pensando nisso. — Volte para junto de sua mãe. Daqui a pouco vou falar com ela e lhe tomarei o menor tempo possível... Na sala, Maigret maquinalmente dava apertos de mão, cumprimentava os colaboradores da perícia, que estavam instalando seus aparelhos. O juiz de instrução, preocupado, interrogava: — O que pensa disso, Maigret? — Nada. — Não acha estranho terem chamado o genro justamente ontem à noite para atender um doente que não existe? Como eram as relações dele com o sogro? — Não sei. Ele tinha horror àquelas perguntas, quando todos, ele e os outros, tinham acabado de penetrar na intimidade de uma família. O investigador que Maigret entrevira na zeladoria estava entrando no aposento com uma caderneta na mão, se aproximando de Maigret e de Saint-Hubert. — A zeladora é categórica, disse ele. — Eu a interroguei durante quase uma hora. É uma moça nova e inteligente; o marido é policial. Está de serviço esta noite. — O que ela diz? — Que abriu a porta para o Doutor Fabre às 9h35. Tem certeza da hora porque ia se deitar e estava acertando o despertador. Costuma se deitar cedo porque o filhinho, que só tem três meses, acorda bem cedinho para tomar a primeira mamadeira... Estava dormindo, às dez e quinze, quando a campainha tocou. Ela reconheceu perfeitamente a voz do Doutor Fabre, que disse o nome quando passou... — Quantas pessoas entraram e saíram depois? — Espere. Ela tentou dormir de novo. Estava começando a pegar no sono quando tocaram, dessa vez da rua. A pessoa que entrou disse o nome: Aresco. É uma família latino-americana que mora no primeiro andar. Quase imediatamente, o bebê acordou. Ela tentou fazê-lo dormir e acabou esquentando água com açúcar. Ninguém entrou nem saiu até a volta da Sra. Josselin com a filha. Os magistrados, que estavam ouvindo, olharam-se sérios. — Em outras palavras, proferiu o juiz, — O Doutor Fabre foi a última pessoa que saiu do prédio? — A Sra. Bonnet é categórica. Esse é o nome da zeladora. Se tivesse dormido, não falaria com tanta certeza. Acontece que, por causa do bebê, ficou em pé o tempo todo... — Ainda estava em pé quando as duas mulheres voltaram? A criança ficou acordada durante duas horas? — Parece que sim. Ela estava até preocupada com isso e lamentou não ter visto o Doutor Fabre voltar, pois queria lhe pedir um conselho. Todos olhavam para Maigret com olhos interrogadores, e Maigret assumia um ar amuado. — Acharam os cartuchos? Perguntava ele, se voltando para um dos peritos. — Dois... 6,35... O corpo pode ser retirado?...

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Os homens de avental branco esperavam, com sua padiola. No momento em que René Josselin transpunha a porta de casa debaixo de uma mortalha, sua filha entrava no aposento silenciosamente. Seu olhar cruzou o do comissário, que se aproximou dela. — Por que veio? Ela não respondeu imediatamente. Seu olhar acompanhava os carregadores, a padiola. Só depois que a porta se fechou, ela murmurou, como quem fala sonhando: — Uma ideia que me passou pela cabeça... Espere... Dirigiu-se para uma cômoda antiga, que ficava entre duas janelas, e abriu a gaveta de cima. — O que está procurando? Seus lábios tremiam e seu olhar, posto sobre Maigret, era fixo. — O revólver... — Havia um revólver nessa gaveta? — Há anos... Por isso, quando eu era pequena, essa gaveta estava sempre trancada a chave... — Que tipo de revólver? — Um automático achatado, azulado, que tinha uma marca belga... — Um Browning 6,35? — Acho que sim... Não tenho certeza... Tinha a palavra Herstal gravada e uns números... Os homens se entreolharam novamente, pois a descrição correspondia a uma pistola automática 6,35. — Quando a senhora viu esse revólver pela última vez? — Faz algum tempo... Umas semanas... Talvez uns meses... Provavelmente uma noite em que jogamos cartas, porque as cartas estavam na mesma gaveta... Ainda estão... Aqui, as coisas ficam muito tempo no lugar... — Mas o revólver não está? — Não. — De modo que quem usou o revólver sabia onde ele estava? — Talvez meu pai, para se defender... Notava-se medo em seus olhos. — Seus pais não têm empregada? — Tinham uma que morava aqui e se casou há mais ou menos seis meses. Depois disso, tentaram duas. Como minha mãe não estava satisfeita, preferiu contratar uma que vem todos os dias, a Sra. Manu... Ela chega pela manhã às sete horas e vai embora às oito da noite... Tudo aquilo era normal, tudo natural, a não ser pelo fato de aquele homem pacífico, recentemente aposentado, ter sido assassinado em seu sofá. Naquela tragédia havia algo incômodo, incoerente. — Como está sua mãe? — O Doutor Larue a obrigou a se deitar. Ela não abre a boca e fica olhando fixo para frente, como se tivesse perdido a consciência. Não chorou. A impressão que dá é de um vazio... O médico pede autorização para lhe dar um sedativo... Ele gostaria que ela dormisse... Pode?... Por que não? Não seria fazendo perguntas à Sra. Josselin que Maigret descobriria a verdade. — Pode, respondeu. O pessoal da perícia continuava trabalhando, com a calma e a minúcia habituais. O representante da promotoria estava se despedindo. — Vem comigo, Gossard? Está de carro? — Não. Peguei um táxi.

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— Se quiser, lhe dou uma carona. Saint-Hubert também foi embora, não sem antes cochichar para Maigret: — Não fiz bem em chamá-lo? O comissário acenou positivamente, e foi se sentar num sofá. — Abra a janela, disse a Lapointe. Fazia calor dentro do aposento e por diversas vezes ele se surpreendera com o fato de que, apesar da temperatura ainda quente, Josselin tivesse passado a noite com todas as janelas fechadas. — Chame o genro... — É pra já, chefe... Aquele não demorou a aparecer, com ar exausto. — Diga uma coisa, doutor, quando o senhor se despediu de seu sogro, as janelas estavam abertas ou fechadas? Ele pensou, olhou para as duas janelas que estavam com as cortinas puxadas. — Espere... Não sei... Estou tentando me lembrar... Eu estava sentado aqui... Parece que enxergava luzes... Sim... Quase poderia jurar que a janela da esquerda estava aberta... Eu conseguia ouvir distintamente os ruídos da cidade... — O senhor não a fechou antes de sair? — Por que fecharia? — Não sei. — Não... Não tive essa ideia... Não se esqueça de que não estou na minha casa... — O senhor vem aqui com frequência? — Mais ou menos uma vez por semana... Véronique visitava os pais com mais frequência... Diga uma coisa... Minha mulher vai ficar aqui esta noite, mas eu, pessoalmente, gostaria de ir dormir em casa... Nunca deixamos as crianças sozinhas a noite inteira com a empregada... Além disso, amanhã, preciso estar no hospital às sete horas... — O que o impede de sair? Ele ficou surpreso com a resposta, como se ele mesmo se considerasse suspeito. — Eu agradeço... Era possível ouvi-lo falar com a mulher no cômodo ao lado, depois atravessou a sala, sem chapéu, com a maleta na mão, fazendo um cumprimento desajeitado.

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CAPÍTULO 2

Quando os três homens saíram do prédio, no apartamento só ficaram a Sra. Josselin e a filha. O bebê da zeladora, depois de uma noite agitada, devia ter pegado no sono, pois a zeladoria estava escura, e o dedo de Maigret hesitou um momento no botão da campainha. — Doutor, que tal tomar um trago? Lapointe, a ponto de abrir a porta do carro preto, deixou o gesto suspenso. O Doutor Larue olhou o relógio, como se este fosse lhe dar a resposta. — Prefiro tomar uma xícara de café, pronunciou ele com a mesma voz grave e um pouco untuosa que usava para falar com seus pacientes. — Deve haver um bar ainda aberto na esquina da Montparnasse. O dia ainda não tinha apontado. As ruas estavam quase vazias. Maigret levantou a cabeça na direção do terceiro andar e viu a luz se apagar na sala onde uma das janelas continuava aberta. Será que Véronique Fabre ia finalmente se despir e se deitar em seu antigo quarto? Ou ficaria sentada à cabeceira da mãe, adormecida pela injeção do Doutor Larue? Quais seriam seus pensamentos naqueles aposentos repentinamente desertos, onde tantos estranhos se movimentavam havia pouco tempo? — Vá levando o carro... Disse o comissário a Lapointe. Só havia a Rua Vavin para percorrer. Larue e Maigret iam andando pela calçada. O médico era baixo, espadaúdo e gorducho; parecia nunca perder a calma, a dignidade e a gentileza. Notava-se que estava habituado a uma clientela abastada, manhosa e bem educada, cujos modos e tons ele assumira, não sem exagerar um pouquinho. Apesar de andar pelos cinquenta, sobrava muita inocência em seus olhos azuis, certo receio de magoar, e Maigret saberia depois que ele expunha todos os anos no Salão dos Pintores-Médicos. — O senhor conhece os Josselins há tempo? — Desde que me estabeleci no bairro, quer dizer, há uns vinte anos. Véronique ainda era pequena e, se não me engano, foi por causa dela, por causa de um sarampo, que eles me chamaram pela primeira vez. O tempo estava fresco, um pouco úmido. Um halo suave circundava os bicos de gás. Vários carros estavam estacionados à frente de um cabaré ainda aberto na esquina do Bulevar Raspail; o porteiro de uniforme, em pé na entrada, confundiu os dois homens com clientes eventuais e empurrou a porta para que por ela esguichassem jatos de música. Lapointe, no carro, ia seguindo os dois e se mantinha junto ao meio-fio. A noite de Montparnasse ainda não terminara. Um casal discutia em voz baixa encostado a um muro, perto de um hotel. Num bar ainda iluminado, como previra o doutor, se viam algumas silhuetas, e uma velha florista junto ao balcão tomava um café que espalhava forte cheiro de rum. — Para mim, uma fine à l’eau, disse Maigret. O médico hesitou. — Puxa! Acho que vou tomar a mesma coisa. — E você, Lapointe? — Eu também, chefe. — Três fines à l’eau...

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Sentaram-se em torno de uma mesa redonda, perto da vidraça, e começaram a falar em voz baixa, enquanto as pequenas barganhas da noite prosseguiam ao redor deles. Larue afirmava com convicção: — É gente de bem. Logo ficamos amigos e frequentemente minha mulher e eu íamos jantar em casa deles. — São ricos? — Depende do que se entende por rico. Sem dúvida são bem endinheirados. O pai de René Josselin já era dono de um pequeno negócio de cartonagem na Rua Saint-Gothard, uma oficina simples, envidraçada, no fundo de um pátio, que empregava umas doze operárias. O filho, quando a herdou, comprou máquinas modernas. Era um homem de bom gosto, que tinha ótimas ideias, e logo conquistou a clientela dos grandes perfumistas e de outros estabelecimentos de luxo. — Parece que se casou tarde, com uns 35 anos? — Exatamente. Morava na Rua Saint-Gothard, no andar de cima das oficinas, com a mãe, que sempre teve saúde precária. Nunca me escondeu que foi por causa dela que não se casou antes. Por um lado, não queria que ela ficasse sozinha. Por outro, não se sentia no direito de obrigar nenhuma moça a conviver com uma doente. Trabalhava muito, só vivia para os negócios. — À sua saúde! — Saúde! Lapointe, com os olhos avermelhados de cansaço, não perdia uma só palavra da conversa. — Ele se casou um ano depois que a mãe morreu e foi morar na Rua Notre-Dame-des-Champs. — Quem era a noiva? — Francine de Lancieux, filha de um coronel aposentado. Acho que ela e o pai moravam umas casas adiante, na Rua Saint-Gothard ou Dareau, e foi assim que Josselin a conheceu. Ela devia ter 22 anos na época. — Eles se davam bem? — Era um dos casais mais unidos que já conheci. Logo depois tiveram uma filha, Véronique, que o senhor conheceu hoje. Mais tarde, quiseram um filho homem, mas uma operação muito dolorosa matou todas as esperanças. “Gente de bem”, disseram o comissário de polícia e, depois, o médico. Gente quase sem história, num cenário opulento e tranquilo. — Voltaram de La Baule na semana passada... Compraram uma casa de veraneio quando Véronique ainda era bem pequena e continuaram indo para lá todos os anos. Desde que Véronique teve filhos, também levam as crianças. — E o marido? — O Doutor Fabre? Não sei se tirou férias, acho que não mais de uma semana. Talvez tenha ido até lá duas ou três vezes entre o sábado e o domingo à noite. É um homem que se dedica inteiramente à medicina e aos pacientes, uma espécie de santo fora da igreja. Quando conheceu Véronique, era residente no Enfants-Malades; se não tivesse se casado, provavelmente ficaria contente com uma carreira no hospital, sem se preocupar com clientela particular. — O senhor acha que a mulher insistiu para ele ter consultório? — Não vou trair nenhum segredo profissional se responder a essa pergunta. Fabre não esconde. Caso se dedicasse exclusivamente ao hospital, teria dificuldades para sustentar a família. O sogro quis que ele montasse um consultório e lhe fez um empréstimo. O senhor viu.

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Ele não se preocupa com aparência nem com conforto. Na maioria das vezes anda de roupa amarrotada; se ficasse sozinho, eu me pergunto se ele se lembraria de trocar a roupa de baixo... — Ele se dava bem com Josselin? — Os dois se gostavam. Josselin tinha muito orgulho do genro e, além disso, os dois tinham uma paixão comum pelo xadrez. — Ele estava doente de verdade? — Eu que pedi a ele que diminuísse o ritmo das atividades. Ele sempre foi gordo; quando o conheci, pesava quase 110 quilos. Mesmo assim, trabalhava doze ou treze horas por dia. O coração não acompanhava. Há dois anos, teve uma crise não muito forte, mas que não deixava de ser um sinal de alarme. Eu o aconselhei a contratar um colaborador, a se limitar a alguma espécie de supervisão, o suficiente para manter a cabeça ocupada. Para minha surpresa, ele preferiu largar tudo; explicou que não era homem de fazer as coisas pela metade. — Vendeu o negócio? — Para dois empregados seus. Como eles não tinham dinheiro suficiente, ele continuaria participando durante certo número de anos, não sei exatamente quantos. — Como ele passava o tempo nos últimos dois anos? — De manhã, ia passear no Jardin du Luxembourg; eu o vi várias vezes. Andava devagar, com cuidado, como muitos cardíacos, pois acabou exagerando seu estado de saúde. Lia. O senhor viu a biblioteca dele. Ele, que nunca teve tempo de ler, descobriu a literatura no fim da vida e falava do assunto com entusiasmo. — E a mulher? — Apesar de ter empregada, no começo fixa e depois diarista, quando decidiram deixar de contratar doméstica residente, cuidava muito da casa e da cozinha. Além do mais, ia quase todos os dias à casa da filha para ver os netos; levava o mais velho de carro ao parque Montsouris... — O senhor deve ter ficado surpreso quando soube do ocorrido. — Ainda me custa acreditar. Vi algumas tragédias na minha clientela, não muitas, mas vi. Às vezes, elas são de se esperar. O senhor entende o que eu quero dizer? Em todos os casos, apesar das aparências, existia uma espécie de fissura, um elemento de perturbação. Desta vez, fico conjecturando... Maigret fazia um sinal, para que o garçom voltasse a encher os copos... — A reação da Sra. Josselin me preocupa, continuava o médico, sempre com o mesmo tom untuoso. — Ou melhor dizendo: a falta de reação, a astenia total. Não consegui arrancar uma só frase dela a noite inteira. Ela olhava para a filha, para o genro e para mim como se não enxergasse. Não derramou uma lágrima sequer. Do quarto dela, dava para ouvir os ruídos na sala. Com um pouco de imaginação, não era difícil adivinhar o que ia acontecendo, os flashes dos fotógrafos, por exemplo, depois, quando levaram o corpo... Achei que pelo menos nessa hora ela ia reagir, tentar sair correndo. Estava consciente, mas não se mexeu, nem estremeceu... Passou a maior parte da vida com um homem e, de repente, voltando do teatro, está sozinha... Eu me pergunto como vai se arranjar... — Acha que a filha vai levá-la para morar com ela? — Não é muito provável. Os Fabres moram num daqueles prédios novos de apartamentos bem pequenos. É verdade que ela ama a filha e adora os netos, mas não consigo imaginá-la morando mal o tempo todo com eles... Bom, já está na hora de ir para casa... Amanhã de manhã meus pacientes me esperam... Nada disso! Deixe pra lá...

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Puxou a carteira do bolso. O comissário tinha sido mais rápido que ele. Algumas pessoas saíam do cabaré ao lado, um grupo inteiro, músicos, dançarinas, uns esperando os outros ou dando boa noite, saltos altos martelando a calçada. Lapointe assumia o volante ao lado de um Maigret de rosto inexpressivo. — Para sua casa? — Sim. Ficaram calados um bom tempo, enquanto o carro trafegava pelas ruas desertas. — Amanhã de manhã, bem cedinho, gostaria que alguém fosse à Rua Notre-Dame-des-Champs interrogar os moradores do prédio, à medida que acordem. É possível que alguém tenha ouvido o tiro e não tenha ficado preocupado, achando que era o estouro de um pneu... Gostaria também de ficar sabendo quem entrou e quem saiu a partir das nove e meia... — Eu mesmo cuido disso, chefe. — Não. Você vai dormir depois de dar as instruções. Se Torrence estiver livre, mande-o para a Rua Julie, nos três números onde o Doutor Fabre diz que tocou. — Entendido. — Além disso, por desencargo de consciência, vale a pena verificar a que horas ele chegou no hospital... — Só isso? — Só... Ou talvez não... Tenho a impressão de estar esquecendo alguma coisa, faz uns quinze minutos pelo menos, e tento descobrir o quê... É uma impressão que tive várias vezes esta noite... Uma hora tive uma ideia, nem chegava a ser uma ideia, aí alguém falou comigo, Saint-Hubert se não me engano... Foi o tempo de responder e já não conseguia me lembrar no que tinha começado a pensar... Estavam chegando ao Bulevar Richard-Lenoir. A janela continuava aberta para a escuridão do quarto, assim como a janela da sala dos Josselins tinha continuado aberta depois da saída do pessoal. — Boa noite, garoto. — Boa noite, chefe. — Acho que não chego no escritório antes das dez... Subiu pesado as escadas, ruminando pensamentos imprecisos, e encontrou a porta aberta pela mulher, que estava de camisola. — Não está muito cansado? — Acho que não... Não... Não era canseira. Era preocupação, chateação, um pouco de tristeza, como se a tragédia da Rua Notre-Dame-des-Champs o afetasse pessoalmente. O médico com cara de boneca bem que havia dito: não dava para admitir que os Josselins fossem gente em casa de quem a tragédia entra naturalmente. Lembrava-se das reações de todos, de Véronique, do marido, da Sra. Josselin, que ele ainda não vira nem pedira para ver. Tudo aquilo tinha algo de constrangedor.

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Ele se sentia constrangido, por exemplo, de mandar confirmar as declarações do Doutor Fabre, como se ele fosse um dos suspeitos. No entanto, se levando em conta apenas os fatos, era forçoso pensar nele. O representante da procuradoria e o Juiz de Instrução Gossard certamente tinham pensado também e, se não disseram nada, foi porque o caso provocava neles o mesmo mal-estar que causava em Maigret. Quem sabia que as duas mulheres, mãe e filha, tinham ido ao teatro? Pouca gente decerto e até então ninguém havia sido mencionado. Fabre chegara à Rua Notre-Dame-des-Champs por volta das nove e meia. Começava uma partida de xadrez com o sogro. Recebia um telefonema de casa, avisando que precisava visitar um doente na Rua Julie. Isso não tinha nada de extraordinário. Era provável que, como todos os médicos, ele fosse assim incomodado com frequência. Mas não seria uma tremenda coincidência naquela noite, justamente, a empregada ter entendido mal o nome? E ter mandado o médico para um endereço onde ninguém precisava dele? Em vez de voltar para a Rua Notre-Dame-des-Champs, acabar a partida e esperar a mulher, Fabre ia para o hospital. Isso devia acontecer muitas vezes, se levando em conta o seu caráter. Um único morador, durante todo esse tempo, voltava para o prédio e disse o nome quando passava pela zeladoria. A zeladora se levantava um pouco mais tarde e afirmava que ninguém tinha entrado nem saído depois disso. — Não está dormindo? — Ainda não... — Tem certeza que quer se levantar às nove? — Tenho... Demorou para conciliar o sono. Via a figura magra do pediatra com roupas amarrotadas, olhos muito brilhantes de quem dorme pouco. Saberia que era suspeito? E a mulher e a sogra, teriam pensado nisso? Em vez de telefonar para a polícia quando acharam o corpo, ligaram para o apartamento do bulevar Brune. Ora, não estavam a par da história da Rua Julie. Não sabiam por que Fabre tinha ido embora da Rua Notre-Dame-des-Champs. Não imaginaram de imediato que ele podia estar no hospital e recorreram ao médico da família, o Doutor Larue. O que teriam conversado enquanto ficaram sozinhas com o cadáver no apartamento? Será que a Sra. Josselin já estava em estado de choque? Será que Véronique tomou sozinha as decisões, enquanto a mãe ficava quieta, com o olhar ausente? Larue chegava e percebia imediatamente o erro, senão a imprudência, que elas haviam cometido deixando de chamar a polícia. E avisava o comissariado. Tudo isso Maigret gostaria de ter visto e vivido pessoalmente. Era preciso reconstituir pedaço por pedaço cada momento da noite. Quem pensou no hospital e quem pegou o telefone? Larue? Véronique? Quem se certificou de que nada havia desaparecido do apartamento e que, portanto, não se tratava de latrocínio? A Sra. Josselin era levada para seu quarto. Larue ficava perto dela e, com autorização de Maigret, acabava por lhe dar uma injeção de sedativo. Fabre acudia, encontrava a polícia na casa do sogro, este morto no sofá. — No entanto, pensava Maigret pegando no sono, — Foi sua mulher que me falou do revólver...

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Se Véronique não tivesse aberto a gaveta de propósito, sabendo o que procurava, ninguém provavelmente teria desconfiado da existência da arma. Bom, mas isso não excluía a possibilidade de o crime ter sido cometido por um estranho? Fabre alegava que ouvira o sogro puxando a corrente depois de ter ido com ele até a porta, às dez e quinze. Portanto, Josselin abriu pessoalmente a porta para seu assassino. Não desconfiou de nada, porque voltou a se sentar no sofá. Se a janela estava aberta nessa hora, o que parecia provável, alguém a fechou, Josselin ou o visitante. E se a Browning era mesmo a arma do crime, o assassino sabia da sua existência naquele lugar exato e pode tê-la pegado sem despertar suspeitas. Supondo-se que fosse alguém que viera de fora, como teria saído do prédio? Maigret acabou dormindo um sono ruim, durante o qual não parou de se revirar, e foi com alívio que sentiu o cheiro do café, ouviu a voz da mulher e viu à sua frente a janela aberta, dando para tetos ensolarados. — São nove horas... Num instante, ele se lembrava do caso em seus mínimos detalhes, como se não tivesse havido interrupção. — Me dê a lista telefônica. Procurou o número dos Josselins, discou, escutou tocar durante muito tempo, até ouvir, finalmente, uma voz desconhecida. — É da casa do Sr. René Josselin? — Ele morreu. — Quem está falando? — A empregada. — A Sra. Fabre ainda está aí? — Quem é? — O comissário Maigret, da Polícia Judiciária. Estive aí esta noite... — Ela acabou de sair para ir se trocar. — E a Sra. Josselin? — Ainda está dormindo. Deram um remédio pra ela, e parece que não vai acordar antes da filha voltar. — Ninguém foi aí? — Ninguém. Estou pondo tudo em ordem. Eu nem desconfiava quando cheguei de manhã... — Agradeço... A mulher de Maigret não fez perguntas e ele se limitou a dizer: — Um homem de bem que se deixou matar sabe lá Deus por quê. Revia Josselin no sofá. Esforçava-se por vê-lo não morto, mas vivo. Teria mesmo ficado sozinho diante do tabuleiro e, durante algum tempo, teria continuado a partida, mexendo ora os peões pretos, ora os brancos? Se estivesse esperando alguém... Sabendo que o genro ficaria com ele à noite, não devia ter marcado nenhum encontro secreto. Ou então... Era de se acreditar que o telefonema chamando o Doutor Fabre para a Rua Julie... — São as pessoas de bem que mais dão trabalho, resmungou terminando o café e indo para o banheiro. Não passou pelo Quai des Orfèvres logo em seguida e só telefonou para ter certeza de que não precisavam dele.

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— Rua Saint-Gothard, disse ao motorista de táxi. Investigaria antes pelo lado de René Josselin. Josselin era a vítima, é verdade, mas ninguém mata ninguém sem motivo. Paris continuava cheirando a férias. Já não era a Paris vazia do mês de agosto, mas sobrava uma espécie de preguiça no ar, uma hesitação em retomar a vida de todos os dias. Se chovesse ou fizesse frio, seria mais fácil. Naquele ano, o verão não se decidia a morrer. O motorista virou, saindo da Rua Dareau, perto do aclive da estrada de ferro. — Que número? — Não sei. É uma firma de cartonagem... Mais uma virada e eles avistaram um grande prédio de concreto com janelas sem cortinas. Ao longo da fachada se lia: ANTIGA CARTONAGEM JOSSELIN JOUANE E GOULET, SUCESSORES.

— Fico esperando? — Sim. Havia duas portas, a das oficinas e, um pouco adiante, a porta dos escritórios, por onde Maigret penetrou em instalações bem modernas. — Pois não? Uma moça estendia a cabeça por um guichê e o olhava com curiosidade. É verdade que Maigret tinha aquela cara fechada do começo das investigações e olhava devagar em volta de si com ar de quem está absorto, inventariando o local. — Quem dirige o estabelecimento? — Os Srs. Jouane e Goulet... Respondeu ela como se fosse evidente. — Sei. Mas qual dos dois é o principal? — Depende. O Sr. Jouane cuida principalmente da parte artística, e o Sr. Goulet, da fabricação e da parte comercial. — Os dois estão aí? — O Sr. Goulet ainda está de férias. O que o senhor deseja? — Falar com o Sr. Jouane. — De onde é? — É o comissário Maigret. — O senhor tem hora marcada? — Não. — Um momento... Foi até o fundo de seu cubículo de vidro falar com uma moça de avental azul que, depois de lançar um olhar curioso para o visitante, saiu do cômodo. — Vão chamá-lo. Ele está na fábrica. Maigret ouvia barulho de máquinas e, quando uma porta lateral se abriu, entreviu um salão bastante amplo onde outras moças e outras mulheres de branco trabalhavam enfileiradas, como numa linha de produção. — Quer falar comigo?

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O homem devia ter uns 45 anos. Era alto, rosto franco e também usava um avental branco que, desabotoado, deixava à mostra um terno de bom corte. — Pode me acompanhar... Subiram por uma escada de carvalho claro e, atrás de uma divisória de vidro, viram meia dúzia de desenhistas trabalhando debruçados. Mais uma porta e se estava num escritório ensolarado, onde uma secretária, num dos cantos, datilografava. — Deixe-nos a sós, Srta. Blanche. Indicou uma cadeira para Maigret e se sentou à sua mesa, surpreso e um pouco ansioso. — Estou curioso... Começava. — Está sabendo da morte do Sr. Josselin? — Como? O Sr. Josselin morreu? Quando foi? Voltou de férias? — O senhor não o viu desde que ele voltou de La Baule? — Não. Ainda não veio nos visitar. Teve um ataque? — Foi assassinado. — Ele? Notava-se que lhe custava acreditar. — Não é possível. Quem teria... — Foi morto na casa dele, ontem à noite, com dois tiros... — Quem o matou? — É o que estou tentando descobrir, senhor Jouane. — A mulher não estava com ele? — Ela tinha ido ao teatro com a filha. Jouane abaixou a cabeça, visivelmente chocado. — Coitado... É tão inacreditável... Havia uma ponta de revolta. — Mas quem podia estar interessado... Escute, senhor comissário... O senhor não o conhecia... Era o melhor homem do mundo... Foi um pai para mim, mais que um pai... Quando entrei aqui, tinha dezesseis anos, não sabia nada... Meu pai tinha acabado de morrer... Minha mãe fazia limpeza... Comecei como contínuo, com um triciclo... Foi o Sr. Josselin que me ensinou tudo... Foi ele depois que me nomeou chefe de seção... E, quando decidiu largar os negócios, me chamou no escritório, Goulet e eu... Goulet tinha começado trabalhando nas máquinas... Disse que o médico queria que ele trabalhasse menos e confessou que era incapaz de fazer isso... Vir aqui duas ou três horas por dia, por diletantismo, não era possível para um homem como ele, que estava acostumado a cuidar de tudo e quase todas as noites ficava trabalhando muito tempo depois que a fábrica fechava... — O senhor teve medo de que um estranho viesse a ser seu patrão? — Confesso que sim. Para Goulet e para mim seria uma verdadeira catástrofe, e nós nos olhávamos aterrorizados, enquanto o Sr. Josselin dava um sorriso malicioso... O senhor sabe o que ele fez? — Já me contaram esta noite. — Quem? — O médico dele. — É verdade que nós dois tínhamos umas economias, mas não o suficiente para comprar uma empresa como esta... O Sr. Josselin chamou o tabelião, e eles encontraram um meio de nos ceder o negócio escalonando os pagamentos a longo prazo... Um prazo que, evidentemente, está longe de acabar... Para falar a verdade, durante mais vinte anos... — Mesmo assim ele vinha aqui de vez em quando? — Fazia visitas discretas, como se tivesse medo de atrapalhar. Ele se certificava de que tudo corria bem, de que estávamos contentes, e, quando por acaso lhe pedíamos um conselho, ele os dava como quem não tem nenhum direito de fazer isso...

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— Sabe de algum inimigo dele? — Nenhum! Não era homem de fazer inimigos. Todo mundo gostava dele. Pode ir aos escritórios, à fábrica e perguntar a qualquer um o que pensava dele... — O senhor é casado? — Sou, tenho três filhos e moramos perto de Versalhes, numa casa que construí... Aquele também era um homem de bem! Será que Maigret, naquele caso, só ia conhecer gente fina? Estava a ponto de ficar irritado porque, afinal, de um lado existia um morto e, do outro, um homem que tinha atirado duas vezes em René Josselin. — O senhor ia sempre à Rua Notre-Dame-des-Champs? — Fui umas quatro ou cinco vezes ao todo... Não! Esqueci que há cinco anos, quando o Sr. Josselin teve uma gripe forte, eu ia lá todas as manhãs levar a correspondência e receber instruções... — Alguma vez jantou ou almoçou lá? — Minha mulher e eu jantamos lá com Goulet e a mulher dele na noite da assinatura do contrato, quando o Sr. Josselin transferiu a empresa para nós... — Que tipo de pessoa é Goulet? — Um técnico, um caxias. — Qual a idade dele? — Mais ou menos a minha idade. Entramos na firma com diferença de um ano. — Onde ele está agora? — Na ilha de Ré, com a mulher e os filhos. — Quantos eles têm? — Três, como eu. — O que o senhor acha da Sra. Josselin? — Conheço pouco. Tenho a impressão de que é uma mulher excelente. Não do mesmo tipo do marido. — Que quer dizer com isso? — Que ela é um pouco mais orgulhosa... — E a filha? — Às vezes passava por aqui para ver o pai, mas tínhamos pouco contato com ela. — Imagino que a morte de René Josselin não mude nada nos acertos financeiros? — Ainda não pensei nisso... Deixe ver... Não... Não há motivo... Em vez de fazer os pagamentos diretamente para ele, nós pagaremos aos herdeiros... A Sra. Josselin, imagino... — Os valores são altos? — Depende do ano, porque o ajuste inclui participação nos lucros... De qualquer forma, dá para viver com folga... — O senhor acha que os Josselins viviam com folga? — Viviam bem. Tinham um belo apartamento, um carro, uma casa em La Baule... — Mas poderiam viver com mais luxo? Jouane refletia. — Sim... Provavelmente... — Josselin era muito mão-fechada? — Ele não teria pensado nesse ajuste que nos propôs, a Goulet e a mim, se fosse mão-fechada... Não... Veja bem, acho que ele vivia como tinha vontade de viver... Não gostava de coisas caras... Preferia a tranquilidade a qualquer outra coisa... — E a Sra. Josselin?

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— Gosta de cuidar da casa, da filha e agora dos netos... — Como os Josselins receberam o casamento da filha? — Para mim é difícil falar... Essas coisas não aconteciam aqui, mas na Rua Notre-Dame-des-Champs... É certo que o Sr. Josselin adorava a filha e que foi duro se separar dela... Também tenho uma filha... Tem doze anos... Confesso que tenho receio da hora em que um desconhecido a leve embora e ela deixe de usar meu nome... Imagino que isso aconteça com todos os pais?... — O fato de o genro não ser rico... — Ele deve até ter gostado mais... — E a Sra. Josselin? — Não tenho tanta certeza... A ideia de a filha se casar com o filho de um carteiro... — O pai de Fabre é carteiro? — Em Melun ou numa cidadezinha dos arredores... Estou dizendo o que sei... Parece que ele fez todos os estudos à custa de bolsas... Dizem também que, se ele quisesse, logo seria um dos professores mais jovens da Faculdade de Medicina... — Mais uma pergunta, senhor Jouane. Tenho medo que o senhor fique chocado, depois do que acabou de me dizer. O Sr. Josselin tinha amante, ou amantes? Ele se interessava por mulheres? Quando ele estava abrindo a boca, Maigret o interrompeu. — Imagino que o senhor, desde que se casou, já teve a oportunidade de estar com alguma mulher, que não seja a sua? — Já tive, sim. Mas evitando qualquer ligação. O senhor entende o que eu quero dizer? Não gostaria de arriscar a felicidade do meu lar... — O senhor tem muitas moças trabalhando em volta... — Essas não. Nunca. É uma questão de princípios. Além do mais, seria perigoso... — Agradeço a sua franqueza. O senhor se considera um homem normal. René Josselin também era um homem normal. Casou-se tarde, com uns 35 anos... — Eu entendo o que o senhor quer dizer... Estou tentando imaginar o Sr. Josselin nessa situação... Não consigo... Não sei por quê... Sei que era um homem como os outros... No entanto... — O senhor não teve conhecimento de nenhuma aventura dele? — Nenhuma... Também nunca o vi olhando para nenhuma das nossas operárias de algum jeito diferente, se bem que algumas sejam bem bonitas... Várias até podem ter tentado, como tentaram comigo... Não! Acho que o senhor não vai encontrar nada por esse caminho... Perguntou de repente: — Como é que os jornais não estão dizendo nada? — A imprensa vai falar do assunto à tarde... Maigret se levantou suspirando. — Eu agradeço, senhor Jouane. Se lhe ocorrer algum detalhe que possa ser útil, telefone. — Para mim, é um crime inexplicável... Maigret quase resmungou: — Para mim também. Acontece que ele sabia que não existem crimes inexplicáveis. Ninguém mata sem um motivo importante. Com um pouquinho mais de estímulo, ele teria acrescentado: — Não se mata qualquer um. Porque a experiência lhe ensinara que existe uma espécie de vocação para vítima. — O senhor sabe quando vai ser o enterro? — O corpo só vai ser devolvido à família depois da autópsia. — Ainda não foi feita? — Deve estar sendo feita agora.

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— Preciso telefonar já para Goulet... Ele só voltaria na semana que vem... Quando passou pela saleta envidraçada, Maigret esboçou um cumprimento para a moça e se perguntou por que ela o olhava segurando o riso.

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CAPÍTULO 3

A rua era calma, provinciana, com sol de um lado e sombra do outro, dois cachorros farejando no meio da rua e, por trás das janelas abertas, mulheres cuidando da casa. Três Irmãzinhas dos Pobres, com suas saias largas e as badanas tremulando como pássaros, se dirigiam para o Jardin du Luxembourg, e Maigret as olhava de longe sem pensar em nada. Depois, franziu a testa ao avistar, diante do prédio dos Josselins, um policial fardado, às voltas com uma meia dúzia de repórteres e fotógrafos. Estava acostumado com aquilo. Já era de se esperar. Tinha acabado de dizer a Jouane que os jornais da tarde certamente falariam do assunto. René Josselin tinha sido assassinado, e gente assassinada cai automaticamente em domínio público. Mais algumas horas e a vida íntima de uma família seria exposta com todos os detalhes, verdadeiros ou falsos, e todos teriam o direito de aventar hipóteses. Mas por que aquilo de repente o chocava? E ele se irritava por estar chocado. Tinha a impressão de estar se deixando dominar pela atmosfera burguesa, quase edificante, que cercava aquela gente, “gente de bem”, como repetiam todos. Os fotógrafos entraram em ação enquanto ele descia do táxi. Os repórteres o cercaram enquanto pagava o motorista. — Qual é sua opinião, comissário? Ele os afastava com um gesto, murmurando: — Quando eu tiver alguma coisa para dizer, convoco vocês. Lá em cima, duas mulheres estão sofrendo, e seria mais decente deixá-las em paz. Acontece que nem ele ia deixá-las em paz. Cumprimentou o homem fardado e entrou no prédio; pela primeira vez ele o via à luz do dia, que estava alegre e claríssimo. Ia passar direto pela frente da zeladoria, onde uma cortina de tule branco se estendia por trás da porta envidraçada, quando mudou de ideia, bateu no vidro e girou a maçaneta. Como em todos os prédios dos bairros chiques, a zeladoria era uma espécie de salinha com móveis envernizados. Uma voz perguntava: — Quem é? — Comissário Maigret. — Entre, senhor comissário. A voz vinha de uma cozinha de paredes pintadas de branco, onde a zeladora, de mangas arregaçadas até os cotovelos e avental branco sobre um vestido preto, estava ocupada esterilizando mamadeiras. Era jovem e bem disposta, e seu corpo conservava as formas roliças da recente gestação. Indicando uma porta, disse em voz baixa: — Não fale muito alto. Meu marido está dormindo... Maigret se lembrava de que o marido era policial, e estava de serviço na noite anterior. — Desde hoje de manhã os jornalistas não me deixam em paz, e muitos subiram, aproveitando quando eu estava de costas. Meu marido acabou ligando para o comissariado, e eles mandaram um colega dele... O bebê estava dormindo num berço de vime guarnecido de babados amarelos. — O senhor tem novidades? Perguntou ela. Ele fez um sinal negativo com a cabeça.

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— Imagino que a senhora tenha certeza do que está dizendo, não é? Perguntou ele com voz abafada. — Ninguém saiu, ontem à noite, depois que o Doutor Fabre foi embora? — Ninguém, senhor comissário. Repeti isso agorinha mesmo para um de seus subalternos, um gordo, de rosto avermelhado, o investigador Torrence, acho. Ele passou mais de uma hora no prédio, fazendo perguntas aos moradores. Não são muitos nestes dias. Alguns ainda estão de férias. Os Tuplers ainda não voltaram dos Estados Unidos. Metade do prédio está vazio... — Faz tempo que a senhora trabalha aqui? — Seis anos. Fiquei no lugar de uma tia minha que viveu quarenta anos no prédio. — Os Josselins recebiam muita gente? — Pode-se dizer que não. É gente tranquila, amável com todo mundo, que tem vida muito regular. O Doutor Larue e a mulher dele vinham jantar de vez em quando. Os Josselins também iam jantar na casa deles... Assim como os Maigrets e os Pardons. Maigret se perguntava se também tinham dia marcado. — De manhã, lá pelas nove, enquanto a Sra. Manu limpava a casa, o Sr. Josselin descia para passear. Era tão pontual que dava até para acertar o relógio quando ele passava. Entrava na zeladoria, falava comigo um pouco sobre o tempo, pegava a correspondência, punha no bolso, depois de dar uma olhada nos envelopes, e ia andando devagar para o Jardin du Luxembourg. Sempre andava no mesmo passo... — Recebia muita correspondência? — Pouca. Mais tarde, lá pelas dez, quando ainda estava fora, a mulher dele descia numa tremenda estica, para fazer compras. Eu nunca vi essa mulher sair sem chapéu. — A que horas o marido voltava? — Dependia do tempo. Se estivesse bonito, não costumava voltar antes das onze e meia, meio-dia. Quando estava chovendo, ficava menos tempo, mas mesmo assim saía para passear. — E à tarde? Ela tinha acabado de tapar as mamadeiras e as arrumava na geladeira. — Os dois às vezes saíam juntos, não mais de uma vez ou duas por semana. A Sra. Fabre também vinha visitá-los. Com o nascimento do segundo filho, ela às vezes trazia o mais velho. — Ela se dava bem com a mãe? — Acho que sim, dava sim. Iam juntas ao teatro, como ontem. — A senhora notou nos últimos tempos, na correspondência, alguma carta com caligrafia diferente das de costume? — Não. — Ninguém veio procurar o Sr. Josselin quando ele estava sozinho no apartamento, por exemplo? — Também não. Pensei em tudo isso esta noite, desconfiando que o senhor ia fazer essas perguntas. Veja bem, senhor comissário, é gente que não dá o que falar... — Eles não frequentavam a casa de outros moradores? — Não que eu saiba. Em Paris é raro os moradores de um prédio se conhecerem, a não ser nos bairros populosos. Cada um leva sua vida sem saber quem mora na porta ao lado. — A Sra. Fabre voltou? — Faz alguns minutos... — Agradeço.

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O elevador parou no terceiro andar, onde havia duas portas e, à frente de cada uma, um grande capacho orlado de vermelho. Tocou na porta da esquerda e ouviu passos abafados; depois de uma espécie de hesitação, uma das folhas da porta se moveu, desenhando uma fenda clara e estreita, pois a tranca não havia sido retirada. — Quem é? Perguntou uma voz pouco amigável. — Comissário Maigret. Um rosto de traços marcados, de uma mulher de uns cinquenta anos, se inclinou para examinar o visitante com desconfiança. — Bom! Acredito! Vieram tantos jornalistas hoje de manhã... A corrente foi retirada, e Maigret descobriu o apartamento como ele era costumeiramente, com cada objeto em seu lugar, com sol entrando pelas duas janelas. — Se for com a Sra. Josselin que o senhor quer falar... Ele fora introduzido na sala, onde já não havia vestígios dos acontecimentos e da desordem da noite. Logo uma porta se abriu, e Véronique, vestida com um tailleur azul-marinho, deu dois passos para dentro do aposento. Estava visivelmente cansada, e Maigret percebia em seu olhar uma espécie de vacilação, de procura. Seu olhar, quando se fixava sobre os objetos ou sobre o rosto do visitante, parecia buscar apoio ou resposta para uma indagação. — O senhor não descobriu nada? Murmurou ela sem esperanças. — Como vai sua mãe? — Estou acabando de chegar. Fui ver meus filhos e trocar de roupa. Acho que lhe disse isso pelo telefone. Já nem sei mais. Já nem sei onde estou. Mamãe dormiu. Quando acordou, não falou nada. Bebeu uma xícara de café, mas não quis comer. Eu gostaria que ela continuasse deitada. Não consegui convencê-la, e está se vestindo. Olhava de novo ao redor, evitando o sofá onde o pai morrera. O jogo de xadrez já não estava na mesinha. Um charuto pela metade, que Maigret notara durante a noite, no cinzeiro, havia desaparecido. — Sua mãe não disse absolutamente nada? — Ela só responde sim ou não. Está completamente lúcida. Parece que só pensa numa coisa. É com ela que o senhor quer falar? — Se for possível... — Ela vai ficar pronta daqui a pouquinho. Não a atormente muito, lhe peço esse grande favor. Todo mundo acha que ela é calma, porque tem o costume de se controlar. Mas eu sei que ela tem um nervosismo doentio. Só que não demonstra... — A senhora viu sua mãe muitas vezes sob forte emoção? — Depende do que o senhor chama de forte. Quando eu era pequena, por exemplo, acontecia de irritá-la, como acontece com todas as crianças. Ela, em vez de me dar um tapa ou de gritar, ficava pálida e parecia que não conseguia falar. Nessas ocasiões, quase sempre se fechava no quarto, e eu ficava com muito medo...

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— E seu pai? — Meu pai nunca gritava. A reação dele era sorrir como se estivesse caçoando de mim... — Seu marido está no hospital? — Desde as sete. Deixei as crianças com a empregada, porque não tive coragem de trazê-las comigo. Não sei o que vamos fazer. Não me agrada deixar mamãe sozinha neste apartamento. Em nossa casa não há espaço; aliás, ela se negaria a ir para lá... — A empregada, a Sra. Manu, não pode passar a noite aqui? — Não! Ela tem um filho de 24 anos mais exigente que um marido, que fica nervoso quando ela tem o azar de não chegar em casa na hora... Precisamos encontrar alguém, talvez uma enfermeira... Mamãe vai reclamar... É claro que vou passar aqui todo o tempo que puder... Com traços regulares debaixo de uma cabeleira loiro-arruivada, ela não era especialmente bonita; lhe faltava vivacidade. — Acho que estou ouvindo minha mãe. De fato a porta se abriu e Maigret ficou surpreso por ver diante de si uma mulher de semblante ainda muito jovem. Sabia que ela era quinze anos mais nova que o marido, mas, apesar disso, tinha a ideia de que encontraria uma vovó. No entanto, suas formas, num vestido preto simples, eram mais joviais que as da filha. Os cabelos eram castanhos; os olhos, quase pretos e brilhantes. Apesar da tragédia, apesar do estado em que se encontrava, estava maquiada com esmero, e nenhum detalhe destoava em seus trajes. — Comissário Maigret, se apresentou ele. Ela piscou, olhou ao redor e acabou olhando para a filha, que murmurou: — Acho que o senhor prefere que eu saia. Maigret não disse sim nem não. A mãe não a reteve. Véronique saiu sem nenhum ruído. Todas as idas e vindas, no apartamento, eram abafadas pelo espesso carpete, recoberto em alguns lugares por tapetes antigos. — Sente-se, disse a viúva de René Josselin, ficando em pé perto do sofá do marido. Maigret hesitou, acabou se sentando, e sua interlocutora foi se sentar num sofá que era dela, perto da mesa de costura. Ficou ereta, sem se apoiar no espaldar, como as mulheres que foram educadas em convento. Seus lábios eram finos, provavelmente devido à idade, e as mãos, magras, mas ainda bonitas. — Peço desculpas por ter vindo, Sra. Josselin, e confesso que não sei que perguntas fazer. Estou percebendo a sua desorientação, a sua tristeza. Ela o olhava com as pupilas fixas, sem se mexer, a tal ponto que ele se perguntava se ela estava ouvindo o que ele dizia ou se prosseguia em seu monólogo interior. — Seu marido foi vítima de um crime que parece inexplicável, e sou obrigado a não desprezar nada que possa me levar a alguma pista. A cabeça fez um ligeiro movimento de cima para baixo, como se ela aprovasse.

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— A senhora estava no teatro Madeleine ontem, com sua filha. É provável que quem matou seu marido soubesse que ia encontrá-lo sozinho. Quando esse passeio foi decidido? Ela respondeu com indiferença: — Há três ou quatro dias. Acho que sábado ou domingo. — Quem teve a ideia? — Eu. Estava curiosa para ver a peça, porque os jornais falaram muito dela. Sabendo do estado em que ela estava ainda às quatro horas da madrugada, ele se surpreendia por vê-la responder com tanta calma e precisão. — Conversamos sobre a possibilidade de sair à noite, e minha filha telefonou para o marido, perguntando se ele iria conosco. — Os três costumavam sair juntos? — Raramente. Meu genro só se interessa pela medicina e por seus pacientes. — E seu marido? — Às vezes nós íamos, eu e ele, ao cinema ou ao music hall. Ele gostava muito do music hall. A voz era sem timbre, sem calor. Ela recitava, com o olhar sempre fixo no rosto de Maigret, como se fosse o rosto de um examinador. — A senhora reservou lugar por telefone? — Sim. As poltronas 97 e 99. Eu me lembro bem, porque sempre insisto para ficar perto do corredor central. — Quem sabia da saída das senhoras nessa noite? — Meu marido, meu genro e a empregada. — Ninguém mais? — O cabeleireiro, porque fui lá à tarde. — Seu marido fumava? Maigret pulava de uma ideia para outra e acabava de se lembrar do charuto no cinzeiro. — Pouco. Um charuto depois das refeições. Às vezes fumava enquanto passeava de manhã. — Desculpe esta pergunta ridícula: a senhora sabe se ele tinha inimigos? Ela não se expandia em protestos, simplesmente não fazia caso: — Não. — Ele nunca lhe deu a impressão de estar escondendo alguma coisa, alguma parte mais ou menos secreta de sua vida? — Não. — O que a senhora pensou ontem à noite, quando voltou e encontrou seu marido morto? Ela deu a impressão de engolir em seco e proferiu: — Que estava morto. Seu rosto se tornara mais duro, mais imóvel ainda, e por um instante Maigret achou que seus olhos iam ficar marejados. — A senhora não se perguntou quem o teria matado? Ele acreditou sentir uma excitação pouco perceptível. — Não. — Por que a senhora não telefonou imediatamente para a polícia? Ela não respondeu logo em seguida, e por um instante seu rosto se desviou do comissário. — Não sei. — A senhora chamou primeiro o seu genro? — Não chamei ninguém. Foi Véronique que telefonou para a casa dela; estava preocupada porque não encontrou o marido aqui. — Ela não ficou surpresa de não encontrar o marido em casa também? — Não sei. — Quem pensou no Doutor Larue?

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— Acho que fui eu. Nós precisávamos de alguém para cuidar de tudo o que precisava ser feito. — A senhora não suspeita de ninguém, Sra. Josselin? — Ninguém. — Por que se levantou agora de manhã? — Porque não tinha motivo para ficar na cama. — A senhora tem certeza de que nada desapareceu na casa? — Minha filha verificou isso. Ela conhece o lugar das coisas tão bem quanto eu. Tirando o revólver... — Quando a senhora viu o revólver pela última vez? — Faz uns dias, não sei exatamente quantos. — A senhora sabia que ele estava carregado? — Sabia. Meu marido sempre teve um revólver carregado em casa. Logo que nos casamos, ele o guardava na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Depois, com receio de que Véronique mexesse nele, e como não havia nenhum móvel fechado à chave no quarto, ele o guardou na sala. Durante muito tempo, aquela gaveta ficou fechada. Agora que Véronique está grande e casada... — Seu marido parecia temer alguma coisa? — Não. — Ele guardava muito dinheiro em casa? — Pouquíssimo. Pagamos quase tudo com cheque. — Nunca lhe aconteceu voltar para casa e encontrar, com seu marido, alguém que a senhora não conhecesse? — Não. — A senhora também nunca viu o seu marido com alguma pessoa estranha? — Não, senhor comissário. — Agradeço. Ele sentia calor. Tinha acabado de fazer um dos interrogatórios mais penosos de sua carreira. Era mais ou menos como arremessar uma bola que não volta. Tinha a impressão de que suas perguntas não tocavam nenhum ponto sensível, que elas paravam na superfície, e que as respostas que lhe chegavam em troca eram neutras e sem vida. Ela não tinha se esquivado de nenhuma pergunta, mas também não tinha proferido nenhuma frase pessoal. Não se levantava para se despedir. Continuava ereta em seu sofá, e ele era incapaz de ler o que quer que fosse naqueles olhos que, apesar de tudo, eram extremamente vivos. — Peço desculpas pela intrusão. Ela não protestou; esperou que ele ficasse em pé para se levantar, e depois esperou que ele tomasse desajeitadamente o rumo da porta para segui-lo. — Se tiver alguma ideia, uma lembrança, uma desconfiança qualquer... Mais uma vez, ela respondeu com piscadelas. — Um policial está guardando a porta, e eu espero que a senhora não seja importunada pelos jornalistas... — A Sra. Manu me disse que eles já tinham chegado... — Faz tempo que a senhora conhece essa empregada? — Mais ou menos seis meses.

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— Ela fica com alguma chave do apartamento? — Mandei fazer uma para ela, sim. — Além dela, quem tinha a chave? — Meu marido e eu. Nossa filha também. Ela ficou com a chave que tinha quando era solteira. — Só? — Só. Existe uma quinta chave, que eu chamo de chave de reserva, que fica na minha penteadeira. — Continua lá? — Acabo de vê-la. — Posso fazer uma pergunta à sua filha? Ela foi abrir uma porta, desapareceu por um instante e voltou com Véronique Fabre, que olhava alternadamente para cada um dos dois. — A sua mãe me disse que a senhora ficou com uma chave do apartamento. Gostaria de ter certeza de que continua com ela... Ela foi até uma cômoda, de cima da qual pegou uma bolsa de couro azul, abriu-a e dela retirou uma pequena chave achatada. — Estava com a senhora ontem no teatro? — Não. Eu levei uma bolsinha social, bem menor que esta, e não pus quase nada dentro. — Quer dizer que sua chave ficou no seu apartamento, no bulevar Brune? Tinha terminado. Não encontrava mais perguntas que pudesse fazer de um modo decente. Aliás, tinha pressa de sair daquele universo sóbrio, onde não se sentia à vontade. — Agradeço... Desceu pelas escadas para esticar as pernas e, já na primeira curva, relaxou com um suspiro profundo. Os jornalistas já não estavam na calçada, por onde o policial dava voltas, com passos largos e lentos; mas estavam junto ao balcão de uma venda de carvão, defronte, e vieram correndo. — O senhor interrogou as duas mulheres? Ele olhava para os repórteres mais ou menos com o jeito da viúva, como se não enxergasse os rostos, como se enxergasse através deles. — É verdade que a Sra. Josselin está doente e se recusa a responder? — Não tenho nada para declarar... — Quando o senhor espera... Fez um gesto vago e se dirigiu para o Bulevar Raspail, em busca de um táxi. Como os jornalistas não o seguiram, mas voltaram ao seu plantão, ele aproveitou para entrar no mesmo barzinho da noite anterior e tomou um chope.

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Era quase meio-dia quando entrou em sua sala do Quai des Orfèvres. Um pouquinho depois, entreabria a porta da sala dos investigadores e avistava Lapointe em companhia de Torrence. — Venham os dois aqui... Sentou-se pesadamente à sua mesa, escolheu o cachimbo mais grosso e o encheu. — O que foi que você fez? Perguntou primeiro ao jovem Lapointe. — Fui até a Rua Julie fazer as averiguações. Interroguei três zeladoras. As três confirmam que ontem à noite alguém foi perguntar se havia alguma criança doente no prédio. Uma delas ficou desconfiada, achando que o homem não tinha jeito de médico e era uma figura meio estranha. Ela quase chamou a polícia. — Que horas eram? — Entre dez e meia e onze horas... — E no hospital? — Foi mais difícil. Cheguei no auge da correria. Era a hora em que o professor e os médicos visitam os quartos. Estava todo mundo ocupadíssimo. Vi o Doutor Fabre de longe, e tenho certeza que ele me reconheceu. — Não reagiu? — Não. Eram muitos, de avental branco, casquete na cabeça, acompanhando o chefão. — É comum ele passar a noite no Enfants-Malades? — Parece que isso acontece com todos, quando têm um caso de urgência ou quando estão acompanhando um caso importante. Quem mais fica por lá é o Doutor Fabre. Catei umas duas ou três enfermeiras de passagem. Todas falam dele no mesmo jeito. Lá ele é considerado um tipo de santo... — Ele ficou o tempo todo cuidando da criança doente? — Não. Entrou em vários quartos e conversou bastante tempo com um residente... — Já estão a par, lá no hospital? — Acho que não. Olhavam-me atravessado. Principalmente uma mulher nova que deve ser mais que enfermeira, uma assistente, acho, que me disse nervosa: “Se o senhor tem perguntas indiscretas para fazer, faça-as ao próprio Doutor Fabre...”. — O médico-legista não telefonou? Depois de uma autópsia, era costume dar um telefonema para o Quai des Orfèvres antes de despachar o relatório oficial, que sempre demorava algum tempo para ser lavrado. — Ele colheu as duas balas. Uma estava alojada na aorta e já seria suficiente para provocar a morte. — A que horas ele acha que ela aconteceu? — Pelo que consegue concluir, entre nove e onze horas, mais ou menos. Para ser mais preciso, o Doutor Ledent gostaria de saber a que horas Josselin ingeriu a última refeição. — Telefone para a empregada, peça essa informação e transmita a resposta.

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Durante aquele tempo, o gordo Torrence, postado diante da janela, olhava os barcos que passavam pelo Sena. — O que eu faço? Perguntou Lapointe. — Primeiro, cuide desse telefonema. Sr. Torrence, o senhor... Não o tratava com intimidade, embora o conhecesse havia mais tempo do que a Lapointe. É verdade que este mais parecia um estudante do que um investigador de polícia. — Então, os moradores? — Eu fiz uma pequena planta do prédio. Assim fica mais fácil. Pôs a planta na escrivaninha, passou por trás de Maigret e às vezes estendia o dedo para indicar algum dos quadrados que ele havia desenhado. — Primeiro, o térreo. O senhor deve saber que o marido da zeladora é policial e estava de serviço à noite. Voltou para casa às sete da manhã, e o trajeto da sua ronda não o obrigou a passar pela frente do prédio durante a noite. — Que mais? — À esquerda mora uma solteirona, a Srta. Nolan, que ao que parece é riquíssima e sovina. Ficou vendo televisão até onze horas e depois se deitou. Não ouviu nada e não recebeu nenhuma visita. — À direita? — Um certo Davey. Também mora sozinho, é viúvo e vice-diretor de uma companhia de seguros. Jantou na cidade, como todas as noites, e voltou para casa às nove e quinze. Pelo que fiquei sabendo, uma moça bem bonita vai de vez em quando ficar com ele, mas isso não aconteceu ontem. Ele leu os jornais e pegou no sono por volta das dez e meia, sem ouvir nada de anormal. Só quando o pessoal da perícia entrou no prédio com os aparelhos ele acordou. Levantou-se e foi perguntar o que estava acontecendo ao policial que estava de plantão na porta. — Qual foi a reação dele? — Nenhuma. Deitou de novo. — Ele conhecia os Josselins? — Só de vista. No primeiro andar, à esquerda, é o apartamento dos Arescos. São seis ou sete, todos morenos e gordos, as mulheres até são bonitas, e todo mundo fala com sotaque: o pai, a mãe, uma cunhada, uma moça alta de vinte anos e duas ou três crianças. Não saíram ontem. — Tem certeza? A zeladora disse... — Eu sei. Também me disse. Alguém entrou, um pouco depois da saída do Doutor e disse o nome Aresco quando passou pela frente da zeladoria... O Sr. Aresco está indignado com isso... A família toda ficou jogando cartas, e eles juram que ninguém saiu do apartamento... — O que a zeladora diz disso? — Que ela tem quase certeza de que foi esse o nome que disseram, e até achou que reconhecia o sotaque. — Quase certeza... Repetiu Maigret. Até achou que reconhecia... O que os Arescos fazem? — Têm grandes negócios na América do Sul, onde moram durante uma parte do ano. Também têm uma casa na Suíça. Estavam lá há quinze dias...

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— Conheciam os Josselins? — Garantem que não sabiam nem do nome deles. — Continue. — À direita, na frente deles, mora um crítico de arte, Joseph Mérillon, atualmente a serviço do governo em Atenas... — No segundo? — Todo o andar é ocupado pelos Tuplers, que estão nos Estados Unidos. — Nada de empregadas? — O apartamento está fechado há três meses. Os tapetes foram mandados para a lavanderia. — Terceiro? — Ninguém, nessa noite, do lado dos Josselins. Os Delilles, um casal de certa idade, com filhos casados, ficam na Côte d’Azur até o começo de outubro. Toda essa gente tem férias compridas, chefe... — Quarto? — Acima dos Josselins, os Meurats, um arquiteto, a mulher dele e a filha de doze anos. Não saíram. O arquiteto trabalhou até meia-noite e não ouviu nada. A janela dele ficou aberta. Do outro lado do saguão, um industrial e a mulher, os Blanchons, que viajaram no mesmo dia para caçar em Sologne. No quinto, mais uma mulher sozinha, a Sra. Schwartz, que muitas noites recebe uma amiga, mas essa amiga não foi ontem, e ela se deitou cedo. Finalmente, um casal jovem, que se casou no mês passado e está em Nièvre, na casa dos pais da noiva. No sexto, só quartos de empregados... Maigret olhava a planta com um olhar desanimado. Claro, vários quadrados continuavam vazios, gente que ainda estava na praia, no interior ou no exterior. Apesar disso, metade do prédio tinha feito alguma coisa na noite anterior. Alguns moradores jogavam cartas, viam televisão, liam ou dormiam. Um deles ainda trabalhava. A zeladora não tinha adormecido inteiramente depois da saída do Doutor Fabre. No entanto, dois tiros haviam sido disparados, um homem havia sido morto num dos quadrados, sem que nos outros o ramerrão cotidiano fosse perturbado. “Gente de bem...”. Toda aquela gente também, provavelmente, era fina, tinha meios de subsistência conhecidos, vida folgada e sem mistérios. A zeladora, depois de puxar o cordão para o Doutor Fabre, teria dormido mais profundamente do que achava? Ela tinha boa-fé, sem dúvida alguma. Era uma mulher inteligente, que não ignorava a importância de suas palavras. Afirmava que alguém havia voltado entre dez e meia e onze horas, e que, de passagem, pronunciara o nome Aresco diante da zeladoria. Ora, os Arescos juravam que nenhum deles tinha saído nem entrado naquela noite. Não conheciam os Josselins. Era plausível. Ninguém, no prédio, como ocorre frequentemente em Paris, principalmente na alta burguesia, se preocupava com os vizinhos. — Fico pensando por que um morador, entrando no seu prédio, daria o nome de outro morador... — E se não fosse um morador? — Segundo a zeladora, não poderia ter saído depois sem ser visto... Maigret franzia a testa. — Parece uma tolice, resmungou. — No entanto, pela lógica, é a única explicação possível...

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— Que ele tenha ficado no prédio? — Pelo menos, até de manhã... Durante o dia, deve ter sido fácil ir e vir sem ser notado... — O senhor quer dizer que o assassino estaria ali, a dois passos da polícia, durante toda a investigação do Ministério Público e enquanto o pessoal da perícia estava trabalhando no apartamento? — Alguns apartamentos estão vazios... Chame um chaveiro e verifique se alguma fechadura foi arrombada... — Suponho que eu não devo entrar? — Só verificar as fechaduras, de fora. — Só isso? — Por enquanto. Que mais gostaria de fazer? Torrence, o gordo, assumiu um ar pensativo e concluiu: — É verdade... De fato havia um crime, pois um homem tinha sido morto. Só que não era um crime como os outros, porque a vítima não era uma vítima como as outras. — Um homem de bem! Repetia Maigret com uma espécie de raiva. Quem poderia ter motivo para matar aquele homem de bem? Mais um pouco e ele começaria a detestar gente de bem.

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CAPÍTULO 4

Maigret foi almoçar em casa, diante da janela aberta, e só então notou um gesto que sua mulher fazia todos os dias: o de tirar o avental antes de se sentar à mesa. Muitas vezes, logo em seguida, dava uns tapinhas nos cabelos, para ajeitá-los. Também eles poderiam ter empregada. Era sua mulher que nunca tinha desejado nenhuma, afirmando que, se não tivesse casa para cuidar, se sentiria inútil. Só aceitava uma diarista alguns dias por semana para o trabalho pesado, e muitas vezes refazia o trabalho feito pela outra. Seria esse o caso da Sra. Josselin? De jeito nenhum. Ela era meticulosa, como demonstrava o estado de seu apartamento, mas, ao contrário da mulher de Maigret, não devia sentir necessidade de fazer tudo com as próprias mãos. Por que enquanto comia se punha a comparar as duas mulheres, que nada tinham em comum? Na Rua Notre-Dame-des-Champs, a Sra. Josselin e a filha provavelmente estavam comendo, uma diante da outra, e Maigret imaginava as duas se observando furtivamente. Estariam discutindo detalhes práticos? Pois no Bulevar Brune o Doutor Fabre, por sua vez, provavelmente estava em casa, sozinho com os filhos. Só havia uma empregadinha para cuidar deles e da casa. Assim que terminasse de almoçar, iria para seu consultório, onde o desfile de jovens pacientes e mamães aflitas não terminaria durante toda a tarde. Teria encontrado alguém para ficar com a sogra na Rua Notre-Dame-des-Champs? E esta aceitaria a presença de uma pessoa estranha? Maigret se surpreendia preocupado com tais detalhes, como se fosse gente de sua família. René Josselin estava morto, e o importante não era só descobrir seu assassino. Os que tinham ficado precisavam ir reorganizando a vida aos poucos. Bem que ele gostaria de ir até o Bulevar Brune para, de algum modo, sentir o ambiente no qual viviam Fabre, a mulher e os filhos. Ficara sabendo que eles moravam em um dos prédios novos, próximos à Cidade Universitária, e ele imaginava um daqueles edifícios anônimos que vira de passagem, que para ele mais mereciam o nome de ratoeiras de gente. Fachada nua e branca, já suja. Fileiras de janelas uniformes, com os mesmos aposentos de cima a baixo. Banheiros uns acima dos outros, cozinhas também; paredes estreitas demais, que deixavam passar todos os ruídos. Poderia jurar que lá não reinava a mesma ordem da Rua Notre-Dame-des-Champs, que a vida era menos regrada, que as horas das refeições eram mais ou menos aleatórias e que isso se devia tanto ao caráter de Fabre quanto à negligência ou talvez à falta de jeito de sua mulher. Esta havia sido uma criança mimada. A mãe ainda ia vê-la quase todos os dias, ficava com as crianças, levava o mais velho para passear. Não estaria também tentando pôr um pouco de ordem numa vida que devia achar desregrada demais? As duas mulheres, à mesa, se dariam conta de que, no ponto em que estavam as investigações, o único suspeito, pela lógica, era Paul Fabre? Pois era ele a última pessoa conhecida que estivera frente a frente com Josselin. Evidentemente, não podia ter dado pessoalmente o telefonema que o chamava para a Rua Julie, mas no hospital havia um número suficiente de pessoas que lhe eram dedicadas e fariam isso por ele. Sabia onde estava a arma. E, a rigor, tinha um motivo. É verdade que o dinheiro não o interessava. Sem o sogro, nunca se teria enchido de clientes particulares e teria dedicado todo o tempo ao hospital, onde devia se sentir mais em casa do que em qualquer outro lugar. Mas e Véronique? Será que não começava a se arrepender de se ter casado com um homem que todos viam como um santo? Não teria

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vontade de levar uma vida diferente? Em casa, o seu humor não se ressentiria disso? Depois da morte de Josselin, os Fabres decerto receberiam sua parte na herança. Maigret tentava imaginar a cena: os dois homens diante do tabuleiro, silenciosos e sérios como todos os jogadores de xadrez; o médico, a certa altura, levantando e se dirigindo para o móvel onde se encontrava o revólver... Maigret sacudiu a cabeça. Não funcionava. Ele não conseguia ver Fabre voltando até o sogro com o dedo no gatilho... Uma briga, uma discussão que tivesse recrudescido e os dois tivessem perdido as estribeiras? Por mais que tentasse, não conseguia acreditar nisso. Não correspondia ao temperamento dos dois. Além disso, não havia o misterioso visitante mencionado pela zeladora, alguém que disse o nome Aresco? — Recebi um telefonema de Francine Pardon... Disse de repente a Sra. Maigret, talvez de propósito, para mudar o curso de seus pensamentos. Ele estava tão longe, que de início a olhou como se não entendesse. — Voltaram segunda-feira da Itália. Você se lembra de como eles gostaram dessas férias a dois? Eram as primeiras que os Pardons tiravam sozinhos, em mais de vinte anos. Tinham ido de carro, com a ideia de visitar Florença, Roma e Nápoles e voltar por Veneza e Milão, parando ao acaso. — Na verdade, perguntaram se podemos jantar com eles quarta-feira que vem. — Por que não? Já não tinha virado tradição? Esse jantar deveria ter ocorrido na primeira quarta-feira do mês, mas, por causa das férias, foi postergado. — Parece que a viagem foi extenuante, que o trânsito pelas estradas era quase igual ao dos Champs-Elysées e que todas as noites perdiam uma hora ou duas procurando hotel. — Como vai a filha deles? — Bem. O bebê é lindo... A Sra. Pardon também ia quase todas as tardes à casa da filha, que tinha se casado no ano anterior e tinha um bebê de alguns meses. Se os Maigrets tivessem tido um filho, ele provavelmente já estaria casado, e a Sra. Maigret, tal como as outras... — Sabe o que eles decidiram? — Não. — Comprar uma casinha de campo ou na praia, para passar as férias com a filha, o genro e o neto... Os Josselins tinham uma casa em La Baule. Passavam lá um mês por ano em família, talvez mais. René Josselin estava aposentado. Aquilo de repente mexia com Maigret. O dono da cartonagem, durante toda a vida, fora um homem ativo que passara a maior parte do dia na Rua Saint-Gothard, aonde voltava frequentemente à noite para trabalhar. Só via a mulher na hora das refeições e durante uma parte da noite. Amedrontado por uma crise cardíaca repentina, havia abandonado o negócio quase do dia para a noite. O que ele, Maigret, faria caso se aposentasse e passasse o dia inteiro com a mulher no apartamento? Já estava acertado: iriam morar no interior e já tinham até comprado a casa. Mas... E se tivesse de ficar em Paris? Todas as manhãs, Josselin saía de casa quase com hora marcada, por volta das nove, como alguém que vai trabalhar. Segundo a zeladora, se dirigia para o Jardin du Luxembourg com o passo regular e vacilante dos cardíacos ou daqueles que se acreditam ameaçados por um ataque.

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Na verdade, os Josselins não tinham cachorro, e isso surpreendia o comissário. Ele bem poderia imaginar René Josselin levando um cachorro pela correia. Também não havia gato no apartamento. Ele comprava jornais. Sentava-se num banco de jardim para lê-los? Puxaria conversa com algum vizinho? Teria o costume de encontrar regularmente a mesma pessoa, homem ou mulher? Em todo caso, Maigret encarregara Lapointe de ir pedir uma fotografia no apartamento da Rua Notre-Dame-des-Champs para interrogar os comerciantes e os guardas do Luxembourg e assim tentar reconstituir os atos e os gestos matinais da vítima. Daria resultado? Preferia não pensar no assunto. Aquele homem morto, que ele nunca tinha visto vivo, e aquela família cuja existência desconhecia na véspera estavam acabando por obcecá-lo. — Vai voltar para o jantar? — Acho que sim. Espero. Pegou o bonde na esquina do Bulevar Richard-Lenoir e foi no estribo, fumando o charuto e olhando, ao seu redor, aqueles homens e mulheres que iam levando sua vidinha, como se os Josselins não existissem e como se em Paris não houvesse um homem que, sabe Deus por quê, matara um outro. Entrando em sua sala, mergulhou de propósito em trabalhos administrativos desagradáveis, para deixar de pensar naquele assunto, e deve ter conseguido, porque por volta das três horas o telefone tocou, ele atendeu e se surpreendeu ao ouvir a voz excitada de Torrence. — Ainda estou aqui no bairro, chefe... Quase perguntou: — Que bairro? — Achei melhor telefonar do que ir aí, porque pode ser que o senhor decida vir aqui... Tenho novidades... — As duas mulheres continuam no apartamento? — As três, a empregada também. — O que aconteceu? — O chaveiro e eu examinamos todas as portas, inclusive as que dão para a escada de serviço. Parecia que nenhuma tinha sido forçada. Não paramos no quinto andar. Subimos até o sexto, onde ficam os quartos das empregadas. — Descobriram o quê? — Espere um pouco. A maioria estava fechada. Quando nos abaixamos para ver uma das fechaduras, a porta do lado se abriu um pouco e... Surpresa: demos de frente com uma moça nuazinha da silva, nem um pouco preocupada com isso, olhando curiosa para a gente. Moça bonita, aliás, morenona, com uns olhos grandões, tipo espanhola ou latino-americana. Maigret esperava, desenhando maquinalmente no mata-borrão um busto de mulher. — Perguntei o que ela estava fazendo lá, e ela me respondeu num francês ruim que estava na hora da folga, e que era a empregada dos Arescos. “— Por que está tentando abrir essa porta?” Perguntou desconfiada. E disse também, mas sem parecer preocupada com a hipótese: “— Vocês são arrombadores?” Expliquei quem éramos. Ela não sabia que um dos moradores do prédio tinha sido morto durante a noite:

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“— Aquele senhor gentil que sempre ria para mim na escada?” Depois disse: “Não será a empregada nova deles?” — Eu não estava entendendo nada. Nós devíamos estar com uma cara bem ridícula, e eu tive vontade de pedir para ela botar alguma coisa em cima do corpo. “— Que empregada nova?” Perguntei. “— Eles devem ter uma empregada nova, porque eu ouvi barulho no quarto ontem à noite...”. De repente, Maigret parou de rabiscar. Estava furioso por não ter pensado naquilo. Para ser exato, tinha começado a pensar no assunto na noite anterior. Houve um momento em que uma ideia começara a se formar em sua cabeça, e ele se sentiu a ponto de fazer uma descoberta, conforme dissera a Lapointe. Alguém, o comissário Saint-Hubert ou o juiz de instrução, falara com ele e, logo em seguida, ele já era incapaz de retomar o fio da meada. A zeladora afirmava que um desconhecido entrara no prédio pouco depois da saída do Doutor Fabre. Dera o nome Aresco, mas os Arescos afirmavam que não tinham recebido ninguém e que nenhum membro da família tinha saído. Maigret mandara interrogar os moradores, mas se esquecera dos bastidores do prédio, ou seja, do andar dos empregados. — Está entendendo, chefe?... Espere um pouco!... Ainda não acabei... Aquela fechadura também não tinha sido forçada... Então desci até o terceiro andar pela escada de serviço e perguntei à Sra. Manu se ela tinha a chave do quarto de empregada... Ela esticou o braço para um prego que fica do lado direito de uma prateleira, depois olhou para a parede e para o prego, assustada. “— Olha! Não está mais aí...”. Explicou que sempre tinha visto a chave do sexto andar pendurada naquele prego. “— Ontem também?”, insisti. “— Não posso jurar, mas tenho quase certeza... Só subi lá uma vez com a patroa, logo que comecei a trabalhar aqui, para fazer a limpeza, tirar os lençóis e as cobertas, colar papéis em volta da janela para impedir a entrada de poeira...”. Aquilo era típico de Torrence: quando achava uma pista, seguia com a obstinação de um cão de caça. — Fui de novo até lá em cima, o chaveiro estava me esperando lá. A moça espanhola, que se chama Dolores e devia ter terminado a hora de folga, já tinha descido. A fechadura é de série, sem nenhum macete. O chaveiro abriu sem dificuldade. — Não pediu autorização à Sra. Josselin? — Não. Não me encontrei com ela. O senhor me recomendou só incomodar em caso de necessidade. Bom, a gente não precisava dela. Então, chefe, já estamos no caminho! Alguém passou pelo menos uma parte da noite no quarto de empregada. Os papéis em volta da janela estavam rasgados, e a janela estava aberta. Ainda estava aberta quando entramos. Além disso, dá para ver que um homem se deitou no colchão e pôs a cabeça no travesseiro e também, no chão, existem pontas de cigarro amassadas. Digo que é homem porque as bitucas não tinham marca de batom. Estou telefonando de um bar chamado Clairon, na Rua Vavin. Achei que o senhor ia querer ver...

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— Estou indo! Maigret se sentia aliviado por não precisar mais pensar no Doutor Fabre. Aparentemente, tudo mudara. A zeladora não estava enganada. Alguém havia entrado. E esse alguém, é verdade, não só conhecia a gaveta do revólver como também sabia da existência do quarto de empregada e do lugar da chave na cozinha. Assim, na noite anterior, enquanto as investigações patinavam no terceiro andar, o assassino provavelmente estava no prédio, deitado num colchão, fumando e esperando que o dia raiasse e o caminho ficasse livre. Depois disso, o policial teria ficado o tempo todo junto à porta? Maigret não sabia. Aquilo era assunto do comissário do bairro. Havia um policial quando ele voltou da Rua Saint-Gothard, mas por exigência do marido da zeladora, devido à invasão do prédio por jornalistas e fotógrafos. De qualquer modo, durante a manhã, podia se esperar certo número de idas e vindas, mesmo que de entregadores. A zeladora precisava cuidar do correio, do bebê e dos repórteres, alguns dos quais tinham conseguido chegar ao terceiro andar. Maigret ligou para a perícia. — Moers? Pode mandar um de seus homens com equipamento para tirar impressões digitais? Talvez seja preciso colher outras pistas. É bom trazer todo o material... Estou esperando na minha sala, sim... O investigador Baron bateu à porta. — Até que enfim consegui achar o secretário-geral do teatro Madeleine, chefe. De fato, ontem, duas poltronas foram reservadas em nome da Sra. Josselin. As duas foram ocupadas, não sei por quem, mas foram ocupadas a noite toda. Praticamente foram vendidos todos os ingressos, e ninguém saiu da sala durante a representação. Evidentemente, existem os intervalos. — Quantos? — Dois. O primeiro só dura quinze minutos, e pouca gente sai do lugar. O segundo é mais comprido, uma meia hora, porque a troca de cenário é grande e complicada. — A que horas ocorre? — Às dez horas. Tenho o nome do casal que se sentou bem atrás do 97 e do 99. São frequentadores assíduos, que sempre reservam os mesmos assentos: o casal Demaillé, que mora na Rua La Pompe, em Passy. Interrogo? — É bom. Não queria deixar mais nada de lado. O perito vinha chegando, equipado como um fotógrafo de revista. — Pego um carro? Maigret acenou positivamente e seguiu-o. Encontraram Torrence debruçado sobre um copo de cerveja, ainda em companhia do chaveiro, que parecia se divertir muito com a história. — Já não preciso do senhor, disse o comissário. — Agradeço muito. — Como vão entrar sem mim? Fechei a porta. Foi o seu investigador que mandou... — Eu não queria correr nenhum risco... Murmurou Torrence. Maigret pediu um chope e engoliu tudo quase de um trago. — É melhor os três ficarem aqui esperando. Atravessou a rua, entrou no elevador, tocou à porta dos Josselins. A Sra. Manu abriu, como de manhã, sem retirar a corrente, reconheceu-o de imediato e o deixou entrar. — Com qual das duas o senhor quer falar? — Com a Sra. Josselin. Se não estiver descansando.

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— Não. O médico veio agora há pouco e insistiu para ela se deitar de novo, mas ela se negou. Não faz o gênero dela ficar deitada de dia, só se estiver doente... — Não veio ninguém? — Só o Sr. Jouane, que ficou uns minutos. Depois veio o seu investigador, o gordo, e pediu a chave de lá de cima. Juro que não fui eu que peguei. Aliás, gostaria de saber por que essa chave ficava pendurada no prego, se ninguém mais usava aquele quarto. — Ela nunca foi usada depois que a senhora começou a trabalhar aqui? — Usada para quê, se não existe nenhuma outra empregada? — A Sra. Josselin poderia ter hospedado algum amigo ali, algum conhecido, nem que fosse por uma noite? — Se tivessem algum amigo para dormir aqui, acho que eles dariam o quarto da Sra. Fabre... Vou avisar a patroa... — O que ela está fazendo? — Acho que estão fazendo a lista de participação do enterro... Elas não estavam na sala. Depois de esperar um bom tempo, Maigret as viu chegarem juntas e teve a curiosa impressão de que, se não se separavam, era por desconfiança mútua. — Desculpe por incomodar de novo. Imagino que a Sra. Manu tenha informado o que aconteceu? Elas se observaram antes de abrirem a boca ao mesmo tempo, mas quem falou foi a Sra. Josselin. — Nunca me ocorreu mudar aquela chave de lugar, disse ela, — E quase tinha me esquecido dela. O que isso significa? Quem poderia ter pegado? Por quê? Seu olhar era ainda mais fixo e sombrio do que pela manhã. Suas mãos traíam seu nervosismo. — O meu investigador, explicou Maigret, — Assumiu a responsabilidade de abrir a porta do quarto de empregada para não incomodá-la. Peço que a senhora não se aborreça. Principalmente porque, fazendo isso, ele provavelmente deu um novo rumo às investigações. Ele observava, espreitava suas reações, mas nada denunciava o que podia estar se passando dentro dela. — Estou ouvindo. — Há quanto tempo a senhora não sobe ao sexto andar? — Vários meses. Quando a Sra. Manu começou a trabalhar aqui, fui até lá com ela, porque a última empregada deixou tudo desarrumado, numa sujeira incrível. — Então faz mais ou menos seis meses? — É. — Não voltou lá depois disso? Seu marido também não, imagino? — Ele nunca subiu ao sexto andar na vida. O que ele iria fazer lá? — E a senhora? Perguntou ele à Sra. Fabre. — Há vários anos não subo lá. Só no tempo de Olga, que era tão boazinha comigo, às vezes eu ia falar com ela lá no quarto. Você se lembra, mamãe? Faz uns oito anos... — Havia papéis colados em volta das janelas, não é? — Sim. Para evitar a poeira. — Eles foram rasgados, e a janela foi encontrada aberta. Alguém se deitou na cama, um homem, provavelmente, que fumou alguns cigarros. — O senhor tem certeza que foi nessa noite? — Ainda não. Vim lhe pedir permissão para subir com meus homens e examinar o lugar a fundo.

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— Acho que não preciso lhe dar permissão... — É claro que, se a senhora quiser assistir... Ela o interrompeu sacudindo a cabeça. — A última doméstica que a senhora teve, tinha algum amante? — Não que eu saiba. Era uma moça séria. Estava noiva, e só saiu porque ia se casar. Ele se dirigiu para a porta. Por que de novo aquela impressão de certa desconfiança, de certa animosidade entre mãe e filha? Depois de transpor a porta, ele gostaria muito de saber como elas se comportavam frente a frente, o que se diziam. A Sra. Josselin mantivera o sangue-frio, mas o comissário estava convencido de que ela sofrera um choque. No entanto, teria jurado que aquela história do quarto de empregada não era tão inesperada para ela quanto havia sido para ele. Véronique, por sua vez, se voltara bruscamente para a mãe, com uma espécie de interrogação nos olhos. O que ia dizer, quando abriu a boca? Maigret encontrou os três homens no Clairon e bebeu mais um chope antes de se dirigir com eles para a escada de serviço do prédio. O chaveiro abriu a porta. Foi um tanto difícil se livrar dele, pois ele procurava ser útil, para ficar. — Sem mim, como vocês vão fazer para fechar a porta? — Eu lacro... — Está vendo, chefe, dizia Torrence apontando para a cama, — A janela ainda aberta, cinco ou seis bitucas no chão. — O que eu quero saber em primeiro lugar é se esses cigarros foram fumados recentemente. — É fácil... O perito examinou uma bituca, cheirou-a, desmanchou delicadamente o invólucro de papel, amassou o fumo entre os dedos. — No laboratório, vou poder dizer com mais certeza. Por enquanto, posso dizer que não faz muito tempo que esses cigarros foram fumados. Aliás, se o senhor cheirar o ambiente, vai notar que, apesar da janela estar aberta, o ar ainda tem cheiro de fumo. O homem desembalava os aparelhos com os gestos lentos e minuciosos próprios a todo o pessoal do laboratório. Para eles, não havia mortos, ou melhor, os mortos não tinham identidade, família ou personalidade. Crime não passava de problema científico. Eles cuidavam de coisas precisas, vestígios, indícios, marcas, poeiras. — Ainda bem que a limpeza não é feita há muito tempo. E, se voltando para Torrence: — O senhor andou muito pelo aposento? Tocou nos objetos? — Em nada, só numa das pontas de cigarro. Ficamos perto da porta, o chaveiro e eu. — Menos mal. — O senhor leva o resultado à minha sala?... Perguntou Maigret, que não sabia onde se meter. — E eu? Perguntou Torrence. — O senhor volta para o Quai des Orfèvres... — Posso ficar alguns minutos para saber se há impressões digitais? — Se faz questão...

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Maigret desceu pesadamente e, diante da porta de serviço do terceiro andar, foi tentado a tocar a campainha. Da última entrevista com as duas mulheres, guardava uma impressão desagradável, imprecisa. Parecia que as coisas não tinham caminhado como deveriam. Nada, aliás, caminhava normalmente. Mas pode se falar de normalidade quando se trata de gente em cuja casa um crime foi cometido de repente? Supondo-se que a vítima fosse um homem como Pardon, por exemplo... Quais teriam sido as reações da esposa, da filha, do genro? Não conseguia imaginar, mesmo conhecendo os Pardons há tantos anos e mesmo sendo eles os melhores amigos do casal. Será que a Sra. Pardon, na hora, também ficaria em choque, incapaz de falar, sem tentar ficar o máximo possível perto do corpo do marido? Ele acabava de informá-las de que um homem pegara a chave do quarto de empregada na cozinha e ficara enfiado lá várias horas; provavelmente ainda estava lá quando as duas mulheres ficaram sozinhas, depois da saída da polícia, alta madrugada. Ora, a Sra. Josselin praticamente não teve reação. Véronique olhou imediatamente para a mãe, e parece que esta lhe cortou a palavra. Uma coisa era certa: o assassino não tinha roubado nada. E ninguém, naquelas alturas das investigações, parecia ter interesse na morte de René Josselin. Para Jouane e associado, aquela morte não mudava nada. E como acreditar que Jouane, que só fora meia dúzia de vezes à Rua Notre-Dame-des-Champs, conhecesse o lugar do revólver, o da chave na cozinha e a divisão dos quartos do sexto andar? É provável que Fabre nunca tivesse subido lá. E Fabre não teria razão alguma para se esconder lá em cima. De qualquer modo, não estava lá, e sim no hospital e depois no apartamento do terceiro andar, onde o comissário o interrogara. Chegando ao térreo, se voltou repentinamente para o elevador e subiu até o primeiro andar, tocando a campainha dos Arescos. Por trás da porta, som de música, vozes, uma tremenda algazarra. Quando ela se abriu, ele avistou duas crianças, uma correndo atrás da outra, e uma mulher gorda de penhoar tentando alcançá-las. — A senhora se chama Dolores? Perguntou à jovem que estava diante dele, agora vestida de uniforme azul-claro, com uma touca da mesma cor sobre os cabelos pretos. Ela sorria com todos os dentes. Todos pareciam rir e sorrir naquele apartamento, viver da manhã à noite numa bagunça festiva. — Sí, señor... — Fala francês? — Sí... A gorda fazia perguntas à empregada em sua língua, ao mesmo tempo em que observava Maigret dos pés à cabeça. — Ela não entende francês? A jovem balançou a cabeça e soltou uma risada. — Diga a ela que sou da polícia, como o investigador que a senhora viu lá em cima, e que gostaria de lhe fazer umas perguntas... Dolores traduziu, falando numa velocidade incrível, enquanto a mulher de carnes abundantes agarrava uma das crianças pelo braço e a arrastava para um aposento, fechando a porta envidraçada. A música continuava. A jovem continuava em pé diante de Maigret, sem convidá-lo a entrar. Outra porta se entreabriu, deixou à mostra um rosto de homem de olhos escuros e depois se fechou sem ruído. — A que horas a senhora subiu para dormir ontem?

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— Talvez às dez e meia... Não olhei... — Estava sozinha? — Sí, señor... — Não encontrou ninguém na escada? — Ninguém... — A que horas ouviu barulho no quarto ao lado? — Às seis horas da manhã, quando me levantei. — Passos? — Como? Ela não entendia, e ele fez o gesto de andar, o que desencadeou nova risada. — Sí... Sí... — A senhora viu o homem que andava? A porta não se abriu? Era um homem? Quantas pessoas dormem no sexto andar? A cada frase, ela precisava de algum tempo para entender. Parecia traduzir palavra por palavra, antes de perceber o sentido. Mostrou dois dedos, dizendo: — Só duas... Tem a empregada das pessoas do quarto andar... — Os Meurats? — Não conheço... Os Meurats são os da esquerda ou da direita? — Da esquerda. — Então não. São os outros... Saíram de espingarda... Vi ontem de manhã, quando estavam pondo as espingardas no carro... — A empregada deles foi com eles? — Não. Mas ela não voltou para dormir. Tem um namorado. — De modo que a senhora ficou sozinha a noite inteira no sexto andar? Aquilo era divertido para ela. Tudo era divertido para ela. Não percebia que tinha ficado separada por uma meia-parede de um homem que quase sem dúvida era um assassino. — Sozinha... Sem namorado... — Agradeço... Havia rostos, olhos escuros por trás da cortina da porta envidraçada e, provavelmente, assim que Maigret saísse, estourariam outras risadas. Parou de novo diante da zeladoria. A zeladora não estava. Viu-se diante de um homem que usava suspensórios, segurava um bebê no colo e correu para depositá-lo no berço, se apresentando. — Policial Bonnet... Entre, senhor comissário... Minha mulher foi fazer umas compras... Está aproveitando que esta semana faço o turno da noite... — Gostaria de lhe dizer, de passagem, que ela não se enganou; parece que alguém entrou mesmo no prédio ontem à noite e não saiu... — E foi encontrado? Onde? — Não foi encontrado, mas achamos vestígios num dos quartos de empregada... Deve ter saído de manhã, quando sua mulher estava às voltas com os jornalistas. — Foi culpa da minha mulher? — Não.

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Não fossem as férias prolongadas de muitos dos moradores, haveria cinco ou seis empregados no sexto andar do prédio, e um deles poderia ter, talvez, encontrado o assassino por acaso. Maigret hesitou em atravessar a rua e entrar mais uma vez no Clairon. Acabou entrando e pediu maquinalmente: — Um chope... Alguns minutos depois, pela vidraça, ele viu Torrence que, cansado de ficar olhando o colega do laboratório trabalhar, saía, com a mesma ideia que ele tivera. — O senhor aí, chefe? — Fui interrogar Dolores. — Conseguiu alguma coisa? Pelo menos ela estava de roupa? Torrence ainda estava orgulhosíssimo, felicíssimo com a sua descoberta. Não parecia entender por que Maigret se mostrava mais preocupado e mais pesado do que pela manhã. — Estamos na pista, né? O senhor sabe que está cheio de impressões digitais lá em cima? O colega está radiante. Contanto que o assassino tenha ficha na polícia... — Tenho quase certeza que não tem, suspirou Maigret esvaziando o copo.

* * *

Duas horas depois, de fato, o funcionário dos arquivos dava uma resposta negativa. As marcas colhidas na Rua Notre-Dame-des-Champs não correspondiam a nenhuma ficha de alguém que tivesse passagem pela polícia. Lapointe, por sua vez, passara a tarde mostrando a fotografia de René Josselin aos comerciantes do bairro, aos guardas da redondeza, aos frequentadores dos bancos da praça. Alguns o reconheceram, outros não. — Ele passava por aqui todas as manhãs, sempre andando do mesmo jeito... — Ficava olhando as crianças brincar... — Punha os jornais no banco, do lado dele, e começava a ler, às vezes fumando charuto... — Parecia boa gente... Pelo amor de Deus!

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CAPÍTULO 5

Teria chovido muito durante a noite? Maigret não sabia, mas ficou contente quando, acordando, viu as calçadas escurecidas, com partes ainda luzidias, nas quais se refletiam nuvens de verdade, não as nuvenzinhas leves e rosadas dos dias anteriores: nuvens de margens escuras, pesadas de chuva. Não via a hora do verão acabar, das férias acabarem, de cada um voltar ao seu lugar, e franzia a testa toda vez que seu olhar encontrava na rua alguma mulher ainda com as calças justas usadas nas praias, pisando negligente o chão de Paris, de pés descobertos e bronzeados dentro de sandálias. Era sábado. Tinha a intenção de, acordando, ir falar de novo com Jouane na Rua Saint-Gothard, sem saber direito por quê. Tinha vontade de rever todos eles, não tanto para fazer perguntas precisas quanto para conviver com eles, sentir melhor o meio no qual vivia René Josselin. Havia fatalmente alguma coisa que lhe escapava. Agora parecia que o assassino tinha vindo de fora, e isso ampliava o campo de possibilidades. Ampliava tanto? O fato é que o revólver tinha sido retirado da gaveta; a chave, do prego da cozinha; e o homem do sexto andar não tinha se enganado de quarto. Maigret não deixou de ir para o trabalho a pé, como fazia com frequência; dessa vez, porém, era proposital, como se quisesse se dar um tempo. O ar estava mais fresco. As pessoas já pareciam menos bronzeadas e voltavam às expressões fisionômicas da vida diária. Chegou ao Quai des Orfèvres exatamente a tempo de fazer o relatório e, com os papéis debaixo do braço, encontrou os outros chefes de departamento na sala do diretor. Cada um o informava de suas últimas atividades. O da Delegacia de Combate a Entorpecentes, por exemplo, sugeria fechar uma boate contra a qual recebia muitas queixas todos os dias. Darrui, que cuidava dos Costumes, organizara uma batida noturna em Champs-Elysées e prendera três ou quatro dúzias de mulheres da vida, que estavam esperando na cadeia alguma decisão sobre seu destino. — E você, Maigret? — Eu estou atolado numa história de gente de bem... Resmungou com humor. — Nenhum suspeito? — Ainda não. Só impressões digitais que não correspondem às nossas fichas, ou seja, impressões de gente honesta... Ocorrera um outro crime durante a noite, um crime de verdade, quase uma carnificina. Quem cuidava do assunto era Lucas, que tinha acabado de voltar de férias. Naquele momento, ainda estava fechado em sua sala com o assassino, tentando entender suas explicações. O fato ocorrera entre poloneses, num casebre perto da Porte d’Italie. Era um operário, que falava mal francês, um homem franzino, mirrado, que tinha o nome de Stéphane e um sobrenome impossível de pronunciar e, pelo que se podia entender, morava com uma mulher e quatro crianças pequenas. Lucas tinha visto a mulher antes que ela fosse transportada para o hospital e afirmava que era uma criatura esplêndida. Não era esposa do Stéphane preso, mas de um de seus compatriotas, um certo Majewski, que, por sua vez, trabalhava como lavrador há três anos nas fazendas do

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norte. Duas crianças, as mais velhas, eram filhas de Majewski. O que ocorrera exatamente entre aquelas pessoas três anos antes era coisa difícil de entender. — Ele me deu ela... repetia obstinadamente Stéphane. De uma vez, afirmou: — Ele me vendeu ela... O fato é que, três anos antes, o mirrado Stéphane havia tomado o lugar de seu compatriota no casebre e na cama da bela mulher. O marido de verdade fora embora, consentindo com aquilo, ao que parece. Depois, nasceram mais duas crianças, tudo morando junto num único aposento, como ciganos numa carroça. Ora, Majewski teve a ideia de voltar e, enquanto seu substituto estava trabalhando, simplesmente assumiu o antigo posto. O que os dois homens disseram um ao outro quando Stéphane voltou? Lucas tentava entender, o que era muito difícil, porque seu cliente falava francês quase tão bem quanto a empregada espanhola ou sul-americana que Maigret interrogara na véspera. Stéphane saíra. Tinha girado pelo bairro durante quase 24 horas sem dormir, entrando em um certo número de bares até que, em algum lugar, conseguiu uma boa faca de açougueiro. Dizia que não a tinha roubado, e insistia muito nesse ponto, como se para ele fosse uma questão de honra. Durante a noite anterior, ele havia entrado no quarto onde todos dormiam e matado o marido com quatro ou cinco facadas. Depois se precipitou sobre a mulher, que gritava em trajes menores, e lhe desferiu duas ou três facadas; mas alguns vizinhos chegaram correndo, antes que ele tivesse tempo de acabar com ela. Deixara-se prender sem resistência. Maigret foi assistir a um pedaço do interrogatório na sala de Lucas que, sentado diante da máquina, datilografava devagar perguntas e respostas. O homem, numa cadeira, fumava um cigarro que haviam acabado de lhe dar e tinha uma xícara de café vazia perto de si. Fora um bocado maltratado pelos vizinhos. O colarinho da camisa estava rasgado, os cabelos estavam despenteados, e o rosto tinha arranhões. Ouvia Lucas com atenção, testa franzida, fazendo grande esforço para entender, depois ficava pensando, balançando a cabeça da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. — Ele me deu ela... Repetia no fim, como se isso explicasse tudo. — Ele não tinha o direito de pegar de volta... Parecia-lhe natural ter matado o ex-amigo. Teria matado a mulher também, se os vizinhos não tivessem aparecido a tempo. Teria matado as crianças? Essa pergunta ele não respondia, talvez porque nem ele soubesse. Não tinha previsto tudo. Decidira matar Majewski e a mulher. Quanto ao resto... Maigret voltou para a sua sala. Um bilhete informava que as pessoas da Rua La Pompe, que estavam sentadas atrás da Sra. Josselin e da filha no teatro, se lembravam muito bem das duas mulheres. Elas não tinham saído no primeiro intervalo, só no segundo, e voltaram a seus lugares bem antes que a cortina se levantasse, e não saíram da sala durante a apresentação. — O que é que eu faço hoje, chefe? Vinha perguntar Lapointe.

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— A mesma coisa que ontem à tarde. Em outras palavras, percorrer o caminho que René Josselin fazia todas as manhãs a passeio e interrogar as pessoas. — Com alguém ele haveria de falar. Tente de novo, na mesma hora que ele... Você tem outra fotografia? Dê-me aqui... Maigret enfiou a fotografia no bolso, de qualquer jeito. Depois, pegou o bonde para o Bulevar Montparnasse e precisou apagar o cachimbo porque aquele era um bonde sem estribo. Precisava se manter em contato com a Rua Notre-Dame-des-Champs. Alguns diziam que ele sempre queria fazer tudo sozinho, inclusive a tarefa maçante de seguir pessoas, como se não tivesse confiança em seus investigadores. Não entendiam que ele tinha necessidade de sentir as pessoas, de tentar se pôr no lugar delas. Se não fosse uma coisa impossível, teria ido morar no apartamento dos Josselins, teria sentado à mesa com as duas mulheres, talvez, acompanhado Véronique à sua casa, para perceber de que modo ela se comportava com o marido e os filhos. Tinha vontade de fazer ele mesmo o passeio que Josselin fazia todas as manhãs, de ver o que ele via, de se sentar nos mesmos bancos. Era novamente a hora em que a zeladora esterilizava as mamadeiras e vestia o avental branco. — Acabaram de trazer o corpo, disse ela ainda impressionada. — A filha está lá em cima? — Chegou há uma meia hora. Veio de carro com o marido. — Ele subiu? — Não. Parecia que estava com pressa. — Ninguém mais está lá no apartamento? — Os empregados da funerária. Já trouxeram o material para a câmara-ardente. — A Sra. Josselin ficou sozinha durante a noite? — Não. Mais ou menos às oito horas, o genro chegou com uma senhora de certa idade, que tinha uma maleta; ela ficou lá em cima quando ele foi embora. Imagino que seja uma enfermeira ou acompanhante. A Sra. Manu chegou às sete, como sempre, e agora está na rua, fazendo a feira. Ele não se lembrava se já tinha perguntado e, se tinha, repetia, pois a pergunta o atazanava. — A senhora não reparou, principalmente nos últimos tempos, se alguém parecia ficar esperando por perto do prédio? Ela disse que não com a cabeça. — A Sra. Josselin nunca recebeu ninguém na ausência do marido? — Nos seis anos que estou aqui, não. — Muitas vezes ele ficava sozinho à tarde. Ninguém vinha visitá-lo? Por acaso ele não saía durante alguns minutos? — Não que eu saiba... Acho que isso teria chamado a minha atenção... É claro que, quando não acontece nada anormal, a gente não pensa nessas coisas... Eu não prestava atenção neles nem nos outros moradores; aliás, neles menos ainda do que nos outros, justamente porque eles nunca me davam trabalho... — A senhora sabe de que lado da rua o Sr. Josselin voltava? — Dependia. Já o vi chegando do lado do Jardin du Luxembourg, mas também já fez a volta pelo cruzamento Montparnasse e pela rua Vavin... Afinal, não era um robô, né? — Sempre sozinho? — Sempre sozinho. — O Doutor Larue não voltou? — Passou por aqui ontem no fim da tarde e ficou bastante tempo lá em cima...

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Mais um que Maigret gostaria de ter reencontrado. Parecia-lhe que cada um era capaz de lhe dar alguma informação. Não desconfiava, obrigatoriamente, que estivessem mentindo, mas sim que, conscientemente ou não, estivessem escondendo uma parte da verdade. Principalmente a Sra. Josselin. Em nenhum momento ela se mostrara descontraída. Notava-se que estava desconfiada, tentando adivinhar de antemão as perguntas que seriam feitas e preparando mentalmente as respostas. — Agradeço, Sra. Bonnet. O bebê vai bem? Dormiu a noite inteira? — Só acordou uma vez e dormiu de novo logo em seguida. Foi engraçado na outra noite ele ter ficado tão agitado, como se pressentisse alguma coisa... Eram dez e meia da manhã. Lapointe devia estar ocupado em interpelar as pessoas no Jardin du Luxembourg, em lhes mostrar a fotografia. Todos olhavam com atenção, balançavam a cabeça, sérios. Maigret decidiu tentar sozinho o Bulevar Montparnasse e depois, talvez, o Bulevar Saint-Michel. Para começar, entrou no barzinho onde tinha tomado três chopes na véspera. De repente, o garçom perguntou, como se ele fosse cliente antigo: — A mesma coisa? Fez sinal que sim sem pensar, embora não tivesse vontade de tomar cerveja. — Conhecia o Sr. Josselin? — Eu não sabia o nome dele. Quando vi a fotografia no jornal, lembrei. Antigamente, ele tinha um cachorro, um pastor velho cheio de reumatismo que andava de cabeça baixa, sempre ao lado dele... Estou falando de coisa de pelo menos sete ou oito anos. Há quinze anos que estou na casa... — O que aconteceu com o cachorro? — Deve ter morrido de velhice. Acho que o cachorro era mais da filha... Também me lembro bem dela... — Você nunca viu o Sr. Josselin em companhia de algum homem? Nunca teve a impressão de que alguém estava à espera dele quando saía de casa? — Não... O senhor sabe, eu só o conhecia de vista... Ele nunca entrou aqui... Uma manhã, eu estava no Bulevar Saint-Michel e vi quando ele saiu do PMU (Pari Mutuel Urbain: agência oficial onde se fazem apostas para corridas de cavalo.)... Aquilo me chamou a atenção... Aos domingos eu costumo jogar na trifeta, mas fiquei admirado de saber que um homem como ele apostava em cavalos... — Você o viu no PMU só daquela vez? — Só... É verdade que raramente eu estou na rua nessa hora... — Agradeço... Ao lado, havia uma mercearia, onde Maigret entrou com a fotografia na mão. — Conhecem? — Claro... É o Sr. Josselin. — Ele vinha aqui? — Ele não. A mulher. São nossos fregueses há quinze anos... — Era ela que fazia as compras sempre? — Ela passava para fazer a encomenda, e a gente entregava mais tarde... Às vezes era a empregada... Antigamente, a filha também vinha de vez em quando...

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— Viram a Sra. Josselin em companhia de algum homem? — A Sra. Josselin? Os olhares eram de espanto e até de reprovação. — Não era mulher de encontros, muito menos no bairro... Azar! Continuaria fazendo a pergunta do mesmo jeito. Entrou num açougue. — Conhecem... Os Josselins não eram fregueses daquele açougue, e as respostas foram secas. Mais um bar. Entrou e, já que tinha começado com cerveja, pediu um chope e tirou a fotografia do bolso. — Parece que é alguém aqui do bairro... Quantas pessoas Lapointe e ele, cada um do seu lado, iriam interrogar daquela maneira? No entanto, só podiam contar com algum acaso. E é verdade que o acaso já tinha entrado em ação. Maigret agora sabia que René Josselin tinha uma paixão, mesmo anódina, uma mania, um hábito: apostar em cavalos. Apostaria alto? Ou se limitaria a apostas modestas, para se divertir? Será que sua mulher sabia? Maigret juraria que não. Aquilo não combinava com o apartamento da Rua Notre-Dame-des-Champs, com as pessoas que ele conhecia. Portanto, havia um pequeno senão. Por que não haveria outros? — Com licença, senhora... Será que... A foto, mais uma vez. Um sinal negativo com a cabeça. Ele recomeçava adiante; entrou em outro açougue, dessa vez o açougue certo, que atendia a Sra. Josselin ou a empregada. — Nós o víamos passar quase sempre à mesma hora... — Sozinho? — A não ser nas vezes em que se encontrava com a mulher na volta do passeio. — E ela? Ela também estava sempre sozinha? — Uma vez veio com um menino que estava começando a andar, o neto... Maigret entrou numa cervejaria, no Bulevar Montparnasse. Era hora em que a casa estava quase vazia. O garçom estava fazendo faxina. — Um trago de qualquer coisa, mas não cerveja, pediu ele. — Um aperitivo? Uma aguardente? — Uma aguardente... E foi quando menos esperava que teve algum resultado. — Conheço, sim. Logo pensei nele quando vi o retrato no jornal. Só que nos últimos tempos ele estava um pouco menos gordo. — De vez em quando ele vinha aqui tomar alguma coisa? — Não muito, deve ter vindo umas cinco ou seis vezes, sempre quando estava vazio, e foi por isso que eu o notei...

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— A esta hora? — Mais ou menos.. Ou um pouco mais tarde... — Vinha sozinho? — Não. Vinha uma pessoa com ele, e todas às vezes eles se sentaram no fundo da sala... — Mulher? — Homem... — Que tipo de homem? — Bem vestido, novo... Eu daria uns quarenta ou quarenta e cinco anos... — Pareciam estar discutindo? — Falavam em voz baixa, não ouvi o que eles diziam. — Quando vieram pela última vez? — Faz uns três ou quatro dias... Maigret mal podia acreditar. — O senhor tem certeza de que é esta pessoa? Ainda estava mostrando a fotografia. O garçom concordou em olhar com mais atenção. — É o que estou dizendo! Olhe só! Ele até tinha uns jornais na mão, três ou quatro jornais pelo menos, e, quando saiu, corri atrás dele para entregar os jornais, porque eles ficaram esquecidos no banco... — O senhor reconheceria o homem que estava com ele? — Talvez. Era alto, de cabelos escuros... Estava de terno claro, tecido leve, bom corte... — Tinham jeito de quem discutia? — Não. Estavam sérios, mas não discutindo. — Beberam o quê? — O gordo, o Sr. Josselin, tomou uma água mineral, e o outro, um uísque. Deve estar acostumado, porque disse que marca queria. Como eu não tinha daquela marca, pediu outra... — Quanto tempo ficaram? — Uns vinte minutos? Um pouco mais, talvez. — Só viu os dois juntos dessa vez? — Eu poderia jurar que, quando o Sr. Josselin veio antes, há vários meses, bem antes das férias, já estava acompanhado pela mesma pessoa... Esse homem, aliás, eu vi de novo... — Quando? — No mesmo dia... À tarde... Ou será que foi no dia seguinte?... Não, não! Foi no mesmo dia... — Então, nesta semana? — Sem dúvida nesta semana... Terça ou quarta-feira... — Voltou sozinho? — Ficou sozinho um bom tempo, lendo um jornal da noite... Pediu o mesmo uísque da manhã... Depois uma mulher veio se encontrar com ele... — Conhece a mulher? — Não. — Nova? — De certa idade. Nem nova nem velha. Uma mulher distinta. — Parecia que se conheciam? — Ah, sim... Ela parecia estar com pressa... Sentou-se ao lado dele e, quando cheguei perto para pegar o pedido, fez sinal de que não queria nada... — Ficaram muito tempo? — Uns dez minutos... Não saíram juntos... A mulher saiu primeiro... O homem bebeu mais uma dose antes de ir embora...

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— Tem certeza de que era o mesmo que estava com o Sr. Josselin pela manhã? — Certeza absoluta... Bebeu o mesmo uísque... — Deu a impressão de ser alguém que bebe muito? — Que bebe sim, mas que aguenta o tranco... Não estava bêbado, se é isso que o senhor quer saber, mas tinha bolsas debaixo dos olhos... Entende?... — Essa foi a única vez em que você viu o homem e a mulher juntos? — A única que eu me lembre... Em algumas horas, a gente presta menos atenção... Existem outros garçons na casa... Maigret pagou a conta e saiu para a calçada se perguntando o que iria fazer. Embora estivesse tentado a ir imediatamente para a Rua Notre-Dame-des-Champs, lhe repugnava chegar exatamente quando o corpo acabava de ser devolvido à família e estavam aprontando a câmara-ardente. Preferiu continuar caminho até a Closerie des Lilas, entrando mais uma vez em casas comerciais e exibindo a fotografia com menos convicção. Assim, ficou conhecendo a quitandeira dos Josselins, o sapateiro que consertava os sapatos deles, a confeitaria da qual eram fregueses. Depois, chegando ao Bulevar Saint-Michel, decidiu descer de novo até a entrada principal do Jardin du Luxembourg, fazendo em sentido contrário o passeio diário de Josselin. De frente para a grade, descobriu a banca onde ele comprava jornais. Exibição da fotografia. Perguntas, sempre as mesmas. Esperava ver, de uma hora para a outra, o jovem Lapointe aparecer, trabalhando em direção contrária. — É exatamente ele... Eu guardava jornais e revistas para ele... — Estava sempre sozinho? A velha pensou. — Uma ou duas vezes, parece... Uma vez, em todo caso, como alguém estava em pé perto de Josselin, ela perguntara: — E o senhor?... O homem respondeu: — Estou com ele... Era alto e moreno, pelo que se lembrava. Quando foi? Na primavera, porque as castanheiras estavam floridas. — Não viu mais o Sr. Josselin nos últimos tempos? — Não notei... Foi no bar onde estava instalado o PMU que Maigret encontrou Lapointe. — Disseram o mesmo para o senhor? Espantou-se Lapointe. — O quê? — Que tinha o costume de vir aqui... Lapointe tivera tempo de interrogar o dono. Este não sabia o nome de Josselin, mas era categórico. — Vinha duas ou três vezes por semana, e cada vez apostava cinco mil francos... Não! Ele não tinha jeito de turfista. Não carregava jornais de turfe. Não estudava as cotações. — Agora existem muitos como ele, que não sabem a que haras pertence um cavalo e não conhecem o sentido da palavra handicap... Apostam em números como se fossem da loteria e pedem bilhetes que terminam com este ou aquele algarismo... — Alguma vez ganhou? — Uma ou duas...

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Maigret e Lapointe atravessaram juntos o Jardin du Luxembourg e, nos bancos de ferro, havia estudantes absortos em suas lições, casais que, abraçados, olhavam vagamente as crianças brincando sob a vigilância da mãe ou da babá. — O senhor acha que Josselin tinha segredos para a mulher? — Tenho a impressão de que sim, logo vou saber... — Vai interrogá-la? Posso ir junto? — Gostaria que você estivesse presente, sim. A caminhonete da funerária já não estava estacionada junto à calçada. Os dois homens subiram de elevador, tocaram a campainha, e a Sra. Manu, mais uma vez, entreabriu a porta tomando o cuidado de deixar a corrente fechada. — Ah! É o senhor... Ela os introduziu na sala, onde nada mudara. A porta da sala de jantar estava aberta, e uma mulher idosa, sentada junto à janela, tricotava. Provavelmente a enfermeira ou acompanhante trazida pelo Doutor Fabre. — A Sra. Fabre voltou agorinha mesmo para a casa dela. Digo à Sra. Josselin que o senhor está aqui? E, baixinho, a empregada acrescentou... — O patrão está aí... Ela indicou o antigo quarto de Véronique e depois foi avisar a patroa. Esta não estava na câmara-ardente, mas em seu quarto, e apareceu vestida de preto como na véspera, com colar e brincos de pérolas acinzentadas. Continuava parecendo que não tinha chorado. Os olhos eram fixos, o olhar, ardente como antes. — Parece que o senhor quer falar comigo? Ela olhava para Lapointe com curiosidade. — Um dos meus investigadores... Murmurou Maigret. — Peço desculpa por incomodar de novo... Não os convidou a se sentar, como se supusesse que a visita seria breve. Também não fez perguntas; ficou esperando, os olhos nos olhos do comissário. — A pergunta provavelmente lhe parecerá fútil, mas eu gostaria de lhe perguntar em primeiro lugar se seu marido jogava. Ela ficou impassível. Maigret até teve a impressão de que sentia certo alívio, seus lábios se distenderam um pouco para pronunciar: — Jogava xadrez, na maioria das vezes com o nosso genro e às vezes, raramente, com o Doutor Larue... — Não especulava na bolsa? — Nunca! Tinha horror à especulação. Faz alguns anos alguém lhe propôs transformar a firma em sociedade anônima, para expandi-la, e ele recusou indignado. — Ele comprava bilhetes da loteria? — Nunca vi nenhum em casa... — Também não apostava em cavalos?

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— Acho que fomos a Longchamp ou Auteuil só umas dez vezes na vida, para dar uma olhada... Uma vez, faz tempo, ele me levou para ver o prêmio de Diane, em Chantilly, e nem chegou perto dos guichês. — Será que jogava no PMU? — O que é isso? — Em Paris e no interior existem agências, na maioria das vezes em cafés e bares, onde se fazem apostas... — Meu marido não frequentava cafés... Havia uma nota de desprezo em sua voz. — Imagino que a senhora também não? O olhar da mulher se tornou mais duro, e Maigret desconfiou que ela ia se zangar. — Por que está perguntando isso? Ele hesitava em levar o interrogatório mais longe, pois ficava pensando se era interessante dar o alarme naquele momento. O silêncio começava a se tornar pesado e penoso para as três pessoas. Por discrição, a enfermeira ou a acompanhante se levantara para fechar a porta da sala de jantar. Por trás de outra porta, havia um morto, cortinas negras, provavelmente velas acesas e um ramo de buxo mergulhado na água benta. A mulher que Maigret via diante de si era a viúva, e ele não podia esquecer disso. Ela estava no teatro com a filha quando o marido foi morto. — Permita que lhe pergunte se nesta semana, terça ou quarta-feira, a senhora por acaso entrou num café... Um café aqui do bairro... — Fomos tomar alguma coisa, minha filha e eu, quando saímos do teatro. Minha filha estava com sede. Não ficamos muito tempo... — Isso foi onde? — Na Rua Royale... — Estou falando de terça ou quarta-feira e de uma cervejaria do bairro... — Não sei o que está querendo dizer... Maigret estava aborrecido com o papel que era obrigado a representar. Tinha a impressão, mas não a certeza, de que acertara o alvo, de que sua interlocutora tinha precisado de todas as energias para não demonstrar pânico. Tinha durado uma parcela de segundo, e o olhar dela não se despegara dele. — Alguém, por uma razão qualquer, poderia ter marcado um encontro com a senhora não muito longe daqui, no Bulevar Montparnasse, por exemplo... — Ninguém marcou encontro comigo... — Eu poderia lhe pedir que me entregasse uma de suas fotografias? Ela quase disse: “Para quê?” Mas se conteve e se limitou a murmurar: — Imagino que só me cabe obedecer... Era mais ou menos como se as hostilidades estivessem começando. Ela saiu do aposento, entrou no seu quarto, cuja porta deixou aberta, e era possível ouvi-la remexer numa gaveta que devia estar cheia de papéis. Quando voltou, trazia uma foto de passaporte, de quatro ou cinco anos antes.

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— Imagino que isso seja suficiente? Maigret, ganhando tempo, enfiou a foto na carteira. — Seu marido apostava em cavalos, afirmou enquanto isso. — Nesse caso, era sem que eu soubesse. É proibido? — Não é proibido, minha senhora, mas, se nós quisermos ter uma chance de encontrar o assassino, precisamos saber tudo. Eu não conhecia esta casa há três dias. Não conhecia a existência da senhora nem a de seu marido. Pedi sua colaboração... — E eu respondi. — Gostaria que a senhora tivesse falado mais... Já que era guerra, ele atacava. — Na noite da tragédia, não insisti para falar com a senhora porque o Doutor Larue disse que estava em triste estado de choque... Ontem, vim aqui... — E eu o recebi. — E o que me disse? — O que podia dizer. — Isso significa? — O que eu sabia. — Tem certeza de que me disse tudo? Tem certeza de que sua filha e seu genro não estão escondendo alguma coisa? — Está nos acusando de mentir? Seus lábios tremiam um pouco. Devia estar fazendo um esforço terrível para continuar reta e digna, diante de Maigret, cujo rosto se tornara um tanto corado. Lapointe, por sua vez, sem jeito, não sabia para onde olhar. — Talvez não de mentir, mas de omitir certas coisas. Por exemplo, tenho certeza que seu marido apostava no PMU... — E qual é a utilidade disso? — Se a senhora não sabia, se nunca desconfiou, quer dizer que ele era capaz de lhe esconder alguma coisa. E, se escondeu isso... — Talvez não tenha pensado em me falar do assunto. — Isso seria plausível se só tivesse jogado uma vez ou duas, por acaso, mas ele era assíduo e gastava vários milhares de francos por semana nas corridas... — Aonde o senhor quer chegar? — A senhora me deu a impressão, e reforçou essa impressão, de que sabia tudo sobre ele e não tinha nenhum segredo para ele... — Eu não entendo o que é que isso tem a ver com... — Suponhamos que, terça ou quarta-feira de manhã, ele tenha marcado um encontro com alguém numa cervejaria do Bulevar Montparnasse... — Ele foi visto lá? — Existe pelo menos uma testemunha, que é categórica. — Pode ser que ele tenha encontrado algum antigo colega, ou um ex-empregado, e que tenha oferecido alguma bebida... — A senhora afirmou que ele não frequentava cafés... — Eu não quero dizer que, numa ocasião como essa...

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— Ele não lhe falou disso? — Não. — Ele não disse, quando voltou: “A propósito, encontrei Fulano...”. — Não me lembro. — Se tivesse dito, a senhora se lembraria? — Provavelmente. — E se a senhora, por sua vez, tivesse se encontrado com um homem que conhecesse o suficiente para ficar com ele num café durante uns dez minutos, enquanto ele bebia um uísque... Da testa de Maigret, o suor vertia, e sua mão não parava de revirar o cachimbo apagado. — Continuo não entendendo. — Desculpe o incômodo... Acho que vou precisar voltar... Peço que até lá a senhora pense bem... Alguém matou seu marido e nesta hora está em liberdade... Talvez mate outra pessoa... Ela estava muito pálida, mas continuou impassível e se encaminhou para a porta, se limitando a se despedir com um movimento seco da cabeça, para depois fechar a porta atrás deles. No elevador, Maigret enxugou a testa com o lenço. Parecia evitar o olhar de Lapointe, como se temesse ver nele uma censura; balbuciou: — Era preciso...

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CAPÍTULO 6

Os dois homens continuavam em pé na calçada, a alguns passos do prédio, como se hesitassem em se separar. A garoa, mal visível, começara a cair, e um som débil de sino se fazia ouvir da parte de baixo da rua, enquanto outros respondiam em outra direção, depois em outra ainda. A dois passos de Montparnasse e de seus cabarés, ao redor do Jardin du Luxembourg, se estava não só numa ilha pacata e burguesa, mas também numa reunião de conventos. Além das Irmãzinhas dos Pobres, havia, atrás, as Servas de Maria; a dois passos, na Rua Vavin, as Irmãs de Sião e, na Rua Notre-Dame-des-Champs ainda, as Irmãs Agostinianas. Maigret parecia atento ao som dos sinos, respirava o ar misturado a gotículas invisíveis e, depois de um suspiro, disse a Lapointe: — Dê um pulo na Rua Saint-Gothard. De táxi, você vai em alguns minutos. Como é sábado, os escritórios e a fábrica provavelmente estão fechados. Se Jouane for parecido com o ex-patrão, existe a possibilidade de ter ido terminar sozinho algum trabalho urgente. Se não estiver, de qualquer modo você vai encontrar algum porteiro ou guarda. Se precisar, peça o número da casa de Jouane e telefone para ele. Gostaria que você me trouxesse uma fotografia com moldura que vi na sala dele. Ontem, enquanto ele falava comigo, eu olhava para ela maquinalmente, sem desconfiar que poderia ser útil. É uma foto de um grupo, com René Josselin no meio, Jouane e, provavelmente, Goulet à esquerda e, à direita, outros empregados, homens e mulheres, enfileirados atrás deles, umas trinta pessoas. Nem todas as operárias estão lá; só os empregados mais antigos e importantes. Suponho que a foto tenha sido tirada durante algum aniversário, ou então quando Josselin largou o negócio. — Encontro com o senhor no Quai? — Não. Vá se encontrar comigo na cervejaria do Bulevar Montparnasse, onde eu estava agora há pouco. — Qual é? — Acho que se chama Brasserie Franco-Italienne. É ao lado de uma loja onde vendem material para pintores e escultores. E saiu andando para o outro lado, curvado, fumando o cachimbo que tinha acabado de acender e que, pela primeira vez no ano, tinha gosto de outono. Continuava um pouco aborrecido por ter sido tão duro com a Sra. Josselin e percebia que aquilo não tinha acabado, só começado. Provavelmente, ela era a única que estava escondendo alguma coisa ou mentindo. E o trabalho dele era descobrir a verdade. Para Maigret sempre era duro forçar alguém em suas últimas trincheiras, e aquilo vinha de longe, vinha da primeira infância, do seu primeiro ano de escola, na cidadezinha de Allier. Foi ali que contou a primeira grande mentira de sua vida. A escola distribuía livros didáticos já usados, que estavam em melhor ou pior estado, mas alguns alunos conseguiam livros bonitos e novos que lhe davam inveja. Entre outros livros, ele recebera um catecismo de capa esverdeada e páginas já amareladas, enquanto alguns colegas mais afortunados tinham comprado catecismos novos, de edição recente, com encadernação de um rosa sedutor. — Perdi meu catecismo... Declarou ele certa noite ao pai. — Contei ao professor, e ele me deu um novo...

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Mas não o tinha perdido. Escondera-o no sótão, por falta de coragem de destruí-lo. Tivera dificuldade para dormir naquela noite. Sentia-se culpado e estava convencido de que, mais dia menos dia, sua trapaça seria descoberta. No dia seguinte, não sentira alegria nenhuma ao usar o novo catecismo. Durante três dias, quatro talvez, sofrera daquele modo, até que foi procurar o professor, com seu livro na mão. — Encontrei o antigo, balbuciou, vermelho, com a garganta seca. — Meu pai disse para devolver este... Lembrava-se ainda do olhar do professor, olhar ao mesmo tempo lúcido e benevolente. Ele estava certo de que o homem havia adivinhado, entendido tudo. — Está contente porque o encontrou? — Ah! Sim, senhor... Durante toda a vida, lhe foi grato por não o ter obrigado a confessar a mentira e por lhe ter poupado uma humilhação. A Sra. Josselin também estava mentindo e já não era criança, era uma mulher, mãe de família, viúva. Pode-se dizer que ele a obrigara a mentir. E outras pessoas, em volta dela, provavelmente mentiam, por uma razão ou por outra. Ele gostaria de não colocá-las em maus lençóis, de evitar aquela terrível provação de se debater contra a verdade. Era gente de bem, como gostaria de acreditar e estava até convencido disso. Nem a Sra. Josselin, nem Véronique, nem Fabre tinham matado. Nem por isso deixavam de esconder algo que, provavelmente, possibilitaria pôr as mãos no assassino. Dava uma olhada nos prédios da frente, pensando que talvez fosse preciso interrogar, um a um, todos os habitantes da rua, todos aqueles que, da janela, pudessem ter surpreendido algum fatozinho interessante. Josselin se encontrara com um homem na véspera ou no dia de sua morte; o garçom não conseguia ser exato. Maigret ia saber se era mesmo a Sra. Josselin quem fora se encontrar com aquele mesmo homem à tarde, na hora calma de uma cervejaria. Chegou lá um pouco mais tarde, e o clima tinha mudado um pouco. Algumas pessoas tomavam aperitivos, e as fileiras de mesas já haviam sido guarnecidas de toalhas, talheres e pratos para o almoço. Maigret foi se sentar no mesmo lugar que ocupara pela manhã. O garçom que o servira se aproximou como se ele já fosse um freguês antigo, e o comissário puxou da carteira a foto de passaporte. — Acha que é esta? O garçom pôs os óculos e examinou o quadradinho de papel. — Aqui ela está sem chapéu, mas tenho quase certeza de que é a mesma mulher... — Quase? — Tenho certeza. Só que, se eu tiver de depor um dia no tribunal, com juízes e advogados fazendo um montão de perguntas... — Acho que não vai precisar depor. — Com certeza é ela, ou então alguém muito parecido... Ela usava um vestido de lã escura, não totalmente preta, com umas bolinhas cinzentas na lã, e um chapéu que tinha um enfeite branco... A descrição do vestido correspondia ao que ela estava usando naquela manhã mesmo. — O que o senhor deseja? — Uma fine à l’eau... Onde está o telefone?... — No fundo, à esquerda, na frente das toaletes... Peça uma ficha na caixa...

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Maigret se fechou na cabine, procurou o número do Doutor Larue. Não tinha muita certeza de que o encontraria em casa. Não tinha nenhum motivo exato para ligar para o médico. Estava limpando o terreno, como fazia com a foto da Rua Saint-Gothard. Tentava eliminar hipóteses, mesmo as mais extravagantes. Uma voz de homem atendeu. — É o senhor, doutor? Aqui é Maigret. — Estou acabando de entrar e justamente estava pensando no senhor. — Por quê? — Não sei. Estava pensando na sua investigação, no seu ofício... Foi por acaso que me encontrou em casa a esta hora... Aos sábados termino o expediente mais cedo porque boa parte dos meus clientes está fora da cidade... — O senhor ficaria chateado de vir tomar alguma coisa comigo na Brasserie Franco-Italienne? — Conheço... Já vou indo... Alguma novidade? — Ainda não sei... Larue, baixinho, gorducho, meio careca, não correspondia à descrição do companheiro de Josselin, feita pelo garçom. Jouane também não, pois era meio ruivo e não tinha jeito de quem bebe uísque. Maigret, apesar disso, não estava decidido a deixar passar nenhuma oportunidade. Alguns minutos depois, o médico descia do carro, sentava a seu lado e, se dirigindo ao garçom, dizia como se estivesse em casa: — Como vai, Émile?... E as cicatrizes?... — Quase não se vê nada... Um porto, doutor?... Conheciam-se. Larue explicou que havia tratado de Émile, três meses antes, quando ele se queimara numa máquina de café. — Uma outra vez, faz uns dez anos, ele se cortou com uma cutela... E as suas investigações, senhor comissário? — Tem gente que não quer ajudar muito, respondeu com amargura. — Está falando da família? — Da Sra. Josselin, em particular. Eu gostaria de lhe fazer duas ou três perguntas sobre ela. Já fiz na outra noite. Alguns pontos me inquietam. Se entendi bem, o senhor e sua esposa eram por assim dizer as únicas pessoas íntimas da casa... — Não é bem assim... Como lhe disse, faz tempo que cuido dos Josselins e conheci Véronique pequenininha... Mas naquela época eles me chamavam só de vez em quando... — Quando o senhor começou a ficar amigo da família? — Bem mais tarde. Uma vez, há alguns anos, fomos convidados a jantar lá com outras pessoas, os Anselmes, ainda me lembro, que são grandes chocolateiros... O senhor deve conhecer os chocolates Anselme... Eles também fazem confeitos de batizado... — Pareciam íntimos dos Josselins? — Eram bem amigos... É um casal um pouco mais velho... Josselin fornecia caixas para chocolates e confeitos a Anselme... — Estão em Paris agora? — Seria de surpreender. O patriarca se aposentou há uns quatro ou cinco anos e comprou uma casa em Mônaco... Passam o ano todo lá... — Gostaria que o senhor fizesse um esforço para se lembrar. Quem mais encontrou em casa dos Josselins?

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— Mais recentemente, me aconteceu passar uma noitada lá com os Mornets, que têm duas filhas e agora estão fazendo um cruzeiro nas Bermudas... São comerciantes de papel... Em suma, os Josselins praticamente só conviviam com alguns grandes clientes e fornecedores... — O senhor não se lembra de um homem de uns quarenta anos? — Não consigo, não... — O senhor conhece bem a Sra. Josselin... O que sabe sobre ela?... — É uma mulher muito nervosa que eu trato com calmantes, não vou esconder, apesar de ela ter um autocontrole extraordinário... — Ela amava o marido? — Tenho certeza que sim... Não teve uma adolescência muito feliz, pelo que pude entender... O pai enviuvou cedo, era um homem áspero, de uma severidade excessiva... — Moravam perto da Rua Saint-Gothard? — Pertinho, na Rua Dareau... Eles se conheceram e se casaram depois de um ano de noivado... — O que aconteceu com o pai? — Contraiu um câncer muito doloroso e se suicidou alguns anos depois... — O que o senhor diria se eu afirmasse que a Sra. Josselin tem um amante? — Não acreditaria. Veja bem, na minha profissão, fico sabendo do segredo de muitas famílias. O número de mulheres, principalmente em certo meio, o meio dos Josselins, o número de mulheres, como estava dizendo, que trai o marido é muito menor do que a literatura e o teatro tentam levar a crer. Não quero dizer que seja sempre por honestidade. A falta de oportunidade e o medo do falatório talvez também tenham algum peso... — Ela saía sozinha com frequência à tarde... — Como a minha mulher, como a maioria das esposas... Isso não significa que elas vão se encontrar com algum homem num hotel ou naquilo que antigamente se chamava garçonnière... Não, senhor comissário... Se o senhor fizer essa pergunta a sério, eu vou responder com um não categórico... Está no caminho errado... — E Véronique? — Sou tentado a lhe dizer a mesma coisa, mas prefiro me abster... É improvável... Não é totalmente impossível... Existe a probabilidade de ela ter tido aventuras antes do casamento... Estudava na Sorbonne... Conheceu o marido no Quartier Latin, e deve ter conhecido outros antes dele... Será que não está um pouco decepcionada com a vida que ele lhe dá? Eu não poria a mão no fogo... Achou que ia se casar com um homem, e se casou com um médico... Está entendendo? — Sim... Aquilo não ajudava, não levava a nada. Maigret tinha a impressão de estar atolado e bebia com ar melancólico. — Alguém matou René Josselin... Suspirou. Até então, era a única certeza. Também era certo que um homem, sobre quem nada sabia, tinha se encontrado com o dono da cartonagem como que escondido, naquela mesma cervejaria, e depois tivera um encontro com a Sra. Josselin. Em outras palavras, marido e mulher escondiam alguma coisa um do outro. Alguma coisa que se relacionava com uma única e mesma pessoa.

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— Não percebo quem pode ser... Desculpe se não posso ajudar mais... Agora, já está na hora de ir encontrar minha mulher e meus filhos... Lapointe, aliás, estava entrando, com um pacote achatado debaixo do braço e procurando Maigret com o olhar. — Jouane estava no escritório? — Não. Também não estava em casa. A família foi passar o fim de semana na casa de uma cunhada no interior... Prometi ao guarda que levaria a foto de volta hoje mesmo, e ele não reclamou muito... Maigret chamou o garçom e desembrulhou o quadro. — Reconhece alguém? O garçom pôs os óculos, e seu olhar percorreu os rostos alinhados. — O Sr. Josselin, claro, aqui no meio... Está um pouco mais gordo aqui na foto do que quando veio no outro dia, mas é ele, sim... — E os outros?... Os que estão à direita e à esquerda?... Émile balançava a cabeça. — Não. Nunca vi ninguém... Só reconheço ele... — Vai beber o quê? Perguntava Maigret a Lapointe. — Qualquer coisa. Olhava o copo do doutor, em cujo fundo sobrava um líquido avermelhado. — É porto?... Quero um também, garçom... — E o senhor, comissário? — Mais nada, obrigado... Acho que vamos comer alguma coisa por aqui... Não tinha vontade de voltar para almoçar em casa. Um pouco depois, passaram para a sala onde eram servidas as refeições. — Ela não vai dizer nada, resmungou Maigret, que havia pedido um chucrute. — Mesmo se eu a intimar a ir ao Quai des Orfèvres e a interrogar horas a fio, ela vai ficar calada... Sentia ao mesmo tempo raiva e dó da Sra. Josselin. Tinha acabado de perder o marido em circunstâncias trágicas, toda a sua vida estava de pernas para o ar, do dia para a noite tinha ficado sozinha num apartamento grande demais, mas nem por isso a polícia deixava de persegui-la obstinadamente. Que segredo estava ela decidida a defender a qualquer custo? Todos, afinal, têm direito à privacidade, a seus segredos, até o dia em que ocorra uma tragédia e a sociedade comece a pedir explicações. — Que está pensando em fazer, chefe? — Não sei... Encontrar esse homem, claro... Não é um ladrão... Se ele, à noite, foi assassinar Josselin, devia ter ou achava que tinha motivos imperiosos... A zeladora não sabe nada... Há seis anos que trabalha no prédio e nunca notou nenhum visitante mais ou menos estranho... Isso é coisa que remonta a uma época mais distante no passado... Ela me disse que a antiga zeladora, que é tia dela, foi passar a velhice não sei onde... Gostaria que você fosse lá perguntar, que encontrasse essa mulher e fizesse umas perguntas... — E se ela agora estiver morando onde o diabo perdeu as botas? — Talvez valha a pena ir até lá ou pedir à polícia do lugar que a interrogue... A não ser que, até lá, alguém resolva falar. Lapointe tomou seu caminho, sob a garoa, com a fotografia emoldurada debaixo do braço, enquanto Maigret ia de táxi para o Bulevar Brune. O prédio onde os Fabres moravam se parecia com aquilo que ele tinha imaginado, uma construção grande, sem graça e monótona, já degradada com apenas alguns anos de uso.

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— Doutor Fabre? Quarto andar à direita... O senhor vai ver uma placa de cobre na porta... Se queria falar com a Sra. Fabre, ela acabou de sair. Decerto para ir à casa da mãe e acabar de mandar os comunicados de enterro junto com ela. Ficou imóvel no elevador pequeno demais, apertou uma campainha, e a criada que veio abrir olhou maquinalmente para o lado dele, de alto a baixo, como se esperasse vê-lo acompanhado de uma criança. — O senhor quer falar com quem? — Com o Doutor Fabre. — Está em horário de consulta. — Tenha a bondade de lhe entregar meu cartão. Não vou tomar muito tempo. — Venha por aqui... Ela empurrou a porta de uma sala de espera, onde havia meia dúzia de mães com filhos de todas as idades, e os olhares caíram sobre ele em conjunto. Sentou-se, quase intimidado. No chão, havia cubos e, numa mesa, livros ilustrados. Uma mulher embalava um bebê quase roxo de tanto gritar e olhava sem parar para a porta do consultório. Maigret sabia que todas elas se faziam a seguinte pergunta: — Será que ele vai passar na nossa frente? E, por causa da presença dele, não falavam. A espera durou cerca de dez minutos, e, quando o Doutor finalmente abriu a porta do consultório, foi para Maigret que olhou. Usava óculos de lentes bastante grossas, que destacavam o cansaço de seu olhar. — Entre... Desculpe, mas não tenho muito tempo para falar com o senhor... É com a minha mulher que o senhor quer falar?... Ela está na casa da mãe... — Estou sabendo... — Sente-se... Havia uma balança para bebês, um armário envidraçado cheio de instrumentos niquelados, uma espécie de mesa acolchoada recoberta por um lençol e um oleado. Na escrivaninha, papéis em desordem, e se viam livros empilhados na lareira e a um canto, no chão. — Pois não... — Desculpe se venho incomodar no meio das consultas, mas eu não sabia onde poderia encontrar o senhor sozinho... Fabre franziu a testa. — Por que sozinho? Perguntou. — Para dizer a verdade, não sei. Estou numa situação desagradável, e achei que talvez pudesse me ajudar... O senhor ia com regularidade à casa de seus sogros... Portanto, conhecia os amigos deles... — Eram bem poucos... — Por acaso encontrou algum homem de uns quarenta anos, moreno, bem apessoado? — Do que se trata? Ele também, ao que parecia, estava na defensiva. — Não sei. Tenho motivos para acreditar que seu sogro e sua sogra, os dois, conheciam um homem que corresponde a essa descrição...

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O doutor, através das lentes, fixava um ponto no espaço, e Maigret, lhe dando tempo para pensar, acabou por se impacientar. — E aí? Como se acordasse de um sonho, Fabre perguntou: — O quê? O que o senhor quer saber? — Conhece esse homem? — Não sei de quem o senhor está falando. Na maioria das vezes, quando eu ia à casa dos meus sogros, era noite, e eu fazia companhia ao meu sogro enquanto as mulheres iam ao teatro. — Mesmo assim, o senhor conhecia os amigos deles... — Alguns... Não necessariamente todos... — Eu achava que eles recebessem pouquíssimas pessoas. — Pouquíssimas, de fato... Era exasperador. Ele olhava para todos os lados, menos para a direção do comissário, e parecia estar sendo submetido a uma penosa provação. — Minha mulher via os pais dela muito mais que eu... Minha sogra vinha aqui quase todos os dias... Vinha na hora em que eu estava no consultório ou no hospital... — Sabia que o Sr. Josselin apostava em corridas de cavalo? — Não. Achava que ele raramente saísse à tarde... — Apostava no PMU... — Ah! — Parece que a mulher dele também não sabia. Portanto, ele não dizia tudo a ela... — E por que teria dito a mim, que era só genro? — A Sra. Josselin, por sua vez, escondia algumas coisas do marido... Ele não protestava. Parecia que estava pensando, como se pensa no dentista: “mais uns minutos, e acabou...”. — Num dia desta semana, terça ou quarta-feira, ela se encontrou com um homem, à tarde, na cervejaria do Bulevar Montparnasse... — Isso não me diz respeito, certo? — Não está surpreso? — Suponho que ela tinha razões para se encontrar com ele... — O Sr. Josselin havia se encontrado com o mesmo homem, na mesma cervejaria, de manhã, e parece que o conhecia bem... Isso não lhe diz nada? O Doutor ganhou tempo antes de balançar a cabeça com ar entediado. — Escute bem, Sr. Fabre. Entendo que sua situação é delicada. Como todo homem que se casa, o senhor entrou para uma família que não conhecia antes e da qual agora faz parte até certo ponto. Essa família tem seus segredinhos, é inegável. Não dá para imaginar que o senhor não tenha descoberto alguns. Isso não tinha importância nenhuma enquanto nenhum crime foi cometido. Mas o seu sogro foi assassinado, e o senhor quase foi considerado suspeito. Ele não protestava, não reagia de modo nenhum. Parecia até que estavam separados por uma parede de vidro que não era atravessada pelas palavras.

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— Não se trata daquilo que se chama de latrocínio. Não foi um arrombador apanhado em flagrante que matou o Sr. Josselin. Essa pessoa conhecia a casa, seus costumes e o lugar de cada objeto tanto quanto o senhor. Sabia que a sua mulher e a mãe dela estavam no teatro naquela noite, e que o senhor provavelmente passaria umas horas com seu sogro. Sabia onde o senhor morava e foi ele, provavelmente, que telefonou para cá, para que a empregada ligasse para o senhor e o mandasse para a Rua Julie... Concorda? — Parece razoável... — O senhor mesmo disse que os Josselins recebiam poucas pessoas e, por assim dizer, não tinham amigos íntimos... — Entendo. — O senhor juraria que não tem nenhuma ideia de quem possa ser? As orelhas do Doutor tinham ficado vermelhas, e seu rosto parecia mais cansado que nunca. — O senhor me desculpe, comissário, mas as crianças estão esperando... — O senhor se recusa a falar? — Se eu tivesse alguma informação precisa para lhe dar... — Quer dizer que tem suspeitas, mas que elas não são precisas? — Entenda como quiser... Gostaria de lembrar que a minha sogra acaba de sofrer um choque terrível, que é uma pessoa muito emotiva, embora não exteriorize suas emoções... Em pé, se dirigia para a porta que dava para o corredor. — Não fique zangado comigo... Não estendeu a mão; limitou a se despedir com um sinal de cabeça, e a empregadinha, aparecendo sabe Deus de onde, acompanhou o comissário até o saguão. Ele estava furioso, não só com o jovem pediatra, mas consigo mesmo, pois tinha a impressão de que não soubera agir direito. Aquele era provavelmente o único membro da família que poderia ter falado, e Maigret não arrancara nada. Não! Arrancara uma coisa: Fabre ficara impassível quando Maigret mencionou o encontro da sogra com o desconhecido na cervejaria. Não ficou surpreso com aquilo. Também não ficou surpreso ao saber que Josselin se encontrara com o mesmo homem, às escondidas, na penumbra da mesma cervejaria. Tinha inveja de Lucas, que já havia dado por concluído o caso do assassino polonês e agora, provavelmente, estava sossegado redigindo o seu relatório. Maigret seguia pela calçada, espreitando os táxis que passavam todos de bandeira abaixada. A garoa tinha se transformado em chuva de verdade, e na rua se via de novo a mancha luzidia dos guarda-chuvas. — Se o homem se encontrou alternadamente com René Josselin e a mulher... Estava tentando raciocinar, mas faltavam bases. O desconhecido não entrara em contato também com a filha, com a Sra. Fabre? E por que não com o próprio Fabre? E por que toda a família o protegia? — Ei!... Táxi!... Finalmente um que passava livre, e ele corria para pegá-lo. Ainda não sabia aonde ir. Seu primeiro impulso foi de pedir que o levasse para o Quai des Orfèvres, voltar à sua sala, se trancar lá para ficar resmungando à vontade. Será que Lapointe, por sua vez, não tinha descoberto nada novo? Não tinha certeza, mas achava que a ex-zeladora

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já não estava em Paris, mas em algum lugar de Charente ou do centro do país. O motorista trafegava devagar, se voltando de vez em quando para o passageiro, com curiosidade. — O que é que eu faço no sinal? — Vire à esquerda... — O senhor manda... E, de repente, Maigret se inclinou. — Fico na Rua Dareau. — Em que ponto da rua? Ela é comprida. — Na esquina com a Rua Saint-Gothard... — Entendido... Maigret esgotava todas as possibilidades, uma após outra. Precisou tirar a caderneta do bolso para procurar o nome de solteira da Sra. Josselin: de Lancieux... E lembrava que o pai era ex-coronel. — Com licença, minha senhora... Há quanto tempo é zeladora neste prédio? — Dezoito anos, moço; como o senhor vê, não sou muito nova. — Por acaso não conheceu, nas redondezas, um ex-coronel que tinha uma filha? O sobrenome deles era de Lancieux. — Nunca ouvi falar... Dois prédios, três prédios. A primeira zeladora, apesar de madura, ainda era nova demais; a segunda não se lembrava, e a terceira não tinha mais de trinta anos. — Não sabe o número? — Não. Só sei que era perto da Rua Saint-Gothard. — O senhor poderia ir perguntar ali em frente... A zeladora lá tem no mínimo setenta anos... Fale alto, porque ela é um pouco surda... Maigret quase gritou. Ela sacudia a cabeça. — Eu não me lembro de um coronel, não, mas minha memória anda fraca... Desde que meu marido morreu esmagado por um caminhão, eu não sou a mesma... Ele estava saindo para procurar em outro lugar, quando ela chamou. — Por que não pergunta à dona Jeanne? — Quem é? — Faz pelo menos uns quarenta anos que ela está no prédio... Não desce mais, por causa das pernas... Mora no sexto, bem no fundo do corredor... A porta nunca está fechada à chave... É só bater e entrar... Ela fica sentada no sofá perto da janela... De fato, o comissário encontrou uma velhinha toda encarquilhada, mas de bochechas ainda rosadas, com um sorriso meio infantil. — Lancieux?... Coronel?... Claro que me lembro... Moravam no segundo, à esquerda... Tinham uma empregada velha que não era fácil de contentar e brigava com todos os vendedores, a tal ponto que no fim precisou ir fazer feira em outro bairro... — O coronel tinha uma filha, não? — Uma moça morena, que não tinha muita saúde. O irmão também não, coitado; precisou ir para as montanhas porque era tuberculoso.

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— Tem certeza de que ela tinha um irmão? — Tanta certeza como a de que estou enxergando o senhor. E estou enxergando muito bem, apesar da idade. Por que não senta? — A senhora não sabe o que foi feito dele? — Quem? O coronel? Ele deu um tiro na cabeça, e o prédio ficou em polvorosa. Era a primeira vez que acontecia uma coisa dessas no bairro... Também, estava doente, câncer, parece... Mas mesmo assim eu não aprovo que ele tenha se matado... — E o filho? — O quê? — O que foi feito dele? — Não sei... A última vez que vi o filho foi no enterro... — Ele era mais novo que a irmã? — Uns dez anos... — Nunca mais ouviu falar dele? — O senhor sabe, num prédio, é gente que vai, é gente que vem... Se eu contasse as famílias que moraram no apartamento deles depois disso... É no rapaz que o senhor está interessado? — Já não é rapaz... — Se sarou, não é mesmo... Já deve ser casado, ter filhos... E acrescentou, com os olhos chispando de malícia: — Eu, eu nunca me casei, e acho que por isso vou viver até cem anos... Não acredita?... Volte daqui a quinze anos... Prometo que ainda vou estar neste sofá... O que o senhor faz da vida? Maigret achou inútil talvez lhe dar o choque de saber que ele era da polícia, e se contentou em responder enquanto pegava o chapéu: — Pesquisas... — Em todo caso, ninguém pode dizer que o senhor não pesquisa longe no passado... Aposto que nesta rua ninguém mais se lembra dos Lancieux... Deve ser por causa de herança, né? O herdeiro vai ter sorte se o senhor topar com ele... Pode lhe dizer... Talvez ele tenha a ideia de me mandar uma lembrancinha... Meia hora mais tarde, Maigret estava sentado na sala do Juiz de Instrução Gossard. Parecia relaxado, um pouco sombrio. Fazia o relato com voz calma e surda. O magistrado ouvia sério, e, quando ele terminou, houve um longo silêncio, durante o qual ouviam a água escorrendo numa das calhas do Palácio. — Qual é sua intenção? — Convocar todos eles hoje à noite mesmo, no Quai des Orfèvres. Vai ser mais fácil e, principalmente, menos doloroso do que na Rua Notre-Dame-des-Champs. — Acha que eles vão falar? — Pelo menos um dos três vai acabar falando... — Faça o que achar melhor... — Agradeço. — Não gostaria de estar no seu lugar... De qualquer jeito, vá devagar... Não esqueça que o marido dela... — Eu não esqueço, pode acreditar. É exatamente por isso que prefiro falar com eles na minha sala...

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Um quarto dos parisienses ainda estava de férias na praia ou no campo. Outros tinham começado a caçar, e outros ainda trafegavam pelas estradas à procura de um recanto para o fim de semana. Quanto a Maigret, seguia devagar longos corredores desertos e descia para a sua sala.

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CAPÍTULO 7

Eram pelo menos cinco para as seis. Por ser sábado ainda, a maioria das salas estava vazia e não havia movimento algum no vasto corredor onde um homem sozinho, bem no fundo, já estava cansado de esperar atrás da porta de uma sala, se perguntando se não tinha sido esquecido. O diretor da PJ acabava de sair depois de ter ido apertar a mão de Maigret. — Vai tentar hoje à noite? — Quanto mais cedo, melhor. Amanhã, talvez cheguem parentes do interior, porque essa gente provavelmente tem família em lugar mais ou menos distante. Segunda-feira, são as exéquias, e não vai ser decente escolher um dia desses... Naquela sala, pela qual, de tempos em tempos, dava voltas com as mãos nas costas, fumando um cachimbo atrás do outro, Maigret preparava, fazia uma hora, aquilo que esperava ser o fim. Não gostava da palavra encenação. Chamava aquilo de arrumação, como quem põe a mesa, e sempre ficava ansioso para não esquecer nenhum detalhe. Às cinco e meia, depois de dar todas as instruções, descera para beber um chope grande na Brasserie Dauphine. Continuava chovendo. O ar estava cinzento. Na verdade, bebeu dois chopes, gole por gole, como se previsse que passaria muito tempo sem ter a oportunidade de fazer aquilo de novo. De volta à sua sala, só lhe restava esperar. Acabaram por bater à porta, e quem apareceu primeiro foi Torrence, com cara animada e ar de importante, corado, como sempre acontecia quando era encarregado de uma missão delicada. Empurrou a porta com cuidado atrás de si e até parecia que tinha acabado de alcançar enorme sucesso quando anunciou: — Elas estão aí! — Na sala de espera? — É. Estão sozinhas. Parece que ficaram surpresas porque não foram recebidas pelo senhor, principalmente a mãe. Acho que se sente humilhada. — Como foi? — Quando cheguei à casa delas, quem abriu a porta foi a empregada. Eu disse quem era, e ela resmungou: “Outra vez!” — A porta da sala estava fechada. Precisei ficar esperando bastante tempo na entrada, e dava para ouvir cochichos, mas não conseguia distinguir o que diziam. Até que enfim, depois de uns quinze minutos, abriram a porta e eu vi um padre, que estava sendo acompanhado até o saguão. Quem acompanhava era a mãe. Ela me olhou como se tentasse me reconhecer, depois me pediu que entrasse com ela. A filha estava na sala, de olhos vermelhos, como se tivesse chorado. — O que ela disse quando viu a intimação? — Leu duas vezes. A mão dela estava tremendo um pouco. Entregou à filha, que leu também e depois olhou para a mãe e disse: “— Eu tinha certeza. Bem que avisei...”. Aquilo tudo parecia que estava acontecendo em câmera lenta, e eu não me sentia à vontade. “— Precisamos ir lá?” Respondi que sim. A mãe insistiu: “— Com o senhor?” “— Quer dizer, tenho um carro lá embaixo. Mas se a senhora preferir pegar um táxi...”.

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— Elas ficaram confabulando em voz baixa, depois parecia que tinham tomado uma decisão e me pediram para esperar uns minutos. Fiquei sozinho na sala um bom tempo, enquanto elas se aprontavam. Aí chamaram uma senhora que estava na sala de jantar e que foi com elas até um dos quartos. Quando voltaram, já estavam de chapéu na cabeça, casaco nas costas e vestindo as luvas. A empregada perguntou se devia esperar as duas para o jantar. A Sra. Josselin respondeu com indiferença que não sabia... Sentaram na parte de trás do carro, e durante todo o trajeto não abriram a boca. Eu via a moça pelo retrovisor, e tinha a impressão que ela era a mais preocupada. O que faço agora? — Nada por enquanto. Espere aqui na sala. Depois, foi a vez de Émile, o garçom da brasserie, que parecia muito mais velho de paletó e capa. — Vou lhe pedir que espere aqui ao lado. — Não vai demorar muito, chefe? Sábado à noite tem muito serviço, e os colegas vão ficar chateados comigo se eu deixar tudo nas costas deles... — Quando eu chamar, só vai demorar uns minutinhos. — E eu não vou precisar depor no tribunal? Promete? — Prometo. Uma hora antes, Maigret tinha telefonado para o Doutor Fabre. Este ouvira em silêncio e depois dissera: — Vou fazer o possível para estar aí às seis horas. Vai depender das consultas... Chegou as seis e cinco e, de passagem, deve ter visto a mulher e a sogra na sala de espera separada por vidro. Maigret tinha ido dar uma olhada, de longe, naquela sala de sofás verdes, onde as fotografias dos policiais mortos em serviço guarneciam três paredes. Nela, a lâmpada ficava acesa o dia inteiro. A atmosfera era tristonha, deprimente. Lembrava-se de alguns suspeitos que haviam sido deixados lá, numa espera interminável, que durava horas, como se tivessem sido esquecidos, para que suas resistências fossem vencidas. A Sra. Josselin se mantinha ereta numa cadeira, imóvel, enquanto a filha passava o tempo a levantar-se e se sentar. — Entre, senhor Fabre... Este, em vista da intimação, esperava novos desdobramentos do caso e tinha expressão preocupada. — Vim o mais rápido que pude, disse ele. Estava sem chapéu, sem casaco nem capa. Devia ter deixado a maleta no carro. — Sente-se... Não vou prendê-lo muito tempo... Maigret sentou à sua mesa, de frente para ele, e começou a ganhar tempo acendendo o cachimbo que tinha acabado de encher e pronunciando com voz suave, onde havia uma sombra de repreensão: — Por que não disse que sua mulher tem um tio? Fabre devia estar esperando aquilo, mas nem por isso suas orelhas deixaram de ficar vermelhas, como provavelmente ficavam à menor emoção. — O senhor não perguntou... Respondeu tentando encarar o comissário. — Eu lhe pedi que me dissesse quem frequentava o apartamento de seus sogros... — Ele não frequentava. — Isso significa que o senhor nunca o viu?

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— Significa. — Ele não foi ao seu casamento? — Não. Eu sabia da existência dele porque minha mulher me disse, mas ninguém falava dele no apartamento da Rua Notre-Dame-des-Champs, pelo menos na minha presença. — Seja sincero, senhor Fabre... Quando o senhor ficou sabendo que seu sogro tinha morrido, que tinha sido assassinado, quando soube que haviam usado o próprio revólver dele e que, portanto, se tratava de alguém familiarizado com o lugar, o senhor não pensou logo nele? — Logo não... — E o que levou o senhor a pensar nele? — A atitude da minha sogra e da minha mulher... — Sua mulher falou do assunto com o senhor depois, quando ficaram sozinhos? Ele ganhava tempo para pensar. — Ficamos muito pouco tempo sozinhos desde aquele acontecimento. — E ela não disse nada? — Disse que tinha medo... — De quê? — Não explicou... Pensava principalmente na mãe... Eu sou apenas genro... Fizeram a bondade de me aceitar na família, mas não faço parte dela completamente... Meu sogro sempre se mostrou generoso comigo... A Sra. Josselin adora meus filhos... Mesmo assim, muitas coisas não me dizem respeito... — Desde o seu casamento, acha que o tio de sua mulher nunca pôs os pés no apartamento? — Só sei que houve uma briga, que todos tinham pena dele, mas não podiam recebê-lo, por motivos que não procurei aprofundar. Minha mulher falava dele como se fosse um infeliz que mais devia ser lastimado que censurado, um sujeito meio louco... — É só isso que o senhor sabe? — Só. O senhor vai interrogar minha sogra? — Sou obrigado. — Não seja duro demais com ela. Ela parece dona de si. Alguns se enganam e acham que ela é uma mulher muito dura. Eu não, eu sei que ela tem uma sensibilidade à flor da pele, mas é incapaz de se abrir. Desde a morte do marido, estou esperando para qualquer hora um ataque de nervos... — Vou tratá-la com a maior delicadeza possível... — Agradeço... Acabou? — Pode voltar para seus pacientes... — Posso dizer uma palavrinha à minha mulher quando sair? — Prefiro que não, principalmente que não fale com sua sogra... — Nesse caso, diga que, se ela não me encontrar em casa quando voltar, é porque estou no hospital... Recebi um telefonema quando estava saindo, e é provável que precise fazer uma operação... Quando estava chegando perto da porta, mudou de ideia e voltou. — Desculpe se recebi o senhor tão mal ainda há pouco... Pense na minha situação... Fui acolhido com generosidade numa família que não é a minha... Essa família, assim como as outras, tem suas mazelas... Considerei que não me cabia... — Eu entendo, senhor Fabre...

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Ele também era um homem de bem, sem dúvida! Melhor que isso, provavelmente, a se acreditar naqueles que o conheciam; daquela vez, os dois homens se apertaram as mãos. Maigret foi abrir a sala dos investigadores e mandou Émile entrar. — O que é que eu devo fazer? — Nada. Fique aí, perto da janela. É provável que eu lhe faça uma pergunta, e você deve responder... — Mesmo que não seja a resposta que o senhor espera? — Responda com a verdade... Maigret foi chamar a Sra. Josselin, que se levantou junto com a filha. — Tenha a bondade de me acompanhar... Só a senhora... Daqui a pouco falo com a senhora Fabre... Ela estava com um vestido de tecido preto ligeiramente mesclado de cinzento, um chapéu preto ornado de peninhas brancas e um casaco leve de chamalote. Maigret lhe deu passagem, e ela imediatamente viu o homem que estava perto da janela, retorcendo o chapéu, constrangido. Pareceu surpresa, se voltou para o comissário, e como ninguém falasse, acabou por perguntar: — Quem é? — Não reconhece? Ela o observou com mais atenção e balançou a cabeça. — Não... — E você, Émile, conhece esta senhora? Com voz embargada pela emoção, o garçom respondeu: — Sim, senhor comissário. É ela mesma. — É essa a pessoa que foi se encontrar com um homem de uns quarenta anos na Brasserie Franco-Italienne, numa tarde do começo da semana? Você tem certeza? — Ela estava com o mesmo vestido e o mesmo chapéu... Eu lhe disse hoje de manhã... — Agradeço. Pode ir. Émile olhou para a Sra. Josselin com a expressão de quem parecia pedir desculpas pelo que acabava de fazer. — O senhor não vai precisar mais de mim? — Acho que não. Os dois ficaram sozinhos, e Maigret indicou uma cadeira à frente de sua mesa, passou por trás desta, mas não se sentou. — Sabe onde está seu irmão? Perguntou com voz amortecida. Ela o olhava de frente, com olhos ao mesmo tempo sombrios e brilhantes, como na Rua Notre-Dame-des-Champs, mas estava menos tensa, e se notava nela até certo alívio. Isso ficou mais claro quando ela resolveu se sentar. Foi mais ou menos como se, por fim, tivesse resolvido abandonar certa atitude que vinha tentando manter a contragosto. — O que meu genro lhe disse? Perguntou, respondendo com outra pergunta. — Pouca coisa... Só confirmou que a senhora tem um irmão, coisa que eu já sabia... — Quem disse? — Uma velhinha de quase noventa anos que ainda mora na Rua Dareau, no prédio onde a senhora morou com seu pai e seu irmão... — Isso tinha de acontecer... Disse ela com indiferença. Ele voltou à carga.

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— Sabe onde ele está? Ela balançou a cabeça. — Não. E juro que estou dizendo a verdade. Até quarta-feira eu estava convencida de que ele se encontrava longe de Paris... — Nunca lhe escrevia? — Nunca, desde que deixou de pôr os pés em nossa casa... — A senhora logo soube que era ele que tinha matado seu marido? — Nem mesmo agora estou tão convencida... Eu me recuso a acreditar... Sei que tudo está contra ele... — Por que tentou salvá-lo a qualquer custo, calando e obrigando sua filha a se calar? — Em primeiro lugar, porque é meu irmão e é um infeliz... Depois, porque me considero um pouco responsável... Tirou um lenço da bolsa, mas não era para enxugar os olhos, que continuavam secos e brilhantes, como que de uma febre interior. Maquinalmente, seus dedos magros o embolavam, enquanto ela falava ou esperava as perguntas do comissário. — Agora estou disposta a lhe dizer tudo... — Como se chama seu irmão? — Philippe... Philippe de Lancieux... É oito anos mais novo que eu... — Se não me engano, passou parte da adolescência num sanatório das montanhas? — Não da adolescência... Ele tinha só cinco anos quando se descobriu que estava com tuberculose... Os médicos o mandaram para a Alta Savoia, onde ficou até doze anos de idade... — Sua mãe já tinha morrido? — Ela morreu poucos dias depois que ele nasceu... Isso explica muitas coisas... Imagino que tudo o que eu lhe disser vai aparecer amanhã nos jornais... — Prometo que isso não vai acontecer. O que a morte de sua mãe explica? — A atitude de meu pai em relação a Philippe e mesmo em relação a tudo, na segunda parte da vida... A partir do dia em que minha mãe morreu, ele se tornou um homem diferente, e eu tenho certeza de que nunca gostou de Philippe, mesmo que sem querer, porque o responsabilizava pela morte da mulher... Além do mais, começou a beber... Foi mais ou menos nessa época que saiu do exército, mesmo não tendo dinheiro nenhum guardado, de modo que nós passamos a viver com muitas dificuldades... — Enquanto seu irmão estava nas montanhas, a senhora ficou sozinha no apartamento da Rua Dareau com seu pai? — Uma velha empregada, que já morreu, ficou conosco até o fim... — E o que aconteceu quando Philippe voltou? — Meu pai o internou num instituto religioso de educação em Montmorency, e praticamente só víamos meu irmão durante as férias... Com quatorze anos, ele fugiu e dois dias depois foi encontrado no Havre; tinha chegado lá de carona... Dizia para as pessoas que precisava chegar o mais depressa possível ao Havre, porque a mãe dele estava morrendo... Já tinha o costume de contar mentiras... Inventava qualquer história, e as pessoas acreditavam porque ele mesmo acabava acreditando... Como o colégio de Montmorency não queria mais saber dele, meu pai o matriculou em outro, perto de Versalhes... Ainda estava lá quando conheci René Josselin... Eu tinha 22 anos... O lenço agora tinha forma de corda, que ela puxava com as duas mãos crispadas, e Maigret, sem perceber, tinha deixado o cachimbo se apagar.

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— Foi aí que eu cometi um erro de que sempre me arrependi... Só pensei em mim... — Ficou em dúvida se devia se casar? Ela olhava para ele, hesitante, procurando as palavras. — Esta é a primeira vez que sou obrigada a falar dessas coisas que eu sempre guardei para mim... A vida com meu pai ficou muito difícil, principalmente porque ele já estava doente e não sabíamos... Apesar disso, eu percebia que ele não viveria muito, e que Philippe, um dia ou outro, iria precisar de mim... Veja bem, eu não devia ter me casado... Eu disse isso a René... — A senhora trabalhava? — Meu pai não deixava, porque achava que lugar de moça não é em escritório... Mas eu estava pensando em fazer isso, em viver mais tarde com o meu irmão... René insistiu... Ele tinha 35 anos... Era um homem no auge do vigor, e eu tinha toda a confiança nele... Ele me disse que cuidaria de Philippe se acontecesse qualquer coisa, que o consideraria como seu próprio filho, e eu acabei concordando... Não devia ter concordado... Era a solução mais fácil... De um dia para o outro eu escapei da atmosfera pesada da minha casa e me livrei de minhas responsabilidades... Eu tinha um pressentimento... — A senhora amava seu marido? Ela o olhou dentro dos olhos e disse com uma espécie de desafio na voz: — Sim, senhor comissário... E amei até o fim... Era o homem... Pela primeira vez, sua voz ficou um tanto entrecortada, e ela, por um momento, desviou o rosto. — Nem por isso deixei de pensar a vida inteira que devia ter me sacrificado... Dois meses depois do nosso casamento, o médico revelou que meu pai estava com um câncer incurável, e eu achei que aquilo era castigo... — A senhora disse isso a seu marido? — Não. Tudo que estou dizendo hoje aqui, estou dizendo pela primeira vez, porque, se meu irmão de fato fez o que o senhor acha que fez, essa é a única maneira de defendê-lo... Se for preciso, vou repetir isso no tribunal... Ao contrário do que o senhor pode pensar, eu estou pouco ligando para a opinião dos outros... Ela estava animada, e suas mãos iam ficando cada vez mais agitadas. Abriu de novo a bolsa e tirou uma caixinha de metal. — O senhor teria um copo de água?... Acho melhor tomar o remédio que o Doutor Larue receitou... Maigret foi abrir o armário onde havia uma talha, um copo e até uma garrafa de conhaque, que nem sempre era inútil. — Agradeço... Eu me esforço para ficar calma... Todos sempre acharam que eu tenho muito autocontrole, mas nem desconfiam o preço que eu pago por essa aparência... O que é que o senhor estava dizendo? — A senhora estava falando de seu casamento... Na época, seu irmão estava em Versalhes... Seu pai... — Sim... Meu irmão ficou só um ano em Versalhes e foi mandado embora... — Fugiu de novo?

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— Não, mas era indisciplinado, e os professores nada conseguiam... Veja bem, eu nunca vivi muito tempo com ele e por isso não o conheço muito bem... Tenho certeza de que no fundo ele não é ruim... É vítima da imaginação... Será que isso é porque passou a infância num sanatório, de cama a maior parte do tempo, como que isolado do mundo?... Eu me lembro de uma resposta que ele me deu um dia, quando o encontrei deitado no chão, no sótão, enquanto todos o procuravam. “— O que está fazendo aí, Philippe?” “— Me contando histórias...”. — Infelizmente, ele contava histórias para os outros também. Propus ao meu pai ficar com ele em minha casa. René estava de acordo. Aliás, foi ele quem primeiro falou nisso. Meu pai não quis, e o levou para outro internato, dessa vez em Paris... Philippe vinha nos visitar todas as semanas, na Rua Notre-Dame-des-Champs, onde nós já morávamos... Meu marido, de fato, o considerava como filho... Mas Véronique já tinha nascido... Uma rua calma e harmoniosa, um apartamento aconchegante, cercado de conventos, a dois passos dos arvoredos do Jardin du Luxembourg. Gente fina. Indústria próspera. Família feliz... — Aconteceu com meu pai aquilo que o senhor sabe... — Onde aconteceu? — Na Rua Dareau. No sofá. Vestiu a farda e pôs o retrato da minha mãe e o meu na frente dele. O de Philippe não... — O que aconteceu com Philippe? — Continuou estudando, aos trancos e barrancos. Ficamos com ele dois anos em casa. Estava claro que ele nunca passaria no exame de fim do segundo grau, e René tinha a intenção de arranjar um emprego para ele na fábrica... — Como eram as relações entre seu irmão e seu marido? — René tinha uma paciência infinita... Ele me escondia o máximo possível as molecagens de Philippe, e este aproveitava... Não suportava nenhuma obrigação, nenhuma disciplina... Muitas vezes não aparecia nem para comer e voltava se sabe lá a que horas para dormir, sempre com uma história para contar... A guerra começou... Philippe foi expulso de uma última escola, e meu marido e eu, mesmo sem dizermos nada um ao outro, estávamos cada vez mais preocupados com ele... Eu acho que René também tinha uma espécie de remorso... Talvez, se eu tivesse ficado na Rua Dareau... — Não é essa a minha opinião, disse sério Maigret. — Pense que o seu casamento não modificou em nada os acontecimentos... — O senhor acha? — Em toda a minha carreira eu encontrei dezenas de pessoas como seu irmão, pessoas que não tinham as mesmas desculpas. O que ela mais queria era acreditar, mas não se decidia a fazê-lo ainda. — O que aconteceu com ele na guerra? — Philippe fez questão de se alistar... Tinha acabado de completar dezoito anos e insistiu tanto, que acabamos concordando... Em maio de 1940, foi feito prisioneiro em Ardenes, e nós ficamos muito tempo sem notícias dele... Passou toda a guerra na Alemanha, primeiro num

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campo de concentração e depois numa fazenda, perto de Munique... Esperávamos que na volta ele fosse um homem diferente... — Continuou o mesmo? — Fisicamente, de fato era um homem, e eu mal o reconheci. A vida ao ar livre lhe havia feito bem, ele tinha ficado musculoso, robusto. Assim que começou a relatar as coisas, percebemos que no fundo ele continuava sendo o rapaz que vivia fugindo e contando histórias... Segundo ele, tinha vivido as aventuras mais extraordinárias. Tinha escapado três ou quatro vezes, em circunstâncias rocambolescas... Teria vivido, o que é possível, como marido e mulher com uma fazendeira para quem trabalhava, e afirmava que tinha dois filhos com ela... Ela tinha outro filho, do marido... Este, segundo Philippe, tinha morrido no front russo... Meu irmão falava em voltar para lá, se casar com a fazendeira e ficar na Alemanha... Depois, um mês mais tarde, tinha outros projetos... Era encantado pela América, e afirmava que havia conhecido uns agentes secretos que não esperavam a hora de recebê-lo... — Não trabalhava? — Meu marido, como havia prometido, arranjou um emprego para ele na fábrica, na Rua Saint-Gothard... — Morava em sua casa? — Só ficou conosco três semanas, antes de ir morar com uma garçonete perto de Saint-Germain-des-Prés... Falava de novo em se casar. Toda vez que tinha uma nova aventura, fazia projetos de casamento... “— Está entendendo, ela está esperando um filho, e se eu não me casar com ela, sou um safado...” — Perdi a conta dos filhos que ele diz que tem em todos os lugares... — Era mentira? — Meu marido tentou descobrir. Nunca teve provas convincentes. Todas as vezes, era uma maneira de arrancar dinheiro dele. E eu logo descobri que ele fazia jogo duplo. Vinha me fazer confidências, suplicar ajuda. A cada vez, precisava de alguma quantia para se livrar de um problema, e depois tudo correria bem. — A senhora dava tudo que ele pedia? — Quase sempre eu cedia. Ele sabia que eu não dispunha de muito dinheiro. Meu marido não me recusava nada. Ele me dava o que era preciso para a casa e não me pedia que prestasse contas. Apesar disso, eu não poderia dispor de quantias muito altas sem falar com ele... Então, Philippe, astucioso, ia falar com René escondido... Contava a mesma história, ou uma outra, e pedia para não me dizer nada... — Como o seu irmão saiu da empresa da Rua Saint-Gothard? — Descobriram umas coisas pouco honestas... Coisas graves, porque ele ia procurar grandes clientes para pedir dinheiro em nome do meu marido... — E o seu marido, afinal, se aborreceu? — Teve uma longa conversa em particular com ele. Em vez de lhe dar algum dinheiro para se livrar dele, mandou o banco lhe pagar uma mesada suficiente para se sustentar... Imagino que o senhor adivinha o que aconteceu depois? — Ele voltou à carga... — E, a cada vez, nós o perdoávamos. A cada vez, ele dava realmente a impressão de que ia refazer a vida... E nós lhe abríamos de novo as nossas portas... Aí ele desaparecia, depois de cometer mais algum ato desonesto... Morou em Bordeaux... Jura que se casou lá, que teve uma

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filha, mas, se isso for verdade, e nós nunca tivemos prova, a não ser o retrato de uma mulher que podia ser o retrato de qualquer pessoa, se isso for verdade, como eu dizia, ele logo largou a mulher e a filha para ir morar em Bruxelas... Lá, sempre segundo ele, foi ameaçado de ser mandado para a cadeia, e o meu marido lhe mandou dinheiro... Não sei se o senhor entende... É difícil para quem não o conhece... Ele sempre parecia sincero, e eu desconfio que era... No fundo, ele não é ruim... — Não é ruim, mas matou seu marido. — Enquanto eu não tiver provas e ele não confessar, eu me recuso a acreditar... E sempre vou ficar em dúvida... Sempre vou me perguntar se não foi por culpa minha... — Fazia quanto tempo que ele não ia à Rua Notre-Dame-des-Champs? — O senhor quer dizer à minha casa? — Não sei qual é a diferença. — Porque, lá em casa, faz pelo menos sete anos que ele não põe os pés... Foi depois de Bruxelas, antes de Marselha, quando Véronique ainda não era casada... Até aí, ele sempre teve boa aparência, porque era elegante, bem-cuidado... Quando voltou, parecia um mendigo, e estava claro que nos últimos tempos não tinha comido bem... Nunca se mostrou tão humilde, tão arrependido. Ficou alguns dias em casa e afirmava que tinha emprego garantido no Gabão, e meu marido mais uma vez o ajudou a se levantar... A gente não ouviu falar mais dele durante uns dois anos... Depois, uma bela manhã, quando eu estava indo fazer compras, dei com ele me esperando na calçada, na esquina... Não vou lhe contar as novas invencionices... Dei um dinheiro para ele... Isso se repetiu várias vezes nos últimos anos... Ele me jurava que não tinha entrado mais em contato com René, que nunca mais ia pedir nada a ele... — E no mesmo dia dava um jeito de se encontrar com ele? — Sim. Como eu disse, ele continuava fazendo jogo duplo. Tive prova disso ontem. — Como? — Eu tinha um pressentimento... Desconfiava que um dia o senhor ia ficar sabendo da existência de Philippe e que me faria determinadas perguntas... — A senhora esperava que fosse o mais tarde possível, para ele ter tempo de sair do país? — O senhor não teria agido como eu?... Não acha que sua mulher, por exemplo, teria feito a mesma coisa? — Ele matou o seu marido. — Suponhamos que isso seja provado; nem por isso deixa de ser meu irmão, e o fato de ficar na cadeia até morrer não vai ressuscitar René... Eu conheço Philippe... Mas, se um dia tiver de contar ao júri o que acabo de lhe dizer, eles não vão acreditar... É um infeliz, mais que criminoso. De que adiantava discutir com ela? E era verdade que, de algum modo, Philippe de Lancieux estava marcado pelo destino. — Como estava dizendo, examinei os papéis do meu marido, principalmente os canhotos dos cheques: são duas gavetas cheias, e eles estão classificados direitinho, porque ele era meticuloso... Foi assim que fiquei sabendo que Philippe, toda vez que vinha falar comigo, também ia falar com o meu marido, primeiro na Rua Saint-Gothard e depois não sei onde... Devia ficar esperando na rua, como fazia comigo... — Seu marido nunca lhe disse... — Tinha medo de me deixar triste. E eu, por outro lado... Se tivéssemos sido mais francos um com o outro, talvez nada disso tivesse acontecido... Pensei muito nisso... Quarta-feira, um

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pouco antes do meio-dia, quando René ainda não tinha voltado, recebi um telefonema e logo reconheci a voz de Philippe... Será que ele estava ligando da Brasserie Franco-Italienne, de onde Josselin tinha acabado de sair? Era provável. Era possível verificar. A moça da caixa talvez se lembrasse de lhe ter dado uma ficha. — Disse que precisava falar comigo de qualquer jeito, que era uma questão de vida ou morte e que, depois, não ouviríamos mais falar dele... Marcou encontro comigo onde o senhor sabe... Fui até lá a caminho do cabeleireiro... — Um momento... A senhora disse ao seu irmão que ia ao cabeleireiro? — Disse... Eu queria explicar por que estava com pressa... — E falou do teatro? — Espere... Tenho quase certeza... Acho que disse: “— Preciso passar pelo cabeleireiro porque hoje vou ao teatro com Véronique”. — Ele parecia mais ansioso que das outras vezes... Confessou que havia feito uma grande besteira, mas não disse qual; deu a entender que podia ser preso... Precisava de muito dinheiro para embarcar para a América do Sul... Na bolsa eu havia posto todo o dinheiro que tinha, e dei a ele... Eu não entendo por que à noite ele teria ido à nossa casa para matar meu marido... — Ele sabia que o revólver estava na gaveta? — Está lá há pelo menos quinze anos, talvez mais, e naquela época, como eu disse, Philippe chegou a morar conosco... — É claro que ele também conhecia o lugar da chave na cozinha. — Ele não pegou dinheiro... Meu marido tinha dinheiro na carteira, e ele não pegou. Também havia dinheiro na escrivaninha, joias no quarto. — Seu marido assinou algum cheque para Philippe no dia em que morreu? — Não. Houve um silêncio, durante o qual eles se olharam. — Acho, suspirou Maigret, — Que essa é a explicação. — Meu marido teria recusado? — É provável... Ou então teria se limitado a dar ao cunhado apenas as notas que tinha no bolso? — Seu marido estava com o talão de cheque? Se não estava, podia ter marcado encontro com Philippe para a noite. — Sempre ficava com ele no bolso. Nesse caso, foi Lancieux que, não conseguindo nada pela manhã, depois voltou à carga. Já estaria decidido a matá-lo? Teria esperanças de conseguir mais, quando a irmã passasse a dispor da fortuna? Maigret não tentava ir mais longe. Tinha esclarecido as personagens o máximo que lhe era possível, e o resto, algum dia, ficaria por conta dos juízes. — A senhora não sabe se ele estava em Paris há muito tempo? — Juro que não faço a menor ideia. Tudo o que espero, confesso, é que ele tenha tido tempo de ir para o estrangeiro, e que ninguém mais ouça falar dele. — E se um dia ele vier pedir dinheiro de novo?... Se a senhora receber um telegrama, por exemplo, de Bruxelas, da Suíça ou de outro lugar, pedindo que mande uma ordem de pagamento?

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— Não acho que... Não terminou a frase. Pela primeira vez, abaixou os olhos diante do olhar de Maigret e balbuciou: — O senhor também não acredita em mim. Dessa vez, houve um longo silêncio, e o comissário ficou remexendo um de seus cachimbos, resolveu enchê-lo e acendê-lo, coisa que não ousara fazer durante toda aquela conversa. Já não tinham nada para se dizer, se notava. A Sra. Josselin abriu a bolsa mais uma vez, para pôr o lenço, e o fecho emitiu um ruído seco. Foi uma espécie de sinal. Depois de uma última hesitação, ela se levantou, menos rígida do que quando entrara. — Ainda precisa de mim? — Não por enquanto. — Imagino que o senhor vai mandar procurá-lo? Ele se limitou a abaixar os olhos. Depois, indo em direção à porta, observou: — Eu não tenho nem fotografia dele. — Sei que o senhor não vai acreditar, mas nem eu tenho; só tenho umas de antes da guerra, quando ele era adolescente. Diante da porta, que Maigret entreabria, os dois ficaram um pouco sem jeito, como se não soubessem de que modo se despedir. — O senhor vai interrogar minha filha? — Não preciso... — Talvez seja para ela que estes dias têm sido mais difíceis... Para meu genro também, suponho... Eles não tinham os mesmos motivos para deixar de falar... Ficaram calados por minha causa... — Não os culpo... Ele estendeu a mão hesitante, sobre a qual ela pousou a sua, que tinha acabado de enluvar. — Não lhe desejo boa sorte... Balbuciou. E, sem se voltar, se dirigiu para a sala de espera de vidro, onde Véronique, ansiosa, se levantou de um salto.

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CAPÍTULO 8

O inverno acabara. Dez, vinte vezes, as lâmpadas tinham ficado acesas até tarde da noite e mesmo madrugada adentro, e toda vez isso significava que um homem ou uma mulher se sentava no sofá que a Sra. Josselin ocupara de frente para a sala de Maigret. A descrição física de Philippe de Lancieux fora comunicada a todas as polícias, e as buscas eram feitas em estações, postos de fronteira e aeroportos. A Interpol montara uma ficha, que fora distribuída para as polícias estrangeiras. Foi só no fim de março, porém, quando as chaminés ganhavam um colorido rosado contra o céu azul-claro e as plantas começavam a dar brotos, que Maigret, entrando certa manhã em sua sala, sem sobretudo pela primeira vez no ano, ouviu falar novamente do irmão da Sra. Josselin. Esta continuava morando no apartamento da Rua Notre-Dame-des-Champs em companhia de uma espécie de governanta, indo todas as tardes ver os netos no Bulevar Brune, levando-os para passear pelas aleias do Parque Montsouris. Philippe de Lancieux fora encontrado morto, assassinado com várias facadas, por volta das três da madrugada nas proximidades de um bar da Avenida des Ternes. Os jornais diziam: “Morte no submundo”. Era mais ou menos exato, como sempre. Embora Lancieux nunca tivesse pertencido ao submundo, na verdade fazia alguns meses que vivia com uma prostituta chamada Angèle. Continuava contando histórias, e Angèle estava convencida de que ele se escondia em casa dela e só saía à noite porque era fugitivo de Fontevrault, onde cumpria pena de vinte anos. Teriam outros percebido que ele não passava de um gigolô de meia-tigela? Teria sido aquilo um acerto de contas pelo roubo de alguma garota ao protetor oficial? Foi aberto um inquérito, bem vagaroso, como quase sempre acontece nesses casos. Maigret precisou ir mais uma vez ao apartamento da Rua Notre-Dame-des-Champs; reviu a zeladora: o filhinho dela estava sentado numa cadeira alta, balbuciando; subiu até o terceiro andar, tocou a campainha. A Sra. Manu, mesmo com a contratação da governanta, ainda trabalhava algumas horas por dia no apartamento; foi ela que abriu a porta, mas dessa vez sem deixar a corrente. — O senhor! Disse franzindo a testa, como se ele só pudesse ser portador de más notícias. A notícia seria tão ruim assim? Nada havia mudado na sala, a não ser uma echarpe azul estendida no sofá de René Josselin. — Vou avisar a patroa... — Por favor... Apesar de tudo, sentiu necessidade de enxugar o suor, enquanto se olhava vagamente no espelho.

FIM