lydia jorge - a noite das mulheres cantoras

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  • 8/10/2019 Lydia Jorge - A Noite Das Mulheres Cantoras

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    A Noite das Mulheres Cantoras

    Ldia Jorge

    Ldia Jorge nasceu em 1946, no Algarve. Da sua vasta obra destacam-se os romances O Diodgios (1980), O Cais das Merendas (1982), Notcia da Cidade Silvestre (1984), os dois ltimos distingm o Prmio Cidade de Lisboa, A Costa dos Murmrios (1988), um dos mais poderosos textos sobre a gonial, adaptado ao cinema num filme de Margarida Cardoso, O Jardim sem Limites (1995), distinguido c

    mio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa. Vale da Paixo (1998) recebeu os seguintes prmiosnis, Bordallo, Fico do Pen Club, Mxima de Literatura e o Prmio Jean Monet e Literatura Europeia - Esropeu do Ano, tendo sido ainda finalista do International IMPAC Dublin Literary Award 2003. O seu romVento Assobiando nas Gruas (2002) conquistou o Grande Prmio de Romance e Novela da Assocrtuguesa de Escritores e o Prmio Correntes dEscritas e o romance Combateremos a Sombra o Parles Bisset (2008).

    A sua obra encontra-se traduzida em muitas lnguas e pases, sendo recebida pelos crticos nacio

    ernacionais com grande interesse.o conjunto da sua obra foi vencedora do prestigiado prmio da Fundao Gnter Grass, da AlemBATROS (2006) e do Grande Prmio Sociedade Portuguesa de Autores - Millennium BCP. A Noitelheres Cantoras o seu mais recente livro.

    H uma pergunta que percorre este romance de Ldia Jorge, da primeira ltima pgina: Qumas se deixa pelo caminho para se perseguir um objectivo? A aco do romance decorre no final dosdo sculo XX e invoca um tema de inesperada audcia - o da fora da idolatria e a construo do

    to a partir do interior de um grupo, narrado 21 anos mais tarde, na forma de um monlogo.mo habitual na obra da autora, a questo social relevante - a fora do todo e a aniquilao do indi

    rante o colectivo so temas presentes neste livro. Mas aqui, tratando-se de um grupo fechado e doma msica, a parbola social submerge perante a descrio de um ambiente de grande envolvimento hue densidade potica.

    Servido por uma narrativa ao mesmo tempo rude e mgica, A Noite das Mulheres Cantoras propem o l a histria de seis figuras que passam a viver para sempre no nosso imaginrio. A histria de movente que une as duas personagens principais, Solange de Matos e Joo de Lucena, , por certoqueles episdios que iluminam a realidade e tornam indispensveis a grande literatura sobre a vida dem os ingredientes prprios da cultura dos nossos dias.

    SOBRE ESTE LIVRO

    As pginas que me chegaram s mos e me permitiram escrever este livro eram em nmero de tratro, no vinham acompanhadas por ttulo, e alguns nomes e factos eram diferentes. Nesta verso alarinda de minha inteira responsabilidade tudo o resto e a sua imperfeio.mbm convm dizer que numa dessas pginas constava a indicao de uma epgrafe colhida de um livna Berbrova redigida da seguinte forma - E aqui terminam as minhas memrias. Mas o meu monlogogum ouve, continua. Meno adequada, tratando-se de uma narrao de voz nica. Tomei, no enta

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    erdade de no a utilizar. Em primeiro lugar, porque na histria de um bando conta-se sempre a hist povo, sendo esse o caso das pginas que me foram propostas. Em segundo lugar, porque no ex

    rdadeiros monlogos. Junto-me queles que pensam que narrar, seja l de que modo for, semprema de continuar a infncia do mundo. E a sua orelha, que no se confunde apenas com a matria senr certo que ser infinita.

    NOITE PERFEITA

    Durante dois dias consecutivos, o vento fustigou as rvores da Praa das Flores, o solo ficou juncahas e gravetos, e vrios objectos que haviam sido escondidos para sempre no fundo de sacos de plostraram-se por uma ltima vez, rolando pelo pavimento. Mas esta manh a mulher da Cmara descemio munida de uma vassoura comprida e varreu tudo o que encontrou sua frente para dentro drinho de lata. No momento em que nos cruzvamos, eu ouvia o som das suas passadas dando

    plicao ao mundo - Esquecimento, esquecimento.No entanto, essa no a nica lei que nos rege. H cerca de trs meses, encontrava-me eu senta

    xia de um cineteatro, de onde acabava de ser transmitido um longo espectculo de Vero, quandmem vestido de branco veio ao meu encontro, voando, de braos abertos - Lembras-te de mrguntou. Abramo-nos. O seu corpo estava to leve que danvamos sem dar por isso, e essa leveza eforma evidente que as cmaras fixaram-nos, pousando o seu grande olho minsculo sobre as nossas c

    a as minhas, ora as dele, enquanto rodopivamos. Como tudo se passava simultaneamente, nossaumas pessoas gritavam - Vejam, vejam! Olhem como o Joo de Lucena dana com a Solange de Mata acreditar no que diziam, sobre a imagem dos nossos vultos, projectados no ecr, deslizava umassadeira de letras. O homem leve perguntou de novo - Lembras-te de mim? Ento Gisela Batisotagonista da noite, veio at ns e exclamou - Que maravilha, toda esta gente se vai lembrar de vocsmpre. Que lindos que so, que lindos! No parem, por favor. Olhem como sobre as vossas cabeoduo est a fazer cair uma montanha de estrelas... E retirando-se do centro da histria da noite, ond

    ela deveria estar, Gisela Batista abriu os braos, com palavras de complacncia e admirao - Meu e linda lembrana vamos guardar... E muitos nos aplaudiam. Mas ns rodopivamos indiferentes aos bojectados sobre as nossas roupas, porque sabamos que estvamos a celebrar um encontro no interprio minuto, e havia vinte e um anos que na realidade no nos encontrvamos.to, perante aquela assistncia, o que fazer da nossa lembrana privada? Para onde iramos reconstits que nos tinham separado? Naquele momento, ao contrrio das palavras que corriam nossa voltas importvamos com o tom de solenidade que os outros atribuam ao nosso encontro. Tnhamnsformado no centro das atenes sem que nada o justificasse. Aquela era apenas uma noite de Verna em que havamos participado fazia parte de um programa como tantos outros, um concurso encebido sobre o impacto da emisso em directo, o frenesim do imprevisto a dominar a contingncia e, jpalco, um dos participantes limitava-se a perguntar a uma adjuvante - Lembras-te de mim? Por

    ses dois ramos ns, Solange de Matos e Joo de Lucena. Haveria algum motivo especial para qcunstantes se interessassem pelos nossos passos? Como tantos outros, ns apenas danvamos enmeira fila e o palco.

    Assim, quando as luzes mais intensas se apagaram, samos para a rua como os demais, o largo pa estreito para o amontoado de gente que o ocupava, ns dois separvamo-nos por instantes, e nesse ervalo Gisela Batista abandonou o seu grupo e avanou na minha direco. A sua inquietao era genquanto me segurava nas mos, os seus olhos devoravam a minha cara, perguntando-me - Solange,

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    m? Assegurei-lhe que sim, que estava bem, mas Gisela no acreditava no que eu lhe dizia. Os seus ntinuavam a devorar-me - No mintas. Tu bem viste o estado em que apareceu nossa frente aeito. Mas ouve, Solange, juro que no fui eu quem o chamou, foi a produo. E no foi por mim quo, foi por ti. Queres ouvir? Pergunta ao Fernando Santos...

    Fernando! Chega aqui, por favor, conta o que te dizia o Lucena quando lhe ligavas para Ameste

    nta l, meu amor...E o produtor, remexendo as chaves no bolso, comeou por dizer - Pois verdade, Gisela, sempre qcena vinha ao telefone eu explicava que a concorrente era a Mimi, mas ele s perguntava pela Soleria saber se a Solange teria algum papel no espectculo, se cantava, se danava, se falava. Enfimpre dizia que no, que a pessoa convidada era Gisela Batista, a Mimi, mas ele fazia ouvidos de mercadaquele homem chamado Fernando, movimentando as chaves, tinha muita pressa em retomar o autoe se encontrava guardado no subsolo da Avenida, e no entanto ia dizendo - Grande noite, grande furoreceste este triunfo, Gisela, bem o mereceste tu. Foi uma noite de arromba. Havia muito tempo que

    ontecia um final de noite assim. S que a tua vitria tambm se deve ao nmero do Lucena. Eu mesmo ia de o chamar, mas confesso que no sabia de coisa alguma. Quem poderia adivinhar o seu estado? deria? Grande coincidncia, grande furo...

    As palavras do produtor surgiam de forma to esclarecedora quanto rpida, eu tinha a ideia de qu rondavam velocidade da luz. Sobre o passeio, Gisela Batista ainda se encontrava vestida de Cle

    mo se continuasse em cima daquele palco. Agora j havia feito dois passos atrs, j se preparava paia volta, e eu aguardava que ela retirasse a sua concluso. Iria ser a adequada, como sempre. E assiela apertou a minha mo, murmurando palavras em surdina, e de algumas delas era possvel perce

    ntido - Eu no te dizia? Tudo se passou nas minhas costas. Como que eu ia saber? s para que e no tive nada a ver com este assunto. Ele veio de sua livre vontade, e porque outros tiveram a ideiarque eu o tenha chamado...

    E como se acabasse de lavrar, assinar e datar um documento em que se declarava inocente, Gtista, a antiga maestrina, a nmero um da nossa banda, voou na direco do ruidoso magote q

    uardava na porta do cineteatro. Enquanto isso, do outro lado da rua, Joo de Lucena levantava a moer parar um txi. Encontrava-se ao lado de dois homens vestidos de claro-escuro, e eu tinha a ideia dtrs me perguntavam, no meio da noite de um Julho escaldante como no havia memria -Lembras-m?

    Corri na sua direco, entrei pela porta do txi e enrolei-me no banco de trs, junto a Joo de Lum a ideia certa de que tendo ns penetrado inadvertidamente no reino do imprio minuto, teriaefervel l termos ficado. De contrrio, uma vez sados do interior do seu mundo suspenso, e entregturalidade das horas, dali em diante tudo se resumiria a um deslizar devagarinho na direco dos pavimos, um deslizar de mistura com folhas, gravetos, pedaos de papel com metades de frase, cascas de laografias rasgadas, e ns dois dentro de um txi, rodeados por estranhos, como sempre, vinte e umis tarde.

    Mas o que fazer, agora que tnhamos entrado num txi?Para dizer a verdade, a noite minuto havia sido comprida, durara duas horas e meia. Envolvera v

    co tcnicos, seis cmaras, um homem entretm, cinco cantoras distintas, meia hora de emisso paraa delas, mais a fila dos seus acompanhantes, mais uma cadeira em forma de barca a meio do palco mmetro ligado s lmpadas vermelhas da referida barca, onde ia parar o som das palmas transformadpulso cronmetro. Eu tinha ocupado a coxia lateral mas no sabia que poderia ser chamada quando Gtista subisse ao palco, apenas me tinha sentado ao lado das irms Alcides, conforme combinado, sem

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    alquer expectativa.E isso porque antigamente, quando o imprio minuto mal se desenhava, no final dos anos oitenta, G

    tista, Maria Lusa e Nani Alcides, Madalena Micaia e eu mesma, ns cinco havamos formado um grupntava e danava, tendo chegado a gravar um disco, e era essa lembrana que a maestrina trazia a pmpetindo com as demais concorrentes, de modo a transformarem a noite minuto numa sucess

    omentos carregados de nostalgia. Momentos de tal modo concentrados que, ainda que ocupassem maia hora, na percepo da assistncia, cada prestao deveria parecer no durar mais que um segunplicao havia sido avanada pela prpria Gisela. Como no passado, dois dias antes, ela mesma nos insNo se admirem do que possa acontecer. Naquele meio, tudo o que for eficaz, para ser perfeito, no pxar de ser extremamente rpido. s vezes uma pessoa fala e nem sabe o que diz... Tinha avisado Gtista, habituada, ia para dois anos, ao ritmo rigoroso daquele imprio onde ela se movimentava comxe na gua.

    Resumindo, a meia hora que lhe dizia respeito passou-se do seguinte modo - Depois do concursatro cantoras precedentes, e de um ltimo intervalo que no demorou um instante, Gisela surgiu no meco pisando o espao ao som da cano Afortunada, e o pavimento sua volta estremeceu. Estremando avanou juntando msica gravada as palavras que outrora nos identificavam - Ah! Afortuortunada /Faz fortuna e no tem nada... Tambm estremeceu aquela espcie de aurora boreal sobre acritos em jactos de luz, os nossos antigos nomes apareciam e desapareciam, bem como as nossas carana, lisas como de loua, vinte e um anos atrs. E exultava, sobretudo, o rapaz entretm, que depoar com quatro cantoras medocres, enfrentava finalmente uma concorrente digna desse nome. O moma auspicioso. O animador estava rendido. Ainda Gisela Batista no lhe tinha estendido a mo, j elinava para os seus ps com dedicao de escravo. Agitavam-se ainda mais as mos do pblico que encsa at aos balces. Para ns trs, porm, colocadas nas coxias laterais, nada do que acontecia sobre o nstitua surpresa. Conhecendo Gisela e o passado de Gisela, bem como o nosso contributo, com o quncorria, ns estvamos em paz, julgando que iramos assistir a alguma coisa sobejamente previsttanto, os factos iriam partir numa direco diferente. O rapaz perguntou -E que tal, como se sentia a

    quanto capitoa daquela banda de mulheres giras?Ui! Uma epopeia, meu querido.E Gisela Batista, naquela noite de Vero, em vez de falar de si mesma, como seria de esperar, pr

    ocar, um a um, o nome das suas companheiras, apresentando-nos como um grupo sem mcula, elevs a todas categoria de boa gente, fazendo a sua pessoa dissipar-se no interior do conjunto, uma espodstia orgulhosa que agradava imensamente ao pblico. Recostada na poltrona em forma de barestrina descreveu-nos como cinco raparigas magnficas, com histrias e naturalidades distintas, atrad

    multneo desde vrias partes de frica pelo som de um piano. Cinco raparigas nascidas e criadas em reerentes, e no entanto todas igualmente enlevadas pela mesma msica. Fora o som de um belo Yamauda, um instrumento esquecido no interior de uma garagem diante do Tejo, fora seu o teclado que nos amado, uma a uma, movendo a dentadura mgica, noite e dia, sem parar. Um belo espcime brilhando

    a prola negra no meio do entulho, sem qualquer mo que o tocasse. Um piano executando por si ma partitura cujas ltimas notas s se teriam extinguido no momento em que ns cinco, vindo por camerentes, nos havamos reunido volta do instrumento. Passado todo aquele tempo, ela ainda se lembmo se tivesse acontecido naquela mesma manh, do momento em que a ltima vocalista a chegar gartinha encostado ao corpo do piano, dizendo - Aqui estamos ns. Eu vim caminhando por cim

    eano...Tinha explicado Gisela, contra tudo o que era esperado. E assim, aquele pblico, tocado por uma hi

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    transcendncia, to intrusa e to bem contada, no dispensou a nossa identificao, e de um momentooutro ns trs emergimos das coxias para ocuparmos, a toda a largura, o quadrngulo do ecr, sem quesse sido minimamente previsto. O que no era desagradvel. Apresentadas por Gisela Batista scendentes dos pedaos de um velho imprio perdido que ainda fazia doer por aqui e por ali, tivemos dantar para agradecer o aplauso. O aplauso que ia bater no palmmetro, o palmmetro que envia

    nsagem mensurada s lmpadas da barca, as lmpadas que se acendiam, apagavam e voltavam a aceendo justia ao desembarao da concorrente, e a incandescncia das lmpadas que por sua vnsformava em grandes nmeros vermelhos. Uma corrente tremenda. O animador no sabia o que ava deslumbrado. O animador regressava ao assunto - Um piano, noite e dia, a convocar cinco rapapersas pela Terra?

    Sim, a cham-las, a uni-las, atradas por uma ria interminvel, executada por mo invisvel...Lindssimo! - Comentou o rapaz movendo-se, tambm ele, com a agilidade de um peixe, nas gu

    prio minuto.Nesse instante, a cano gravada ressurgiu, todo aquele volume de som saiu do palco e bate

    nfins da sala - Afortunada/Tem morada, no Um casa / Tem amor, no tem amante / Tem valor e noma /Por isso /Esta cano te d tudo /E no quer nada... Depois, a retumbncia abalou dos confino, avolumou-se e preencheu a amplido do palco. A concorrente no deixou que se encerrasse a

    omento. Apoiada no animador, com quem por certo deveriam estar combinados todos os passos, tista introduziu um novo tema. Um assunto que se mantinha confinado ao nosso pequeno grupo, um senosso, guardado havia mais de vinte anos, e por qualquer razo cujo fundamento me escapav

    mpleto, a concorrente tinha pressa em desvendar, naquele preciso instante. Era por certo o efeito do efmero, a certeza de que o feito ocorrido em cada minuto no teria consequncia para alm dele meela Batista no perdeu tempo, aproximou-se do limiar do estrado, com uma cmara atrs de si, e bradnha direco - S agora posso dizer a verdade. Foi ela... Designou-me com o brao. Foi Solangtos, que alm est sentada, quem escreveu todas as letras da Cano Afortunada. Todas, mas todas, ltima primeira, ainda que s passado este tempo o possamos revelar...

    Meu Deus!O rapaz entretm mostrou-se siderado de espanto.to, afinal, Solange de Matos era a autora das letras e tinha usado quatro heternimos? Quatro nomesa s pessoa? Como assim? Perguntou o rapaz como se apanhado de surpresa por uma revemasiado tardia, ali, diante de todos. Mas o mnimo que se poderia dizer daquela assistncia que se trgente bastante sensvel, um pblico habituado a lidar com a representao dos estilhaos da alma, po

    cutar a palavra relativa a heteronmia, a sala enlouqueceu. O olho de uma das cmaras atirou-se sossa fila, as irms Alcides foram entrevistadas, ao contrrio do que estava previsto, eu tive de subir ao Solange de Matos surgiu durante um minuto como uma letrista entre grandes letristas. Na conversa cre se seguiu, nomes clebres foram mencionados. At mesmo nomes lendrios, ligados a momentosnos lendrios, como os de Michel Vaucaire, Ray Evans e Vinicius, o grande Vinicius de Moraes, de m

    m Solange de Matos. Nessa condio, Solange, letrista, transformada em adjuvante da concorrente, teproduzir toda a letra de Afortunada e depois A casinha em Nova Iorque e esse segredo das nossas rante tantos anos guardado, rendeu um minuto de epifania. Eu no sabia como proceder, estava felizvelao e ao mesmo tempo angustiada pela forma como tal acontecia, mas para ser franca nem tempproceder ao balano entre a alegria e o mal-estar. Pois ainda eu confirmava, diante daquele pblico, qto era verdade, que eu mesma havia escrito a maior parte daquelas letras, e j se abatia sobre a ssica de Onde vamos morar, como se fosse uma ilustrao de tudo quanto no fora dito. Melhor diz

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    da eu no me encontrava refeita daquela espcie de assalto ao meu novelo escondido havia duas dcada voz gravada de Madalena Micaia batia de encontro s paredes da grande casa, abaulando-

    ensidade, especialmente quando entoava a ltima palavra da interrogao Onde vamos morar / Na paixmar, e o compasso alcanava o balano perfumado de um blues. Uma forte dor de cabea. Ou por oavras, um dos passos ntimos da minha vida acabava de ser exposto em pblico, sem apresentao de

    m de consequncia e, passados dois segundos, j eu me encaminhava na direco da coxia, ouvindotra melodia estoirar nas minhas costas. Sentia-me assaltada. No entanto, de nada tinha que me queixarcassos segundos de que era feita aquela meia hora dedicada a Gisela Batista, trs deles haviamupados em saldar uma dvida que apenas a mim prpria dizia respeito. Nesse caso, eu s tinha de agraGisela a meno daqueles factos passados, j que para si prpria de nada servia t-los invocado.nerosidade, a sua. Gisela no precisava de ter referido a minha histria para que as lmpadas acendemo naquele momento acendiam, somando incandescncias que se transformavam em nmeros de elentenas. Outro qualquer episdio teria dado o mesmo resultado. O seu a seu dono. A sensao de tesaltada num local inacessvel da alma era autntica e doa de uma forma difusa por todo o corpo, mas ntificava. Afinal, eu acabava de ser ressarcida de uma dvida antiga. A prova que as irms Alcideavam, ali mesmo ao lado, e at elas se sentiam reconfortadas. Ouvia-as rir e cochichar de satisforreu bem, no correu? - perguntava Maria Lusa, em voz abafada. Um segundo antes, e eu teria rrvel. Agora que tinha reflectido, e deixado passar esse imenso segundo, eu s podia dizer - Cmiravelmente, claro que sim.

    Naquelas circunstncias, o que poderia eu mais desejar?Mas talvez ainda no tenha sido esse o momento mais surpreendente da noite. Pois quando

    avada de Madalena Micaia, a nossa voz mais grave, a voz verdadeiramente poderosa, terminou a ltimarefro, acompanhada pelo trauteio de Gisela Batista e pelo coro do pblico, tanto eu quanto as irms A

    rcebemos que tnhamos entrado no territrio do imprio minuto para no mais dele podermos escapasim - Gisela Batista, tratada ali por Mimi, instada pelo animador para que explicasse a ausncia da intquele magnfico solo, comeou a dizer que Madalena Micaia, a voz do grupo, a nossa voz, s n

    contrava naquele recinto porque havia muito tempo que tinha regressado ao seu continente de orela at acabou por dizer -

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    m limites, incluindo a Terra redonda, e num lugar qualquer da sua superfcie l estaria a rapariga dgnfica a viver obscuramente. Era assim a vida da gente. L estaria. Mas como eu sabia que Madalena Mo estaria superfcie da Terra, no estaria nunca mais - ns quatro sabamo-lo igualmente - a mim m perguntava por que razo teria Gisela Batista enveredado por semelhante enredo, vinte e um anosde. O que pretendia alcanar? Essa pergunta prendia-nos s cadeiras.

    Sentadas nas coxias, tal como eu, as sopranos tambm no se moviam, estavam paralisadas, maia a pena alimentar qualquer sentimento de estupefaco. Tudo se passava nossa frente como se aivssemos. A barca de lmpadas para onde era emitido o impulso sncrono do palmmetro tinnsformado num braseiro incendiado de vermelho. A corrente de solidariedade com frica, desencadeadaocao da figura ausente de Madalena Micaia, assim o reclamava. Chegando ali, j todos sabiam que tista, a mais conhecida de entre as concorrentes, a melhor apetrechada, aquela que vinha munida dco sentimental editado em oitenta e oito, a que era capaz de transformar a hora da nostalgia num vrtgria e triunfo, a que sabia movimentar-se no territrio do imprio minuto como se esse fosse desde seseu quarto de dormir, tinha excedido a soma acumulada das cantoras precedentes, e eu rendia-mmpleto ao seu talento. Ultrapassado o primeiro impacto, a minha admirao pela nossa antiga maestrino profunda quanto a do animador e a do pblico. E o mesmo deveria sentir a muda e paralisada Maria Lque j no se passava propriamente com Nani Alcides.

    Sentada a meu lado, Nani mantinha-se em estado de irreverncia. Era inacreditvel como no dado em nada, a mais jovem das irms Alcides. At quele momento permanecera calada, mas agor

    mo no passado, ela pretendia intervir, pretendia provocar alguma coisa, gerar um movimento, um gritoerrupo qualquer. A vontade que certas pessoas sentem de fazer suster o que no se pode parar. Eu mo era. Naquele instante, Nani fazia contas de cabea e chegava concluso de que o filho de Madcaia deveria ter agora vinte anos, e medida que Gisela ia dizendo aquelas palavras, via-o sair pela posinha de lata com uma metralhadora cintura, duas asas escuras nas costas, via-o voar por cimntinentes, e arrasar vrias cidades a partir dos cus nublados. Por isso Nani, ali to perto da coxia, m voz mais alta do que convinha. Exaltada, perguntava - E se saltssemos para cima do palco,

    sssemos a verdade? Se contssemos como tudo se passou? Se acabssemos de uma vez para semprea hipocrisia? Nani apertou-me a mo direita a ponto de me magoar. A soprano chegou mesmo a levachegou a gerar at um certo burburinho nossa volta, vrias cabeas viraram-se para nos observa

    maras voltaram costas, o operador fez um sinal de que havia detectado um problema na assistncia, oo comeou a descer na nossa direco, mas no valia a pena tomar qualquer tipo de previdncinhecia o temperamento de Nani Alcides ia para mais de duas dcadas, por conseguinte, conhecia ospulsos e as suas retraces, sabia que no correria qualquer risco de vir a dar um passo para almites estabelecidos. Nani era desse jeito.

    Mais uma vez o confirmava. Assim como Nani se levantou e esbracejou, e ameaou romper cmpostura do momento, assim Nani se sentou, retomando o seu lugar.ava correcto.

    Vendo bem, ao contrrio do que a soprano tartamudeava a meu lado, Gisela no mentia, o passe era imperfeito, e para os seus factos se adaptarem ao entendimento do presente, o relato que deesse carecia de ser transformado. Apenas isso. Nem sequer se poderia falar de fantasia. No, ntasia. Tratava-se to-s de uma outra verdade. Afinal de contas, o relato de Gisela era uma outra vee trazia ao presente a coerncia que lhe faltava, enviando ao futuro a esperana que de outro modo poo ter lugar. E se aquela narrativa se adaptava perfeitamente ao que era necessrio, para que irsencantar do fundo do esquecimento a verso verdadeira? Invocados os factos tal como haviam decorr

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    ssado poderia transformar-se numa ameaa. Doido seria quem o tentasse reproduzir. A razo pondera criatura poderosa. Resultava to claro que assim era, a partir das palavras proferidas por Gisela Be at Nani Alcides j deveria estar a pensar o mesmo que eu, naquele preciso instante. Que Gisela na mulher, era uma maga. E assim Nani acalmou-se, sossegou, e ali ficmos, como vinte e um anos anteos dadas, apertadas, muito quietas nos nossos lugares, com imagens loucas a passarem pelo interio

    ssas cabeas, os fragmentos da lembrana a ajustarem-se, a adaptarem-se nova realidade, e a entruco a pouco, na zona da estabilidade e do repouso. No h inteligncia que no conduza ao exerccpouso. A prpria prudncia j uma das suas instncias. Os mortos no o contam, mas sabem. Alis, fosmo, ou alguma coisa de muito semelhante, que eu voltei a concluir, logo no momento imediato, quan

    paz entretm apresentou o ltimo quadro da noite.O animador fez uma pirueta sobre os seus taces e anunciou-o diante dos pequeninos grandes olho

    maras - Ele a est! E agora, senhoras e senhores? Perguntou - O que se ir seguir? -Sabamos m o que iria seguir-se. As concorrentes eram diferentes, mas as oportunidades eram iguais. O rapaz apra o topo da cena e ns confirmmos que havia chegado o momento da figura mistrio.

    Porque havia uma figura mistrio.Ainda no foi mencionado, mas a meio do palco vinham despenhar-se os ltimos degraus de

    cada. Os degraus superiores permaneciam encobertos, ou pelo menos no se distinguiam, at ao mom que se preparava a descida da figura imprevista, mas uma vez iluminada de alto a baixo, a eresentava-se em forma de caracol como no tempo dos musicais de George Cukor e do Robert Wise,rva estratgica para dar vazo grandiosidade do olhar. Tratava-se do ltimo lance. De repente a eulenta transpareceu na luz, oferecendo-se por inteiro concorrente Gisela Batista. Enquanto isso, na bona, umas rapariguinhas cantavam uma letra que em tempos eu havia escrito - No tem quem querem pode / Uma casinha portuguesa em Nova Iorque...

    Eram umas raparigas fininhas, quase nuas, cantando com solavancos inditos a cano quevamos cantado, at que desapareceram com uns passos de ginstica, mas nesse momento ia tinhacada prosa suficiente entre Gisela Batista e o rapaz entretm para eu saber quem iria descer pelos de

    escada mistrio. Das suas palavras resultava um nome - Joo de Lucena.No havia dvida, eu tinha a certeza de que ao som dos ltimos acordes de A casinha em Nova Ioora prolongados em verso instrumental, iria comear a descer a figura de Joo de Lucena, aquele que tempos o coregrafo do nosso grupo. Eu sabia, era to claro, to previsvel. Ali vinha ele em peslizando frente da msica - Existe, existe /Levaste para l a casa portuguesa / Onde tu vives, doazes arte, ressuscitas, morres / Todos os dias... Ali vinha ele. Houve quem o no reconhecesse. tista, to prxima da escada, de braos estendidos espera da revelao da figura mistrio, nonheceu. As irms Alcides no o reconheceram. Eu reconheci-o. Vi-lhe os sapatos compridos, as rogas, demasiado largas, danando-lhe no corpo, que por sua vez tambm danava, via-lhe o cmasiado longo. Quem tinha comprado semelhante indumentria para Joo de Lucena? Quem? - pergu Era a minha vez de querer levantar-me do lugar, mas no me movi. As irms Alcides, muito surpreend

    mbm no se moviam, o que viam sobre o palco dizia-lhes respeito. Por fim, em peso, todos se levantaminhas companheiras tambm conseguiram sair do seu lugar. Eu fiquei sentada. Era intil fazer fosse se. minha volta a festa era completa, o palmmetro dava a vitria esmagadora a Gisela Batista, e a aival juntava vencidos e vencedores, ora sobre o palco, ora em tropel ao longo dos corredores. As cm

    rriam para alm dos espaos convencionais, perseguiam os calcanhares das pessoas, trotavam s arrante de Gisela Batista, e de sbito, como j disse, aquele voo de Joo de Lucena na minha direco - lembras de mim? E o nosso abrao, o nosso rodopio, a nossa deslocao danando at porta, e a

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    brilhos e de letras a passar sobre as costas das nossas roupas projectadas, e o grito dos circunstalhem o Joo de Lucena a danar com a Solange de Matos! Olhem s!pois que veio a Gisela, e eu no tinha palavras, as irms Alcides no tinham palavras. No reino do imnuto as leis acabavam de ser promulgadas e ns ainda no as conhecamos, ainda estvamos analfabetao a esse estado de esprito. Desorientadas, separmo-nos, cada uma para seu lado, j sobre o pass

    enida da Liberdade.Solange, ests bem? No mintas...A preocupao de Gisela Batista era genuna. J o disse. No me posso queixar. Em seguida ela a

    finitivamente na direco do seu grupo, tendo antes lavrado, datado e assinado o seu termesponsabilidade em relao ao assunto. Gisela no tinha chamado Joo de Lucena. No fora ela quem ado vezes sem conta para o Het Muziektheater at o encontrar no telefone. A responsabilidade tinha sidoduo. Jurava com a mo no peito, e a sua perna esquerda saa pela abertura do vestido comquanto o fazia. Jurava que jamais poderia ter imaginado que seria o coregrafo a pessoa que iriam scer pela escada mistrio. Nunca tal lhe passara pela cabea. Jurava, sim. Gisela despedia-se, com m dor, com alvoroo, com lgrimas nos olhos, com a emoo prpria dos vencedores que sabemrdero alguma coisa se ficarem dois minutos para trs, para darem uma palavra aos vencidos. No o der, Gisela no o fazia. A minha admirao por Gisela permanecia intacta. Alis, a minha admirao pelssoa aumentava medida que a via afastar-se passeio fora na direco do seu grupo bem grrulo. Tderiam ir em paz. Aquela noite no era uma parte do dia, era uma estao na hora da chegada. ontoavam-se em frente do Tivoli, chegavam e no partiam, porque ningum atinava com o restaurantedesse ser servida to tarde uma ceia condigna. Proveniente de uma rua lateral, eis que surgia, por mi txi livre. Dois homens vestidos de branco e blazer preto conseguiram det-lo. Eu vi um brao a a

    enar. Quando soube, estava acocorada no banco de trs. Fazia bem. Havia dentro do txi uma atraordinria. O hotel ficava em frente, mas os trs homens no tinham vontade de se recolher, tencionavessar Lisboa, se possvel, gritando para o ar. Um deles, o mais jovem, falava portugus, sotaquericano, e queria que o taxista avanasse buzinando, tal como faziam os carros que levavam a comit

    ela Batista a caminho da ceia. O jovem disse - Apita, irmo, que no te vais arrepender! E coloconhado de euros sobre o tablier.No me lembro se o taxista accionou a buzina ou no. Fssemos para onde fssemos, a noite m

    rseguia-nos, era l dentro que nos encontrvamos. Se dela sassemos, comearia a noite dos diasses, dos anos. Comearia a noite imperfeita dos sculos. Lembro-me que j de madrugada atingimos a s Flores, descemos do txi, eles no queriam regressar ao hotel e eu no desejava entrar em vamos diante das tlias, dos pltanos, da magnlia intensamente verde sob a luz da iluminao pbl

    omento de hesitao era to decisivo que o ingls, sendo cirurgio, disse na sua lngua - H momsim, quando mal sabemos, ficamos entre a vida e a morte. No h lmina que as possa separar...

    Alinhados, os prdios olhavam para ns espera que decidssemos. Como quebrar o impasse?Eu queria mas era espreitar a tua casa, ocup-la, mesmo contra a tua vontade, e a oposi

    cia... - disse Joo de Lucena, a quem no faltava o bom humor de outrora.Assim foi, mas quando entrmos pelo rs-do-cho adentro, ainda nos encontrvamos no interior da

    nuto. Poucos podero gabar-se de terem vivido um momento assim. Olhssemos para onde olhssemssa volta, tudo era perfeio e harmonia.

    O Conto de Solange Lisboa, 16 de Novembro de 2009UM

    A janela pode continuar aberta, a mesa deve estar livre, a msica poder atravessar o soalho, a

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    papel dever manter-se disponvel ao lado da mquina que a usa. Entretanto, passaram trs meses uela noite inexplicvel, e quando dou por mim esqueo a coerncia do seu relato e regresso vinte e ums. No o desejaria, pois, como disse, passada a primeira ventania, a mulher da Cmara empurrredura para dentro do carrinho de lata e a quietude voltou. Afinal, o Outono ainda no enviou omando definitivo de despedida s rvores, os peixes ainda nadam dentro do pequeno lago no cent

    aa, e o ocupante do rs-do-cho, que saiu logo pela manh, ainda no regressou a casa. Tudo est nar. Eu deveria ficar por aqui.Mas a verdade que penso nos vrios passos da nossa suposta vida, tal como os descreveu

    tista, penso no piano invocado ao longo daquele fantstico sero, na artimanha das suas teclas movenzinhas, na fora do seu timbre de prata a chamar por cinco raparigas, e em vez de permanecer dentro ato encantado, onde tudo foi to verdade, regresso ao tempo que eu era uma estudante universitria am quarto alugado na zona do Campo Pequeno, acabada de regressar de umas frias de Vero passadbradinho. No o posso negar. Em vez de permanecer no interior daquela bela lembrana, com todtos to fechados, to definitivos, to prontos a serem usados pelo futuro, regresso s insignificncissado e nelas me prendo ao seu uso. Insignificncias, como seja aquela manh de finais de Outubro emebi uma carta do meu pai com o pedido de que me dirigisse a um certo restaurante, para me encontraterminadas pessoas. Sem o desejar, penso nessa carta, uma carta como tantas outras, um restaumum, uma misso insignificante. Nada que anunciasse o que quer que fosse. a que regresso. Confando dou por mim, esqueo a harmonia da noite estupenda criada por Gisela Batista para regressar a, ltimo trimestre de oitenta e sete. O tempo era outro.

    No me lembro do tempo.Calculo que por essa altura a cronologia andaria a engravidar dos factos que em breve iriam re

    ma acelerao da Histria, por certo que esses prenncios deveriam fazer-se sentir pelas ruas e nas vozcusso pblica, mas eu era uma rapariga do campo a viver num quarto alugado, tinha apenas dezos de idade e no dava por nada. Eu vivia sobre a pele do mundo. Na minha ideia, toda a paisagem hua uma extenso da famlia, e o narrador da minha vida ainda era o meu pai.

    O papel de admoestador, desempenhava-o a minha me. Nessa poca, a duzentos quilmetros a Lisboa, eles viviam como rsticos no o sendo, era tudo o que havia para dizer. Nunca falvamos de nto, do seu exemplo eu tinha recebido a ideia que o destino uma oferta que o presente faz ao futuro seu contrrio. Mas agora, passados vinte e um anos, como disse, em vez de pensar naquela ravilhosa que nos reuniu diante dum palco, com o brilho das luzes a correr sobre as nossas costas, regquarto da hospedaria, quele dia em que fui encontrar a carta no meio do soalho, e por a me fico. M

    rdoso, um dos hspedes da casa, j me tinha dito entrada - Recebeste uma carta, acho que do teti-a debaixo da porta.

    O que te dir?Por esses anos ainda se trocavam cartas.

    A minha me expedia-as sexta-feira para que eu as recebesse segunda, de modo a iniciar a se

    volta nos seus conselhos - Filha, tem vergonha, tem juzo, no desperdices o teu tempo, olha que oso voltam para trs, no gosto nada desses gandulos para quem escreves os versos, no desperdices mpo andando pelos cafs, toma cuidado com o trnsito nessa avenida da Repblica onde os carros pae nem relmpagos. Que saudades que eu tenho de quando tu eras pequenina. O teu pai prometeu escas linhas, mas deixou-se dormir. Adeus, minha filha. E assim terminava a escrita. As cartas da minhao eram cartas, eram esconjuros. Se havia algum assunto urgente ou importante a tratar, nesse casus pais faziam telefonemas que no demoravam um minuto. Vinham os dois ao telefone, um falava, o

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    via - s para te dizer que vamos, que venhas, que tragas. Ests bem? Adeus, no te esqueas do is importante, minha filha. Mas naquele dia tratava-se de uma carta do meu pai.

    Diria antes, um recado. A meio de uma folha sem linhas, pedia-me que fosse escrever o seu nomminha me num abaixo-assinado, o que implicaria participar de um jantar, num determinado restaur

    e ficava numa determinada rua, num determinado nmero, o que iria acontecer no sbado seg

    atava-se de um protesto contra o Estado. Ele no acreditava nem no protesto nem no Estado, mas nfiana em certas pessoas se acaso se moviam, e quando isso acontecia, mesmo que fosse para nado achava bem que se movessem sozinhas. Seria muito triste. A forma como terminava a carta defrsonalidade do meu pai - Muito triste, minha filha, deixar o senhor Botelho a esbracejar sozinho. Ainda para nada. Vai l, e assina por ns. Escreves os nossos nomes, um em cada linha, e colocas rnteses a indicao de que s nossa filha e ests mandatada para tal. - Conhecia o meu pai. No seu descrer, que parecia ser total, residia a sua forma de acreditar. Acreditar que cada um devia buscar nas

    prias foras a nica resposta para enfrentar os obstculos. Semelhante estoicismo costuma criar cnicalitrios. Em relao ao meu pai, no era esse o caso.

    Passado todo este tempo, invoco a sua pessoa e no preciso de rasurar o pico que nasce da pando rememorada. Nem preciso de colocar na boca de outrem a ideia preciosa de que o destino diva que s o presente faz ao futuro. Repito. Era ele quem o dizia e a ningum mais caberia essa verdasso passado era a sua ilustrao. Basta dizer que depois de uma longa viagem de regresso de vamos reconstrudo a nossa vida tomando por alavanca cinco cabeas de gado. A certa altura, ns tu pai, a minha me e eu, apenas possuamos umas malas que abramos noite e fechvamos de mandida de um corredor de hotel onde ficmos alojados durante seis meses. No final desse atribulado perco nos tinham sobejado meios de subsistncia de espcie alguma, apenas o dinheiro suficiente para toma comboio, comprarmos cinco vacas mal nutridas e alugarmos uma ramada sobre um campo que nortencia.

    Era o que nos restava de um tremendo erro de clculo, um apego extemporneo do meu pai abrica de ch nos campos do Guru. Um erro inexplicvel. Semelhante circunstncia tinha-se-me ficado c

    corpo de forma to renitente quanto a imposio fsica de um membro, ou de uma vscera. Eu no falasunto, mas essa travessia vivia comigo de manh noite, marcava o meu ritmo e a minha crena, pintares impressivas a reserva e a minha juvenil brutalidade. Na aluna que eu era sentada sobre os banciversidade, no se acumulavam teorias ou ideias vagas sobre os ciclos fechados dos imprios. Antesntrrio. No lugar onde deveriam alinhar-se abstraces escolares, em vez das palavras profticas de SpeToynbee, alojavam-se concretos apanhadores de ch vergados sob os cestos, o cheiro das folhas delidaefeito da secagem, seguidos do ruminar das vacas, e do estampado preto e branco do seu lombo gmofadas ambulantes que davam leite, como eu tinha descrito numa redaco em criana. Tambm m

    a espcie de cautela, uma lentido qualquer, a ensinadela demasiado tmpora de que a vida levads carros e um deles no o conduzimos ns. Um cocheiro encapotado leva metade da nossa vida para prprio entende. Soubera-o demasiado cedo. Essa reserva dividia-me em duas, e uma parte vigiava a o

    xada por dois cocheiros adversos. Um deles proibia-me de falar do passado. Esse mesmo condutor faziae eu dissesse a Murilo Cardoso que no havia nada de especial naquela carta. O estudante de Sociova passadas largas pelo corredor, enquanto eu relia a correspondncia do meu pai - Ento, boas notcrespondia - Muito boas, sim. Em breve vir de surpresa ver como me comporto por c. Este meu pai...

    Murilo costumava falar meias horas seguidas a meu lado sem que eu ouvisse metade das suas palr fim, o cocheiro vigilante dizia por mim - Adeus, Murilo.

    Foi o que aconteceu naquele dia. Despedi-me do Murilo, empurrando a porta at o trinco fe

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    dentes nas estradas que s se explicavam pelo estado depressivo em que viviam os condutoregressados. O senhor Botelho no queria reivindicar recompensas pelas mortes, o senhor Botelho tinhanso, era um homem lcido, mas baseando-se nos pressupostos de semelhantes perdas, pretendia ae o Estado assumisse as suas responsabilidades, que lhes pagasse com urgncia o que lhes era devidoindemnizasse pelos bens materiais que l haviam deixado, que os outros no tinham retorno. Meus am

    crevam aqui... - disse o vivo, e o abaixo-assinado comeou a circular.A linguagem das cores est muito simplificada. S por si a cor branca apresenta um arerminvel. medida que a petio ia sendo preenchida, as toalhas de dio transformavam-se em toalhperana. O mais curioso de tudo que, ao assinarem, muitos sabiam que o faziam sem esperana, e potoalhas se iam transformando em mantos de ironia e sarcasmo. Por vezes at de humor. E de ris

    cunstantes s no riam mais porque existia o rosto triste do senhor Botelho, vestido totalmente de escugir as assinaturas. To solene, to solene, o senhor Botelho, que a certa altura fomos instados a pas

    na do restaurante, onde se poderia ouvir duas sopranos, as filhas do Dr. Alcides e da senhora Alsaparecidos pouco anos antes, na recta de uma estrada, quando se dirigiam para a sua antiga cidadeica. Em fila, passmos sala para escutar as sopranos, e s ento percebi que se tratava das irms Aas figuras que eu bem conhecia dos corredores da Universidade Nova, e dos bancos do Anfiteatro Um,ssoas com eu mantinha uma ligao subterrnea, privada. Uma ligao invisvel, unilateral, como cosontecer entre o artista e o pblico. Ali estavam elas, em pessoa, diante dos convidados. Percebia-se nhor Botelho havia encomendado uma ria triste de morrer. Elas assim fizeram. As irms Alcides eramorenas magrinhas, uma mais magra do que a outra, e tambm alta, no que era acompanhada pela extgudeza da uma soprano area, filigrana. Naquele sbado, porm, foi a encorpada quem cantou uma rda de morrer, arrastando-a rente ao cho. A certa altura ouviu-se cantar - O Dio, vorrei morire! E o

    tinguiu-se. Os comensais pareciam esculpidos, no se moviam. Em seguida, as duas irms, pedindo dessenhor Botelho, e desafiando a f de que a vida nunca terminaria, quiseram desanuviar a escurido em

    sala se encontrava mergulhada, e muita gente lhes apreciou o gesto. A esta distncia no sei dizer oerpretaram as irms Alcides, sei que as ouo gargantear alguma coisa a roar o cmico, ou o ldico, dir

    o tentado interpretar uma Papagena/Papageno em dueto, ou algo assim semelhante. No final, ssoas muito tristes, mas tambm havia outras muito bem dispostas. As senhoras das capelinas meneavbeas, riam. Tinham colares brancos que lembravam dentes, e os seus dentes lembravam prolas. Tantomo a maior parte daquelas pessoas tristes e no tristes, parecia ter vindo do outro mundo s para asscumento do senhor Botelho e partir. Entretanto, no ptio que ficara deserto, dois empregados levantavalhas. No meio das trouxas em que se transformavam esses panos brancos, iam as ndoas do jantar

    udade, a dor, o dio, a vingana, a esperana, a desiluso, a ironia e o riso. Sentimentos suficientesrarem uma Batalha de Austerlitz. Mas j ali no estavam. Tinham-se transformado antecipadamencfico sentimento da derrota que a todos unia nuns abraos longos. No meio dessa mansa efuso, sobreigura comovente do vivo vestido de preto at aos colarinhos, confiante em que se identificara um cul resposta s principais questes j havia sido dada pelas vozes harmoniosas das irms Alcides. Desta

    minava aquele jantar.Mas no terminava a noite, pelo menos no que me dizia respeito. Pois no final daquele segundo c

    irms Alcides passaram por mim, pararam por um instante, disseram que se sentiam contentes dcontrarem sem mais nem menos naquele lugar, e se eu estivesse de acordo, por certo que nos veramgunda-feira seguinte, no ptio da Universidade, junto ao banco lateral, pelas onze horas da mecisavam de falar comigo. Sem falta. Uma vez agendado o encontro, as irms saram na directomvel das senhoras de colar e chapu capelina, chamando-lhes tias. Entravam no interior do carro q

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    ha buscar, e ainda se despediam com um aceno familiar, prometendo esse encontro. Aquela era a surnoite. E assim, dois dias depois, eu viria a reunir-me com as irms Alcides.

    DOISAs irms Alcides no me eram indiferentes. Nem precisaria de as ter escutado no restaurante do s

    telho para existir uma histria em comum. Eu no as conhecia, elas no me conheciam, mas hav

    ado num mesmo local, e sem que elas soubessem, eu tinha-as acompanhado mais do que algumderiam imaginar. Fora no ano anterior. Eu havia participado numa sesso em que as duas tinham cantnvite da Associao de Estudantes, e j na altura corria o boato de que nas suas vozes comeavam a nos efeitos gravosos das experincias que andavam a fazer pelas bandas jazz. De resto, esse canto col. A minha histria com as irms Alcides, unilateral e invisvel, comeara a.

    At ento, eu apenas via as irms passarem pelos corredores, e achava que no eram raparigas cotras. Ao contrrio da maioria, ambas caminhavam direitas, de pescoo esticado e ombros desarentando uma espcie de estado de prontido dirigido a uma entidade invisvel para a qual estavam seorrir. Normalmente falavam baixo, piscavam os olhos amide como as crianas, constava que treinavamras por dia e jamais bebiam gua fria ou comiam gelados. A sua volta corria uma espcie de lenda e ouvonunciar, com notrio exagero, o nome de Callas e Caball quando eram referidas. Lembro-me como se e. O anncio de que iriam cantar pera no Anfiteatro Um tinha excitado a imaginao dos estudantesra marcada muita gente acorreu, mas diante da multido insubmissa que ocupou os assentos a trouxe, elas mal tinham conseguido mostrar as habilidades de que as suas vozes eram capazes. Entaladastidos clssicos de alcinhas finas, e chinelas de ponta em bico de pssaro, as suas figuras surgiram nabiente de tal modo deslocadas, que ao segundo vocalizo, de ridculas, se tornaram comoventes. Por

    zes foram interrompidas durante o canto. No final, acabaram por ser alarvemente aplaudidas e pates sobretudo suficientemente troadas para passarem, no dia seguinte, a ser designadas pelas irms as paredes as suas figuras deram azo a pichagens bem ordinrias. O seu canto, diante daquela popuenil deserdada de msica, havia acordado o processo da criao das lendas negras. Sobre a sua fa

    gressada em setenta e seis, contaram-se durante quinze dias episdios inominveis, incluindo um des

    ma estrada onde haviam ficado espalhados vrios sacos de pedras preciosas, de mistura com pneus, cuma capota virada. J durante a sesso, um estudante tinha retirado o bon da cabea e berrado a pmeso cantar para o Huambo. L, no meio dos garimpeiros, que vocs estavam bem...

    Desandem, vo-se embora daqui!O desencontro era impressionante. Ainda que na altura o no quisesse reconhecer, fui tomada por

    oo estranha quando, no final da ltima tentativa de levarem a rcita at ao fim, as vi descer do estito direitas, muito solenes, a olharem em frente, na direco de um ponto invisvel que deveria nidade. No era meu hbito. Eu costumava ser bem segura, bem contida, trocista quanto baste,quele momento, encostada a um canto, de costas viradas para o meu grupo, comecei a chorar socapantro de um leno. At que os meus ombros me

    ram chorando tambm. Provavelmente, chorava por elas em mim, como acontece em semelhantes casnha ideia, porm, que chorava de vergonha de todos ns na pessoa das sopranos, ainda que no qumitir o que nisso havia de lstima. E a admirao que eu nutria pelas irms fez-se to elevada, que asuras chegaram a ocupar o lugar vazio destinado aos seres inacessveis, aquele pedestal que sempre teparado para preencher pela beleza, e raramente encontramos objectos altura de semelhante culto. Nar reservado, durante uns dias, eu coloquei a elegncia e a coragem das irms Alcides. E ali foram fir um tempo. Era este o episdio que nos ligava, e elas no sabiam. Porque haveriam de saber? As

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    am mais velhas do que eu, ou pelo menos o suficiente para serem finalistas. Constava que eram ms abas repetentes, e para dizer a verdade, desde aquele dia em que assistira arruaa, nunca mais asto de perto. Via-as passar ao longe, a olharem para o tal ponto que deveria ser a dignidade, parasaparecerem, ficando por a o nosso contacto, unilateral e annimo. E assim poderia ter ficado para seo fora termo-nos cruzado no restaurante do senhor Botelho. Mas cruzmo-nos e marcmos encontro. E

    azo pela qual, em vez de pensar na Noite Perfeita, aquele sero em que tudo passou a correr comonho, a noite do imprio minuto, eu regresso atrs, ao tempo da imperfeio, e como se fosse hoje, vejntada num banco, no ptio da Universidade Nova, espera das irms Alcides.

    So onze horas da manh.Conforme combinado, elas aproximam-se, sentam-se, ladeando-me, comeam a falar, e no me

    ito que falam, percebo que a palavra-chave do seu discurso lyrics. Referindo-se ao jantar, dizem qe lhes respeita nada aconteceu como contou o senhor Botelho, mas elas pouco se importam que o dontaurante altere a realidade. Afinal, no seu entender, tudo equivalente. Dizem tambm que detestaos da pacaa e aquele ambiente mrbido, e que s vo ao restaurante assistir queles jantares pstam do senhor Botelho. Uma das irms acaba por explicar - Desta vez, ainda bem que l fomos. S s encontrmos. Sabamos quem eras, vamos-te passar por aqui, mas ainda no nos tnhamos decididopente, tu estavas l. Eras uma das nossas. Temos uma proposta a fazer-te... Lyrics - diziam elals.

    Passado todo este tempo, lembro-me de umas nuvens brancas no cu, das nossas sombras no chs trs a defendermo-nos da luminosidade ajeitando os culos de sol, lembro-me sobretudo de que as ides me faziam uma proposta sria, como se estivssemos a tratar entre adultos, e tambm me lembnsar que era preciso tomar cautela. Eu era apenas uma principiante, uma aluna estudiosa que no goapontamentos, e por experincia de vida sabia que para aplicar a coragem precisava de conhec

    rigos. A pergunta justificava-se. Como poderia eu escrever lyrics para as irms Alcides? Eu, que acrevia frases soltas para uns sovadores de instrumentos, que as cantavam aos solavancos, repetindo-as ribilhos at os msculos se cansarem? No podia aceitar, nem comprometer-me, seria dum ridculo a t

    ova. Ia levantar-me. S que as irms Alcides reservavam-me novos argumentos. Maria Lusa, a irmha, disse-me - Senta-te, no o que tu pensas...E Nani, a mais nova, a mais delgada das irms, perguntou-me se eu j tinha ouvido fala

    terminada pessoa, mostrando-me um nome impresso, e ambas ficaram muito admiradas que eusesse que no. Ao mesmo tempo, a outra irm estendeu-me dois singles, dois quadrngulos de cartolinal de muito bom desenho, sobre um dos quais se encontrava representada a cara de uma mulher de pfrente, mas eu continuava a no conhecer nem o rosto nem o nome. De quem se tratava? Nani A

    plicou, ento, que a pessoa que cantava naqueles singles tinha apreciado uma letra que lhe chegaos, que eu havia escrito, uma tal que dizia - Tu na cama e eu na lama / Olha s o que fizemos

    prano, area e filigrana, entoou aquelas palavras, repetindo-as conforme a aperreao prpria dos sovainstrumentos que me pediam aqueles simulacros de letras para canes, mas no o fazia como

    prano. Nani ergueu os braos, esticou-os, entesou-os, e ali mesmo onde nos encontrvamos, reprouelas palavras, o rosto a mover-se, hirto, dando a impresso de querer levantar-se para ir espancar algrante um momento, as duas irms gingaram sobre o banco como se j tivessem treinado aquele esntado e danado. Eu queria ter dado um salto para trs, mas em vez de fazer qualquer movimrmaneci imvel, incapaz de me mexer ou pensar. Seriam mesmo as irms Alcides, as duas raparigas queavam?

    O que pensar daquela encontro?

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    Sentadas a meu lado, ambas falavam, falavam, e quanto mais falavam menos se pareciam contoras que eu tinha ouvido interpretar Puccini de forma estica, no Anfiteatro Um. As sopranos queriamrespondesse, e eu no me sentia capaz de lhes dizer fosse o que fosse. Paralisada. Como muitas

    cedia, a imagem dos campos enlameados do meu pai vinha ter comigo, prendia-me ao cho, os minantes conduziam-me para os stios da prudncia, o tempo dilatava-se na minha frente em tod

    eces e eu pensava em vrios dados em simultneo, e estando preparada para responder, pronunenas umas palavras inconclusivas, enquanto elas porfiavam para que lhes reproduzisse outra letra quaa s passagem que fosse. Pois da minha lavra s conheciam aquelas frases, aquela espcie de estribilhduas cantoras lricas diziam apreciar sem reservas. Tambm apreciavam quem os cantava, os Bijavs,giavam o nome da banda, uma designao, como muitas outras da altura, que pareciam ter sadntispcio de um manicmio. Ambas falavam rpido, como eu nunca imaginara que pudessem plicando que recentemente tinham passado a ser vocalistas de um grupo de quatro elementos em qura principal era a pessoa que interpretava os singles, usando agora o seu verdadeiro nome, Gisela Ba

    ma mulher extraordinria. Admiravam-na sem restries. Para ela no havia dificuldades, bastava levantao e a vida obedecia-lhe. Por isso lhe chamavam maestrina, e ela no se importava, no tomava por issoa formidvel, pessoa incrvel, diziam. E embaladas por essa admirao, puseram-se a resumir asprias trajectrias, com palavras que me surpreendiam.

    Sem que eu lhes pedisse, explicaram-me que eram sopranos, sendo uma delas mezzo, mais grais flexvel, a outra mais subtil, mais aguda e mais rgida, mas em ambas os registos eram suficientemplos para interpretarem de Vivaldi a Puccini. Haviam dedicado perto de dez anos das suas vidas rsistente combate com a voz, uma carreira lrica. Agora, sim, estavam arrependidas dessa entrega, e ticidido partir numa direco diferente. Muito arrependidas... - disse a mais magra e mais

    que ultimamente sentiam-se definhar, dia aps dia, garganteando contos antigos, dramas alheiostumes contemporneos, escutados por pessoas soturnas, embevecidas por histrias e enredos que jonteciam. Nada tinha a ver com a questo do canto. Apenas se imaginavam acorrentadas a um mssado, e elas queriam ser deste mundo, do mundo da vida presente. Queriam utilizar uma lingu

    mpreendida por toda a gente, sem implicar qualquer esforo de decifrao. Desejavam actuar para pis vastos, pessoas que no tivessem vergonha de danar na cadeira desde que empurradas por umcudidela de som. Bem sabiam como era. Em determinadas situaes, bastavam duas, trs batidas, duasploses, para se fazer mover um mar de gente, um oceano de pblico. Elas queriam partir para esse ndo. O mundo real como agora se oferecia, cada vez mais ligeiro, cada vez mais veloz, menos exignos comprometedor. Sobretudo, muito mais rpido, diziam ambas, agitando-se no banco como se tive

    essa de partir para esse outro lugar onde amplificadores do tamanho de prdios emprestavam uma novmsica, enquanto elas, cantando no meio de palcos despidos, se sentiam umas pobres cigarrinhas muriam.ompreendes? -perguntou Nani.

    Desapontada, eu encontrava-me colada ao banco e no conseguia perceber porque me contava

    ms Alcides os seus propsitos, desnudando diante de uma pessoa desconhecida uma parte to signifis seus anseios. At que uma delas esclareceu a situao. Nani disse - Ns queramos pedir-te qucrevesses uma histria ao mesmo tempo fortssima e ligeira. Compreendes? Uma grande letra que ia grande msica. Uma coisa solta, desprendida, uma coisa fantstica, como as da Donna Summer.sa bem distinta da mediocridade que nos cerca. Inventa uma histria forte que nos faa correr, plodir no meio de um palco, tal como um pneu rebentando em andamento. Um impacto de fazer ranblico. Assim, coisa de morrer. Pahf! Compreendes? Queremos uma letra contempornea, escrita p

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    ndo de hoje. Nada de igual ou semelhante a ontem, estamos cansadas de amores soturnos, estamos feremos cantar para as pessoas de agora, as pessoas vivas que encontramos nas ruas, todos os dias. Permais, como eu, como tu, como ns. Compreendes? E ambas me olhavam coma insistncia completamente desajustada ao meu caso.

    Via-se que existia entre ns um desencontro profundo.

    Grande lstima. Eu acabava de perder as irms Alcides que tanto me haviam emocionado. Por suas esperavam da minha pessoa uma espcie de proeza cujo alcance eu ainda desconhecia qual fosntudo sabia muito bem no poder corresponder, nem sequer pretend-lo. Desejava apenas que abressalto passasse, que ambas se calassem, deslizando pelo ptio adiante, sem deixarem rasto. E euxar rasto nelas. Pela minha parte, nada tinha feito que justificasse semelhante expectativa. Meia davras rimadas que os meus colegas pronunciavam ao som da pancadaria que infligiam aos instrume

    bre palcos pouco mais do que escolares, andavam a iludir aquelas pessoas. Eu s pretendia que o fincontro fosse rpido, que as irms abalassem do meu banco sem deixarem vestgio. Mas no foi issoonteceu, j que naquele momento uns passos largos se aproximavam. Eram os passos de Murilo Cardos

    Como se fosse hoje, ainda estou a ver o estudante de Sociologia, nessa manh de Outubro, a aproxcarregando a pasta que o fazia vergar. Ainda estou a ver Murilo a observar os dois singles, a examinaes, a vir-lo, a retirar a redondela de vinil de dentro do encarte, a ler em voz alta, fingindo soletrar o qu

    a sublinhar em silncio, apontando com o dedo, o ttulo e a autoria EmCantos, Pela Cantora Mimi Baou a ver Murilo a devolver os pequenos discos a Nani Alcides com a repugnncia de quem atira um a

    orto para o meio de um monturo.no ficou por a. Murilo reconheceu nas duas raparigas as cantoras que interpretavam Vivaldi e Puccini, condeu o seu desapontamento por v-las envolvidas com uma artista de terceira categoria como deveruela Mimi Batista. Isso disse Murilo, explicitamente. Ainda estou a v-lo a apontar para os pequenos lbouvi-lo denegrir quem emprestava o nome e o rosto quelas capas, olhando para a minha pessoa e pas sopranos, repugnado, como se nos tivesse surpreendido a caminho de um escndalo. Mas as irms Averiam estar habituadas aspereza de forma continuada. Como se o recm-chegado no contasse,

    sa perguntou-me se, afinal, eu queria ou no queria escrever letras para Gisela Batista. Lyrics, disseramEnto, o que decides? distncia de vinte e um anos, penso que se o Murilo ali no estivesse, e se a sua reaco no t

    o to intensa, eu teria rejeitado o que me era proposto e esperado calmamente que as sopsaparecessem pelo ptio adiante. Mas Murilo havia surgido, espalhando mais uma vez a sua secura, e erido decidir por mim. Eu no o iria permitir. Murilo e a sua sombra recortada no solo reforavam osejo de contradio. Sob o efeito do seu exagero, comecei a descontar na minha m vontade. Afinal, tinha passado? Nada de dramtico, nada de definitivo. Eu no tinha ascendido ao mundo das irms Als que haviam descido ao meu mundo e diziam-me que eu era imprescindvel. Naquele instante, basmontar o palco da admirao que nos separava e passar proximidade que junta os iguais. Elavam, em p, na minha frente, ambas a sorrirem, to concretas, to comuns, mostrando-se amveis,

    sua proposta parecia-me credvel, e aquele ptio afigurava-se-me ser uma boa paisagem com muito umas rvores.

    Mas porqu? No me dirs, Murilo?Desafiando o estudante de Sociologia, respondi que aceitava, que me agradava aquele convite, qu

    aginar umas quantas frases para essa pessoa chamada Gisela Batista. Porque no? Quem era eu para remelhante desafio? Lembro-me de me ter despedido das irms Alcides com promessas de ir, de fazecrever. Fica combinado - dizamos as trs, com os braos no ar. Murilo tinha-se deixado cair so

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    sento. Eu tambm. Ainda hoje eu vejo as duas irms a sarem pelo porto da Universidade e a virarera trs, a rirem de ns dois, eu e o Murilo, que ficvamos sentados, cada um na sua ponta do bparados pela minha deciso. esse momento que invoco.

    Sim, eu deveria circunscrever-me ao relato perfeito daquela noite espectacular, mas em vez de pfila de lmpadas vermelhas e nos efeitos numricos do palmmetro, penso em realidades bem sim

    nso no ptio da Universidade, em Murilo Cardoso e na sua pasta, penso tambm na linha azul do Mmuli, e nas terras verdes do Guru com as celebradas fbricas de ch e a sua labuta calma, e as suas pertas diante das estradas. Era numa dessas fbricas que o meu pai trabalhava. O episdio quompanhava, enquanto Murilo me seguia distncia, no regresso hospedaria ao Campo Pequeno, depter assegurado que me iria encontrar com Gisela Batista, ocorreu em setenta e dois. Apenas acont

    ste momento, estou diante da janela aberta sobre a Praa das Flores, a msica do rs-do-cho atravebique e instala-se neste recinto, as rvores parecem imveis, e eu regresso l ao fundo do nosso teuilo que parecia ter sido apenas um pequeno acidente sem consequncia.

    Regresso ao acidente de caa.A princpio nada de importante. Depois o meu pai coxeou durante seis meses e no quis mais vo

    brenhar-se na mata. Todos sabiam. O Matos no gostava de atirar, a mo faltava-lhe no momenntaria, e para nada lhe interessavam as fotografias com a bota alada sobre o cadver de um avagem. Entretanto sobejava-lhe tempo. Ento, ele e a minha me juraram uma ardsia na parede do polveram ensinar a ler aos apanhadores de ch. Calculo que tivessem mais vontade do que mtodo. Fanas horas livres e nem sempre com muito xito. Eu tinha quatro anos e lembro-me, vagamente, de ummeia dzia de homens em cales, sentados no cho do ptio, com as plpebras descidas sobre

    ginas. Uma toada de leitura em coro como se estivessem a rezar uma ladainha. Fosse como fosse, pe a dada altura se estabelecera entre os aprendizes uma certa hierarquia, e de entre todos o meu pai contrado o seu aluno dilecto. Num domingo de manh, um dos apanhadores do ch surgiu entre portasa folha impressa nas mos pedindo que lhe ensinasse a ler o x. O aluno trazia a algibeira da caulada e o papel nas mos. O meu pai mandou-o avanar at junto da mesa. Era o aluno dilecto.

    questo que o aluno dilecto no vinha s, trazia um problema com ele. O aluno lia todas as letras, liaprio h. At compreendia porque no se lia o h em certas palavras, e em casos especiais passava a ssociado de outras letras, criando um som, mas aquilo que no era capaz de decifrar era o valor do x.strou a folha onde estava escrita uma certa frase - Expuls-los-emos at sua ltima pegadaanhador de ch tinha comeado a ler do fim para o princpio, mostrando a sua invulgar percia pema, sua, , at... Mas o que dizer de Expuls-los-emos? O meu pai leu em silncio, depois soletrou ema, slaba a slaba, sublinhando o ex. E o rapaz repetiu - Expuls-los-emos. O rapaz releu vrias vezes a m xito, e no final, para compensar o seu mestre, despejou sobre a mesa uma algibeira cheia derado. Expuls-los-emos, repetia o aluno dilecto, muito agradecido. L adiante ficavam os picos azunte Namul a desafiarem os limites da beleza do cu. Com que ento. Expuls-los-emos, repetia o meuom que ento...

    Nesse mesmo dia, o meu pai cobriu-se de solenidade para dizer minha me que no havia manentrariar uma vaga de expulso to determinada. Falaram durante horas, no terrao da casa, e poncordaram que o melhor seria comearem a pensar num regresso urgente. O meu pai era um rercola, percebia o que se passava, tinha pressa. Expuls-los-emos. Mas essa pressa no correspondia gncia. Pretexto atrs de pretexto, fomos ficando, dilatando o prazo at ao ltimo momento. Viemosa de Joanesburgo, j depois dos ltimos contingentes. Eu tinha seis anos quando regressmos. Potmos terra do Sobradinho, onde nos venderam as cinco vacas malhadas e nos alugaram um cam

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    ma vermelha. J o disse. No estava relacionado mas, naquele dia, no ptio da Universidade, lembravs mugidos, da ordenha manual, das crias cadas no cho s tantas da madrugada, e tambm das raeerco, das limpezas que ambos faziam, a princpio mangueirada, depois por esguicho mecnico. Eu

    sistido compra do terreno emprestado, construo duma casa, e estava l, na tarde em que o pai e anauguraram e resolveram danar no terrao. Nessa altura, eu j tinha doze anos. A, apercebi-me d

    s deviam ter tido um mundo colorido antes da minha chegada. A minha me, adaptando uma toadva, dizia para o meu pai, a cabea encostada ao seu ombro - Era pobre e fiquei rica/De te ouvir o teiro/Estes campos no so campos / So a casa do chazeiro. Nada de mais embaraoso de surpreende uma histria de amor que nos deu origem. Uma histria desse tipo deve ficar a pairar sobre os lumo uma apario, sem nunca se referir. A sua filha nunca a si mesma se permitiu emocionar-se comada do chazeiro, como eles lhe chamavam. Fazia parte duma reserva que s a eles pertencia. A Solantos, a filha de dezanove anos, bastava-lhe pensar na passagem de cinco para duzentas e cinquenta v quatro anos, para ter a ideia de que possvel inverter o percurso do destino sem precisar de nomear

    ntradio. Mas j agora preciso referir um outro dado. Muita coisa se esfumou do que se passou sos Montes Namuli, e no entanto nem tudo desapareceu.

    Esfumou-se o caminho entre a nossa casa e a fbrica, esfumou-se a imagem da fbrica, no me lenome gentlico dos cestos que os apanhadores traziam aos ombros, quase no me recordo das li

    abetizao do meu pai, nem da forma como ento coxeava, ainda que saiba que em setenta e astava uma perna. Mas lembro-me da nossa sada em fuga pela estrada do Guru afora, e do camixa aberta onde transportvamos as malas cobertas por um oleado verde. Lembro-me que sada do Guu pai descobriu que no fugamos sozinhos, que o aluno dilecto se tinha instalado entre o oleado e as m

    mbro-me de ver o meu pai saltar da cabina, de se dirigir carroaria e de expulsar o aluno que no sabx. Lembro-me de retomarmos o caminho e de vermos que duas mos continuavam penduradas no seiro. Lembro-me de o meu pai pisar com a ponta das suas botas os dedos do aluno dilecto, de as mno resistirem ao impacto das solas, de o meu pai reentrar na cabina e pegar na catana que levvamos

    sento, disposto a cortar as mos do aluno dilecto agarradas ao taipal, e depois me lembro de ver, atrav

    ulo, um homem a correr no meio da estrada atrs do nosso camio, e de a sua figura ir minguando atfez uma curva e o homem e a estrada desaparecera de todo. Mas nada sei concluir sobre esta circunso ser que ela se incorporou no meu corpo, que ficou atada a ele, presa por nervos e ligamentos, como

    rna, um brao, um rgo. Levei-a comigo quando entrei para a escola e depois para a universidademigo todo o tipo de provas e exames finais, viajou com a minha pessoa por onde quer que eu fosse,ava comigo no momento em que o Murilo colocava um dos singles da Mimi Batista na geringona que o

    dar, na penso do Campo Pequeno, ameaando-me de um perigo qualquer - Tu no te metas comnte. Olha que so do piorio... Ah! O que eu me ria de Murilo Cardoso.

    Eu calculava que o estudante Murilo s falava desse modo porque no dispunha dos meus elementopusesse, seria outro. Como ele haveria de relativizar os factos se caminhasse como eu com duas imntraditrias ao ombro. Numa delas, os meus pais rodopiavam abraados, e era de jbilo, na outra est

    postos a cortar as mos a um homem, e era trgico. Prova de que to impossvel gerir o amor quao, quando tomados em absoluto. E o estranho que to pouco se possa fazer com essa sabedoria. deria eu expor semelhante questo a uma pessoa tomada de tantas certezas como Murilo Cardoso?

    TRSE agora, em vez de pensar na Noite Perfeita, principalmente passagem do seu conto magnfic

    omento em que cada uma de ns, segundo as palavras da concorrente, se ia aproximando do piano, emtudo isso, e s isso, eu regresso aos dias em que Murilo se sentava a meu lado, na sala de jant

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    spedaria, para desacreditar a pessoa de Gisela Batista.Regresso a esses dias, e penso que Murilo Cardoso foi o responsvel pela expectativa criada em tor

    a figura. No era em vo que se lhe referia como uma devassa, pintando-a como uma cantora de cdilosa, capaz de ir desencantar jovens sopranos s salas do Conservatrio para tentar limpar o seu perndano e ganhar a credibilidade que no merecia. Conhecendo Murilo como conhecia, eu ia fazendo os

    scontos mas, ainda assim, quando desci do autocarro 49 e comecei subir a rampa que conduzia Avenistelo, levada pelas irms Alcides, imaginava ir ao encontro de uma pessoa estroina com olhos pisados evinho. Droga, talvez umas pitadas de droga, talvez um cheiro a prostituio e cama. Um mistrio de suje, na minha curta experincia de dezanove anos, eu sabia existir mas no deslindar. Supunha uma quaividade obscura, sem disciplina nem regras, um deboche E na melhor das hipteses, imaginava umaliday portuguesa, nascida num bordel, uma cantora destinada a transformar-se num mito que, sustia, ainda no se tinha revelado.

    Era assim que eu pensava, e no entanto, todas as indicaes que as irms me iam dando funcion sentido contrrio, As irms Alcides no s a admiravam como depositavam na sua pessoa uma espe

    m limites. Uma das sopranos, quando nos aproximmos do local, referiu mesmo uma certa excepo nmportamento, o que revelava at que ponto seria uma figura casta. Nani disse - Gisela s temoblema. De vez em quando, saca do seu cigarro e fuma-o diante de quem quer que seja. No o er... E quando atravessmos o jardim que conduzia garagem da Casa Paralelo, as irms manifestaraa espcie de venerao que me parecia amedrontada. Reparei mesmo que Nani colocava o ded

    mpainha e retirava-o, como se receasse que o impulso se prolongasse de mais. O que significava qpunha de dois tipos de informao distinta, ou mesmo contraditria, e no momento em que a porragem comeou a correr e no havia ningum que a abrisse, compreendi que tinha vindo ao enconta figura, no mnimo, intrigante, ou at mesmo misteriosa.

    Passado todo este tempo, regresso a esse momento como se tivesse ocorrido esta manh. Dians, a porta da garagem deslizava por si. Quem fizera desencadear o comando tinha desaparecido, ounos no se encontrava vista naquele primeiro instante, mas quando avanmos pelo recinto adiante

    os se adaptaram ao espao, percebi que algum se encontrava sentado, de costas, diante de um piassoa rodou o corpo, tinha um brao apoiado sobre o rebordo do instrumento e nitidamente esperava pocontrvamo-nos paradas a alguns passos de distncia. A luminosidade de uns janelins incidia sobrura. A pessoa que inspirava aquele temor reverencial estava vestida com um fato-de-treino esbranquiaquela hora j adiantada da manh mantinha o fecho-clair corrido e o pela cabea como se tivesse acafazer exerccio fsico. Fez-me sinal para que me aproximasse. Assim procedi. Aproximei-me deixand

    ms para trs. Ela no se levantou, e tambm no me mandou sentar. Falou de baixo para bmetendo-me esse clssico estatuto de menoridade do mandado em face do mandador. Sem se desvimetro da sua pose hirta, aquela a quem as irms se referiam como maestrina, perguntou-me - sange? Consta que escreves letras. Fizeste uma para mim?

    Tudo se passava demasiado rpido, mas eu tive o vislumbre de que poderia tratar-se de um pro

    nsado para me surpreender e no de um simples acaso. Porm, se era para me testar em relao pcie de encomenda que me havia feito, no me encontrava propriamente desprevenida. Tinheparado e no me iria conceder a mim mesma qualquer tipo de folga em face daquela pessoa quaginava estroina, e me recebia envolta numa redoma de gelo. Sem lhe dar tempo a que me intimidmecei a recitar de forma ritmada, carregando nas vogais, abrindo-as, sacudindo-as, procurando transmo daquilo que eu mesma pretendia. Tinha aprendido a faz-lo. Recitei, agitando o meu punho, me prosseguia nas frases -

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    smola, esmola /Paizinhos /Algum em casa / Quando eu voltar/ Da Escola... E fui por ali adiante. Quminei, Gisela Batista desencostou-se do piano e mostrou ostensivamente o seu rosto - Ah! Andaste a sas do Roger Waters. Andaste, andaste. O que escreveste para aqueles rapazes bem mais interessis ntimo, mais forte, mais desafiador. Tem outra histria. Queres repetir o que disseste?no ia ficar calada. Perguntei - Mais desafiador, como?>> Repete - disse ela.

    Obedeci. Gisela Batista fazia questo de conhecer a letra por inteiro, e eu repeti-a. Quando cheguro, ela concluiu - Andaste, sim. Andaste a ler as coisas dele, e eu no vejo como possa fazer o quee seja com isso. Depois acrescentou - S que cada um como cada qual. E sem retirar o capuz, coivesse transida de frio, atacou o piano e fez tan tan tan! Tan ta tan! Martelou as teclas com fora comtesse numa bigorna. Repetiu. Quando se virou, olhou-me de frente pela primeira vez e eu confirmeava diante de uma mulher mais velha do que ns, grande, segura, mas se era formosa de rosto, na

    omento, no o parecia. Nem se parecia com a imagem que fora impressa na capa dos discos. De enpuz surgiam uns lbios demasiado desenhados, e alguma coisa era incomum no seu olhar. Queria sabprecisava de ouvir de novo o tan tan do piano. Estudaste msica? - perguntou. Ento a tens, senaquele banco, e tenta escrever qualquer coisa...

    Sentei-me. Seguiram-se momentos extraordinrios.Ela estava sentada ao piano e de vez em quando desencadeava aquele tan tan tan! de modo a guia

    quanto as duas irms permaneciam atrs, em p, encostadas a um armrio. Semelhante procedimento mtodo? O que seria ento? Precisava de me desviar daquele impacto. Passei os olhos pela garagem. uco de garagem. Alm do estrado para o piano, toda a diviso parecia ter sido assoalhada recentemendeira laminada. A ladear a entrada caam as abas de um reposteiro, do tecto liso assomava um projecta do estrado sobre o qual nos encontrvamos, havia cadeiras dispersas. Ao fundo, pendia um cortzento, e sobre uma pequena mesa, uma cafeteira com seu aparato completo. Um telefone de grande

    eto estava pousado directamente no cho, e o seu fio provinha de uma tomada distante, sobejando, enrum canto. Na parede lateral, uma fotografia domstica, de gro bastante mau, a umas cem vezes ampostrava uma criana diante daquilo que parecia ser uma casa de clima quente. A criana parecia corr

    eco de quem a fotografara, e atrs da casa trrea, por cima do telhado em forma de chapu, sobre molho de palmeiras, pronunciadamente vergadas. No havia dvida, a criana era ela, e tinha vindge para estar ali. Eu tambm. As irms Alcides tambm. Havia ento um elo de distncia que nos unia. ca coisa que nos unia, pensei. Depois pensei com rimas. A pessoa que tem a fixao das rimas vivehares de combinaes na cabea. Tem listas de palavras cabea, passa a vida a rimar palavras, a fis elementar da poesia, a funo mais adventcia da msica. Tinha dito o professor Castilho. Escavras para a msica, a vocao dos servidores, dos imbecis. A cabea dum poeta abaixo dos poetas, a

    quem chamam letrista. Solange, uma aspirante a letrista, uma imbecil, segundo o professor, e era assimme sentia naquele cenrio que ia escalpelizando num golpe de olho, enquanto trs pessoas, uma sent

    as em p, esperavam por mim. E agora? Agora eu havia guardado algumas rimas de reserva, mas no nhuma til que me acudisse mente. Era uma aluna, no passava disso. Se no fosse apenas uma a

    o estaria ali feita criana, com uma mestra sentada ao piano, minha espera. Sim, porque Gisela esperaesperava no sabia porqu. E as sopranos esperavam tambm. Lembrei-me do meu pai. Quando o

    ra ele, costumava dizer-lhe - Era um porto, era uma gare... O processo da grande criao no se exda pequena tambm no. A massa a mesma, s a velocidade a que se move que diferente. Acresceo esperes por quem vai partir / Espera por quem vai chegar. Nada de importante, era apenas uma soe me salvava daquela humilhao. Aproximei-me com essa soluo escrita no papel e entreguei-lha. Gtista recebeu-a com a indiferena com que um burocrata olha para uma certido. O capuz pela cabe

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    tan tan tan! de novo, agora de forma suave, e tentou encaixar a letra naquele andamento circaixava. E mais? - perguntou, sob aquele capuz. Como desenvolves a histria? O que repetes? Oes avanar? Lembro-me. Ela prpria parecia procurar uma forma de continuar as minhas palavras, e aptar ao seu andamento. Pediu-me que fosse ligeira, que saltasse sobre os ps, cuspisse nas biqueirasmagasse alguma coisa no cho. Eu disse - Quero que o bicho /da saudade / Tenha uma morte feliz /

    .. E assim por diante, tentando corresponder ao seu pedido. No era bom nem mau, era o possvelia entalando as palavras no tan tan produzido pelo piano. Conseguiu entalar as vrias frases. S ura Gisela retirou o capuz. O cabelo descomprimiu-se e comeou a espalhar-se volta da cabea. Recopara trs e sacudiu a grande trunfa liberta. Crespa. Fez uma volta sobre o banco do piano, com os jo

    guidos, perto do queixo, e perguntou-me - Cantas? Disse-lhe que no. Mas ela dirigiu-se-me de istindo - Tu cantas, no mintas.

    Porque haveria eu de mentir?No sabia responder mas compreendia que semelhante episdio no estava terminado. Mal acaba

    rapassar uma humilhao, caa no alapo seguinte. Canta qualquer coisa... -repetia Gisela Bamos, vamos! O que sabes tu de cor? Era de facto humilhante que eu no fosse capaz de voltar as cuela mulher vestida de fato-de-treino branco e de um halo de frieza. Sem me olhar, Gisela Batista insanta qualquer coisa Canta uma cantiga portuguesa, uma cano irlandesa, at uma da Franoise Hades cantar se quiseres. Ou o Yellow Submarine, por exemplo. Tambm podes cantar uma msica de igremesmo para ouvir o teu tim tim...

    Gisela Batista troava, por certo, da minha pessoa, eu era uma aluna, ela era a torturadora. Vireicontrei as duas irms p, junto ao armrio, mas de nenhuma delas provinha o mais leve sinal de sontinham-se impassveis. Eu ia dizendo para mim mesma - Liberta-te desta situao, Solange, e que teemenda. Porque eu iria libertar-me, sim. Iria fazer coisa que me permitisse pr-me a andar definitivami para fora, e para sempre. Tudo o que eu desejava naquele momento, era voltar para o meu qrigada daquela insistncia e da pessoa que a provocava. Mas porque exercia um poder to extraorduela mulher, sentada no banco dum piano com uma indumentria assptica? Porque emanava da sua

    a fora de seduo to imperiosa, to inexplicvel? De sbito vinham-me cabea as frases provveis. Pensei em salvao. A pessoa que estava na minha frente deveria odiar os cantos chilreja. Salvao. Pensei. Olhei para o lado e entoei em surdina, como no coro de que fazia parte a minha capela do Sobradinho - Engrandece o Senhor e o esprito se alegrou... E fui por ali fora, s voltas c

    z, louvando a Deus e as suas benfeitorias, pensando que a desgostava, me arrastava a seus olhos piar do ridculo. Mas ela escutou-me em silncio e pediu-me que repetisse. Repeti, espera que d

    omento para o outro me fizesse sinal para me calar e mandasse regressar a casa, e mais uma vez ela dminha, cantilena escorregar at ao fim, e quando o silncio se interps entre ns, Gisela perguntou-mee queres tu da vida?

    Olhei de novo para trs e verifiquei que as irms Alcides, at ento encostadas a um armrcontravam agora sentadas sobre um banco corrido. Estavam srias, e provavelmente aquilo em que e

    via envolvido era uma audio, s que eu nunca tinha assistido a nenhuma audio, muito mrticipado, sem querer tinha-me transformado em candidata a alguma coisa que no sabia o que fosse. Tgum ali estivesse a troar de mim. Ou ento, aquele formato consistia numa troa mtua e recprosse caso estaramos todas no mesmo plano, quatro mulheres, muito srias, em estado de solenidaarem umas das outras. De qualquer modo, eu no sabia responder questo. Gisela Batista perguntonovo - Sim, o que queres tu da vida?

    Balbuciei umas palavras - Nada, isto , acho que muito pouco, acho que quase nada.

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    No percebi muito bem. Disseste nada ou quase nada? Define l esse quase, isso que me interesnos que esse quase seja alguma coisa, e o que tu realmente queres, e se bem entendo, nada...

    Desorientada, respondi que sim, e fiquei espera, mas quando eu pensava que Gisela me tomava inerme minhoca da terra que se contentasse com um pouco de p e lama, ela disse-me - Ambiem nada quer, tudo quer. Queres uma coisa que no deste mundo, no verdade? Compreendo

    a, ns, eu e elas... - E apontou para as irms - Ns sabemos o que queremos e trata-se de algumam concreta, bem identificvel, uma coisa bem deste mundo. Sabes o que queremos? - A vestal olhavs olhos. Queremos encantar. Queremos vencer encantando, seduzindo. To simples quanto isto, ncondemos. Queremos encantar pessoas, milhares, milhes de pessoas. Queremos ser maiores do quea delas e do que todas no seu conjunto, queremos ter uma habilidade que elas no tm. Queremos ens pelos ouvidos, pelos olhos, pelos nervos, pelo corpo todo. Entendes? Por isso, elas vo ficar parad

    pera, e ns na sua frente, seduzindo-as, colando-as aos seus lugares, hipnotizando-as, desvairando-as sso talento. Plateias, salas inteiras, recintos repletos de gente submetida por encantamento nossa meremos o mundo. Queremos fazer amor com o mundo, entregando-lhe a nossa msica e recebendca tudo o que o mundo tem para nos dar. S isso. Ns no temos medo das palavras. A msica serveo. isso que queremos, quem no o entender no serve para esta funo. A pergunta que eu te faguinte - Queres sair desse local absurdo, onde te escondes feita um bichinho mudo, para te mostrares ennosco? Para vires luta e encantares pessoas? Responde.

    possvel que as palavras no tenham sido propriamente estas, se no eram idnticas, pelo muivaliam-se, e produziram sobre mim o efeito que Gisela anunciava querer exercer sobre o pblico. Eu eralisada, e deveria dar-lhe a imagem de uma criatura em plena desorientao, uma rapariga afundadncio e estupor, j que a maestrina, a certa altura, pareceu desistir daquele raciocnio rocambolescode me levava, e onde eu me perdia, e terceira tentativa de obter uma resposta, desistiu de se esfodou de tom. Endireitou-se no banco, olhou-me de baixo a cima e fez um gesto rotativo com a mo - >.

    Maria Lusa recomeou a chorar - Eu tambm quero dizer o mesmo. Eu tambm quero recome

    ero ter coragem. J tinha posto de lado o cardigan com que a cobrimos, mas agora vou voltar a us- distriburem os seus solos, irei fazer o meu melhor, irei sim. Porque ela est aqui, est ali, est a olhardas ns...

    Tudo se passava rpido. No tnhamos connosco nenhuma bebida alcolica nem copos adequadosemos um gesto de libao, alegres de to tristes. Atrs dos copos imaginados, estavam os nossos rimosos, e os olhos de Gisela surgiam vermelhos e desmesuradamente grandes. Eu no queria obsses detalhes, naquela circunstncia, mas no podia deixar de ver que ela tinha perdido pestanas e assua, embora fartas, eram agora mais longas e finas. Como se estivessem esticadas e coladas umtras pelo sal das lgrimas. Todo o seu aspecto era o de algum cujos pigmentos da juventude tivesmaiado, de modo a defenderem-se por um tempo indeterminado. Havia uma espcie de hibernao dgor corporal. E contudo, a minha convico era a de que a sua parte anmica, por contraste, se refora

    u olhar vagueava em volta e encontrava sinais desse reforo em vrios cantos da garagem.m, havia vrios sinais.

    O que significava que a sua reanimao no acontecia naquele momento, j vinha de dois ou trss, pois os cortinados vermelhos haviam sido repostos e a fruta exalava perfume na cesta da entrada. eteira, sempre rodeada de borras, tinha sido arrumada e limpa, e parecia nova. Os mveis que hartido com a carpete jibia, todos tinham regressado, excepo da carpete. Isto , Gisela tinevenido. Incluindo aquele discurso no qual a invaso do corpo transfigurado fazia explodir uma nova l

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    a inteno de inqurito pericial, inclusive com a ideia peregrina de que poderia vir a dar com a lnguntes, poderia vir a dizer em pblico que a Micaia no se tinha ido embora para a sua terra, mas sim queorrido ao sair de um banho prolongado nos lavabos da garagem. Ns estvamos aterradas com asmando de Nani. Depois de tanta conversa em voz baixa, tanto choro, tanto ch, tanta msica posmas cantada, depois de tudo isso, Nani. a volvel, a no fivel, j quase no final, queria inverter to

    cificao alcanada. O espelho do fim do dia de Junho, liso e brilhante, a superfcie de um lago, multipnossa apreenso. Maria Lusa Alcides dizia - Irm, tu tem tento na lngua, tu v como falas... Mas Gtista, temporariamente envelhecida, no precisava de muitos mais argumentos para alm daqueles que am conhecidos. Tomou o comando, pressionou-o e a porta comeou a escorregar. Abriu-se de par em pde de Junho entrou por ali dentro, formosa. A rua era uma pintura metida num quadro, uma pintura

    vores. A porta estava escancarada para a rua. Quem quisesse sair, seria s dar um passo virar as costaembora. Gisela no falava, mas era como se dissesse - Aqui no se prende ningum. Quem desejar

    nhece as regras. Ainda no deu nada quem ainda no deu tudo Quem para si guarda uma parte que der, comea por a si mesmo se roubar. E assim por diante. Eu sabia, eu conhecia Gisela Batista. Ali estav p, no vo do quadro pintado pelas rvores a exigir de novo o nosso compromisso. Gisela falaveco de Nani.

    Eu s me perguntava onde iria Gisela buscar aqueles discursos to slidos. Em que colgiosudado? Era uma formao adquirida na frica do Sul? Num colgio de Montreal onde se ensinasstodo para o discurso? O raciocnio que acabava de expor, no vo da garagem aberta, apresentava-sestrutvel como uma emanao radioactiva. Que algum experimentasse destru-lo por compresshares de toneladas, no conseguiria. A prpria Nani deixou-se ficar. No se moveu. A porta voltou a fediante daquelas rvores, o nosso mundo duplicado pelo espelho refez-se, e ns entrmos de novo no esexpedio. No final, algum disse - Querida Gisela, ainda bem que recomemos. Uf! J tardava.

    Quem o disse, fui eu.Ento o pano comeou a correr sobre Madalena Micaia.O luto em redor da nossa companheira com voz de jazz passou a ser muito mais uma questo de p

    a mentira em que envolvamos o seu desaparecimento, do que pela ausncia da sua pessoa. A prescontrar substituta ocupou o espao que pertencia sua imagem. Em breve ns ficmos envolvidasiedade da sua substituio, e at mesmo Lucena, que ignorava o que se tinha passado no lavatrragem, estar presente na audio de uma nova cantora e aprovar.

    A substituta uma rapariga baixa e forte, que provm do Conservatrio mas tambm deseja fugir ds seus corredores sombrios. Escutando-a no se poder deixar de pensar que uma substituio razando Gisela estender o brao e disser ao mundo que ela est ali em vez de Madalena Micaia. Lucena, pdar a coreografia ao longo do ms de Junho, porque a nova composio revela uma outra morfologi

    rpos e obriga a reajustamentos drsticos. Lucena e o maestro Capil esto de acordo -A grande novide Gisela, o corpo de Gisela, a pose madura de Gisela, levar a que a maestrina se isole como primeira palco. Ns estaremos todas de acordo, temos sete meses de trabalho em conjunto, j somos uma

    arda, a questo ser a expectativa criada ao novo elemento proveniente da formao clssica e questa de corredores sombrios mas tambm recusa a designao de vocalista. No entanto, como se move mm aprendeu a andar trinta centmetros acima do cho, nem a voar pela garagem antes de danar, comonteceu a ns, acaba por aceitar o lu