madame autobiogra˜a de guyon
TRANSCRIPT
GuyonMadame
Autobiogra�a de
A mulher que in�uenciou váriasgerações de grandes líderes como
Zinzendorf, John Wesley,Spurgeon, A. W. Tozer e W. Nee.
Título do original em inglês:Autobiography Of Madame GuyonMoody Press, Chicago por Harry Plantinga, 1995
Copyright © 2004 Editora dos Clássicos
Tradução: Valéria Lamim Delgado FernandesRevisão: Paulo César de OliveiraDiagramação: Rita Motta – Editora Tribo da IlhaCapa: Wesley MendonçaEditor: Gerson Lima
1ª edição: 2004 / 2ª edição: 2008 3ª edição: 2012 / 4ª edição: março de 2021
Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados na língua portuguesa por
Editora dos Clássicoswww.editoradosclassicos.com.brcontato@editoradosclassicos.com.br
Proibida a reprodução total ou parcial deste livro sem a autorização escrita dos editores.
21-60103 CDD-282.092
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Guyon, Jeanne Marie Bouvier de La Motte, 1648-1717
Autobiografia de Madame Guyon / Jeanne Marie
Bouvier de La Motte Guyon ; [ilustrações Wesley
Mendonça ; tradução Valéria Lamim Delgado
Fernandes]. -- 3. ed. -- Campinas, SP :
Editora dos Clássicos, 2021.
Título original: Autobiography of Madame Guyon
ISBN 978-65-89107-04-0
1. Católicos - França - Autobiografia
2. Cristianismo 3. Guyon, Jeanne Marie Bouvier de
La Motte, 1648-1717 4. Mulheres católicas - Vida
religiosa I. Mendonça, Wesley. II. Título.
Índices para catálogo sistemático:
1. França : Mulheres católicas : Autobiografia
282.092
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
Sumário
Prefácio à 2ª Edição em Português ........................................ 9
Introdução ............................................................................13
P A R T E 1
1. O Encargo desta Obra ....................................................19
2. Uma Criança com o Coração Dilacerado ......................25
3. Uma Infância na Escola do Sofrimento ........................33
4. Nuvens Escuras, no Caminho da Luz ..........................39
5. Quanta Compaixão pelos Pecadores! ...........................49
6. O Casamento, uma Casa de Luto ..................................61
7. O Vazio de todas as Coisas Terrenas ............................73
8. A Vida de Oração Profunda: Primeiros Passos ............83
9. Só o Doador Deve Ser nosso Objetivo ..........................91
10. A União da nossa Vontade com a d’Ele .......................95
11. Todo o Avanço Espiritual Depende disso .................101
12. Eu Suportava em Silêncio ..........................................107
13. É a Ti, e somente a Ti, que Devo tudo .......................119
14. Atraída para o Interior ................................................127
15. Deus Usa as Criaturas e suas Inclinações ..................133
16. A Falta de Experiência ................................................143
17. Somente por Ti! ..........................................................151
18. Depois de Recuperar-me da Varíola ...........................159
19. Agora só me Restava o Filho de minhas Dores .........167
20. O Golpe mais Duro que já Senti .................................177
21. Um Estado de Privação Total .....................................187
22. Depois de Doze Anos de Casamento… ......................191
23. Sendo Eu agora uma Viúva.........................................199
24. Meu Deus Parecia Estar tão Distante ..........................207
25. Censurada por todos ...................................................213
26. “Deus me Queria em Genebra” ..................................221
27. Uma Alma que se Perde em seu Deus! ......................227
28. “Ele me Queria em Genebra”......................................235
29. Sua Divina Providência ..............................................243
P A R T E 2
30. Em Genebra .................................................................257
31. Quanto à minha Filha .................................................265
32. O Maior dos Milagres ..................................................271
33. Depois de Ter Saído do Estado de Provação .............277
34. Minha Chegada a Gex .................................................283
35. Várias Coisas não me Agradavam ..............................291
36. Após a Partida do Padre La Combe ............................299
37. A Alma no Estado de Gozo Absoluto .........................307
38. Eu não me Preocupava comigo ..................................313
39. Satisfeita com a Ordem de Deus ................................319
40. Senti uma Forte Propensão para Escrever .................325
41. Com Relação ao Padre La Combe ...............................331
42. De Acordo com a Vontade de Deus ............................343
43. Devo Ser Conformada a Ele ........................................353
44. Os Monges ...................................................................361
45. Abandonada por meus Amigos ..................................369
46. O Injusto Caminho da Prisão ......................................381
47. Foi desta Maneira que Jesus Sofreu ...........................391
Recomendamos ..................................................................401
Caro(a) Leitor(a)..................................................................405
Os textos das referências bíblicas foram extraídos da versão
Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição (Sociedade Bíblica
do Brasil), salvo indicação específica.
9
Prefácio à 2ª Edição em Português
J eanne Marie Bouvier de La Motte (1648-1717), mais
conhecida como Madame Guyon, foi levantada por Deus
num contexto católico, em pleno século XVII, quando as nuvens
da apostasia ainda eram densas em muitos lugares, apesar do
irromper de luz da Reforma. Deus a usou de forma especial para
abrir caminho para a restauração da vida interior, da comunhão
profunda com Ele, por meio da vida de oração, da consagração
plena, da santificação e do operar da cruz.
Autobiografia de Madame Guyon é recomendada como
um clássico pelo respeitado Christian Chen, dentre milhares
de livros, na obra 101 Livros Selecionados1.
Richard Foster também enaltece Guyon em sua obra Clás-
sicos Devocionais, destacando sua obra Experimentando as
Profundezas de Jesus Cristo Através da Oração (publicada
por esta editora) como uma das 52 leituras dos principais au-
tores devocionais sobre renovação espiritual. Ele comenta:
1 101 Livros Selecionados – Um Guia para os Clássicos Cristãos. Obra Cristã À Maturidade, 1995.
10
“Cerca de vinte e cinco anos de sua vida foram gastos
em confinamento. Muitos de seus livros foram escritos neste
período. A grande contribuição de Madame Guyon para a li-
teratura devocional é o estilo de escrita, que leva o leitor a
buscar uma experiência viva de Jesus Cristo”.2
Seus inspirados escritos influenciaram a muitos ao redor
do mundo e a notáveis líderes, tais como o Arcebispo François
Fénelon, os Quacres, John Wesley, Conde Zinzendorf, Charles
Spurgeon, Jessie Penn-Lewis, Andrew Murray, A. W. Tozer e
Watchman Nee. Eles foram tão marcados por Deus por meio
dela que muitas das verdades comentadas e vividas por eles
tiveram origem, de alguma maneira, no que herdaram de
Madame Guyon; em nossos dias, estamos apenas começando
a tocar no fluir das águas da verdadeira espiritualidade que
Deus fez jorrar por meio dela e dos pais da espiritualidade.
Sobre ela, o príncipe dos pregadores, Spurgeon, disse:
“... já existiu alguma vez neste mundo uma mulher cristã mais nobre do que Madame de la Motte Guyon? Ela não se afastou de Cristo, embora em meio a uma atmosfera pestilenta. Lembre-se também dos nomes de Jansenius3, e Arnold, e Pascal, e Fénelon, que são uma honra para a Igre-ja universal de Cristo; quem já andou mais em comunhão com Cristo do que esses santos andaram? No meio da ida-de das trevas, cintilaram as estrelas mais brilhantes4”.
2 Clássicos Devocionais, Editora Vida, 1. edição, 2009.3 Teólogo católico Cornelius Jansenius (1585-1638).4 Spurgeon, C. H. (Um sermão entregue numa manhã de quinta-feira, em 27 de junho
de 1907). One of the Master’s Choice Sayings. In The Metropolitan Tabernacle Pulpit Sermons (vol. 53, p. 319). London: Passmore & Alabaster.
11
Sua autobiografia, escrita especialmente para atender à
insistência de seu mentor, La Combe, é notoriamente reco-
nhecida como um dos maiores clássicos cristãos da espiri-
tualidade. Em vários livros encontramos menções dispersas
desta autobiografia e de seus escritos, ressaltando o profundo
legado de sua vida e obra. Agora, pela primeira vez em língua
portuguesa, temos a grande satisfação de apresentar aos ga-
rimpeiros de preciosidades esta pedra preciosa.
Esta é uma versão completa da obra original, e conserva-
mos na íntegra o estilo da autora, em sua linguagem e contexto
(apenas adicionamos os títulos, subtítulos e frases resumindo
os capítulos). Como ela ressaltou: “Espero que o que escrevo
não seja visto por ninguém que possa ofender-se com isso ou
que não esteja em condição de ver estes assuntos em Deus”.
Assim, cabe a nós abrir nossos olhos, sem preconceitos, para
também vermos, como muitos, além das letras e da casca das
conjunturas naturais e culturais de sua época e tocar nos se-
gredos do coração de Deus dispensados de forma especial pela
correspondência incondicional de Madame Guyon.
“Aprendi a amar as paredes escuras da prisão porque ali
vejo o brilho da face de meu Senhor”, dizia ela. Ela encarnou
as palavras: “Por isso, também os que sofrem segundo a von-
tade de Deus entreguem a sua alma ao fiel Criador, na prática
do bem” (1 Pedro 4.19). Seu único crime foi amar a Deus.
Ironicamente, ela foi condenada pelos que diziam amar a
Deus e representá-lO.
12
“Madame Guyon (...), esta santa mulher andou em cons-tante comunhão com Cristo; talvez ninguém tenha visto o rosto do Salvador e beijado suas feridas mais verda-deiramente do que ela.” – Charles Spurgeon5
Tendo sido publicada pela primeira vez em português em
2004, esta é sua segunda edição, revista e atualizada conforme
o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Que possamos vê-lO no cenário, amá-lO em verdade e
cada vez mais. Esta é uma obra que merece nosso respeito.
Ó Senhor, esta obra é fruto de Tua providência. A Ti da-
mos toda glória!
Gerson Lima
Monte Mor, 10/07/2020
5 Sermão entregue na manhã de domingo de 20 de janeiro de 1861, Words of Expostulation, n. 356.
13
Introdução
N a história do mundo, foram poucas as pessoas que
atingiram o alto grau de espiritualidade alcançado por
Madame Guyon.
Ela nasceu em uma época corrupta, em uma nação mar-
cada pela decadência; cresceu e criou-se em uma igreja tão
devassa quanto o mundo em que estava inserida; foi perse-
guida a cada passo de sua carreira; andando às cegas em meio
a uma devastação e ignorância espiritual, não obstante ela
atingiu o auge da preeminência em termos de espiritualidade
e devoção cristã.
Viveu e morreu dentro da igreja católica; contudo, pade-
ceu tormentos e aflições; foi maltratada, sofreu abusos e foi
presa durante anos pelas maiores autoridades daquela igreja.
Seu único crime foi amar a Deus. Sua suprema devoção e
incomensurável ligação com Cristo foram os pretextos usados
para justificar as ofensas que sofreu. Exigidos seu dinheiro e
seus bens, ela, com alegria, se desfez deles, mesmo sabendo
que ficaria pobre, mas de nada adiantou. O pecado de amar
Aquele em quem todo o seu ser estava absorvido jamais seria
amenizado, ou perdoado.
14
Ela simplesmente gostava de fazer o bem para o próximo,
e foi tão cheia do Espírito Santo e do poder de Deus que ope-
rou maravilhas em sua época, não deixando de influenciar as
gerações seguintes.
Do ponto de vista humano, é um sublime espetáculo ver
uma mulher solitária subverter todas as manobras de reis e
cortesãos, tratar com o máximo desprezo todos os conluios
malignos da inquisição papal e do silêncio e confundir as am-
bições dos clérigos mais eruditos. Ela não só viu com maior
clareza as verdades mais sublimes do nosso cristianismo mais
santo, como também se aqueceu sob a mais clara e bela luz do
sol enquanto eles tateavam na escuridão. Compreendeu com
facilidade as verdades mais profundas e mais sublimes das
Sagradas Escrituras, enquanto eles se perdiam nos labirintos
de sua profunda ignorância.
Um distinto clérigo deleitava-se em sentar-se aos pés
dela. A princípio ele a ouvia com desconfiança; depois, com
admiração. Por fim, abriu seu coração para a verdade e esten-
deu sua mão para ser conduzido por esta santa de Deus para
o Santo dos Santos, onde ela habitava. Nós nos referimos ao
distinto arcebispo Fénelon, cujo espírito meigo e fascinantes
textos têm sido uma bênção para cada geração que o sucedeu.
Não apresentamos nenhum pedido de desculpas por pu-
blicarmos na Autobiografia de Madame Guyon as expressões
de devoção de sua igreja, que encontraram vazão em seus es-
critos. Madame Guyon era uma autêntica católica no início do
protestantismo.
15
Não há dúvida de que Deus, por uma intervenção espe-
cial de Sua Providência, levou-a a dedicar sua vida, de modo
tão meticuloso, à escrita. O dever foi-lhe imposto por seu líder
espiritual, a quem, de acordo com as normas de sua igreja, ela
era obrigada a obedecer. Seus textos foram escritos enquan-
to ela estava presa em uma solitária. A mesma Providência,
dotada de toda a sabedoria, impediu que fossem destruídos.
Não temos sombra de dúvida de que eles têm por objetivo
realizar algo dez vezes maior no futuro do que o realizado no
passado. Na realidade, o mundo cristão está só começando a
entendê-los e apreciá-los, e esperamos e oramos para que mi-
lhares de pessoas possam, por meio desses textos, ser levadas
à mesma relação e comunhão íntima com Deus, que muito
Se agradou de Madame Guyon.
E. J.
P A R T E 1
No Caminho do Quebrantamento
“Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra,
não morrer, fica ele só; Mas, se morrer, produz muito fruto.”
(Palavra de Jesus em João 12.24)
19
C A P Í T U L O 1
O Encargo desta Obra
H ouve importantes omissões na anterior narração de
minha vida. Prontamente cumpro com teu desejo, ao
dar-te uma relação mais circunstancial, embora o trabalho pa-
reça ser muito doloroso, visto que não posso utilizar grande
parte do estudo ou reflexão. Meu desejo mais ardente é pin-
celar com cores genuínas a bondade de Deus para comigo e a
profundidade de minha própria ingratidão – entretanto, isso
é impossível, uma vez que inúmeras situações menores têm
escapado à minha memória. Além do mais, tu expressas o de-
sejo de que não tenho por que te dar uma minuciosa relação
de meus pecados. Não obstante, tentarei deixar de lado o mí-
nimo possível de faltas. Dependo de ti para destruí-las, uma
vez que tua alma já absorveu aquelas verdades espirituais que
Deus intentou, e a cujo propósito quero sacrificar todas as coi-
sas. Estou plenamente convencida de Seus desígnios para tua
vida, bem como para a santificação dos outros, e para tua pró-
pria santificação.
Permite-me certificar-te de que isso não se obtém a não
ser por meio de dor, sofrimento e trabalho, e será alcançado
por meio de uma vereda que decepcionará profundamente
20
tuas expectativas. Não obstante, se estiveres completamente
convencido de que é sobre a esterilidade do homem que Deus
estabelece Suas maiores obras, estarás, em parte, protegido
contra a decepção ou surpresa. Ele destrói para poder edifi-
car, pois quando está prestes a edificar Seu sagrado templo
em nós, Ele primeiro arrasa totalmente esse fútil e pomposo
edifício que as artes e os esforços humanos erigiram, e, de
suas terríveis ruínas, uma nova estrutura é formada, somente
pelo Seu poder.
Ó, que tu possas compreender a profundidade deste mis-
tério e aprender os segredos da conduta de Deus, revelados às
criancinhas, mas ocultos aos sábios e grandes deste mundo,
que se consideram os conselheiros do Senhor, e capazes de
investigar Seus métodos, e supõem que obtiveram essa divina
sabedoria, oculta aos olhos de todos aqueles que vivem em si
mesmos e estão envoltos em suas próprias obras. Quem, por
um vivo engenho e elevadas faculdades, sobe ao Céu e pensa
compreender a altura, profundidade e largura de Deus?
Essa sabedoria divina é desconhecida, mesmo para aque-
les que passam pelo mundo como pessoas de extraordinário
conhecimento e iluminação. Quem, então, a conhece, e quem
nos pode revelar algumas de suas incógnitas? A destruição e
a morte asseguram-nos que eles escutaram com seus ouvidos
acerca de sua fama e renome. É, portanto, morrendo para to-
das as coisas, e estando verdadeiramente desatentos a elas, se-
guindo adiante em direção a Deus, e existindo somente n’Ele,
que chegamos a algum conhecimento da verdadeira sabedo-
ria. Ó, quão pouco se sabe de seus caminhos e de sua conduta
21
para com os seus servos eleitos. Raramente descobrimos algo
dela, mas, surpresos com a dissimilitude existente entre a
verdade recém-descoberta e nossas prévias ideias acerca dela,
clamamos junto a São Paulo: “Ó profundidade da riqueza,
tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus
caminhos!” (Rm 11.33).
O Senhor não julga as coisas como fazem os homens, que
chamam o mal de bem e o bem de mal e têm por justo o que é
abominável aos Seus olhos, coisas que, segundo o profeta, Ele
considera trapos imundos. Deus submeterá a estrito juízo estes
que se justificam a si mesmos, e, como os fariseus, serão mais
objetos de Sua ira do que objetos de Seu amor, ou herdeiros de
Suas recompensas. Não é o próprio Cristo que nos assegura que
“se a [nossa] justiça não exceder em muito a dos escribas e fari-
seus, jamais [entraremos] no reino dos céus” (Mt 5.20)? E quem
dentre nós se aproxima a eles em justiça? Ou que, se vivermos
na prática de virtudes, embora muito inferiores às deles, não
somos dez vezes mais ostentosos? Quem não se agrada em con-
templar-se a si mesmo como justo aos seus próprios olhos e aos
olhos dos outros? Ou quem é que duvida que tal justiça basta
para agradar a Deus? Todavia, vemos a indignação de nosso Se-
nhor manifestada contra eles. Aquele que foi o padrão perfeito
em ternura e mansidão, como a que fluía do fundo do coração,
e não como aquela mansidão fingida que, sob a forma de uma
pomba, esconde o coração de um falcão.
Ele se mostra severo somente com essas pessoas que se
justificam e as desonrou em público. Que estranha paleta de
22
cores Ele utiliza para representá-las, enquanto sustenta o po-
bre pecador com misericórdia, compaixão e amor, e declara
que só por ele foi que Ele veio, que era o enfermo que necessi-
tava de médico; e que Ele só veio para salvar a ovelha perdida
da casa de Israel.
Ó Tu, Manancial de Amor! Pareces de fato tão zeloso pela
salvação dos que tens comprado que preferes o pecador ao
justo! O pobre pecador, que se vê vil e miserável, é, por assim
dizer, forçado a detestar-se a si mesmo; e, vendo que seu es-
tado é tão horrível, ele se lança, em seu desespero, nos braços
de seu Salvador, mergulha na fonte de cura e sai dela “branco
como a neve”. Então, perplexo com o exame de seu estado de
desordem, transborda de amor por Ele, que, tendo todo o po-
der, teve também a compaixão de salvá-lo – sendo o excesso
de seu amor proporcional à enormidade de seus crimes, e a
plenitude de sua gratidão, à extensão da dívida perdoada.
Aquele que se justifica a si mesmo, apoiando-se nas mui-
tas boas obras que imagina ter feito, parece segurar a salvação
em suas próprias mãos e considera o Céu como uma justa re-
compensa para seus méritos. Na amargura de seu zelo, ele bra-
da contra todos os pecadores e mostra as portas da misericór-
dia como que trancadas contra eles, e o Céu como um lugar ao
qual eles não têm direito. Que necessidade têm tais pessoas,
que se justificam a si mesmas, de um Salvador? Elas já têm a
carga de seus próprios méritos. Ó, quanto tempo carregam a
carga lisonjeira, enquanto os pecadores, despojados de tudo,
voam velozmente nas asas da fé e do amor para os braços de
23
seu Salvador, que de graça lhes concede o que gratuitamente
prometeu!
Quão cheios de amor-próprio são os que se justificam a si
mesmos e quão vazios do amor de Deus! Eles se valorizam e se
admiram em suas obras de justiça, que acreditam ser uma fon-
te de felicidade. Tão logo essas obras são expostas ao Sol da
Justiça, descobrem que todas estão cheias de impureza e in-
fâmia, e isso lhes aflige sobremaneira. Enquanto isso, a pobre
pecadora, Madalena, é perdoada porque ama muito, e sua fé e
amor são aceitos como justiça. O inspirado Paulo, que tão bem
entendeu estas grandes verdades e tanto as investigou, asse-
gura-nos que “isso [a fé de Abraão] lhe foi também imputado
para justiça” (Rm 4.22). Isso é de fato precioso, pois é certo
que todas as ações daquele santo patriarca foram estritamente
justas; porém, não as vendo assim e estando livre do amor
para com elas, e despojado de egoísmo, sua fé foi fundada
sobre o Cristo que haveria de vir. Esperou n’Ele mesmo con-
tra a própria esperança, e isso lhe foi imputado para justiça
(Rm 4.18, 22), uma pura, simples e genuína justiça, feita
por Cristo, e não uma justiça feita por si mesmo, e tida como
sua justiça.
Talvez penses que isso seja uma grave digressão do as-
sunto, porém ela nos leva, inconscientemente, a ele. Mostra
que Deus realiza Sua obra em pecadores convertidos, cujas
iniquidades do passado servem de contrapeso para seu en-
grandecimento, ou em pessoas cuja justiça própria Ele des-
trói, derrocando por completo o orgulhoso edifício que ergue-
ram sobre um alicerce arenoso, e não sobre a Rocha – CRISTO.
24
A instauração de todos estes fins, para cujo propósito Ele
veio ao mundo, efetua-se pela visível destruição dessa mesma
estrutura que, na realidade, Ele erigiria. Por meios que pare-
cem destruir a Sua Igreja, Ele a estabelece. De que estranha
forma Ele funda a nova dispensação e lhe dá Seu beneplácito!
O próprio Legislador é condenado pelos versados e poderosos
como um malfeitor e morre uma morte ignominiosa. Ó, que
entendamos na íntegra quão oposta é nossa própria justiça aos
desígnios de Deus – seria um assunto de humilhação sem fim,
e deveríamos ter uma verdadeira desconfiança daquilo que,
neste momento, constitui toda a nossa dependência.
Partindo de um amor justo, próprio de Seu supremo po-
der, e de um zelo idôneo pela humanidade, que atribui a si
mesma os dons que Ele mesmo concede, aprouve a Deus to-
mar uma das mais indignas criaturas da criação para tornar
conhecido o fato de que Suas graças são os frutos de Sua von-
tade, e não os frutos de nossos méritos. É próprio de Sua sabe-
doria destruir o que está construído com orgulho e construir
o que está destruído; fazer uso de coisas fracas para confundir
os poderosos e empregar para Seu serviço aquele que parece
vil e desprezível.
Isso Ele faz de uma forma tão surpreendente que chega a
transformá-los nos objetos do escárnio e desprezo do mundo.
Não é para atrair sobre eles a aprovação pública que Ele faz de-
les instrumento para salvação dos outros, mas para torná-los
objetos de seu desgosto e súditos de seus insultos; como verás
nesta vida sobre a qual tenho o encargo de escrever.
25
C A P Í T U L O 2
Uma Criança com o Coração Dilacerado
(Conselho aos pais quanto à criação de seus filhos)
N asci em 18 de abril de 1648. Meus pais, em particular
meu pai, eram extremamente religiosos, porém, para
ele, tratava-se de uma herança. Muitos de seus antepassados
foram santos.
Minha mãe, no oitavo mês de gravidez, levou um terrível
susto, o que provocou um aborto. Normalmente acredita-se
que uma criança que nasce no oitavo mês não pode sobrevi-
ver. Na realidade, fiquei tão enferma logo depois que nasci
que todos os que estavam à minha volta perderam a esperança
de que eu viveria e temiam que eu morresse sem ser batizada.
Ao perceber alguns sinais de vitalidade, correram para avisar
meu pai, que, imediatamente, trouxe um padre; entretanto, ao
entrarem no quarto, disseram a eles que aqueles sintomas que
haviam reacendido suas esperanças não passavam de esforços
de alguém que expirava e que tudo estava acabado.
26
Tão logo mostrei novos sinais de vida, voltei a ter uma
recaída e fiquei em um estado incerto por um período tão
longo que foi preciso tempo para que pudessem encontrar
uma oportunidade adequada para batizar-me. Continuei
muito enferma até completar dois anos e meio, quando me
enviaram para o convento das ursulinas, onde permaneci por
alguns meses.
Quando voltei para casa, minha mãe negou-se a dar a de-
vida atenção à minha educação. Ela não gostava muito das
filhas e abandonou-me aos cuidados dos empregados. Na rea-
lidade, eu teria sofrido muito por conta de sua falta de atenção
para comigo se a Providência, totalmente atenta, não tivesse
sido a minha proteção: por causa de minha vivacidade, sofri
vários acidentes. Caí muitas vezes em um porão onde guardá-
vamos lenha; no entanto, sempre escapei ilesa.
A duquesa de Montbason apareceu no convento dos be-
neditinos quando eu tinha quase quatro anos. Ela tinha uma
grande amizade com meu pai e teve permissão dele para que
eu fosse para o mesmo convento. Ela ficava encantada com
minhas brincadeiras e demonstrava certa doçura para com mi-
nha conduta exterior. Passei a ser sua constante companheira.
Fui culpada de frequentes e perigosas irregularidades
nesta casa e cometi sérias faltas. Tinha bons exemplos diante
de mim, e sendo, por natureza, inclinada a eles, eu os seguia
quando não havia ninguém para corrigir-me. Gostava de ouvir
coisas acerca de Deus, de estar na igreja e de usar vestes reli-
giosas. Falaram-me dos terrores do Inferno, o que, em minha