maciel, francisco - a produção do flagelo a reprodução do espaço social da seca na cidade de...

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1 “A Produção do Flagelo”: a re-produção do espaço social da seca na cidade de Mossoró (1877-1903-1915) FRANCISCO RAMON DE MATOS MACIEL

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Dissertação de Mestrado do Francisco Maciel, que aborda a seca em Mossoró no final do séc. XIX e início do XX.

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  • 1

    A Produo do Flagelo: a re-produo do espao social da seca na

    cidade de Mossor (1877-1903-1915)

    FRANCISCO RAMON DE MATOS MACIEL

  • 2

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    PR-REITORIA DE PS-GRADUAO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO

    REA DE CONCENTRAO: HISTRIA E ESPAOS

    LINHA DE PESQUISA: RELAES ECONMICO-SOCIAIS E PRODUO

    DOS ESPAOS

    A Produo do Flagelo: a re-produo do espao social da seca na

    cidade de Mossor (1877-1903-1915)

    FRANCISCO RAMON DE MATOS MACIEL

    NATAL/RN

    2013

  • 3

    FRANCISCO RAMON DE MATOS MACIEL

    A Produo do Flagelo: a re-produo do espao social da seca na

    cidade de Mossor (1877-1903-1915)

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau

    de Mestre no Curso de Ps-Graduao em Histria, rea de

    Concentrao em Histria e Espaos, Linha de Pesquisa Relaes

    Econmico-Sociais e Produo dos Espaos da Universidade Federal

    do Rio Grande do Norte, sob a orientao do(a) Prof(a). Dr(a).

    Haroldo Loguercio Carvalho.

    NATAL/RN

    2013

  • 4

    Catalogao da Publicao na Fonte.

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

    Maciel, Francisco Ramon de Matos. A produo de Flagelo: a re-produo do espao social da seca na

    cidade de Mossor (1877-1903-1915) / Francisco Ramon de Matos Maciel.

    2013. 222 f.: il.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-

    graduao em Histria, 2013.

    Orientador: Prof. Dr. Haroldo Loguercio Carvalho.

    1. Histria - Mossor, RN. 2. Secas - Mossor, RN. 3. Espacialidade -

    Mossor, RN. I. Carvalho, Haroldo Loguercio. II. Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

    RN/BSE-CCHLA CDU 94:551.557.38(813.2)

  • 5

    FRANCISCO RAMON DE MATOS MACIEL

    A Produo do Flagelo: a re-produo do espao social da seca na

    cidade de Mossor (1877-1903-1915)

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Curso de

    Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comisso

    formada pelos professores:

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________

    Dr. Prof. Haroldo Loguercio de Carvalho.

    Presidente - UFRN

    _________________________________________

    Dr. Prof. Frederico de Castro Neves.

    Titular - UFC

    ________________________________________

    Dr. Muirakytan Kennedy de Macedo.

    Titular - UFRN

    ____________________________________________

    Dr. Sebastio Leal F. Vargas Netto.

    Suplente - UFRN

    Natal, _________de__________________de____________

  • 6

    Essa re-produo para minha famlia, amigos, professores e

    companheira.

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Essa sem dvida uma das partes mais reconfortantes e difceis do processo de escrita,

    principalmente pelo carter de dividir ao pblico leitor, todos os anseios, motivaes, e

    caminhos dos quais no trilhamos sozinhos para conseguir concluir um trabalho, afinal, so

    muitas as vozes, presenas e orientaes consubstanciadas nas linhas, estrofes e argumentos

    do texto. Desse modo quero agradecer,

    Primeiramente a CAPES pela bolsa de pesquisa concedida atravs da Pr-Reitoria de Ps-

    Graduao da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que foi fundamental para a

    concretizao e desenvolvimento do trabalho.

    As instituies, Fundao Vingt-Un Rosado/Coleo Mossoroense e Museu Histrico Lauro

    da Escssia da cidade de Mossor, que abriram suas portas, arquivos e traas para levantar as

    fontes necessrias para iniciar e terminar essa pesquisa.

    Aos amigos e colegas da turma de mestrado de 2011, especialmente a Antonia Mrcia,

    Aldinizia Souza, Viltany Oliveira, Cludia Regina, Otvio Pimentel e Willian Pinheiro.

    A algum que desistiu na labuta da jornada e que foi essencial, no apenas como

    companheiro de leituras e crticas dos textos das disciplinas, mas como um amigo que

    compartilhou a solido, a alegria, a fome, sol, chuva e bebidas nos fins de semana da cidade

    de Natal.

    Aos professores das disciplinas cursadas e suas orientaes fundamentais nesse caminho do

    saber: Carmen Margarida, Muirakytan Kennedy, Raimundo Arrais, Durval Muniz, Sebastio

    Netto e Flvia de S.

    Agradeo ao meu orientador, Haroldo Loguercio de Carvalho, pelas suas contribuies e

    confiana depositada no desenvolvimento do trabalho, e especialmente a sua famlia, Luisa,

    Luna, Gabriel, Andr e Marvin, que sempre foram hospitaleiros e amveis nos momentos que

    precisei de um tlamo na capital.

  • 8

    Aos meus pais, Geraldo Brando Maciel e Maria de Matos Maciel, pelo apoio e f colocada

    nos meus passos, desde o dia que sai de casa no ano de 2006, para assumir os estudos

    acadmicos da deusa Clio.

    Aos meus grandes amigos, dentro e fora dos crculos acadmicos, que contriburam na minha

    formao pessoal, profissional e social, mostrando que as sociabilidades e cotidiano

    compartilhado vm antes do que os conceitos e teorias sobre os mesmos.

    E por ltimo, a minha companheira, tala, que compartilhou e suportou ao meu lado, os

    rigores do tempo, da distncia, da saudade, dos livros, da luz eltrica e incertezas dessa vida,

    alm de sempre acreditar no meu esforo e vontade de concretizar esse trabalho.

  • 9

    RESUMO

    As grandes secas re-produziram espaos na cidade de Mossor/RN no final do sculo XIX ao

    incio do XX. Sua dimenso ultrapassa os efeitos climticos tornando-se lcus social quando

    avana sobre os setores polticos e econmicos, sociais e culturais das sociedades do

    Norte/Nordeste do Brasil naquele perodo. Desse modo, analisar a re- produo do espao

    social nos episdios de secas em Mossor ser nossa labuta. Assim procuramos desnudar cada

    segmento, percurso e aspecto da produo espacial na sua dimenso e interface entre o

    percebido, concebido e vivido, e os sujeitos a ela relacionados retirantes, populao e

    autoridades durante as secas de 1877, 1903 e 1915 no espao citadino mossoroense. Logo,

    questes como: a constituio e representao da cidade e espao social na experincia

    aterradora da seca de 1877, a produo dos objetos fixos e fluxos do tecido urbano atravs do

    labor retirante, as tentativas de controle, disciplina e ordenamento espacial e as formas de

    resistncias a essas imposies na esfera cotidiana so questes fundamentais tratadas nesse

    trabalho. Para isso usamos fontes diversas como atas da cmara municipal, relatrios dos

    presidentes de provncia, imprensa, livros de memria entre outras que nos ampara na

    construo de nossa narrativa e problemtica. Deste modo, a produo espacial da seca em

    Mossor revela-se no campo das relaes e transformaes poltico-econmicas e

    socioculturais, indissociavelmente, que conforma e mobiliza o prprio espao social.

    Palavras-Chave: Seca, espao social, produo do espao, cidade.

  • 10

    ABSTRACT

    The great droughts re- produced spaces in the city of Mossor / RN in the end of the

    nineteenth century to the beginning of the twentieth century. Its dimension exceeds the

    climatic effects becoming social locus when advances over the political and economic sectors,

    social and cultural of the North / Northeast Brazilian societies during that period. This way,

    analyzing the re-production of social space in episodes of Mossors droughts is our toil. So

    try to reveal each segment, route and aspect of production of space in its size and interface

    between the perceived, conceived and lived, and subjects related to it - refugees, population

    and authorities - during the droughts of 1877, 1903 and 1915 within Mossor city. Therefore,

    issues such as the constitution and representation of the city and social space in the terrifying

    experience of the drought of 1877, the production of fixed objects and flows of the urban web

    through of migrant labor, attempts to control, discipline and spatial planning and ways to

    resistance to these charges in daily sphere are key issues addressed in this work. For this we

    use diverse sources as minutes of the city council, reports from provincial presidents, media,

    memory books and others that sustain us in building our narrative and problematic. This way,

    the spatial production of Mossors droughts reveals itself in the field of relations and

    political-economic transformations and sociocultural, inextricably, that shapes and mobilizes

    your own social space.

    Keywords: Drought, social space, production of space, city.

  • 11

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 Mercado pblico da cidade de Mossor na dcada de 1920.............................. 73

    FIGURA 2 A planta da cidade de Mossor de 1879.............................................................. 86

    FIGURA 3 Rio Mossor no ano de 1947............................................................................... 89

    FIGURA 4 Casa de cmara e cadeia de Mossor no incio do sculo XX......................... 101

    FIGURA 5 Cemitrio pblico So Sebastio em Mossor no incio do sculo

    XX................................................................................................................. ..........................109

    FIGURA 6 Igreja Matriz de Santa Luzia em Mossor no incio do sculo XX................. 112

    FIGURA 7 Igreja So Vicente de Paula em Mossor na dcada de 1920......................... 134

    FIGURA 8 Trapiche da estao em Porto Franco no ano de 1915.................................... 194

  • 12

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Peties dos comerciantes em Mossor (1864-1876)...................................... 71

    QUADRO 2 Tipos de atividades das casas e firmas de Mossor (1864-1876)...................... 72

    QUADRO 3 Peties dos comerciantes no trinio da seca (1877-1879)............................... 77

    QUADRO 4 Tipos de atividades das casas e firmas de Mossor no trinio da seca (1877-

    1879)................................................................................................................. ....................... 78

    QUADRO 5 Arrecadao do imposto sobre mercadorias, meia siza de escravos e

    procurao dos cativos............................................................................................................ 81

    QUADRO 6 Presena dos Tipos de Formas de Trabalho Livre (1850-1890)..................... 116

  • 13

    SUMRIO

    INTRODUO: Por uma Histria Social da Produo do Espao..................................... 15

    Sobre a Seca e Espao Social.................................................................................................. 15

    Fontes e Mtodos..................................................................................................................... 20

    Sobre os Captulos: espao percebido, concebido e vivido das secas..................................... 22

    Captulo 1 A Cidade Revela-se na Seca?! Os narradores de Mossor e Provncia na

    seca de 1877........................................................................................................... 26

    1.1 Cidade, Intelectuais e Literatura: uma discusso em torno do objeto.............................. 26

    1.1.1 Paisagem e Experincias da Seca de 1877: nova percepo, sentimento e raciocnio de

    Manoel Dantas......................................................................................................................... 37

    1.1.2 A vila mossoroense na tinta de Manoel Ferreira Nobre: uma cidade em

    crescimento............................................................................................................... ............... 44

    1.1.3 Cidade Morta e Apinhada, Cidade Capital e Libidinosa: as tintas mrbidas descrevem

    uma experincia da seca em Santa Luzia em Fausto e Guerra............................................... 48

    1.1.4 Cidade da Promisso, Liberdade e Tradio: olhares de Vasconcellos no teatro da seca

    na cidade de Mossor.............................................................................................................. 54

    CAPTULO 2 O Labor Retirante na Construo do Espao Urbano

    Mossoroense............................................................................................................................ 64

    2.1 Espaos Fixos e Fluxos e Trabalho na Cidade de Mossor............................................. 64

    2.2. A Seca de 1877 e a Cidade de Mossor: espaos de comunicao, comerciais, cvicos e

    sagrados................................................................................................................................... 69

    2.3 As Secas e a Cidade de Mossor no Sculo XX: novas relaes espaciais..................... 119

    CAPTULO 3 Espao de representao e representao do espao das Secas em Mossor

    (1877-1903-1915).................................................................................................................. 138

    3.1 Cotidiano, Territrio Alternativo, Ordem Prxima e Distante: abordagens conceituais e

    metodolgicas........................................................................................................................ 138

    3. 2 Os Espaos de Representao da Seca de 1877 na Cidade de Mossor........................ 142

    3. 3 Migrao ou Fome?: A Seca de 1903 na Cidade de Mossor....................................... 167

  • 14

    3.4 Os Flagelados de Gravata: Trabalho, Lugar e Revolta na Seca de 1915 na Cidade de

    Mossor.................................................................................................................................. 186

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................................ 204

    REFERNCIAS.................................................................................................................... 207

    Fontes..................................................................................................................................... 207

    1.1 Impressas e Obras............................................................................................................ 207

    1.2 Jornais.............................................................................................................................. 209

    1.3 Atas da Cmara Municipal de Mossor.......................................................................... 209

    1.4 Falas, Relatrios e Mensagens dos Presidentes e Governadores da Provncia e Estado do

    Rio Grande do Norte e Amazonas.......................................................................................... 209

    Bibliografia............................................................................................................................ 210

    1.1 Artigos.............................................................................................................................. 210

    1.2 Monografias, Dissertaes e Teses.................................................................................. 213

    1.3 Livros e Captulos de Livros............................................................................................ 214

    1.4 Sites.................................................................................................................................. 221

  • 15

    Introduo: Por uma Histria Social da Produo do Espao.

    Sobre a Seca e Espao Social

    A seca de 2012, que ainda prolonga-se nesse ano, comeou a causar algumas

    transformaes no espao social do estado do Rio Grande do Norte. Na cidade de Mossor,

    no assentamento Maracana, o agricultor Antonio Luis Xavier vem acompanhado a subtrao

    de suas criaes. Ele diz que contava com um bom nmero de vacas, ovelhas e cabras, mas a

    seca j levou boa parte do rebanho. Muitos morreram, outros eu vendi a um preo bem

    abaixo, relata1. J na vizinha cidade do Apodi, alguns agricultores da chapada e da vrzea

    deram uma demonstrao ontem que no esto dispostos a esperar a boa vontade das

    instituies de governo para receber o socorro assegurado pelo Governo Federal para as

    vtimas da seca. Assim, 70 representantes de comunidades rurais saram em caminhada

    pelas ruas da cidade at a Prefeitura e exigiram uma audincia com a prefeita Goreti Pinto, na

    prxima sexta-feira, 22 (JORNAL DE FATO, 2012, p. 03). Ainda sobre a estiagem nesse

    incio do corrente, so deliberadas investigaes do Ministrio Pblico sobre os recursos

    pblicos de algumas cidades do interior destinados ao carnaval. O promotor Eduardo

    Medeiros confirmou a abertura de um inqurito civil, junto 11 Promotoria de Justia de

    Mossor para apurar a realizao de despesas com o carnaval de 2013 pela Prefeitura da

    cidade, na vigncia do Decreto Estadual 23.037/2012, que prorrogou o estado de emergncia

    nos municpios do Estado afetados pela estiagem, que segundo a prpria prefeitura, os gatos

    foram na ordem de R$ 400 mil2. A partir dessas notcias pensamos que a seca no apenas

    um fenmeno climtico que atinge uma regio especfica, mas est estritamente relacionada

    ao espao vivido, concebido e percebido dos homens, ou seja, as relaes sociais em volta das

    secas re-produziram espaos nas suas mais variadas formas e contextos especficos.

    Voltando a grande seca atual, considerada a pior dos ltimos 30 anos, no so poucas

    as notcias da imprensa a respeito dessa estiagem e seus danos na economia do estado do

    1 [Seca em Mossor]- Agricultores lutam para salvar animais. SOS Notcias do RN. Disponvel em:<

    http://www.sosnoticiasdorn.com/2013/01/seca-em-mossoro-agricultores-lutam-para.html> Acesso no dia 12 de

    fevereiro de 2013. 2 CIRO, Marques. MP abre inqurito para investigar gastos com carnaval em Mossor. Jornal de Hoje.

    Disponvel em:< http://jornaldehoje.com.br/mp-abre-inquerito-para-investigar-gastos-com-carnaval-em-

    mossoro/>. Acesso no dia 12 de fevereiro de 2013.

  • 16

    Rio Grande do Norte3. Contudo, quando refletimos sobre esse evento especfico, temos a

    plena certeza de sua intrnseca relao nas esferas polticas, econmicas e socioculturais da

    regio Norte/Nordeste ao longo de dcadas da histria do Brasil. Desse modo, muitos foram

    os lugares, cidades e capitais que encontraram na passagem das grandes secas, momentos para

    transformar e remodelarem seu espao social, atravs do mbito vivido, percebido e

    concebido de sua produo social (LEFEBVRE, 2006). Assim, nosso trabalho busca

    compreender o processo de re-produo do espao social das secas (1877-1903-1915) na

    cidade de Mossor4, ou seja, analisa os aspectos presentes nesse processo de re-produo do

    espao quando a cidade experimentou os efeitos desencadeados em seu meio social pelas

    estiagens. Desse modo, o fenmeno das secas tratado aqui na esfera das relaes humanas

    em suas mais variadas formas de expresso e significado, indissocivel da prpria produo

    do espao de homens e mulheres na sociedade. Todavia, as secas tambm proporcionam

    visualizarmos vrias modificaes nas relaes humanas no espao urbano, portanto, so

    relevantes certos apontamentos a esse cenrio e sua relao direta com as secas no final do

    sculo XIX ao incio do XX.

    A pobreza, fome, crime e desordem, alm de toda uma srie de relaes entre o campo

    e a cidade, so colocados em jogo, atravs das novas experincias concretizadas nesses

    episdios de secas5. Se antes, a seca era enfrentada no meio rural, pautada pelos padres de

    3 Seca no RN: Agricultura est com 90% de produo perdida para 2012. Rio Grande do Norte. Net. Disponvel em: < http://www.riograndedonorte.net/2012/04/10/seca-no-rn-agricultura-esta-com-90-da-producao-perdida-

    para-2012/>. Acesso em 11 de fevereiro de 2013. 4 Mossor teve sua formao de aglomerao humana atravs da fazenda Santa Luzia, propriedade do sargento-

    mor Antonio de Souza Machado. No decorrer do sculo XIX, a mesma vai adquirindo vrios ttulos, desde

    povoao, vila (1852) e finalmente cidade (1870). Sobre informaes da histria e memria da cidade de

    Mossor ver, SOUZA, Francisco Fausto de. Histria de Mossor. Edio Especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Disponvel em: < site. www.colecaomossoroense.org.br>. Acesso em: 13 de mar.

    2011, CASCUDO, Lus da Cmara. Notas e Documentos para a Histria de Mossor. Edio Especial para o

    Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Disponvel em < site. www.colecaomossoroense.org.br>. Acesso

    em: 21 de jul. 2011. 5 Existe uma considerada literatura da Histria Social que investiga os efeitos e desencadeamentos gerados pela

    seca no meio sociocultural urbano do Norte e Nordeste. As temticas so vrias, passando pelas criaes de

    obras pblicas nas cidades, apropriao da mo-de-obra retirante, construes de ferrovias, estradas de rodagem

    e audes, epidemias ocasionadas pela aglomerao de sertanejos em pssimas condies de salubridade, os

    saques como aes poltica coletivas, migraes em massa de sertanejos, a converso de retirantes em operrios,

    as habitaes e abarracamentos nas secas, a poltica de cercamento de retirantes, entre muitas outras. Alguns

    desses trabalhos seguem a seguir: GARCIA, Ana Karine Martins. A Sombra da Pobreza na Cidade do Sol: o ordenamento dos retirantes em Fortaleza na segunda metade do sculo XIX. Dissertao de Mestrado: PUC -

    So Paulo. 2006. BEZERRA, Jos Tansio Vieira. Quando a ambio vira projeto: Fortaleza, entre o progresso e

    o caos. Dissertao de Mestrado: PUC- SP, 2000; MOTA, Felipe Ronner Pinheiro Imalau. Progresso,

    calamidade e trabalho: confrontos entre cidade e serto em fins dos oitocentos. (Fortaleza/1850-1880).

    Dissertao de Mestrado: PUC-SP 2000; MORAIS, Viviane Lima de. Razes e destinos da migrao:

    trabalhadores e emigrantes cearenses pelo Brasil no final do sculo XIX. Dissertao de Mestrado: PUC-SP,

    2003. CHAVES, Jos O. de Sousa. Fortaleza e os retirantes da seca de 1877-1879: o real de um imaginrio

    dominante. Fortaleza: Editora Demcrito Rocha, 1995; BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Famintos do Cear:

    imprensa e fotografia entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX. Dissertao de Mestrado: PUC-SP,

  • 17

    deferncia do paternalismo agrrio, agora, a vida urbana passa a ser o cenrio privilegiado do

    drama da seca, pois, ela adentrou o mundo do poder constitudo, avanou sobre o centro

    imaginrio deste poder, sem respeitar-lhe os canais competentes, e atingiu o cerne da

    aventura que a elite local imaginava experimentar neste momento (NEVES, 2000, p. 25).

    Logo, as capitais e grandes cidades, incluindo aqui Mossor, sero os lugares designados para

    essas novas relaes, entre a multido retirante, citadinos e poderes pblicos. Mas como

    analisar as secas como re-produtora do espao social na cidade de Mossor (1877-1915), ao

    lado dos elementos intrnsecos e novos dessa nova relao? Para isso necessrio explicar a

    idia da produo do espao social apropriado nessa dissertao.

    No final da dcada de 1960, Henri Lefebvre dedicou-se a estudar questes referentes

    cidade e a vida urbana6. Logo depois, amadureceu suas concepes sobre o espao urbano e

    sua produo no mundo capitalista moderno. Dessa forma, preocupado com o uso

    fragmentado do conceito de espao pelas cincias sociais na dcada de 1970, decide,

    reformular a idia, procurando no mtodo dialtico, um sentido unitrio, para se compreender

    a produo do espao na sociedade. Assim, nasce sua obra A Produo do Espao, que

    rene sua teoria e problemtica acerca desse conceito.

    O autor discorre no seu livro que toda sociedade, seja em qualquer momento, produz

    seu tempo e espao, indissociavelmente. E nesse conjunto, existe e coexistem as relaes

    sociais de reproduo (famlia, relaes entre os sexos...) e relaes de produo (funes

    hierarquizadas, diviso de tarefas, trabalho...). Porm, outro nvel se imbrica com o advento

    do capitalismo no perodo moderno, o da reproduo das relaes sociais de produo

    (relaes constitutivas da sociedade capitalista) (LEFEBVRE, 2006). Desse modo, o prprio

    espao, que possui sua temporalidade7 (histria), torna-se, paulatinamente, um espao

    2004; SILVA, Jeovah Lucas da Silva. As bnos de Deus: a seca como elemento educador para o trabalho

    (1877-1880). Dissertao de Mestrado: UFC-CE, 2003; NEVES, Frederico de Castro. A Multido e a Histria:

    saques e outras aes de massas no Cear. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2000; CNDIDO, Tyrone Apollo

    Pontes. Trem da Seca: Sertanejos, Retirantes e Operrios (1877-1880). Fortaleza, Museu do Cear, 2005;

    VILLA, Marcos Antonio. Vida e Morte no Serto: histria das secas no Nordeste nos sculos XIX e XX. So

    Paulo. tica. 2000; RIOS, Knia Sousa. Campos de concentrao no Cear: Isolamento e poder na seca de

    1932. Fortaleza-CE: Museu do Cear e Secretaria da Cultura e Desporto do Cear, 2001. 6 LEFEBVRE, Henri. O Direito Cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. So Paulo: Centauro, 2001, A Revoluo

    Urbana. Trad. Srgio Martins. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. Espao e Poltica. Trad. Margarida M. de

    Andrade e Sergio Martins. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, 192p. 7 No seu livro, Lefebvre discute a histria do espao, a partir dos conceitos de espao absoluto, abstrato e

    diferencial. O primeiro est relacionado ao perodo da antiguidade, das Cidades-Estados, constitudos de lugares sagrados e malditos, histricos e relativizados, penetrado de simbolismos, onde a ordem religiosa e poltica, social e mental, so intrnsecas nas relaes sociais. O espao diferencial surgiria a partir das contradies e exploses do prprio espao abstrato, tornando-se uma possibilidade e virtualidade social, dentro da ordem e imposies do espao abstrato na sociedade capitalista moderna (LEFEBVRE, 2006).

  • 18

    abstrato8, iniciado a partir do sculo XVIII e XIX, e intensificado ao longo do sculo XX e

    XXI.

    Para uma anlise da produo do espao, principalmente na sociedade capitalista

    moderna, Lefebvre identificou trs momentos dessa produo espacial, que so: a) as prticas

    espaciais; b) as representaes do espao; e c) os espaos de representao. Compreendidos

    tambm como espaos percebido-concebido-vivido. A prtica espacial engloba produo e

    reproduo, lugares especificados e conjuntos espaciais prprios a cada formao social, que

    assegura a continuidade numa relativa coeso. Essa coeso implica no que diz respeito ao

    espao social relao de cada membro de determinada sociedade com seu espao, ao

    mesmo tempo uma competncia certa e uma performance. Porm, a coeso da prtica

    espacial no quer dizer uma coerncia (intelectualmente elaborada: concebida e lgica

    (LEFEBVRE, 2006). As representaes do espao esto ligadas s relaes de produo,

    ordem que elas impem e, desse modo, ligadas aos conhecimentos, aos signos, cdigos, s

    relaes frontais (LEFEBVRE, 2006). Esse espao concebido aquele dos cientistas,

    planificadores, urbanistas, tecnocratas, e de certos artistas ligados cientificidade,

    identificando o vivido e o percebido ao concebido. o espao dominante numa sociedade

    (modo de produo). Suas concepes de espao, com algumas reservas, tenderiam para

    sistema de signos verbais, portanto elaborados intelectualmente. Enquanto os espaos de

    representao seria o espao vivido por meio de imagens e smbolos que o acompanham,

    portanto espao dos habitantes, dos usadores, mas tambm de certos artistas e talvez dos

    que descrevem e acreditam somente descrever: os escritores, os filsofos. Esse espao o

    dominado, portanto, submetido, que a imaginao tenta modificar e apropriar. Assim, com

    certas reservas precedentes, esses espaos tenderiam para sistemas mais ou menos coerentes

    de smbolos e signos no verbais. (LEFEBVRE, 2006). Entretanto, o autor adverte que essa

    triplicidade intervm diferentemente na produo do espao: segundo suas qualidades e

    propriedades, segundo as sociedades (modo de produo), segundo as pocas, e as relaes

    entre essas dimenses, nunca so simples, nem estveis, tampouco so, mais positivas, no

    sentido em que esse termo opor-se-ia ao negativo, ao indecifrvel, ao no-dito, ao interdito,

    ao inconsciente (LEFEBVRE, 2006).

    8 O espao abstrato produto da violncia e da Guerra, poltico e institudo por um Estado, portanto institucional. Ele parece homogneo, entretanto, no o , tem a homogeneidade como fim, como sentido, como objetivo. Ele a impe. Por si mesmo, ele plural. Nesse espao, a trindade capitalista (terra-capital-trabalho) se estabelece no espao absoluto, paulatinamente, mantendo-se num nvel global, fragmentado e hierarquizado. possuidor de dualidades constitutivas, e por isso de contradies em seu meio, isto , conflitos scio-polticos que se efetivam espacialmente, abrindo caminhos para um novo espao, esse,

    diferencial. (LEFEBVRE, 2006).

  • 19

    Desse modo, o conceito de espao social, empregado pelo autor emerge atravs da

    anlise desse espao abstrato e dos trs nveis da produo espacial (percebido, concebido e

    vivido). Vejamos a seguir os elementos constitutivos desse conceito formulado por Henri

    Lefebvre.

    [...] O espao social: a) figura entre as foras produtivas da mesma maneira que a

    natureza inicial, que ele desloca e suplanta; b) aparece como um produto privilegiado, ora simplesmente consumido (deslocamentos, viagens, turismo,

    lazeres) como uma vasta mercadoria, ora consumido produtivamente da mesma

    maneira que as mquinas, nas aglomeraes urbanas, como dispositivo produtor de

    grande envergadura; c) demonstra-se instrumental politicamente permitindo o

    controle da sociedade, e ao mesmo tempo meio de produo por seu ordenamento (a cidade e a aglomerao urbana no sendo j mais somente obras e produtos, mas

    meios de produo pelo habitat, pela manuteno da fora de trabalho, etc.); d)

    sustenta a reproduo das relaes de produo e de propriedade (propriedade do

    solo e do espao, hierarquizao dos lugares, organizao das redes em funo do

    capitalismo, estruturas de classe, exigncias prticas); e) equivale praticamente a um

    conjunto de superestruturas institucionais e ideolgicas no apresentadas como tais: simbolismos, significaes e sobre-significaes ou ao contrrio neutralidade

    aparente, insignificante, espoliao semiolgica e vazio (ausncia); f) contm

    virtualidades, aquelas da obra e da reapropriao, sobre o modo da arte primeiro,

    mas sobretudo segundo as exigncias do corpo, despertado para fora de si no espao, resistindo e em conseqncia impondo o projeto de um outro espao (seja

    espao de uma contra-cultura, seja contra-espao ou alternativa primeiro utpica ao

    espao real existente). (LEFEBVRE, 2006).

    Em suma, o espao social um produto, logo consumido produtivamente, ao

    mesmo curso, poltico instrumental e meio de produo da sociedade, alm de sustentar a

    reproduo das relaes de produo e propriedade, contm um conjunto de simbolismos,

    representaes, e valores (superestruturas e ideologias), e ainda virtualidades (projeto de outro

    espao, uma alternativa, utopia). Assim, o espao social apresenta-se como coerncia e

    modelo de coerncia. Ele articula o social e o mental, o terico e o prtico, o ideal e o real

    (LEFEBVRE, 2008, p. 41). produto da sociedade, mediao e instrumento poltico,

    portanto, povoado segundo os decretos do poder, com um certo arbtrio, e permite, impor

    uma certa coeso (pela violncia), quanto dissimular as contradies da realidade (sob uma

    aparente coerncia racional e objetiva), alm de ser ideolgico (porque poltico) e objeto

    do saber (pois comporta representaes elaboradas) (LEFEBVRE, 2008, p. 45). Trata-se da

    produo no sentido amplo, ou seja, a produo de relaes e re-produo de determinadas

    relaes (LEFEBVRE, 2008, p. 48-49)9.

    9 No seu livro, LEFEBVRE, Henri. Reproduo: as relaes de produo. 1 ed. Porto: Publicaes Escorpio,

    (Cadernos O Homem e a Sociedade), 1973, 115p, o autor explica sua concepo a cerca da reproduo das

    relaes de produo na sociedade, ele diz, que as relaes de produo, caractersticas da sociedade capitalista carecem elas mesmas de ser reproduzidas. Uma sociedade uma produo e uma reproduo de relaes sociais

    e no s uma produo de coisas, essas relaes sociais reproduzem-se no mercado, no sentido mais amplo do

  • 20

    Desse modo, esses trs nveis da produo espacial, indissociveis no seu exerccio de

    reproduo na totalidade, so fundamentais em nossa anlise do processo de re-produo do

    espao social da seca, pois atravs deles conseguimos articular e identificar cada segmento

    caracterstico das relaes humanas, como os elementos da vida cotidiana, da organizao e

    controle do espao social na cidade de Mossor. Assim, pelo que foi exposto at agora, a seca

    ganham em nossa perspectiva uma dimenso social, logo, espacial, pois ela torna-se

    componente da esfera de re-produo das relaes sociais num dado tempo e lugar, alm de

    agente transformador do campo sociocultural do espao urbano de Mossor. A seguir

    discutiremos sobre as fontes e mtodos aplicados nesse trabalho.

    Fontes e Mtodos.

    A documentao que estamos trabalhando nessa pesquisa, grande parte dela, encontra-

    se na Fundao Guimares Duque/Coleo Mossoroense10

    , na cidade de Mossor no estado

    do Rio Grande do Norte. As fontes analisadas nessa fundao so: Atas da Cmara Municipal

    de Mossor (1877-80), Cdigos de Posturas do Municpio, Falas e Relatrios dos

    Presidentes da Provncia do RN (1877-80), livros de memria e da histria local, alusivos s

    secas e a cidade de Mossor, alguns de seus principais autores so: Francisco Fausto de

    Souza, Felipe Guerra, Raimundo Nonato, Raimundo Soares de Brito e Pedro Leopoldo.

    Utilizamos tambm uma coleo organizada por Vingt-Un Rosado nessa fundao: o Livro da

    Seca (21 volumes). Nesta encontra-se uma variada documentao contendo estudos, relatrios

    e memrias acerca das secas (sculo XIX e XX) quanto da cidade de Mossor. Sobre a

    imprensa, a fundao tem alguns jornais microfilmados impressos, como O Mossoroense e o

    Commercio de Mossor. Utilizamos os anos referentes seca de 1903/04 de ambos os jornais.

    Para suprir algumas lacunas na pesquisa, principalmente nos anos das secas de 1877 e 1915,

    utilizamos os peridicos originais Brado Conservador da cidade de Ass, O Mossoroense,

    Commercio de Mossor e O Nordeste. O primeiro traz muitas informaes da seca de 1877 na

    cidade de Mossor, pois, nesse trinio, no estava circulando peridicos na localidade. Os

    termo, na vida quotidiana, na famlia, na cidade: reproduzem-se tambm onde a mais-valia global da sociedade

    se realiza, se reparte e despendida, no funcionamento global da sociedade, na arte, na cultura, na cincia e em

    muitos outros sectores, mesmo no exrcito (LEFEBVRE, 1973, p. 109-110). 10 A Coleo Mossoroense foi criada em 1949, como desprendimento da criao da Biblioteca Pblica de

    Mossor em 05 de abril de 1948, que editava o Boletim Bibliogrfico. (NBREGA, 2007, p. 14).

  • 21

    outros jornais ainda no esto impressos, portanto, trabalhamos com a fonte original,

    encontrada no Museu Histrico Lauro da Escssia da cidade de Mossor.

    Contudo devemos fazer uma crtica ao lugar social de nossas fontes, como Michel

    de Certeau discorre que uma funo deste lugar que se instauram os mtodos, que se

    delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questes lhes sero propostas,

    se organizam (2007, p. 67). Desse modo, esse lugar a prpria Coleo Mossoroense.

    Apesar de utilizarmos obras que correspondem a compilaes de documentos oficiais, jornais

    e memria, existem alguns estudos acadmicos que analisaram a relao entre essa instituio

    na construo da imagem da cidade e de seus personagens, que em casos especficos

    foram da prpria famlia Rosado, no processo de reinveno desse espao11. Assim autores

    como Nbrega (2007), Felipe (2001) e Silva (2006) mostraram a influncia e papel

    desempenhado pela Coleo Mossoroense na prpria poltica e histria local, do qual muitas

    vezes serviu para a fabricao da imortalidade dos Rosados e, principalmente, para,

    atravs da histria local/regional, narradas nos seus diversos ttulos, inventarem a sua cultura

    particular, na qual os fragmentos do passado comparecem para nortear as experincias do

    presente e a construo do passado. (FELIPE, 2001, p. 123). Todavia, a partir dessas

    observaes, estamos cientes do lcus social que fala nossas fontes, e dos devidos cuidados

    em manuse-las, apesar de que essa documentao oferea um grande arsenal de informaes

    sobre nossa problemtica, principalmente na temtica das secas.

    Assim, acreditamos ser possvel uma anlise da (re) produo do espao social nas

    secas peridicas da cidade de Mossor, atravs dos trs nveis formulados por Henri Lefebvre.

    Logo, todo esse material documental, proporciona a investigao e anlise acerca das

    representaes da seca no espao citadino (exemplo, discursos da audagem, cdigos de

    postura), os espaos de representao durante a seca (os jornais e livros de memria), e a

    prtica espacial (relatrios dos presidentes e atas da cmara). Por outro lado, essas fontes no

    seu conjunto, revelam aspectos de cada dimenso do espao social da cidade de Mossor.

    Desse modo, buscamos manter tambm uma compreenso relacional e complementar, sobre

    esses nveis espaciais no trabalho com as fontes utilizadas, procurando enfocar suas

    particularidades e interfaces na diviso dos captulos, como explicaremos na parte final dessa

    introduo.

    11 NBREGA, Alessandro Teixeira. A coleo mossoroense e a construo dos mitos: Dix-Sept Rosado o heri

    imolado. Natal/RN, 2007, 93f. Dissertao (Mestrado). UFRN/PPGH, 2007. FELIPE, J. Lacerda Alves. A (re)

    inveno o lugar: os Rosados e o pas de Mossor. Joo Pessoa-PB: Grafset, 2001. SILVA, Lemuel Rodrigues da. O papel da Coleo Mossoroense na cidade de Mossor: poltica, histria e sociologia. Universidade Federal

    do Rio Grande do Norte. XII Seminrio de Pesquisa do Centro de Ciencias Sociais Aplicadas, 07 a 11 de agosto,

    2006.

  • 22

    Para tratar do espao social nas secas escolhemos utilizar a abordagem dos estudos da

    histria social, pois, nessa perspectiva, o dilogo e aberturas das idias, tanto da seca como

    do espao social, conseguem uma articulao, na medida em que possam se complementar e

    problematizar as questes propostas12

    . Portanto, preciso deixar claro, que os agentes

    histricos investigados nesse espao social da cidade de Mossor, so respectivamente os

    retirantes (sertanejos), populares e autoridades. Enquanto uns (retirantes), tornam-se mais

    usadores e habitantes dos espaos de representao (vivido) nessas secas, outros, procuram o

    ordenamento e coeso social, o pensamento tcnico e administrativo da representao do

    espao (concebido), porm, todos, em suas performances, possuem uma prtica espacial

    (percebido), na qual, produz e reproduzem o e no espao social das secas. Assim, como

    suporte das relaes socioculturais, autores como E. P. Thompson, George Rud, Raymond

    Williams13

    , entre outros14

    , foram leituras capitais para as discusses acerca da ao e

    organizao da multido, experincia, estruturas de sentimentos, prticas de resistncias,

    contrateatro e formas de dilogo entre os homens simples, ou outsiders15

    com as autoridades

    nesses episdios de seca. A seguir explicaremos a organizao e argumentos dos captulos

    nessa dissertao.

    Sobre os Captulos: espao percebido, concebido e vivido nas secas.

    No primeiro captulo A Cidade Revela-se na Seca?! Os narradores da cidade de

    Mossor e Provncia na seca de 1877 acompanhamos a constituio da cidade de Mossor,

    12 Tambm dialogamos com alguns autores da vertente cultural como Sandra Jatahy Pesavento (estudos sobre

    cidades) e Durval Muniz de Albuquerque Jnior (discurso e representao sobre a seca) 13Para algumas obras desses autores: RUD, George, F. E. A Multido na Histria: estudos dos movimentos

    populares na Frana e Inglaterra, 1730-1848. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991, THOMPSON, E. P.

    Costumes em Comum. Trad. Rosaura Eichemberg. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. WILLIAMS,

    Raymond. Marxismo e Literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro. ZAHAR, 1979. 14 Podemos citar os historiadores nacionais como Frederico de Castro Neves, Joo Jos Reis e Sidney Chalhoub. 15 Apropriamo-nos da expresso outsiders utilizada no livro ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L.; Os

    estabelecidos e os outsiders: sociologia das relaes de poder a partir de uma comunidade. Trad. Vera Ribeiro;

    Trad. do posfcio edio alem, Pedro Sssekind Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, 224 p. Os autores analisam as relaes de poder entre dois grupos numa comunidade suburbana em uma cidade industrial na Inglaterra, e como os estabelecidos estigmatizavam de vrias formas os outsiders, sendo indivduos inferiores e

    no integrantes do grupo mais velho na localidade. Assim, o tempo de residncia, era o aspecto central para as

    manifestaes de excluso e estigmatizao do grupo mais velho sobre os de fora na comunidade, revelando-nos

    a questo de como a anomia (ausncia de regras e normas, no-estruturao) tornava-se um sentido normativo

    (espcie de julgamento moral e afetiva) para estigmatizar os prprios outsiders. Portanto essa expresso re-

    apropriada nesse trabalho para designar as relaes de poder existentes entre os retirantes e os habitantes

    (moradores, autoridades, etc.) da cidade de Mossor durante essas secas peridicas, e como essas identidades

    sociais, superioridade, costumes, excluso e pertencimento, compem num mesmo espao social, os rizomas

    dessa manifestao de poder existente entre os indivduos dessa sociedade.

  • 23

    sobre os olhares e mentes de alguns de seus narradores (Francisco Fausto de Souza, Phelippe

    Guerra, Jos Martins de Vasconcelos e Manuel Ferreira Nobre), durante a passagem da seca

    de 1877, como tambm a influncia das formas de resistncias criadas atravs da

    experincia dessa seca, a partir da relao sertanejo e espao natural, nos escritos do jornalista

    Manuel Dantas. Dessa forma, analisamos a cidade de Mossor na perspectiva de como esse

    espao social retratado no seu momento de crise (seca), na tentativa de compreendermos a

    relao do drama da seca nesse lugar. Assim, esse evento ocorreu, coincidentemente, nos

    primeiros anos de Mossor como cidade na provncia do Rio Grande do Norte, logo, no seu

    perodo de florescimento econmico e poltico local. Desse modo, criou-se uma forte

    memria dessa seca de 1877, entre os homens de letras, que narraram Mossor no incio do

    sculo XX, em seus primeiros anos de municipalidade nos oitocentos, do qual, descries

    diversas sobre a urbe no seu plano socioeconmico, dariam lugar a signos de uma experincia

    aterradora, constituindo, assim, imagens de uma Mossor diferente, no espetculo da

    misria16 da seca de 1877. Desse modo, abordamos a questo dos intelectuais e sua funo

    na sociedade, identificando nos textos utilizados, trs aspectos norteadores nesse captulo: as

    formas de resistncias derivadas da experincia dessa seca no espao social da Provncia,

    atravs do homem potiguar e de sua relao com o meio natural, o processo de construo

    socioeconmica da cidade quando a mesma ainda era uma vila, e como as narrativas e

    descries dos intelectuais, recriam outra cidade e espao social, a partir dos signos

    aterradores trazidos pela experincia dessa seca. Os estudos sobre cidade, intelectuais e

    histria social da literatura, foram fundamentais na anlise das fontes e construo dos

    argumentos desse captulo. Assim veremos como esses signos e representaes, que constri a

    cidade de Mossor e Provncia, num dado momento de drama (seca), apresentam elementos

    do espao percebido, concebido e vivido, logo da re-produo do espao social daquela

    sociedade.

    No captulo dois O Labor Retirante na Construo do Espao Urbano

    Mossoroense analisamos a produo dos objetos fixos e fluxos na malha urbana de Mossor,

    durante as seca de 1877, 1903 e 1915. Desse modo, preocupamo-nos, no apenas mostrar a

    influncia poltica da seca na construo da tessitura urbana, mas como no prprio meio

    social, esses arranjos no espao so produzidos, e o papel atribudo aos retirantes nessa

    16 Sobre essa seca de 1877 e seu espetculo da misria na cidade de Mossor ver FALCO, Marclio Lima. O espetculo da misria: Mossor e a seca de 1877-1879. In MENDES, Fabiano; FONTELES NETO, F. Linhares;

    LINS, Lindercy (orgs.). Histria Social e Histria Cultural de Mossor: mtodos e possibilidades. Mossor:

    Fundao Vingt-Un Rosado, 2009, p. 159-171.

  • 24

    produo. Assim, nesse captulo, enfocamos a questo da produo do espao social no seu

    aspecto material na cidade de Mossor, procurando mostrar a prtica espacial (percebido) da

    urbe, atravs da riqueza do trabalho retirante. Para isso, invertemos os discursos oficiais, com

    sua carga de smbolos da misria sob os retirantes, para, assim, mostrar a riqueza de seu

    trabalho no aformoseamento da cidade nessas secas. Desse modo, o trabalho, teve seu

    enfoque nesse captulo, como aspecto (re) produtor do espao social da cidade de Mossor

    durante as trs secas. Logo, nossa anlise girou em torno dos aspectos funcionais e simblicos

    sobre os objetos espaciais no espao urbano, ou obras pblicas que os retirantes atuaram. As

    discusses acerca dos elementos fixos e fluxos como dos objetos no espao social, foram

    pautados na geografia (Milton Santos) e filosofia (Henri Lefebvre). Por fim, nesse captulo,

    discutimos que em cada seca na cidade de Mossor, influenciou e produziu, nas suas

    particularidades e conjunturas, aspectos materiais do espao urbano e uma prtica espacial.

    Na seca de 1877, ela surge como aliada ao florescimento econmico, poltico e urbanstico da

    cidade. Desse modo, Mossor encontrou nessa seca e momento de crise no Norte imperial, a

    possibilidade de ascenso, atravs da riqueza do labor retirante na produo de seu espao

    urbano e social. Porm, nas outras estiagens de 1903 e 1915, os elementos fixos do espao

    mossoroense tiveram aspectos bastante diferenciados da experincia de 1877. Enquanto no

    Imprio a cidade concentrou os recursos e investimentos da Provncia, no contexto

    republicano, crises econmicas (indstria salineira), minguadas verbas pelo Governo, a

    atuao das Obras Federais Contra as Secas, alm da migrao retirante para alhures do pas,

    foram quadros vividos nessas duas estiagens na cidade.

    No captulo trs Entre a ordem Prxima e Distante: os espaos de representao nas

    secas em Mossor procuramos estabelecer interconexes entre a ordem prxima e distante17

    no espao social da cidade de Mossor, nessas trs secas peridicas. Desse modo, analisamos

    as tentativas de controle, disciplina e ordenamento espacial pelas autoridades, por meio de

    prticas de deslocamentos (migrao e segregao), e trabalho (combate a ociosidade) sobre a

    populao adventcia nessas secas. Na contramo, abordaremos as formas de resistncias e

    apropriaes dos retirantes para impor ou conquistar seu espao na prpria cidade, a partir das

    aes em massa (saques, depredaes, protestos) e estratgias espaciais. Desse modo,

    abordada a interface do espao vivido (espao de representaes) com o espao concebido

    17 Essa expresso ou idia desenvolvida por Henri Lefebvre em seus livros sobre cidade, urbanismo e espao.

    Assim, essa ordem prxima e distante est ligada a anlise que o filsofo emite acerca das representaes e os

    diferentes mbitos da reproduo social. Para uma abordagem conceitual e metodolgica ver LIMONARD, Ester

    (Org.) Entre a Ordem Prxima e a Ordem Distante: contribuio a partir do pensamento de Henri Lefebvre.

    Niteri: UFF/GECEL, 2003. 1 CD-ROM. No terceiro captulo aprofundaremos esse debate.

  • 25

    (representaes do espao) nessas secas, e sua influncia na re-produo do espao social da

    cidade de Mossor. Nesse mbito, a questo do cotidiano e territrio18

    ser fundamental, para

    compreendermos o dilogo entre a ordem prxima (a cidade, seus agentes e suas relaes

    sociais) com a ordem distante (a sociedade imperial e republicana, os dirigentes) na prpria

    dinmica socioespacial naqueles contextos.

    Em suma, nos dois primeiros captulos procuramos dar visibilidade a prpria cidade de

    Mossor nas trs secas, relacionando-a com a constituio de seu espao social nesses

    episdios. Logo, atravs das narrativas dos intelectuais sobre os signos aterradores da seca no

    espao urbano e Provncia, como na produo dos elementos fixos e fluxos, ou objetos

    espaciais, a partir do trabalho retirante na prpria cidade mossoroense. No ltimo captulo

    nossa ateno girou em torno das interfaces entre os espaos de representao e as

    representaes do espao nessas trs secas. Desse modo abordando a dimenso subterrnea da

    vida, as prticas de resistncias e aes dos retirantes sobre as tentativas de ordenamento e

    controle espacial do espao concebido no cotidiano da cidade. Assim, essa dissertao buscou

    abordar, diluda nos captulos, os trs momentos da produo do espao social das secas na

    cidade de Mossor (percebido, concebido e vivido), mostrando que antes de aceitar ou

    conceber um espao social j dado, pr-fabricado e esttico no exerccio historiogrfico,

    preciso compreender a influncia que esse possui na constituio das relaes humanas em

    sociedade ao longo do tempo, e por que no dizer agora, espao.

    18 Para a discusso das idias de cotidiano e territrio, os autores escolhidos, foram respectivamente Agnes

    Heller, Henri Lefebvre (1991), Rogrio Haesbaert (2004) e Jacques Ravel (1990).

  • 26

    Captulo 1: A Cidade Revela-se na Seca?! Os narradores de Mossor e

    Provncia na seca de 1877.

    1.1 Cidade e Espao Social, Intelectuais e Literatura: uma discusso em torno do objeto.

    Uma cidade conta sua histria de vrias maneiras. Ela respira os sonhos, medos,

    desejos, paixes e iluses, transpirando paralelamente a rotina diria, a cadncia dos passos e

    gestos, as tenses e solidariedades em seu espao social. Toda cidade datada, transformada

    pela fora do tempo-espao, reinventando assim sua morfologia, fisiologia, subjetividade e

    personagens. Ela capital, sagrada, nostlgica, poltica, idlica, ociosa e transgressora. Juza

    na maior parte do dia; justiceira noite. Possuem vrias escritas e vozes, mas nem todos a

    escrevem e a falam, apenas a vivem e so representados. Seu mago heterogneo e

    fragmentado, embora busquem homogeneiz-la, segregando a sua aparente alteridade. a

    segunda natureza humana, lugar da relao de poder, desafios e possibilidades. Arte, cultura,

    memria e esquecimento fazem parte do seu ethos e cotidiano. Ela mobilidade, distncia e

    espera. Tragdia, solido e vcio... Catarse...

    Diante da amplitude de apreender os vestgios e analisar uma cidade no trato

    histrico19

    , nossa perspectiva voltar-se- de como esse espao social pintado em momento

    de crise, ou melhor, nossa preocupao cerca-se em mostrar as imagens criadas por agentes da

    prpria cidade (polticos, literatos, memorialistas), na tentativa de ler e compreender a relao

    do drama presente nesse espao. Essa tragdia ser a seca de 1877. A cidade, Santa Luzia de

    Mossor.

    19 Existem vrias abordagens para se tratar da cidade como objeto de estudo nas cincias sociais. Na histria,

    temos as linhas como da histria social, cultural, econmica e poltica que se preocupam com os estudos

    urbanos, seja em assuntos como: o processo de acumulao, produo e reproduo do capital e do capitalismo

    nas cidades, as representaes, o imaginrio e sensibilidades de seus lugares, as relaes de sociabilidade, o

    cotidiano, entre outras. Ver os trabalhos: BARROS, Jos DAssuno. Cidade e Histria, Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, LAPA, Jos Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas 1850-1900. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1996, CHALOUB, Sidney. Cidade febril: cortios e epidemias na Corte Imperial.

    So Paulo: Companhia da Letras, 1996. WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na histria e na literatura.

    So Paulo: Companhia da Letras, 2011. ARRAIS, Raimundo. O pntano e o riacho: a formao do espao

    pblico no Recife do sculo XIX. So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004, LEFEBVRE, Henri. A Cidade

    Capital. 2 Ed. Rio de Janeiro. DP&A Editora. 2001, PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginrio da Cidade: Vises literrias do urbano Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2. Ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002, SENNETT, Richard. Carne e Pedra: O corpo e a cidade na civilizao Ocidental. Rio de Janeiro: Ed. Record,

    1997, e DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. Trad. Renato Aguiar. So

    Paulo: Scritta Editora, 1993.

  • 27

    Esta passou por todas as etapas institucionais at ganhar o ttulo de cidade em 1870,

    pela lei provincial n 620 em 9 de novembro20

    . Nessa dcada viu seu florescimento

    econmico e poltico ganhar fora na regio oeste da provncia do Rio Grande do Norte,

    principalmente no crescimento das casas comerciais, aumento da circulao no seu porto

    (Areia Branca) e da atividade salineira em seu territrio. Mas nos anos de 1877-1879 a seca

    surgiu trazendo graves consequncias sociais como a migrao em massa, doenas, mortes e

    pauperismo. Dessa forma, criou-se uma forte memria social21

    desse evento, entre os homens

    de letras que narraram Mossor nos seus primeiros anos de municipalidade dos oitocentos,

    onde esse episdio dividiria, ao lado de descries diversas sobre a urbe, pginas negras dessa

    experincia22

    indita, constituindo, assim, imagens de uma Mossor dspar, com novos

    habitantes, cenrios, tramas e odores.

    Os intelectuais que utilizaremos para essa discusso sero: Francisco Fausto de Souza

    (1861-1931), Phelippe Guerra (1863-1951), Manoel Ferreira Nobre (1824-1897), Jos

    Martins de Vasconcelos (1873-1960) e Manoel Dantas (1867-1924) 23

    . Trs deles fizeram

    20 Povoao, a princpio, ou Arraial, em 1817, distrito de paz, depois, elevada a vila, sede do municpio, em 15 de maro de 1852, Lei n 264, Cidade, pela Lei Provincial n 620, de 9 de novembro de 1870, e comarca desmembrada de Assu, a 23 de maio de 1861(LIMA, 1982, p. 14). 21 Utilizamos essa noo a partir dos apontamentos do historiador Jacques Le Goff, quando ele discorre que essa

    memria social est posta num jogo de luta das foras sociais pelo poder, logo, tornam-se senhores da memria e do esquecimento uma das grandes preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que dominaram e dominam as sociedades histricas (1990, p. 422). Assim, lemos as narrativas, ou memrias desses intelectuais, no sentido de compreender que seus escritos (fontes) so um monumento, ou seja, no uma verdade absoluta do passado, mas uma escolha que aquele fez para leg-la ao presente. Desse modo, toda escolha, principalmente tratando-se da memria social transpassada de esquecimentos, e os mesmos so reveladores dos mecanismos de manipulao da memria coletiva (LE GOFF, 1990, p. 422). 22 Apropriamos do conceito de experincia abordado pelo historiador E. P. Thompson, quando essa noo implica um conjunto de elementos dos quais tratam de uma linha culturalista da tradio Inglesa, que enfatiza o

    simbolismo, o imaginrio, os discursos e as retricas de homens, que utilizando desses segmentos contestaram o poder e a subordinao vindos de cima, criando seus prprios rituais de resistncia e experincia

    compartilhada (TAYLOR, 1998, p. 77-90). Desse modo, tomamos essas narrativas dos intelectuais como documentos de uma expresso das experincias compartilhadas na relao da seca de 1877 com a cidade de Mossor, sejam atravs da memria social ou individual desses sujeitos. Todavia, a prpria definio de

    experincia, nas palavras do historiador quando os homens e mulheres retornam como sujeitos, no apenas indivduos livres, mas como pessoas que experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, tratando essas experincias em sua cultura e conscincia das mais complexas maneiras, e em seguida, agem, por sua vez, sobre sua situao determinada, enfim, a experincia compreendida como uma resposta mental e emocional seja de um individuo ou de um grupo social a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repeties do mesmo tipo de acontecimento (THOMPSON, 1981, p. 225-226). 23 As obras que vamos utilizar desses autores so: SOUZA, Francisco Fausto de. Histria de Mossor. Edio

    Especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Disponvel em: <

    www.colecaomossoroense.org.br>. Acesso em: 13 de mar. 2011, GUERRA, Phelipe; GUERRA, Theophilo.

    Seccas Contra a Secca. Seccas e invernos. Audagem, irrigao, vida, costumes sertanejos. 4 Ed. Mossor:

    Coleo Mossoroense, Srie C, Vol. 1203, 2001, VASCONCELLOS, Jos Martins de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Coleo Mossoroense, Srie C, Vol. 04, 1956 e NOBRE, Manoel Ferreira. Mossor em 1876. In: Breve Notcia sobre o Rio Grande do Norte: baseada nas leis, informaes e fatos considerados na Histria

    Antiga e Moderna. 2 Ed. Porgetti: Rio de Janeiro, 1971. Mossor: Coleo Mossoroense, Srie B, Vol. 438, 1986. DANTAS, Manoel. Homens de Outrora. Natal: Sebo Vermelho, 2001.

  • 28

    parte da vida pblica e literria da cidade de Mossor, construindo suas carreiras polticas em

    pleno momento da Primeira Repblica no estado do Rio Grande do Norte, com exceo de

    Manoel Ferreira Nobre e Manoel Dantas. Contemporneos ao crescimento da cidade e das

    grandes secas na provncia do Rio Grande do Norte, suas obras formam um panorama

    importante para compreendermos trs aspectos centrais para a discusso desse captulo: as

    formas de resistncia derivadas do espao vivido da seca de 1877, atravs do homem potiguar

    e de sua relao com o meio natural, a transformao urbana e socioeconmica de Mossor, e

    como essas narrativas recriaram uma nova cidade e espao social sob os signos aterradores

    desse evento. A seguir falaremos brevemente sobre esses intelectuais.

    Francisco Fausto de Souza nasceu em Mossor no dia 19 de maio de 1861, sendo que

    foi no municpio de Areia Branca que construiu sua vida poltica. Foi presidente da

    intendncia nos anos de 1911 a 1928, em seis legislaturas sucessivas, e prefeito da mesma

    cidade de 1929 a 8 de outubro de 1930. Exerceu ainda o cargo de deputado estadual em seis

    legislaturas, alm de ser maom e abolicionista na campanha de 1883. Atuou como

    memorialista, pesquisador e genealogista da cidade de Mossor. Lanou em vida o livro

    "Breve notcia sobre a vida do Padre Antnio Joaquim Rodrigues, vigrio de Mossor/RN

    (1844-1894) e Apontamentos Histricos da Freguesia de Mossor, fundada pelo Sargento

    Mor Antnio de Souza Machado (1760-1772)". Utilizamos nesse trabalho o livro Historia de

    Mossor, que rene artigos esparsos, organizado por Vingt-Un Rosado na segunda metade

    do sculo XX, que abordam aspectos da cidade e os seus momentos na seca de 1877.

    Phelippe Neri de Brito Guerra nasceu na Provncia do Rio Grande do Norte no

    municpio de Triumpho (antiga Augusto Severo onde hoje a cidade de Campo Grande) em

    26 de maio de 1867. Filho do Baro Luis Gonzaga de Brito Guerra (27/09/1818 06/06/1896)

    e da Baronesa Josefina Augusto da Nbrega, Phelippe Guerra formou-se bacharel em direito

    em 1890 na faculdade de Recife/Pernambuco. Exerceu cargo de deputado estadual em

    1891/92 e 1936, sendo promotor pblico da cidade do Apodi, e juiz de direito das comarcas

    de Caic, Macau e Mossor. Ele lanou centenas de artigos em jornais (Dirio do Natal e

    Comrcio de Mossor) e livros acerca das secas e suas solues para a regio Nordeste.

    Guerra participou de outras atividades polticas e cargos pblicos ao longo de sua vida,

    falecendo com seus 84 anos de idade na cidade de Natal (capital do Rio Grande do Norte) no

    dia 4 de maio de 1951. Utilizaremos referncias do seu livro Seccas Contra a Secca em

  • 29

    parceria com seu irmo Theophilo Guerra24

    , publicado em 1909, que traz passagens sobre a

    influncia da seca de 1877 na cidade de Mossor25

    . Trabalharemos parte do livro intitulada

    Notas Sertanejas, que um conjunto de informaes extradas de seu pai e do Coronel Luiz

    Manoel, contendo notas e fatos de cada seca e inverno entre os anos de 1840 e 1908.

    Jos Martins de Vasconcellos nasceu na cidade do Apodi em 11 de novembro de 1874,

    filho de Gaudncio de Gis Vasconcellos e de Antonia Maria da Conceio. Desenvolveu

    muitas de suas atividades pblicas na cidade de Mossor, sendo msico, jornalista e literato.

    Fundador do jornal O Nordeste que durou entre os anos de 1916 a 1934, sempre participava

    dos movimentos literrios e polticos de seu tempo. Foi ainda scio do Instituto Histrico e

    Geogrfico do Rio Grande do Norte e membro da Academia Norte Rio Grandense de Letras.

    Veio a falecer em 22 de dezembro de 1947, aos seus 73 anos de idade. Casou-se duas vezes (a

    primeira esposa faleceu em 1903), tendo oito filhos com a segunda esposa, Dona Silvia Freire

    de Vasconcellos. Utilizaremos nesse trabalho alguns de seus contos do livro Obras

    Completas, que abordam a seca, principalmente a de 1877 na cidade de Mossor26.

    Manoel Ferreira Nobre nasceu na cidade de Natal no ano de 1824. Filho de Alferes de

    mesmo nome com D. Incia Joaquina de Almeida. Ele destacou-se em sua carreira poltica,

    sendo oficial-menor da Assemblia Legislativa e oficial-maior27

    em 1856. Foi ajudante das

    ordens do presidente de provncia Antnio Francisco de Carvalho (1853), exercendo cargo de

    deputado provincial entre 1860-61. Em 1877 lanou um inventrio com fatos e informaes

    sobre a provncia do Rio Grande do Norte, contendo dados sobre a poltica, territrio, receita

    24 Theophilo Guerra um autor secundrio que ajudou seu irmo na coleta de crnicas e dos dados sobre as

    secas do Rio Grande do Norte. Especificamente o livro rene mais artigos e informaes produzidas pelo prprio

    Phelippe Guerra no cenrio poltico, jornalstico e educacional na primeira dcada do sculo XX. 25 Esse livro estrutura-se a partir de artigos produzidos por Phelippe Guerra, obedecendo a uma ordem cronolgica de suas datas de publicaes (alguns oriundos dos jornais Dirios de Natal e Commercio de Mossor), como ainda de uma parte histrica ou crnica, correspondente a manuscritos de seus familiares, entre eles, pai e bisav. Um artigo que discuti acerca da seca, audagem e instruo sertaneja atravs dessa obra de

    Guerra MACIEL, Francisco Ramon de Matos. Phelippe Guerra Contra as Secas: Instruo sertaneja e audagem nas crnicas de um potiguar. Campina Grande. II Seminrio Nacional fontes e documentais e pesquisa

    histrica: sociedade e cultura de 07 a 10 de novembro de 2011. Disponvel em:

    .

    Acesso em: 25 de dez. de 2011. 26 Para saber mais sobre essas trs personalidades pblicas da cidade de Mossor consultar o livro ESCSSIA,

    Lauro. Cronologias Mossoroenses. 2 Ed, Mossor: Fundao Vingt-Un Rosado, 2010, 305p. 27 A hierarquia brasileira tinha influencias no exrcito francs. Todavia, a partir da ameaa que os exrcitos foram adquirindo, principalmente depois da "primavera dos povos" em 1848, ele acabou sendo "desmobilizado",

    isso , diminuindo sua efetividade e influncia na sociedade, de modo que s depois com a guerra do Paraguai,

    que esse quadro sofre alguma mudana. Assim, o oficialato antes da guerra do Paraguai, era definido em sua

    maioria por indicaes e pela hierarquia social presente naquele perodo, de modo que existem as distribuies,

    de tenentes, sargento, alferes, etc. Como essa nomenclatura era pouca usada, em alguns documentos da poca, surge o oficial encarregado, que presumimos ser o oficial menor, que est uma posio cima de cabo, na primeira linha da hierarquia dos oficiais, muito usado nas artilharias, e oficial maior que so os que pertencem a uma posio superior. Para uma leitura sobre as hierarquias consultar, MENDES, Fbio Faria. Recrutamento

    Militar e construo do Estado no Brasil imperial. Belo Horizonte, MG, Argvmentvm, 2010.

  • 30

    das cidades, aspectos do clima, solo e vegetao, costumes e nmero de habitantes, entre uma

    srie de outros assuntos28

    . Nessa mesma obra, encontramos referncia vila de Mossor, mas

    diferente dos autores anteriores, que escrevem sobre a ao da seca no espao urbano, Nobre

    oferece-nos caractersticas socioeconmicas dos seus primeiros anos de municipalidade nesse

    perodo29

    . Adiante falaremos do ltimo intelectual.

    Manoel Dantas nasceu na cidade de Caic no Rio Grande do Norte em 26 de abril de

    1867. Ele teve uma vida pblica agitada, sendo advogado, juiz, educador, jornalista e poltico.

    Faleceu na cidade de Natal no ano de 1924, deixando vrios trabalhos publicados como

    Natal D`aqui a Cinquenta Annos (21-03-1909), Denominao dos Municpios (27-08-

    1922), e da monografia O Rio Grande do Norte Ensaio Chorographico, apresentado no

    XV Congresso Brasileiro de Geographia, realizado em Salvador/Bahia no ano de 1915.

    Utilizaremos parte do livro Homens de Outrora (1941), que rene cinco ensaios,

    especificamente o texto O Problema da Seca, que corresponde a um conjunto de artigos

    subscritos por Manoel no jornal A Repblica da cidade de Natal no perodo de julho a

    outubro de 190130

    . A seguir comentaremos conceitualmente sobre a funo dos intelectuais

    nesse momento da modernidade (XIX-XX).

    O socilogo Zygmunt Bauman (2010) argumenta que o conceito de intelectual

    entrou no vocabulrio europeu ocidental no incio do sculo XX para representar a memria

    coletiva da produo e disseminao do conhecimento no Iluminismo, pois, nessa fase,

    estabeleceu-se a sndrome poder/conhecimento, isto , o atributo mais visvel da

    modernidade. Essa sndrome era o resultado do conjunto de dois desenvolvimentos at ento

    novos, que tiveram lugar no incio dos tempos modernos: a apario de um novo tipo de

    poder estatal, com recursos e a vontade necessria para modelar e administrar o sistema social

    segundo um estilo preconcebido de ordem, e a instituio de um discurso de relativa

    autonomia e autoadministrao capaz de gerar esse modelo, completado pelas prticas

    exigidas (BAUMAN, 2010, p. 17). Deste modo, a hiptese do autor gira em torno de que a

    combinao desses dois desenvolvimentos gerou um tipo de experincia enunciada na viso

    28 Sobre esse sujeito e seu livro consultar BARBOSA, Janio Gustavo. Breve Notcia sobre um tal de Manoel Ferreira Nobre. Disponvel em: < http://dc317.4shared.com/doc/EpAkc4k-/preview.html>. Acesso em 19 de

    mar. de 2012. 29 Manoel Nobre chegou a Mossor quando ainda era uma vila e no cidade da Provncia, isto , na dcada de

    1860. Por outro lado, suas informaes oferecem-nos analisar os aspectos sociais, econmicos e urbansticos da

    localidade, importantes para a construo da prpria cidade nesse contexto. Portanto, tomaremos seus

    apontamentos, como elementos de construo de uma cidade promissora, e com aspectos j presentes da vida urbana em seu espao social, mesmo sendo institucionalmente ainda uma vila. 30 Para saber mais sobre essa personalidade consultar ONOFRE JNIOR, Manoel (ET ALL.) 400 Nomes de

    Natal. Natal: Prefeitura de Natal, 2000.

  • 31

    de mundo particular e nas estratgias intelectuais a ela coligadas que receberiam o nome de

    modernidade. Para Bauman, a estratgia do trabalho intelectual no perodo moderno mais

    bem caracterizada na metfora da funo do legislador. Esse consiste em fazer

    [...] afirmaes autorizadas e autoritrias que arbitrem controvrsias de opinies e escolham aquelas que, uma vez selecionadas, se tornem corretas e associativas. A

    autoridade para arbitrar , nesse caso, legitimada por conhecimento (objetivo)

    superior, ao qual intelectuais tm mais acesso que a parte no intelectual da

    sociedade. Esse acesso se d graas a regras de procedimento, garantido que se

    alcance a verdade, que se chegue a um juzo moral vlido e se selecione um gosto

    artstico apropriado. (BAUMAN, 2010, p. 20).

    Assim a prtica dessas regras de proceder torna as profisses intelectuais (cientistas,

    filsofos morais, etc.) proprietrias coletivas de um conhecimento de grande valor direto e

    decisivo na manuteno e aperfeioamento da ordem social. Dessa forma, esses intelectuais

    transformam-se em metaprofissionais nas suas atividades de trabalho, sendo responsveis

    na formulao de regras de proceder, e ao controle de sua aplicao correta na sociedade. Eles

    e seu prprio saber produzido no so restringidos por tradies localizadas e comunais.

    Ambos so extraterritoriais, o que lhes d o direito e o dever de validar (ou invalidar) crenas

    que possam ser sustentadas em vrios segmentos da sociedade (BAUMAN, 2010, p. 20).

    Pensar os autores que estamos trabalhando, a partir das observaes de Bauman, amplia a

    visualizao da prtica e estratgia intelectual, aplicada pelos mesmos, no contexto da cidade

    de Mossor e estado do Rio Grande do Norte, nessa passagem da modernidade, pois estamos

    cientes de suas metafunes (polticos, jornalistas, escritores, memorialistas, etc.) inseridas

    naquela sociedade quanto no prprio estado nesse perodo.

    O filsofo marxista Antonio Gramsci tambm abordou o mesmo tema nos seus

    Cadernos do Crcere. Ele percebe que todo grupo intelectual, emergente de um processo

    histrico, seja de uma estrutura econmica, poltica e social anterior, encontrar categorias de

    intelectuais preexistentes naquele momento. Assim, o filsofo argumenta que qualquer grupo

    social que nasce de uma funo essencial no mundo da produo econmica gera para si,

    organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe do homogeneidade e

    conscincia da prpria funo, no apenas no campo econmico, mas tambm no social e

    poltico (GRAMSCI, 2010, p. 15). O autor defende que todos os homens so intelectuais,

    mas nem todos na sociedade praticam essa atividade. Dessa maneira, formam-se

    historicamente, categorias especializadas para o exerccio da funo intelectual; formam-se

    em conexo com todos os grupos sociais, mas, sobretudo em conexo com os grupos sociais

  • 32

    mais importantes, e sofrem elaboraes mais amplas e complexas em ligao com o grupo

    social dominante (GRAMSCI, 2010, p. 18-19). Assim como Bauman, o filsofo marxista

    discorre que essa categoria (intelectual) ampliou-se enormemente no mundo moderno, sendo

    elaboradas pelo sistema social democrtico-burocrtico, imponentes massas, nem todas

    justificadas pelas necessidades sociais de produo, ainda que justificadas pelas necessidades

    polticas do grupo fundamental dominante (GRAMSCI, 2010, p. 22). Dessa forma, para o

    autor, os intelectuais seriam os prepostos do grupo dominante, responsveis nas funes

    subalternas da hegemonia social e do governo poltico, isto ;

    1)Do consenso espontneo dado pelas grandes massas da populao orientao impressa pelo grupo fundamental dominante vida social, consenso que nasce

    historicamente do prestgio (e, portanto, da confiana) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posio e de sua funo no mundo da produo; 2) do

    aparelho de coero estatal que assegura legalmente a disciplina dos grupos que no consentem, nem ativa nem passivamente, mas que constitudo para toda a sociedade na previso dos momentos de crise no comando e na direo, nos quais

    desaparece o consenso espontneo. (GRAMSCI, 2010, p. 20).

    Os apontamentos do filsofo marxista, apesar de estarem focados na organizao

    poltico-econmica e cultural (hegemonia) do capitalismo na modernidade, fazem-nos

    perceber a funo dos cinco intelectuais utilizados nesse texto na sociedade norte - rio-

    grandense, ou seja, sujeitos que fizeram parte dos setores da elite local e estatal, nos assuntos

    econmicos, polticos e culturais, estando imbudos de responsabilidades do poder e saber nos

    seus lugares de atuao e representao, preocupados em criar uma memria coletiva, que

    aqui apresenta-se, na narrativa de fatos e signos sobre a cidade de Mossor e a seca de 1877.

    As observaes dos dois autores, sobre os intelectuais e seu labor nesse perodo da

    modernidade, trazem-nos subsdios para compreendermos socialmente o lcus que nossos

    sujeitos falam (setor burocrtico, jornalstico, literrio), quanto aos elementos constitutivos de

    seu discurso, ideais e sensibilidades. Antes de iniciarmos a descrio de Mossor durante a

    seca de 1877 interessante mostrar nossa abordagem e posicionamentos acerca dos estudos

    sobre cidade e histria social da literatura.

    A histria cultural ao longo da dcada de 1990 proporcionou uma nova abordagem

    ao fenmeno urbano. O que se ressalta desses estudos, o tratamento da cidade, no mais

    apenas como lugar privilegiado da realizao da produo e ao dos novos sujeitos sociais,

    mas, sobretudo, como um problema e um objeto de reflexo, a partir das representaes

    sociais que produz e que se objetivam em prticas sociais (PESAVENTO, 2007, p. 13).

  • 33

    Desses enfoques, no se destituiu o aspecto da materialidade da cidade, isto , ela sempre

    criada pelo homem, uma segunda natureza, obra e artefato. Por outro lado, a urbis, no olhar

    cultural tambm sociabilidade, ou seja, comporta atores, relaes sociais, personagens,

    grupos, classes, prticas de interao e de oposio, ritos e festas, comportamentos e hbitos.

    E porque no ainda sensibilidade? Como fenmeno cultural, que atribui significados ao

    mundo, a cidade se revela pela percepo de emoes e sentimentos dados pelo viver urbano

    e tambm pela expresso de utopias, de esperanas, de desejos e medos, individuais e

    coletivos, que esse habitar em proximidade propicia (PESAVENTO, 2007, p. 14). A partir

    dessa dimenso da sensibilidade que poderamos alcanar essa cidade sensvel, ou seja,

    aquela responsvel pela atribuio de sentidos e significados ao espao e ao tempo que se

    realizam na e por causa da cidade (PESAVENTO, 2007, p. 15).

    Outra colocao relevante dos estudos culturais da cidade, apresentado pela autora,

    seria a percepo da influncia das espacialidades e temporalidades em todas as construes

    imaginrias de sentido que se faz presente no universo citadino. Destarte, a cidade

    [...] sempre um lugar no tempo, na medida em que um espao com reconhecimento

    e significao estabelecido na temporalidade; ela tambm um momento no espao,

    pois expe um tempo materializado em uma superfcie dada. Porm, em termos de

    cidade, esse tempo contado se d sempre a partir de um espao construdo, e no

    possvel pensar um sem o outro. Quando se trata de representificar a memria ou a histria de uma cidade, a experincia do tempo indissocivel da sua representao no espao. (PESAVENTO, 2007, p. 15-16).

    Essa perspectiva de abordagem dos estudos culturais urbanos, tendo em vista as

    sociabilidades e sensibilidades num determinado espao-tempo, utilizando como ferramentas

    o resgate dos discursos, imagens e prticas sociais de representao, mostra caminhos para

    uma leitura desses ethos31

    urbanos. Assim, so de extrema importncia para nossa

    investigao as sociabilidades e sensibilidades presentes nas descries dos narradores da

    cidade de Mossor na seca de 1877. Porm, acreditamos que necessrio um olhar crtico

    sobre esse processo de construo das representaes acerca das cidades. Pois, os discursos,

    imagens e prticas sociais no so descoloridas de intenes, tramas e at ideologias, ou

    melhor, de vida humana. As representaes, pedra angular dos estudos culturais32

    , no podem

    31 Conjunto de caractersticas que compe os traos sociais e culturais de um grupo, sua identidade e costume. 32

    Ver os trabalhos como CHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Trad. Maria

    Manuela galhardo. Lisboa: Difel, 1990, e PESAVENTO, Sandra Jathay. Histria & Histria Cultural. 2 Ed.

    Belo Horizonte: Autntica, 2005.

  • 34

    cair na armadilha do trato essencialista ou idealista, adquirindo um carter autnomo e

    atemporal, ante a realidade social e suas mudanas no processo histrico, elas tambm devem

    ser historicizadas, pois como argumenta Henri Lefebvre las representaciones circulan, pero

    en torno a fijezas: las instituciones, los smbolos y arqutipos. Interpretan la vivencia y la

    prctica; intervienen en ellas sin por ello conocerlas ni dominarlas. Forman parte de ellas, solo

    las distingue el anlises (LEFEBVRE, 1980, p. 28). Deste modo, acreditamos que as

    representaes so um artifcio de mediao para compreendermos a dimenso do espao

    social na prpria cidade. La representacion no consiste en uma imaginera, en un reflejo o em

    una abstraccin cualquiera, sino en una medicin (LEFEBVRE, 1980, p. 37). Ou seja, ela

    no se define apenas pelo concebido, mas pela relao de vivncia e prtica espacial, num

    feedback, isto , uma presena no meio social. Assim, a contribuio de Lefebvre teoria das

    representaes tem como fundamento a no-separao de vida e conhecimento e o

    movimento que essa concepo e prtica trazem consigo (MARTINS, 1996, p. 97). Desse

    modo, pensamos as descries e representaes da cidade de Mossor na seca de 1877 na

    tentativa de compreendermos a produo de outro espao citadino, que no parte apenas do

    espao concebido para chegar ao vivido e sua prtica (percebido), mas de sua interconexo

    com essas duas dimenses espaciais.

    Nossa tarefa nesse captulo ser perceber as tenses e dilogos presentes nessas trs

    dimenses da produo do espao social na cidade de Mossor, atravs dos escritos dos

    intelectuais que descreveram aquele lugar durante a experincia da seca de 1877. Dessa

    forma, teremos combinaes bastante diferenciadas no entrecruzamento entre - o vivido, o

    percebido e o concebido - nos textos abordados, que (re) criam uma cidade e sua configurao

    espacial num dado momento de tragdia na Provncia. De antemo, observamos que as

    imagens e descries da cidade de Mossor, efetuam-se em maior grau nas esferas do

    concebido e vivido, ou seja, revela tanto uma ordem e instrumentalizao (penetrados de

    saber e poder) do espao da prpria cidade quanto sua dinamizao e fluidez do mbito

    vivido (lugar do imaginrio, simblico, apropriao e contra-ao) durante a seca de 1877,

    mas que ao mesmo tempo, podemos identificar uma prtica espacial que os sujeitos esto re-

    produzindo, numa certa coeso e coerncia durante o episdio da seca33

    . Passaremos agora

    33 Esses conceitos apresentados, sobre a produo do espao social (percebido, concebido e vivido) sero

    fundamentais nos outros captulos dessa dissertao. Assim, no Captulo 2, voltaremos nossa ateno para uma

    prtica espacial das secas, ou seja, como o espao percebido transforma e re-produz espacialidades, enquanto no ltimo, discutiremos a interface do espao concebido e vivido das secas, e sua fundamental importncia na

    produo do espao social de Mossor.

  • 35

    para o mtodo de anlise empregado para tratar dos intelectuais e suas respectivas obras nesse

    captulo.

    Aproximamo-nos das abordagens dos historiadores Nicolau Sevcenko e Frederico de

    Castro Neves em seus respectivos textos, Perfis Urbanos Terrveis em Edgar Allan Poe e A

    Misria na Literatura. O primeiro estuda as imagens produzidas pela literatura de Edgar

    Allan Poe, perante o espetculo do surgimento das grandes cidades no sculo XIX. Assim,

    signos como a solido, doena e seduo, surgem no emblema aterrador da morte enquadrada

    na cidade moderna pelo escritor norte-americano. A cidade no analisada pela sua

    fisionomia, mas pelo exame cuidadoso de uma sensibilidade altamente excitada

    (SEVCENKO, 1985, p. 77). A viso trgica da grande cidade identificada com a morte em

    trs contos de Poe, mas o interessante de ressaltar que, diferente de seus contemporneos, ele

    no fala sobre da cidade, mas parece metamorfosear-se na voz pela qual a experincia

    desenraizada da vida na metrpole procura pronunciar a sua identidade inconsistente. Seu

    estado de melancolia no nasce da razo e nem da moral e sim da solido em que a

    metrpole enclausurou cada um dos seus milhares ou milhes de habitantes (SEVCENKO,

    1985, p.73). Dessa forma, atravs das idias de Nicolau sobre uma sensibilidade,

    conformada na experincia da vida urbana, apropriamo-nos desse enfoco para estudar os

    signos e representaes dos intelectuais sobre a cidade de Mossor durante a passagem da

    seca de 1877, ou seja, compreender a construo de outro espao citadino, marcado pela

    tragdia e smbolo da morte, doena, crime e imoralidade, alm dos valores morais intrnsecos

    aos prprios narradores em suas literaturas.

    No mesmo caminho dialogamos com o texto de Frederico de Castro Neves, do qual

    trata da construo de um olhar intelectualizado acerca da seca de 1877 no Cear, sobre o

    emblema da misria naquele contexto de crise. O autor analisa os escritos do jornalista Jos

    do Patrocnio (Rio de Janeiro) e o impacto simblico que a misria de milhares de retirantes

    causou nas mentes cultas no final do Segundo Reinado. Assim, expressando um olhar

    moralizante sobre a desagregao dos sertanejos, o jornalista constata ainda que aquele

    episdio da seca revela-se como um elemento de ruptura da ordem senhorial nesse fim-de-

    sculo. Desse modo, procuramos tambm entender a construo da cidade de Mossor

    naquele momento, a partir dos olhares intelectualizados de seus narradores, articulando as

    imagens e signos criados com os posicionamentos e valores morais dos mesmos,

    compreendendo as tenses e contradies, ocasionadas pelo encontro dessas duas polaridades

    na descrio daquele episdio na prpria cidade e provncia do Rio Grande do Norte.

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    Para encerramos a discusso sobre a abordagem aplicada nesse captulo, produo

    literria utilizada (crnica, conto e inventrio) tratada como um testemunho histrico no teor

    da histria social, ou seja, inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de

    interlocuo social, destrinchar no a sua suposta autonomia em relao sociedade, mas sim

    a forma como constri ou representa a sua relao com a realidade social algo que faz

    mesmo ao negar faz-lo (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p. 07) nossa perspectiva de

    trabalho. Qualquer obra literria uma evidncia histrica, situada no processo histrico com

    propriedades peculiares, que precisa ser interrogada, desnudada. Desse modo, necessita-se de

    dois pressupostos ao tratamento dessa fonte. A primeira a necessidade de destrinchar

    sempre a especificidade de cada testemunho. Ou seja, o historiador precisa interrogar essa

    fonte, como qualquer outra, no sentido de buscar a lgica social do texto. O segundo trao

    ponderar as caractersticas especficas da fonte literria (CHALHOUB, PEREIRA, 1998, p.

    08), isto , esclarecer o estatuto de uma obra literria como testemunho histrico. Assim, para

    uma anlise do testemunho histrico (independentemente que seja), deve-se sempre ter em

    vista que os sujeitos vivem a histria como indeterminaes, como incerteza, como

    necessidades cotidianas de intervir para tornar real o devir que lhes interessa. Portanto,

    autores e obras literrias so acontecimentos datados, historicamente condicionados, valem

    pelo que expressam aos contemporneos. O sentido de um autor ou obra literria no se

    explica ou se esgota nas suas apropriaes futuras (CHALHOUB, PEREIRA, 1998, p. 09).

    1.1.1 Paisagens e Experincias da Seca de 1877: nova percepo, sentimento e raciocnio de

    Manoel Dantas.

    A escrita de Manoel Dantas sobre a seca de 1877 possibilita-nos compreender como

    aquele evento especfico causou uma srie de mudanas no modo de sentir, raciocinar e

    perceber o mundo natural, ou seja, homens e mulheres potiguares que viveram aquela

    experincia e que acabaram sofrendo transformaes sociais e culturais, alm de re-produzir

    outro espao social. Todavia para iniciarmos esse tpico so necessrios alguns apontamentos

    que ajudaram na construo de nossas idias e argumentos. Assim dialogaremos a seguir com

    dois historiadores que contribuem na discusso da relao sociocultural dos homens com o

    mundo natural.

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    O historiador ingls Simon Schama em seu livro Paisagem e Memria34 discorre

    acerca da percepo humana para situar a natureza, ambas, inseparveis. Como tambm

    trata da noo de paisagem, esta, antes de poder ser um repouso pa