maciço de morais: um pedaço de história da terra

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Parques e Vida Selvagem Outono 2009 40 REPORTAGEM No Nordeste, o maciço de Morais despede-se dos rigores estivais. Bafejado pelo clima mediterrânico, reúne património natural que o coloca sob a alçada da Rede Natura 2000. A geologia complexa do sítio suscita da flora talento raro para medrar e a fauna vê-se representada pelo lobo, o gato-bravo e a toupeira-de-água... Morais: um pedaço de história da Terra Rio Sabor Morais massif: A piece of the Earth’s History In the Northeast of Portugal, the Morais massif contains a rich natural heritage, which is under the jurisdiction of Nature Network 2000. Its complex geology and Mediterranean climate combine to shelter rare flora and fauna. Here, for example, there are the Iberian desman, wolves and the wildcat, Felis silvestris...

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No Nordeste, o maciço de Morais despede-se dos rigores estivais. Bafejado pelo clima mediterrânico, reúne património natural que o coloca sob a alçada da Rede Natura 2000.A geologia complexa do sítio suscita da flora talento raropara medrar e a fauna vê-se representada pelo lobo,o gato-bravo e a toupeira-de-água...(tiragem desta revista, distribuída com o "Jornal de Notícias": 120 mil exemplares)

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Parques e Vida Selvagem Outono 2009

40 REPORTAGEM

No Nordeste, o maciço de Morais despede-se dos rigores estivais. Bafejado pelo clima mediterrânico, reúne património natural que o coloca sob a alçada da Rede Natura 2000. A geologia complexa do sítio suscita da flora talento raro para medrar e a fauna vê-se representada pelo lobo, o gato-bravo e a toupeira-de-água...

Morais: um pedaço de história da Terra

Rio Sabor

Morais massif: A piece of the Earth’s HistoryIn the Northeast of Portugal, the Morais massif contains a rich natural heritage, which is under the jurisdiction of Nature Network 2000.Its complex geology and Mediterranean climate combine to shelter rare flora and fauna. Here, for example, there are the Iberian desman, wolves and the wildcat, Felis silvestris...

Parques e Vida Selvagem Outono 2009

REPORTAGEM 41

José Feliciano bate com o martelo numa grande rocha esverdeada e diz: «Este xisto provém de uma rocha vulcânica».

Já estou a aprender, ali numa berma de es-trada a caminho de Izeda.

Emerge a sensação de que estas pedras guardam segredos antigos e só os murmuram aos ouvidos de seres que olham para elas como ninguém.

Tal paixão estende-se a inúmeras partes da fina espuma que é a crosta terrestre e foi esta cumplicidade que trouxe à luz do dia o maciço de Morais como a maior extensão contínua de rochas ultrabásicas do país, não havendo mais do que meia dúzia de locais capazes de ombrear com ele em todo o Globo.

Pedra na mão, o geólogo sublinha: «Teve de haver uma fracturação profunda para o basal-to em forma de lava ascender à superfície».

Não são artes mágicas, embora pareçam, desdobradas por alguém que reconhece que ninguém estaria lá na altura para assistir ao fe-nómeno. Ao longo de anos houve análises de laboratório, químicas e microscópicas, para que a explicação surja em timbre explícito:

«Já temos aqui uma história a partir apenas da análise do afloramento rochoso: basalto que se transformou em xisto».

Este é um dos muitos pormenores que evo-cam uma época recuada da história da Terra. Havia então um grande oceano, o Rheic, pai do Atlântico. Contavam-se na altura dois enor-mes continentes: Gondwana e Laurússia.*

Quando a tectónica de placas levou ao fe-cho desse vasto oceano, deu-se o que os ge-ólogos conhecem como a orogenia Varisca, uma grande colisão continental assente em impensáveis movimentos telúricos, criadora de cadeias montanhosas, ocorrida em época remota, entre 380-280 milhões de anos.

Esta sucessão de eventos antiquíssimos está bem conservada e à vista no maciço de Morais, encontrando na aldeia do mesmo nome o epicentro deste vórtice geológico.

Através de imagens de satélite, distingue-se ali uma mancha circular que lembra a colisão de um grande meteorito. O mesmo mostra a carta geológica: «Terão sido materiais mais densos os responsáveis pela configuração cir-cular. Resistiram à erosão e durante o trans-

porte moldaram os materiais menos densos envolventes», explica Eurico Pereira, o mentor da carta geológica da região.

Monte malditoA aldeia de Morais assenta sobre a falha

que dividiu o maciço em dois. A norte do povoado, há terrenos em que

a vegetação é escassa. Não é de estranhar: o solo faz-se de materiais do manto terrestre subjacentes a um antigo fundo oceânico.

Estas rochas, conhecidas por ultrabásicas, são um manto de difícil trato para as plantas. Solos com crómio, ferro e níquel impõem aos pinheiros plantados, após várias décadas, a estatura de árvores juvenis.

Também os sobreiros, com 120 anos, se mantêm com um porte acanhado, como numa fotografia tirada na década de 30, e «sobrevivem graças a associações de fungos chamados micorrizas, que lhes fornecem ali-mento».

Quem comenta agora a paisagem é Pedro Teiga, engenheiro ambiental: «Ao longo de dé-

José Feliciano, geólogo Os vários tipos de xisto contam diferentes histórias

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cadas houve planos sucessivos de plantação nestes terrenos, sem efeito».

Ali vingam as plantas de solos ultrabásicos, tais como algumas espécies de tomilho, Thy-mus zygis, de santolina, Santolina semiden-tata, ou a salgadeira, Alyssum pintodasilvae. A salgadeira é neste grupo de plantas a mais expressiva, uma vez que consegue acumular mais níquel no caule e nas folhas do que o que se regista no solo em que medra.

Teiga explica que estas plantas «hiperacu-muladoras de metais são objecto de estudos variados». Interessa «o conhecimento dos mecanismos», já que «pode contribuir para uma melhor gestão ambiental no controlo de áreas contaminadas».

Eurico Pereira destaca a sabedoria popular: «Há um regato na zona da Junqueira em que os pastores não deixam nem por sombras aproximar as ovelhas. A água tem arsenopi-rite. Ao alterar-se, este composto liberta ar-sénio. Se as ovelhas passam por lá e bebem daquele regato vão desta para melhor».

A sul de Morais a vegetação transforma-se e revela-se mais rica, numa moldura mediter-rânica.

É por essas bandas que se ouvem os pin-tos-barronqueiros, ou abelharucos, agora em viagem para África...

Se para os geólogos as rochas são o mais-que-tudo da paisagem, para quem se interes-sa por botânica a vegetação fala por si só e

denuncia o clima, o tipo de solo, a presença ou ausência da água…

Domínio mediterrânico A natureza dá curvas e contracurvas e,

pelo caminho, há muito para ver. O sol brilha agora com toda a força enquanto o trilho de terra batida paira sobre uma vertente que faz lembrar os matagais algarvios. Os dedos do clima mediterrânico esticam-se até ao Norte e chegam longe!

Avançando até Balsamão, próximo do rio Azibo, a paisagem faz-se de azinho e trovis-co, de cadornos e cornalheiras, sem excluir muitas outras plantas adaptadas ao clima. Entre eufórbias peculiares e giestas que o não serão, há pelo menos um ser vivo familiar: o funcho, ainda em flor no fim do Verão. Não há insectos a bulir, excepto um punhado de formigas numa flor. O calor encosta a vida sel-vagem à sombra e esta só surgirá quando a luz amainar.

Uma borboleta-do-medronheiro, a maior da Europa, levanta voo no bafo do arbusto que lhe dá nome, procura sombra mais eficaz. Pousa, e deixa de se ver.

Uma descida e mais adiante as margens do rio Azibo. Com um pé na água, amieiros. As folhas parecem menores do que as dos do litoral: quererão reduzir a evaporação? As raízes cobram a água dos poços, mas a copa

Tomelos ou salgadeiraSantolina

Tomilho

RetamaEurico Pereira, geólogo Funcho Cornalheira

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frondosa retém o oxigénio da água, ensom-brando-a, e possibilitando a sobrevivência estival de peixes endémicos, como a boga-do-norte.

Terminada a sombra do precioso amial, a margem ergue-se e deixa a nu rocha esver-deada, anfibolítica. Um patamar abaixo o leito do rio vai seco, à maneira mediterrânica. Uma pedra clara merece o comentário dos geólo-gos que explicam estarmos perante «o bilhete de identidade da crosta oceânica» desta su-cessão geológica: o complexo de diques.

Na especialidade, «um dique é uma intru-são de rocha em fusão segundo uma fractura que atravessa camadas ou corpos rochosos preexistentes». Segundo Eurico Pereira, «po-demos ter todos os sinais indicadores da pre-sença de crosta oceânica, mas sem a presen-ça de diques não há certezas». O complexo de diques é «o código de barras que indica claramente a presença de crosta oceânica». Feliciano remata: «Estive nos Andes diante de algo idêntico, a 4 mil metros de altitude, mas o estado de conservação deste está bem me-lhor».

Gnaisse-ocelado A agricultura de bocage marca a paisagem

de forma reticulada. No maciço de Morais é a localidade de Vinhas, entre Izeda e Castro Roupal, no lado Norte, que a representa. As

sebes dos campos fazem-se essencialmente de freixo, que aqui dá nota da proximidade de água. Onde esta corre tudo fica mais verde.

«A diversidade biológica ganha com a presença deste tipo de agricultura», explica Pedro Teiga, enquanto um tartaranhão bate as asas de um campo próximo. Conclui: «Os corredores verdes estendem-se por aqui, através de serras, como a da Nogueira, e através de vales como os dos rios Sabor, Maçãs e Azibo».

Adiante, na aldeia de Talhas, a paisagem va-ria e ajeita-se em planura, à moda do Alentejo. Quem manda nestas bandas são os cereais.

Quilómetros adiante na paisagem há zim-bros-galegos, Juniperus oxycedrus. Estas co-níferas tomam formas caprichosas, algumas arredondadas como se fiapos de nuvens se fizessem à terra e, verdes, se erguessem entre um vai-não-vai de mil formas.

Sem tardar, desce-se ao leito seco de um ribeiro, polido e com marmitas à vista, nada mais do que buracos feitos na rocha pela ero-são da água em cascata. Estamos no vale do rio Sabor.

Eurico Pereira deixa de lado a ciência e lem-bra a infância. Quando ali brincava, admirava o gnaisse: «Esta rocha seduzia-me», recorda. O granito-dente-de-cavalo transformado recebe o nome de gnaisse-ocelado: «Aqui vê-se bem a fibrosidade mineral sobre a foliação da ro-cha». E a «direcção de transporte está à vista:

Rio Azibo: quando o calor aperta, a água fica em poços, enquanto noutros troços flui, subterrânea

Pedro Teiga Zimbro-galego na paisagem Gnaisse-ocelado de Lagoa

Sândalo-branco

Complexo de diques

Parques e Vida Selvagem Outono 2009

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A partir de agora já pode caçar (com máquina fotográfica, é claro) no Parque Biológico,sem necessidade de licença de caça. E pode levar os seus troféus: corços, bisontes,açores, pica-peixes e muitas outras espécies vão decorar as paredes de sua casa.

Poderá fotografar ao longo do Parqueou utilizar um dos novos abrigos de caça-fotográfica,

instalados em locais calmos e fora do circuito de visitas.

noroeste-sudeste». Também eu pensava que as rochas não migravam...

Sobre rodas, o grupo pára depois de alguns minutos. Avança-se num breve trilho ladeado de amendoeiras, na vertente do vale.

Feliciano aponta o contacto entre o irreco-nhecível gnaisse reduzido a pó por forças telú-ricas e uma rocha densa, escura.

Até dói pensar na força necessária para re-duzir o gnaisse àquilo: «Isto era um granito». Trata-se de algo a que os geólogos chamam uma «descontinuidade sísmica de primeira grandeza, neste caso uma paleo-descontinui-dade de Conrad».

Esta rocha poderá ter estado «a mais de 60 quilómetros na direcção do núcleo da Terra e poderá ter cerca de 1100 milhões de anos». Uma vez que só se prospecta a uma dúzia de quilómetros da superfície terrestre, o número 60 fixa uma distância notável.

Subindo alguns metros, abre-se uma paisa-gem imensa com o rio Sabor a correr ao fun-do. Teiga fala de um ninho de águia-de-bonelli, não longe na vegetação rupícola — adaptada a meios rochosos — e na ripícola, com um pé

na água. Lamenta: «Sete tipos de habitat vão desaparecer com a construção da futura bar-ragem do rio Sabor».

Parque geobiológico Estes e muitos outros atractivos, multiplica-

dos segundo a estação do ano, já são conhe-cidos como Parque Geobiológico de Macedo de Cavaleiros.

«Na designação inclui-se», explica Manuel Cardoso, vereador do Turismo do Município de Macedo de Cavaleiros, «todo o maciço de Mo-rais. Há duas candidaturas, já aprovadas, que vão permitir o desenvolvimento deste potencial — não só estudá-lo teoricamente e divulgar tais estudos como produzir toda a documen-tação que lastre o desenvolvimento turístico». Acentua: «Percorra milhões de anos de história geológica e a Macedo Natura».

Além disso, haverá lugar à «publicação de flyers, mapas, guias, artigos na imprensa, filmes e site on-line». Uma série de percursos serão apontados: os chamados «Caminhos Verdes de Macedo de Cavaleiros». Adianta Manuel

Cardoso que «estarão devidamente limpos e sinalizados. Vão ser centenas de quilómetros». Instalar-se-ão também «miradouros e pontos com mesas de orientação», bem como «um centro de acolhimento aos visitantes e equipa-mentos multimédia de acesso a este universo de informação». Para já, «este Outono estará disponível um primeiro flyer com um mapa-resumo e indicações genéricas sobre o Parque Geobiológico de Macedo de Cavaleiros».

Sendo o maciço de Morais Rede Natura 2000, há que aproveitar o prestígio da região: «O nosso concelho é Eco XXI. Temos muito orgulho em ter tanta área como Rede Natura 2000: Morais, Sabor-Maçãs, Nogueira e Ro-meu. O nosso desenvolvimento sustentável passa pelo turismo e o facto de ter tantas áre-as classificadas como Rede Natura 2000 só é benéfico, neste ponto de vista».

Texto e fotos: Jorge Gomes

Parque Geobiológico de Macedo de CavaleirosCâmara Municipal de Macedo de Cavaleiros 5340-218 Macedo de Cavaleiros Telefone: 278 420 420 E-mail: [email protected]

Posto de TurismoTelefone: 278 426 193

Junta de Freguesia de Morais5340 MoraisTelefone/Fax: 278 452 193E-mail: [email protected]

* Gondwana incluía as actuais América do Sul, África, Madagáscar, Índia, Austrália e Antárctida; Laurússia englobava a América do Norte, a Europa e a Ásia do Norte.