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George Orwell 

LUTANDO NA ESPANHA 

utando na Espanha

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No Quartel Lênin em Barcelona, na véspera de meu ingresso na milíciai um miliciano italiano em frente à mesa dos oficiais.

ra um moço de seus vinte e cinco anos de idade, com expressãoarrancuda, espadaúdo, cabelo meio avermelhado e louro. O quepe deouro, de bico, estava repuxado de modo feroz sobre um dos olhos, e

erfil para mim, tinha o queixo encostado ao peito, olhando comerplexidade um mapa que um dos oficiais abrira sobre a mesa. Algumoisa, em sua expressão fisionômica, causou-me profunda emoção. Erosto de um homem que assassinaria outro, ou daria sua própria vidaor um amigo, o tipo de rosto que se espera encontrar num anarquistambora com toda a probabilidade ele fosse comunista. Encontravam-saquela expressão, candura e ferocidade ao mesmo tempo, bem comoeverência patética que os analfabetos possuem por aqueles que julga

eus superiores. Estava mais do que claro que ele não entendia patavo mapa, cuja leitura e interpretação deviam, a seus olhos, constituirstupenda façanha intelectual. Eu não sei por que, mas poucas vezes lguém que me agradasse de modo tão imediato. Enquanto elesonversavam em torno da mesa alguma observação feita por um delesssinalou o fato de eu ser estrangeiro. O italiano ergueu a cabeça eerguntou imediatamente:

Italiano?No, Inglês. Y tú? - retorqui, em meu fraco espanhol.

Italiano.

Ao sairmos daquela sala, ele veio em minha direção e apanhou-me amão com força. É estranha a afeição que podemos sentir por um

esconhecido! Era como se o espírito dele e o meu conseguissem, pom instante, ultrapassar o obstáculo do idioma e das tradiçõesiferentes, e se encontrassem na maior intimidade. Eu esperava que eostasse de mim tanto quanto eu gostava dele, mas também sabia queara conservar minha primeira impressão a seu respeito seria precisoão velo pela segunda vez, sendo desnecessário dizer que foixatamente isso o que aconteceu. Sempre se estava fazendo tais tipose contato e conhecimentos na Espanha.

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aço esta referência ao miliciano italiano porque ele ficou vivamentereso à minha lembrança. Com seu uniforme em mau estado expressão fisionômica feroz e patética, ele constitui para mim a visãopica da atmosfera especial daquela época. Está entrelaçado a todas

minhas recordações daquele período da guerra, as bandeiras vermelhm Barcelona, os trens descoloridos repletos de soldados mal trajadosue rumavam para a frente de luta, as cidades pardacentas e assoladaela guerra próxima, as trincheiras enlameadas e regeladas nas

montanhas.

sso foi em fins de dezembro de 1936, há menos de sete meses deuando escrevo e, no entanto, trata-se de período que já se esfumou eistância tremenda no tempo. Os acontecimentos subseqüentespagaram tudo aquilo de modo muito mais completo do que obliteraram935, ou mesmo 1905, a bem da verdade. Eu chegara à Espanha comerta intenção de escrever artigos para a imprensa, mas ingressara na

milícia quase em seguida à minha chegada, porque naquela época, eaquela atmosfera, isso pareceu ser a única coisa que podia fazer. Osnarquistas continuavam detentores do controle virtual da Catalunha, eevolução prosseguia renhida. A qualquer pessoa que estivesse lá,esde o início desses acontecimentos, provavelmente pareceu, mesm

m dezembro ou janeiro, que o período revolucionário estavaerminando; mas para uma pessoa que vinha da Inglaterra, o aspecto darcelona era alguma coisa de surpreendente e arrebatador. Pelarimeira vez em minha vida eu estava numa cidade onde a classeabalhadora se encontrava no poder. Praticamente todas as edificaçõe

osse qual fosse seu tamanho, foram tomadas pelos trabalhadores encontravam-se ornamentadas com bandeiras vermelhas, ou com aandeira vermelha e negra dos anarquistas, e em todas as paredes e

muros viam-se a foice e o martelo, e as iniciais dos partidosevolucionários, enquanto quase todas as igrejas foram estripadas, euas imagens queimadas. Aqui e ali, as igrejas estavam sendoistematicamente demolidas por turmas de trabalhadores. Em todas asasas comerciais e cafés encontrava-se a inscrição dizendo que foramoletivizadas, e até mesmo os engraxates o foram, trazendo suas caixe apetrechos nas cores preto e vermelho. Os garçons e lojistas

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ncaravam as pessoas frente a frente e tratavam os fregueses comoeus iguais. As formas servis e cerimoniosas de tratamentoesapareceram temporariamente, e ninguém dizia mais "Señor", ouDon", ou mesmo "Usted", e todos se chamavam "Camarada" e "Tu",izendo "Salud!" ao invés de "Buenos dias". Dar gorjetas era proibido p

ei, e uma de minhas primeiras experiências ao chegar fora receber um

arabanda do gerente de hotel, por querer dar gorjeta ao ascensoristaNão havia automóveis particulares, e todos aqueles existentes tinhamido requisitados, enquanto bondes e táxis, bem como grande parte doemais meios de transporte encontravam-se pintados de negro eermelho. Os cartazes e faixas revolucionários estavam por toda a parstendendo-se das paredes em vermelhos e azuis vivos, que faziam ooucos anúncios restantes parecerem pequenas manchas de lama. Ao

ongo da Ramblas, a larga artéria central da cidade onde multidõesndavam sem cessar, de um para outro lado, os alto-falantes berravams canções revolucionárias por todo o dia e adentravam-se pela noite.

Mas o aspecto proporcionado pelas multidões constituía o ponto maisstranho de todos. Em sua aparência exterior, tratava-se de cidade naual haviam praticamente deixado de existir as classes ricas. Comxceção de pequeno número de mulheres e estrangeiros, não haviaessoas "bem vestidas", em absoluto. Virtualmente todos usavam roup

rutas de trabalhadores, ou macacões azuis, ou ainda alguma variaçãoo uniforme miliciano. Tudo isso era estranho e' comovedor. Muita coisu não compreendia e, de certo modo, não me agradava, mas reconhe

mediatamente a situação como um estado de coisas pelo qual valia aena lutar. Eu acreditava, ao mesmo tempo, que as coisas eram aquiloue pareciam ser, que realmente se tratava de um Estado dosabalhadores, e que toda a burguesia fugira, fora morta ou se passaraoluntariamente para o lado dos trabalhadores, e não percebi que gran

úmero dos burgueses, gente bem de vida, estava simplesmenteissimulado e disfarçado em proletários, enquanto perdurasse aquelaituação.

untamente a isso havia certa parte da atmosfera ruim de guerra. Aidade apresentava aspecto sombrio e desarrumado, as ruas e edifícioncontravam-se em mau estado de conservação, à noite as ruas tinhaouca iluminação devido ao receio às incursões aéreas do inimigo,

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ma escola de equitação e enormes pátios pavimentados comaralelepípedos, tendo sido quartel de cavalaria, capturado durante as

utas de julho. Minha centúria dormia num dos estábulos, debaixo dosochos de pedra onde ainda estavam escritos os nomes dos cavalos.odos esses animais foram mandados à linha de frente, mas o lugarontinuava cheirando a urina e a aveia estragada. Fiquei naquele quar

erto de uma semana, e a recordação principal que guardei foram osheiros cavalares, os toques inseguros das cometas (todos os nossosorneteiros eram amadores, e travei conhecimento com os toquesspanhóis, pela primeira vez, ouvindo-os fora das linhas fascistas), aatida cadenciada das botinas ferradas no pátio do quartel, asrolongadas paradas matutinas ao sol de inverno, as renhidas partidase futebol onde cinqüenta homens se empenhavam de cada lado, noaibro da escola de equitação. Talvez houvesse uns mil homens nouartel, e outras tantas mulheres, além das esposas dos milicianos, que encarregavam de fazer a comida. Havia, ainda, mulheres servindoas milícias, embora não muitas. Nas primeiras batalhas combateram

ado a lado com os homens, como se fosse a atitude mais natural domundo. É uma coisa que parece natural, em época de revolução. Mas déias já estavam em transformação. Os milicianos tinham de sermantidos fora da escola de equitação, enquanto as mulheres recebiam

einamento, porque riam delas e as embaraçavam com sua galhofa.Alguns meses antes, ninguém teria achado graça alguma ao ver asmulheres empunhando armas.

odo o quartel se encontrava naquele estado de sujeira e desordem aoual a milícia levava todos os edifícios por ela ocupados, e que parecem dos subprodutos da revolução. Em qualquer canto onde se olhassestavam pilhas de móveis quebrados, selas inserviveis, capacetes

metálicos de cavalarianos, bainhas vazias de sabres e alimentoeteriorado. Havia um desperdício espantoso de alimentos, em especipão. Só de meu alojamento era jogada fora toda uma cesta de pão, a

ada refeição, coisa verdadeiramente deplorável quando se sabia quesse gênero estava faltando à população civil. Comíamos em compridarmações de mesa, tendo por pratos um vasilhame permanentementengordurado, e bebíamos um negócio horrível, chamado porrón. Umorrón é um tipo de garrafa com bico fino, do qual espirra um jato de

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obertor". Eis uma frase que faz estremecer quem já tenha dormidouma trincheira.

m meu segundo dia no quartel, teve início o que bem humoradamentra chamado "instrução". De começo, houve cenas da mais pavorosaagunça. Em sua maioria os recrutas eram rapazinhos de 16 ou 17 an

indos das ruas pobres de Barcelona, cheios de ardor revolucionário mnteiramente ignorantes quanto ao significado da guerra. Era impossíveazer com que se mantivessem em forma. Não havia qualquer disciplinquando um deles não gostava de determinada ordem saía das fileira

a discuti-la veementemente com o oficial. O tenente que nosroporcionava instrução era um rapaz forte e de expressão animada, q

ora anteriormente oficial do Exército Regular e ainda o parecia ser, coeu uniforme impecável e porte marcial. Por curioso que pareça, era

ocialista sincero e ardoroso. Ainda mais do que os próprios homens, ensistia na completa igualdade social entre todas as patentes. Lembro-e sua surpresa dolorida, quando um recruta ignorante dirigiu-se a eleatando-o como "Señor".

O quê? Señor? Quem me chama de Señor? Pois não somos todosamaradas?

Duvido muito de que tal atitude lhe facilitasse o trabalho. Enquanto issos recrutas mais bisonhos não recebiam qualquer preparo que lhesudesse ser útil. Disseram-me que os estrangeiros não estavambrigados a comparecer à "instrução" (e notei que os espanhóis tinhamrença patética de que todos os estrangeiros conheciam melhor asoisas de milícia do que eles próprios), mas naturalmente apresentei-mom os demais. Estava ansioso por aprender como utilizar uma

metralhadora, arma que jamais tivera a oportunidade de manejar. Para

meu desalento, verifiquei que não nos ensinavam coisa alguma aespeito do uso de armas. A chamada "instrução" era apenas ordemnida, e do tipo mais antiquado e estúpido: direita-volver,squerda-volver, meia-volta-volver, marchar em continência em colunae três, e todo o resto de bobagens inúteis que eu aprendera aos quinnos de idade. Era um tipo de treinamento bastante extraordinário adotar, quando se tratava de preparar um exército para guerrilhas. Est

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laro que se há apenas alguns dias para treinar-se um soldado, é precnsinar-lhe as coisas de que mais necessitará: como se abrigar, comovançar em terreno descoberto, como montar guarda e construir umarapeito e, acima de tudo, como utilizar suas armas. Mas aquela

montoeira de crianças entusiasmadas, que iam ser despejadas na linhe frente dentro de poucos dias, não aprendeu sequer a disparar um fu

u a tirar o pino de uma bomba. Naquela época eu não percebia que isevia-se ao fato de não haver armas para distribuir aos homens. Namilícia do P .0. U. M. a escassez de fuzis era tão grande que os soldadecém-chegados à frente de luta tinham sempre de recebê-los dosomens aos quais iam substituir. Em todo o Quartel Lênin acredito queão houvesse outros fuzis além dos utilizados pelas sentinelas.

Depois de alguns dias, embora continuássemos a ser uma malta huma

e comparada a qualquer padrão comum, éramos considerados prontoara ser vistos em público, e pelas manhãs marchávamos pelos jardina cidade, no morro que fica por trás da Plaza de España. Era o terrenomum para exercícios de ordem unida de todas as milícias partidáriasmais os carabineiros e os primeiros contingentes do Exército Populaue estava em formação. Naqueles jardins públicos tinha-se uma visãostranha e reconfortante. Por todos os seus caminhos e passeios, entrs canteiros de flores, escolas e companhias de homens marchavam,gidas, de um para outro lado, estofando o peito e procurandoesesperadamente assemelhar-se a soldados. Estavam todosesarmados e nenhum deles envergava uniforme completo, embora n

maioria dos casos o uniforme da milícia estivesse a rasgar-se e estoureste ou naquele ponto. O treinamento era sempre o mesmo. Por trêsoras marchávamos de um para o outro lado (o passo espanhol de

marcha é muito curto e rápido), depois fazíamos alto, dava-se "fora de

orma" e íamos em bando sedento a uma pequena mercearia que ficava subida do morro e cujo dono estava fazendo um negócio dos maisrósperos, com a venda de vinho barato. Todos se mostravam meusmigos, e como inglês eu constituía algo assim como uma curiosidades oficiais carabineiros prestavam-me grande deferência e pagavam-mbebida. Enquanto isso, todas as vezes em que eu conseguia encurraosso tenente em um canto, bradava para que me instruíssem no uso

metralhadoras. Eu tirava o dicionário do bolso, e começava a falar-lhe,

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om meu espanhol dos mais infames:

Yo sé manejar fusil. No sé manejar a metralladora. Quiero aprendermetralladora. Cuando vamos aprender a metralladora?

A resposta era invariável: um sorriso embaraçado e a promessa de quaveria instrução sobre metralhadoras mañana. Não é preciso dizer qusse mañana nunca chegou. Passaram-se diversos dias, os recrutasprenderam a marchar com passo certo e ficar em "sentido" com poseuase marcial, mas quando muito sabiam o lado pelo qual saía a bala m fuzil. Certo dia um carabineiro armado passou por nós enquantostávamos parados, e deixou que examinássemos sua arma. Foi entãoue se viu que em toda a minha seção ninguém, a não ser eu, sabiaequer carregar a arma, e muito menos como fazer pontaria com ela.

Nesse período eu travava minhas batalhas costumeiras com o idiomaspanhol. Além de mim havia apenas um inglês no quartel, e entre osficiais não se achava um só que falasse qualquer coisa de francês Asoisas não eram fáceis, para mim, pois quando meus companheirosalavam um com o outro faziam-no em catalão O único modo pelo quau conseguia tocar à frente era levar por toda a parte um pequenoicionário, que arrancava do bolso nos momentos de crise. Mas era

referível ser estrangeiro na Espanha a selo na maioria dos outrosaíses. Como é fácil fazer amigos na Espanha! Em um ou dois dias erumerosos os milicianos a chamar-me pelo primeiro nome,nsinando-me os truques e peculiaridades do lugar e da vida, errebatando-me com sua hospitalidade. Não estou escrevendo um livroe propaganda, e não pretendo apresentar a milícia P.O.U.M. como umoisa ideal. Todo o seu sistema apresentava falhas sérias, e os próprioomens formavam um bando bastante heterogêneo, pois a essa altura

ecrutamento diminuía e muitos dos melhores elementos encontravama linha de frente, ou já haviam morrido. Sempre existia entre nós umaerta percentagem inteiramente inútil. Rapazinhos de 15 anos eram

evados a alistar-se pelos seus pais, e isso declaradamente devido àsez pesetas diárias que formavam o soldo do miliciano, bem como porausa do pão que a milícia recebia em quantidade e conseguia mandaara casa dos pais. Mas desafio qualquer um a que fosse lançado, com

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u fui, em meio à classe trabalhadora espanhola - ou talvez devesseizer classe trabalhadora catalã, pois à parte de alguns aragoneses endaluzes eu só me dava com os catalães - e não ficasse impressionaor seu sentimento íntimo de decência e, acima de tudo, por suaanqueza e generosidade. A generosidade de uni espanhol, no sentidoomum da palavra, mostra-se às vezes quase embaraçosa. Quando se

he pede um cigarro, ele quer que aceitemos todo o maço, e além dissxiste a generosidade num sentido mais profundo, uma verdadeiraargueza de espírito que encontrei muitas vezes nas circunstâncias asmais desesperançadas. Alguns dos jornalistas e outros estrangeiros quiajaram pela Espanha durante a guerra declararam que, entre si e emegredo, os espanhóis se mostravam amargamente ressentidos com ouxilio recebido do exterior. Tudo quanto posso dizer é que jamaisbservei qualquer demonstração desse tipo. Recordo-me bem quelguns dias antes de deixar o quartel, chegaram da linha de frente, emcença, diversos combatentes, e falavam animadamente de suasxperiências, mostrando-se cheios de entusiasmo por soldadosanceses que estiveram a seu lado em Huesca. Os franceses eram

muito valentes, diziam eles, e acrescentavam automaticamente: "Másalientes que nosotros". Está claro que exprimi dúvida, pelo que elesxplicaram que os franceses conheciam melhor a arte da guerra, eram

mais hábeis com as bombas, metralhadoras e assim por diante. Comudo isso, seu comentário era significativo. Um inglês preferiria cortar arópria mão a dizer uma coisa dessas.

odos os estrangeiros que serviam na milícia passaram suas primeirasemanas aprendendo a amar os espanhóis e a ficar exasperados porlgumas de suas características. Na linha de frente a minha própria

mpaciência atingia as raias da fúria, em determinadas ocasiões. Os

spanhóis são bons em muitas coisas, mas não na guerra. Todos osstrangeiros ficam atônitos diante de sua ineficiência, e acima de tudoor sua impontualidade enlouquecedora. A palavra espanhola queenhum estrangeiro consegue deixar de aprender é mañana - "amanhem sentido literal, "o amanhecer"). Sempre que humanamente possívs assuntos de hoje são transferidos para mañana. Isso é tão conhecidue os próprios espanhóis fazem piadas a respeito. Na Espanha não hoisa alguma, desde uma refeição até uma batalha, que tenha lugar à

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ora marcada. Via de regra as coisas acontecem tarde demais, masomente de vez em quando - de modo que não se possa contar sequeom esse retardamento - acontecem cedo demais. Um trem que está dartida marcada para as oito horas sairá, em condições normais, emualquer hora entre nove e dez, mas talvez uma vez por semana, graçveneta pessoal do maquinista, ele saia às sete e meia. Essas coisas

cabam um pouco chatas. Em teoria, eu admiro muito os espanhóis poão partilharem nossa setentrional neurose cronométrica, mas poresgraça também sofro dela.

Depois de boatos sem fim, muitos mañanas e retardamentos, recebeme repente ordens para seguir rumo à linha de frente, com duas horas ntecedência, quando grande parte de nosso equipamento ainda estavor ser distribuída. Formaram-se tumultos tremendos no depósito do

ntendente, e ao final das coisas eram numerosos os que tinham de paem estarem com todo o seu equipamento. O quartel ficara logo replete mulheres que pareciam ter brotado do chão, e estavam ajudandoeus homens a enrolar os cobertores e preparar suas bolsas. Para mimoi bastante humilhante ter de aprender como envergar minhasartucheiras, e aprender com uma espanhola, a esposa de Williams, outro miliciano inglês. Era uma criatura gentil, de olhos negros e

ntensamente feminina, com toda a aparência de que o único trabalho ua vida estaria em embalar um berço, mas que na verdade lutararavamente nas batalhas travadas nas ruas, em julho. A esta altura elastava carregando uma criancinha nascida dez meses depois de iniciaguerra, criança essa que talvez tivesse sido gerada atrás de umaarricada.

O trem deveria partir às Oito, e eram oito e dez quando os oficiais,exados e suando em bicas, conseguiram reunir-nos na praça do quarembro-me com toda clareza daquela cena ocorrida à luz dos archotesclamor e a animação, as bandeiras vermelhas tremulando à luz dosrchotes, as fileiras cerradas de milicianos com mochila às costas e osobertores enrolados e atravessados no ombro à bandoleira, e mais osritos e bater de botinas e vasilhas de estanho nas quais comíamos e,nalmente, o pedido hercúleo e vitorioso para que se fizesse silêncio. Fuando algum comissário político, de pé sob uma imensa bandeira

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cima do nível do mar, e fazia um frio desgraçado, com nevoeirospesso que vinha em turbilhões sei lá donde. Entre Sietamo e

Alcubierre o motorista do caminhão perdeu a noção do caminho (isso fm dos traços característicos da guerra) e ficamos rodando horas a fioaquele nevoeiro. Era bem tarde quando chegamos a Alcubierre, elguém nos guiou por pântanos de lama até um estábulo de mulas, on

os acomodamos na palha e logo começamos a dormir. A palha não éuim para dormir quando está limpa; não é tão boa quanto o feno, masmelhor do que o colmo. Foi somente de manhã, com a luz do dia, que

escobri, no que fora nossa cama para a noite, grande quantidade deedaços de pão, jornais rasgados, ossos, ratos mortos e latas de leite,azias e amassadas.

stávamos perto da linha de frente, e suficientemente perto para

odermos sentir o cheiro característico da guerra, cheiro esse que, emminha experiência, é o de excrementos e alimentos deteriorados.Alcubierre jamais fora bombardeada pela artilharia, encontrando-se emmelhor estado do que a maioria das aldeias situadas logo por trás danha de batalha. Ainda assim, acredito que mesmo na paz não fosseossível viajar naquela região da Espanha sem se ficar impressionadoela miséria esquálida e própria das aldeias aragonesas. Elas sãoonstruídas como fortalezas, formando um amontoado de pequenasasas de barro e pedra ao redor da igreja, e mesmo na primavera é difncontrar uma flor por ali. As casas não têm jardim, apenas quintaisnde aves domésticas descarnadas ciscam no meio de montes destrume. O tempo estava horrível, alternando-se entre chuva e nevoeir

Os estreitos caminhos de terra encontravam-se transformados em mare lama, com buracos de dois palmos de profundidade em diversosontos, e por ali os caminhões lutavam, com rodas a resvalar e os

amponeses seguiam com seus carrinhos desajeitados, puxados porleiras de mulas que às vezes eram até seis, sempre uma atrás da outO vaivém constante dos soldados reduzira a aldeia a um estado deujeira indescritível. Ela não possuía então, e jamais possuíra antes,oisa tal como um banheiro ou esgoto de qualquer tipo, e não havia umó metro quadrado onde pisar sem ser preciso olhar antes. Desde muiigreja local estava sendo usada como latrina, e o mesmo ocorria com

odo o campo por boa distância ao redor. Jamais consigo pensar nos

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meus dois primeiros meses de guerra sem pensar também nos campoe restolho, com as beiras orladas de excrementos.

assaram-se dois dias e não nos deram fuzis. Depois de se ter estadoo Comitê de Guerra e examinado a carreira de buracos na parede -uracos de descargas de fuzil, pois diversos fascistas foram executado

li - já se tinha visto tudo quanto Alcubierre podia apresentar em matére paisagem. Na linha de frente era patente que as coisas andavamalmas, sendo muito pequeno o número de feridos que vinham de lá. Animação maior foi a chegada de desertores fascistas, trazidos sobuarda da linha de frente. Muitos dos homens que se opunham a nósaquela parte da linha de batalha não eram absolutamente fascistas,penas pobres conscritos que faziam seu serviço militar quando a guerompera e nada mais queriam do que fugir. De vez em quando

equenos grupos deles arriscavam-se a atravessar as linhas, vindo paosso lado. Não há qualquer dúvida de que seu número seria maior, ss seus parentes não estivessem no território fascista. Esses desertore

oram os primeiros fascistas "verdadeiros" que eu já vira até então, eerifiquei que eram indistinguíveis de nós mesmos, a não ser pelo fatosarem macacões cáqui. Mostravam-se sempre tremendamente

amintos ao chegar - o que era natural depois de um ou dois dias deuga, andando pela "terra de ninguém", mas sempre alguém indicavasso de modo triunfante, como prova de que as tropas fascistas morria

fome. Observei um deles recebendo comida numa casa de camponêO espetáculo era triste. Moço alto, de seus vinte anos, o rosto

centuadamente ressecado pelo vento e as roupas em frangalhos,stava acocorado diante do fogo e enfiava o ensopado pela boca adenm velocidade desesperada, e por todo esse tempo examinavaervosamente o círculo de milicianos que o observavam. Acho que ain

creditava em que éramos "vermelhos" sedentos de sangue e que íamuzilá-lo assim que acabasse de comer. O homem armado que ouardava continuava a bater-lhe amistosamente no ombro e a emitirons reconfortantes. Em certo dia memorável chegaram quinzeesertores de uma vez, e foram levados pela aldeia em triunfo, com umomem montado em cavalo branco à frente. Consegui tirar uma

otografia bastante embaçada desse grupo triunfal, porém mais tardeoubaram-ma.

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m nossa terceira manhã em Alcubierre, chegaram os fuzis. Umargento de cara abrutalhada e amarelo-escura estava a distribuí-los nurral das mulas. Quando vi a arma que me deram, veio o desalento.ratava-se de um Mauser alemão de 1896, arma com mais de quarentnos de existência! Estava enferrujada, o ferrolho endurecido, a guarde madeira rachada. Bastou um olhar pelo cano para ver que estava

orroído e além de qualquer esperança. A maioria dos fuzisncontrava-se em mau estado, alguns eram até piores, e nenhumaentativa foi feita no sentido de entregar as armas melhores aos homenue soubessem como utilizá-las. O melhor fuzil de toda a partida, quenha apenas dez anos de fabricação, foi dado a um bestinha amalucadde 15 anos de idade, que todos conheciam como o maricón. O

argento proporcionou-nos uma "instrução" de cinco minutos, queonsistiu em explicar como se carregava um fuzil e como se desmontaferrolho. Muitos dos milicianos jamais haviam tomado uma arma nas

mãos antes, e pouquíssimos, a meu ver, sabiam para que serviam aslças de mira. Foram distribuídos cartuchos, cinqüenta a cada um, eepois disso entramos em forma, mochilas nas costas e partindo para nha de frente, que ficava a uns cinco quilômetros de distância dali.

A centúria, oitenta homens e diversos cachorros, foi tocandoagarosamente pela estrada. Cada coluna miliciana tinha pelo menos achorro como mascote, e o animalão de péssimo aspecto que

marchava conosco apresentava a sigla P.O.U.M. em letras grandes,marcadas a fogo em seu pêlo, e seguia de modo esquivo, como sevesse consciência de que havia qualquer anormalidade em suaparência. A testa da coluna, ao lado da bandeira vermelha, ia George

Kopp, o robusto comandante belga, montado num cavalo preto, e poucdiante um jovem pertencente à cavalaria miliciana, que parecia um

ando de salteadores, fazia piruetas de um para outro lado, subindo emarreira todos os lances mais altos do caminho e fazendo posesitorescas. Os magníficos animais da cavalaria espanhola foramapturados em grandes números durante a revolução, e entregues à

milícia que, como era natural, estava tratando de utilizá-los até à morte

A estrada serpenteava entre terrenos agrestes e amarelados, intocadoesde a colheita do ano anterior. A nossa frente encontrava-se a sierra

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aixa que se estende entre Alcubierre e Saragoça. Estávamos cheganlinha de frente e às suas bombas, metralhadoras e lama. No íntimo,

nha medo. Sabia que a linha estava calma naquele instante, mas,iversamente da maioria dos companheiros, tinha idade bastante para

embrar-me da Grande Guerra, embora não fosse velho a ponto de terutado nela. Para mim a guerra significava projéteis ensurdecedores,

agmentos de aço a espalhar-se para todos os lados. Acima de tudo,epresentava lama, piolhos, fome e frio. É curioso, mas eu receava mumais o frio do que o inimigo. O pensamento estivera a atormentar-me

esde Barcelona, e impedira-me o sono diversas vezes, fazendo-memaginar o frio nas trincheiras, as vigílias nas madrugadas geladas, asongas horas de sentinela com um fuzil regelado, a lamaesgraçadamente fria que entraria pelo cano das botas. Reconheço,

ambém, que sentia certo tipo de horror ao olhar aqueles em meio aosuais estava marchando. Não é possível fazer idéia do aspecto de raléue apresentávamos. Seguíamos à frente com muito menos coesão due um rebanho de carneiros e, antes de havermos percorrido trêsuilômetros, a retaguarda da coluna já se perdera de vista. E metade dhamados homens ali presentes era formada de meninos, mas menino

mesmo, com dezesseis anos de idade quando muito. Ainda assim,mostravam-se todos felizes e animados diante da possibilidade de

hegarem finalmente à frente de luta. Ao nos aproximarmos da linha, omeninos em torno da bandeira vermelha começaram a dar gritos deVisca P.O.U.M.!", e "Fascistas maricones!" e assim por diante, gritosue pretendiam ter um som guerreiro e ameaçador mas que, vindosaquelas gargantas infantis, pareciam tão indefesos quanto miados deatinhos. Era horrível que os defensores da República fossem aqueleando de meninos maltrapilhos, armados de fuzis gastos que nãoabiam utilizar. Lembro-me que fiquei imaginando o que aconteceria se

m aeroplano fascista passasse por ali - se o tripulante sequer se dariao trabalho de mergulhar e brindar-nos com uma rajada de suametralhadora. Até mesmo do ar ele certamente veria que não éramosoldados de verdade.

Chegados à sierra, entramos à direita e subimos um estreito caminho dmulas que fazia a volta pela encosta da montanha. Naquela parte da

spanha os morros são uma formação bizarra, em formato de ferradur

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om topos achatados e lados muito íngremes que vão dar a barrancosmensos. Nas encostas mais altas nada cresce, a não ser arbustos,smirradas urzes, com as pedras calcarias brancas aparecendo por toparte como um esqueleto. A linha de frente, naquele lugar, não erama linha contínua de trincheiras, o que seria impossível em terreno tãcidentado, mas apenas uma cadeia de postos fortificados, sempre

onhecidos como "posições", encarapitados no alto de cada elevação.Da distância podíamos ver nossa "posição" no centro da ferradura: erama barricada irregular de sacos de areia, uma bandeira vermelha aemular, a fumaça de fogueiras feitas ao ar livre - Um pouco mais pertdava para sentir uma catinga pavorosamente adocicada, que esteve

esidindo em minhas ventas por semanas a fio. Na fenda existente logtrás da posição fora despejado todo o lixo de meses seguidos, e lástava um amontoado de pedaços de pão, excrementos e latasnferrujadas.

A companhia que estávamos substituindo preparava seus pertences.stivera três meses na linha de frente, e seus uniformes apresentavamolos endurecidos de lama, as botas estavam aos pedaços, a maioriaos homens barbada. O capitão que comandava a posição, chamadoevinski mas conhecido de todos como Benjamin e judeu polonês deascimento mas falando francês como se fosse sua língua materna, sao abrigo e veio nos receber. Era um rapaz de baixa estatura e seusinte e cinco anos de idade, com cabelo negro e duro e um rosto pálidonimado que, a essa altura da guerra, estava sempre muito sujo.

Algumas balas perdidas estalavam por cima de nós. A posição era umercado semicircular com perto de cinqüenta metros de largura, com uarapeito parcialmente formado de sacos de areia e montes de pedrasalcárias. Havia trinta ou quarenta buracos pelo chão, como buracos d

ato. Williams, seu cunhado espanhol e eu tratamos logo depoderar-nos do buraco desocupado mais próximo, que nos pareceuabitável. Em alguma parte à nossa frente disparavam um fuzil de vezm quando, o que causava curiosos ecos nas encostas de pedras. Maavíamos descarregado nossas mochilas e saíamos do abrigo quandoe ouviu outro disparo e um dos meninos de nossa companhia voltouorrendo do parapeito, com o rosto ensangüentado. Disparara seu fuzonseguira fazer explodir o ferrolho. Seu couro cabeludo estava

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sfrangalhado pelos fragmentos do cartucho explodido e aquela eraossa primeira baixa que, de modo característico, fora auto-infligida.

A tarde fizemos nossa primeira ronda de guarda e Benjamin nos mostrposição. Diante do parapeito estendia-se um sistema de trincheirasstreitas escavadas na rocha, com seteiras extremamente primitivas,

eitas com pilhas de pedras de calcário. Havia doze postos de vigia,ituados em pontos diversos na trincheira e por trás do parapeito internA frente da trincheira encontrava-se o arame farpado, e depois disso a

ncosta do morro descia até uma ravina aparentemente sem fundo. Doutro lado havia morros pelados, em alguns lugares apenas penhasco

udo isso acinzentado e em hibernação, sem mostrar em ponto algum menor sinal de vida, nem mesmo um passarinho. Olhei cuidadosamen

or uma seteira, procurando a trincheira fascista.

Onde está o inimigo?

enjamín sacudiu a mão de modo expansivo e respondeu em inglês, eeu inglês horribilíssimo:

Para lá.

Mas onde?

m conformidade com minhas noções sobre guerra de trincheiras, osascistas estariam a uns cinqüenta ou cem metros de distância. Masada conseguia ver, e parecia que suas trincheiras estavam muito bemscondidas. Foi então, com uma onda de desalento, que vi para ondeenjamin apontava: no outro morro à frente, além da ravina, aetecentos metros de distância pelo menos, via-se o esboço minúsculoe um parapeito e uma bandeira vermelha e amarela - a posição

ascista. Fiquei tremendamente desapontado. Não estávamos pertoeles coisa alguma! Naquela distância toda, nossos fuzis eram

nteiramente inúteis. Mas nesse momento ouvimos um grito denimação. Dois fascistas, figurinhas cinzentas na distância, estavamscalando a encosta do morro à nossa frente. Benjamín passou a mãoo fuzil do homem mais próximo, fez mira e puxou o gatilho. Click! Oartucho não detonou, e eu encarei isso como presságio muito mau.

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As novas sentinelas mal acabavam de tomar seus postos na trincheiraeram inicio a uma fuzilaria terrível, disparando sem ter nada em mira.u podia ver os fascistas, pequeninos como formigas, esquivando-se dm para outro lado em seu parapeito, e às vezes um pontinho negro qra a cabeça de um deles parava por instante, expondo-se com toda a

mpudência. Tornava-se óbvio que de nada valia disparar as armas, m

ogo a sentinela à minha esquerda, deixando seu posto à moda típicaspanhola, veio ter comigo e começou a instar para que eu fizesse fogentei explicar que àquela distância, e com fuzis daquele jeito, não seonseguiria atingir um homem senão por acidente. Mas o companheirora um simples menino, e continuou a fazer gestos com sua arma emireção aos pontinhos distantes, rindo como um cachorro que esperatirarmos uma pedra. Finalmente acertei a alça de mira para setecentomandei fogo. O pontinho desapareceu. Espero que tenha atingido lugastante próximo para fazer o homem pular. Era a primeira vez em

minha vida que eu disparara uma arma contra um ser humano.

Agora que vira a linha de frente, sentia-me profundamente desgostosohamavam aquilo de guerra! E mal estávamos em contato com o inimi

Não fiz qualquer tentativa de abaixar a cabeça além do nível daincheira. Pouco depois, no entanto, uma bala passava por minha ore

om um ruído perverso e batia no anteparo da trincheira, atrás de mimCéus! Eu me abaixei. Por toda a vida eu jurara a mim mesmo que nãome abaixaria na primeira vez em que uma bala passasse por cima, ma

movimento parece ser instintivo, e quase todos o fazem pelo menosma vez.

Na guerra de trincheiras existem cinco coisas importantes: lenha,omida, fumo, velas e o inimigo. No inverno que passamos frente dearagoça elas se mostraram importantes pela ordem enunciada, ficandinimigo em quinto lugar e por muito favor. A não ser à noite, quandora sempre concebível um ataque de surpresa, ninguém se incomodavom o inimigo. Eram simplesmente insetos escuros e distantes queíamos, de vez em quando, a pular de um para outro lado. Areocupação verdadeira de ambos os exércitos estava em fugir ao frio

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Ainda que de passagem, devo dizer que por todo o tempo de minhaermanência na Espanha vi pouquíssima luta. Estive na frente de Arage janeiro a maio, e entre janeiro e a parte final de março pouca coisa ada aconteceu ali, a não ser em Teruel. Em março travou-se lutaerrada ao redor de Huesca mas eu, pessoalmente, tive poucaarticipação nela. Mais tarde, em junho, ocorreu o ataque desastroso a

Huesca, no qual diversos milhares de homens foram mortos num só dimas eu fora ferido e posto fora de combate antes disso acontecer. Asoisas em que normalmente se pensa como os horrores da guerra raraezes aconteceram comigo. Nenhum aeroplano deixou cair uma bombm qualquer parte próxima de mim, e não acredito que alguma granad

enha explodido a menos de cinqüenta metros de distância, e só uma vstive em luta corpo-a-corpo (e posso assegurar que uma vez já é

emais). Está claro que muitas vezes estive sob forte fogo demetralhadora, mas em geral eram disparos feitos de longe. Até mesmom Huesca estava-se razoavelmente a salvo, desde que tomadaslgumas precauções.

Ali, nos morros ao redor de Saragoça, havia apenas a mistura do tédioesconforto na guerra estacionária. A vida. transcorria tão destituída dcontecimentos quanto a de um caixeiro na cidade, e demonstrava

egularidade quase idêntica. Sentinela, patrulhas, cavar o chão;avoucar, patrulhas, sentinela. No topo de cada morro, fascistas ouegalistas, um punhado de homens andrajosos e sujos a tiritar de frio eorno da bandeira, procurando aquecer-se. E por toda a noite e o diaquelas balas malucas e sem sentido, percorrendo trajetórias nos valeazios e atingindo um corpo humano somente por probabilidade muitoemota.

Muitas vezes lancei o olhar ao redor, examinando aquela paisagem denverno e pensando na futilidade de tudo aquilo. Que guerra mais semecisão! Em época anterior, por volta de outubro, houvera lutaselvagens pela posse daqueles morros e depois, por falta de homens ermas, principalmente artilharia, que tornavam impossível qualquerperação em larga escala, cada exército cavara para si um sistema debrigos e se estabelecera nos topos de morros conquistados. A nossaireita encontrava-se pequeno posto adiantado, também do P .0. U. M

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o esporão à nossa esquerda, em plano mais baixo, uma posição do PS . U . C. fazia frente a um esporão mais alto com diversos pontinhosascistas em seu cimo. A chamada linha de frente ziguezagueava de uara outro lado, numa conformação que seria de todo ininteligível, nãoouvesse cada posição hasteado sua bandeira. As bandeiras do.O.U.M. e P.S.U.C. eram vermelhas, as dos anarquistas rubro-negras

Via de regra os fascistas hasteavam a bandeira monarquista (vermelhomarelo e vermelho), mas de vez em quando exibiam a bandeira daRepública (vermelho, amarelo e púrpura). O cenário era estupendo, pa

uem pudesse esquecer que em cada cimo de morro havia soldados ee achava, portanto, semeado com latas vazias e emplastrado comosta. A nossa direita a sierra tomava o rumo sul-leste e abria caminhoara o vale amplo e cheio de veias que se estendia até Huesca. Em mquela planície alguns cubos pequeninos estavam como dados atiradomesa: era a cidade de Robres, que se achava em poder dos legalista

Muitas vezes, de manhã, o vale se encontrava oculto por ondas deuvens, das quais emergiam morros achatados e azuis, dando àaisagem grande semelhança a um negativo fotográfico. Além de

Huesca viam-se mais morros da mesma formação que o nosso, comaixas de neve que modificavam-se a cada dia. Mais além viam-se osicos monstruosos dos Pirineus, onde a neve jamais se derrete, e que

areciam flutuar em cima de coisa nenhuma. Até mesmo lá embaixo nlanície tudo parecia morto e nu. Os morros à nossa frente eraminzentos e enrugados como a pele de elefantes e o céu estava quaseempre desprovido de pássaros. Não acredito conhecer outro país ondeja menor o número de aves no céu. As únicas que pude ver emualquer ocasião eram um tipo de pega, e os bandos de perdizes quessustavam a gente de noite, com seu ruído repentino e, rarissimasezes, os vôos de águias que adejavam lentamente lá em cima, sendo

m geral acompanhadas pelos disparos de fuzis, aos quais não seignavam prestar qualquer atenção.

A noite e com tempo enevoado eram mandadas patrulhas ao vale entrós e os fascistas. Essa missão não desfrutava grande simpatia, pois

azia frio demasiado e era facílimo perder-se o caminho, e logo verifiquue podia obter folga para sair em patrulha tantas vezes quantasuisesse. Naquelas ravinas imensas e de traçado irregular não havia

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ilhas ou rastos de qualquer tipo, e só se podia seguir caminho fazendornadas sucessivas e anotando os pontos observáveis de cada vez. Enha reta, o posto fascista mais próximo estava a setecentos metros dosso, mas essa distância estendia-se por 2.400 metros pela únicaassagem praticável. Era bastante divertido andar pelos vales escurosom as balas perdidas passando muito acima da cabeça, como um

scocês de saiote a assoviar. Melhor ainda do que à noite era fazê-lourante o nevoeiro espesso, que muitas vezes durava todo o dia eostumava ficar preso em volta dos topos de morro, deixando os valesem claros. Quando se estava nas proximidades das linhas fascistas, reciso andar em passo de cágado, sendo bem difícil mover-se emilêncio naquelas encostas, entre os arbustos quebradiços e pedras quaziam ruído se pisadas. Foi apenas na terceira ou quarta tentativa queonsegui achar o caminho para as linhas fascistas. O nevoeiro estavaem denso, e subi até ao arame farpado para escutar. Dava para ouvis fascistas conversando e cantando lá dentro. Depois disso, descobriom alarme que diversos deles vinham descendo o morro em minhaireção. Encolhi-me atrás de um arbusto que repentinamente parecera

ornar-se pequeno demais, e procurei engatilhar o fuzil sem barulho. Mles tomaram outro rumo e não chegaram a um ponto do qual pudesse

me descobrir. Por trás do arbusto onde me escondera, encontrei divers

emanescentes da luta anterior - uma pilha de cartuchos vazios, um boe couro furado por bala e uma bandeira vermelha, que evidentementera das nossas. Levei-a de volta à posição, onde foiem-cerimoniosamente transformada em trapos para limpar as coisas.

u fora promovido a cabo, assim que chegamos à linha de frente, estava no comando de uma guarda de doze homens. Não se tratava dinecura, principalmente no início. A centúria era um agrupamento sem

einamento, composto principalmente de adolescentes. Aqui e ali, namilícia, achavam-se meninos de onze ou doze anos de idade, em geraefugiados do território fascista que se alistaram como milicianos por semeio mais fácil de sobreviver. Via de regra eram empregados noabalho mais leve da retaguarda, mas às vezes conseguiam chegar ànha de frente, onde constituíam um perigo para todos. Lembro-me dem jovem animalzinho que atirou uma granada de mão à fogueira dobrigo "só para divertir-se". Em Monte Focero não creio que houvesse

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ualquer elemento com menos de quinze anos de idade, mas a idademédia deve ter orçado bem abaixo dos vinte anos. Os rapazes dessadade jamais deveriam ser mandados à linha de frente, pois nãoonseguem agüentar a falta de sono que constitui traço inseparável dauerra de trincheiras. De inicio foi quase impossível manter nossaosição com guarda adequada à noite. Os meninos de minha seção só

odiam ser tirados do sono quando os puxávamos para fora do abrigoelos pés, e assim que lhes voltávamos as costas eles largavam osostos e regressavam ao abrigo, e conseguiam até mesmo encostar-sa parede da trincheira e ferrar no sono, a despeito do frio horrível.elizmente o inimigo não era gente das mais empreendedoras, e houvoites nas quais acredito que nossa posição poderia ter sido tomada pinte escoteiros armados com espingardas de ar comprimido, ou vinteandeirantes armadas com raquetes.

Naquela altura, e por muito tempo depois disso, as milícias catalãsncontravam-se ainda em base muito parecida àquela em que estiverao início da guerra. Nos primeiros dias da revolta de Franco as milícias

oram apressadamente formadas pelos diversos sindicatos e partidosolíticos, e cada qual era, em sua essência, uma organização política,evendo obediência tanto a seu partido quanto ao Governo central.

Quando o Exército Popular, que era um exército "não-político"rganizado em linhas mais ou menos comuns, se formou ao início de937, as milícias partidárias ficaram teoricamente incorporadas a ele.

Mas por muito tempo as únicas transformações que tiveram lugarcorreram apenas no papel, e os soldados do novo Exército Popular nhegaram à frente de Aragón senão em junho, e até então o sistema d

milícias continuou inalterado. O ponto essencial do sistema era agualdade social entre oficiais e soldados. Todos, de general a soldado

aso, recebiam o mesmo soldo, comiam a mesma comida, usavam asmesmas roupas e misturavam-se em pé de absoluta igualdade. Quemuisesse dar um tapa nas costas do general comandante da divisão eedir-lhe um cigarro podia fazê-lo, e ninguém achava isso fora doomum. Em teoria, pelo menos, cada milícia era uma democracia e nãma hierarquia. Entendia-se que as ordens eram para ser obedecidas,

mas entendia-se também que quando se dava uma ordem, dava-seomo um camarada a outro, e não como superior ao inferior. Havia

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ficiais e graduados, mas não a hierarquia militar no sentido comum,em títulos, distintivos, bater de calcanhares e continências. Procurarariar, dentro das milícias, um tipo de modelo operante e temporário daociedade sem classes. Está claro que não existia uma igualdadeerfeita, mas uma aproximação a isso, a maior aproximação que eu jáira até então, ou pensara ser possível em tempo de guerra.

stou pronto a reconhecer, entretanto, que à primeira vista o estado deoisas na linha de frente causou-me horror. Com todos os demônios,omo seria possível ganhar a guerra com um exército daquele tipo? Erque todos indagavam na época, e embora fosse verdade era tambémouco razoável dizê-lo, pois nas circunstâncias de então as milícias nãoderiam ter sido muito melhores do que eram. Um moderno exército

mecanizado não brota do chão, e se o Governo houvesse aguardado a

ispor de tropas treinadas, jamais seria oferecida qualquer resistência ranco. Mais tarde tornava-se moda denegrir as milícias e fazer deonta, portanto, que as falhas devidas à falta de treinamento e armasram o resultado do sistema igualitário. Na verdade, uma novaonscrição de milicianos não passava de uma malta indisciplinada, nãoorque os oficiais chamassem aos soldados "carriarada", mas porqueoldados bisonhos são sempre uma malta de indisciplinados. Na prátictipo "revolucionário" democrático de disciplina merece mais fé do que

eria de esperar-se. Num exército de trabalhadores a disciplina é,eoricamente, voluntária. Ela se baseia na fidelidade à classe, enquantue a disciplina de um exército burguês de conscritos baseia-se, em

nstância suprema, no medo. (O Exército Popular que substituiu asmilícias situava-se em algum ponto intermediário entre os dois tipos.)Nas milícias as afrontas e abusos que têm lugar num exército comumamais seriam toleradas um só instante. Existiam as punições militares

ormais, mas somente eram invocadas por transgressões muito graveQuando um homem se recusava a obedecer a uma ordem, não seromovia imediatamente seu castigo; fazia-se-lhe primeiramente umpelo em nome da camaradagem. As pessoas cínicas e que não tenhaualquer experiência com o trato de homens dirão logo que isso jamaisaria resultado, mas a bem da verdade dá resultado, sim, a longo praz

A disciplina das piores turmas de milicianos melhorou visivelmente aoassar do tempo. Em janeiro, a tarefa de manter uma dúzia de recruta

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isonhos em linha quase fez meu cabelo encanecer. Em maio, por algempo, fui o tenente-interino comandando perto de trinta homens,spanhóis e ingleses. Todos estivéramos sob fogo meses seguidos, e

amais encontrei a menor dificuldade em que obedecessem às minhasrdens, ou em obter homens como voluntários para uma missãoerigosa. A disciplina "revolucionária" depende da consciência política

e uma compreensão do motivo pelo qual as ordens devem serbedecidas. Leva tempo para isso ser apreendido, mas também levaempo a transformação de um homem num autômato, no quartel militaomum. Os jornalistas que zombavam do sistema de milícias raramente lembravam de que elas tiveram de agüentar a linha de frentenquanto o Exército Popular era treinado na retaguarda, e o fato de qus milícias tenham continuado na luta constitui titulo honroso ao vigor disciplina "revolucionária", pois até arredores de junho de 1937 nadaavia para obrigá-las a ficar ali, a não ser sua fidelidade à classe. Osesertores individuais podiam ser fuzilados - e o eram, de vez emuando - mas se mil homens resolvessem abandonar a linha de frente

mesmo tempo não haveria força que os detivesse. Um exército deonscritos, colocado nas mesmas circunstâncias - sendo retirada suaolícia de batalha - ter-se-ia derretido. Ainda assim as milíciasustentaram a linha de frente, embora Deus saiba que foram

ouquíssimas as suas vitórias, e até as deserções individuais não semostraram comuns. Em quatro dos cinco meses que passei na milícia .O.U.M. só ouvi falar em quatro homens que desertaram, e dois delesram quase certamente espiões que se alistaram a fim de obter

nformações. De início, a bagunça aparente, a falta geral de treinameno fato de que muitas vezes precisava discutir cinco minutos antes de

er uma ordem obedecida, causavam-me espanto e fúria. Eu traziadéias do Exército Britânico, e certamente as milícias espanholas eram

oisa muito diferente daquele exército. Mas levando em conta asircunstâncias, elas eram formadas por soldados muito melhores do que poderia esperar.

nquanto isso, lenha - sempre a lenha! Por todo aquele períodorovavelmente não existe qualquer lançamento em meu diário que não

aça referência à lenha, ou melhor, à falta dela. Estávamos entreeiscentos e novecentos metros de altitude, em meio ao inverno, e o fr

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ra indescritível. A temperatura não se mostrava excepcionalmenteaixa, em muitas noites nem sequer nos regelávamos, e muitas vezes ol de inverno brilhava por toda uma hora no meio do dia, mas aindauando não fazia frio posso garantir que parecia fazer. As vezes vinhaentos uivantes que nos arrancavam o quepe da cabeça embaralhavam o cabelo em todas as direções, de outras eram nevoeir

ue se derramavam na trincheira como se fossem um líquido queenetrava até aos 05505 da gente. Chovia com freqüência, e arecipitação de quinze minutos bastava para tornar as coisas

ntoleráveis. A camada fina de terra sobre o calcário transformava-seapidamente numa graxa escorregadia, e como sempre se estavandando numa encosta, era impossível manter o equilíbrio. Nas noitesscuras não foi raro eu cair meia dúzia de vezes enquanto andava vint

metros e isso era perigoso, pois significava que o ferrolho do fuzil ficavntupido de lama. Por dias seguidos as roupas, botas, cobertores e fuz

mantinham-se mais ou menos cobertos de lama. Eu trouxera comigoantas peças pesadas de roupa quantas pudera, mas muitos dos homestavam pessimamente protegidos. Para o total da guarnição, uns cemomens, havia apenas doze sobretudos, que tinham de ser passados dma sentinela a outra, e a maioria possuía apenas um cobertor. Em ceoite frígida fiz uma lista, em meu diário, relacionando as peças de rou

ue trajava no momento. A anotação serve para mostrar que quantidade roupas o corpo humano pode envergar ao mesmo tempo. Estava coamiseta e calças grossas, uma camisa de flanela, dois suéteres, jaque lã, jaqueta de couro de porco, culotes de belbute, polainas, meiasrossas, botinas, um forte capote impermeável, cachenê, luvas de cou

orrado e um gorro de lã. Ainda assim, tremia como geléia. Mas devoeconhecer que tenho sensibilidade incomum ao frio.

A lenha era a única coisa de verdadeira importância. A questão, nessearticular, é que praticamente não existia lenha alguma. Aquela nossamontanha miserável nem sequer apresentava muita vegetação, quand

m seu melhor estado possível, e por meses a fio fora varrida pormilicianos enregelados, e o resultado era que tudo que fosse mais

rosso do que o dedo mínimo já fora queimado. Quando não estávamoomendo, dormindo, em guarda ou descanso, estávamos no vale porás da posição, procurando combustível. Todas as minhas recordaçõe

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essa época são as de subir e descer as encostas quaseerpendiculares, por cima das pedras calcárias que estraçalhavam asotas, arrecadando com ansiedade pequenos gravetos. Três homensrocurando lenha por duas horas conseguiam juntar combustíveluficiente para manter a fogueira do abrigo acesa por uma hora. Ansiedade de nossa busca de lenha transformou-nos, a todos, em

otânicos. Classificávamos de acordo com suas propriedades deueimar todas as plantas que cresciam na encosta do morro. as diversrzes e gramas que serviam para acender um fogo mas queimavam eoucos minutos, o alecrim bravo e o tojo pequenino que queimavamuando o fogo já se acendera bem, o carvalho retorcido e menor do qum arbusto de groselha, que se mostrava praticamente incomburente.

Havia um tipo de caniço seco muito bom para iniciar a fogueira, mas sórescia no alto do morro à esquerda da posição. e era preciso enfrentas balas do inimigo para apanhá-lo. Se os metralhadores fascistas nosissem, dedicavam todo um tambor de munição ao intimorato. Em geratiravam muito para cima e as balas cantavam no alto como pássaros.

mas às vezes pipocavam e arrancavam lascas do calcário em distânciaequena demais, com o que era preciso o cidadão jogar-se de cara nohão. Mas continuávamos recolhendo caniço assim mesmo, pois nada

mais importava tanto quanto a lenha.

irante o frio, os outros desconfortos pareciam coisa de somenos. Estálaro que estávamos todos em estado de sujeira permanente. Nossagua, como os alimentos, vinha em lombo de mula desde Alcubierre, earte de cada um dava perto de um litro por dia. Era um líquidoepugnante, pouco mais transparente do que o leite. Em teoria,estinava-se exclusivamente a ser bebido, mas sempre consegui furtama vasilha cheia para poder lavar-me de manhã. Eu costumava

avar-me num dia e barbear-me no outro, pois nunca houve águauficiente para fazer ambas as coisas. Nossa posição exalava um fedobominável, e fora do pequeno espaço da barricada havia fezes por toparte. Alguns dos milicianos tinham por hábito defecar na trincheira,rocedimento dos mais repelentes quando era preciso andar por ali nascuridão, dando voltas para não enfiar o pé na coisa. Mas a sujeiraunca me preocupou. A bem da verdade, a sujidade é coisa pela qual essoas costumam fazer barulho demasiado. É surpreendente a rapid

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om que a gente se habitua a viver sem um lenço, e a comer em vasilhe estanho onde também se faz a higiene. Tampouco era difícil dormirom as roupas no corpo, depois de um ou dois dias. Impossível,aturalmente, era tirar as roupas e em especial as botinas à noite, poisrecisava-se estar pronto para agir instantaneamente no caso de que

ôssemos atacados. Em oitenta noites passadas ali, tirei a roupa apena

ês vezes, embora conseguisse de quando em vez despi-las durante oia. Fazia frio demasiado para que os piolhos pudessem fazer seuparecimento, mas não faltavam ratos e camundongos. Há quem digaue não se encontram ratos e camundongos juntos no mesmo lugar,

mas isso é tolice, quando existe comida suficiente para ambas asspécies roedoras.

Nos demais aspectos, não estávamos mal. A comida era boa e havia

inho suficiente. Os cigarros continuavam sendo distribuídos naroporção de um maço por dia, fósforos eram dados dia-sim dia-não, eistribuíam até mesmo velas. Eram velas muito finas, como as utilizadam bolos de Natal, acreditando-se que tinham sido tiradas das igrejas.odo abrigo recebia diariamente três polegadas de vela, que ficavamcesas perto de vinte minutos. Naquela época ainda era possívelomprar velas, e eu trouxera alguns quilogramas comigo. Mais tarde ascassez de fósforos e velas tornou a vida uma coisa horrível. A genteão percebe a importância dessas coisas senão quando elas faltam.

Num alarme noturno, por exemplo, quando todos no abrigo estãorocurando freneticamente seu fuzil e pisando na cara dos outros, ooder acender uma luz pode representar a diferença entre a vida e a

morte. Cada miliciano possuía uma binga e alguns metros de paviomarelo, e depois de seu fuzil esse artigo constituía sua posse mais

mportante. As bingas apresentam a grande vantagem de poderem ser

cendidas no vento, mas formam apenas uma brasa, de modo que nãoerviam para acender um fogo. Quando a escassez de fósforos sechava em sua pior fase, nosso único meio de produzir chama era tirahumbo de um cartucho e fazer a cordite disparar, usando para isso ainga.

ra uma vida extraordinária a que vivíamos, um modo extraordinário dstar na guerra, se pudermos chamar aquilo de guerra. Toda a milícia

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eclamava contra a inatividade e pedia sempre uma explicação do motelo qual não nos davam licença para atacar o inimigo. Mas já se torna

nteiramente óbvio que não haveria qualquer batalha por muito tempoinda, a menos que o inimigo a empreendesse. Georges Kopp, em suaisitas periódicas de inspeção, mostrou-se bastante franco conosco.

Isto não é uma guerra - costumava dizer. - uma ópera cômica, comlguém morrendo de vez em quando.

Na verdade a estagnação na frente de Aragón tinha causas políticas duais eu nada sabia na ocasião, mas as dificuldades de naturezauramente militar - bem à parte da falta de reservas de homens -stavam à vista de todos.

ara começar, havia a natureza do terreno. A linha de frente, tanto aossa quanto a dos fascistas, passava por posições dotadas de imens

orça natural, que via de regra só podiam ser atacadas por um lado.Desde que algumas trincheiras fossem cavadas, lugares como aqueles

ão poderiam ser tomados pela infantaria, a não ser com esmagadorauperioridade numérica. Em nossa própria posição, ou na maioria dasue estavam mais próximas, uma dúzia de homens com duas

metralhadoras poderia manter à distância todo um batalhão.

ncarapitados no topo dos morros como estávamos devíamos ser alvoormidáveis para a artilharia, mas não existia artilharia em cena. Àsezes eu examinava a paisagem e ficava ansiando - e com quantoervor! - por algumas baterias. Podia-se destruir as posições inimigasma por uma com tanta facilidade quanto o quebrar nozes com um

martelo. Mas no nosso lado simplesmente não havia canhões. Osascistas, de vez em quando, conseguiam trazer um canhão ou dois dearagoça e disparar algumas granadas, tão poucas que jamais

certavam o alcance dos disparos, e iam cair inofensivamente nasavinas vazias. Contra o fogo de metralhadoras e sem se dispor dertilharia, só restam três coisas a fazer: cavar um abrigo no chão, emistância suficiente - uns quatrocentos metros -, atacar pelo campoberto e ser massacrado, ou fazer ataques noturnos de pequena escaue não modificam a situação geral. As alternativas a isso, de um ponte vista prático, são a estagnação ou o suicídio.

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revalecia, além disso, uma falta completa de material bélico de todospos. E preciso fazer esforço para compreender como as milícias sencontravam mal armadas naquela altura. Qualquer centro dereparação de oficiais, funcionando em anexo a uma escola pública na

nglaterra, mostra-se muito mais moderno, como exército, do que érama milícia. A má qualidade de nosso armamento chegava a ponto tão

spantoso que merece registro com pormenores.ara aquele setor da frente toda nossa artilharia consistia de quatro

morteiros de trincheira com quinze petardos por peça. Está claro queram artigos preciosos demais para disparar, e os morteiros ficavam e

Alcubierre. Havia metralhadoras na proporção de uma por cinqüentaomens, armas de modelo antigo mas bastante precisas até 300 ou 40

metros. Além disso tínhamos apenas os fuzis, e a maioria dos mesmos

ão passava de ferro velho. Eram de três tipos. O primeiro, um fuzilMauser comprido, raramente com menos de vinte anos de fabricação es alças de mira tão inúteis quanto um velocímetro quebrado,' na maioeles, a alma do tubo estava corroída por completo, mas ainda assim u

uzil em cada dez não era mau. Vinha em seguida o Mauser curto, oumousqueton, que na verdade era arma de cavalaria. Desfrutava de maimpatia do que os outros, por ser mais leve para carregar e constituinmbaraço ou estorvo menor numa trincheira, e também porque eramomparativamente novos e pareciam eficientes. Na verdade,

mostravam-se quase inúteis. Eram feitos de peças remontadas, nenhuos ferrolhos pertencia à arma onde estava, e podia-se contar que emuatro deles três engasgavam depois de cinco disparos. Havia tambémlgumas carabinas Winchester', boas para atirar, porém, doidamente

mprecisas, e como seus cartuchos não tinham pentes, só podiam serisparadas na base de um tiro de cada vez. A munição era coisa tão ra

ue cada homem chegado à linha de frente recebia apenas cinqüentaalas, em sua maioria de péssima qualidade. Os cartuchos feitos naspanha eram apanhados vazios e reenchidos, e conseguiam fazerngasgar até os melhores fuzis. Já os cartuchos de fabricação mexicaram melhores, e por isso ficavam reservados para as metralhadoras.

melhor de todas era a munição alemã, mas só se conseguia por meioos prisioneiros e desertores, sendo pequena sua quantidade. Sempreuardei um pente de munição alemã ou mexicana no bolso para poder

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sá-la numa emergência, mas na prática, quando essa emergênciaparecia, eu raramente disparava meu fuzil, apavorado com a idéia deue aquela porcaria engasgasse e ansioso demais para reservar ao

menos uma bala que não falhasse.

Não tínhamos capacetes de metal ou baionetas, pouquíssimos eram o

evólveres ou pistolas, e existia apenas uma bomba para cada grupo duatro ou cinco homens. A bomba utilizada naquela época era um objessustador, conhecido por "bomba F.A.I.", produzida pelos anarquistasos primeiros dias da guerra. Funcionava conforme o princípio pelo qu

unciona uma bomba Milis, mas a trava era segura não por pino metálisim - por um pedaço de fita. Rompia-se a fita e quem o fizesse tratav

ogo de arremessar o petardo o mais depressa possível. A respeitoesses petardos dizia-se então que eles tinham o dom da

mparcialidade", pois matavam não só o homem em quem eramtirados, mas também aquele que os lançava. Existiam diversos outrospos, ainda mais primitivos porém provavelmente menos perigosos -ara o lançador, naturalmente. Não foi senão no final do mês de marçoue vi uma bomba que valia a pena arremessar.

Ao lado desses problemas com o armamento, havia uma escassez deodos os artigos menores que são necessários numa guerra. Não

ispúnhamos de mapas, por exemplo. A Espanha jamais foranteiramente cartografada, e os únicos mapas detalhados existentes paquela região eram os velhos mapas militares, quase todos em poderos fascistas. Não tínhamos telêmetros, telescópios, periscópios ouinóculos, exceto os particulares pertencentes a este ou aqueleamarada, e tampouco havia foguetes ou sinais luminosos, alicates paortar arame farpado, ferramentas de armeiro e pouquíssimo era o

material para limpar as armas. Parece que os espanhóis jamais ouviraalar em pull-through (cordão com bucha para limpar o cano das armasor dentro), e muitos ficaram olhando boquiabertos quando fabriquei uispositivo desses. Quem quisesse limpar o fuzil levava-o ao sargento,ossuidor de uma longa vareta de latão que estava sempre dobrada eortanto, arranhava a alma do cano. Não existia sequer algum óleo pampeza de armas, que eram engraxadas com azeite, quando havialgum. Em ocasiões diferentes, untei minha arma com vaselina, creme

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io e até mesmo com gordura de porco. Além disso, não tínhamosanternas ou lanternas elétricas - e naquela época acredito que nãoxistisse coisa tal como uma lanterna elétrica em todo o nosso setor danha de frente, e não se podia comprar uma senão em Barcelona, essim mesmo com grande dificuldade.

Ao correr do tempo e enquanto os disparos desencontrados ecoavamelos morros, comecei a cogitar com crescente ceticismo se algumaoisa viria trazer um pouquinho de vida, ou melhor, um pouquinho de

morte, àquela guerra disparatada. Estávamos lutando contra aneumonia, e não contra. homens. Quando as trincheiras se achamistanciadas uns quinhentos metros, ninguém é atingido senão porcidente. Está claro que havia baixas, mas a maioria das mesmas erauto-infligida. Se me lembro bem, os cinco primeiros homens que vi

eridos na Espanha tinham-no sido por suas próprias armas, nãontencionalmente, mas devido a acidentes ou falta de cuidado. Nossosuzis estragados eram um autêntico perigo. Alguns apresentavam aaracterística idiota de disparar se a coronha fosse batida no chão, e vm homem ter a mão atravessada por bala devido a isso. E na escurids recrutas novatos estavam sempre abrindo fogo um contra o outro.

Certa noite, quando nem sequer o crepúsculo se formara, uma sentineisparou contra mim de uma distância de vinte metros, e errou-me porm metro. Deus sabe quantas vezes o padrão de mira espanhol salvou

minha vida. De outra feita eu saíra em patrulha no nevoeiro e prevenirauidadosamente o comandante da guarda antes de partir. Mas ao voltaopecei num arbusto, a sentinela assustada gritou que os fascistasstavam avançando, e tive o inefável prazer de ouvir o comandante dauarda ordenar a todos que abrissem fogo rápido em minha direção.stá claro que deitei-me ao chão e as balas passaram inofensivamente

or cima. Nada consegue convencer um espanhol, ou pelo menos umspanhol jovem, de que as armas de fogo são coisas perigosas. Emutra ocasião, bem depois dessa, eu estava fotografando alguns

metralhadores com sua peça, que tinham apontado diretamente paramim.

Não disparem isso! - alertei em tom meio sério e meio patusco,nquanto acertava o foco da máquina fotográfica.

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Ora, não! Não vamos disparar!

No momento seguinte ouvi um estrondo assustador, e um jato de balasassou tão perto de meu rosto que fiquei com a face crivada de grãos ordite. A coisa não fora intencionalmente feita, mas os metralhadorescharam imensa graça no caso. Poucos dias antes, no entanto, tinham

isto um tropeiro ser acidentalmente baleado por um delegado políticoue estava brincando com uma pistola automática e que pusera cincoalas nos pulmões do tropeiro.

As senhas difíceis que o exército utilizava nessa época constituíam ouonte de perigo, embora menor. Eram aquelas senhas duplas cansativaas quais uma palavra devia ser respondida por outra. Via de regraenha e contra-senha eram palavras de calibre elevado e revolucionár

ais como Cultura - progresso, ou Seremos - invencibles, e muitas vezemostrava-se impossível fazer com que as sentinelas analfabetasecordassem tais expressões altissonantes. Certa noite, ainda meembro, a senha era Cataluña e a contra-senha eroica, e um rapaz doampo, chamado Jaime Domenech, aproximou-se de mim comxpressão perplexa e pediu explicações.

Eroica... Que quer dizer eroica?

Disse-lhe que a palavra tinha o mesmo significado que valiente, e poucepois disso ele tropeçava na trincheira, em meio à escuridão, e aentinela bradava:

Alto! Cataluña!

Valiente! - berrou Jaime, crente que estava dizendo a coisa certa.

ang!

Mas a sentinela errou o tiro. Naquela guerra todos erravam os outros,empre que humanamente possível.

á fazia perto de três semanas que eu estava na linha de frente, quand

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hegou a Alcubierre um contingente de vinte ou trinta homens, enviadoa Inglaterra pela I. L. P., e a fim de juntar todos os ingleses naquelaente de luta Williams e eu fomos mandados para sua companhia.

Nossa nova posição era em Monte Oscuro, alguns quilômetros para oeste, e dali dava para ver a cidade de Saragoça.

A posição encontrava-se numa espécie de muro de calcário, com osbrigos feitos em horizontal no barranco, como ninhos de andorinha.ntravam pelo chão por distâncias prodigiosas, e lá dentro era tãoscuro e baixo que nem sequer podíamos ficar de joelhos, quanto maim pé. Nos picos de elevações à nossa esquerda havia outras duasosições do P .0. U . M., uma das quais constituía ponto de fascínio pa

odos os homens na linha, pois ali estavam três mulheres milicianas,ncarregadas de preparar a comida. Não que essas mulheres fossem

ão belas assim, mas tornou-se preciso declarar aquela posição comoerreno proibido ao acesso dos demais homens das outras companhiaA meio quilômetro à nossa direita havia um posto do P. S. U. C., nairada da estrada de Alcubierre. Era exatamente ali que a estrada

mudava de donos. A noite podíamos ver as luzes de nossos caminhõee abastecimento, que vinham de Alcubierre e, si multaneamente, os d

ascistas, vindos de Saragoça. Dava para ver a própria cidade, uma linstreita de luzes, parecendo-se aos portalós de navio, a uns vinteuilômetros para o sudoeste. As tropas do Governo olhavam-na àquelaistância desde agosto de 1936, e continuam a fazê-lo hoje.

Havia cerca de trinta homens em nossa posição, inclusive um espanhoRamón, cunhado de Williams), bem como uma dúzia de metralhadorespanhóis. Com exceção de uma ou duas pragas - pois é sabido que auerra atrai a gentalha - os ingleses formavam uma turmaxcepcionalmente boa, tanto física quanto mentalmente. Talvez o melhe toda essa turma fosse Bob Smillie - o neto do famoso dirigente dos

mineiros - que mais tarde iria ter morte tão ruim e sem sentido emValência. Muita coisa fica revelada a respeito do caráter espanhol, noato de que ingleses e espanhóis sempre se davam bem juntos, aespeito das dificuldades causadas pela diferença de idiomas. Todos ospanhóis, conforme descobrimos, conheciam duas expressões em

nglês, Uma era "O.K., baby", e a outra uma palavra utilizada pelas

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meretrizes de Barcelona em seus entendimentos com os marinheirosritânicos, e receio que os revisores não a deixassem imprimir aqui.

ambém ali nada acontecia em toda a linha de frente. Tínhamos apenaestampido irregular dos disparos e, muito raramente, o estrondo de u

morteiro fascista que mandava todos correndo para a trincheira de cim

ara ver em que morro os petardos estavam explodindo. O inimigochava-se um tanto mais próximo de nós naquela parte, a uns 300 ou00 metros. Sua posição mais adiantada ficava exatamente em frente ossa, com um ninho de metralhadora cujas seteiras constituíam uma

entação constante a que desperdiçássemos as balas. Raramente osascistas se davam ao trabalho de disparar fuzis, mas mandavam de láajadas bem precisas sobre qualquer um que se expusesse. Aindassim, passaram-se dez dias ou mais ate que tivéssemos nossa prime

aixa. Os soldados inimigos à nossa frente eram espanhóis. mas pelasnformações prestadas por alguns desertores havia alguns graduadoslemães em seu meio. Em alguma época anterior havia mouros ali -obres coitados, como devem ter sofrido com o frio! - pois lá na terra dinguém encontrava-se um mouro morto, que constituía uma das coisaserem vistas na localidade - A dois ou três quilômetros para asquerda, a linha deixava de ser continua e existia uma faixa de camp

mais baixa e densamente coberta de vegetação, que não pertencia aoascistas nem a nós. Tanto nós quanto eles costumávamos fazeratrulhas por lá, durante o dia. Não deixava de ter sua graça. à escotembora eu jamais visse uma patrulha fascista a distância menor do quiversas centenas de metros. Mediante muito rastejamento podia-seassar em parte pelas linhas fascistas e até mesmo ver a casa de

azenda onde estava içada a bandeira monarquista, e que servia deuartel-general local dos inimigos. De vez em quando sapecávamos-lh

ma saraivada de fuzis e tratávamos de procurar abrigo antes que asmetralhadoras nos localizassem. Espero que tenhamos arrebentadolgumas janelas, mas o edifício ficava a uns oitocentos metros deistância, e com nossas armas não podíamos ter certeza sequer decertar uma casa tão longe.

Na maior parte os dias eram claros e frios, às vezes ensolarados porolta das doze horas, mas sempre frios. Aqui e ali, no terreno das

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ncostas, achávamos as pontas verdes de açafrão ou íris a se estendera evidente a aproximação da primavera, mas em marcha bem lenta.

As noites mostravam-se mais frias do que nunca, e ao sair da guarda, madrugada, costumávamos juntar o que restara do fogo na cozinha acar de pé nas brasas quentes. Isso não podia ser pior para as botinas

mas era ótimo para os pés. Havia manhãs, todavia, em que a visão da

lvorada entre os picos de montanhas chegava quase a compensar oato de estar fora da cama naquelas horas doidas. Eu detestomontanhas, mesmo quando situadas em ponto de vista espetacular, m

s vezes a aurora raiando atrás dos picos à nossa retaguarda, asrimeiras faixas estreitas de luz dourada, como espadas a cortar a trevdepois disso a luz brilhante e os oceanos de nuvens carmesins astender-se por distâncias inconcebíveis, valiam a pena observar,

mesmo quando se estivera de pé a noite inteira, quando as pernasdormeciam do joelho para baixo e éramos assaltados pelo pensamenombrio de que não se comeria coisa alguma senão dali a três horas. Vraiar da aurora mais vezes, naquela campanha, do que durante todo

esto de minha vida - ou durante a parte que, espero, ainda virá.

Nosso efetivo era reduzido ali, o que representava guardas mais longafaxinas maiores. Eu começava a sofrer um pouco a falta de sono

nevitável até mesmo no tipo de guerra mais calma. Além da guarda eatrulha, surgiam alarmes e prontidões constantes à noite, e de qualqu

orma ninguém consegue dormir direito num buraco infernal, cavado nohão, os pés doendo de tanto frio - Em meus três ou quatro primeiros

meses na linha de frente acredito que não tenha tido mais de dozeeríodos de vinte e quatro horas inteiramente sem dormir. Por outro lacerto que não tive noites de sono completo. Dormir vinte ou trinta horuma semana era coisa de todo normal. Os efeitos disso não são tão

uins quanto seria de esperar, pois ficava-se estúpido à beça e a tarefae subir e descer os morros tornava-se mais difícil ao invés de mais fámas eu me sentia bem e estava quase constantemente com fome - cé

ue fome! Toda a comida parecia-me boa, até mesmo o eterno feijão qodos, na Espanha, acabavam finalmente aprendendo a odiar. Nossagua vinha de quilômetros além, nas costas de mulas ou de pobres eerseguidos burros. Por algum motivo que me escapa, os camponesese Aragón tratavam suas mulas bem, mas quanto aos burros,

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ispensavam-lhes um tratamento abominável. Se um burro empacassera comuníssimo que o tropeiro lhe desferisse bom pontapé nos

estículos. Cessara a distribuição de velas, e os fósforos começavam ascassear. Os espanhóis nos ensinaram como fazer lamparinas dezeite com uma lata de leite condensado, um pente de balas (vazio) em pouco de trapos. Quando havia azeite, o que nem sempre ocorria,

quelas coisas queimavam com uma chamazinha fraca e fumacenta,roduzindo luz de um quarto de vela, apenas o suficiente parancontrar-se o fuzil na escuridão.

Não parecia haver esperança alguma de qualquer luta verdadeira.Quando deixamos Monte Pocero, eu contara meus cartuchos e

escobrira que em perto de três semanas disparara apenas três tirosontra o inimigo Dizem que são precisas mil balas para matar um

omem, e naquela batida seriam precisos vinte anos até eu poder matmeu primeiro fascista. Em Monte Oscuro as linhas estavam maisróximas e fazia-se número maior de disparos, mas tenho razoávelerteza de que não acertei pessoa alguma. A bem da verdade, naquelnha de frente e nesse período da guerra a arma verdadeira não era ouzil, mas o megafone. Não se podendo matar o inimigo, gritava-se pale tudo quanto era desaforo e provocação. Tal método de guerra é co

ão extraordinária, que merece explicação.

empre que as linhas se encontravam em distância que a voz humanalcançasse, travava-se intenso intercâmbio de uma trincheira para autra De nós partiam os gritos:

Fascistas - maricones!

, vindo deles:

Viva España! Viva Franco!

Ou então, quando sabiam que havia ingleses no nosso lado, gritavam spanhol:

Voltem pra casa, seus ingleses! Não queremos estrangeiros aqui!

No lado do Governo, as milícias partidárias, o grito de frases de

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ropaganda destinadas a solapar o moral do inimigo já se transformaram técnica regular. Em toda posição que se prestasse a isso haviaomens, em especial os metralhadores que eram dispensados para oabalho de gritar, e que recebiam megafones para isso. Via de regrales berravam uma frase feita, cheia de sentimentos revolucionários quisavam fazer os soldados fascistas compreenderem que não passava

e cachorrinhos do capitalismo internacional, que estavam lutando conua própria classe, etc. etc. e instavam para que se bandeassem paraosso lado. Isso era repetido continuamente por turmas que seevezavam na tarefa, e às vezes adentrava-se pela noite afora. Não háúvida de que o trabalho apresentava efeitos, e todos concordavam emue o gotejamento de desertores fascistas devia-se a isso, em parte.ensando bem no assunto dá para ver que quando um pobre coitadoesignado como sentinela - e muito provavelmente membro de sindicaocialista ou anarquista, apanhado pelo recrutamento contra sua vontaestá enregelado em seu posto, o refrão "Não lute contra sua próprialasse!" a ecoar repetidamente na escuridão acaba por causar certa

mpressão. Podia até representar exatamente a diferença entre desertnão desertar. Está claro que tal método não se ajusta à concepçãoritânica de como fazer a guerra e reconheço ter ficado espantado escandalizado quando, pela primeira vez, vi fazerem isso. Que idéia

stapafúrdia, essa de querer converter o inimigo, ao invés de abrir fogoobre ele! Já agora acredito que, de qualquer ponto de vista pelo qual ncare a questão, era um recurso legítimo. Na guerra comum deincheira, quando não existe artilharia, mostra-se extremamente difícil

nfligir baixas ao inimigo sem que se receba número idêntico dasmesmas. Se for possível imobilizar certo número de homens no lado

posto, fazendo com que desertem, tanto melhor, e os desertores têmmais valor do que cadáveres, pois prestam informações. Mas

nicialmente tal sistema nos desalentou, levando-nos a crer que osspanhóis não estavam encarando aquela guerra muito a sério. Oomem que se encarregava da gritaria destinada ao inimigo, no posto . S. U . C. lá embaixo à nossa direita, era um verdadeiro artista nossunto. As vezes, ao invés de gritar refrões revolucionários, eleimplesmente contava aos fascistas que estávamos muito mais bemlimentados do que eles. Sua descrição das rações que recebíamos d

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Governo tendia, na verdade, a mostrar-se um tanto imaginativa.

Torrada com manteiga! - dava para ouvir no eco que reverberava pelale afora. - Estamos aqui sentados e comendo torradas com manteigaedacinhos lindos de torrada com bastante manteiga!

Não duvido que, como nós, ele não visse manteiga já desde semanas meses atrás, mas naquelas noites geladas as noticias de torradasmersas em manteiga provavelmente puseram muitas bocas fascistasheias de água. Até a minha ficava, embora eu soubesse que ele menescaradamente.

Certo dia, em fevereiro, vimos um aeroplano fascista a aproximar-se.Como de costume, a metralhadora foi levada para o descoberto e seuano virado para cima, enquanto todos se deitavam de costas para fazoa mira. Nossas posições isoladas não valiam o lançamento de umaomba, e via de regra os poucos aviões fascistas que passavam por a

aziam círculos para evitar o fogo das metralhadoras. Mas daquela feiteroplano veio diretamente para nós, alto demais para que se pudessebrir fogo, e dele vieram caindo não bombas, mas coisas brancas erilhantes que revoluteavam no ar. Algumas chegaram até nossaosição. Eram exemplares de um jornal fascista, o Heraldo de Aragân

nunciando a queda de Málaga.Aquela noite os fascistas na posição em frente desferiram um tipo de

taque abortivo. Eu acabava de alojar-me para dormir, meio morto deono, quando estrugiu uma torrente forte de balas por cima e alguémritou no abrigo:

Estão atacando!

assei a mão no fuzil e deslizei até meu posto, na parte de cima daosição e ao lado da metralhadora. Reinavam uma escuridão completaarulheira infernal. O fogo de umas cinco metralhadoras caía sobre nóhouve uma série de estrondos fortes causados pelo arremesso deombas fascistas por sobre seu próprio parapeito, em manobra das ma

diotas. A treva da noite parecia impenetrável e lá embaixo no vale, àossa esquerda, pude ver o brilho esverdeado de fuzis onde um

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equeno número de fascistas, provavelmente em patrulha, metia-se norinquedo. As balas voavam em torno de nós no escuro, com seusuídos característicos. Algumas granadas passaram pelo altossoviando, mas não caíram perto de nós e (como era comum nessauerra) a maioria deixou de explodir. Tive um instante de aperto quandutra metralhadora abriu fogo do alto do morro atrás da gente - na

erdade fora arma trazida ali para nos dar apoio, mas no momentoareceu estarmos cercados. Logo em seguida a nossa própriametralhadora engasgava, como sempre acontecia por utilizar aquelesartuchos do diabo, e a vareta de desentupi-la foi perdida na escuridão

mpenetrável. Parecia que nada mais nos restava, senão ficar quietos ervir de alvos. Os metralhadores espanhóis, em sinal de desdém, nãorocuraram abrigo e, na verdade, expuseram-se deliberadamente, de

modo que tive de fazer o mesmo. Por insignificante que fosse, todoquele acontecimento mostrou-se interessantíssimo. Era a primeira emue eu estivera, a rigor, sob fogo inimigo e, para minha humilhação,erifiquei estar apavorado. Sempre se sente o mesmo, pelo quebservei, quando sob fogo pesado. O medo não é tanto a ser atingidouanto se deve a não sabermos onde vamos sé-lo. Fica-se ali

maginando todo o tempo, pensando em que ponto exato a bala vai noegar, e isso confere a todas as partes do corpo uma sensibilidade das

mais desagradáveis.Depois de uma ou duas horas os disparos diminuiram e cessaram, e podo esse tempo tivemos uma única baixa. Os fascistas avançaram couas metralhadoras até à terra de ninguém, mas guardando uma boaistância e sem fazerem qualquer tentativa no sentido de chegar aoosso parapeito. Na verdade não estavam atacando, e apenas gastavartuchos e faziam uma barulheira dos diabos a fim de comemorar a

omada de Málaga. A importância principal do caso foi que issonsinou-me a ler as noticias da guerra nos jornais com espírito maisrecavido e incrédulo, pois um Ou dois dias mais tarde os jornais e oádio divulgavam relatórios de um ataque tremendo que fora desferidoom cavalaria e tanques (como se pudessem escalar uma encostaerpendicular!) e que os heróicos ingleses repeliram.

Quando os fascistas nos disseram que Málaga caíra em suas mãos,

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chamos ser mentira deles, mas no dia seguinte surgiam boatos maisonvincentes e deve ter passado um dia, ou dois, para o acontecimenter oficialmente reconhecido. Gradualmente toda a história deplorável urgindo - como a cidade fora evacuada sem se disparar um tiro, e comfúria dos italianos recaíra não sobre as tropas, que partiram dali, mas

obre a pobre população civil, partes da qual foram perseguidas e

metralhadas por grande distância. As notícias causaram um calafrio naspinha, em todos nós, pois qualquer que tenha sido a verdade, todosomens na milícia acreditavam que a queda de Málaga devia-se aaição. Era a primeira vez que eu ouvia falar em traição ou metasivergentes, e isso veio a formar em meu espírito as primeiras dúvidasagas a respeito daquela guerra que, até então, apresentara as coisasertas e as erradas com maravilhosa simplicidade.

m meados de fevereiro deixamos Monte Oscuro e fomos mandados,untamente com todas as tropas do P.O.U.M. naquele setor, tomar paro exército que sitiava Huesca. Tratava-se de uma viagem de noventauilômetros em caminhão pela planície no inverno onde os vinhedosodados ainda não estavam brotando e as folhas da cevada mal surgiao solo entorroado. A quatro quilômetros de nossas novas trincheiras,

Huesca rebrilhava, pequenina e clara como uma cidade de casas deonecas Meses antes, quando Sietamo fora tomada, o generaloruandante das tropas do Governo dissera alegremente:

Amanhã tomaremos café em Huesca.

A coisa não saiu como esperava, pois houve ataques cerrados, a cidadão foi tomada, e "Amanhã tomaremos café em Huesca" se tornara umrande piada para todo o exercito. Se algum dia eu voltar à Espanha

arei questão de tomar uma xícara de café em Huesca.

Nada, ou quase nada, aconteceu no lado oriental de Huesca até o finae março. Estávamos a mil e duzentos metros do inimigo. Quando os

ascistas foram repelidos para Huesca, os soldados do ExércitoRepublicano encarregados daquela parte da linha de frente não tinhamido muito ardorosos em seu avanço, de modo que a linha formava um

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spécie de bolsão. Mais tarde seria preciso avançar por ali - o que eraerigoso debaixo do fogo inimigo - mas naquele momento o inimigo, naerdade, podia até não existir, pois nossa única preocupação eraquecer-nos e conseguir alimentação suficiente. A bem da verdade,ouve coisas nesse período que me interessaram profundamente, eerão descritas mais adiante. Mas ficarei mais próximo da ordem dos

contecimentos se procurar apresentar, neste ponto, alguma explicaçãobre a situação política interna no lado do Governo.

De inicio eu ignorara o lado político da guerra, e somente àquela alturaue o mesmo começou a forçar-se à minha atenção. Se o leitor nãostiver interessado nas misérias da política partidária, passe por cima.stou procurando manter as partes políticas desta narrativa em capítueparados, exatamente por esse motivo. Mas seria de todo impossível

o mesmo tempo, escrever a respeito da guerra espanhola com baseum ângulo puramente militar. Tratava-se, acima de tudo, de uma gueolítica e nenhum acontecimento nela, pelo menos no primeiro ano deeu transcurso, pode ser entendido sem que se tenha alguma percepça luta interpartidária que se travava por trás das linhas governamenta

Quando cheguei à Espanha, e por algum tempo depois disso, não sóstava desinteressado pela situação política como também não a

ercebia. Sabia que havia uma guerra, mas não fazia idéia de que tipola era. Se me perguntassem por que ingressara na milícia, eu teriaespondido: "Para lutar contra o fascismo", e se perguntassem pelo qustava lutando, eu diria: "Pela decência comum". Eu aceitara a versãoue o News Chronicle-New Statesman conferira ao conflito, chamandoe defesa da civilização contra um motim maníaco, de um exércitoomposto de Coronéis Blimp 1 a soldo de Hitler. A atmosferaevolucionária de Barcelona me atraíra profundamente, mas eu nãozera qualquer esforço no sentido de compreendê-la. Quanto aoaleidoscópio de partidos políticos e sindicatos de trabalhadores, comeus nomes fatigantes - P.S.U.C., P.O.U.M., F.A.I., C.N.T., U.G.T., J.C.S.U., A.I.T. - serviam apenas para me exasperar. A primeira vistaarecia que a Espanha sofria uma praga de siglas. Eu sabia que estavervindo em alguma coisa chamada o P. O. U. M. (só ingressara nela,

nvés de fazê-lo em qualquer outra milícia, porque chegara a Barcelona

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om documentos da I. L. P.), mas não compreendi que existiam sériasivergências entre os partidos políticos. Em Monte Pocero, quando

ndicaram a posição à nossa esquerda e disseram que "ali estão osocialistas" (o que significava o P.S.U.C.) eu fiquei intrigado e pergunteMas não somos todos socialistas?" Achei bastante idiota o fato de queente lutando pela vida devesse ter partidos separados, e minha atitud

empre foi a de que "devíamos largar de mão aquela besteira políticaoda e tocar a guerra para frente". Está claro que se tratava da atitudeantifascista" correta, cuidadosamente disseminada pelos jornaisngleses, em grande parte para impedir que os leitores compreendesse

natureza real da luta. Mas na Espanha, e principalmente na Catalunhatava-se de atitude que ninguém podia manter indefinidamente. Todoor mais que o evitassem, vinham mais cedo ou mais tarde a tomarartido, pois mesmo quem não desse qualquer importância aos partidoolíticos e suas "linhas" colídentes tinha de perceber que seu próprioestino estava em jogo - Como miliciano, era-se soldado contra Franco

mas era-se também um peão numa luta enorme que se travava entreuas teorias políticas. Quando eu saía à cata de lenha nas encostas d

montanha e ficava pensando se aquilo era mesmo uma guerra ou se oNews Chronicle a inventara, quando eu me esquivava ao fogo demetralhadoras comunistas nas desordens de Barcelona, quando

nalmente fugi da Espanha tendo a polícia nos calcanhares - tudo issocontecera desse modo porque eu servia na milícia do P.O.U.M. e nãoo P.S.U.C. Tal é a grande, a imensa diferença entre duas siglas!

ara compreender o alinhamento no lado do Governo é preciso recordomo a guerra começou. Ao irromper a luta em 18 de julho, é provávelue todos os antifascistas na Europa tenham sido tocados pelasperança, pois ali, finalmente, e pelo que parecia, a democracia

unha-se de pé contra o fascismo. Por anos a fio os chamados paísesemocráticos tinham-se curvado ao fascismo, a cada passo. Aosaponeses dera-se mão livre na Manchúria. Hitler tomara o poder eassara a massacrar os adversários políticos de todos os tipos.

Mussolíni bombardeara os abissínios enquanto cinqüenta e três naçõeacho que foram cinqüenta e três) emitiam sons piedosos - e ficavam dora. Mas quando Franco tentou derrubar um Governo levementesquerdista o povo espanhol, contra todas as expectativas, levantara-s

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ontra isso. Parecia - e talvez fosse - a virada da maré.

Havia diversos pontos, todavia, que escapavam à atenção geral. Paraomeçar, não se podia comparar Franco, a rigor, com Hitler ou Mussoleu levante foi um motim militar apoiado pela aristocracia e pela Igrejam sua maior parte, ao menos de inicio, constituiu tentativa não tanto d

mpor o fascismo quanto restaurar o feudalismo. Isso queria dizer queranco tinha contra si não só a classe trabalhadora, mas tambémiversas partes da burguesia liberal - aqueles mesmos que formam osustentáculos do fascismo quando este surge em forma mais moderna

Mais importante do que isso era o fato de que a classe trabalhadoraspanhola não resistiu a Franco, como talvez pudéssemos fazer na

nglaterra, em nome da "democracia" e do status quo. Sua resistência companhada - e podemos quase dizer que consistiu de - uma explosã

evolucionária definida. A terra foi tomada pelos camponeses e muitasábricas, bem como a maior parte dos meios de transporte, caíram emmãos dos sindicatos. As igrejas foram destroçadas e os sacerdotes

xpulsos ou mortos - O Daily Mal, entre aclamações do clero católico,eve a capacidade de apresentar Franco como um patriota que libertavpaís das hordas de "vermelhos" demoníacos.

Durante os primeiros poucos meses da guerra o verdadeiro oponente d

ranco não foi tanto o Governo quanto o foram os sindicatos. Assim qulevante irrompeu os trabalhadores urbanos organizados retrucaramecretando greve geral e depois exigindo - e conseguindo, após algum

uta - armas dos arsenais públicos. Se não houvessem agidospontaneamente, e de modo mais ou menos independente, é bemossível que Franco jamais encontrasse qualquer resistência. Não podaver qualquer certeza a esse respeito, é claro, mas existem motivos,

menos, para pensar assim. O Governo fizera pouca ou nenhumaentativa de impedir o levante, que fora antevisto muito tempo antes, euando a luta irrompeu sua atitude mostrou-se fraca e hesitante, a talonto que a Espanha chegou a ter três primeiros-ministros num só dia

Além disso, o passo que poderia salvar a situação imediata, que erarmar os trabalhadores, foi dado contra a vontade e resultou de violentlamor popular. Mesmo assim as armas foram distribuídas e nas grandidades da Espanha oriental os fascistas viram-se batidos por um

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sforço imenso, principalmente da classe trabalhadora, auxiliada porarte das Forças Armadas (Guardas de Assalto, etc,) que haviamermanecido fiéis. Era o tipo de esforço que provavelmente só seoderia obter de gente que estivesse lutando com intençãoevolucionária, isto é, acreditando que estava lutando por alguma coisa

melhor do que o status quo. Nos diversos centros da revolta acredita-s

ue três mil pessoas tenham morrido nas ruas, num só dia. Homens emulheres armados apenas com bastões de dinamite corriam pelasraças abertas e atacavam edifícios de pedra guardados por soldadoseinados, que tinham metralhadoras à sua disposição. Ninhos de

metralhadoras que os fascistas colocaram em pontos estratégicos forarrebentados por táxis que se arremessavam sobre eles a sessentauilômetros horários. Ainda que nada se tivesse ouvido sobre a tomada terra pelos camponeses, o estabelecimento de sovietes locais, etc,,eria difícil crer que os anarquistas e socialistas, o esteio da resistênciastivessem fazendo essas coisas para preservar a democraciaapitalista, que principalmente no ponto de vista dos anarquistas nãoassava de uma máquina centralizada para roubar o povo.

nquanto isso, os trabalhadores estavam com armas na mão, e a essaltura abstinham-se de devolvê-las. (Mesmo um ano depois calculava-ue os anarco-sindicalistas na Catalunha tinham 30.000 fuzis em seuoder.) As propriedades dos grandes latifundiários pró-fascistas foramm muitos lugares, tomadas pelos camponeses e juntamente com aoletivizaçao da indústria e transporte houve tentativa no sentido destabelecer as primícias de um governo de trabalhadores, mediante osomitês locais, patrulhas de operários para substituir as antigas forçasoliciais pró-capitalistas, milícias de trabalhadores baseadas emindicatos, e assim por diante. Está claro que tal processo não era

niforme, e foi mais a fundo na Catalunha do que em qualquer outraarte do país. Havia regiões onde as instituições de governo localontinuaram quase incólumes, e outras onde elas coexistiam comomitês revolucionários. Em alguns lugares estabeleceram-se comunanarquistas independentes, e algumas continuaram a existir até um an

mais tarde, quando foram suprimidas à força pelo Governo. NaCatalunha, durante os primeiros meses, a maior parte do poder real

steve em mãos dos anarco-sindicalistas, que controlaram a maior par

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as indústrias principais. O que aconteceu na Espanha, na verdade, nãoi apenas uma guerra civil, mas o inicio de uma revolução. É este o faue a imprensa antifascista fora da Espanha tratou de obscurecer. Auestão viu-se reduzida a "fascismo versus democracia", e o aspectoevolucionário da coisa toda foi oculto tanto quanto possível. Nanglaterra, onde a imprensa se acha mais centralizada e o público é ma

acilmente iludido do que em outros países, apenas duas versões dauerra espanhola mereceram qualquer divulgação: a versão direitista datriotas cristãos versus bolchevistas dos quais gotejava o sangue dasítimas, e a versão esquerdista de republicanos cavalheirescos queufocavam uma rebelião militar. A questão central em jogo foi encober

Havia diversos motivos para que isso ocorresse. De início, mentirasspantosas a respeito de atrocidades estavam circulando na imprensa

avorável aos fascistas, e propagandistas bem intencionados certamenchavam que estavam ajudando o Governo espanhol quando negavamue a Espanha "ficara vermelha". Mas o motivo principal era o seguinteom exceção dos pequenos grupos revolucionários que existem emodos os países, o mundo todo estava resolvido a impedir a revolução spanha. O Partido Comunista, em particular, tendo a Rússia soviéticaor trás, atirou todo o seu peso e vigor contra a revolução. A teseomunista era de que naquela etapa a revolução seria fatal, e o que seevia procurar na Espanha não era o controle pelos trabalhadores, mademocracia burguesa. Quase não se precisa mostrar o motivo peloual a opinião capitalista "liberal" adotou a mesma linha. O capitalstrangeiro encontrava-se fartamente aplicado na Espanha. A Barceloraction Company, por exemplo, representava dez milhões em capital

nglês, e nesse intervalo os sindicatos apoderaram-se de todos osansportes na Catalunha. Se a revolução seguisse sua marcha, não s

eceberia qualquer compensação, ou pouca; se a república capitalistarevalecesse, os investimentos estrangeiros estariam a salvo. E como evolução precisava ser esmagada, tudo ficava muito simplificadouando se fazia de conta que não ocorrera revolução alguma. Desse

modo o significado real de cada acontecimento podia ser encoberto, eoda transferência do poder dos sindicatos para o Governo central poder apresentada como passo necessário na reorganização militar. Aituação assim criada mostrava-se extremamente curiosa. Fora da

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spanha poucos compreendiam que havia uma revolução; dentro doaís, ninguém duvidava disso. Até mesmo os jornais do P .S. U. C.,ontrolados pelos comunistas e mais ou menos comprometidos com uoutrina anti-revolucionária, falavam sobre "nossa gloriosa revolução".nquanto isso a imprensa comunista nos outros países gritava que nãoxistia qualquer sinal de revolução em parte alguma; a tomada das

ábricas, estabelecimento de comitês operários, etc., nada disso ocorreou então, ocorrera, mas não apresentava qualquer importância políticDe acordo com o Daily Worker (6 de agosto de 1936) aqueles que dizi

star o povo espanhol lutando pela revolução social, ou por qualquerutra coisa que não a democracia burguesa, eram "patifes mentirosos escarados". Por outro lado Juan López, membro do Governo de

Valência, declarava em fevereiro de 1937 que "o povo espanhol estáerramando seu sangue, não pela República democrática e sua

Constituição de papel, mas por... uma revolução". Assim poderia parecue os patifes mentirosos e descarados incluíam alguns membros do

Governo pelo qual éramos solicitados a lutar. Alguns dos jornaisntifascistas estrangeiros chegaram até à mentira piedosa de fazer deonta que as igrejas só eram atacadas quando utilizadas como fortalezelos fascistas. Na verdade, as igrejas foram pilhadas por toda a parteo modo mais natural, porque sabia-se muitíssimo bem que a Igreja da

spanha fazia parte da quadrilha capitalista. Em seis meses que passea Espanha vi apenas duas igrejas intatas, e até proximidades de julhoe 1937 igreja nenhuma pôde reabrir as portas e celebrar missa ouualquer atividade, com exceção de uma ou duas igrejas protestantesm Madri.

Mas aquilo, afinal de contas, era apenas o início de uma revolução, eão a coisa completa. Até mesmo quando os trabalhadores, com certe

a Catalunha e possivelmente em outras partes, tiveram o poder paraazer isso, não derrubaram ou substituíram inteiramente o Governo. Erlaro que não podiam fazê-lo, quando Franco estava martelando à pora frente e seções da classe média encontravam-se ao lado dele. O pastava em etapa transitória que podia tomar o rumo do socialismo ouegressar a uma república capitalista comum. Os camponeses possuíamaior parte da terra, e deveriam mantê-la, a menos que Franco

encesse; todas as grandes indústrias foram coletivizadas, mas se

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ontinuariam assim ou se o capitalismo regressaria às mesmas, issoependeria de quem finalmente conquistasse o poder. Ao início, tanto

Governo central quanto o Generalato de Catalunha (o Governo catalãoemi-autônomo) podiam, de modo definido, ser proclamados comoepresentantes da classe trabalhadora. O Governo estava encabeçadoor Caballero, socialista da ala esquerda, e continha ministros

epresentando a U. G. T. (sindicatos socialistas) e o C . N . T. (unidadeindicalistas controladas pelos anarquistas). O Generalato catalão,urante algum tempo, foi virtualmente superado por um Comitê de

Defesa antifascista 3 que consistiu principalmente de delegados vindosos sindicatos. Mais tarde o Comitê de Defesa foi dissolvido e o

Generalato reconstituído de modo a representar os sindicatos e diversartidos esquerdistas. Mas cada manobra subsequente, naeorganização do Governo, constituiu um passo para a direita. De iníciP. O. U. M. foi expulso do Generalato; seis meses depois disso,

Caballero era substituído por Negrín, socialista da ala direita; poucoepois o C . N . T. via-se eliminado do Governo, e então era expulso d

Generalato. Um ano após a eclosão da guerra e revolução restava,nalmente, um Governo composto de socialistas de direita, liberais eomunistas.

A virada geral para a direita data de outubro-novembro de 1936, quandU. R. S.S. começou a enviar armas para o Governo e o poder começpassar dos anarquistas para os comunistas. Com exceção de Rússia

México, nenhum outro pais tivera a decência de vir acudir o Governo, eMéxico, por motivos óbvios, não podia enviar armas em quantidademaior. Por conseqüência, os russos encontravam-se em posição de ditondições. Resta pouquíssima dúvida de que as mesmas diziam, em substância real: "Impeçam a revolução, ou não receberão armas", e qu

primeiro passo contra os elementos revolucionários, a expulsão do.O.U.M. do Generalato catalão, foi dado sob ordens emanadas daU.R.S.S. Já se negou que qualquer pressão tenha sido exercida peloGoverno russo, mas o ponto não apresenta grande importância. pois o

artidos comunistas de todos os países podem ser tidos comoxecutando a doutrina russa, e não se nega que o Partido Comunista fmaior agente, de início contra o P .0. U . M., depois contra osnarquistas e a seção de Caballero dos socialistas e, de um modo ger

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ontra uma doutrina revolucionária. Uma vez obtida a intervenção daU.R.S.S., o triunfo do Partido Comunista ficava assegurado. Paraomeçar, a gratidão à Rússia pelas armas e o fato de que o Partido

Comunista, em especial depois da chegada das Brigadas Internacionaarecia capaz de ganhar a guerra, fizeram subir de modo extraordináriprestígio dos comunistas. Em segundo lugar, as armas russas eram

ornecidas por intermédio do Partido Comunista e os partidos a eleliados, e os mesmos providenciavam para que o menor númeroossível delas chegasse a seus adversários políticos.4 Em terceiro,roclamando uma doutrina não-revolucionária os comunistasonseguiram reunir ao seu redor todos aqueles que os extremistasaviam assustado. Era fácil, por exemplo. convocar os camponeses mrósperos contra a doutrina de coletivização dos anarquistas. Eranorme o crescimento no número de membros do partido. e o influxodvinha em grande parte da classe média - lojistas, funcionários, oficiao Exército, camponeses bem de vida, etc. etc. A guerra, em suassência, era uma luta triangular. A luta contra Franco tinha derosseguir. mas a meta simultânea do Governo era recobrar tanto poduanto restasse em mãos dos sindicatos. Obteve-se isso mediante umérie de pequenas manobras - numa política de alfinetadas, como disslguém - e, em seu conjunto. de modo muito hábil. Não havia qualquer

movimento contra-revolucionário geral e declarado, e até maio de 1937uase não precisaram empregar a força. Sempre era possível trazer oabalhadores ao redil, argumentando-se de modo por demais óbvio paue o repitamos: "A menos que faças isto, aquilo e mais aquilo,erderemos a guerra". Em todos os casos, não preciso dizer, parecia qcoisa exigida pela necessidade militar era a entrega de tudo quanto oabalhadores conquistaram por si próprios em 1936. Mas o argumentoificilmente falharia, pois perder a guerra era a última coisa que os

artidos revolucionários desejavam; se a guerra fosse perdida aemocracia e a revolução, o socialismo e o anarquismo tornar-se-iamalavras ocas, sem sentido. Os anarquistas, formando o único partidoevolucionário com tamanho suficiente para ser levado em conta, forambrigados a ceder, ponto por ponto. O processo de coletivizaçãostacou, os comitês locais foram abolidos, as patrulhas de trabalhador

ambém e as forças policiais de antes da guerra, bastante aumentadas

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muito bem armadas, voltaram à cena, enquanto diversas indústriasrincipais que estiveram sob controle dos sindicatos passavam à posso Governo (a tomada do Centro Telefônico de Barcelona, que levou à

uta de maio, foi um dos incidentes nesse processo); e finalmente, no qra o mais importante de tudo, as milícias de trabalhadores, baseadasos sindicatos, viram-se desfeitas, de modo gradual, e distribuídas pel

ovo Exército Popular, um exército "não-politico" em linhasemiburguesas, com tabela diferencial de soldo, casta de oficiaisesfrutando privilégios, etc. etc. Nas circunstâncias especiais em que sivia, tratava-se do passo realmente decisivo, e ocorreu na Catalunhaepois de efetuar-se em todas as outras partes, porque era ali que osartidos revolucionários se mostravam mais fortes. Como é óbvio, anica garantia que os trabalhadores podiam ter de que iriam continuarom seus ganhos era a manutenção de parte das forças armadas sobeu controle. E como de costume, a dissolução das milícias efetuou-sem nome da eficiência militar, e ninguém podia negar que se tornavaecessária uma completa reorgaIlização militar. Teria sido perfeitamenossível, todavia, reorganizar as milícias e torná-las mais eficientes ao

mesmo tempo em que permanecessem sob controle dos sindicatos, mobjetivo principal da modificação era assegurar que os anarquistas nossuíssem um exército próprio. O espirito democrático das milícias,

lém disso, era campo de cultura para as idéias revolucionárias. Osomunistas percebiam isso muito bem e investiam incessante ecremente contra o P.O.U.M. e o principio anarquista do pagamento

gual para todas as patentes. Um "aburguesamento" geral, umaestruição deliberada do espírito igualitário dos primeiros meses daevolução, estavam tendo lugar. Tudo ocorreu tão depressa que asessoas fazendo visitas sucessivas à Espanha, com intervalos de algu

meses, declararam que mal pareciam estar visitando o mesmo país; o

ue parecera, na superfície e por um breve instante, um Estado deabalhadores, sofria transformação diante dos próprios olhos dosbservadores e tornava-se uma república burguesa comum, com suaivisão normal entre ricos e pobres. No outono de 1937 o "socialista"

Negrín declarava em discursos públicos que "respeitamos a propriedadrivada" e os membros das Cortes, que ao início da guerra fugiram doaís devido às suas simpatias pelos fascistas, regressavam agora à

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spanha.

odo esse processo é fácil de entender quando nos lembramos que elarte da aliança temporária que o fascismo, em certas de suas formas

orça ao burguês e ao operário. Essa aliança, conhecida como Frenteopular, constituí em sua essência uma aliança de inimigos, e parece

rovável que tenha, sempre, que terminar com um dos aliados engolinoutro. O único traço inesperado na situação espanhola - e fora daspanha isso causou uma extensão enorme de mal-entendidos - é quentre os partidos ao lado do Governo os comunistas situavam-se não nxtrema esquerda, mas na extrema direita. Na verdade isso não deverausar surpresa, pois a tática do Partido Comunista em outras partes,m especial na França, já tornou bem claro que o Comunismo Oficialeve ser encarado, pelo menos por enquanto, como força

nti-revolucionária. Toda a doutrina do Comintem está agoraubordinada (e de modo perdoável, levando-se em conta a situaçãomundial) à defesa da U.R.S.S., que depende de um sistema de aliançamilitares. De modo particular, a U.R.S.S. encontra-se em aliança com a

rança, país capitalista-imperialista. Essa aliança de pouco vale à Rúsmenos que o capitalismo francês seja forte, pelo que a doutrina

omunista na França tem de ser anti-revolucionária.

sto quer dizer não apenas que os comunistas franceses marcham hojeob a tricolor e cantam a Marselhesa mas, e o que é mais importante,ue tiveram de abandonar toda a agitação eficiente nas colôniasancesas. Há menos de três anos, Thorez, Secretário do Partido

Comunista francês, declarou que os trabalhadores franceses jamaiseriam seduzidos a lutar contra seus camaradas alemães;5 e ele é hojm dos patriotas mais gritantes da França. A pista para compreendermcomportamento do Partido Comunista, em qualquer pais, é a relação

militar desse país, real ou latente, para com a U.R.S.S. Na Inglaterra, pxemplo, a posição ainda se mostra incerta, daí o fato do Partido

Comunista inglês mostrar-se hostil ao Governo Nacional e, de modostensivo, opor-se ao rearmamento. No entanto, se a Grã-Bretanhantrar em aliança ou entendimento militar com a U.R.S.S., o comunistaritânico, como o comunista francês, não terá outra escolha senão

ornar-se bom patriota e imperialista, e já encontramos sinais indicando

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sso. Na Espanha a "linha" comunista encontrava-se, sem qualquerúvida, sob a influência do fato de que a França, aliada da Rússia,bjetaria com vigor à existência de um vizinho revolucionário e moveriaéus e terras para impedir a libertação do Marrocos espanhol. O Daily

Mail, com suas reportagens de revolução vermelha financiadas porMoscou, estava ainda mais disparatadamente errado do que costumav

ndar. Na realidade, eram os comunistas, acima de quaisquer outros,uem impediam a revolução na Espanha. Mais tarde, quando as forçasa ala direita adquiriram pleno controle, os comunistas mostraram-seispostos a ir muito mais longe do que os liberais na caçada aosirigentes revolucionários.5

entei debuxar o curso geral da revolução espanhola em seu primeirono, porque isso facilita a compreensão da situação em qualquer

momento. Mas não pretendo sugerir que em fevereiro eu tivesse todass opiniões que citei. Logo para começar, as coisas que mais mesclareceram não haviam ocorrido ainda, e seja lá como for minhasreferências eram, de algum modo, diferentes do que são agora. Isso,m parte, deve-se ao fato de que o lado político da guerra me aborrecieu reagia de modo natural contra o ponto de vista sobre o qual maisuvia falar - o ponto de vista P.O.U.M. - I.L.P. Os ingleses entre os quau me encontrava eram, em sua maioria, membros da I. L. P., comlguns membros do Partido Comunista britânico em seu meio, e quase

odos muito mais bem educados politicamente do que eu. Por semanao, durante o período monótono quando nada acontecia ao redor de

Huesca, achei-me no meio de uma discussão política que praticamenteão terminava. No paiol bem ventilado e malcheiroso da fazenda ondestávamos acomodados, na escuridão abafada dos abrigos, por trás darapeito nas horas frígidas da noite, as "linhas" partidárias colidentes

ecebiam debate e mais debate. Entre os espanhóis ocorria o mesmo, maioria dos jornais que líamos tornava a disputa interpartidária seussunto principal. Seria preciso estar surdo, ou tomado de imbecilidadeara não se fazer alguma idéia do que os diversos partidos defendiam

Do ponto de vista da teoria política, havia apenas três partidos queontavam, o P.S.U.C., o P.O.U.M. e o C.N.T. - F.A.I., de um modo geraimpreciso descrito como os anarquistas". Examino o P .S. U . C. em

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rimeiro lugar, por ser o mais importante. Era o partido que finalmenteiunfou, e já naquela época estava visivelmente em ascensão.

orna-se necessário explicar que quando se fala da "linha" do P.S.U.Cstá-se, na realidade, falando da "linha" do Partido Comunista, O.S.U.C. (Partido Sociologista Unificado de Cataluña) era o Partido

ocialista da Catalunha, formado ao início da guerra pela fusão deiversos partidos marxistas, inclusive o Partido Comunista Catalão, machava-se agora inteiramente sob controle comunista e filiado à Terce

nternacional. Por todo o resto da Espanha não se efetuara umanificação formal entre socialistas e comunistas, mas o ponto de vistaos últimos e o ponto de vista dos socialistas de direita podiam, por todparte, ser tomados como idênticos. A grosso modo, o P.S.U.C.

onstituía o órgão político da U.G.T. (Unión General de Trabajadores),

ejam os sindicatos socialistas. O número de membros desses sindicaor toda a Espanha atingia, naquela época, perto de um milhão e meioles continham muitas seções dos trabalhadores manuais, mas desdeclosão da guerra ampliaram-se por um grande influxo de membros dalasse média, pois nos primeiros dias "revolucionários" gente de todospos verificara ser útil ingressar na U. G . T. ou no C. N . T. Os doislocos de sindicatos sobrepunham-se em diversas partes, mas dos doC.N.T. mostrava-se de modo mais definido uma organização da clasabalhadora. O P.S.U.C., portanto, era um partido formado em parteelos trabalhadores e em parte pela pequena burguesia - os lojistas,

uncionários e camponeses mais prósperos.

A "linha" do P.S.U.C. que se pregava na imprensa comunista eró-comunista por todo o mundo era mais ou menos a seguinte:

No presente nada mais conta senão ganhar a guerra; sem a vitória na

uerra tudo o mais não faz sentido. Por esse motivo, não é este omomento para falar em tocar à frente a revolução. Não podemos afast

s camponeses, forçando-os à coletivização, e não podemos afugentas classes médias que estiveram lutando a nosso lado. Acima de tudoelo bem da eficiência, temos de acabar com o caos revolucionário.recisamos de um governo central forte, em lugar dos comitês locais, recisamos de um exército adequadamente preparado e de todo

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militarizado, sob comando unificado. Prender-se a fragmentos doontrole pelos trabalhadores e repetir frases revolucionárias comoapagaio é pior do que inútil, e se mostra não só obstrucionista, mas aontra-revolucionário, pois conduz a divisões que podem ser utilizadasontra nós pelos fascistas. Nesta etapa não estamos lutando pelaitadura do proletariado, mas pela democracia parlamentar. Quem ten

ansformar a guerra civil numa revolução social estará fazendo o jogoos fascistas e será na realidade, senão em intenção, um traidor".

A "linha" do P.O.U.M. diferia disso em todos os pontos, abrindo-sexceção, é claro, para a importância de ganhar a guerra. O P.O.U.M.Partido Obrero de Unificación Marxista) era um daqueles partidosomunistas dissidentes que surgiram em muitos países, nos últimosnos, como resultado da oposição ao "estalinismo", isto e, a modificaç

erdadeira ou aparente, na doutrina comunista. Formava-se em parte dx-comunistas e, em parte, de um partido anterior, o Bloco derabalhadores e Camponeses. Numericamente, era pequeno,7 semrande influência fora da Catalunha e sua importância maior era porossuir uma proporção invulgar de membros politicamente esclarecido

Na Catalunha seu bastião mais forte era Lerida. Não representavaualquer bloco de sindicatos, e os milicianos, em sua maioria, eram

membros do C.N.T., mas os verdadeiros membros do partidoertenciam, via de regra, à U.G.T. Era somente com a C.N.T., entretanue o P.O.U.M. possuía qualquer influência. Sua "linha" eraproximadamente a seguinte:

É tolice falar em opormo-nos ao fascismo pela 'democracia' burguesademocracia' burguesa não passa de outro nome para o capitalismo, beomo o fascismo. Lutar contra o fascismo em nome da 'democracia' é

utar contra uma forma de capitalismo em nome de outra, que poderáirar a qualquer instante. A única alternativa verdadeira ao fascismo eso controle pelos trabalhadores. Se estabelecermos qualquer outra meue não essa, estaremos entregando a vitória a Franco ou, quando

muito, deixaremos o fascismo entrar pela porta dos fundos. Enquantosso os trabalhadores devem ater-se a tudo aquilo que tenhamonquistado. e se cederem alguma coisa ao Governo semiburguêsoderão estar certos de que serão tapeados. As milícias de

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abalhadores e suas forças policiais devem ser conservadas em suaorma atual e deve-se resistir a qualquer esforço por 'aburguesálas'. Ses trabalhadores não tiverem o controle das Forças Armadas, estasontrolarão os trabalhadores. A guerra e a revolução são inseparáveis

O ponto de vista dos anarquistas mostra-se menos fácil de definir. Seja

á como for, o termo genérico "anarquistas" é utilizado para abarcar ummultidão de pessoas com opiniões muito diferentes entre si. O grandeloco de sindicatos formando a C . N . T. (Confederación Geral derabajadores), com perto de dois milhões de membros ao todo, tinhaomo seu órgão político a F.A.I. (Federacion Anarquista Ibérica), que eealmente uma organização anarquista. Mas os seus próprios membrombora adotando a filosofia anarquista em parte, como de resto pareccontecer à maioria dos espanhóis, não eram obrigatoriamente

narquistas no sentido puro da palavra. De um modo especial, desde onício da guerra, marcharam mais na direção do socialismo comum,orque as circunstâncias forçavam-nos a participar na administraçãoentralizada e, mesmo, a romper todos os seus princípios, ingressandoo Governo. Ainda assim diferiam de modo fundamental dos comunistor visarem, como o P.O.U.M., o controle pelos trabalhadores e não umemocracia parlamentar. Aceitavam o refrão do P.O.U.M.:

A guerra e a revolução são inseparáveis", embora se mostrassemmenos dogmáticos nesse ponto. De um modo geral, a C.N.T. - F.A.I. efavor de: (1) Controle direto sobre a indústria, exercido pelosabalhadores empenhados na mesma, como no caso dos transportes,

ecelagens, etc.; (2) governo por comitês locais e resistência a todas aormas de autoritarismo centralizado; (3) hostilidade invariável para comburguesia e a Igreja. Este último ponto, embora o menos preciso, era

ambém o mais importante. Os anarquistas constituíam o oposto damaioria dos chamados revolucionários, pois embora seus princípios semostrassem bastante vagos, seu ódio ao privilégio e à injustiça

presentava-se com autenticidade. Pelo aspecto filosófico, comunismonarquismo são pólos opostos. Na prática, isto é, na forma de sociedaisada, a diferença está mais na ênfase, mas é de todo irreconciliável. omunista confere destaque sempre ao centralismo e à eficiência, onarquista à liberdade e igualdade. O anarquismo tem raízes profunda

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a Espanha e deverá viver mais do que o comunismo, quando anfluência russa for retirada. No curso dos primeiros dois meses dauerra foram os anarquistas, mais do que quaisquer outros, quem salvsituação, e muito depois disso a milícia anarquista, a despeito de sua

ndisciplina, constituía sabidamente os melhores soldados entre as forçuramente espanholas. Desde princípios de fevereiro de 1937 os

narquistas e o P OU. M. podiam, em certa medida, ser agrupados. Ses anarquistas, o P O U M e a ala esquerda dos socialistas tivessem ono de combinar-se desde o inicio e forçar uma política realista, a histoa guerra poderia ser diferente. Mas no período inicial quando osartidos revolucionários pareciam ter a presa nas mãos, isso fora

mpossível. Entre anarquistas e socialistas existiam rivalidades antigas.O.U.M., como marxista, encarava o anarquismo com ceticismo,nquanto que de um ponto de vista anarquista puro o "trotskismo" do.O.U.M não era mais preferível do que o "estalinismo" dos comunista

Ainda assim a tática comunista tendia a aproximar os dois partidos.Quando o P.O.U.M entrou na luta desastrosa que se travou em maio, e

arcelona, isso resultou principalmente de um instinto que levava a eso lado da C.N.T. e mais tarde, quando o P.O.U.M. foi suprimido, osnarquistas foram os únicos que tiveram a coragem de erguer a voz emua defesa.

Assim é que, a grosso modo, o alinhamento de forças se constituía. Am lado a C.N.T. - F.A.I., o P.O.U.M e uma seção dos socialistas, a favo controle pelos trabalhadores; ao outro os socialistas de direita, libercomunistas, a favor de um governo centralizado e um exército

militarizado.

A esta altura torna-se fácil ver porque eu preferia o ponto de vistaomunista ao do P.O.U.M. Os comunistas possuíam uma doutrina pratefinida, claramente melhor do ponto de vista do bom senso, que olhapenas os poucos meses à frente. E decerto a política cotidiana do.O.U.M., sua propaganda, e assim por diante, mostravam-se

ndescritivelmente ruins; deve ter sido assim ou, do contrario, eles teriaonseguido atrair um número bem maior de seguidores e adeptos. O qesolvia a questão era que os comunistas - ou isso pareceu a mim -stavam dando seguimento a guerra, enquanto nós e os anarquistas

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ermanecíamos parados. Era esse o sentimento geral naquela ocasiãoOs comunistas conquistaram poder e vasto aumento de seguidoresmediante seus apelos às classes médias contra os revolucionários, ma

m parte também porque eram as únicas pessoas que pareciam capaze ganhar a guerra As armas russas e a defesa magnífica de Madri poopas que estavam principalmente sob controle comunista fizeram dos

ermelhos os heróis da Espanha Como alguém o afirmou, cadaeroplano russo que sobrevoava nossas cabeças era propagandaomunista. O purismo revolucionário do P.O.U.M., embora euercebesse sua lógica, parecia-me bastante infrutífero; afinal de contaque importava era ganhar a guerra.

revalecia, enquanto isso, a disputa interpartidária diabólica que seavava nos jornais, panfletos, cartazes, livros - por toda a parte. A ess

ltura os jornais que eu via com mais freqüência eram os do P.O. U. Ma Batalla e Adelante, e suas criticas constantes ao P .S. U. C.contra-revolucionário" pareceram-me presunçosas e cansativas. Maisarde, ao examinar melhor a imprensa do P .S. U. C. e dos comunistasompreendi que o P .O. U. M. estava praticamente isento de culpa,omparado a seus adversários. A parte de tudo o mais, eles tinhamportunidades muito menores, e diversamente dos comunistas nãoossuíam base em qualquer imprensa, a não ser em seu próprio país, entro da Espanha achavam-se com desvantagem enorme, pois aensura estava sob controle comunista, em sua maior parte, de modoue os jornais do P. O. U. M. podiam ser suprimidos ou multados seissessem alguma coisa considerada daninha. Também é fazer justiçao P. O. U. M. o afirmar que embora eles pudessem fazer sermões semm a respeito da revolução e citar Lênin ad nauseam, via de regra nãompenhavam em calúnias pessoais. Restringiam suas polêmicas, além

isso, aos artigos em jornal. Seus grandes cartazes coloridos, destinadum público mais amplo (os cartazes são importantes na Espanha, coua grande população analfabeta), não atacavam os partidos rivais, mram simplesmente antifascistas ou abstratamente revolucionários, beomo as canções entoadas pelos milicianos. Os ataques desferidoselos comunistas eram coisa muito diferente, e falarei deles noutra pareste livro. Neste ponto posso apresentar apenas uma indicaçãoesumida de sua linha de ataque.

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Analisando-se superficialmente, a briga entre comunistas e o P.O.U.Mra de tática. O P.O.U.M. favorecia a revolução imediata, e osomunistas não. Até aí, tudo bem, e havia muito a ser dito por ambos o

ados. Além disso, os comunistas afirmavam que a propaganda feita pe.O.U.M. dividia e enfraquecia as forças do Governo e, assim, punhamuerra em risco; e também nesse aspecto, embora mais tarde cu não

oncordasse, podia-se aceitar tais afirmações. Mas aqui entrava emena a peculiaridade da tática comunista. Experimentalmente de inícioepois em tom mais alto, eles começaram a afirmar que o P.O.U.M.ividia as forças do Governo não por erro involuntário, mas por intuitoeliberado. Afirmava-se que o P.O.U.M. não passava de uma quadrilhae fascistas disfarçados, pagos por Franco e Hitier, que instavam porma política pseudo-revolucionâría como recurso para ajudar a causa

ascista. O P.O.U.M. era uma organização "trotskísta" e a "Quinta Colue Franco". Isso queria dizer que muitos milhares de membros da clasabalhadora, inclusive oito ou dez mil soldados que se enregelavam nincheiras da linha de frente, bem como centenas de estrangeiros queinham à Espanha para lutar contra o fascismo, muitas vezesacrificando seus empregos e nacionalidade para isso, eramimplesmente traidores pagos pelo inimigo. E essa história foi divulgador toda a Espanha mediante cartazes, etc. e repetida sem cessar pela

mprensa comunista e pró-comunista de todo o mundo. Eu poderiancher meia dúzia de livros com citações, se quisesse fazê-lo.

stavam, portanto dizendo o seguinte contra nós: que éramos trotskistascistas, traidores, assassinos, covardes, espiões e assim por diante.

Reconheço não ser agradável receber tais nomes, ainda mais quando ensa em algumas das pessoas responsáveis pelos mesmos - Não éoisa agradável ver um rapazinho espanhol, de quinze anos, sendo

arregado da linha de frente em maca, com o rosto pálido espiando poima dos cobertores, e pensar nas pessoas elegantes que, em Londrearis, escrevem panfletos destinados a provar que ele não passa de u

ascista disfarçado. Um dos traços mais horríveis da guerra é que todaropaganda guerreira, todos os gritos e mentiras e ódio, vêm

nvariavelmente de pessoas que não estão lutando. Os milicianos do.S.U.C. a quem conheci na linha de frente, os comunistas da Brigada

nternacional que encontrei de vez em quando, jamais me chamaram d

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otskista ou traidor; deixavam essa tarefa para os jornalistas naetaguarda. As pessoas que escreviam panfletos contra nós e nosilipendiavam nos jornais ficavam, todas elas, bem seguras em suasasas, ou quando muito nas redações de Valência, a centenas deuilômetros das balas e da lama. E à parte das calúnias da luta

nter-partidária, todo o aparato comum de guerra, a fanfarra, o heroísm

vilipêndio ao inimigo - tudo isso era feito, como de costume, poressoas que não estavam lutando e que, em muitos casos, prefeririamorrer cem milhas numa fuga disparada a lutar. Um dos mais tristesfeitos desta guerra foi ensinar-me que a imprensa esquerdista é tão

alsa e desonesta quanto a da direita.8 Tenho a impressão sincera deue em nosso lado - o lado do Governo - essa guerra foi diferente dasuerras comuns, imperialistas, a julgar pela natureza da propaganda,ntretanto, jamais se poderia adivinhá-lo. Mal começara a luta e já os

ornais, tanto da direita quanto da esquerda, mergulhavam ao mesmoempo na mesma sentina de despudor. Todos recordamos o cartazivulgado pelo Daily Mail, intitulado "vERMELHOS CRUCIBICAM IRMÃ

DE CARIDADE", enquanto que, para o Daily Worker, a Legiãostrangeira de Franco era composta de "assassinos, prostituidores.

oxicômanos e o rebotalho de todos os países europeus". Até mesmo eutubro de 1937 o New Statesman nos brindava com narrativas de

arricadas fascistas formadas com os corpos de crianças vivas (materos mais imprestáveis para uma barricada, posso assegurar), e o Sr.Arthur Bryant declarava que serrar as pernas a um comercianteonservador" constituía "coisa comum" na Espanha legalista. As pessoue escrevem coisas assim são gente que nunca lutou, e possivelmencreditam que escrever é coisa capaz de substituir o lutar. É o mesmom todas as guerras - os soldados lutam, os Jornalistas gritam e nenhuatriota verdadeiro chega perto de uma trincheira da frente, a não ser

os mais curtos passeios para fins propagandísticos.Há ocasiões em que se torna reconfortante, para mim, pensar como o

eroplano está modificando as condições da guerra. Talvez na próximarande guerra possamos ver alguma coisa sem precedentes em toda aistória: um patrioteiro furado à bala.

No que dizia respeito à parte jornalística, essa guerra era apenas um

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egócio a explorar, como outro qualquer. Mas havia uma diferença: a due enquanto os jornalistas, via de regra, reservavam suas invectivas

mais mortíferas para o inimigo, neste caso e ao correr do tempo osomunistas e o P .O . U . M. passaram a escrever com mais azedume,m sobre o outro, do que sobre os fascistas. Ainda assim, não conseg

evar isso muito a sério naquela ocasião. A disputa interpartidária

mostrava-se incômoda e até repugnante, mas parecia uma querelaoméstica. Eu não acreditava que viesse a alterar coisa alguma, ou quealmente existisse qualquer divergência política irreconciliável.

Compreendia que comunistas e liberais empenhavam tudo para evitareue a revolução seguisse sua marcha, mas não compreendia que elesudessem fazer recuar.

Havia bons motivos para isso. Por todo aquele tempo eu me achava na

ente, e ali a atmosfera social e política não se alterara. Eu deixaraarcelona no inicio de janeiro e não tive qualquer licença senão em fine abril, e por todo esse tempo - e até período posterior - na faixa de

Aragón controlada pelas tropas anarquistas e do P .0. U . M. persistiras mesmas condições, pelo menos exteriormente. Continuava atmosfera revolucionária como eu a vira pela primeira vez. Generais eoldados, camponeses e milicianos prosseguiam dando-se como iguaiodos recebiam a mesma paga. usavam as mesmas roupas, comiam a

mesma comida e chamavam aos demais "tu" e "camarada". Não havialasse patronal, classe braçal, mendigos, prostitutas. advogados,acerdotes, nem sabujice ou continências e zumbaias. Eu respirava o a igualdade. e em minha simplicidade imaginava que fosse o mesmoor toda a Espanha. Não compreendia que por uma questão deasualidade, mais ou menos, estava isolado em meio à parte maisevolucionária da classe trabalhadora espanhola.

Assim foi que quando meus camaradas com melhor educação políticame disseram que não se podia adotar uma atitude puramente militar paom a guerra, e que a escolha era entre a revolução e o fascismo. eu reles. No todo, eu aceitava o ponto de vista comunista, que se reduziao seguinte: "Não podemos falar em revolução enquanto não ganharmguerra", e não o ponto de vista do P.O.U.M., que afirmava em sua linásica: "Temos de tocar à frente, ou recuaremos". Mais tarde, quando

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esolvi que o P.O.U.M. estava certo, ou pelo menos mais certo do que omunistas, isso não se deveu inteiramente a uma questão de teoria. Napel, a opinião comunista era boa, mas o problema é que noomportamento real eles tornavam difícil crer que a estivessempresentando com boa fé. O refrão tão repetido, "A guerra primeiro e aevolução depois", embora fosse coisa aceita com devoção pelo milicia

omum do P .S. U. C., que sinceramente acreditava que a revoluçãooderia continuar quando a guerra estivesse ganha, não passava deuvem de fumaça. Aquilo pelo que os comunistas trabalhavam não eradiar a revolução espanhola para uma ocasião mais oportuna, masrovidenciar para que jamais se efetuasse. Isso foi-se tornando cada v

mais claro ao correr do tempo, enquanto o poder era cada vez maisxtraído das mãos dos trabalhadores, e um número crescente deevolucionários de todos os matizes ia ter às prisões. Cada passo dadoecebia a justificação da necessidade militar, porque esse pretexto jástava, por assim dizer, pronto, mas o efeito foi levar os trabalhadores air de uma posição vantajosa para outra na qual, quando a guerraerminasse, veriam ser impossível resistir à reintrodução do capitalismoeço observar que nada estou dizendo contra os comunistas comuns,

muito menos contra os milhares deles que morreram heroicamente pee Madri. Mas aqueles não eram os homens a dirigir a política de seu

artido. Quanto aos elementos em posições mais altas, é inconcebívelue não estivessem agindo com os olhos muito bem abertos.

Mas, afinal, valia a pena ganhar a guerra, ainda que perdendo aevolução. E no final cheguei a duvidar de que a política comunista, aongo prazo, levasse à vitória. Pouquíssimos parecem ter refletido quema política diferente poderia mostrar-se apropriada em períodosiferentes da guerra. Foram os anarquistas, provavelmente, que

alvaram a situação nos dois primeiros meses, mas se mostraramncapazes de organizar a resistência além de certo ponto; é provável qenham sido os comunistas que salvaram a situação emutubro-dezembro, mas ganhar a guerra de uma vez era outro caso. N

nglaterra, a política comunista de guerra foi aceita sem perguntas, poiouquíssimas criticas à mesma conseguiram chegar à publicidade, eorque sua linha geral - a de acabar com o caos revolucionário, acelerprodução, militarizar o exército - parecia realista e eficiente. Vale a

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ena indicar suas debilidades.

A fim de deter qualquer tendência revolucionária e tornar a guerra umcontecimento tão comum quanto possível, fez-se preciso abandonar aportunidades estratégicas que realmente existiam. Já descrevi comostávamos armados, ou desarmados, na frente de Aragón Resta

ouquíssima dúvida de que as armas eram deliberadamente retidas,ara que não fosse um número demasiado delas chegar às mãos dosnarquistas, que depois disso as poderiam utilizar para finsevolucionários. Por conseqüência, a grande ofensiva em Aragón, queeria feito Franco retirar-se de Bilbao e talvez de Madri jamais ocorreu.

Mas isso era, por comparação, coisa de menor importância. O importara que uma vez ter a guerra sido reduzida a uma "guerra pelaemocracia tornou-se impossível fazer qualquer apelo solicitando a aju

a classe trabalhadora no exterior Se examinarmos os fatos teremos deconhecer que a classe trabalhadora do mundo encarou a guerraspanhola com desinteresse. Dezenas de milhares de indivíduos foram

utar, mas as dezenas de milhões que não o fizeram mantiveram-sepáticas. No curso do primeiro ano de guerra todo o povo britânico, aoue se calcula, contribuiu com perto de 250.000 libras para os diversos

undos de "ajuda à Espanha" - o que provavelmente está abaixo dametade que gasta numa única semana, para ir ao cinema O modo pelo

ual a classe trabalhadora nos países democráticos poderia realmenteer auxiliado seus camaradas espanhóis era pela ação industrial - grevboicotes. Coisa nenhuma desse tipo sequer se esboçou. Os dirigenteabalhistas e comunistas declararam por toda a parte que isso era

nconcebível, e certamente tinham razão, ao mesmo tempo em queroclamavam a plenos pulmões que a Espanha "vermelha" não eravermelha". Desde 1914-1918 essa coisa de "guerra pela democracia"

dquiriu um tom sinistro. Por anos a fio os próprios comunistasnsinaram aos trabalhadores militantes em todos os países quedemocracia" era um nome educado para capitalismo. E dizernicialmente "a democracia é um roubo", e depois "lutemos pelaemocracia!" não chega a ser boa tática. Se, com o prestigio imenso d

Rússia soviética a seu favor, eles lançassem apelos aos trabalhadoreso mundo, em nome não da "Espanha democrática", mas da "Espanhaevolucionária", é difícil acreditar que deixassem de obter êxito.

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O mais importante, porém, é que com uma política não-revolucionáriara difícil, senão impossível, atacar a retaguarda de Franco. No verão 937 Franco controlava uma parte da população espanhola que era mumerosa do que a controlada pelo Governo, muito maior se contarmos colônias, tendo mais ou menos o mesmo número de soldados. Com

odos sabem, tendo-se uma população hostil às costas não é possível

manter um exército em luta sem que se disponha de outro, do mesmoamanho, para guardar as comunicações, impedir a sabotagem, etc.ornava-se óbvio, portanto, que não existia qualquer movimento populerdadeiro na retaguarda franquista. Era inconcebível que o povo emerritório controlado por Franco, pelo menos os trabalhadores urbanos s camponeses mais pobres, gostassem dele ou o quisessem, mas aada guinada para a direita a superioridade do Governo tornava-se

menor. O que elucida tudo é o caso do Marrocos. Por que não houveualquer levante no Marrocos? Franco procurava estabelecer umaitadura infame, e na verdade os mouros o preferiram, e não ao Govera Frente Popular! A verdade palpável é que tentativa nenhuma foi feitor fomentar um levante no Marrocos, porque fazê-lo representaria trama construção revolucionária à guerra. A primeira necessidade, paraonvencer os mouros quanto à boa fé do Governo, teria sido proclamabertação do Marrocos. E podemos calcular como os franceses ficariam

atisfeitos com isso! A melhor oportunidade estratégica da guerra foiogada fora, na vá esperança de aplacar o capitalismo francês e inglêsoda a tendência da política comunista era no sentido de reduzir auerra a um conflito comum e não-revolucionário no qual o Governo sechava com bastante desvantagem, pois uma guerra desse tipo tem der ganha por meios mecânicos, isto é, em última análise, poruprimentos ilimitados de armas; e o maior doador de armas do

Governo, a U.R.S.S., encontrava-se em grande desvantagem, pelo po

e vista geográfico, comparado à Itália e Alemanha. Talvez o refrão do.O.U.M. e anarquistas, "A guerra e a revolução são inseparáveis" fosmenos visionário do que parece.

Apresentei, assim, meus fundamentos para crer que a políticanti-revolucionáría comunista estava errada, mas no que diz respeito aeu efeito sobre a guerra, não tenho sequer esperanças de que minhapinião esteja certa. Espero ardentemente que esteja errada. Eu gosta

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e ver essa guerra ganha, por qualquer meio. E é claro que nãoodemos dizer, ainda, o que vai acontecer. O Governo poderá virar-seovamente para a esquerda, talvez os mouros se rebelem por siróprios, a Inglaterra poderá resolver-se a entrar em acordo com a Itálara que esta fique de fora, a guerra poderá ser ganha por meios

militares diretos - ninguém sabe. Mas deixo em pé as opiniões acima,

empo dirá se estou certo ou errado.m fevereiro de 1937, no entanto, eu não via as coisas assim. Estavanjoado pela inatividade na frente de Aragón, e destacadamenteonsciente de que não contribuíra com toda a minha parte na luta.

Costumava pensar nos cartazes de recrutamento em Barcelona, quendagava aos transeuntes em tom acusador: "O que fizeste pelaemocracia?" E achava que só podia responder o seguinte: "Recebi e

astei minhas rações". Ao entrar na milícia, prometera a mim mesmo qmataria um fascista - afinal, se cada um de nós fizesse o mesmo, logossa espécie estaria extinta - e ainda não matara ninguém e não tiveraportunidade para fazê-lo. E queria ir a Madri, naturalmente! Todos noxército, quaisquer que fossem suas opiniões políticas queriam semprMadri. Provavelmente isso representaria' passar para a Coluna

nternacional, pois o P.O.U.M. tinha então pouquíssimos soldadosaquela capital, e os anarquistas menos do que antes.

or enquanto, é natural, tínhamos de ficar na linha de frente, mas euisse a todos que quando saíssemos em licença passaria se possívelara a Coluna Internacional, o que significava entrar sob controleomunista. Foram diversos os que procuraram dissuadir-me, masinguém tentou interferir. É de justiça dizer que havia pouquíssimaostilidade, no P .0. U . M., aos que pensassem de outro modo. Talvezssa liberdade fosse excessiva, levando-se em conta as circunstanciasspeciais em que se achava aquela organização, mas com exceçãoberta para os que fossem favoráveis aos fascistas, ninguém eraastigado por sustentar as opiniões políticas erradas, ou de outra cor.assei muito tempo na milícia criticando amargamente a "linha" do.O.U.M., mas isso jamais me causou dificuldades. Nem sequer houveualquer pressão sobre mim para que me tornasse membro político doartido, embora acredite que a maioria dos milicianos o fizesse, Eu

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unca entrei para o partido - e por isso, quando o P,O.U.M. foi suprimidosteriormente, fiquei bastante sentido.

Continuava a rotina diária - ou, mais precisamente, noturna - das tarefaomuns. Sentinela, patrulhas, cavar o chão; lama, chuva, ventosstridentes, de vez em quando alguma neve. Somente quando bemntrados em abril é que as noites se tornaram perceptivelmente maisuentes. Lá naquele planalto os dias de março pareciam-se mais ao

março na Inglaterra, com céus de azul brilhante e ventos amolantes. Aevada atingia um palmo de altura, nas cerejeiras formavam-se botõesubros (a linha de frente passava por pomares abandonados e canteiroe hortaliças) e quem procurasse nas valas encontrava violetas e um t

e jacinto agreste. Logo por trás da linha havia uma correntemaravilhosa, verde e cantarolante, a primeira água transparente que eia desde minha chegada à frente. Certo dia cerrei os dentes errastei-me até ao rio para tomar meu primeiro banho em seis semanaoi o que se pode chamar "banho curto", pois a água estava poucocima do ponto de congelamento.

nquanto isso, nada acontecia, como sempre. Os ingleses adquiriram

ábito de dizer que aquilo não era uma guerra, mas uma pantomima. Oogo direto dos fascistas mal poderia nos atingir e o único perigo residias balas perdidas que, como as linhas se dobravam à frente em ambs lados, vinham de diversas direções. Todas as baixas nessa ocasiãoram devidas a projéteis perdidos. Arthur Clinton recebeu uma bala

misteriosa que lhe estraçalhou o ombro esquerdo e inutilizou o braço,eceio que para sempre. Havia algumas granadas explodindo, mas eraoisa extraordinariamente ineficaz. O silvo e estrondo das granadas, n

erdade, eram tomados como ligeira diversão. Os fascistas jamaistiraram suas granadas sobre nosso parapeito. Algumas centenas de

metros atrás de nós havia uma casa de campo, chamada La Granja, crandes construções rurais, utilizada como depósito, quartel-general eozinha para aquele setor da linha de frente. Era. aquilo que os fascistisavam com suas granadas de artilharia, mas eles se achavam a cincu seis quilômetros de distância e jamais miraram tão bem que

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onseguissem mais do que quebrar os vidros das janelas e arranhar aaredes. O único perigo era estar na estrada, subindo, quando a fuzilaomeçasse, e as granadas caíssem no terreno em qualquer dos lados

Aprendia-se quase imediatamente a arte misteriosa de saber, pelo ruídeito, se a granada ia cair perto ou longe. As granadas disparadas pelartilharia fascista, nesse período, eram pavorosamente ruins, isto é, de

éssima qualidade.. Embora os fascistas utilizassem armas de calibre50 mm, seus petardos abriam crateras com apenas uns dois metros diâmetro e mais ou menos um metro de profundidade; além dissó, emada quatro projéteis pelo menos um deixava de explodir ao tocar ohão. Em nosso meio circulavam histórias românticas a respeito deabotagem feita nas fábricas fascistas e as granadas que não explodiaas quais podia-se encontrar, ao invés da carga explosiva, um pedaçoe papel dizendo "Frente Vermelha", mas nunca vi uma delas. O fato éue as granadas já tinham muita idade, e alguém recolheu uma espolee latão, certa feita, onde se encontrava registrado o ano de fabricação917. Os canhões fascistas eram do mesmo modelo e calibre que osossos, e as granadas que não explodiam serviam para serecondicionadas e depois disparadas de volta contra o inimigo. Dizia-sue havia uma velha granada que tinha até apelido e que viajavaiariamente de um para o outro lado, sem jamais explodir.

A noite costumávamos mandar patrulhas pequenas à terra de ninguémeitados ali em valas próximas das linhas fascistas os homens ouviamons vindos de lá (toques de cometa, buzinas de veículos, e assim poriante) e que indicassem atividade em Huesca. Havia um vaivémonstante de tropas fascistas, e os números podiam até certo ponto se

medidos com base nas informações prestadas por esses elementos descuta. Sempre tínhamos ordens especiais para dar parte do toque de

inos da igreja, pois parecia que os fascistas iam à missa antes de entm ação. Lá no meio dos campos e pomares encontrávamos cabanasbandonadas, com paredes de barro, que se podia explorar com um

ósforo aceso depois de cobrir as janelas. As vezes encontrávamosoisas de valor, como uma machadinha ou uma garrafa de água dosascistas (melhor do que a nossa e muito disputada). Podíamos explorambém de dia, mas nesse caso quase todo o caminho tinha de ser feiastejando. Era uma coisa estranha estar rastejando naqueles terrenos

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bandonados e férteis, onde tudo fora largado exatamente em ponto dolheita. Os cultivos do ano anterior nem sequer foram tocados. Osinhedos sem poda estendiam-se pelo chão, as espigas de milhostavam duras como pedra, as beterrabas hipertrofiadas e transformadm batatões de todo o tamanho. Como os lavradores devem termaldiçoado ambos os exércitos! Havia ocasiões em que turmas saíam

ara colher batatas na terra de ninguém. A uns 250 metros à nossaireita, onde as linhas estavam bem próximas, encontrava-se uma faixlantada com batatas e freqúentada tanto pelos fascistas quanto por n

amos lá de dia, e eles somente à noite, pois o lugar ficava ao alcance ossas metralhadoras. Certa noite, para nosso aborrecimento, eles

oram lá em massa e arrecadaram todas as batatas. Descobrimos outraixa mais adiante, onde praticamente não existia qualquer proteção era preciso arrancar as batatas enquanto se estava deitado de barriga hão, trabalho dos mais fatigantes. Se os metralhadores fascistas nosissem era preciso estender-se, como um rato para passar debaixo dema porta, enquanto as balas picotavam o chão a poucos metros deistância. A coisa parecia valer a pena, naquela época. As batatasstavam ficando raras, e quem arranjasse um saco cheio delas podia

evá-lo à cozinha e trocá-lo por uma garrafa de café.

Ainda assim nada acontecia, e parecia que jamais ia acontecer. "Quanamos atacar? Por que não atacamos?" eram as perguntas queuvíamos dia e noite, feitas tanto pelos espanhóis quanto pelos inglese

Quando se pensa no que a luta representa, parece estranho que osoldados queiram lutar, mas não há dúvida de que o desejam. Na guestacionária existem três coisas pelas quais todos os soldados anseiamma batalha, mais cigarros e uma semana de folga. Estávamos agoram pouco mais bem armados do que antes. Cada homem tinha em se

oder um fuzil e cento e cinqüenta balas, ao invés de cinqüenta, e poupouco recebíamos baionetas, capacetes de aço e algumas bombas.Corriam boatos constantes de batalhas que íamos travar, mas passei arer que os mesmos eram deliberadamente espalhados a fim de manteânimo do pessoal. Não era preciso grande conhecimento militar para

er que não teríamos qualquer ação de maior envergadura naquele lade Huesca, pelo menos durante algum tempo. O ponto estratégico erastrada para Jaca, que ficava no outro lado. Mais tarde, quando os

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narquistas desferiram seus ataques àquela estrada, nossa incumbêncoi a de desferir "ataques de sustentação", forçando assim os fascistasazer tropas do outro lado.

Durante seis semanas houve apenas uma ação militar em nossa partea frente. Isso ocorreu quando nossos Soldados de Assalto atacaram

Manicômio, um asilo de doidos que não mais era usado para esse fim ue os fascistas converteram em fortaleza. Havia diversas centenas deefugiados alemães servindo no P .O. U. M., e estavam organizados nuatalhão especial chamado o Batallón de Choque, e de um ponto deista militar eles se achavam em nível bem diferente da milícia - naerdade, pareciam-me mais a soldados do que quaisquer outroslementos que eu tenha visto na Espanha, com exceção dos Guardas

Assalto e alguns elementos da Coluna Internacional. O ataque foi um

acasso, como de costume. É de imaginar quantas operações nessauerra, no lado do Governo, foram tornadas um fracasso. Os Guardas Assalto invadiram e tomaram o Manicômio, mas os soldados, não meembro de qual milícia, que deviam dar-lhes apoio apoderando-se domorro vizinho que dominava o Manicômio, foram deixados muito mal. Oapitão que os comandava era um daqueles oficiais do Exército Regulente de fidelidade duvidosa, que o Governo teimava em empregar. Seor medo, ou por traição, foi ele quem preveniu os fascistas, atirandoma bomba quando seus homens estavam a duzentos metros deistância. Tenho o grato prazer de registrar que seus homens o matarali mesmo. Mas o ataque de surpresa não contou com surpresa algumos milicianos foram moídos por fogo intenso e expulsos do morro, e àoite os Guardas de Assalto eram forçados a deixar o local. Por todaquela noite as ambulâncias desfilaram na estrada horrível paraietamo, acabando de matar os mais feridos com seus solavancos.

stávamos todos infestados de piolhos e, embora persistisse o frio, haalor suficiente para isso. Eu já tive grande experiência com parasitasorporais de diversos tipos, mas quanto à sua lídima bestialidade oiolho suplanta todos os demais. Outros insetos, mosquitos, porxemplo, fazem a gente sofrer mais, mas ao menos não são residentem nosso corpo. O piolho humano parece-se um pouco a uma

agostinha, e vive principalmente nas nossas calças. A menos que se

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ueimem todas as roupas, não há modo conhecido de livrar-se dele.elas costuras das calças o infame põe seus ovinhos brancos erilhantes, como minúsculos grãos de arroz, que chocam e procriam

amílias inteiras com velocidade horrenda. Acredito que os pacifistasoderiam lucrar muito se ilustrassem seus panfletos com fotografiasmpliadas do piolho. Então, há glória na guerra. hem? Na guerra todos

s soldados são piolhentos, pelo menos quando faz calor suficiente. Oomens que combateram em Verdun, Waterloo, Flodden, Senlac e nasermópilas - todos eles tinham piolhos arrastando-se por seus testículo

Nós mantínhamos os calhordas mais para baixo, em certa medida,ueimando-lhes os ovos e tomando banho tantas vezes quantas possí, francamente, coisa nenhuma a não ser os piolhos poderia fazer-mentrar naquela água gelada.

udo estava acabando - botinas, roupas, fumo, sabão, velas, fósforos,zeite. Nossos uniformes desmanchavam-se em pedaços, e muitos doomens não tinham mais botinas, apenas sandálias com solas de cordncontravam-se pilhas de botinas velhas e inúteis por toda a parte eerta feita mantivemos aceso o fogo de um abrigo, por dois dias,tilizando principalmente aqueles objetos, que não são mau combustív

A essa altura minha mulher estava em Barcelona e costumavamandar-me chá, chocolate e até charutos, quando conseguia

ncontrá-los, mas até naquela cidade tudo escasseava, principalmenteumo. O chá constituía autêntica dádiva do céu, embora não tivéssemoeite para misturar e raras vezes algum açúcar. Da Inglaterra eramnviados constantemente pacotes para os combatentes, mas nuncahegavam. Comida, roupas, cigarros, tudo era recusado pelo correio, ontão confiscado na França. Por curioso que pareça, a única firma queonseguia enviar pacotes de chá - e até mesmo uma lata de biscoitos,

m certa ocasião memorável - era a Army and Navy Stores (Intendênco Exército e Marinha). Pobre e velho Exército, pobre e velha MarinhaCumpriam nobremente o dever fazendo essas remessas, mas talvez sentissem melhor se elas fossem para o lado franquista das barricadas

A escassez de fumo era o pior de tudo. De início recebíamos um maçoe cigarros por dia, depois isso fora reduzido a oito cigarros diários, eepois a cinco. Finalmente tivemos dez dias pavorosos, nos quais não

ez qualquer distribuição de fumo. Pela primeira vez eu via na Espanha

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ue pode ser visto a qualquer dia em Londres - gente apanhandouimbas no chão.

No final de março fiquei com uma das mãos infeccionada e foi precisoasgá-la e usar tipóia. Fui para um hospital, mas não valia a pena

mandar-me até Sietamo por tão pouco, de modo que fiquei naquilo a q

hamavam hospital, em Monflorite, e que era apenas um posto deiagem para as baixas. Fiquei ali dez dias, parte desse tempo em leitoOs practicantes (auxiliares de hospital) roubaram praticamente todos o

bjetos que eu possuía, inclusive minha máquina fotográfica e todas aotografias já tiradas. Na linha de frente todos roubavam, sendo isso ofeito inevitável da escassez, mas no hospital encontravam-se os piore

adrões. Mais tarde, no hospital em Barcelona, um norte-americano quiera juntar-se à Coluna Internacional em navio que fora torpedeado po

ubmarino italiano, contou-me como fora levado para a costa ferido, eomo os padioleiros furtaram seu relógio de pulso, quando o carregavaté à ambulância.

nquanto meu braço esteve na tipóia passei alguns dias deliciosos,ercorrendo os arredores. Monflorite era o aglomerado comum de casa

eitas de barro e pedra, com becos estreitos e tortuosos que foramatidos pelos caminhões até se transformarem em coisas semelhantes

s crateras da lua. A igreja fora bastante abalada, mas era utilizadaomo depósito militar. Em toda a vizinhança havia apenas duas casas azenda de dimensões maiores, Torre Lorenzo e Torre Fabián, eomente duas construções realmente grandes, que com certeza eram esidências dos latifundiários, senhores do campo. Podia-se ver suaqueza refletida nas choças miseráveis dos camponeses. Logo atrás do, perto da linha de frente, havia um enorme moinho de farinha, comma casa de campo ao lado. Parecia uma vergonha ver aquela grandeustosa máquina enferrujando na ociosidade e as pás de madeira daoda arrancadas para queima como lenha. Mais tarde, para obter lenhaestinada às tropas mais distantes, eram enviadas turmas comaminhões para destroçar sistematicamente todo aquele lugar. Eraostume levantar as tábuas do soalho nos aposentos jogando-se umaranada de mão lá dentro. La Granja. que era nosso depósito e cozinh

alvez fosse um convento em outra época. Tinha pátios e construções

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nexas bem grandes, cobrindo uns quatro mil metros quadrados oumais, com estábulos para trinta ou quarenta cavalos. As casas de cam

aquela parte da Espanha não apresentam qualquer interesse do ponte vista arquitetônico, mas suas casas de fazenda, feitas de pedrasaiadas com arcadas redondas e barrotes de telhado, são lugaresobres, construídos de acordo com um plano que provavelmente não

ofre modificações há séculos. As vezes essas edificações insinuavamerta simpatia pelos ex-donos fascistas, quando se via o modo pelo qumilícia tratava as mesmas. Em La Granja todos os aposentos que nãstivessem em uso encontravam-se transformados em latrina, nummontoado tremendo de móveis quebrados e excrementos. A igrejinhaeu lado, tendo as paredes perfuradas por granadas, apresentava emodo o chão boa altura de fezes. No grande pátio onde os cozinheirosistribuíam a comida. o lixo formado por latas enferrujadas, lama,strume e alimentos deteriorados era revoltante, e conferia força à antanção militar, onde se diz:

Ha ratos, muitos ratos,

atos tão grandes quanto gatos,

o depósito do intendente! 

Os próprios ratos em La Granja eram tão grandes quanto gatos, oundavam perto disso, sendo bicharocos inchados que perambulavamelos montes de sujeira, descarados demais para correr, a não seruando se abria fogo contra eles.

inalmente, chegara a primavera. O azul do céu mostrava-se maisuave, o ar se tornara repentinamente perfumado. Os saposcupavam-se afincadamente nas valas, tratando de procriar. Em redoro tanque de água que servia de bebedouro às mulas da aldeia,ncontrei sapos verdes bastante estranhos, do tamanho de uma moedtão brilhantes que a grama nova parecia desbotada a seu lado.

Meninos camponeses saiam com baldes caçando caramujos, quessavam vivos em folhas de estanho. Assim que o tempo melhorava oamponeses apareciam para a aradura de primavera. É bem típico daagueza completa com que a revolução agrária espanhola se acha

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nvolta o fato de que não pude sequer descobrir com certeza se a terrora coletivizada ou se os camponeses haviam simplesmente divididooda ela entre si. Imagino que, em teoria, tenha sido coletivizada,orquanto estávamo s em território do P.O.U. M. e dos anarquistas. Se

á como for, os latifundiários se tinham ido, os campos estavam sendoultivados e as pessoas pareciam satisfeitas. o ar amigo dos

amponeses para com a gente jamais deixou de me causar espanto. Alguns dos mais idosos a guerra deve ter parecido sem sentido, poisava para ver como produzia uma escassez de tudo e uma vida

etricamente vazia para todos, e na melhor de todas as épocas agrícols lavradores detestam ter soldados alojados no lugar onde estão. Nontanto, eles se mostravam invariavelmente amistosos - talvez refletindue por mais intoleráveis que fôssemos de outros modos, éramos quee antepunha entre eles e seus ex-senhores. A guerra civil é uma coisizarra. Huesca não se encontrava a oito quilômetros de distância, era

mercado daquela gente, todos tinham parentes ali, em todas as semane suas vidas eles tinham. ido até lá para vender suas aves e legumesgora, por oito meses seguidos, fora erguida uma barreira impenetrávee arame farpado e metralhadoras no caminho. De vez em quando issra esquecido por eles, e certa feita eu estivera conversando com umaelha que carregava uma daquelas pequenas lâmpadas de ferro nas

uais os espanhóis queimam azeite.Onde posso comprar uma lâmpada igual a esta? - perguntei.

Em Huesca - disse ela, sem pensar, e depois disso caímos ambos nasada.

As moças da aldeia eram criaturas esplêndidas e bem vividas, comabelos negros, andar requebrante e uma atitude franca e direta, próp

e um homem para outro, talvez o subproduto da revolução.Homens com blusas azuis esfarrapadas. culotes de belbute negro ehapéus de palha de aba larga. aravam os campos com auxilio dearelhas de mulas, que balançavam ritmicamente as orelhas compridaeus arados eram instrumentos em mau estado, que apenasrranhavam o chão e não cortavam como deviam. Todos os

nstrumentos agrícolas eram coisas deploravelmente antiquadas. send

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udo governado pelo valor do metal usado. Uma relha de arado, porxemplo, mostrava-se emendada, e depois recebera nova emenda, aonto de se formar quase exclusivamente de remendos. Ancinhos e

erçados eram feitos de madeira. As pás, entre gente que raramentenha botinas para calçar, eram instrumentos desconhecidos, e aquelesomens cavavam o chão com uma enxada primitiva, como as utilizada

a Indica. Havia uma espécie de grade que devia datar da parte final ddade da Pedra, formada de tábuas reunidas, com o tamanhoproximado de uma mesa de cozinha. Nessas tábuas havia centenas d

uros de encaixe, em cada qual se achava enfiado um pedaço de pedrascada, modelado exatamente como os homens o costumavam lascaá milhares de anos. Lembro-me que senti quase horror ao encontrar ngenho daqueles em tapera abandonada, na terra de ninguém. Foireciso dar tratos à bola por bastante tempo, até compreender que seatava de uma grade. Desgostou-me pensar no trabalhão que forareciso para construir uma coisa daquelas, e na pobreza que se viabrigada a usar pedra lascada em lugar de aço. Depois disso passei abrigar sentimentos melhores para com o industrialismo. Mas existiamaquela aldeia dois tratores modernos, certamente tomados de algum

atifúndio.

Uma ou duas vezes dirigi-me até ao pequeno cemitério amurado queistava mais ou menos quilômetro e meio da aldeia. Os mortos da linhe frente eram geralmente mandados para Sietamo, e ali repousavampenas, os mortos da aldeia. Como era bizarramente diferente de umemitério inglês! Ali não se encontrava qualquer sinal de deferência paom os mortos. Tudo estava tomado de arbustos e grama, vendo-sessos humanos espalhados por toda a parte. Mas o que realmente meurpreendeu foi a falta quase completa de inscrições religiosas nas

ápides, embora todas datassem de antes da revolução. Apenas umaez, se não me engano, vi o "Orai pela alma de Fulano , que e comumncontrar nas sepulturas católicas. A maioria das inscrições erauramente secular, com poemas ridículos a respeito das virtudes do

alecido. Era uma sepultura, em cada quatro ou cinco, via-se umaequena cruz ou referência perfuntória ao Céu, que via de regra forarrancada por algum ateu, equipado com talhadeira e disposição.

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areceu-me que o povo naquela parte da Espanha deve ser genteenuinamente destituída de sentimento religioso, isto é, no sentidoomum. É curioso que em todo o tempo pelo qual estive na Espanha

amais tenha visto uma pessoa persignar-se, quando seria de pensar qal gesto se torna instintivo, com ou sem revolução. Está claro que agreja espanhola voltará (como afirma o ditado, a noite e os jesuítas

empre regressam), mas não resta dúvida de que ao inicio da revoluçãla entrou em colapso e foi destruída em tal medida que serianimaginável até mesmo para a Igreja da Inglaterra em circunstânciasomparáveis. Para o povo espanhol, pelo menos na Catalunha e AragóIgreja não passava de exploração pura e simples, e talvez a crença

ristã tenha, em certa medida, sido substituída pelo anarquismo, cujanfluência está bastante disseminada e certamente apresenta umaoloração religiosa.

oi no dia em que voltei do hospital que adiantamos a linha de frenteara o que realmente era sua posição correta, uns mil metros à frente,stendendo-se ao longo do pequeno curso de água a duzentos metrosiante das linhas fascistas. Essa operação deveria ter sido efetuada

meses antes, e a justificação para fazê-lo agora estava em que osnarquistas atacavam a estrada para Jaca e o avançarmos nesse ladobrigara os fascistas a desviar soldados para nos enfrentar.

stávamos sem dormir por umas sessenta ou setenta horas, e minhasecordações registram um véu azulado, ou melhor, uma série de quadiferentes. Ouvindo os ruídos feitos pelo inimigo, à espreita na terra deinguém, a cem metros da Casa Francesa, fazenda fortificada que fazarte da linha fascista. Sete horas deitado num pântano horrível, emgua fedorenta na qual o corpo ia afundando cada vez mais: o cheiro daniços, o frio entorpecedor, as estrelas imóveis no céu negro, o coaxastridente dos sapos... Embora estivéssemos em abril, foi a mais fria d

odas as noites que passei na Espanha. A somente cem metros atrás dós as turmas de trabalho agiam com afinco, mas reinava o maiorilêncio, a não ser pelo coro dos sapos. Apenas uma vez naquela noiteuvi um ruído - o barulho familiar de um saco de areia que é achatadoom uma pá. É estranho como, somente de vez em quando, osspanhóis conseguem um brilhante feito de organização. Toda a

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manobra à frente foi maravilhosamente planejada. Em sete horaseiscentos homens construíram mil e duzentos metros de trincheira earapeito, em distâncias que variavam de cento e cinqüenta a trezento

metros das linhas fascistas, e com tamanho silêncio que o inimigo naduviu, havendo apenas uma baixa durante a noite. No dia seguinteumentava esse número, naturalmente, Cada homem tinha uma tarefa

umprir, até mesmo os auxiliares da cozinha, que chegaram de repentuando o trabalho estava feito, trazendo baldes cheios de vinhoemperado com brandy.

Depois disso veio o raiar da aurora e os fascistas descobriram questávamos lá. O quadrado branco da Casa Francesa, embora a duzen

metros de distância, parecia mais alto do que nós, e as metralhadorasue exibia nas janelas de cima, protegidas por sacos de areia, davam

mpressão de estar mirando diretamente para baixo, visando nossaincheira. Ficamos todos ali, a olhar aquilo, imaginando o motivo peloual os fascistas não nos viam. Logo em seguida veio uma rajadaerigosa de balas, todos se puseram de joelhos e começaram a cavareneticamente, aprofundando a trincheira e fazendo pequenos abrigos

aterais. Meu braço ainda estava em ataduras, eu não podia cavar, e psso passei a maior parte do dia lendo uma novela policial, intitulada ThMissing Moneydender ("O agiota desaparecido"). Não me recordo do

nredo, mas sei muito bem qual era o meu sentimento quando lia, eembro-me também da argila umedecida no fundo da trincheira abaixo mim, a mudança constante de pernas para tirá-las da passagem de

omens que iam e vinham apressados, os estampidos de projéteis a uu dois palmos acima da cabeça. Thomas Parker levou uma bala naarte superior da coxa e isso, em suas próprias palavras, ia muito alémo que podia desejar para merecer uma condecoração. As baixas

corriam por toda a linha, mas não se comparavam ao que ocorreria ss fascistas nos apanhassem durante a noite, quando estávamosvançando. Mais tarde um desertor viria contar que cinco sentinelas

ascistas tinham sido fuziladas por negligência. Até mesmo agora elesoderiam nos massacrar, caso tivessem a iniciativa de trazer alguns

morteiros para a linha. Foi um trabalho difícil o de carregar feridos pelaincheira apertada e cheia de gente. Vi um pobre-diabo, os culotesermelhos de sangue, a estirar-se na liteira, arquejando em agonia. Er

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reciso carregar os feridos por grande distância, até dois quilômetros,ois mesmo onde havia estrada as ambulâncias não chegavam perto dnha. Quando chegavam perto demais os fascistas costumavam dispas canhões sobre elas - o que era justificável, tendo em vista queenhum dos lados tinha qualquer escrúpulo em utilizar ambulâncias paansportar munição.

depois disso, na noite seguinte, veio a espera em Torre Fabián, ondeguardamos ordem para desferir um ataque, o que foi cancelado aoltimo instante pelo telégrafo sem fio. No paiol onde ficamos esperandchão era uma capa fina de palha sobre camadas altas de ossos, tantumanos quanto de vacas, tudo em mistura, e infestado de ratos.

Aqueles animaizinhos sujos vinham em regimentos pelo chão, surgidoe todos os lados. Se há alguma coisa que eu deteste mais do que out

uni rato correndo por cima de mim na escuridão. Mas ainda assim tivsatisfação de acertar num deles um soco que o mandou pelos ares.

m seguida veio a espera, a cinqüenta ou sessenta metros do parapeiascista, aguardando-se a ordem de atacar. Uma fila comprida deomens acocorados numa vala de irrigação, com as baionetasparecendo pela beira e o branco dos olhos reluzindo na escuridão. Lástavam Kopp e Benjamin acocorados atrás de nós, com um homem q

azia a bolsínha de estafeta do telégrafo sem fio presa ao ombro. Noorizonte, para o ocidente, clarões róseos de canhões disparando ecompanhados, com intervalos de alguns segundos, por explosõesnormes. E depois disso um ruído de batidas do sem-fio, e a ordemussurrada, de que devíamos sair dali enquanto podíamos. Fizemos

sso, mas não com suficiente rapidez. Doze pobres meninos da J.C.I. (iga da Juventude do P.O.U.M., correspondendo à J.S.U. do P.S.U.C.)ue foram colocados a uns quarenta metros do parapeito fascista, forapanhados pela madrugada e não conseguiram fugir. Tiveram de ficardia inteiro, tendo apenas punhados de grama para abrigar-se e os

ascistas disparando contra eles sempre que se mexiam. Ao anoitecerete estavam mortos, e os outros cinco conseguiram rastejar e afastara escuridão.

Depois disso, e por muitas manhãs seguintes, ouvíamos o som dos

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taques anarquistas no outro lado de Huesca. Era sempre o mesmoom. De repente, em alguma das primeiras horas do dia, vinha ostrondo inicial de muitas bombas explodindo simultaneamente - e

mesmo à distância de quilômetros isso era um barulho diabólico empressionante - e em seguida o estrondo ininterrupto de fuzis emetralhadoras disparando ao mesmo tempo, num som forte que se

arecia, de modo curioso, ao rufar de tambores. Por graus a fuzilariaspalhava-se por todas as linhas que cercavam Huesca, e saiamos patrincheira a fim de nos recostarmos sonolentamente no parapeito,nquanto um fogo irregular e sem sentido passava por cima.

Durante o dia os canhões faziam belo estrondo. Torre Fabián, que eragora nossa cozinha, foi atingida por fogo de artilharia e destruída emarte. É curioso que, quando estamos observando o fogo de artilharia

istância a salvo do mesmo, sempre queremos que o artilheiro acerte lvo, mesmo que esse alvo contenha nosso jantar e o de algunsompanheiros. Os fascistas estavam disparando bem aquela manhã, ealvez houvesse artilheiros alemães em ação. Examinaram bem a Torrabián, pondo um projetil além dela, outro aquem, e depois disso -UMBA! Eram venezianas que saltavam pelos ares, uma folha de uraldescer pelo ar como um carta de baralho jogada para cima. A granad

eguinte arrancou toda uma esquina de uma das edificações, e o fez tãem e limpamente quanto um gigante o conseguiria, usando para issoma faca proporcional a seu tamanho. Mas os cozinheiros saíram comosso jantar na hora certa, o que constituía feito dos mais louváveis.

m nossa parte da linha de frente não estava acontecendo grande coisA duzentos metros para a direita, estavam os fascistas em terreno mai

lto, e ali seus atiradores acertaram alguns companheiros nossos. Auzentos metros para a esquerda, na ponte, travava-se uma espécie duelo entre os morteiros fascistas e os homens que construíam umaarricada de concreto em cima da ponte. As granadinhas malvadasssoviavam por cima, fazendo um ruído duplamente infernal quandocertavam na estrada de asfalto. A cem metros de distância podia-sestar em perfeita segurança e observar as colunas de terra e fumaçaegra que saltavam ao ar como árvores magicamente brotadas do chã

Os pobres coitados ao redor da ponte passaram grande parte do dia

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cocorados nos pequenos buracos que cavaram no lado da trincheira.Mas houve menos baixas 4o que se podia esperar, e a barricada crescempre, formada por uma muralha de concreto com dois palmos despessura e embasamento para duas metralhadoras e um pequenoanhão. O concreto estava sendo reforçado com velhas armações deama, que aparentemente eram o único ferro que se podia encontrar

ara aquele fim.

Certa tarde Benjamim informou que precisava de quinze voluntários Otaque ao reduto fascista, que fora cancelado anteriormente, deveria sesfechado aquela noite. Oleei meus dez cartuchos mexicanos, sujei aaioneta (esses objetos denunciam a posição de quem os carrega, se

rilharem demais) e embrulhei um pedaço de pão, meio palmo dengüiça vermelha e um charuto que minha mulher mandara de Barceloque eu guardava fazia bastante tempo. Foram distribuídas bombas,ês a cada homem. O Governo espanhol finalmente conseguira produma bomba decente. Funcionava de acordo com o mesmo princípio daomba Millis, mas tinha dois pinos ao invés de um. Depois de se tirar oois pinos, vinha o intervalo de sete segundos para a bomba explodir.ua desvantagem maior estava em que um dos pinos era bem duro, o

utro bem frouxo, de modo que era possível deixar ambos no lugar ecar sem poder arrancar o durão num momento de emergência, ou enrálo antecipadamente e ficar a pisar em ovos todo o tempo, com um

medo desgraçado de que aquela porcaria explodisse no bolso. Mas erma bombinha bastante boa para jogar.

ouco antes da meia-noite Benjamin nos dirigiu até Torre Fabián. Desanoitecer a chuva não cessara de cair, e as valas de irrigação estava

heias, e todas as vezes que se pisava numa mergulhava-se na água cintura. Naquela escuridão e cortina de chuva, havia um grupo deomens esperando no terreiro da fazenda. Kopp nos fez um discurso, rimeiro em espanhol e depois em inglês, explicando o plano de ataqu

Naquele ponto a linha fascista fazia uma curva igual a um "L", e oarapeito que devíamos atacar estava no terreno ascendente na quinaesse "L". Perto de trinta homens, metade ingleses e metade espanhó

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ob comando de Jorge Roca, comandante de nosso batalhão (na milícada batalhão tinha aproximadamente quatrocentos homens), e maisenjamin, deveriam aproximar-se e cortar o arame fascista. Jorge atiraprimeira bomba como sinal, e em seguida os demais deveriamespejar uma barreira de bombas, expulsar os fascistas do parapeito epoderar-se dele antes que o inimigo pudesse reagir. Ao mesmo temp

etenta Guardas de Assalto investiriam contra a "posição" fascista mairóxima, que ficava duzentos metros à direita da outra, ligadas por umincheira de comunicação. Para que não abríssemos fogo uns sobre outros, na escuridão, usaríamos braçadeiras brancas. Naquele momenhegou um mensageiro para avisar que não fora possível encontrarquele artigo, e na escuridão uma voz sugeriu, em tom lamentoso:

Não há jeito de fazer os fascistas usarem essas braçadeiras, em vez

ós?ínhamos uma ou duas horas para esperar. O paiol por cima do estábe mulas estava tão arrebentado pelo fogo de artilharia que nãoodíamos andar ali sem luz. Metade do soalho fora destruída por umaranada, e por ali podia-se levar um tombo de seis metros até às pedra

á embaixo. Alguém encontrou uma picareta, arrancou uma prancha dohão, e em questão de minutos tínhamos um fogo aceso, e nossas

oupas encharcadas começavam a soltar vapor. Um outro companheiraiu-se com um baralho e passou por nós o boato - um desses boatosmisteriosos, coisa endêmica na guerra - de que café quente com brand

stava a caminho. Descemos aquela escada que estava a ponto de caozinha, cheios de entusiasmo, e ficamos andando pela escuridão, paescobrir onde podia estar o tal café temperado. Bolas! Não havia cafélgum e, ao invés disso, eles nos chamavam, faziam-nos entrar em filaepois disso Jorge e Benjamin partiam celeremente na escuridão,companhados por nós.

Ainda chovia e estava muito escuro, mas o vento diminuíra. A lama eralguma coisa de inenarrável. Os caminhos em meio à plantação deeterrabas não passavam de uma sucessão de altos e baixos, tãoscorregadios quanto um pau de sebo e com poças enormes por toda arte. Muito antes de chegarmos ao ponto onde deveríamos atravessa

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osso próprio parapeito, já todos haviam caído diversas vezes e nossouzis estavam enlameados. No parapeito encontramos um pequenorupo, que era nossa reserva, bem como o médico e uma fila deadiolas. Passamos pela abertura no parapeito e ingressamos em outrala de irrigação. Cataplãsgugq! Outra vez na água até à cintura, comquela lama fina e imunda entrando pelo cano das botinas. Na grama

ora Jorge esperou até termos passado todos e depois disso, dobradouase ao meio, começou a adiantar-se lentamente. O parapeito fasciststava a uns cento e cinqüenta metros, e nossa única possibilidade dehegar lá era andar sem fazer barulho.

u estava na frente, com Jorge e Benjamín. Dobrando o corpo,gachados para a frente mas com o rosto erguido, andamos naquelascuridão quase total com passo que se tornava mais lento a cada

nstante. A chuva leve batia em nossos rostos, e quando olhei para tráude ver os homens que estavam mais próximos de mim, um bolo deilhuetas como cogumelos grandes e negros a deslizar vagarosamenteara a frente. Mas a cada vez que eu erguia a cabeça Benjamin. questava perto de mim, sussurrava com raiva em meu ouvido:

To keep ze head down! To keep ze head down! ("Abaixar a cabeça!")

u podia dizer-lhe que não havia motivo para preocupações, pois sabior experiência própria que numa noite escura não se consegue ver umomem a vinte passos de distância. Era muito mais importante

mover-nos sem ruído, pois se o inimigo nos ouvisse chegando seriaosso fim. Bastava espalhar uma rajada de metralhadora pela escuridãnada mais poderíamos fazer senão fugir ou sermos massacrados.

Mas naquele terreno encharcado era quase impossível andar em

ilêncio. Faça-se o que se quiser, mas os pés ficam presos na lama, e ada passo que se dava era aquele ploc ploc, ploc-ploc. E o diabo eraue o vento cessara, e a despeito da chuva a noite estava muitoilenciosa. Os sons podiam ser ouvidos a grande distância, e houve um

momento terrível no qual dei com o pé numa lata, e achei que todos osascistas nas vizinhanças deviam ter ouvido. Mas não, nem um som,em um tiro de resposta, movimento nenhum nas linhas fascistas.

Continuamos a marcha, cada vez mais devagar. Não consigo transmit

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o papel a profundidade e autenticidade de meu desejo de chegar até Que maravilhoso seria chegar a uma distância em que pudéssemosançar as bombas, antes que eles nos ouvissem! Numa ocasião assim ente nem sequer sente medo, apenas um desejo tremendamenteestituído de esperanças, de passar por aquele terreno intermediário. enti exatamente a mesma coisa quando espreitava um animal

elvagem, o mesmo desejo agoniante de chegar a distância suficientemesma certeza fantasmagórica de que isso era impossível. E como aistância aumentara! Eu conhecia aquele terreno muito bem, sabia quenha menos de cento e cinqüenta metros, mas ainda assim pareceu

mais comprido que um quilômetro. Quando se está avançando naqueleasso, percebe-se como uma formiga as variações enormes no terrenofaixa esplêndida de grama aqui, aquela faixa lamacenta e pegajosa as caniços altos e barulhentos que têm de ser evitados, o monte deedras que quase faz a gente desistir de tudo, por parecer impossívelanspo-lo sem ruído.

stávamos andando daquele jeito e por tanto tempo que comecei aensar que tínhamos errado a direção Foi quando, na escuridão, linhanas e paralelas de alguma coisa mais escura do que a noite seornaram levemente visíveis. Era o arame farpado da frente (os fascistnham duas linhas desse arame, uma à frente da outra) Jorgejoelhou-se, procurou no bolso. Estava com nosso único alicate cortade arame. Plic-plic! Os arames foram delicadamente postos de lado.speramos para que os companheiros lá atrás chegassem. Pareciamstar fazendo um barulho de todos os diabos. Devíamos estar a unsinqüenta metros do parapeito fascista, e tocamos à frente, encurvado

Uma passada furtiva, abaixando o pé tão de leve quanto um gato que proxima da toca de ratos; depois uma pausa para ouvir; e outro passo

evantei a cabeça uma vez, e em absoluto silêncio Benjamin pos a mãtrás de meu pescoço e o puxou para baixo com violência. Eu sabia quoutro arame farpado ficava a menos de vinte metros do parapeito, earecia-me inconcebível que trinta homens chegassem até lá sem sereuvidos. Bastava a respiração arquejante para nos denunciar. Mas, se

á como for, chegamos. O parapeito fascista estava à vista agora, ummonte escuro e impreciso, bem alto sobre nós. Mais uma vez Jorge

joelhou-se e procurou no bolso. Plic-plic! Não havia jeito de cortar o

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rame em silêncio.

ntão era aquele o arame farpado de dentro! Passamos por aliastejando de quatro e com rapidez bem maior. Se tivéssemos tempoara tomar posição agora, tudo estaria bem. Jorge e Benjaminrrastaram-se para a direita, mas os homens que vinham atrás e

everiam espalhar-se, tinham de formar uma fila única para passar peequena abertura no arame, e exatamente nesse instante houve umlarão e estampido no parapeito fascista. A sentinela finalmente nosuvira. Jorge colocou-se de joelho e girou o braço como um jogador deoliche. Sua bomba explodiu em algum lugar no parapeito. No mesmo

nstante, muito mais depressa do que se teria achado possível, eclodiustrondo de dez ou vinte fuzis inimigos. Estavam à nossa espera, afinae contas. Por momentos dava para ver cada saco de areia naquela lu

inistra. Os homens que se achavam distantes demais arremessavam ombas, e algumas caíam antes do parapeito. De cada seteira pareciaorrar jatos de fogo. Sempre é horrível fazerem fogo contra a gente nascuridão - pois cada clarão de disparo de fuzil parece estar apontandiretamente para nós - mas o pior eram as bombas. Não se podeonceber o horror causado por essas armas, a menos que se tenha visma delas explodir por perto, em plena escuridão. A luz do dia háomente o estrondo da explosão, mas na treva tem-se também o clarãermelho e cegante. Eu me jogara ao chão logo aos primeiros disparosudo isso ocorrera enquanto me achava deitado de lado, na lamaiscosa, lutando selvagemente com o pino de uma bomba. O desgraçaão queria sair! Finalmente compreendi que o estava torcendo naireção errada. Retirei o pino, fiquei de joelhos, atirei a bomba e

mergulhei de volta no chão. A bomba estourou à direita, fora doarapeito. O susto estragara minha pontaria. Naquele exato momento

utra bomba explodiu bem à minha frente, tão perto que pude sentir oalor da explosão. Achatei-me no chão e enterrei o rosto na lama comanto vigor que machuquei o pescoço e pensei estar ferido. Em meioquela zoada, ouvi alguém dizer calmamente, em inglês, atrás de mim

Estou ferido.

A bomba, na verdade, atingira diversos homens perto de mim, sem me

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lcançar. Ajoelhei-me e atirei outra, e não me recordo para onde ela fo

Os fascistas faziam fogo, nossos companheiros lá atrás também, e eunha plena consciência de estar no meio, entre eles. Senti o impacto dm disparo bem perto e compreendi que um homem estava abrindo fo

ogo atrás de mim. Levantei-me e berrei com ele:

Não atire em mim, seu idiota!

Nesse momento vi que Benjamin, a dez ou quinze metros para a direitesticulava. Corri para lá, e isso obrigava a atravessar aquela linha deeteiras e despejar fogo, e naquela trajetória infame mantive a mãosquerda a tapar a face, gesto dos mais idiotas - como se a mãoudesse deter uma bala! - mas causava-me pavor a idéia de ser atingia cara. Benjamin estava ajoelhado e apresentava expressão ao mesm

empo satisfeita e diabólica, enquanto disparava meticulosamente sobs clarões de fuzil, com sua pistola automática. Jorge caíra ferido aosrimeiros tiros, e estava em algum lugar que não se podia ver.

Ajoelhei-me ao lado de Benjamin, tirei o pino de minha terceira bomba rremessei-a. Ah! Nada de dúvidas, dessa feita. Ela explodiu dentro doarapeito, na quina do "L", exatamente no ninho de metralhadora.

O fogo fascista pareceu ter afrouxado de modo bem repentino. Benjame pôs de pé com um salto e gritou:

A frente! Atacar!

artimos em carreira pela encosta curta e íngreme, ao final da qualstava o parapeito fascista. Eu digo "carreira", mas "arrasto" seria maisorreto. O fato é que não se pode andar ligeiro quando se estáncharcado e enlameado dos pés à cabeça, e carregando um fuzil e

aioneta pesados, e mais cento e cinqüenta cartuchos. Eu estavaossuído pela convicção naturalíssima de que haveria um fascista à

minha espera lá em cima. Se ele disparasse àquela distância, nãooderia deixar de me acertar, mas ainda assim contava que ele não ozesse, para poder pegar-me com sua baioneta. Sentia de antemão oruzar de nossas baionetas e imaginava se ele teria braço mais forte due o meu. Mas não havia fascista algum à espera. Com vaga sensaç

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e alívio, verifiquei que havia um parapeito baixo e que os sacos de arroporcionavam uma base firme aos pés. Via de regra eles são difíceise ultrapassar. Lá dentro tudo estava em frangalhos, barrotesspalhados por toda a parte e grandes fragmentos de uralita pelo chão

Nossas bombas destruíram todos os abrigos, mas ainda assim não seia vivalma. Pensei que os fascistas podiam estar ocultos em algum

onto subterrâneo, e gritei-lhes em inglês (pois não conseguia pensar ualquer palavra espanhola naquele momento):

Come on out of it! Surrender! ("Saiam dai! Rendam-se!")

Nem sombra de resposta. Nisso, um homem, figura sombria àquela meuz, deslizou do telhado de um dos abrigos destruídos e saiu em carreiara a esquerda. Parti ao seu encalço, enfiando a baioneta na escuridã

em qualquer resultado. Ao dar a volta no abrigo, vi um homem - não se era o mesmo que vira antes - fugindo pela trincheira de comunicaçãue dava para a outra posição fascista. Devo ter estado bem perto delois pude vê-lo claramente. Era calvo e parecia não ter qualquer roupao corpo, exceto um cobertor que segurava em torno dos ombros. Se ebrisse fogo, poderia reduzi-lo a fanicos, mas com medo de dispararmns contra os outros, havíamos recebido ordens para só utilizar asaionetas depois de estarmos dentro do parapeito, e de qualquer mod

u nem sequer pensei em atirar, naquela conjuntura. Ao invés disso,meus pensamentos deram um salto de vinte anos atrás, e lembrei-me osso instrutor de boxe na escola, mostrando-me em pantomima bemivida como enfiara a baioneta num turco, nos Dardanelos. Segurei ouzil com força e fiz um arremesso às costas do sujeito. Estava fora de

meu alcance. Outro mergulho, e acertei outra vez no ar vazio. E porlguma distância ficamos assim, ele correndo pela trincheira e eu atráso chão mais alto, mirando-lhe as omoplatas sem conseguir alcançá-lama só vez - recordação bem cômica que posso ter hoje, emboracredite que para ele não fosse tão cômico assim.

Como era natural, o sujeito conhecia melhor aquele lugar, e logo mescapulia. Quando voltei ao ponto de nosso ataque, a posição estavaheia de homens a gritar. Diminuíra um pouco o ruído dos disparos, e ascistas continuavam a despejar fogo sobre nós, por três lados, mas e

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e distância maior. Nós os havíamos repelido, por algum tempo, eembro ter declarado, em tom de oráculo:

Podemos sustentar este lugar por meia hora, não mais que isso.

Não sei por que cargas d'água escolhi esse período de meia hora.Olhando pelo parapeito à direita, dava para ver inúmeros clarões

sverdeados, de fuzis que disparavam na escuridão, mas estavam muistantes, a cem ou duzentos metros. Nossa tarefa agora era dar umaatida na posição e retirar tudo que valesse a pena. Benjamin e algunsutros já estavam vasculhando as ruínas de um abrigo maior, no meio osição, e ele saiu cheio de animação pelo telhado destruído, puxandoraçadeira de corda de uma caixa de munição.

Camaradas! Munição! Muita munição aqui!

Não queremos munição - disse alguém. - Queremos fuzis.

ra verdade. Metade de nossos fuzis estava inservível, engasgada comama. Podiam ser limpos, mas é perigoso retirar o ferrolho de um fuzil nscuridão, pois é só colocá-lo em algum lugar e perdê-lo em seguida. Enha uma pequenina lanterna elétrica que minha mulher adquirira emarcelona, e não fosse por isso não teríamos qualquer espécie de luz.

Alguns homens com fuzis em bom estado deram início a um fogoesencontrado contra os clarões de disparos na distância. Ninguém setrevia a atirar depressa, pois até os melhores fuzis estavam sujeitos angasgar se esquentas sem demais. Havia perto de dezesseis homenentro do parapeito, inclusive um ou dois que estavam feridos. Lá foraavia outros feridos, ingleses e espanhóis, caídos na lama. Patrick

O'Hara, irlandês de Belfast que tivera algum preparo em primeirosocorros, ia de um para outro lado com pacotes de ataduras, pensandos feridos e, naturalmente, servindo de alvo a disparos vindos de nossróprio lado da linha, todas as vezes em que voltava ao parapeito, e aespeito de seus gritos indignados de "Poum!"

Começamos a vasculhar a posição fascista. Havia diversos mortos, maão parei para examiná-los. Eu procurava a metralhadora. Por todo o

empo em que estivemos lá fora, deitados na lama, eu pensara

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agamente no motivo pelo qual a metralhadora não disparava. Enfiei aanterna elétrica pelo ninho, e tive amarga decepção. Não estava lá! Ae encontravam o tripé, bem como diversas caixas de munição e peçaobressalentes, mas a arma se fora. Os fascistas deviam tê-laesaparafusado e tirado dali ao primeiro alarme. Não havia dúvida deue agiam sob ordens, mas fora estúpido e covarde fazer isso, pois se

mantivessem no lugar poderiam esmagar todos nós. Estávamos furiosois todos contávamos apreender uma metralhadora.

rocuramos de um e de outro lado, mas não achamos coisa alguma demaior valor. Havia grande número de bombas fascistas no chão, de tip

astante inferior, que se disparava puxando um cordão, e guardei duaso bolso como lembranças. Era impossível deixar de estranhar a miséos abrigos fascistas. O monte de roupas, livros, comida e pequenos

ertences pessoais que se via em nossos abrigos era coisa que ali nãoe encontrava. Aqueles pobres conscritos, que nada recebiam de soldareciam não possuir coisa alguma além de cobertores e algunsedaços de pão mofado. Na extremidade mais distante havia umequeno abrigo que ficava, em parte, acima do chão, e apresentava umequenina janela. Enfiamos a lanterna por ali e ao mesmo tempooltamos um brado de alegria. Um objeto cilíndrico, em estojo de couroom mais de um metro de altura e de diâmetro, estava apoiado naarede. Tratava-se do cano da metralhadora, naturalmente! Fizemos aolta e chegamos à entrada, e ali verificamos que o objeto em estojo douro não era uma metralhadora, mas algo que, em nosso exércitoestituído de armas, era mais precioso ainda: um telescópio enorme,rovavelmente aumentando sessenta ou setenta vezes, com tripéesdobrável. Tais telescópios simplesmente não existiam em nosso lahavia uma fome desesperada pelos mesmos. Nós o trouxemos para

ora, em triunfo, e o deixamos encostado no parapeito, para carregá-loepois.

Nesse momento alguém gritou que os fascistas estavam seproximando. Era certo que a zoada dos tiros se tornara muito mais alt

Mas era óbvio que os fascistas não-contraatacariam pela direita, poissso obrigá-los-ia a atravessar a terra de ninguém e atacar o seu próprarapeito. Se tivessem algum juízo, viriam a nós por dentro da linha. D

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volta até ao outro lado dos abrigos. A posição tinha o formatoproximado ao de uma ferradura, com os abrigos no meio, de modo quão tínhamos outro parapeito cobrindo nossa esquerda. De todas asireções vinha fogo cerrado contra nós, mas isso não fazia grandeiferença. O ponto perigoso ficava bem à frente, onde não contávamosom qualquer proteção, e ali por cima passava uma torrente de balas,

Deviam estar chegando da outra posição fascista mais além na linha,ornando-se evidente que os Guardas de Assalto não a haviamapturado. Dessa feita, todavia, o estrondo era ensurdecedor, o estrug

ninterrupto de fuzis disparados em massa, que eu estava acostumadouvir a distância, sendo aquela a primeira vez que me achava em meioele. E a essa altura, como é claro, os disparos haviam-se espalhado p

oda a linha de frente, quilômetros e quilômetros seguidos. Douglashompson, com um braço atingido e inutilizado, pendendo ao lado doorpo, estava encostado no parapeito e disparava contra os clarões,sando para isso o braço bom. Alguém cujo fuzil engasgara o ajudava

municiando sua arma.

Havia quatro ou cinco de nós naquele lado, e tornava-se óbvio o queevíamos fazer, Era preciso arrastar os sacos de areia do parapeito àente e formar uma barricada cobrindo o lado desprotegido, e isso muepressa. O fogo estava alto por enquanto, mas poderia vir mais baixoualquer momento e pelos clarões de disparos feitos ao redor dava paer que tínhamos cem ou duzentos homens contra nós. Começamos arrancar os sacos do parapeito e a carregá-los vinte metros à frente,tirando-os numa pilha de qualquer maneira. Que trabalho horrível! Eraacos de areia bem grandes, pesando uns 45 quilogramas, e exigindoodo o vigor de que se dispunha para saírem do lugar. Depois disso aniagem apodrecida se rasgava e a terra molhada caía por cima em

ascata, pelo pescoço abaixo e subindo as mangas da roupa.embro-me de ter sido assaltado pelo horror que tudo aquilo meausava, o caos, a escuridão, o ruído assustador, as carreiras de umara outro lado na lama, as batalhas com aqueles sacos pesados questouravam à toa - e tudo isso na atrapalhação causada pelo fuzil que ão largava de jeito algum, com medo de ficar sem ele. Cheguei a gritaara um dos companheiros, enquanto caminhávamos aos tropeções,arregando um saco:

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Então isto é a guerra! Não é uma bosta?

De repente, uma série de vultos altos surgiu aos pulos pelo parapeito dente. Ao aproximarem-se de nós, vimos que usavam o uniforme de

Guardas de Assalto, e soltamos aclamações, acreditando que seatasse de reforços, Mas eram apenas quatro homens, três alemães e

m espanhol, e mais tarde ficamos sabendo o que acontecera aosGuardas de Assalto. Não conhecendo o terreno e mergulhados na treveram com os costados no lugar errado, onde se viram apanhados perame farpado dos fascistas, e ali bom número deles fora fuzilado.

Aqueles quatro perderam-se dos demais o que era muita sorte para eleOs alemães não falavam uma só palavra de inglês, francês ou espanh

oi com dificuldade e muita gesticulação que lhes explicamos o questávamos fazendo e conseguimos sua ajuda na formação da barricad

Os fascistas, a essa altura, tinham trazido uma metralhadora. Podíamoê-la cuspindo fogo a cem ou duzentos metros, seus projéteis choviamm cima de nós num gargalhar firme e gelado. Não tardamos a jogar uúmero suficiente de sacos de areia no lugar, a fim de conseguir umaobertura baixa da qual os poucos homens naquele lado da posiçãoodiam manter-se deitados e usar suas armas. Eu estava de joelhos,trás deles. Uma granada de morteiro passou assoviando por cima e

stourou em algum lugar na terra de ninguém. Era outro perigo, maseriam precisos alguns minutos para nos enquadrar em seu fogo. Agoue tínhamos acabado a luta com aqueles malditos sacos de areia, aoisa apresentava até certo aspecto divertido; o ruído, a escuridão, oslarões a aproximar-se, os nossos companheiros respondendo ao fogoinha-se até algum tempo para pensar, e eu me lembro que fiqueierificando se estava com medo, resolvendo naquela ocasião que issoão acontecia. Lá fora, onde provavelmente estivera sujeito a menoserigo, eu enjoara de tanto medo. De repente ouvimos outro grito avisar que os fascistas se aproximavam. Dessa vez não havia qualqueúvida, pois os clarões dos fuzis inimigos estavam muito mais próximo

Vi um deles que não podia estar a mais de vinte metros. Era claro queles se adiantavam pela trincheira de comunicação, e a vinte metrosncontravam-se dentro do alcance de nossas bombas. E ramos oito ouove amontoados, e uma única bomba bem jogada nos reduziria a

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anicos. Bob Smillie, com sangue escorrendo pelo rosto por causa de uerimento leve, pôs-se de joelhos e arremessou uma bomba. Nós nosgachamos, esperando o estrondo. A espoleta ficou rubra enquantotravessava o ar, mas a bomba não explodiu. (Pelo menos uma quartaarte daquelas bombas sempre falhava.) Eu não tinha mais bombas,xceto as fascistas que apanhara como recordação, e não sabia como

uncionavam. Gritei para os outros, para saber se alguém tinha algumaomba disponível. Douglas Moyle examinou os bolsos e passou-mema. Atirei-a ao ar e mergulhei de cara no chão. Por um desses golpese sorte que acontecem talvez uma vez por ano, eu conseguira lançar omba quase exatamente onde o fuzil disparara. Houve o estrondo e

ogo, instantaneamente, um clamor diabólico de gritos e gemidos.Havíamos acertado um deles, pelo menos, e não sei se o homemmorreu, mas decerto ficara bastante ferido. Pobre coitado, pobre coitad

enti certo arrependimento enquanto ouvia seus gritos. Mas no mesmonstante, à luz fraca dos clarões de fuzil, vi ou julguei ver uma figura deé no lugar onde o fuzil disparara. Fiz mira com o meu e disparei. Outrrito, mas acho que era ainda o efeito da bomba. Outras foram atiradaos clarões de fuzil que vimos em seguida estavam muito distantes, a

em metros ou mais. Portanto nós os havíamos repelido, pelo menosemporariamente.

odos começaram a amaldiçoar e perguntar por que demônios não nomandavam reforço. Com uma submetralhadora, ou vinte homens de fumpos, poderíamos sustentar aquele lugar contra todo um batalhão. Foesse momento que Paddy Donovan, subcomandante naquelampreitada e que fora mandado voltar à nossa linha para saber quais ardens, galgou o parapeito da frente.

Ei! Saiam dai! Todos devem retirar-se imediatamente!

O quê?

Retirar! Sair daqui!

Por quê?

Ordens. De volta às nossas linhas, e bem depressa.

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á havia companheiros subindo o parapeito da frente, diversos delesutando com uma pesada caixa de munição. Lembrei-me do telescópioue ficara encostado ao parapeito no outro lado da posição, mas ness

momento vi que os quatro Guardas de Assalto, suponho que emonformidade com alguma ordem misteriosa recebida anteriormente poles, começavam a correr pela trincheira de comunicações. Isso ia dar

ara a outra posição fascista e - se chegassem lá - à morte certa.stavam sumindo na escuridão, e corri atrás deles, enquanto procuravpalavra em espanhol para "retirar", e finalmente consegui gritar "Atrá

Atrás!" o que talvez fizesse entender. O espanhol compreendeu e trouxs outros de volta. Paddy aguardava no parapeito.

Venham, depressa!

Mas, o telescópio!F... . o telescópio! Benjamin está esperando lá fora.

ubimos o parapeito e saímos da posição. Paddy segurou o aramearpado para eu passar, e assim que nos afastamos do abrigoroporcionado pelo parapeito fascista encontramo-nos debaixo de um

ogo infernal que parecia vir de todas as direções. Não duvido de que

arte dele viesse de nosso próprio lado, pois todos estavam abrindo foa linha de frente. Para qualquer lado que nos voltássemos, éramosrindados com nova torrente de balas, e assim fomos tangidos para lá ara cá na escuridão, como um rebanho de ovelhas. O fato de estarmoarregando uma caixa de munição capturada ao inimigo - uma daquelaue contêm 1.750 tiros e pesam cerca de 45 quilogramas - e mais umaaixa de bombas e diversos fuzis fascistas não facilitava, absolutamencoisa. Em alguns minutos, embora a distância de parapeito a outro n

osse superior a duzentos metros e a maioria conhecesse o terreno,stávamos inteiramente perdidos. Encontrávamo-nos a patinar numampo enlameado, sem saber de outra coisa que não a dura realidadeas balas vindas de ambos os lados. Não havia lua para nos orientar,

mas o céu tornava-se um pouco mais claro. Nossas linhas ficavam aeste de Huesca, e eu queria ficar onde estávamos até a primeiralaridade da aurora mostrar para onde estavam leste e oeste, mas os

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utros se opunham a isso. Continuamos a chapinhar para a frente,mudando de direção diversas vezes e fazendo turnos na caixa demunição. Finalmente vimos a linha baixa e chata de um parapeito à

ossa frente. Podia ser nosso, ou dos fascistas, e ninguém fazia a mendéia do caminho que tomáramos. Benjamin rastejou sobre o estômagoassou por uma planta alta e esbranquiçada até a distância de vinte

metros do parapeito, e deu um grito de reconhecimento. A resposta foiutro grito de "Poum!". Levantamo-nos, abrimos caminho até aoarapeito, enfiamo-nos mais uma vez pela vala de irrigação -ataplás-gugo! - e estávamos a salvo.

Kopp nos aguardava dentro do parapeito, em companhia de algunsspanhóis. O médico e as padiolas tinham sumido. Parecia que todos

eridos tinham sido recolhidos, menos Jorge e um de nossos

ompanheiros ingleses, chamado Hiddlestone. Muito pálido, Koppndava de um para o outro lado, e até as dobras de gordura em suauca estavam pálidas, ao mesmo tempo em que ele não dava qualquetenção às balas que zuniam sobre o parapeito baixo e passavam perte sua cabeça. A maioria acocorava-se procurando abrigo, e Kopp

murmurava:

Jorge! Cogtio! Jorge!

logo acrescentava, em inglês:

Se Jorge está perdido, isso é terrível, terrível!

orge era seu amigo pessoal, e um dos melhores oficiais de queispunha. De repente Kopp voltou-se para nós e pediu cinco voluntárioois ingleses e três espanhóis, para procurarem os desaparecidos.

Moyle e eu nos apresentamos, com três espanhóis.

Ao chegarmos lá fora os espanhóis murmuraram que já estava ficandoerigosamente claro. Era bem verdade, e o céu se mostrava levementzulado. Do reduto fascista vinha um bulício agitado, e evidentemente

nimigo recuperara a posição e tinha lá muito mais gente do que antesstávamos a sessenta ou setenta metros do parapeito, quando eles noiram ou ouviram, pois mandaram de lá uma fuzilaria que nos fez cair d

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ara no chão. Um deles atirou uma bomba por cima do parapeito, emegura indicação de pânico. Estávamos deitados na grama esperandoportunidade para continuar, quando ouvimos, ou julgamos ouvir - não

enho dúvida de que foi fruto da imaginação, mas pareceu real naquelemomento - as vozes fascistas muito mais próximas. Eles haviam deixa

parapeito e vinham à nossa procura.

Corra! - gritei para Moyle, e me pus em pé.

Céus, como corri! Em ocasião anterior naquela noite eu pensara queinguém pode correr quando chapado de lama e água dos pés à cabecarregando um fuzil e cartuchos, mas naquele momento fiquei sabenue sempre se corre, quando achamos que em nosso encalço vêminqüenta ou cem homens armados. Mas se eu sabia correr depressa,

utros podiam fazê-lo ainda mais. Na minha disparada pude verassando por mim o que poderia ser uma chuva de meteoritos. Eram oês espanhóis, que estiveram à frente. Chegaram a nosso parapeitontes de parar e eu poder emparelhar-me com eles. A verdade é questávamos todos com os nervos em frangalhos. Mas eu sabia que à

meia luz um homem é invisível, onde cinco são claramente perceptíveie modo que voltei sozinho. Consegui chegar ao primeiro arame farpaesmiuçar o chão tão bem quanto possível, o que não era muito, pois

nha de me arrastar sobre o ventre. Não encontrei qualquer sinal deorge ou Hiddlestone, de modo que rastejei de volta. Mais tarde ficamoabendo que ambos foram levados para o posto de socorro em ocasiãnterior. Jorge ficara ligeiramente ferido no ombro, e Hiddlestone sofre

erimento sério - uma bala que subira por seu braço esquerdo,uebrando-lhe os ossos em diversos lugares. Enquanto estava caído e

ndefeso, uma bomba explodira por perto e lhe arrancara diversas outrartes do corpo. Tenho prazer em saber que ele se recuperou. Mais

arde ele me narraria como conseguira cobrir alguma distância deitadoe costas, agarrara-se a um espanhol também ferido, e os doisjudaram-se mutuamente até nossa linha.

á amanhecia, e por toda a extensão da frente, por quilômetros ao redstrugiam disparos irregulares como a chuva que continua caindo depoo temporal. Lembro-me do aspecto desolado de tudo, dos carrascais

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ama, os choupos gotejando, a água amarela no fundo das trincheiras,ostos exaustos dos homens, barbudos, emplastrados de lama e sujosté aos olhos com a fumaça de pólvora. Quando regressei ao meubrigo, encontrei os três homens com que o partilhava, já adormecidos

Atiraram-se ali com todo o equipamento e agarrados aos fuzisnlameados. Tudo estava encharcado, dentro e fora do abrigo. Depois

e muito procurar, consegui achar quantidade suficiente de lenha secaara acender uma pequenina fogueira. E fumei o charuto que estiverauardando e que, por surpreendente que parecesse, não se quebrara orrer daquela noite.

osteriormente ficamos sabendo que nossa ação fora um êxito, até onpoderia ser. Fora apenas uma investida para fazer os fascistas traze

oldados do outro lado de Huesca, onde os anarquistas os atacavam.

alculara que os fascistas tivessem posto cem ou duzentos homensaquele contra-ataque, mas um desertor viria mais tarde contar-nos quoram seiscentos. Atrevo-me a dizer que ele mentia, pois os desertoresor motivos óbvios, procuram granjear simpatia. Foi uma grande penacarmos sem o telescópio. O pensamento de que perdemos aquele

magnífico objeto é coisa que ainda hoje me amola.

Os dias tornavam-se mais quentes e até as noites passavam a seroleráveis, em matéria de temperatura. Numa árvore escalavrada poralas, à frente de nosso parapeito, formavam-se punhados cerrados derejas. Tomar banho no rio deixou de ser uma tortura e passou a seruase prazer. Rosas silvestres, com botões roxos do tamanho de umires, estendiam-se pelas crateras abertas por granadas ao redor daorre Fabián. Por trás da linha encontrávamos camponeses, que

unham rosas silvestres nas orelhas, e à noite costumavam sair comedes verdes, à caça de codornas. Estendiam as redes sobre as ponta

mais altas da vegetação rasteira, e depois disso era abaixar e imitar oanto de uma codorna fêmea. Qualquer macho que estivesse por pertocudia correndo naquela direção, e quando se colocasse por baixo daede jogava-se uma pedra, o que lhe proporcionava tremendo susto e azia dar um pulo para cima, ficando preso nas malhas. O processo, pe

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ue parecia, só servia para capturar codornas machos, o que se mefigurava grande injustiça.

ínhamos agora uma seção de andaluzes a nosso lado na linha deente. Não sei como chegaram até ali, e a explicação corrente era deue foram obrigados a fugir de Málaga com tanta pressa que se tinham

squecido de parar em Valência, mas tal afirmação vinha dos cataláosaturalmente, e estes são gente que costumava encarar os andaluzesomo raça de semi-selvagens. Não há dúvida de que eram muito

gnorantes, e poucos entre eles sabiam ler, e nem sequer demonstravaaber o que todos sabem na Espanha - a que partido político seertence. Achavam ser anarquistas, mas não tinham certeza disso;

alvez fossem comunistas. Era gente áspera e rústica, pastores ouabalhadores dos olivais, talvez, com rostos muito tisnados pelo sol

ravo das regiões mais meridionais. Eram-nos muito úteis, poispresentavam uma extraordinária destreza para enrolar o fumo secospanhol, fazendo assim os cigarros. Cessara a distribuição de cigarro

eitos, mas em Monflorite era possível obter de vez em quando algunsacotes do tipo mais barato de fumo, (que na aparência e tato parecia-

muitíssimo a palha picada. Seu sabor não era mau, mas tamanha suaecura que quando se conseguia enrolar um cigarro o fumo logo caía eeixava na mão de quem o enrolara apenas o cilindro vazio de papel. Ondaluzes, no entanto, sabiam enrolar cigarros admiravelmente eonheciam uma técnica toda especial de socar o fumo nas pontas, parão cair dali.

Dois ingleses foram atingidos pela insolação, e minhas recordaçõesesse período são o calor do sol a pino e o trabalho quando se estavaeminu, com os sacos de areia a castigar os ombros já bem punidos pol; e mais o triste estado das roupas e calçado, que caíam aos pedaçmais as lutas com a mula que trazia nossas rações, e que não se

mportava com o disparo de fuzis, mas desembestava em fuga quandohrapnel explodia no ar; e os mosquitos (que começavam a aparecer) atos, elementos de perturbação e incômodo geral, atrevidos a ponto devorar cinturões e cartucheiras de couro. Nada mais acontecia, excetma ou outra baixa devida ao fogo de algum franco-atirador, e rajadasrtilharia e incursões aéreas sobre Huesca, em caráter esporádico.

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Agora que as árvores estavam em plena brotação, construímoslataformas para atiradores nos choupos que orlavam a linha de frente

No outro lado de Huesca os ataques estavam acabando. Os anarquistofreram elevadas baixas e não conseguiram cortar de todo a estradaara Jaca. Estavam estabelecidos agora suficientemente perto, emmbos os lados, para encher a estrada com fogo de suas metralhadora

torná-la impassável ao tráfego, mas o vão era de um quilômetro deargura, e os fascistas construíram uma estrada pelo chão abaixo, umaspécie de trincheira enorme, pela qual certo número de caminhõesodia ir e vir. Os desertores informavam que em Huesca havia muita

munição e pouca comida, mas era evidente que a cidade não ia cair.alvez fosse impossível tomá-la com os quinze mil homens mal armade que dispúnhamos. Mais tarde, em junho, o Governo trouxe tropas dente de Madri e concentrou trinta mil homens em Huesca, com enormuantidade de aeroplanos, mas ainda assim a cidade não caiu.

Quando recebemos licença, eu tinha cento e quinze dias seguidos nanha, e naquela ocasião esse período me parecera um dos mais inúteie toda minha vida. Entrara para a milícia para lutar contra o fascismo

mal havia participado em qualquer combate, e apenas existira como umspécie de objeto passivo, nada fazendo em troca das rações queecebia, a não ser sofrer com o frio e falta de sono. Talvez seja o destia maioria dos soldados, em quase todas as guerras, mas agora queosso ver aquele período numa perspectiva mais ampla, já não o deploe todo. Certamente gostaria de ter servido ao Governo espanhol de

modo mais efetivo, mas de um ponto de vista pessoal - do ponto de vise meu próprio desenvolvimento - aqueles primeiros três ou quatro

meses passados na linha foram menos inúteis do que julguei na épocaois formaram uma espécie de interregno em minha vida, sendo

muitíssimo diferente de tudo quanto acontecera antes e, talvez, de tuduanto ainda virá, e ensinaram-me coisas que não poderia ter aprendide qualquer outro modo.

O ponto essencial que desejo ressaltar é que por todo aquele tempo estivera isolado - pois na frente ficava-se quase completamente isolado mundo externo, e até mesmo do que ocorria em Barcelona não senha mais do que uma vaga concepção - entre pessoas que, de um

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modo aproximado, mas não muito imprecisamente, podiam ser descritomo revolucionários. Isso era resultado do sistema de milícia, que naente de Aragón não foi modificado radicalmente senão por volta de

unho de 1937. As milícias de trabalhadores, baseadas nos sindicatosrofissionais e cada qual composta de gente com mais ou menos a

mesma opinião política, tiveram o efeito de canalizar para um só lugar

odo o sentimento mais revolucionário do país. Eu caíra, mais ou menoor sorte, na única coletividade de dimensões maiores, na EuropaOcidental, onde a consciência política e a descrença no capitalismo eroisa mais normal do que seus contrários. Ali, em Aragón, estava-se e

meio a dezenas de milhares de pessoas que em sua maioria, emboraão totalidade, originavam-se da classe trabalhadora, viviam todas no

mesmo nível e se davam em pé de igualdade. Em teoria, era a igualdaerfeita, e mesmo na prática não andavam longe disso. Há um sentidoo qual seria veraz afirmar que estávamos experimentando uma amoso socialismo, e com isso quero dizer que a atmosfera mentalredominante era a do socialismo. Muitas das motivações normais daida civilizada - esnobismo, ganância pelo dinheiro, medo ao patrão, etdeixaram simplesmente de existir. A divisão comum das classes naociedade desaparecera em tal medida que se mostra quase

nimaginável na atmosfera contaminada pelo dinheiro e que se respira

nglaterra; não havia mais gente alguma ali, com exceção dosamponeses e nós próprios, e ninguém possuía outrem e era seu senhamo. Está claro que tal estado de coisas não podia perdurar. Erapenas uma fase temporária e local, num jogo imenso que está sendoisputado por toda a superfície da terra. Mas durou o bastante paraausar seus efeitos sobre qualquer um que a tenha experimentado. Po

mais que praguejássemos na ocasião, compreendiamos depois questivemos em contato com alguma coisa estranha e valiosa. Estivera-s

uma coletividade onde a esperança era coisa mais normal do que apatia ou cinismo, onde a palavra "camarada" significava camaradagenão, como ocorre na maioria dos países, mera conversa fiada.

Respiramos o ar da igualdade. Tenho plena ciência de que estamosgora na moda de negar que o socialismo tenha qualquer coisa a verom a igualdade. Em todos os países do mundo há uma tribo enorme

mercenários partidários, e professorzinhos maneirosos em atividade,

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mpenhados em "provar" que o socialismo nada mais que dizer senãoapitalismo estatal planificado, deixando intata a motivação gananciosao lucro. Mas existe também, e por felicidade, uma visão diferente doue seja o socialismo. A coisa que atrai os homens comuns aoocialismo, e faz com que se disponham a arriscar o canastro por ele, mística" do socialismo, é a idéia de igualdade. Para a vasta maioria da

essoas o socialismo representa uma sociedade sem classes, ou entãstará vazio de qualquer significado. E foi nisto que aqueles poucosmeses passados na milícia se mostraram valiosos para mim, pois

nquanto existiram as milícias espanholas elas constituíram uma espée microcosmos de uma sociedade sem classes. Naquela coletividadende ninguém estava a "se arrumar", onde havia escassez e falta de

udo mas também não se encontrava o privilégio, o servilismo, recebiaque talvez fosse uma amostra bruta do que poderiam ser as etapas

niciais do socialismo. E, acima de tudo, ao invés de causar desilusão,sso me atraía profundamente. O efeito era fazer com que se tornassemuito mais real o meu desejo de ver o socialismo estabelecido. Talvezsso se devesse, em parte, à boa sorte de estar entre espanhóis, genteue, com sua decência inata e sua coloração anarquista sempreresente, tornaria até mesmo as etapas iniciais do socialismo uma coisuportável, se lhe fosse dada a oportunidade para isso.

stá claro que, na época, eu mal percebia as transformações quecorriam em meu próprio espírito. Como todos os que estavam ao meuedor, minhas noções mais conscientes eram as de aborrecimento, caio, sujeira, piolhos, privações e perigo ocasional. A coisa está muitoutra, agora. Esse período, que pareceu-me então inútil e privado decontecimentos, assumiu grande importância para mim. E coisa tãoiferente do resto de minha vida, que já assumiu aquela qualidade

mágica que, via de regra, pertence apenas às recordações já distantesos anos passados. Era coisa bestial enquanto acontecia, mas constitum bom período no qual meu espírito pode se alimentar. Eu gostaria doder transmitir ao leitor a atmosfera daquela época, e espero tê-loonseguido, ao menos um pouco, nos capítulos anteriores deste livro. oisa está toda ligada, em meu espírito, ao frio de inverno, aos uniformsfarrapados dos milicianos, aos rostos ovais dos espanhóis, à cadênc

elegráfica de metralhadoras, ao fedor de urina e pão estragado, ao

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aladar estânico de feijoadas devoradas às carreiras e servidas emasilhame nada limpo.

odo esse período permanece comigo com vividez curiosa. Em minhaecordação percorro incidentes que poderiam parecer insignificantesemais para justificar isso. Estou no abrigo em Monte Pocero outra vez

a beirada de calcário que serve de cama, e o jovem Ramón ronca comnariz achatado entre minhas omoplatas. Estou tropeçando na trinchenlameada, atravessando o nevoeiro que gira ao redor como vapor friostou a meio caminho numa fenda da encosta, lutando por manter oquilíbrio e agarrando uma raiz de alecrim bravo no chão. Lá por cimaantam balas perdidas e destituídas de qualquer sentido.

stou deitado e oculto entre pequenos abetos, no chão baixo ao oeste

e Monte Oscuro, com Kopp e Bob Edwards e três espanhóis. No topoo morro cinzento à nossa direita encontra-se uma fieira de fascistas,ubindo aquilo como se fossem formigas. Bem à frente um toque deometa parte das linhas fascistas. Kopp troca um olhar comigo, e comesto de colegial faz fiau para o inimigo.

stou no pátio enlameado de La Granja, em meio ao grupo de homensue lutam com suas vasilhas de estanho em volta ao caldeirão de

nsopado. O cozinheiro, homem gordo e embaçarado, faz-nos recuarrandindo a concha em nossa direção. Em mesa próxima está umomem barbudo, com enorme pistola automática no coldre e partindoães em cinco pedaços. Atrás de mim uma voz com sotaque londrinoBill Chambers, com quem tive acesa disputa, e que mais tarde foi morora de Huesca) está cantando:

Há ratos, muitos ratos,

atos tão grandes quanto gatos,

o dep...

Uma granada de artilharia estruge com seu grito pelo ar. Meninos deuinze anos atiram-se de cara no chão. O cozinheiro se esconde atráso caldeirão, e todos se erguem, com expressões encabuladas,

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nquanto a granada mergulha e estoura a cem metros de distância.

stou andando de lá para cá na linha de sentinelas, sob as copasscuras dos choupos. Na vala inundada, lá fora, os ratos estão aspadanar, fazendo tanto barulho como se fossem lontras. Quando a

madrugada amarelada desponta atrás de nós a sentinela andaluza,

rotegida em sua capa, começa a cantar. Do outro lado da terra deinguém, a cem ou duzentos metros de distância, dá para ouvir aentinela fascista cantando também.

m 25 de abril, depois dos mañanas de costume, outra seção nosubstituiu e entregamos nossos fuzis, embrulhamos os pertences e

marchamos de volta para Monflorite. Não fiquei com pena de deixar anha. Os piolhos multiplicavam-se em minhas calças com rapidez maio

o que eu os conseguia massacrar, e por todo um mês eu estivera semmeias e as botas estavam com as solas muito gastas, de modo quendava mais ou menos descalço. Eu queria tomar um banho quente,estir roupas limpas e passar uma noite entre lençóis, e queria isso co

mais ardor e paixão do que se pode querer qualquer coisa depois deiver uma vida civilizada normal. Dormimos algumas horas num paiol e

Monflorite, embarcamos em caminhões pela madrugada, apanhamos oem das cinco em Barbastro e - tendo a sorte de ligar com um trem

ápido em Lerida - estávamos em Barcelona às três da tarde do dia 26epois disso começaram os problemas.

De Mandalay, na Birmânia Superior, pode-se viajar de trem até Maymyprincipal estação montanhosa naquela província, à beira do planalto han. Essa viagem constitui experiência bastante incomum, pois o

iajante sai da atmosfera típica de uma cidade oriental - com seu solrilhante, as palmeiras poeirentas, cheiros de peixe, especiarias e alhoutas tropicais polpudas, a multidão de seres humanos de faces escure porque nos acostumamos a ela, levamos essa atmosfera intata, possim dizer, dentro do vagão ferroviário em que viajamos. Mentalmentstamos ainda em Mandalay, e nisso o trem pára em Maymyo, a 1.200

metros acima do mar. Bastará sairmos do vagão para entrarmos numemisfério diferente. Vemos que, de repente, estamos respirando ar fr

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doce, bem parecido ao da Inglaterra, e ao derredor estão a gramaerde, samambaias, abetos e mulheres das montanhas, de rostosorados e vendendo cestas de morangos.

Regressar a Barcelona, depois de três meses e meio na linha de frenteoi mudança que me fez recordar aquela outra. Ocorria a mesma

ansformação, abrupta e surpreendente, de atmosfera. No trem, por topercurso até Barcelona, a atmosfera da linha de frente persistia; eramsujeira, o ruído, o desconforto, as roupas esfarrapadas e a sensaçãoe privação, camaradagem e igualdade. O trem, que já estava repleto

milicianos ao partir de Barbastro, viu-se invadido por um número cadaez maior de camponeses a cada estação. Vinham com embrulhos de

egumes, aves apavoradas que carregavam penduradas de cabeça paaixo, sacos que se mexiam e contorciam por todo o chão e logo

escobríamos estarem cheios de coelhos vivos - e, finalmente, com tom rebanho de ovelhas, que foram empurradas para os compartimentoenfiadas em todos os cantos vazios. Os milicianos entoavam cançõe

evolucionárias que se sobrepunham ao barulho do trem e mandavameijos, ou sacudiam lenços vermelhos e negros para todas as mulhereonitas que se via no caminho. Garrafas de vinho e anis, aquele imundcor aragonês, passavam de mão em mão. Com as garrafas de águaspanholas, feitas com pele de cabra, pode-se espirrar um jato de vinhe um lado do vagão até à boca do amigo, no outro lado, o que poupa

muito trabalho. A meu lado um rapazinho de quinze anos, e de olhosegros, apresentava uma narrativa sensacional e, não duvido,ompletamente inveridica de suas próprias façanhas na linha de frenteara dois camponeses idosos e de cara enrugada, que ouviamoquiabertos. Eles não tardaram a abrir seus embrulhos e oferecer-nolgum vinho tinto, escuro e pegajoso. Estávamos todos imensamente

elizes, mais do que eu possa descrever. Mas depois do trem passar pabadell e chegar a Barcelona, saltamos para encontrar uma atmosferue não seria menos estranha e hostil se houvéssemos chegado a Pau Londres.

odos aqueles que fizeram duas visitas, com espaço de meses, à cidae Barcelona e durante a guerra, puderam observar as transformaçõesxtraordinárias ali ocorridas. O curioso é que se tais visitantes estivera

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ela primeira vez em agosto, e depois em janeiro, ou então emezembro e depois abril, como eu, era sempre idêntica sua observaçãesaparecera a atmosfera revolucionária. Para qualquer um que lástivera em agosto, quando o sangue mal secara nas ruas e a milícia slojava nos bons hotéis, Barcelona teria parecido, em dezembro, umaidade burguesa. Para mim, recém-vindo da Inglaterra, ela parecia-se

mais a uma cidade de trabalhadores do que qualquer outra coisa queudesse imaginar. Agora a maré refluíra, e Barcelona voltara a ser umidade comum, um pouco batida e escalavrada pela guerra, mas sempresentar qualquer sinal exterior de predomínio da classe trabalhador

A transformação no aspecto de sua população era surpreendente.Haviam desaparecido quase por completo o uniforme miliciano e omacacão azul. Todos pareciam estar usando as mesmas roupas

legantes de verão nas quais os alfaiates espanhóis se especializam.Homens gordos e prósperos, mulheres elegantes e carros bonitosncontravam-se por toda a parte. (Dizia-se que ainda não haviautomóveis particulares, mas ainda assim todos que fossem "alguém"areciam capazes de ter um veículo para si ) Os oficiais doecém-formado Exército Popular, tipo que mal existia quando eu partirae Barcelona, apresentavam-se em números surpreendentes. O Exércopular tinha oficiais na proporção de um por dez soldados. Certoúmero dos mesmos servira na milícia ou fora tirado da linha de frenteara receber instrução técnica, mas a maioria se compunha deapazelhos que tinham freqüentado a Escola de Guerra, ao invés dengressar na milícia. Sua relação para com os subordinados não era amesma de um exército burguês, mas existia uma diferença social

efinida, expressa pela diferença em soldo e uniformes. Os soldadosnvergavam um tipo de macacão marrom pesado, e os oficiais um

niforme cáqui elegante, de cintura fina, parecido ao dos oficiaisritânicos, porém um pouco mais requintados. Acredito que, de cadainte desses moços, não mais de um esteve na linha de combate, masodos traziam pistolas automáticas no coldre, enquanto nós, no front, nonseguíamos tais armas, implorando ou pagando. Ao tocarmos pelaua, notei que as pessoas nos observavam longamente. Está claro queomo todos que permaneceram meses seguidos na linha de frente,onstituíamos um espetáculo assustador. Eu tinha plena consciência d

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star com a aparência de verdadeiro espantalho. A jaqueta de couro cos pedaços, o gorro de lã perdera sua forma e tombava constantemeobre o olho, as botinas pouco mais apresentavam do que a parte deima. Estávamos todos mais ou menos nas mesmas condições, e alémisso sujos e barbudos, de modo que não era de admirar que o povolhasse. Mas fiquei um tanto amolado, e compreendi que algumas cois

em curiosas haviam ocorrido naqueles últimos três meses.Nos dias seguintes, inúmeras indicações corroboraram minha primeirampressão. A cidade passara por profunda transformação. Havia doisatos que davam o tom a tudo mais. Um, era que o povo - a populaçãoivil - perdera grande parte de seu interesse pelo desenrolar da guerrautro era que a divisão costumeira da sociedade, em ricos e pobres,lasse superior e classe inferior, voltara a reafirmar-se.

A indiferença geral para com a guerra constituía fato surpreendente eastante desapontador. Ela causava horror às pessoas vindas de Madu mesmo de Valência. Devia-se, em parte, à distância em quearcelona se achava do cenário de luta, e notei o mesmo um mêsepois, quando em Tarragona, onde a vida comum de elegante cidadeosteira prosseguia quase incólume. Mas era significativo o fato de queor toda a Espanha o alistamento de voluntários decaíra mais ou meno

e janeiro em diante. Na Catalunha, em fevereiro, houvera uma onda dntusiasmo pela primeira grande campanha em favor do Exércitoopular, mas isso não resultara em grande aumento no recrutamento. uerra tinha apenas seis meses, ou perto disso, quando o Governospanhol foi forçado a recorrer à conscrição, o que seria natural numauerra com outro país, mas parece anômalo numa guerra civil.

Certamente isso se prendia ao desapontamento quanto às esperançasevolucionárias com que a guerra se iniciara. Os membros dosindicatos, que se tinham formado em milícias e repelido os fascistasara Saragoça nas primeiras semanas de guerra fizeram-norincipalmente por acreditarem estar lutando pelo controle por parte dalasse trabalhadora, porém cada vez se tornava mais evidente que talontrole era uma causa perdida e a gente comum, em especial oroletariado urbano, que tem de engrossar as fileiras em qualqueruerra, civil ou exterior, não podia ser incriminada por demonstrar certa

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patia. Ninguém queria perder a guerra, mas a maioria desejava maisra vê-la terminar. Notava-se isso por toda a parte e sempre ouvíamosomentário perfuntório: "Esta guerra.. . coisa terrível, não é? Quando vcabar?" As pessoas politicamente informadas davam muito maistenção à luta intestina entre anarquistas e comunistas do que àquelaontra Franco. Para a massa do povo, a escassez de gêneros

limentícios era o mais importante de tudo. A "linha de frente" seansformara em lugar remoto e mítico para onde os jovensesapareciam e não mais regressavam, ou reapareciam depois de trêsu quatro meses, com os bolsos transbordando de dinheiro. (Os

milicianos geralmente recebiam seus atrasados quando entravam emcença.) Os feridos, mesmo quando saltando com muletas, não recebiualquer consideração especial. Estar na milícia não era mais coisa em

moda. As lojas e casas comerciais, que sempre constituem o barômetro gosto público, demonstravam isso de modo bem claro. Quando estim Barcelona pela primeira vez, por mais pobres e maltratadas questivessem, elas se especializavam em equipamento para milicianos,

Casquetes, jaquetas com zipper, cinturões San Browne, facas de caçaantinas, coldres para revólveres, eram artigos exibidos em todas asitrinas. Agora as lojas se mostravam muito mais elegantes, porém auerra fora arremessada para o lado. Conforme descobriria mais tarde

o comprar meu equipamento antes de voltar à linha de frente, algumaoisas de que muito se precisava eram bem difíceis de encontrar.

nquanto isso, tivera lugar uma propaganda sistemática contra asmilícias e a favor do Exército Popular. A situação, era bem curiosa. A

artir de fevereiro todas as forças armadas foram, em teoria,ncorporadas àquele exército e, no papel, as milícias foram reconstruíde acordo com o modelo do mesmo, com tabelas diferenciais de soldo

atentes oficialmente publicadas, etc. etc. As divisões se formavam debrigadas mistas", que deviam compor-se em parte de soldados doxército Popular e, em parte, de milícias. Mas as únicas transformaçõeue realmente ocorreram foram no nome. As tropas do P.O.U.M., porxemplo, que antes se chamavam a "Divisão Lênin", eram agoraonhecidas como Vigésima-Nona Divisão. Até junho pouquíssimasopas do Exército Popular chegaram à frente de Aragón e, poronseqüência, as milícias puderam reter sua estrutura separada, bem

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omo seu caráter todo especial. Mas em todas as paredes e muros osgentes do Governo escreveram: "Precisamos de um Exército Popularpelo rádio e na imprensa comunista prosseguia uma zombaria

ncessante e, às vezes, maligna contra as milícias, que eram descritasomo mal treinadas, indisciplinadas, etc. etc; o Exército Popular, ao

mesmo tempo, sempre se via apresentado como "heróico". De grande

arte dessa propaganda advinha a impressão de haver alguma coisaergonhosa em ter ido voluntariamente para a luta, e algo merecedor douvor no esperar-se até ser feita a convocação. Durante aquele tempoo entanto, eram as milícias que sustentavam a linha de frente, enquaExército Popular se adestrava na retaguarda, e esse fato recebia tãoouca divulgação quanto possível. Os bandos de milicianos queegressavam à frente de batalha não eram mais apresentados em

marcha pelas ruas, com tambores rufando e bandeiras desfraldadas.ram despachados por trem ou caminhão às cinco da manhã. Algunsontingentes do Exército Popular começavam agora a partir para a linhe frente, e estes, como antes, marchavam cerimoniosamente pelasuas. Mas até eles, devido ao declínio geral de interesse pela guerra,ncontravam relativamente pouco entusiasmo. O fato de que osoldados das milícias também eram, no papel, soldados do Exércitoopular, era habilmente utilizado na propaganda pela imprensa.

Qualquer louvor que devesse ser prestado ia automaticamente recairobre o Exército Popular, enquanto todas as recriminações ficavameservadas para as milícias. Acontecia, às vezes, que as mesmas tropram louvadas por uma coisa e incriminadas por outra.

Mas ao lado de tudo isso havia a transformação surpreendente natmosfera social - coisa difícil de conceber, a menos que se tenhaassado por ela. Quando estive pela primeira vez em Barcelona eu a

chara uma cidade onde quase não existiam as distinções de classe erandes diferenças em fortuna. Não tenho dúvida de que fosse esse sespecto real, de então. As roupas "elegantes" constituíam anormalidadinguém se curvava obsequioso ou aceitava gorjetas, os garçons eendedoras de flores e engraxates olhavam o freguês nos olhos e ohamavam de "camarada". Eu não compreendera que isso, em sua

maior parte, constituía uma mistura de esperança e camuflagem. Alasse trabalhadora acreditava numa revolução que fora iniciada, mas

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amais consolidada, e a burguesia estivera assustada, tendo-seisfarçado provisoriamente em trabalhadores. Nos primeiros meses daevolução devem ter havido muitos milhares de pessoas queeliberadamente vestiram macacões e proferiram refrõesevolucionários, como meio de salvar a pele. Agora as coisas voltavamo normal, e os restaurantes e hotéis elegantes estavam repletos de

ente rica que devorava refeições caras, enquanto que para a populaçabalhadora os preços dos gêneros subiram muito, sem qualquerumento correspondente nos salários. A parte da carestia em tudo, haonstante escassez disto ou daquilo, o que sempre atingia mais o pobro que o rico, naturalmente. Os restaurantes e hotéis pareciam ter pouificuldade em obter o que quisessem, mas nas instalações da classeabalhadora as filas para conseguir pão, azeite e outros artigosstendiam-se por centenas de metros. Na ocasião anterior, emarcelona, eu ficara bem impressionado pela ausência de mendigos, egora eles se apresentavam em grande número. No lado de fora das

ojas de frios, na parte superior da Ramblas, turmas de criançasescalças estavam sempre à espera para rodear quem saísse dali eritar pedindo restos de comida. As formas "revolucionárias" de converstavam saindo de uso. Raras vezes as pessoas estranhas se dirigiamma à outra, no tratamento tu e "camarada"; em geral era señor e uste

uenos dias começava a substituir salud. Os garçons envergavamovamente as camisas engomadas e os lojistas faziam salamaleques mesuras como antes. Minha esposa e eu fomos a uma loja de meias nRamblas, e ali o lojista fez reverência e esfregou as mãos como nãoazem nem mesmo na Inglaterra de nossos dias, embora costumassemazê-lo há vinte ou trinta anos atrás. De um modo furtivo e indireto arática de dar gorjetas voltava a existir. As patrulhas formadas porabalhadores receberam ordem de dissolução e as forças policiais de

ntes da guerra apresentavam-se novamente nas ruas. Um dosesultados disso é que o espetáculo de cabaré e os prostíbulos deategoria, muitos dos quais foram fechados pelas patrulhas deabalhadores, logo reabriram suas portas.9 Um exemplo pequeno masignificativo do modo pelo qual tudo se encontrava orientado, agora, aavor das classes mais ricas, podia ser visto na escassez de fumo. Parmassa do povo essa escassez era tão desesperada que cigarros

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heios de raiz picada de alcaçuz eram vendidos nas ruas. Experimentelguns. (Muita gente fez isso, ao menos uma vez.) Franco estava com has Canárias, onde se planta todo o fumo da Espanha e, poronseqüência, os únicos estoques de fumo existentes no lado do

Governo eram os que se tinha antes da guerra. Tais reservasncontravam-se tão reduzidas que as tabacarias agora só abriam suas

ortas uma vez por semana, e depois de esperar duas horas na filaalvez se conseguisse, com alguma sorte, comprar um pacote de fumom teoria o Governo não permitiria a compra de fumo no exterior, pois

sso reduziria as reservas de ouro, que precisavam ser mantidas paraomprar armas e outros artigos necessários. Na verdade, havia umornecimento constante de cigarros estrangeiros contrabandeados, e d

marcas mais caras, Lucky Strike e assim por diante, o que criavaabulosa oportunidade para lucros ilegais. Podia-se comprar os cigarroontrabandeados abertamente nos hotéis elegantes, e pouco menosbertamente nas ruas, desde que se pagasse dez pesetas (soldo de uia dos milicianos) pelo maço. O contrabando ia beneficiar as pessoascas, e por isso encontrava conivência. Para quem tivesse dinheirouficiente nada havia que não se pudesse obter em qualquer quantidaom a possível exceção do pão, que era racionado de modo bastantegoroso. Esse contraste aberto entre riqueza e pobreza teria sido

mpossível alguns meses antes, quando a classe trabalhadora aindastava, ou parecia estar, em controle da situação. Mas não seria justotribuir isso apenas à transferência do poder político, pois em parte era

ambém o resultado da segurança da vida em Barcelona, onde poucasoisas havia para fazer o povo lembrar-se da guerra, excetuado um ouutro ataque aéreo inimigo. Todos que estiveram em Madri afirmavamue as coisas eram muito diferentes na Capital, onde o perigo comum

orçava as pessoas de quase todos os tipos a um certo sentido de

amaradagem. Um homem gordo a comer codornas enquanto criançamploram pão constituí visão desagradável, mas é menos provável tê-luando se está ouvindo o estrondo dos canhões.

Um dia ou dois, após a luta de ruas, lembro-me de estar passando porma das ruas mais elegantes e de entrar numa confeitaria que ostentavitrina cheia de doces e bombons dos tipos mais refinados, a preçosspantosos. Era o tipo de casa comercial que se encontra em Bond

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treet ou Rue de la Paíx. E recordo também meu sentimento vago deorror e espanto diante do fato de que ainda se pudesse desperdiçarinheiro em coisas assim, num país faminto e assolado pela guerra. Mue Deus me proíba o fingimento de qualquer superioridade pessoal.

Depois de diversos meses no maior desconforto, eu estava tomado poesejo fortíssimo de ter comida e vinho decentes, coquetéis, cigarros

orte-americanos e assim por diante, e reconheço ter-me espojado emodos os luxos que meu dinheiro pode comprar. No curso da primeiraemana, antes de começar a luta de ruas, tive diversas preocupaçõesue interagiram uma sobre a outra de modo bastante curioso. Emrimeiro lugar, como já disse, estava ocupadíssimo tratando tanto de

meu conforto quanto podia. Em segundo lugar, graças aos excessos eomida e bebida, estive com a saúde um pouco abalada por toda aqueemana. Eu me sentia mal, ia deitar por metade do dia e dali saía para

ngerir outra lautíssima refeição e passar mal em seguida. Ao mesmoempo, dava continuação a negociações secretas no sentido de adquirm revólver. Eu queria uma arma dessas com muito empenho, pois ere utilidade bem maior que um fuzil na guerra de trincheiras, e estavam

muito difíceis de conseguir. O Governo distribuíra revólveres aos policiaos oficiais do Exército Popular, mas não às milícias. Era preciso

omprá-los, ilegalmente, nos depósitos secretos dos anarquistas. Depo

e muita trapalhada e amolação, um amigo anarquista conseguiu paramim uma pequena pistola automática de 26 mm, arma sem valor e inúmais de cinco metros de distância, porém melhor do que nada. E por

ima de tudo isso eu fazia os primeiros preparativos para deixar a milíco P .O. U . M. e ingressar em outra unidade, desde que, com isso,casse assegurada minha ida para a frente de Madri.

Desde muito eu dizia a todos que ia deixar o P.O.U.M. Por minha

referência puramente pessoal, teria gostado de estar com osnarquistas. Quem se tornasse membro da C. N . T. podia ingressar nmilícia da F. A. I., mas disseram que era mais provável mudarem-se da

ara Teruel do que para Madri. Se queria ir para a Capital, tinha dengressar na Coluna Internacional, o que representava obterecomendação de um membro do Partido Comunista. Procurei um amomunista, ligado ao Auxílio Médico Espanhol, e expliquei o caso.areceu bastante interessado em recrutar-me, e pediu que, se fosse

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ossível, persuadisse alguns outros ingleses da I. L. P. para que sepresentassem em minha companhia. Se minha saúde estivesse em

melhor estado, eu provavelmente teria concordado com a proposta alimesmo. A esta altura, mostra-se difícil dizer que diferença isso teria fe

bem possível que me houvessem mandado para Albacete, antes deomeçar a luta em Barcelona, e nesse caso, não tendo assistido à luta

e perto, eu poderia ter aceito a versão oficial que foi dada à mesma,chando-a verdadeira. Por outro lado, se estivesse em Barcelonaurante a luta, sob ordens comunistas mas sentindo ainda fidelidadeessoal aos meus camaradas no P. O. U. M., teria ficado em posição

mpossível. Mas restava-me ainda uma semana de licença, e eu ansiavor endireitar a saúde antes de regressar à linha de frente. E acontece

ambém - no tipo de detalhe que está sempre a resolver o destino dasessoas - que tive de esperar enquanto os sapateiros fabricavam umovo par de botinas de marcha. (Em todo o exército espanhol eu nãoonseguira encontrar um par de botinas suficientemente grandes para

meus pés.) Disse ao meu amigo comunista que faria os preparativosmais tarde e, enquanto isso, queria descansar. Tinha até a idéia de qu

ós - minha mulher e eu - poderíamos ir à costa marítima por dois ou tias. Que idéia! A atmosfera política deveria ter-me prevenido que issoão era tipo de coisa possível naqueles dias.

digo isso porque, sob o aspecto superficial da cidade, sob o luxo eobreza crescente, sob a parecença da alegria das ruas, com seusalcões de flores, suas bandeiras multicores, cartazes de propaganda

multidões em grande movimento pelas ruas, existia um sentimentoniludível e horrível de rivalidade e ódio políticos. As pessoas de todas piniões estavam dizendo, em tom de presságio: "Não vai tardar a

ormar-se barulho". O perigo mostrava-se bastante simples e inteligíve

ra o antagonismo entre os que desejavam o prosseguimento daevolução e os que a queriam impedir ou deter - em última instância, uisputa entre anarquistas e comunistas. Politicamente, não havia agoraualquer poder na Catalunha, com exceção do P .S. U. C. e seus aliadberais. Mas contra isso existia a força incerta da C. N . T., menos bemrmada e menos ciente do que queria, em comparação a seusdversários, mas poderosa devido a seu número e predomínio emiversas indústrias principais. Diante desse alinhamento de forças, era

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rovável a eclosão de luta. Do ponto de vista do Generalato controladoelo P. S. U . C., a primeira necessidade para assegurar sua posiçãostava em retirar as armas das mãos dos trabalhadores filiados à C. N. Conforme indiquei anteriormente, a manobra para acabar com as

milícias partidárias constituiu, no fundo, uma manobra visando a esseesíderato. Ao mesmo tempo, as forças policiais existentes antes da

uerra, Guardas Civis e assim por diante, foram postas novamente emso e recebiam grandes reforços e armamento. Isso somente podiaignificar uma coisa. Os Guardas Civis, de modo especial, eram umaendarmaria do tipo continental comum, que por quase um século agiromo guarda-costas da classe proprietária. Nesse intervalo, fora baixam decreto determinando que todas as armas em mãos de particulareeviam ser entregues. Como era natural, tal ordem não fora obedecida

ornando-se claro que as armas dos anarquistas só lhes poderiam serrrebatadas à força - Circularam boatos, sempre vagos e contraditóriosevido à censura dos jornais, a respeito de refregas menores quecorriam por toda a Catalunha. Em diversos lugares as forças policiaisrmadas desferiram ataques aos bastiões anarquistas. Em Puigcerdá,onteira com a França, uma turma de Carabineros fora mandadapossar-se do Posto Alfandegário, antes controlado pelos anarquistas

Antonio Martin, anarquista bem conhecido, fora morto no encontro.

ncidentes semelhantes ocorreram em Figueras, e também Tarragona,o que parece. Em Barcelona ocorrera uma série de refregas travadasraço, coisa da qual tínhamos conhecimento mais ou menos não oficianos bairros da classe trabalhadora. Os membros da C. N . T. e U . G. estiveram a matar-se mutuamente por algum tempo, e em diversascasiões os assassinatos eram acompanhados por imensos erovocantes funerais deliberadamente planejados para atiçar o ódioolítico. Pouco tempo antes, um membro da C . N . T. fora assassinad

a C.N.T. se apresentara com centenas de milhares de membros paracompanhar seu cortejo fúnebre. Ao final de abril, pouco antes de eueixar Barcelona, era assassinado Roldan, destacado membro da U. G., presumivelmente por alguém da C . N. T. O Governo ordenou o

echamento de todas as casas comerciais e encenou uma imensarocissão fúnebre, composta principalmente por soldados do Exércitoopular, que levou duas horas desfilando. Da janela do hotel pude

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bservá-la, sem a menor sombra de entusiasmo. Tornava-se óbvio quequele chamado funeral não passava de uma exibição de força, e comm pouco mais daquilo poderia haver derramamento de sangue.

Naquela mesma noite minha mulher e eu fomos despertados por umauzilaria na Plaza de Cataluña, a cem ou duzentos metros de distância

No dia seguinte fomos informados de que fora a eliminação de um

omem da C. N . T., presumivelmente por alguém da U.G.T. Como eraatural, muito possivelmente todos esses assassinatos tinham por autos agents prouocateurs. Pode-se aferir a atitude da imprensa capitaliststrangeira para com a luta entre comunistas e anarquistas pelo fato due o assassinato de Roldan recebeu ampla publicidade, enquanto outro, cometido em represália, permaneceu cuidadosamente omitido.

Aproximava-se o Primeiro de Maio, e falava-se numa

emonstração-monstro em que tanto a C. N . T. quanto a U. G . T.everiam participar. Os dirigentes da C . N .T.,mais moderados do quemuitos de seus seguidores, desde muito trabalhavam por umaeconciliação com a U . G. T. e, na verdade, a nota básica de suaoutrina era procurar formar os dois blocos de sindicatos em uma únicnorme coalizão. A idéia era de que a C.N.T. e a U.G.T. deviam march

untas e demonstrar sua solidariedade. Mas ao último instante aemonstração era cancelada. Tornava-se perfeitamente claro que sóerviria para causar desordens públicas, de modo que nada ocorreu norimeiro dia de maio. Era um estado de coisas bastante bizarro,arcelona, a chamada cidade revolucionária, foi provavelmente a únicaidade na Europa não-fascista que não efetuou qualquer celebraçãoaquele dia. Mas reconheço que senti grande alívio com isso. Oontingente da I. L. P. deveria marchar na seção do P .0. U . M. e todosperavam barulho. A última coisa que eu podia desejar era estar

misturado em alguma luta de rua, destituída de sentido. Marchar pelaua, atrás de bandeiras vermelhas onde se liam refrões elevados, eepois disso ser morto por tiro disparado de uma janela qualquer porlgum estranho, equipado com submetralhadora - não é o que penso sma morte útil.

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or volta do meio-dia, em 3 de maio, um amigo que vinha pela sala dootel comentou para mim, de modo casual:

Parece que houve algum barulho no Centro Telefônico.

Não dei atenção ao comentário, naquele momento. A tarde, entre três uatro horas, estava no meio da Ramblas quando ouvi diversos dispare fuzil atrás de mim. Voltei-me e vi alguns jovens, com fuzis na mão es lenços rubro-negros dos anarquistas em volta ao pescoço, seguindoom cuidado por uma rua lateral que partia da Ramblas para o norte. Evidente que trocavam tiros com alguém situado numa alta torrectogonal - acredito que se tratasse de uma igreja - e da qual alguémodia ver toda a rua. Pensei imediatamente: "Começoul" Mas oensamento ocorreu sem qualquer sentimento de surpresa, pois desde

lguns dias antes todos esperavam o "começo" a qualquer instante.Compreendi que devia voltar imediatamente ao hotel e ver se minhasposa estava bem. Mas o bolo de anarquistas em volta da entradaaquela rua lateral fazia gestos às pessoas para que recuassem,ritando para que não cruzassem a linha de fogo. Ecoaram outrosisparos, e as balas vindas da torre varejavam a rua, onde uma multidm pânico corria, afastando-se dali. Pela Ramblas acima podia-se ouvruído característico das portas de aço a serem fechadas nas vitrinas

as casas comerciais. Vi dois oficiais do Exército Popular retirando-seautelosamente de uma para outra árvore, as mãos nos revólveres. Aminha frente a multidão seguia para a estação do metrô, no meio daRamblas, para abrigar-se. Decidi no mesmo instante não fazer isso, po

oderia ficar preso lá embaixo por diversas horas.

oi nesse momento que um médico norte-americano que estivera nanha de frente conosco veio correndo em minha direção e me segurou

elo braço. Estava bastante agitado.Venha, devemos tocar para o Hotel Falcón. (Esse hotel era um tipo densão mantida pelo P .O. U. M. e usado principalmente pelos milicianm licença.) :0 pessoal do P. O. U. M. vai encontrar-se lá. O barulho esomeçando. Devemos ficar todos juntos.

Mas, com os diabos, o que está acontecendo? - perguntei.

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á o médico me arrastava pelo braço, e agitado demais não conseguiaar explicação muito clara. Entendi que ele se achava na Plaza de

Cataluña quando diversos caminhões lotados com Guardas Civishegaram ao Centro Telefônico, sob controle principal de trabalhadorea C. N . T., e desfecharam um ataque repentino ao mesmo. Em seguurgiram alguns anarquistas, travando-se uma peleja geral. Entendi qu"barulho", no dia anterior, fora a exigência feita pelo Governo, no

entido de que lhe fosse entregue o Centro Telefônico, o queaturalmente se vira recusado.

nquanto seguíamos pela rua, passou por nós a toda pressa umaminhão, no sentido oposto. Estava cheio de anarquistas armados deuzis. A sua frente um jovem esfarrapado se deitara numa pilha deolchões, atrás de uma metralhadora leve. Quando chegamos ao Hotealcón, na extremidade da Ramblas, havia uma multidão fervilhando nalão de entrada, reinava grande confusão sem que pessoa algumaoubesse o que devia fazer, e ninguém se encontrava armado, comxceção de alguns Guardas de Assalto que, em geral, formavam umauarda para o edifício. Fui ao outro lado da rua, até ao Comitê Local do

O. U . M., que ficava quase em frente. No andar superior, na sala onds milicianos normalmente recebiam seu pagamento, encontrei outra

multidão fervilhante. Um homem alto e pálido, bem apessoado e em traivil, com seus trinta anos de idade, procurava restaurar a ordem eistribuía cinturões e cartucheiras tirados de uma pilha no canto da sal

Ao que parecia, não havia fuzis ainda. O médico desaparecera - acredue já houvesse baixas, e os médicos foram chamados - mas chegarautro inglês. Dali a pouco, de uma sala interna, o homem alto e outrosomeçaram a trazer braçadas de fuzis para distribuir. O outro inglês e endo estrangeiros, estávamos sob ligeira suspeita e ninguém queria n

ar uma arma. Depois disso chegou um miliciano que conhecera na line frente, e tendo-me reconhecido, recebemos fuzis e alguns pentes dalas, embora os distribuidores relutassem em entregá-los.

A distância ouviam-se disparos, e as ruas estavam inteiramente vaziasodos disseram ser impossível subir a Ramblas. Os Guardas Civis sepoderaram de edifícios nas boas posições, e abriam fogo contra todo

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ue passavam.. Eu teria corrido o risco e voltado ao hotel, mas circulavor ali uma vaga idéia de que o Comitê Local seria atacado a qualquer

momento, e era melhor estarmos prontos para defendê-lo. Por todo odifício, em suas escadas e na rua lá fora, pequenos gruposonversavam agitadamente. Ninguém parecia fazer idéia muito clara due ocorria, e tudo quanto pude perceber era que os Guardas Civis

aviam atacado o Centro Telefônico e se apoderado de diversos pontostratégicos que dominavam outros edifícios em mãos dosabalhadores. Reinava a impressão geral de que os Guardas Civisstavam "à caça" da C. N . T. e da classe trabalhadora em geral.odia-se observar que, a essa altura, ninguém parecia pôr a culpa no

Governo. As classes mais pobres em Barcelona encaravam os GuardaCivis como coisa bastante parecida aos Black and Tans (10) e parecia

ceita com naturalidade a idéia de que eles tinham iniciado aqueletaque por sua auto-recreação. Depois de apurar em que pé estavam oisas, senti-me mais tranqüilo. A questão se tornara suficientementelara. De um lado a C. N.T., no outro a polícia. Eu não morro de amoreelo "trabalhador" em forma ideal, como existe na mente do comunistaurguês, mas quando vejo um trabalhador verdadeiro, de carne e ossom conflito com aquele que é seu inimigo natural, o policial, não precis

ndagar a mim mesmo que lado deva tomar.

assou-se bastante tempo e nada parecia acontecer em nossaxtremidade da cidade. Não me ocorreu o pensamento de que poderia

elefonar para o hotel e verificar se minha mulher estava bem, pois achue o Centro Telefônico parara de funcionar, embora isso só tenhacorrido por duas horas. Parecia haver umas trezentas pessoas nos dodifícios e, em sua maioria, era gente da classe mais pobre, vinda dasuas ao longo do cais. Em seu meio encontravam-se muitas mulheres,

lgumas carregando criancinhas no colo, e uma série de meninotesmaltrapilhos. Acredito que muitos não fizessem idéia do que se passavsimplesmente procuravam refúgio nos edifícios do P. O. U. M., emusca de proteção. Via também uma série de milicianos em licença, em punhado de estrangeiros. Até onde podia calcular, não tínhamos

mais de sessenta fuzis para aquela gente. O escritório no andar superistava incessantemente sitiado por uma multidão a exigir armas e a ouue não se dispunha delas. Os milicianos mais jovens, que pareciam

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ncarar a coisa como um piquenique, rodeavam por ali tentando obteruzis de quem os tinha, quer pedindo ou roubando. Não tardou que umeles ficasse com o meu, mediante manobra esperta, e imediatamenteesapareceu. E lá estava eu novamente desarmado, a não ser com

minha minúscula pistola, para a qual só possuía um pente de balas.

scurecia, eu tinha fome, e parecia não haver comida no Hotel FalcónMeu amigo e eu fomos até ao hotel dele, que não era longe, a fim deomermos alguma coisa. As ruas estavam inteiramente silenciosas e àscuras, sem se encontrar vivalma e as portas de aço descidas em tods casas comerciais, mas ainda não se tinham construído barricadas.

Houve muita relutância até que nos deixassem entrar no outro hotel, qstava trancado a sete chaves. Quando voltamos, fomos informados due o Centro Telefônico funcionava, e dirigi-me ao telefone no escritór

e cima para chamar minha mulher. Em traço característico da Espanhão existia um só catálogo telefônico em todo o edifício, e eu ignoravaual fosse o número do Hotel Continental, onde ela se achavaospedada. Somente depois de vasculhar um quarto após o outro,

evando nisso perto de uma hora, é que encontrei um guia onde estavaúmero procurado. Não consegui falar com minha mulher, masomuniquei-me com John McNair, o representante da I. L. P. emarcelona. Ele disse que tudo ia bem por lá, que ninguém fora ferido, eerguntava a meu respeito no Comitê Local. Informei que tudo estaria

muito bem se tivéssemos mais cigarros. Disse isso de brincadeira, masmeia hora depois aparecia McNair, com dois maços de Lucky Strike. E

nfrentara as ruas imersas na treva e percorridas pelas patrulhasnarquistas, que duas vezes o haviam detido com pistola ao peito examinado seus documentos. Não me esquecerei desse pequeno geseróico. Ficamos muito satisfeitos com os cigarros.

Colocaram guardas armados em quase todas as janelas do Hotel Falclá embaixo, na rua, um grupo pequeno de Guardas de Assalto detinhinterrogava os poucos transeuntes. Passou um carro anarquista deatrulha, lotado de gente armada, e ao lado do motorista ia uma bela

moça de seus dezoito anos, cabelos negros, acariciando umaubmetralhadora ao colo. Passei bastante tempo a andar pelas

nstalações do edifício, um conjunto bem grande cuja geografia era

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mpossível aprender. Encontrei tudo naquele estado comum de sujeiraxo, móveis quebrados e papel rasgado, que pareciam os produtosnevitáveis da revolução. Por todas as peças havia gente dormindo, eum sofá quebrado, que achei no corredor, duas mulheres pobres daegião do cais roncavam tranqüilamente. O lugar fora um cabaré-teatrontes de ser tomado pelo P .O. U . M., e havia palcos erguidos em

iversas peças. Sobre um deles havia um piano de cauda abandonadoDescobri finalmente o que buscava – o arsenal. Não sabia como aquiloudo ia terminar, e queria muito estar armado. Já ouvira dizer tantasezes que todos os partidos rivais, P.S.U.C., P.O.U.M. e C.N.T. - F. A. nham armas escondidas em Barcelona, que não podia crer naxistência de apenas cinqüenta ou sessenta fuzis em dois dos principadifícios do P .O. U . M. O quarto que servia de arsenal estava semuarda, e sua porta era frágil. Um outro inglês e eu não encontramosualquer dificuldade em abri-la. Quando entramos, verificamos que noisseram a verdade - não havia mais armas. Tudo que achamos foi umuas dúzias de fuzis de pequeno calibre e modelo obsoleto, e algumasrmas de caça, tudo isso sem qualquer munição. Subi ao escritório eerguntei se tinham alguma munição para pistola, e responderam queão. Havia algumas caixas de bombas, no entanto, trazidas por um doarros anarquistas de patrulha. Guardei duas numa das cartucheiras.

ram um tipo primitivo de bomba, que para disparar era preciso acendma espécie de fósforo em sua parte superior, e muito capazes dexplodir por auto-recreação.

or todo o chão havia gente estendida e dormindo. Num quarto, umariancinha a chorar sem cessar. Embora estivéssemos em maio, a noitsfriava. Num dos palcos de cabaré as cortinas ainda estavam no lugaelo que arranquei uma com a faca, enrolei-me nela e dormi algumas

oras. O sono não foi interrompido, ao que me lembro, pelo pensamenaquelas bombas muito mal feitas, que poderiam atirar-me ao ar emedaços, se rolasse com demasiado vigor sobre elas. As três da

madrugada o homem alto e bem apessoado que parecia estar noomando despertou-me, deu-me um fuzil e mandou que ficasse deuarda numa das janelas. Disse também que Salas, o Chefe de Políciaesponsável pelo ataque ao Centro Telefônico, fora preso. (Na verdadeomo ficamos sabendo depois, fora apenas destituído do cargo. Ainda

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ssim a notícia confirmava a impressão geral de que os Guardas Civisgiram sem ordens.) Ao começo da aurora as pessoas no andar térreoomeçaram a construir duas barricadas, uma fora do Comitê Local e autra fora do Hotel Falcón. As ruas de Barcelona são calçadas comaralelepipedos, coisa que com facilidade forma uma parede, e sob os

mesmos encontra-se uma espécie de cascalho muito bom para enche

acos de aniagem. A construção daquelas barricadas era uma visãostranha e maravilhosa, e eu daria alguma coisa para poder fotografá-Com aquele tipo de energia apaixonada que os espanhóis exibem

uando resolvem definitivamente iniciar qualquer tarefa, filas compridae homens, mulheres e até crianças pequenas estavam arrancando osaralelepípedos, transportando-os num carrinho de mão que fora acham algum lugar, e cambaleando de um para outro lado sob o peso deacos cheios de areia. Na entrada do Comitê Local uma moça judialemã, envergando calças de miliciano cujos joelhos chegavam a seus

ornozelos, observava a cena sorrindo. Em duas horas as barricadasnham a altura de uma pessoa, e atiradores estavam nas soleiras. Atráe uma delas acenderam uma fogueira e havia homens fritando ovos.

ela segunda vez arrebataram-me o fuzil, e não parecia haver coisalguma que eu pudesse fazer para ajudar. Um outro inglês juntou-se a

mim e resolvemos voltar ao Hotel Continental. Ouvíamos muitos dispadistância, mas aparentemente nenhum na Ramblas. Em caminho pa

á, demos uma espiada no mercado de gêneros alimentícios.ouquíssimas portas estavam abertas, e sitiadas por agrupamentos deente do bairro, de trabalhadores ao sul da Ramblas. Exatamenteuando chegamos lá, estouravam disparos de fuzil no lado de fora,lgumas clarabóias de vidro no telhado saltaram aos pedaços e aquelaente saiu às carreiras para as portas de trás. Algumas lojas

ontinuaram abertas, assim mesmo, e conseguimos tomar uma xícaraafé e comprar uma fatia de queijo feito com leite de cabra, que enfiei artucheira ao lado das bombas. Alguns dias depois esse queijo iriaroporcionar-me grande satisfação.

Na esquina da rua onde vira os anarquistas dando os primeiros tiros naéspera, existia agora uma barricada. O homem atrás da mesma (eustava no outro lado da rua) gritou-me um aviso para ter cuidado. Os

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Guardas Civis na torre da igreja estavam disparandondiscriminadamente contra todos que passassem. Fiz uma parada eepois atravessei o espaço aberto em carreira. Uma bala zuniu perto d

mim, bem perto mesmo. Quando estava chegando ao Edifício da Direço P .O. U . M., ainda do outro lado da rua, ouvi novos gritos de aviso,indos de alguns Guardas de Assalto em pé na estrada - gritos esses

ue, naquele momento, não pude entender. Havia árvores e umuiosque para venda de jornais entre mim e o edifício (as ruas dessepo, na Espanha, têm uma calçada larga a estender-se pelo seu meio)ão pude ver o que estavam apontando. Fui até ao Hotel Continental,erifiquei se tudo andava bem, lavei o rosto e voltei ao Edifício da

Direção do P .O. U. M (ficava a uns cem metros de distância) para pedrdens. A essa altura o estrondo de disparos feitos por fuzis e

metralhadoras, e vindo de diversas direções, quase equivalia ao de umatalha. Eu acabara de encontrar Kopp e lhe perguntava o queeveríamos fazer, quando ouvimos uma série de estrondos assustado

ã embaixo. Era tanto barulho, que tive certeza de que havia alguémisparando contra nós e usando canhões. Na verdade, eram apenasranadas de mão, que faziam duas vezes mais barulho porquexplodiam entre edifícios de pedra.

Kopp deu uma espiada pela janela, levantou o bastão atrás das costaseclarou:

Vamos investigar.

artiu escada abaixo, em sua atitude despreocupada e costumeira, e etrás. Logo na entrada um grupo de Guardas de Assalto atirava bombaa calçada, como se estivessem brincando. As bombas explodiam ainte metros de distância, com um estrondo assustador e ensurdecedo

misturado aos disparos de fuzis. No meio da rua, por trás do quiosque ornais, via-se uma cabeça - a cabeça de um miliciano norte-americanoue eu conhecia bem - a se exibir, e juro que não havia qualqueriferença entre ela e um coco no mercado. Apenas depois disso é queompreendi o que realmente ocorria. Ao lado do edifício do P.O.U.M.avia um café, tendo nos andares superiores um hotel, e que sehamava Café Moka. Na véspera vinte ou trinta Guardas Civis armado

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ntraram ali, e quando a luta irrompeu, apoderaram-se repentinamenteo edifício e entrincheiraram-se. Era de presumir que houvessemecebido ordem para tomar aquele café como medida preliminar a umtaque posterior contra a sede do P. O. U. M. Bem cedo pela manhã

entaram sair, tiros foram trocados, e um Guarda de Assalto estavaastante ferido, enquanto um Guarda Civil morrera. Seus companheiro

e refugiaram novamente no café, mas quando o norte-aniericanoescera a rua, eles abriram fogo sobre ele, embora o homem estivesseesarmado. O coitado se jogara atrás do quiosque e os Guardas de

Assalto lançavam bombas contra os Guardas Civis a fim de obrigá-los oltar para o café.

Kopp compreendeu a cena num instante, abriu caminho até à frente,mediante empurrões, e puxou de volta um Guarda de Assalto alemão,

ujeito de cabelo vermelho, que estava a ponto de tirar o pino de umaomba com os dentes. Gritou para todos, ordenando que recuassem dorta, e nos declarou em diversos idiomas que devíamos evitar oerramamento de sangue. Depois disso saiu do edifício até à calçada em à vista dos Guardas Civis, tirou de modo ostensivo a pistola dooldre e a depositou no chão. Dois oficiais miiicianos espanhóis fizeram

mesmo, e os três seguiram a passos lentos até à porta onde os GuardCivis estavam amontoados. Era uma coisa que eu não faria nem porinte libras esterlinas. Eles seguiam, desarmados, em direção a homennlouquecidos pelo medo e com armas carregadas nas mãos. Um

Guarda Civil, em mangas de camisa e lívido de medo, saiu da porta paonferenciar com Kopp. Não parava de apontar, com gestos agitados,uas bombas que não expIodiram e estavam na rua. Kopp regressou eisse que era melhor fazermos com que elas explodissem. Lá ondestavam, constituíam um perigo para qualquer um que por ali passass

Um Guarda de Assalto disparou o fuzil contra uma delas e a fez exploddepois disso visou a outra e errou. Pedi-lhe o fuzil, ajoelhei-me eisparei contra o segundo petardo. Errei também, e lamento dizê-lo. Foúnico tiro que disparei durante aquelas perturbações em Barcelona.

ua estava coalhada de estilhaços de vidro vindos do anúncio por cimao Café Moka, e dois automóveis estacionados na parte de fora, umeles carro oficial de Kopp, foram esburacados por balas, e seusára-brisas arrebentados pelas bombas.

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Kopp levou-me para cima e explicou mais uma vez a situação.recisávamos defender os edifícios do P .O. U . M. caso fossemtacados, mas os dirigentes do P .O. U . M. mandaram instruções paraue ficássemos na defensiva e não abrir fogo se o pudéssemos evitar.ogo à nossa frente havia um cinema, chamado Poliorama, tendo um

museu na parte superior e, lá em cima, bem mais alto que o nível gera

os telhados, encontrava-se um pequeno observatório com cúpulasêmeas. Essas cúpulas dominavam a rua, e alguns homens colocadosli, com fuzis, podiam impedir qualquer ataque aos edifícios do P .O. U

M. Os zeladores do cinema eram membros da C. N . T. e nos deixariame vir. Quanto aos Guardas Civis no Café Moka, não haveria problem

om eles, pois não queriam lutar e teriam toda a satisfação em viver eeixar viver. Kopp repetiu que as ordens eram de não disparar, senãouando abrissem fogo contra nós ou atacassem nossos edifícios. Tive

mpressão de que, embora ele não o dissesse, os dirigentes do P.O.U.stavam furiosos por serem arrastados àquela questão, mas achavamue deviam ficar ao lado da C.N.T.

á haviam colocado guardas no observatório, e passei os três dias eoites seguidos no telhado do Poliorama, a não ser por intervalos curtouando eu escapulia até ao hotel para comer. Eu não estava em perigão sofria com qualquer coisa pior do que fome e tédio, mas ainda asscredito que aquele tenha sido um dos períodos mais intoleráveis em

oda minha vida. Poucas coisas, a meu ver, podiam ser maisesgostantes, desapontadoras ou, finalmente, daninhas para os nervoo que aqueles dias horríveis de guerra nas ruas.

u costumava ficar sentado no telhado, pensando na loucura de tudoquilo. Das janelinhas no observatório podíamos ver quilômetros aoedor, com vistas e mais vistas de edifícios altos e esguios, cúpulas deidro e telhados ondulados e fantásticos, com telhas verde-brilhantes ee cobre; na direção do leste, o mar azul-pálido e brilhante, a primeiraisão do mar que eu tivera desde que chegara à Espanha. E toda aque

mensa cidade com um milhão de habitantes encontrava-se trancadauma espécie de inércia violenta, um pesadelo de ruído sem movimen

As ruas ensolaradas estavam desertas, e nada acontecia, a não ser ahuva de balas vindas das barricadas e janelas defendidas com sacos

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reia. Nenhum veículo se movia nas ruas, e neste ou naquele ponto daRamblas os bondes elétricos continuavam estacionados onde seusondutores os haviam abandonado, ao início da luta. E durante todosse tempo aquele ruído diabólico, ecoando de milhares de edificaçõee pedra, prosseguia sem cessar, como um temporal tropical. As vezele se reduzia a alguns tiros, de outras acelerava-se e chegava a uma

uzilaria ensurdeçedora, mas jamais parava enquanto houvesse luz doia, e na aurora seguinte recomeçava com absoluta pontualidade.

Que diabo estava acontecendo, quem lutava contra quem, e qual ladoencia, eis indagações que inicialmente foram bem difíceis de respond

A população de Barcelona está tão acostumada à luta de ruas, eonhece tão bem a geografia local, que graças a um tipo de instintoabia qual partido político sustentará quais ruas e edifícios. O

strangeiro, num meio assim, encontra-se com tremenda desvantagemOlhando pelo observatório, podia perceber que a Ramblas, uma das rurincipais da cidade, formava uma linha divisória. A sua direita asesidências da classe trabalhadora eram solidamente anarquistas; àsquerda, tinha lugar uma luta confusa nas ruas secundárias e tortuos

mas naquele lado o P .S. U. C. e os Guardas Civis estavam mais oumenos com o controle da situação. Até nossa extremidade da Ramblas

or volta da Plaza de Cataluña, as posições eram tão complicadas queeriam ininteligíveis, não fosse o fato de que cada edifício ostentava aandeira de seu partido. O marco principal ali era o Hotel Colón,uartel-general do P. S. U. C. e dominando a Plaza de Cataluña. Numa

anela próxima ao penúltimo "o" no enorme letreiro "Hotel Colón" que sstendia pela fachada achava-se instalada uma metralhadora que podarrer aquela praça com precisão mortífera. A cem metros para a nossireita, descendo a Ramblas, a J .S. U., liga jovem do P .S. U . C.

correspondendo à Liga dos Jovens Comunistas na Inglaterra) mantinhm seu poder uma grande loja, cujas janelas guarnecidas por sacos dereia faziam frente a nosso observatório Baixaram sua bandeiraermelha e içaram a bandeira nacional da Catalunha. No Centroelefônico, ponto de partida de todo o barulho, a bandeiraacional-catalã e a anarquista flutuavam lado a lado. Algum tipo decordo provisório fora alcançado naquele edifício, o Centro funcionava

ninterruptamente, e não faziam fogo.

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m nossa posição reinava estranha paz. Os Guardas Civis no CaféMoka baixaram as portas de aço e empilharam os móveis para formar

ma barricada. Mais tarde meia dúzia deles surgia no telhado, em frennós, construindo outra barricada de colchões, sobre a qual pendurarabandeira nacional catalã. Era patente, no entanto, que não tinham o

menor desejo de iniciar uma luta. Kopp firmara acordo definido com ele

mediante o qual não abriríamos fogo, se não disparassem contra nós. omem, a essa altura, ficara bastante amigo dos Guardas Civis, e já oisitara diversas vezes no Café Moka. Como era natural, eles saquearaudo quanto se podia beber naquele lugar, e presentearam Kopp comuinze garrafas de cerveja. Em troca, Kopp lhes dera um de nossos

uzis, para compensar outro que perderam na véspera. Ainda assim, estranha a sensação de estar sentado naquele telhado. As vezes euentia apenas tédio, não prestava atenção ao ruído infernal, e passavaoras lendo uma série de livros Penguin que, por sorte, comprara alguias antes; de outras, tinha plena consciência dos homens armados qu

me observavam a cinqüenta metros de distância. Era um pouco comostar novamente nas trincheiras, e diversas vezes surpreendi-me, por

orça do hábito, a falar dos Guardas Civis como sendo "os fascistas". Eeral éramos uns seis lá em cima. Pusemos um homem em guarda paada torre do observatório, e os demais ficavam sentados no telhado d

humbo por baixo, onde não havia qualquer proteção a não ser umaaliçada de pedra. Eu percebia muito bem que a qualquer momento osGuardas Civis podiam receber ordem, por telefone, para abrir fogo con

ós. Eles concordaram em avisar-nos antes, mas não se podia tererteza de que cumprissem o acordo. Apenas uma vez, no entanto,areceu que íamos ter barulho. Um dos Guardas Civis à nossa frentejoelhou-se e começou a disparar pela barricada. Nessa ocasião eustava de guarda no observatório, voltei o fuzil para ele e gritei:

Ei! Não atire contra nós!

O quê?

Não atire para cá, ou atiraremos de volta!

Não, não! Eu não estava atirando em vocês. Olhe! Lá embaixo!

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ez indicação com o fuzil, mostrando a rua lateral que passava peloundo de nosso edifício. Era verdade, lá estava um rapaz de macacão,e fuzil em punho, esgueirando-se pela esquina. Era evidente quecabara de disparar um tiro contra o Guarda Civil no telhado.

Atirei contra ele. Ele atirou primeiro! (Acredito que fosse verdade.) - N

ueremos atirar em vocês. Nós somos apenas trabalhadores, o mesmue vocês!

ez a saudação antifascista, a que correspondi, e gritei outra vez:

Vocês ainda têm cerveja?

Não, já acabou toda.

Naquele mesmo dia, sem qualquer motivo aparente, um homem nodifício da J .S. U., em outro ponto da rua, ergueu repentinamente o fudisparou contra mim, que estava debruçado na janela. Talvez eu fosm alvo tentador. Não respondi ao tiro, e embora ele estivesse a cem

metros de distância, apenas, a bala passou tão longe que nem sequertingiu o telhado do observatório. Como de costume, os padrõesspanhóis de tiro ao alvo salvaram minha vida. Diversas vezes abriram

ogo contra mim.

O tiroteio infernal prosseguia sempre, mas até onde podia ver, e de tuduanto ouvia, a luta era defensiva em ambos os lados. As pessoasimplesmente ficavam em seus edifícios ou atrás das barricadas, ebriam fogo sobre as que estavam no outro lado. A uns 800 metros deós havia uma rua onde alguns dos escritórios principais da C. N . T. e

U. G . T. ficavam quase exatamente em frente um do outro, e daquelaireção era terrível o volume de estrondos. Passei na rua no dia seguin

o do término da luta, e vi que as coberturas das vitrinas pareciam-se aeneiras. (A maioria dos comerciantes em Barcelona colara fitas deapel em todas suas vitrinas, de modo que quando atingidas por balalas não se transformavam em montões de cacos de vidro.) As vezes araivada de fuzis e metralhadoras era pontilhada pela explosão dasranadas de mão. E com intervalos longos, talvez umas doze vezes ao

odo, havia explosões tremendas que, na ocasião, eu não sabia explica

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areciam-se a bombas aéreas, mas isso era impossível, pois não havieroplanos. Mais tarde me disseram - e deve ser verdade - que agentsrovocateurs faziam detonar massas de explosivos a fim de aumentar arulheira e o pânico. Não havia fogo de artilharia, entretanto. Eu estavtento a isso, pois se os canhões entrassem em cena isso queria dizerue a coisa começava a ficar séria (a artilharia representa o fator

ominante em luta de ruas). Em seguida surgiram narrativas fantásticaos jornais a respeito de baterias de canhões disparando nas ruas, mainguém soube indicar que edifício fora atingido por suas granadas. Deualquer forma, o som dos disparos de artilharia é inconfundível, quane está acostumado a ele.

A comida escasseava. Com dificuldade e sob a cobertura da noite (pois Guardas Civis estavam constantemente disparando sobre a Rambla

s alimentos eram trazidos do Hotel Falcón para os quinze ou vintemilicianos que se encontravam no Edifício da Direção do P. 0. U. M., mquantidade sempre se mostrava insuficiente, e tantos de nós quantoossível iam ao Hotel Continental fazer as refeições. O Continental forcoletivizado" pelo Generalato e não, como acontecera à maioria dosotéis, pela C. N . T. ou U. G. T., sendo encarado como terreno neutro

Mal começara a luta e o hotel se enchera até à beira com a maisxtraordinária coleção de pessoas. Havia ali jornalistas estrangeiros,uspeitos políticos de todos os tipos, um aviador norte-americano aerviço do Governo, diversos agentes comunistas, inclusive um russoordo e de aspecto sinistro, que diziam ser agente da OGPU e queecebera o apelido de Charlie Chan, homem que ostentava no cinturãom revólver e uma bombinha das mais bonitas, algumas famílias despanhóis bem de vida que mais se pareciam a simpatizantes dos

ascistas, dois ou três feridos da Coluna Internacional, uma turma de

motoristas de caminhão que dirigia alguns caminhões francesesigantescos, ocupada em transportar laranjas para a França e detidaela luta, e boa coleção de oficiais do Exército Popular. Comorganização militar, esse exército permaneceu neutro durante a luta,mbora alguns de seus soldados fugissem aos quartéis e participassemomo indivíduos. Na manhã de terça-feira eu vira dois deles nasarricadas do P. O. U . M. No início, antes da escassez de gêneros

ornar-se aguda e os jornais começarem a criar e atiçar ódio, havia um

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endência a encarar a coisa toda como grande piada. Era o tipo de coisue ocorria todos os anos em Barcelona, diziam as pessoas. Georgeioli, jornalista italiano e grande amigo nosso, chegou com as calçasntas de sangue. Saíra para ver o que acontecia e estivera socorrendom homem ferido na rua, quando alguém, para divertir-se atirara umaranada de mão e, felizmente, não o ferira muito. Lembro-me de seu

omentário de que os paralelepipedos de Barcelona deviam serumerados, pois isso economizaria muito trabalho na construção eemolição das barricadas. E lembro-me também de dois homens da

Coluna Internacional, sentados em meu quarto do hotel quando aliheguei, faminto e sujo depois de uma noite de guarda. Sua atitude erae absoluta neutralidade. Se fossem bons partidários, ao que suponho

eriam instado comigo para mudar de lado, ou mesmo aprisionado erado as bombas com que enchera os bolsos. Ao invés disso,

meramente lamentaram comigo o ter de passar as férias montandouarda num telhado. A atitude geral era de que "isso é apenas um acentre os anarquistas e a polícia, e não quer dizer coisa alguma". Aespeito da extensão da luta e do número de baixas, acredito que issostivesse mais próximo da verdade que a versão oficial, que apresenta

odo o acontecimento como um levante planejado.

oi por volta de quarta-feira (5 de maio) que pareceu ocorrer umamodificação. As ruas onde as casas estavam de cortinas e venezianaserradas apresentavam aspecto horrível. Pouquíssimos pedestres,orçados a sair por este ou aquele motivo, esgueiravam-se de um parautro lado, sacudindo lenços brancos, e num ponto em meio da Rambnde se estava a salvo das balas alguns homens apregoavam jornaisara a rua vazia. Na terça-feira Solidaridad Obrera, o jornal anarquistaescrevera o ataque ao Centro Telefônico como uma "provocação

monstruosa" (ou palavras nesse sentido), mas já na quarta-feiramodificava o tom e começava a implorar para que todos voltassem aoabalho. Os dirigentes anarquistas transmitiam a mesma mensagemelo rádio. A redação de La Batalla, o jornal do P .0. U. M., que não forefendida, fora invadida e tomada pelos Guardas Civis mais ou menoso mesmo tempo que o Centro Telefônico, mas o jornal continuavaendo impresso em outro lugar, com distribuição de alguns exemplaresnstei com todos para que permanecessem nas barricadas. As pessoa

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stavam incertas quanto ao que fazer, e imaginavam com inquietaçãoomo aquilo tudo ia terminar. Eu duvido que alguém já houvesse deixas barricadas, mas todos se mostravam fartos daquela luta sem sentidue não podia levar a qualquer decisão verdadeira, pois ninguém querue aquilo se tornasse uma guerra civil completa, uma vez que poderiacarretar a vitória de Franco. Ouvi a manifestação desse receio em tod

s lados. Até onde se podia entender, pelo que diziam as pessoas nacasião, os membros comuns da C. N . T. queriam, e o haviam queridoesde o início, apenas duas coisas: a devolução do Centro Telefônico desarmamento dos odiados Guardas Civis. Se o Generalatorometesse fazer essas duas coisas e também acabar com osproveitadores no setor de gêneros alimentícios, resta pouca dúvida due as barricadas estariam desfeitas em duas horas. Mas tornava-sebvio que o Generalato não ia ceder. Boatos assustadores circulavamor toda a parte. Dizia-se que o Governo de Valência mandara seis miomens para ocupar Barcelona, e que cinco mil anarquistas e soldadoo P .O. U. M. deixaram a frente de Aragón para opor-se a eles. Apenaprimeiro desses boatos era verdadeiro. Da torre do observatório, vims formas baixas e cinzentas de navios de guerra aproximando-se doorto. Douglas Moyle, que fora marinheiro, disse que pareciam-se aestróíeres ingleses. A bem da verdade, eram mesmo, embora não

cássemos sabendo disso senão mais tarde.Aquela noite ouvimos dizer que na Plaza de Espana quatrocentosGuardas Civis renderam-se e entregaram as armas aos anarquistas;nfiltravam-se também até nós as noticias de que nos subúrbios (áreasesidenciais da classe trabalhadora, em sua maior parte). a C. N . T.stava com o controle. Parecíamos estar ganhando. Mas naquela

mesma noite Kopp mandou-me chamar e, com expressão grave, disse

ue de acordo com informações que acabara de receber o Governostava a ponto de proscrever o P. O. U. M. e declarar guerra ao mesmssa notícia causou-me choque. Era o primeiro vislumbre que tinha da

nterpretação que provavelmente seria dada àquela questão mais tarderevia vagamente que quando a luta terminasse toda a culpa seria

ançada sobre o P .O. U. M., que era o partido mais fraco de todos e,ortanto, o bode expiatório mais adequado. E enquanto isso nossaeutralidade local estava acabada. Se o Governo nos declarasse guer

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ão nos cabia outra atitude senão defender-nos, e ali no edifício daireção podíamos ter certeza de que os Guardas Civis ao ladoeceberiam ordem para nos atacar. Nossa única possibilidade estava etacá-los antes. Kopp aguardava ordens pelo telefone e se ouvíssemom caráter definitivo, que o P. O. U . M. fora posto fora da lei,everíamos preparar-nos de imediato para tomar o Café Moka.

embro-me da noite longa e de pesadelo que passamos a fortificar odifício. Fechamos as cortinas de aço na entrada da frente e por tráselas fizemos barricada com lajes deixadas pelos trabalhadores quentes executavam algumas modificações no edifício. Demos um balanm nosso estoque de armas. Contando os seis fuzis que estavam no

elhado do Poliorama, no outro lado da rua, dispúnhamos de vinte e umm deles defeituoso, perto de cinqüenta cartuchos para cada arma, e

ma dúzia de bombas; além disso, nada mais, senão algumas pistolasevólveres. Uns doze homens, a maioria alemães, apresentaram-seoluntariamente para atacar o Café Moka, se isso fosse preciso.

Atacaríamos pelo telhado, é claro, no curso da madrugada, e ospanharíamos de surpresa. Os Guardas Civis eram mais numerosos,orém tínhamos moral superior à deles e certamente poderíamos tomalugar de assalto, embora devessem morrer alguns na empreitada. Nãispúnhamos de comida no edifício, exceto algumas barras de chocolacorrera o boato de que "eles" iam cortar a água. (Ninguém sabia queram "eles"; podia ser o Governo, que controlava a rede de água, ou a

N . T.) Passamos bastante tempo enchendo todas as bacias nosavatórios, todos os baldes que encontramos e, finalmente, as quinzearrafas de cerveja, já vazias, que os Guardas Civis deram a Kopp.

u me sentia muitíssimo mal disposto e exausto, depois de umasessenta horas sem dormir bem. Já estávamos em altas horas da noitepor todo o chão atrás da barricada, lá embaixo, havia gente dormindo

No andar de cima existia uma saleta, com sofá, que pretendíamos usaomo posto de socorro, embora descobríssemos que, é claro, não havualquer iodo ou atadura. Minha esposa viera do hotel, para o caso derecisarmos de uma enfermeira. Deitei-me naquele sofá, achando queeria bom descansar meia hora antes do ataque ao Moka, no qualresumia que me matariam. Lembro-me do desconforto intolerável

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ausado pela pistola, presa ao cinturão e enfiada no dorso. Depois disó lembro ter acordado com um salto e encontrado minha mulher, de pmeu lado. Era pleno dia, nada acontecera, o Governo não declararauerra ao P .0. U. M., a água não fora cortada, e com exceção dosisparos esporádicos nas ruas, tudo estava normal. Minha mulher dissue não tivera coragem de acordar-me, e dormira numa poltrona num

os quartos da frente.Aquela tarde chegou-se a um tipo de armistício. Os disparos acabaram

, com repente notável, as ruas se encheram de gente. Algumas casasomerciais começaram a levantar as portas, e o mercado foi tomado p

multidão enorme a pedir gêneros, embora os balcões estivessem quasazios. Era de notar, entretanto, que os bondes elétricos nãoomeçavam a circular. Os Guardas Civis ainda guardavam suas

arricadas no Moka, e em nenhum dos lados os edifícios fortificadosram evacuados. Todos andavam às pressas, procurando comprar o qomer, e em todos os lados ouviam-se as mesmas perguntas aflitas:

Será que acabou? Acha que vai começar de novo?

Ela", a luta, era agora considerada um tipo de calamidade natural,uracão ou terremoto, coisa que acontecia a todos nós, e que não

nhamos o poder de sustar. E de fato, quase imediatamente - acreditoue se passassem algumas horas de trégua, porém elas mais sessemelharam a minutos - um estrondo súbito de fuzis, como trovoadaôs todo o mundo a correr, as portas de aço voltaram a fechar-se, asuas se esvaziaram como por encanto, as barricadas estavamuarnecidas, e "ela" recomeçava.

Regressei a meu posto no telhado com forte sentimento, cujos

ngredientes eram o desgosto e a raiva. Quando se toma parte emcontecimentos assim está-se ao menos um pouco, a meu ver, fazendhistória, e por todos os títulos devíamos sentir-nos como personagenistóricos. Mas isso não ocorre, pois em tais ocasiões os detalhes físicempre superam tudo o mais. Por toda a luta jamais pude fazer aquelaanálise" correta da situação que jornalistas situados a centenas deuilômetros de distância faziam, de modo tão leviano. Aquilo em que

mais pensava não eram as coisas certas ou erradas da refrega intestin

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miserável, mas no desconforto e tédio de estar sentado dia e noiteaquele telhado intolerável, e na fome que piorava sempre - poisenhum de nós pudera fazer uma só refeição suficiente desdeegunda-feira. Por todo o tempo eu pensava em que teria de regressanha de frente assim que aquela questão terminasse. Isso me enfurecstivera cento e quinze dias na linha, e voltara a Barcelona desejando

eementemente algum descanso e conforto. Ao invés disso, tinha deassar o tempo sentado num telhado em frente a Guardas Civis tãontediados quanto eu, que de vez em quando acenavam para mim esseveravam ser "trabalhadores" (querendo, com isso, dizer quelimentavam a esperança de que eu não abriria fogo contra eles), masue certamente disparariam suas armas se recebessem ordem para

sso. Se aquilo era história, não parecia. Afigurava-se mais a um períoduim no front quando havia falta de homens e tínhamos de fazer turnosrolongados de serviço. Ao invés de ser heróico, era preciso ficar noosto designado, amolado, caindo de sono e completamenteesinteressado de tudo que se passava!

Dentro do hotel, em meio ao conglomerado humano heterogêneo que,m sua maioria, não tivera coragem para pôr o nariz da porta para fora

ormara-se uma atmosfera horrível de desconfiança. Diversas pessoasstavam infectadas com a mania dos espiões, e esgueiravam-se por aussurrando que todos os demais eram espiões dos comunistas, dosotskistas, dos anarquistas ou sei lá de quem. O gordo agente russocuara todos os refugiados estrangeiros a um canto e explicava, de

maneira bem plausível, que toda aquela questão era uma tramanarquista. Observei-o com algum interesse, pois era a primeira vez quia uma pessoa cuja profissão era mentir - a menos que nessa categor

ncluamos os jornalistas. Havia alguma coisa repulsiva na paródia de

ida em hotel elegante que transcorria atrás das janelas fechadas e emmeio à fuzilaria. O restaurante da frente fora abandonado depois de umala entrar pela janela e esfolar uma coluna, e os hóspedes se achavarrebanhados numa sala escura nos fundos, onde jamais havia mesasm número suficiente para acomodá-los. Os garçons estavam reduzidoalguns eram membros da C. N . T. e participaram na greve geral - ebandonaram suas camisas engomadas, mas as refeições continuavaser servidas com o fingimento de cerimônia. Não havia, entretanto,

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uase coisa alguma a comer. Naquela noite de quinta-feira o pratorincipal no jantar foi uma sardinha para cada pessoa. O hotel estavaem pão desde alguns dias, e até o vinho chegara a tal ponto que noserviam garrafas cada vez mais velhas, a preços cada vez mais altos.ssa escassez de gêneros prosseguiu por diversos dias, depois dencerrada a luta. Por três dias seguidos, ao que me lembro, minha

sposa e eu quebramos o jejum com um pedacinho de queijo feito comeite de cabra, sem pão e sem qualquer coisa para beber. Só haviaartura em laranjas. Os motoristas dos caminhões franceses traziamrandes quantidades de suas laranjas para o hotel. Era uma turma mancarada, e trazia consigo algumas belas pequenas espanholas e umarregador enorme, envergando blusa preta Em qualquer outra época

diotazinho do gerente teria feito o possível para atendê-los mal, ou termesmo recusado a presença daquela turma no hotel, mas naquela

portunidade eles eram bem recebidos porque, diversamente dosemais, possuíam um estoque particular de pão a que todos procuravaecorrer.

assei aquela noite final no telhado, e no dia seguinte pareceu realmeue a luta estava chegando ao fim. Não creio que tenham havido muitoisparos naquele dia, sexta-feira. Ninguém sabia com certeza se asopas vindas de Valência estavam realmente chegando, e elashegaram à noite. O Governo irradiava mensagens semitranqúílizadorsemi-ameaçadoras, pedindo a todos que fossem para suas casas eizendo que após certa hora qualquer pessoa encontrada com armaseria presa. Não se prestava grande atenção às irradiações do Govern

mas por toda a parte as pessoas se afastavam das barricadas. Nãoenho dúvida de que o fator mais responsável por isso fosse a escassee alimentos. De todas as partes ouvíamos o mesmo comentário:

Acabou a comida, temos de voltar ao trabalho". Por outro lado osGuardas Civis, que podiam contar com o recebimento de suas raçõesnquanto houvesse comida na cidade, podiam permanecer em seusostos. A tarde as ruas estavam quase normais, embora as barricadasbandonadas ainda estivessem de pé. A Ramblas encheu-se de gentes casas comerciais quase todas abertas e - o que mais tranqüilizava a

odos - os bondes elétricos que por tanto tempo tinham ficado paradosoltaram a movimentar-se. Os Guardas Civis ainda mantinham o Café

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Moka e não haviam desmanchado suas barricadas, mas alguns traziamadeiras para a rua e sentavam-se ali com os fuzis no colo. Pisquei pam deles ao passar, e recebi em troca um sorriso que não era hostil - e

me reconhecera, naturalmente. Por cima do Centro Telefônico aandeira anarquista fora arriada e se via apenas a catalã. Isso significaue os trabalhadores foram definitivamente batidos e compreendi -

mbora não tão claramente quanto deveria ter feito, devido à minhagnorância política - que quando o Governo se achasse mais seguro,averia represálias. Mas naquela ocasião não me interessava por essespecto das coisas. Tudo quanto sentia era o alivio profundo de saberue terminara aquela tortura infernal dos disparos, que se podia complguma comida e descansar um pouco em paz antes de voltar à linha dente.

Deve ter sido bem tarde naquela noite que os soldados vindos deValência fizeram seu primeiro aparecimento nas ruas. Eram os Guardae Assalto, outra corporação semelhante à dos Guardas Civis e

Carabineiros (isto é, corporação destinada primordialmente ao trabalhoolicial) e os soldados de elite da República. De maneira bem repentinareceram brotar no chão, e eram vistos por toda a parte, patrulhandouas em grupos de dez - homens altos com uniformes cinzentos ouzuis, fuzis compridos a tiracolo e uma submetralhadora em cada grupnquanto isso, restava-nos uma tarefa delicada a executar. Os seis fuzue usamos para guardar o observatório ainda estavam lá, e era preciazê-los de qualquer maneira para o edifício do P.O.U.M. Tratava-sepenas de como atravessar a rua com eles. Faziam parte do arsenal ddifício, mas levá-los para a rua era transgredir a ordem do Governo, ee fôssemos apanhados certamente seríamos presos - e pior ainda, osuzis seriam confiscados. Tendo apenas vinte e seis no edifício, não

odíamos ficar sem eles. Depois de muita discussão quanto ao melhormeio de solucionar o problema, um rapaz ruivo espanhol, e eu próprio,omeçamos a atravessá-los. Foi bastante fácil evitar as patrulhas dos

Guardas de Assalto; o perigo era que os Guardas Civis no Café Moka,abedores que tínhamos fuzis no observatório, poderiam denunciar-noe nos vissem carregando-os para o outro lado, Cada um de nósespiu-se em parte e passou um fuzil pelo ombro esquerdo, pondo aoronha no sovaco e o cano pela perna da calça abaixo. Infelizmente

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atava-se de fuzis Mauser do tipo comprido, e até mesmo um homemlto como eu não pode usar um Mauser pela calça abaixo semesconforto. Foi uma tarefa intolerável a de descer a escada espiral dobservatório com uma perna inteiramente rígida. Uma vez na rua,erificamos que só se podia andar com lentidão extrema, tanta que nãra preciso dobrar os joelhos. Fora do cinema vi um grupo de pessoas

xaminar-me com grande interesse enquanto seguia marcha a passo dágado. Muitas vezes imaginei o que aquela gente possa ter pensado meu respeito. Ferido na guerra, talvez, Mas todos os fuzis foram

travessados sem incidentes.

No dia seguinte os Guardas de Assalto estavam por toda a parte,esfilando pelas ruas como autênticos conquistadores. Não havia dúvie que o Governo estava apenas fazendo uma exibição de força a fim

covardar uma população que já sabia incapaz de resistir; se houvessualquer medo verdadeiro a quaisquer outras eclosões, os Guardas deAssalto teriam permanecido nos quartéis e não seriam espalhados peluas em grupos pequenos. Eram soldados esplêndidos, dos melhoresue eu vira na Espanha, e embora acredite que, em certo sentido, eles

ossem o inimigo , não pude deixar de gostar de seu aspecto. Mas eraom espanto que os observava andando de um para outro lado. Eustava acostumado à milícia esfarrapada e mal armada na frente de

Aragón, e não sabia que a República possuía soldados assim. Não erapenas que fossem homens escolhidos, do ponto de vista físico, masuas armas, o que mais me espantou. Todos estavam armados comuzis novinhos em folha, do tipo conhecido como "fuzil russo" (eramnviados à Espanha pela U. R.S.S., mas acredito que fossem de

abricação norte-americana). Examinei um deles. Estava longe de sererfeito, mas era muito melhor do que os bacamartes velhos e temívei

ue tínhamos na linha de frente. Os Guardas de Assalto apresentavamma submetralhadora em cada grupo de dez homens, e cada um deleossuía uma pistola automática, enquanto que no front dispúnhamos d

mais ou menos uma metralhadora para cada cinqüenta homens, euanto a pistolas e revólveres, só ilegalmente era possível obtê-los, Aem da verdade, embora não houvesse reparado até então, acontecia

mesmo por toda a parte. Os Guardas Civis e os Carabineiros, que nãoestinavam a combater na linha de frente, estavam mais bem armados

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muito melhor vestidos do que nós. Desconfio que ocorre o mesmo emodas as guerras - e que sempre existe o mesmo contraste entre a poliuzidia na retaguarda e os soldados esfarrapados na frente de luta. Emeu conjunto, os Guardas de Assalto davam-se muito bem com aopulação, após os primeiros dias. No primeiro houvera certa faixa detrito porque alguns deles - acredito que agindo sob ordens - começara

comportar-se de maneira provocante. Embarcavam nos bondeslétricos, revistavam os passageiros, e se encontrassem nos bolsos domesmos os cartões de membros da C. N . T., rasgavam-nos e pisavam

m cima. Isso levou a refregas com os anarquistas armados, tendomorrido uma ou duas pessoas. Não tardou a que os Guardas de Assal

erdessem seu ar de conquistadores, e as relações se tornaram maismistosas. Era de notar-se o fato de que a maioria, após um ou doisias, já conseguira arranjar uma namorada.

As lutas em Barcelona proporcionaram ao Governo de Valência oretexto desde muito procurado para assumir pleno controle da

Catalunha. As milícias deveriam ser dissolvidas e redistribuídas peloxército Popular. A bandeira republicana espanhola era vista por toda idade - sendo a primeira vez que eu a via, a não ser sobre umaincheira fascista. Nos bairros da classe trabalhadora as barricadasram desmanchadas, de modo bastante fragmentário, pois é muito ma

ácil construí-las do que repor as pedras no lugar. Na parte externa dosdifícios do P.S.U.C. as barricadas puderam continuar de pé, e naerdade muitas continuaram até junho. Os Guardas Civis prosseguiamcupando pontos estratégicos. Faziam-se imensas apreensões de armos centros da C. N . T., embora eu não tenha dúvidas de que muitasscaparam ao confisco. La Batalla continuava sendo publicada, mas eensurada ao ponto de sua primeira página sair quase inteiramente em

ranco. Os jornais do P .S. U. C. não sofriam censura, e publicavamrtigos inflamados exigindo a supressão do P .O. U . M., do qual sefirmava ser organização fascista. Ao mesmo tempo, circulava por todidade, por obra e graça dos agentes do P.S.U.C., um desenhoepresentando o P.O.U.M. como figura a tirar uma máscara onde se vifoice e o martelo, revelando o rosto nojento e maníaco com a suásticra evidente que a versão oficial para as lutas em Barcelona já foraecretada: deviam ser apresentadas como um levante fascista de "qui

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oluna", programado unicamente pelo P .0. U . M.

No hotel, a atmosfera horrível de desconfiança e hostilidade se agravagora que a luta terminara, Diante das acusações que eram levantada

ornara-se impossível ficar neutro, O correio funcionava de novo, osornais comunistas estrangeiros começavam a chegar, e suas narrativa

obre a luta mostravam-se não apenas violentamente partidárias comoambém, e é claro, de todo incorretas quanto aos fatos, Acredito quelguns dos comunistas do lugar, que viram o que realmente acontecercaram espantados pelas interpretações dadas aos acontecimentos, mra natural que se ativessem a seu próprio lado. Nosso amigo comunisbordou-me mais uma vez e perguntou se queria transferir-me para a

Coluna Internacional. Fiquei bastante surpreendido.

Os seus jornais estão dizendo que sou um fascista! - retorqui. -Certamente seria suspeito, vindo do P.O.U.M.

Ora, isso não tem importância. Afinal de contas, você estava agindoob ordens.

oi preciso dizer-lhe que depois daquele caso eu não poderia ingressam qualquer unidade controlada pelos comunistas, pois mais cedo ou

mais tarde isso poderia representar o meu uso contra a classeabalhadora espanhola. Não se podia prever quando tal tipo decontecimento eclodiria outra vez, e se tivesse de usar meu fuzil, numauestão idêntica, preferiria usá-lo ao lado da classe trabalhadora e nãoontra ela. O homem foi muito digno, mas a partir dali toda a atmosferae transformava. Não se podia mais, como antes, "concordar emiscordar" e beber junto com um homem que se acreditasse adversárioolítico. Houve algumas disputas das mais feias no salão do hotel.

nquanto isso as prisões já estavam repletas e transbordando. Depoise a luta terminar os anarquistas, naturalmente, libertaram seusrisioneiros, mas os Guardas Civis não fizeram o mesmo e a maioria fotirada à prisão e mantida ali sem julgamento, por meses a fio em muitasos. Como de costume, gente inteiramente inocente era presa, deviderros flagrantes por parte da polícia. Fiz referência antes ao fato de q

Douglas Thompson fora ferido no início de abril. Depois disso perdemoontato com ele, como sempre acontecia quando um homem era ferido

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ois era freqüente que criaturas nessas condições fossem transferidaseste para aquele hospital. Ele, na verdade, encontrava-se no hospitale Tarragona, e foi mandado de volta a Barcelona mais ou menosuando a luta irrompera. Na manhã de terça-feira encontrei-o na rua,

muito espantado com o tiroteio generalizado, e fez-me a pergunta queodos faziam:

Que diabo está acontecendo?

xpliquei-lhe o melhor que pude, e Thompson comentou logo emeguida:

Vou ficar fora disso. Meu braço ainda está em mau estado. Volto aomeu hotel, e fico por lá.

Voltou ao hotel mas, infelizmente (como é importante conhecer o lugara luta de ruas!), o mesmo ficava numa parte da cidade controlada pelGuardas Civis. O lugar foi invadido e Thompson preso e atirado à prisãendo mantido oito dias numa cela tão cheia de gente que ninguém tin

ugar para deitar. Eram numerosos casos semelhantes. Muitosstrangeiros com linha política duvidosa estavam fugindo, tendo a polím seu encalço e sob o medo constante da denúncia. O pior estavacorrendo aos italianos e alemães, que não possuíam passaporte eeralmente eram procurados pela polícia secreta de seus países. Se

ossem presos, era possível que os deportassem para a França, o queoderia representar seu regresso à Itália ou Alemanha, onde só Deusabe que horrores os esperavam. Uma ou duas mulheres estrangeirasegularizaram apressadamente sua posição, "casando-se' comspanhóis. Uma moça alemã que não tinha documentos escapou àolicia apresentando-se diversos dias como amante de um homem.

embro-me da expressão de vergonha e desamparo no rosto da pobremoça quando, acidentalmente, esbarrei nela, que vinha do quarto doomem. Está claro que não era amante dele, mas certamente achou qu assim o pensava. Por todo o tempo tinha-se a sensação odiosa deue alguém, até então amigo, poderia denunciar-nos à polícia secreta.

ongo pesadelo da luta, o ruído, a falta de comida e de sono, a misturaensão e tédio, sentado no telhado e imaginando se eu próprio levariama bala no minuto seguinte, ou obrigado a atirar em outrem, levara m

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istema nervoso à beira da explosão. Eu chegara ao ponto de, sempreue alguém batia uma porta, estender a mão para a pistola. Na manhãe sábado houve estampidos lá fora e todos gritaram: "Está começandutra vez!" Corri para a rua, onde verifiquei tratar-se de alguns Guardae Assalto abrindo fogo contra um cão danado. Ninguém que esteve earcelona nessa época, ou meses depois, poderá esquecer a atmosfe

orrível formada pelo medo, desconfiança, ódio, jornais censurados,adeias entupidas de gente, filas imensas para comprar gêneros, eandos armados a rondar por toda a parte.

rocurei, nas linhas acima, transmitir alguma idéia do que era estar emmeio da luta em Barcelona, mas não acredito que tenha sido capaz deegistrar grande parte da estranheza reinante naquela ocasião. Uma doisas presas a meu espírito, quando relembro, é a sucessão de

ontatos casuais que fazia então, os olhares repentinos deão-combatentes, para quem tudo aquilo nada mais era que um estronestituído de significado. Lembro-me da mulher bem vestida que viasseando pela Ramblas, com cesta de compras no braço e levando uachorrinho branco, enquanto fuzis disparavam a uma ou duas ruas deistância. Não posso acreditar que ela fosse surda. E o homem que viorrendo pela Plaza de Cataluna, inteiramente deserta, sacudindo um

enço branco em cada mão. E o numeroso bloco de pessoas, todasajadas em preto, que continuou tentando por toda uma hora atravessPlaza de Cataluna e não o conseguiu. Todas as vezes que seus

omponentes apareciam na calçada da esquina os metralhadores do PS. U. C., no Hotel Colón, abriam fogo e obrigavam-nos a recuar não sor que, pois era claríssimo que estavam desarmados. Mais tarde vim rer que se tratava de um cortejo fúnebre. E o homenzinho queabalhava como zelador do museu por cima do Poliorama, e que pare

ncarar aquilo tudo como acontecimento social. Teve satisfação imensm receber os ingleses em visita - os ingleses eram tão simpáticos, dizle. Esperava que pudéssemos todos voltar ali e vê-lo novamente,uando terminasse o barulho, e na verdade nós o fizemos. E o outroomenzinho, abrigando-se num portal, que inclinava a cabeça de modem humorado, em direção ao tiroteio infernal na Plaza de Cataluna eizia (como a proclamar que a manhã estava belíssima): "Com que,ntão, temos mais um dezenove de julho!" E as pessoas na sapataria,

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ue fabricavam minhas botas de marcha. Fui lá antes da luta, depois derminada, e por pouquíssimos minutos, durante o curto armistício de 5e maio. Era uma sapataria careira, seus artífices e pessoal eram da

U.G.T. e podem ter sido membros do P.S.U.C. ou, de qualquer maneirstavam politicamente no outro lado e sabiam que eu servia no P. O. U

M. Ainda assim, sua atitude era de completa indiferença.

Que lástima, esse tipo de coisas, não é? E muito ruim para osegócios, também. Que pena não acabarem com isso! Como se nãoouvesse mais do que o suficiente na linha de frente! Etc. etc.

Devia haver grande quantidade de pessoas, talvez a maioria dosabitantes de Barcelona, que encaravam aquela questão toda sem o

menor interesse, ou não mais do que teriam demonstrado por uma

ncursão aérea inimiga.Neste capítulo descrevi apenas o que ocorreu comigo, e no próximo

everei examinar tão bem quanto possível as questões mais amplas - ue realmente aconteceu e quais os resultados, méritos e deméritos naso, quem era responsável, se houvesse. Tão grande foi a exploraçãolítica sobre as lutas travadas em Barcelona que se torna importanterocurar formar um apanhado geral equilibrado das mesmas. Muita

oisa, suficiente para preencher bom número de livros, já se escreveu espeito, e suponho não estar exagerando se disser que nove décimosa matéria estão formados de inverdades. Quase todas as narrativas eeportagens publicadas na ocasião pelos jornais eram invencionice deornalistas situados bem longe dos acontecimentos, e não apenas semostraram imprecisas quanto aos fatos narrados, como eramntencionalmente enganosas. Apenas um dos lados da questão pôdehegar ao público em geral. Igualmente a todos que se encontravam e

arcelona na época, vi apenas o que ocorreu perto de mim, mas pudeer e ouvir o suficiente para contradizer numerosas mentiras postas emirculação. Como fiz em parte anterior deste livro, sugiro ao leitor que, ão estiver interessado na controvérsia política e no conglomerado deartidos e subpartidos, com seus nomes confusos (parecidos aos deenerais numa guerra chinesa), passe por cima do capítulo seguinte. Éorrível ter de entrar em detalhes na polêmica interpartidária, e essa

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arefa pode ser comparada ao mergulho dado numa sentina. Precisameterminar a verdade, todavia, até onde isso for possível. Aquela refresquálida numa cidade distante é mais importante do que possa parecprimeira vista.

1

amais se poderá obter um relato inteiramente preciso e imparcial sobs lutas em Barcelona, porque não existem os dados necessários. Os

uturos historiadores nada terão em que basear-se, exceto ummontoado de acusações e propaganda partidária. Eu mesmo disponhe poucos dados além do que vi e o que fiquei sabendo mediante

estemunhas oculares que acredito idôneas. Ainda assim, possoontraditar algumas das mentiras mais flagrantes e ajudar a situar a

uestão em alguma perspectiva.Antes do mais, o que realmente aconteceu?

or algum tempo houvera tensões por toda a Catalunha. Nos capítulosnteriores deste livro, apresentei algumas explicações sobre a luta entomunistas e anarquistas. Em maio de 1937 as coisas chegavam a umonto no qual algum tipo de eclosão violenta podia ser tomado por

nevitável. A causa imediata de atrito era a ordem do Governo para queodas as armas em mãos de particulares fossem entregues, medidaoincidente com a decisão de formar uma força policial "apolítica" e

muito bem armada, da qual os membros dos sindicatos estariamxcluídos. O significado disso era patente para todos, sendo igualmentlaro que o passo seguinte seria a tomada de algumas das indústriasrincipais controladas pela C. N . T. Existia, além disso, certa faixa deancor entre as classes trabalhadoras, por causa do contraste crescen

ntre riqueza e pobreza, e um sentimento generalizado e vago de que evolução fora sabotada. Muitos receberam agradável surpresa ao verue não houve desordens públicas no 1º de maio. No dia 3 o Governoesolvia tomar o Centro Telefônico, que desde o início da guerra foraontrolado principalmente por trabalhadores da C. N . T. Alegava-se qustava sendo mal dirigido, e que os telefonemas oficiais se encontravaob censura. Salas, o Chefe de Polícia (que teria ido além das ordensecebidas, ou não) mandou três caminhões cheios de Guardas Civis

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rmados apoderar-se do edifício, enquanto as ruas ao lado eramsvaziadas por policiais, à paisana, armados. Mais ou menos ao mesm

empo bandos de Guardas Civis apoderavam-se de diversos outrosdifícios em pontos estratégicos da cidade. Qualquer que tenha sido a

ntenção verdadeira, prevalecia a crença geral de que era aquele o sinara um ataque geral à C.N.T. por parte dos Guardas Civis e P. S. U. C

comunistas e socialistas). Correu pela cidade a notícia de que osdifícios dos trabalhadores estavam sendo atacados, anarquistasrmados surgiram nas ruas, o trabalho cessou e a luta irrompeu

mediatamente. Naquela noite e na manhã seguinte, formavam-searricadas por toda a cidade, e não houve pausa na luta até a manhã dde maio. Essa luta, no entanto, mostrou-se principalmente defensivam ambos os lados .."Os edifícios estiveram cercados, mas até onde senhum deles foi atacado e invadido, não sendo empregada a artilharia contenda. A grosso modo, as forças da C.N.T. - F.A.I. e P.O.U.M.

mantinham em seu poder os subúrbios onde residia a classeabalhadora, e as forças policiais e P.S.U.C. retiveram a parte central ficial da cidade. Em 6 de maio chegou-se a um armistício, mas logorompia novamente a luta, provavelmente devido a tentativasrematuras, feitas pelos Guardas Civis, no sentido de desarmar osabalhadores da C.N.T. Na manhã seguinte, todavia, as pessoas

omeçavam a abandonar as barricadas por sua própria conta. Até a noe 5 de maio, mais ou menos, a C . N . T. estava ganhando, e grandeúmero de Guardas Civis havia capitulado. Mas não existia qualquerderança de aceitação geral, nem um plano fixo; na verdade, até ondeodia perceber, não existia plano algum, exceto uma vaga decisão deesistir aos Guardas Civis. Os dirigentes oficiais da C.N.T. juntaram-seos da U . G . T., implorando a todos que regressassem ao trabalho e,cima de tudo, os gêneros alimentícios escasseavam. Em tais

ircunstâncias, ninguém podia estar suficientemente seguro sobre auestão para continuar lutando. Na tarde de 7 de maio as condições didade apresentavam-se quase normais. Naquela noite seis mil Guarde Assalto, mandados pelo mar desde Valência, chegavam e assumiacontrole da cidade. O Governo expediu ordem de entrega de todas armas, exceto as que estavam em poder das forças regulares, e nos deguintes foram apreendidas grandes quantidades das mesmas. As

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aixas ocorridas durante a luta eram oficialmente anunciadas comolcançando quatrocentos mortos e perto de mil feridos. Quatrocentos

mortos talvez constitua exagero, mas não há modo de verificar isso.

m segundo lugar, temos os efeitos posteriores da luta. É claramentempossível dizer com qualquer grau de certeza quais foram. Não existe

rova ou indicação de que a explosão tenha apresentado qualquer efeireto sobre o curso da guerra, embora seja claro que teria, casorosseguisse por mais alguns dias. Ela serviu de pretexto para colocar

Cataluña sob controle direto de Valência, apressar a dissolução dasmilícias e suprimir o P.O.U.M e com certeza teve participação na

errubada do governo de Caballero. Mas podemos ter como certo queais coisas ocorreriam, de qualquer maneira. A questão verdadeira éaber se os trabalhadores da C . N . T., que saíram às ruas para lutar,

anharam ou perderam com isso. Nesse particular só se pode adivinhamas minha opinião pessoal é de que eles ganharam mais do queerderam. A tomada do Centro Telefônico de Barcelona constituíapenas um incidente em longa série. Desde o ano anterior o poder dire

ora gradualmente retirado dos sindicatos, e o movimento geral era o dair-se do controle pela classe trabalhadora e dirigir-se ao controleentralizado, que conduzia ao capitalismo de estado ou, mesmo, àeintrodução do capitalismo privado. O fato de que, nesse ponto,urgisse a resistência que surgiu, veio provavelmente retardar aquelerocesso de transferência do poder. Um ano após eclodir a guerra osabalhadores catalães perderam grande parte de seu poder, mas suaosição continuava comparativamente favorável. Poderia sê-lo muito

menos, se eles tornassem claro que ficariam inermes, qualquer queosse a provocação recebida. Há ocasiões em que é melhor lutar epanhar do que fugir à luta.

m terceiro lugar, havia algum intuito na explosão? Tratava-se de algupo de coup d'état, ou tentativa revolucionária? Visava, de modoefinido, à derrubada do Governo? Teria sido preparado comntecedência?

A meu ver, a luta só foi preparada com antecedência no sentido de queodos já esperavam seu aparecimento. Não havia qualquer sinal de pla

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efinido em ambos os lados. Na facção anarquista, a ação foi quaseertamente espontânea, pois em sua maior parte não passou de umauestão tratada por seus quadros subordinados. O povo foi às ruas eeus dirigentes políticos acompanharam-no com relutância, ou não ocompanharam de modo algum. Os únicos que sequer falavam numaço revolucionário para aqueles acontecimentos eram os Amigos de

Durruti, um pequeno grupo extremista dentro da F.A.I., e o P.O.U.M. Mambém eles seguiam os outros. Os Amigos de Durruti distribuíramlgum tipo de panfleto revolucionário, mas o mesmo só apareceu em 5e maio, e não se pode afirmar que tenha dado início à luta, queomeçara por si própria dois dias antes. Os dirigentes oficiais da C. N esautorizaram a questão desde o início, Havia muitos motivos para

sso. Para começar, a C. N . T. continuava representada no Governo eo Generalato, a assegurar que seus dirigentes seriam maisonservadores do que os seus seguidores. Em segundo lugar, o objetirincipal dos dirigentes da C. N. T. era formar aliança com a U.G.T., e

uta viria aumentar a cisão entre as duas organizações de trabalhadoreelo menos naquela ocasião. Em terceiro - a despeito do fato desfrutaouco conhecimento geral na época - os dirigentes anarquistaseceavam que se as coisas ultrapassassem certo ponto e osabalhadores se apoderassem da cidade, como talvez estivessem em

ondições de fazer em 5 de maio, ocorreria uma intervenção estrangeiUm cruzador e dois destróieres ingleses aproximaram-se do porto, eertamente outros vasos de guerra estavam próximos a Barcelona. Os

ornais ingleses afirmavam que aqueles navios seguiam para lá "a fim rotegerem os interesses britânicos", mas na verdade não deramualquer passo nesse sentido, isto é, não desembarcaram tropa, nemeceberam refugiados. Não se pode ter certeza neste particular, mas eo menos inerentemente possível que o Governo britânico, que não

movera uma palha para salvar o Governo espanhol dos ataquesesferidos por Franco, interviria com rapidez suficiente para salvá-lo deua própria classe trabalhadora.

Os dirigentes do P .0. U . M. não se furtaram à questão, e na verdadencentivaram seus seguidores a continuar nas barricadas, chegando aroporcionar sua aprovação (em La Bataila, 6 de maio) ao panfletoxtremista publicado pelos Amigos de Durruti. (Reina grande incerteza

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espeito desse documento, do qual parece que ninguém possui um únxemplar.) Em alguns dos jornais estrangeiros o panfleto era descritoomo "cartaz inflamativo" que fora "afixado por toda a cidade". É certoue tal cartaz não existiu. Mediante a comparação de diversos relatos eu respeito. eu diria que o panfleto pedia: (1) a formação de umonselho (junta) revolucionário, (2) o fuzilamento dos responsáveis pel

taque desfechado contra o Centro Telefônico, (3) o desarmamento doGuardas Civis. Reina igual incerteza até que ponto La Bataila manifesteu acordo ao panfleto. Eu mesmo não vi. esse documento, ou a ediçãe La Bataila daquela data. O único que pude ver durante a luta foi oublicado pelo pequeno grupo de trotskistas ("bolchevista-leninistas") ede maio, que dizia apenas: "Todos ás barricadas - greve geral de tods indústrias, menos as de guerra". (Em outras palavras, pedia apenasue já estava ocorrendo.) Na realidade, a atitude dos dirigentes do P.

O.U. M. era hesitante. Jamais estiveram a favor de insurreição, até estanha a guerra contra Franco; por outro lado os trabalhadores saíram uas, e os dirigentes do P .0. U. M. adotaram a linha marxista bastanteedante. de que quando os trabalhadores se encontram nas ruas o deos partidos revolucionários é estar com eles. Daí, emboraronunciassem refrões revolucionários a respeito do "redespertar dospírito de 19 de julho" e assim por diante, terem feito o possível para

mitar a ação dos trabalhadores à defensiva, jamais ordenaram, porxemplo, que se desfechasse qualquer ataque a um edifício, eimplesmente ordenavam a seus seguidores que ficassem de guarda eomo mencionei no último capítulo, não abrir fogo enquanto issoudesse ser evitado. La Batalla emitiu também instruções no sentido due soldado algum deveria deixar a linha de frente.(11) Eu diria que aesponsabilidade do P. O. U . M. chega ao ponto de instar com todosara ficarem nas barricadas, e provavelmente persuadiu alguns a ficar

li mais tempo do que o necessário. Os que se encontravam em contaessoal com os dirigentes do P.O.U.M. nessa época (eu não estava)isseram-me que, na verdade, eles se achavam descorçoados por aqu

udo, mas achavam que deviam associar-se ao caso. Em seguida, comclaro, fizeram exploração política desse ponto, na maneira de costum

Gorkin, um dos dirigentes do P .0. U. M., viria mais tarde falar dos "dialoriosos de maio". Do ponto de vista propagandístico, pode ter sido es

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linha certa, sendo certo que o P .O. U . M. aumentou um pouco emúmero de adeptos naquele curto período anterior à sua supressão. Donto de vista tático, provavelmente foi um erro o dar abrigo ao folhetoos Amigos de Durruti, que constituíam organização muito pequena e e regra hostil ao P. O. U. M. Levando-se em conta a agitação geral e oisas que eram ditas em ambos os lados, o folheto na verdade não

ignificava muito mais do que "Fiquem nas barricadas!", mas por parecprová-lo, enquanto Solidaridad Obrera, o jornal anarquista, o repudiavs dirigentes do P .O. U . M. facilitaram à imprensa comunista declararosteriormente que a luta fora um tipo de insurreição engendradanicamente pelo P .0. U . M. Podemos estar certos, no entanto, de que

mprensa comunista diria isso de qualquer maneira. Aquilo era nada, eonfronto às acusações que se faziam tanto antes quanto depois, comase em provas ainda menores do que essa. Os dirigentes da C. N . Tão ganharam grande coisa por causa de sua atitude cautelosa. Foram

ouvados por sua fidelidade, mas expulsos do Governo e do Generalat

Com base no que se dizia não existia qualquer intenção revolucionáriaerdadeira em parte alguma. As pessoas que guarneciam as barricadaram trabalhadores comuns da C. N . T., provavelmente com certaroporção de trabalhadores da U. G. T. em seu meio, e o que visavamão era derrubar o Governo, mas resistir ao que, certos ou errados,creditavam ser um ataque desferido pela policia. Sua ação foissencialmente defensiva, e não acho que devesse ser descrita (o quecorreu em quase todos os jornais estrangeiros) como um "levante". U

evante é coisa que implica em ação agressiva e plano definido. Comxatidão maior podemos chamar aquilo uma desordem pública - e muiangrenta, pois ambos os lados dispunham de armas e estavam prontutilizá-las.

Mas que dizer sobre as intenções no outro lado? Se não se tratava dem coup d'état anarquista, seria talvez um coup d’état comunista, umsforço planejado para destruir o poder da C.N.T. com um único golpe

Não acredito que fosse, embora pudesse desconfiar disso. É significatue coisa muito parecida (tomada do Centro Telefônico pela policiarmada agindo sob ordens emanadas de Barcelona) acontecesse em

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arragona dois dias depois. E em Barcelona a incursão ao Centroelefônico não constituíra ato isolado. Em diversas partes da cidade

urmas de Guardas Civis e adeptos do P .S. U. C. apoderaram-se dedifícios situados em pontos estratégicos, senão antes da luta começaelo menos com presteza surpreendente. Mas é preciso lembrar que taoisas aconteciam na Espanha, e não na Inglaterra. Barcelona é uma

idade com longa história de luta em ruas, e em lugares assim as coisacontecem com rapidez, as facções já se encontram formadas, todosonhecem a geografia local, e quando se iniciam os disparos as pessoomam seus lugares quase como em ensaio geral. É de presumir que oesponsáveis pela tomada do Centro Telefônico contassem com barulhembora não na escala em que o mesmo ocorreu - e se preveniram pa

azer-lhe frente. Mas daí não segue que estivessem planejando umtaque geral contra a C. N . T. Há dois motivos pelos quais não acreditue qualquer dos dois lados fizesse preparativos para uma luta em largscala:

1) Nenhum dos lados trouxera com antecedência tropas para BarceloA luta travou-se apenas entre os que ali já se achavam, principalmente

s civis e a polícia.

2) Os gêneros alimentícios escasseavam quase de imediato. Quem

enha servido na Espanha sabe que a única operação militar que osspanhóis realmente executam muito bem é alimentar seus soldados. mprovável que, se qualquer dos dois lados pensasse numa semana ouas de luta, bem como numa greve geral, deixasse de formar estoquee alimentos com a necessária antecedência.

Quanto aos méritos e deméritos da luta, finalmente, tenho a dizer que scarcéu tremendo se formou na imprensa antifascista do exterior mas

omo de costume, apenas um lado da questão recebeu apresentaçãomelhor. Por conseqüência, as lutas em Barcelona foram apresentadasomo uma insurreição de anarquistas e trotskistas infiéis e desleais, qustavam "apunhalando o Governo espanhol costas", e assim por diant

Mas a questão não teve essa simplicidade. É certo que quem estiver euerra com um inimigo mortal não deverá empreender lutas internas,

mas vale a pena lembrar que para formar uma briga é preciso ter dois

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ados, e que as pessoas não começam a construir barricadas, a menosue tenham recebido alguma coisa que considerem provocação.

O barulho teve uma origem natural, devido à ordem dada pelo Governoos anarquistas para que lhe entregassem suas armas. Na imprensa

nglesa isso era levado aos termos ingleses, e tomou a forma seguinte

ecessitava-se desesperadamente de armas na frente de Aragón, e asmesmas não podiam ser mandadas para lá porque os anarquistas, genmuito pouco patriótica, retinham-nas em seu poder. Apresentar a

uestão dessa maneira é ignorar as condições realmente existentes naspanha. Todos sabiam que tanto os anarquistas quanto o P .S. U. C.stavam formando estoques de armas, e quando a luta irrompeu emarcelona isso se fez mais claro ainda, com ambos os lados saindo-seom abundância de armas. Os anarquistas tinham plena ciência de qu

mesmo entregando suas armas, o P. S. U . C., que politicamente era ooder maior na Catalunha, continuaria com as dele, e foi realmente o qcorreu depois de terminada a contenda. Enquanto isso, e perfeitamenisível nas ruas, havia quantidades de armas que seriam muito bemecebidas na linha de frente, mas que eram retidas para as forçasoliciais "apolíticas" na retaguarda. E por baixo de tudo isso existia aivergência irreparável entre comunistas e anarquistas, que mais cedou mais tarde deveria eclodir em algum tipo de luta. Desde o início dauerra o Partido Comunista Espanhol crescera enormemente emuadros e capturara a maior parte do poder político, chegando àspanha milhares de comunistas estrangeiros, muitos dos quaisxprimiam abertamente a intenção de "liquidar" o anarquismo assim quanha a guerra contra Franco. Em tais circunstâncias não se poderiasperar que os anarquistas entregassem suas armas, das quais sepoderaram no verão de 1936.

A tomada do Centro Telefônico constituiu apenas o fósforo que acendema bomba já existente. Talvez se possa acreditar que os responsáveela medida julgassem que não resultaria em luta. Diz-se que

Companys, o Presidente catalão, declarara entre risadas, alguns diasntes, que os anarquistas aceitavam qualquer coisa,(12) Mas comerteza não se tratou de ato meditado. Por meses consecutivos houve

onga série de encontros armados entre comunistas e anarquistas em

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iversas partes da Espanha. A Catalunha, e em especial Barcelona,ncontravam-se em estado de tensão que já resultara em refregas nasuas, assassinatos e assim por diante. E de repente irrompia pela cidadnotícia de que homens armados atacavam os edifícios capturadoselos trabalhadores nas lutas de julho, e aos quais atribuíam grandealor sentimental. Devemos lembrar que os Guardas Civis eram gente

diada pelos trabalhadores. Por gerações seguidas la guardia nãoassava de mero apêndice de latifundiários e patrões, e os guardas Ciram duplamente odiados por suspeitar-se, e com bastante razão, queossuíam lealdade muito duvidosa contra os fascistas.(13) É provávelue a emoção com que o povo saíra às ruas nas primeiras horas fossem grande parte, a mesma que o levara a resistir aos generais rebeldeo início da guerra. Está claro que podem afirmar que os trabalhadoresa C . N . T. deviam ter entregue o Centro Telefônico sem protestar.

Nesse particular, a opinião de cada um será governada pela atitudendividual quanto à questão do governo centralizado ou controle pelalasse trabalhadora. De modo ainda mais pertinente pode-se afirmar:

Sim, é muito provável que a C. N . T. tivesse alguma razão. Mas, afinae contas, havia uma guerra a empreender, e eles não tinham de dar

nício a uma luta na retaguarda". Com isso concordo integralmente.Qualquer desordem interna poderia ajudar Franco. Mas o que realmen

recipitou a luta? O Governo podia ter ou não o direito de tomar o Cenelefónico, mas o importante é que em tais circunstâncias isso deveriaesencadear uma luta. Tratava-se de ato de provocação, gesto quefirmava de fato, e presumivelmente visava afirmá-lo: "Seu poder

erminou, e estamos tomando conta agora". Não era sensato esperarutra coisa que não a resistência. Quem mantiver sua noção deroporções terá de compreender que a falta não foi - e não podia ser -

ometida por apenas um dos lados. O motivo pelo qual se viu aceita umersão unilateral é, simplesmente, que os partidos revolucionáriosspanhóis não têm guarida na imprensa estrangeira. Na inglesa,rincipalmente, seria preciso procurar muito para achar qualquereferência favorável, em qualquer período da guerra, aos anarquistasspanhóis. Eles foram sístematícamente denegridos, e como sei por

minha experiência própria, é quase impossível fazer com que se imprimualquer coisa em sua defesa.

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rocurei escrever de modo objetivo sobre as lutas em Barcelona, embeja óbvio que ninguém consiga. ser completamente objetivo numauestão desse tipo. Estamos praticamente forçados a tomar partido, eeve estar bem claro em que lado eu me situo. Também é inevitável qu tenha cometido enganos de fato, não só aqui como em outras parteesta narrativa. E muito difícil escrever com precisão sobre a guerra

spanhola, devido à falta de documentos que não os destinados àropaganda. Quero prevenir a todos quanto à minha preferência, bemomo a respeito de meus enganos. Ainda assim, procurei o mais queude ser sincero. Mas o leitor verá que o relato aqui apresentado é

nteiramente diverso do que surgiu na imprensa estrangeira e, de modospecial, na comunista. E preciso examinar a versão comunista, pois a

mesma se viu divulgada pelo mundo afora, desde então recebeuuplementos a intervalos curtos, e provavelmente constitua a mais acee todas.

Na imprensa comunista e pró-comunista toda a culpa pelas lutas emarcelona foi lançada sobre o P .0. U . M. O acontecimento se viu

epresentado não como eclosão espontânea, mas como insurreiçãoeliberada e planejada contra o Governo, engendrada unicamente pelo. O. U. M., com auxílio de alguns elementos "incontroláveis" e malrientados. Mais do que isso, foi definitivamente uma trama fascista,xecutada sob ordens fascistas e com o propósito de iniciar a guerra ca retaguarda e assim paralisar o Governo. O P .0. U . M. era "a Quint

Coluna de Franco", uma organização "trotskista" trabalhando em acordom os fascistas. De acordo com o Daily Worker de 11 de maio, temosue:

Os agentes alemães e italianos, que acorreram em grandenúmero a Barcelona, para "preparar" de modo ostensivo ofamigerado "Congresso da Quarta Internacional" tinham umagrande tarefa diante de si:

Deveriam - em colaboração com os trotskistas locais - prepararuma situação de desordem e derramamento de sangue, na qualseria possível aos alemães e italianos declararem que "nãopodiam exercer o controle naval das costas catalãs de modo

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efetivo devido às desordens existentes em Barcelona", e nãopodiam, portanto, "fazer outra coisa senão desembarcar forçasterrestres em Barcelona".

Em outras palavras, o que se estava preparando era umasituação na qual os governos alemão e italiano pudessem

desembarcar tropas terrestres ou fuzileiros, de modo bemaberto, nas costas da Catalunha, declarando que o faziam para"preservar a ordem"..

O instrumento para tudo isso estava pronto para uso por partedos alemães e italianos, na forma da organização trotskistaconhecida como P.O. U. M.

O P. O. U. M., agindo em colaboração com elementosreconhecidamente criminosos, e com algumas outras pessoasiludidas nas organizações anarquistas, planejou, organizou edirigiu o ataque na retaguarda, sincronizado com precisao paracoincidir com o ataque na frente em Bilbao, etc. etc.

m parte subseqüente do mesmo artigo as lutas em Barcelonaornam-se "o ataque do P.O. U. M.", e em outro artigo na mesma ediçãfirma-se "não haver dúvida de que seja à porta do P. O. U. M. que deer depositada a responsabilidade pelo derramamento de sangue na

Catalunha". A Inprecor (29 de maio) afirma que quem construiu asarricadas em Barcelona foram "apenas membros do P.O.U.M.,rganizados por esse partido para tal fim".

u poderia citar muitas outras coisas, mas já bastou para esclarecer. OO. U. M. fora inteiramente responsável, e o P .O. U. M. agira sob ordeascistas. Apresentarei mais trechos dos relatos surgidos na imprensaomunista, e se vera que são contraditórios a tal ponto que se tornam

nteiramente sem valor. Mas antes de fazê-lo vale a pena indicar, a prioiversos motivos pelos quais essa versão das lutas de maio como

evante fascista, engendradas pelo P .0. U . M., está a um passo doncrível.

1) O P.O.U.M. não tinha número de membros ou influência suficiente

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ara provocar desordens daquela natureza. Menor ainda era seu podee convocar uma greve geral. Tratava-se de organização política semualquer apoio definido nos sindicatos, e teria sido capaz de produzirma greve em Barcelona tanto quanto (digamos) o Partido Comunistaritânico o conseguiria fazer em Glasgow. Como afirmei antes, a atitudos dirigentes do P .0. U. M. pode ter ajudado a prolongar a luta, mas

ão lhes seria possível iniciá-la, ainda que o quisessem fazer,2) A alegada trama fascista repousa na afirmação pura e simples que ez nesse sentido, e todas as indicações existentes são ao contrário.

Dizem-nos que o plano destinava-se a permitir aos governos alemão ealiano o desembarque de tropas terrestres na Catalunha, mas nenhumavio alemão ou italiano, trazendo tropas, aproximou-se da costa.

Quanto ao "Congresso da Quarta Internacional" e aos "agentes alemã

italianos", isso era apenas mito. Até onde sei, nem sequer houveraualquer referência a um Congresso da Quarta Internacional. Existiamlanos vagos para um Congresso do P.O.U.M. e seus partidos-irmãos L.P. inglesa, S.A.P. alemã, etc. etc.), o que fora marcadoxperimentalmente para alguma época de julho - dois meses depois - ão chegara ainda um único delegado para o mesmo. Os "agenteslemães e italianos" não têm qualquer existência, senão nas páginas d

Daily Worker. Qualquer um que tenha cruzado a fronteira naquela époabe que não era tão fácil fazê-lo.

3) Nada ocorreu, seja em Lerida, o sustentáculo principal do P.O.U.Mu na linha de frente. E óbvio que se os dirigentes do P .0. U . M.uisessem ajudar os fascistas, teriam ordenado à sua milícia que seetirasse da linha de combate e deixasse os fascistas passar. Mas nadisso foi feito ou mesmo sugerido. Tampouco houve qualquer númeroxtra de homens tirados da linha antecipadamente, embora fosse fácil

mandar mil ou dois mil homens para Barcelona, utilizando-se pretextosiversos, se necessário. E não houve qualquer tentativa até mesmo deabotagem indireta no front, o transporte de gêneros, munições e assimor diante continuou como sempre, e verifiquei isso pessoalmente.

Acima de tudo, um levante planejado e do tipo sugerido requereriameses de preparativos, propaganda subversiva entre os milicianos, etcMas não existia qualquer sinal ou boato a respeito. O fato de que a

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milícia no front não desempenhasse qualquer papel no "levante" deviaor si só, mostrar-se concludente. Se o P .0. U . M. estivesse realmentlanejando um coup d'état, é inconcebível que não utilizasse os dez momens armados que formavam a única força de ataque de queispunha.

Com base nisso tornar-se-á suficientemente claro que a tese comuniste um "levante" do P .O. U . M. sob ordens fascistas tem apoio emmenos do que falta de provas. Adicionarei mais algumas citações tirad

a imprensa vermelha. As narrativas comunistas sobre o incidente inicataque ao Centro Telefônico, mostram-se reveladoras, e não

oncordam em coisa alguma, entre si, senão em atribuir a culpa ao outado. É de notar-se que nos jornais comunistas ingleses a culpa étribuída inicialmente aos anarquistas e somente depois ela vai recair

obre o P .0. U . M. Há um motivo bastante óbvio para isso: nem todosa Inglaterra ouviram falar em 'trotskismo", enquanto que qualqueressoa de fala inglesa estremece ao nome de "anarquista". Basta fazeaber que há "anarquistas" implicados na coisa e fica criada a atmosfee preconceitos a que se visa; depois disso a culpa poderá seranqüilamente transferida para os "trotskistas". Eis como o Daily Work

nicia (em 6 de maio) seu comentário da questão:

Um grupo minoritário de anarquistas, na segunda e na terçafeira, tomou e procurou manter os edifícios de telefones etelégrafos, e começou a abrir fogo contra o povo nas ruas.

Não há coisa alguma comparável a um começo no qual foram invertidos papéis. Os Guardas Civis atacaram um edifício guardado pela C . N., de modo que esta é representada como atacando seu próprio edifícatacando a si própria, na verdade. Por outro lado, o Daily Worker de l

e maio afirma o seguinte:O Ministro Catalão Esquerdista, de Segurança Pública,Aiguade, e o Socialista Unido Comissário Geral de OrdemPública, Rodrigue Salas, mandaram a polícia armadarepublicana ao edifício da Telefônica para desarmar osempregados da mesma, a maioria dos quais membros dossindicatos da C. N. T.

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sso não parece concordar muito com a primeira afirmação, mas aindassim o Daily Worker não apresenta qualquer admissão de que suarimeira notícia estivesse errada. O Daily Worker de 11 de maio declarue os folhetos dos Amigos de Durruti, renegados pela C. N . T.,urgiram em 4 e 5 de maio, durante a luta. A Inprecor (22 de maio)

nforma que eles apareceram em 3 de maio, antes da luta, e acrescent

ue "diante desses fatos" (o aparecimento de diversos folhetos).A polícia, tendo à sua frente o próprio Prefeito da Polícia, ocupou oentro telefônico na tarde de 3 de maio. A polícia recebeu tiros enquanumpria seu dever. Isso foi o sinal para que os provocadores iniciassems tiroteios em toda a cidade.

eis o que afirma a Inprecor, em 29 de maio:

Às três horas da tarde o Comissário de Segurança Pública,Camarada Salas, dirigiu-se ao Centro Telefônico, que na noiteanterior fora ocupado por uns 50 membros do P. O. U. M. ediversos elementos incontroláveis.

udo isso parece bastante curioso. A ocupação do Centro Telefônico p0 membros do P .O. U . M. é o que se poderia chamar umaircunstância pitoresca, sendo de esperar que alguém o notasse napoca. No entanto, parece que só se descobriu três ou quatro semana

mais tarde. Em outra edição de inprecor os 50 membros do P .0. U . Mornam-se 50 milicianos do P .0. U. M. Seria difícil juntar um número

maior de contradições do que as encontradas nessas primeiras e curtaassagens. Em certo momento a C . N . T. ataca o Centro Telefônico, eguinte ela própria está sendo atacada ali mesmo; surge um folhetontes da tomada do Centro, e ele constitui a causa do acontecimento o

e forma alternada, aparece depois do fato e constituí resultado dele; aente no Centro Telefônico é formada, alternadamente, por membros dC.N.T. e membros do P.O.U.M. - e assim por diante. E em outra edição

osterior do Daily Worker (3 de junho) o Sr. J. R. Campbell vem nosnformar que o Governo somente se apoderou do Centro Telefônicoorque as barricadas já se encontravam em pé!

or questão de espaço citei apenas os relatórios sobre um incidente,

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mas as mesmas discrepâncías são encontradas em todas as narrativaublicadas pela imprensa comunista. Existem, além disso, diversasfirmações que constituem pura falsificação inventiva. Eis, por exemplolguma coisa citada pelo Daily Worker (7 de maio) e tida como emitidaela Embaixada espanhola em Paris:

Um traço significativo do levante foi o de que a velha bandeiramonarquista esteve hasteada no sobrado de diversas casas emBarcelona, sem dúvida na crença de que os participantes nolevante já se haviam tornado senhores da situação.

O Daily Worker provavelmente publicou tal afirmação em boa fé, mas oesponsáveis pela mesma na Embaixada espanhola devem ter mentidelíberadamente. Qualquer espanhol compreenderia a situação interna

e seu país melhor do que isso. Uma bandeira monarquista emarcelona! Eis uma coisa que poderia ter unido as facções em guerra mesmo instante de seu aparecimento. Até os comunistas presentes àena dos distúrbios riram quando leram isso. Acontece o mesmo com elatos nos diversos jornais comunistas sobre as armas que se afirmouoram usadas pelo P. 0. U. M. durante o "levante". Isso só seria crívelara alguém que nada conhecesse sobre os fatos. No Daily Worker de7 de maio o Sr. Frank Pitcairn afirma:

Havia, na verdade, todos os tipos de armas utilizadas por elesnaquela empreitada infame. Havia as armas que roubarammeses seguidos, e escondido, e havia armas como tanques deguerra, que roubaram dos quartéis logo ao início do levante.Torna-se claro que grande número de metralhadoras e algunsmilhares de fuzis continuam ainda em seu poder.

A Inprecor de 29 de maio também afirma:Em 3 de maio o P. O. U. M. teve à sua disposição algumasdezenas de metralhadoras e diversos milhares de fuzis... NaPlaza de Espana os trotskistas puseram em ação baterias decanhões "75" destinadas à frente de batalha em Aragón, e quea milícia escondera cuidadosamente em suas instalações.

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O Sr. Pitcairn não informa como e quando se tornou claro que o P .0. UM. possuía inúmeras metralhadoras e milhares de fuzis. Eu já apresen

m cálculo das armas que se encontravam nos principais edifícios do P0. U . M. - cerca de oitenta fuzis, algumas bombas e nenhuma

metralhadora, isto é, mais ou menos o suficiente para a guarda armadaue todos os partidos políticos possuíam em seus edifícios. Parece

stranho que depois disso, quando o P. O. U . M. foi suprimido e todoss seus edifícios tomados, esses milhares de armas não tenhamparecido, em especial os tanques de guerra e canhões, coisas que nãe prestam a esconderijos pelas chaminés. Mas o revelador nas duasfirmações é a ignorância completa que demonstram quanto àsircunstâncias locais. De acordo com o Sr. Pitcairn o P .0. U . M. rouboanques de guerra "dos quartéís". Ele não diz quais são esses quarteis

Os milicianos do P .0. U. M. que se encontravam em Barcelona (e queram relativamente poucos na época, pois o recrutamento feitoiretamente para as milícias partidárias terminara) partilhavam o Quartênin com um número consideravelmente maior de soldados do Exércopular. O Sr. Pitcairn está pedindo que acreditemos, portanto, em qu .0. U. M. roubasse tanques de guerra com a conivência do Exércitoopular. Acontece o mesmo com as "instalações" nas quais os canhõee 75 mm se achariam escondidos. Não encontramos qualquer

eferência ao lugar onde estavam tais "instalações". Essas baterias deanhões, disparando na Plaza de España surgiram em muitos relatosornalísticos, mas acredito podermos dizer com certeza que jamaisxistiram. Como disse antes, não ouvi disparos de artilharia durante a

uta, embora a Plaza de España ficasse a menos de dois quilômetros distância. Alguns dias depois examinei aquela praça e não pude verualquer edifício com marcas de granadas de artilharia. E uma

estemunha ocular que se achava nas vizinhanças por toda a luta afirm

ue jamais apareceu qualquer canhão por ali. (De passagem, é possívue a história dos canhões roubados tenha começado comAntonov-Ovseenko, o Cônsul-Geral russo). De qualquer forma, foi ele

uem a comunicou a um conhecido jornalista inglês, que dali para aente repetiu o que ouvira, com boa fé, num semanário.

Antonov-Ovseenko já foi "expurgado".

O modo pelo qual sua queda em desgraça possa afetar a credibilidade

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he ser dada é desconhecido para mim. A verdade, naturalmente, é quais histórias sobre tanques de guerra, canhões e assim por diante foranventadas porque, de outra maneira, torna-se difícil reconciliar a escaa luta travada em Barcelona com o pequeno número de membros do.0. U. M. Era necessário afirmar que o P .O. U . M. era inteiramente

esponsável pela luta, sendo preciso afirmar também que era partido

nsignificante, sem seguidores, e "com apenas alguns milhares demembros", de acordo com a Inprecor. A única esperança de tornarríveis ambas as afirmações estava em fazer de conta que o P. O.U. Mossuía armas de um moderno exército mecanizado.

orna-se impossível examinar os relatos apresentados pela imprensaomunista sem perceber que eles visam conscientemente a um público

gnorante dos fatos, e não têm outro fito senão criar preconceitos. Daí,

or exemplo, afirmações como as do Sr. Pitcairn no Daily Worker de 1e maio, no sentido de que o "levante" foi suprimido pelo Exércitoopular. A idéia visada, nesse caso, é proporcionar aos elementos de

ora a impressão de que toda a Catalunha estava solidamente unidaontra os "trotskistas". Mas o Exército Popular permaneceu neutro na

uta, todos em Barcelona sabiam disso, sendo difícil crer que o Sr.itcairn o ignorasse. E há também o jogo de cifras na imprensaomunista, com referência a mortos e feridos, visando exagerar axtensão das desordens. Diaz, Secretário-Geral do Partido Comunistaspanhol, e amplamente citado pela imprensa comunista, apresentou

ais números como 900 mortos e 2.500 feridos. O Ministro daropaganda catalão, que dificilmente iria subestimar essas cifras, faloum 400 mortos e 1.000 feridos. O Partido Comunista dobra a parada eõe mais algumas centenas de lambujem.

Os jornais capitalistas estrangeiros, em sua generalidade, atribuíram aulpa das lutas aos anarquistas, mas alguns acompanharam a linhaomunista. Um deles foi o News Chronicle da Inglaterra cujoorrespondente, Sr. John Langdon-Davies, encontrava-se naquelacasião em Barcelona. Cito partes de seu artigo:

REVOLTA TROTSKISTA

Isto não foi um levante anarquista. Foi um putsch frustrado,

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promovido pelo P. O. U. M. "trotskista", funcionando por meio deorganizações sob seu controle, "Amigos de Durruti" e JuventudeLibertária... A tragédia começou na tarde de segunda-feira,quando o Governo mandou policiais armados ao edifício daTelefônica, para ali desarmar os trabalhadores, em sua maioriahomens da C. N. T. Já por algum tempo as irregularidades

graves no serviço telefônico atingiam as raias do escândalo.Grande multidão se formou na Plaza de Cataluña, enquanto oshomens da C. N. T. resistiam, recuando andar por andar até aoalto do edifício... O incidente era bastante sem importância, mascirculou a notícia de que o Governo saíra à caça dosanarquistas. As ruas se encheram com homens armados... Ànoite todos os centros de trabalhadores e edifíciosgovernamentais estavam com barricadas, e às dez horasdisparavam-se as primeiras balas e as primeiras ambulânciascomeçavam a gemer pelas ruas. Pela madrugada toda a cidadede Barcelona encontrava-se debaixo de fogo... Ao correr do diae com mais de cem mortos, podia-se adivinhar o que acontecia.A C. N. T. anarquista e a U. G. T. socialista não estavam,oficialmente, "nas ruas". Enquanto continuavam apenas por trásdas barricadas, estavam apenas observando com atenção,

atitude que incluía o direito de abrir fogo contra qualquer coisaarmada na rua aberta... As fuzilarias generalizadas eraminvariavelmente agravadas por pacos - homens solitários eocultos, em geral fascistas, que disparavam dos telhados sobrequalquer coisa ou qualquer um, mas fazendo tudo quantopodiam para aumentar o pânico geral... Na noite de quarta-feira,entretanto, começou a tornar-se claro quem promovera arevolta. Todas as paredes foram cobertas por um cartaz

inflamatório que pedia uma revolução imediata e o fuzilamentodos dirigentes republicanos e socialistas. Estava assinado pelos"Amigos de Durruti". Na manhã de quinta-feira o diárioanarquista negava qualquer conhecimento ou simpatia pelocartaz, mas La Batalla, o jornal do P. O. U. M., publicava odocumento, tecendo para ele o maior louvor. Barcelona, aprimeira cidade da Espanha, encontrava-se mergulhada em

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sangue por obra dos agents provocateurs que usavam essaorganização subversiva.

al exposição não concorda inteiramente com as versões comunistasue citei antes, mas dará para ver que, em si mesma, é contraditória. Erimeiro lugar os acontecimentos são descritos como "revolta trotskista

epois é demonstrado que resultaram de uma invasão ao edifício daelefônica, e fala da crença generalizada de que o Governo estava aaça dos anarquistas. A cidade está com barricadas, e tanto a C. N . Tuanto a U. G . T. encontram-se por trás das mesmas; dois dias depoiartaz inflamatório (na verdade um folheto) aparece, e por implicação

sso é afirmado como tendo dado início à coisa toda - efeito ocorrendontes da causa, Mas há um ponto de falsificação muito séria no texto. r. Langdon-Davies descreve os Amigos de Durruti e a Juventude

ibertária como "organizações controladas" pelo P. O. U. M. Eram,mbas, organizações anarquistas, e não possuíam qualquer relação coP .0. U . M. A Juventude Libertária formava a liga da juventudenarquista, correspondendo à J.S.U. do P.S.U.C., etc. Os Amigos de

Durruti eram uma pequena organização dentro da F A. I., e de um moderal mostrava-se amargamente hostil ao P .0. U. M. Até onde posso vão existia uma só pessoa que fosse membro de ambos. Seria mais o

menos igual a afirmar que a Liga Socialista (Socialist League) éorganização controlada" pelo Partido Liberal inglês (Liberal Party).staria o Sr. Langdon-Davies sem saber disso? Nesse caso, deveriascrever com mais cautela a respeito dessa questão bastante complex

Não estou atacando a boa fé do Sr. Langdon-Davies, mas é sabido qule deixou Barcelona assim que a luta terminou, isto é, no momento emue poderia dar início a investigações sérias, e por todo o seu informencontramos sinais claros de que aceitou a versão oficial de uma "revootskista", sem verificação suficiente. Isso é óbvio até mesmo naanscrição que fiz de seu artigo. "A noite" as barricadas estãoonstruídas, e "às dez horas" são feitos os primeiros disparos. Não sãostas as palavras de uma testemunha ocular. Daí daria para depreendue é comum esperar que o inimigo construa barricada, antes de abrir

ogo contra ele. A impressão dada é que transcorreram algumas horasntre a construção das barricadas e os primeiros disparos, quando -

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aturalmente - ocorreu o contrário. Eu e muitos outros vimos os primeiisparos sendo feitos à tarde. E temos também os homens solitários, "eral fascistas", que disparavam dos telhados. O Sr. Langdon-Daviesão explica como sabia que esses homens eram fascistas. E deresumir-se que não tenha escalado os telhados e perguntado aosavalheiros. Está simplesmente repetindo o que lhe disseram e, como

justa à versão oficial, ele não questiona o assunto. A bem da verdadele indica uma fonte provável de grande parte de sua informação, pelaeferencia pouco cautelosa ao Ministro da Propaganda, ao início dortigo. Os jornalistas estrangeiros na Espanha encontravam-se

ndefensavelmente à mercê do Ministro da Propaganda, embora fossesperar que o simples nome de tal ministério constituísse advertênciauficiente. O Ministro da Propaganda, naturalmente, poderia proporciom relato tão objetivo das desordens em Barcelona quanto, digamos, o

alecido Lord Carson poderia fazê-lo com referência ao levante de 191m Dublin.

enho bons motivos para crer que a versão comunista para as lutas emarcelona não possam ser levadas a sério. Além disso, devo dizerlguma coisa a respeito da acusação generalizada de que o P .O. U. Mra uma organização secretamente fascista, a soldo de Franco e Hitler

al acusação é reiteradamente apresentada na imprensa comunista, especial a partir do início de 1937. Ela faz parte da campanha mundialos Partidos Comunistas contra o trotskismo", do qual se supõe que o.O.U.M. fosse o representante na Espanha. De acordo com Frente Rornal comunista de Valência), "o trotskismo não é uma doutrina polític

mas uma organização capitalista oficial, uma quadrilha terrorista fascisue se ocupa com crimes e sabotagem contra o povo". O P .0. U . M. ema organização "trotskista" em conluio com fascistas, e uma parte daQuinta Coluna de Franco". O que se notava desde o início era queenhuma prova ou indicação surgia para apoiar tal acusação, que eraimplesmente proclamada com foros de autoridade. E o ataque seesferia com carga máxima de calúnia pessoal e irresponsabilidadeompleta quanto a quaisquer efeitos que pudesse ter sobre a guerra. Eomparação à tarefa de caluniar o P .0. U. M., muitos autores comunisarecem ter considerado a revelação de segredos militares ao inimigo

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omo coisa menos importante. Em edição de fevereiro do Daily Workeor exemplo, uma autora (Winifred Bates) teve permissão para afirmarue o P.O.U.M. mantinha em seu setor da linha de frente apenas a

metade dos soldados que dizia ter. Isso não era verdade, masresumia-se que a autora o acreditasse. Tanto ela quanto o Daily Workstavam prontos, portanto, a entregar ao inimigo uma das informações

mais importantes que se possa prestar pelas colunas de um jornal. NoNew Republic o Sr. Ralph Bates afirmou que "os soldados do P. O. U .M. estavam jogando futebol com os fascistas na terra de ninguém" em

casião quando, a bem da verdade, os homens do P .O. U . M. sofriamumerosas baixas e muitos de meus amigos pessoais eram feridos e

mortos. Havia também a charge malevolente com ampla circulação, arincípio em Madri e depois em Barcelona, representando o P .0. U . Momo retirando a mascará marcada com foice e martelo e revelando uarantonha estampada com a cruz gamada. Se o Governo não estivesirtualmente sob controle comunista, jamais seria permitida uma coisassim em tempo de guerra. Tratava-se de um golpe deliberado,esfechado contra o moral não só da milícia do P.O.U.M,. mas deuaisquer outros elementos que estivessem próximos a ela, pois não s

em incentivo algum em ouvir que as tropas ao lado, em plena linha deente, são formadas de traidores. A bem da verdade, duvido que a

ifamação atirada sobre os milicianos do P .0. U. M., e vinda daetaguarda, conseguisse abater-lhes o moral. Mas certamente visavasso, e os responsáveis por ela devem ser encarados como gente capae pôr a divergência política acima da unidade antifascista.

A acusação feita ao P .0. U.M. resumia-se no seguinte: que um conjunom alguns milhares de pessoas, quase todas advindas da classeabalhadora, além de numerosos simpatizantes e voluntários

strangeiros, em sua maioria refugiados de países fascistas, e milharee milicianos, não passava de uma vasta organização de espionagem oldo dos fascistas. Isso ia contra o bom senso, e a história passada d.O.U.M. bastava para torná-lo inacreditável. Todos os dirigentes do P

0. U . M. tinham histórias revolucionárias em seu passado, e algunsarticiparam da revolta de 1934, e a maioria fora presa por atividadesocialistas no Governo Lerroux ou na monarquia. Em 1936, seuirigente, Joaquim Maurín, fora um dos deputados que alertara nas

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Cortes a respeito da revolta iminente de Franco. Pouco depois daclosão da guerra fora aprisionado pelos fascistas quando procuravarganizar a resistência na retaguarda de Franco. Ao irromper a revolta .0. U . M. desempenhara papel de relevo na resistência contra a

mesma, e especialmente em Madri muitos de seus membros forammortos nas lutas de rua. Fora uma das primeiras organizações a forma

olunas de milicianos na Catalunha e Madri. Parece quase impossívelxplicar tais atividades como passos dados a soldo fascista. Um partidabalhando pelos fascistas iria, simplesmente, engrossar o outro lado.

ampouco existiu qualquer sinal de atividades favoráveis aos fascistasurante a guerra. Podia-se argumentar - embora eu não concordasseom isso, em exame final - que fazendo pressão por uma política maisevolucionária o P .0. U.M. dividia as forças do Governo e, assim,

judava os fascistas; e acredito que qualquer Governo de tipo reformisstaria justificado em encarar um partido como o P .0. U . M. comoopeço. Mas isso é muito diferente de traição direta. Não há meio paraxplicar como, se o P .0. U . M. realmente fosse uma organização

ascista, sua milícia permanecia leal e fiel. Ali estavam oito ou dez milomens sustentando partes importantes da linha de frente durante asondições intoleráveis do inverno de 1936-37. Muitos deles estiveramas trincheiras por quatro ou cinco meses seguidos, e torna-se difícilxplicar o motivo por que não abandonaram a linha ou se bandearamara o inimigo. Sempre podiam fazê-lo, e o efeito seria decisivo nauerra. Mas continuaram lutando, e foi pouco depois do P .0. U . M. seuprimido como partido político, quando o fato estava ainda bem frescoa memória de todos, que a milícia - ainda não redistribuída pelasnidades do Exército Popular - participou no ataque desastroso à parteriental de Huesca, quando diversos milhares de homens foram morto

m questão de um ou dois dias. Era de se esperar, pelo menos, quexistisse uma confraternização com o inimigo, e um gotejamentoonstante de desertores. Mas, como disse antes, o número de deserçõe mostrava excepcionalmente baixo, Também seria de esperarropaganda pró-fascista, "derrotismo" e assim por diante, Mas não seercebia qualquer sinal dessas coisas, Está claro que deviam haverspiões fascistas e agents provocateurs no P.O.U.M., pois estavamlantados em todos os partidos esquerdistas, mas não se encontram

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ndicações de que ali seu número fosse maior do que em outras partes

verdade que alguns ataques da imprensa comunista afirmavam, demodo bastante relutante, que apenas os dirigentes do P.O.U.M. estava

soldo dos fascistas, e não os membros comuns. Mas isso constituíapenas uma tentativa de separar os mesmos. A natureza das acusaçõ

mplicava em que os membros comuns, milicianos e assim por diante,stavam todos envolvidos na trama, pois tornava-se óbvio que se Nin,Gorkin e os demais estivessem, realmente, a soldo do inimigo, seria m

rovável que isso fosse sabido pelos seguidores, gente em contatoermanente com eles, do que pelos jornalistas situados em Londres,aris e New York, E seja lá como for, quando o P.O.U.M. foi suprimidoolicia secreta controlada pelos comunistas agiu na suposição de que

odos tinham culpa igual, e prendeu todos que estivessem ligados ao P

O. U . M. e que pudesse apanhar, inclusive os feridos, enfermeiras deospital, esposas de membros do P .0. U . M. e, em alguns casos, atérianças.

m 15-16 de junho, finalmente, o P,O.U.M. era suprimido e declaradorganização ilegal. Foi um dos primeiros atos do Governo Negrín, que

omou posse em maio. Quando a Comissão Executiva do P .0. U . M. jstava presa, a imprensa comunista saiu-se com o que pretendia ser a

escoberta de uma enorme trama fascista. Durante algum tempo, emodo o mundo, chamejou com essa história. O Daily Worker de 21 deunho resumia diversos jornais comunistas espanhóis, e afirmava oeguinte:

TROTSKISTAS ESPANHÓIS CONSPIRAM COM FRANCO

Em seguida à prisão de grande número dos principais

trotskistas em Barcelona e outras partes da Espanha...tornaram-se conhecidos, no último fim de semana, os detalhesde uma das mais repelentes peças de espionagem já trazidas apúblico em tempo de guerra, e as mais horríveis revelaçõessobre a traição trotskista surgidas até hoje... Documentos empoder da polícia, juntamente com a plena confissão de mais de200 pessoas presas, vieram provar, etc. etc.

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O que tais revelações "provavam" era que os dirigentes do P .0. U. M,ansmitiam segredos militares ao General Franco por meio do rádio,stavam em contato com Berlim e agiam em colaboração com arganização fascista secreta em Madri. Apresentavam-se, além disso,etalhes sensacionais a respeito de mensagens secretas escritas comnta invisível, um documento misterioso e assinado com a letra "N" (de

Nin), e assim por diante.O resultado final, no entanto, era o seguinte: já transcorreram seis mes

esde tais "revelações", e até ao momento em que escrevo estas linhamaioria dos dirigentes do P.O.U.M. continua presa, mas não foi levadjulgamento, e as acusações de que eles se comunicavam com Francelo rádio, etc., jamais foram formuladas. Se realmente fizessemspionagem, seriam julgados e fuzilados numa semana, como

contecera a tantos espiões fascistas anteriormente. Mas não surgiu unico farrapo de prova, exceto as afirmações sem apoio, apresentadasela imprensa comunista. Quanto às duzentas "plenas confissões" quee existissem, seriam mais do que suficientes para condenar qualquerm, nunca mais se ouviu falar nelas. Constituíam, na verdade, duzentosforços de imaginação de alguém.

mais: a maioria dos membros do Governo espanhol negou acreditar

as acusações levantadas contra o P.O.U.M. Faz pouco tempo que oabinete resolveu, por cinco votos contra dois, libertar os prisioneirosolíticos antifascistas, e os dois votos contrários à medida foram dadoselos ministros comunistas. Em agosto uma delegação internacionalhefiada por James Maxton M. P. foi à Espanha investigar as acusaçõo P. O. U . M. e o desaparecimento de Andrés Nin. Prieto, o Ministro d

Defesa Nacional, Irujo, o Ministro da Justiça, Zugazagoitia, Ministro donterior, Ortega y Gasset, o Procurador-Geral, Prat Garcia, e outros,epudiaram unanimemente a crença de que os dirigentes do P . O. U. ossem culpados de espionagem. Irujo acrescentou que examinara tods documentos, que nenhuma das chamadas provas agüentava examque o documento do qual se afirmara estar assinado por Nin era "sem

alor", isto é, uma falsificação. Prieto achava que os dirigentes do P .0M. eram responsáveis pelas lutas de maio em Barcelona, mas rejeitavidéia de que fossem espiões fascistas.

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O mais grave de tudo - acrescentou na ocasião - é que a prisão dosirigentes do P.O.U.M. não foi coisa decidida pelo Governo, e a políciafetuou por sua própria conta. Os responsáveis por isso não são oshefes da polícia, mas os que os rodeiam, e que estão infiltrados pelosomunistas de acordo com seu hábito.

Citou outros casos de prisões ilegais feitas pela polícia, e também Irujoeclarou que "a polícia se tornara semi-independente" e, na realidade,stava sob controle de elementos comunistas estrangeiros. Prieto deularamente a entender, à delegação visitante, que o Governo não podifender o Partido Comunista enquanto os russos enviassem armas.

Quando outra delegação, chefiada por John McGovern M. P. seguiu paEspanha em dezembro, recebeu respostas bem parecidas àsnteriores e Zugazagoitia, o Ministro do Interior, repetiu o que Prietoissera e o fez em termos ainda mais claros:

Temos recebido ajuda da Rússia e ternos permitido que certos atos sfetuem, embora não nos agradem.

Um bom exemplo da autonomia adquirida pela polícia está em sabermue mesmo com uma ordem assinada pelo Diretor de Prisões e pelo

Ministro da Justiça, McGovern e seus companheiros de delegação não

onseguiram permissão para entrar numa das "prisões secretas"mantidas pelo Partido Comunista em Barcelona.(14)

Acredito que isso baste para esclarecer o assunto. A acusação despionagem contra o P .0. U. M. apoiava-se apenas em artigosublicados pela imprensa comunista e nas atividades da polícia secretontrolada pelos vermelhos. Os dirigentes do P .0. U . M., e centenas o

milhares de seus seguidores, continuam presos, e há seis meses que

mprensa comunista continua pedindo a execução dos "traidores". MasNegrín e os demais mantiveram seu equilíbrio e recusaram-se a

mpreender um massacre geral de "trotskistas". Levando-se em contaressão exercida sobre eles, tal atitude é das mais admiráveis Enquan

sso, diante do que citei acima, torna-se muito difícil acreditar que o P. U. M. realmente fosse uma organização fascista de espionagem, amenos que se acredite também que Maxton, McGovern, Prieto, Irujo,

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ugazagoitia e os demais estivessem, todos eles, a soldo dos fascistas

inalmente, quanto à acusação de que o P .0. U. M. fosse "trotskista",enho a dizer que tal adjetivo está sendo atirado para um e outro ladoom liberdade cada vez maior, sendo utilizado de modo que se mostraxtremamente enganoso e muitas vezes nada mais pretende do que

udir. Vale a pena pararmos um pouco e defini-lo. A palavra "trotskistatilizada para representar três coisas distintas:

1) Aquele que, como Trotski, prega a "revolução mundial", contra "oocialismo num só pais". De modo mais frouxo, designa o extremistaevolucionário.

2) O membro da organização real da qual Trotski é o chefe.

3) Um fascista disfarçado, que se apresenta como revolucionário e quge principalmente pela sabotagem na U. R. S.S. mas que, de um moderal, divide e solapa as forças de esquerda.

No primeiro sentido, o P .0. U . M. provavelmente poderia ser descritoomo trotskista. O mesmo ocorre, no entanto, à I.L.P. inglesa, à S.A.Plemã, aos socialistas de esquerda na França, e assim por diante. Mas.O.U.M. não tinha qualquer ligação com Trotski ou com a organização

otskista ("bolchevista-leninista"). Ao irromper a guerra, os trotskistasstrangeiros que vieram à Espanha (quinze ou vinte ao todo)abalharam inicialmente pelo P. O. U . M., por ser o partido mais próxie sua própria opinião, mas sem tornarem-se membros do mesmo. Ma

arde Trotski ordenara a seus seguidores que atacassem a política do O. U. M., e eles eram expurgados dos cargos partidários, embora alguontinuassem na milícia, Nin, que era o dirigente do P. O. U. M. depoise Maurín ser capturado pelos fascistas, foi em certa ocasião oecretário de Trotski, mas o abandonara alguns anos antes e formara . O. U. M. pela fusão de diversos comunistas da oposição com umartido anterior, o Bloco de Trabalhadores e Camponeses. A ligação d

Nin com Trotski em ocasião anterior foi utilizada pela imprensaomunista para mostrar que o P. O. U. M. era realmente trotskista. Pel

mesma linha de argumentação podia-se demonstrar que o PartidoComunista inglês é uma organização fascista, devido à ligação que já

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xistiu entre o Sr. John Strachey e Sir Oswald Mosley.

No sentido da segunda definição, único que se ajusta de modo exato àalavra, decerto o P. O. U. M. não era trotskista. Mostra-se importante

azer a distinção, pois a maioria dos comunistas aceita com naturalidadue o trotskista no segundo sentido seja, invariavelmente, também

otskista no terceiro, isto é, que toda a organização trotskista não passe uma rede fascista de espionagem. O "trotskismo" só chegou aoonhecimento do público por ocasião dos julgamentos por espionagemeitos na Rússia, e chamar um homem de trotskista corresponde,raticamente, a chamá-lo de assassino, agent provocateur, etc. Ao

mesmo tempo, porém, quem criticar a política comunista de um ponto ista esquerdista poderá ser denunciado como trotskista. Haverá, nessaso, alguém a afirmar que todos quantos professem o extremismo

evolucionário estejam a soldo dos fascistas?Na prática isso acontece, ou deixa de acontecer, conforme aonveniência local. Quando Maxton foi à Espanha com a delegação aue fiz referência antes, Verdad, Frente Roja e outros jornais comunistspanhóis imediatamente o denunciaram como "trotskista", espião da

Gestapo, e assim por diante. Os comunistas ingleses, no entanto,veram o cuidado de não repetir tal acusação. Na imprensa comunista

ritânica Maxton se torna apenas "um inimigo reacionário da classeabalhadora", o que se mostra convenientemente vago. O motivo paraal brandura, é claro, está simplesmente em que diversas lições bemmargas proporcionaram à imprensa comunista inglesa um medo bemadio à lei que pune calúnias. O fato da acusação não ser repetida numaís onde teria de ser provada constitui confissão suficiente de que nãassa de mentira.

ode parecer que examinei as acusações lançadas contra o P .0. U . Mom mais extensão do que seria necessário. Comparado às misérias

mensas de uma guerra civil, esse tipo de briga interna entre partidos,om suas injustiças inevitáveis e acusações falsas, pode parecer coisaivial. Na verdade não é assim. Acredito que calúnias e campanhas

ornalísticas desse tipo, bem como os hábitos mentais por elas indicadossam causar os prejuízos mais fatais à causa antifascista, Quem já

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ouver examinado o assunto, com um só relance que seja, sabe que aática comunista de enfrentar os adversários políticos mediantecusações infundadas não constitui novidade alguma. Hoje em dia aalavra é "trotskifascista", ontem foi "social-fascista". Há somente seisnos que os julgamentos promovidos pelo Estado russo "provaram" qus dirigentes da Segunda Internacional, incluindo entre outros Léon Bl

membros destacados do Partido Trabalhista inglês, estavamreparando uma trama imensa destinada à invasão militar da U. R. S.SAinda assim, em nossos dias, os comunistas franceses continuamatisfeitos por terem Blum por dirigente, e os comunistas ingleses estã

movendo céus e terras para ingressarem no Partido Trabalhista. Duvidue tal tipo de coisa dê resultado, mesmo de um ponto de vista sectári enquanto isso, não pode restar qualquer dúvida quanto ao ódio eissensão que a acusação de "trotski-fascista" está causando. Osomunistas subordinados, por toda a parte, são levados numa caça àsruxas destituída de sentido, à cata de "trotskistas" e partidos do tipo d. O. U. M. repelidos de volta à posição terrivelmente estéril de serem

meros partidos anticomunistas. Já vemos o início de uma divisãoerigosa no movimento mundial da classe trabalhadora. Algumasalúnias a mais contra homens que por toda sua vida foram socialistas

mais algumas maquinações como as acusações lançadas ao P .O. U.

M., e tal divisão poderá tornar-se irreparável. A única esperança está emanter a controvérsia política em plano no qual seja possível aiscussão exaustiva. Entre os comunistas e os que estão ou afirmamstar à esquerda deles existe uma diferença verdadeira. Os comunistaustentam que o fascismo pode ser derrotado pela aliança com seçõesa classe capitalista (a Frente Popular), enquanto seus oponentesfirmam que tal manobra serve apenas para proporcionar ao fascismoovos campos de cultura. A questão tem de ser resolvida e adotar a

ecisão errada poderá levar-nos a séculos inteiros de semi-escravidãoMas enquanto nenhum outro argumento for apresentado, senão o gritoe "trotski-fascismo!" a discussão nem sequer poderá ser iniciada.er-me-ia impossível, por exemplo, debater erros e acertos da luta dearcelona com um membro do Partido Comunista, porque comunistaenhum - isto é, nenhum "bom" comunista - admitiria que eu tenhapresentado um relato fiel dos fatos. Se ele seguisse a "linha" partidári

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elmente, teria de afirmar que estou mentindo ou, quando muito, questou irreparavelmente desorientado e qualquer um que examinasse a

manchetes do Daily Worker, a mais de mil quilômetros do local doscontecimentos conhece melhor o que houve em Barcelona do que eum tais circunstâncias, não pode haver debate, pois não se conseguiritingir o mínimo indispensável de acordo. Que propósito estará sendo

ervido ao dizer-se que homens como Maxton estão a soldo dosascistas? Apenas o objetivo de tornar impossível o debate sério dauestão. É como se, em meio a um torneio de xadrez, um dosompetidores começasse repentinamente a gritar que o outro é culpade felonia

2

Deve ter sido uns três dias após as lutas em Barcelona que regressamlinha de frente. Depois daquela luta - e de modo mais particular apósoca de impropérios nos jornais - tornara-se difícil pensar naquela gueo mesmo modo ingenuamente idealista de antes. Acredito que nãoxista quem tenha passado mais de algumas semanas na Espanha secar desiludido, em grau maior ou menor. Meu espírito voltava aoorrespondente de jornal com quem estivera no meu primeiro dia dearcelona, e que me dissera: "Esta guerra é uma negociata igualzinha

ualquer outra", A observação me chocara profundamente, e naquelacasião (dezembro) não acredito que fosse verdadeira, e tampouco o emesmo agora, em maio, mas tornava-se mais e mais verídica a cada dO fato é que toda guerra sofre um tipo de deterioração gradativa a cadmês, pois coisas como a liberdade individual e a imprensa verazimplesmente não são compatíveis com a eficiência militar.

odia-se agora começar a calcular o que deveria acontecer. Era fácil v

ue o Governo de Caballero seria derrubado e substituído por um outrGoverno mais direitista, com influência comunista mais acentuada (o q

correu uma ou duas semanas depois), que partiria à destruição dooder dos sindicatos, de uma vez por todas. E em seguida, quandoranco estivesse derrotado - e pondo-se de lado os problemas imensoriados pela reorganização da Espanha - a perspectiva não era das

melhores. Quanto às afirmações dos jornais, de que aquela era uma

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guerra pela democracia", eram pura cortina de fumaça. Ninguém comucidez supunha haver qualquer esperança para a democracia, mesmoomo a entendemos na Inglaterra ou França, num pais tão dividido esgotado quanto estaria a Espanha ao encerramento do conflito. Teriae ser uma ditadura, tornando-se claro que a possibilidade de umaitadura pela classe trabalhadora já fora ultrapassada. Isso significava

ue o movimento geral seria na direção de algum tipo de fascismo.ascismo batizado, naturalmente, com nome mais bem educado - porstarmos na Espanha - e mais humano e menos eficiente do que asariedades alemã ou italiana. As únicas alternativas eram uma ditadura

nfinitamente pior, de Franco, ou (o que sempre era possível) que auerra terminaria com a Espanha dividida, quer por fronteiraserdadeiras, ou em zonas econômicas.

Qualquer que fosse a solução, a perspectiva mostrava-se deprimente,mas daí não se seguia que o Governo deixasse de merecer defesaontra o fascismo mais descarado e desenvolvido de Franco e Hitler.

Quaisquer que fossem os defeitos do Governo pós-guerra, o regime deranco certamente seria pior. Para os trabalhadores - o proletariadorbano - poderia haver pouquíssima diferença em quem vencesse, maEspanha é país primordialmente agrícola e os camponeses quase co

erteza seriam beneficiados pela vitória do Governo. Pelo menoslgumas das terras tomadas continuariam em seu poder, caso em queaveria também uma distribuição no território que fora de Franco, e aervidão virtual que existira em certas partes da Espanha não deveria estaurada. O Governo estando com o controle ao final da guerra seriae qualquer modo, anticlerical e antifeudal. Manteria a Igreja em seu

ugar, pelo menos por algum tempo, modernizaria o pais, construindostradas, por exemplo, e promovendo a educação e saúde pública. Em

erta medida, isso fora levado a efeito até mesmo durante a guerra.ranco, por outro lado, na extensão em que não fosse apenas o fantoca Itália e Alemanha, encontrava-se atado aos grandes latifundiários

eudais e a favor de uma rígida reação clérico-militar. A Frente Popularoderia ser uma trapaça, mas Franco era um anacronismo. Apenas os

milionários ou espíritos românticos podiam desejar sua vitória.

Havia, além disso, a questão do prestígio internacional do fascismo, qu

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or um ou dois anos anteriores estivera a perseguir-me como umesadelo. Desde 1930 os fascistas tinham conquistado todas as vitóriaera hora de levarem uma surra, fosse lá de quem fosse. Seudéssemos atirar Franco e seus mercenários ao mar, isso talvezausasse uma melhoria imensa na situação mundial, ainda que a própspanha emergisse com uma ditadura opressora e todos os seus

melhores homens na prisão. Bastava aquele motivo para justificar oanharmos a guerra.

ra assim que eu via as coisas naquela ocasião. Posso dizer que tenhgora muito mais respeito ao Governo Negrín do que quando o mesmoubiu ao poder. Ele sustentou a luta difícil com coragem esplêndida, eemonstrou maior tolerância política do que todos esperavam. Mas ainreio que - se a Espanha não se dividir, com conseqüências

mprevisíveis - a tendência do Governo após a guerra deverá serascista. Mais uma vez apresento essa opinião, e corro o risco de que empo faça comigo o que tem feito com a maioria dos profetas.

Mal chegáramos à linha de frente e soubemos que Bob Smillie, já deolta para a Inglaterra, fora detido na fronteira, levado a Valência etirado numa prisão. Smillie estivera na Espanha desde outubro eabalhara diversos meses na direção do P. O. U . M., tendo então

ngressado na milícia ao chegarem os demais membros da I. L. P., sobntendimento de que serviria três meses no front antes de regressar ànglaterra para participar numa tournêe propagandística. Levou algumempo para descobrirmos o motivo de sua prisão. Estava incomunicávee modo que nem os advogados podiam vê-lo. Na Espanha não existeelo menos na prática - a instituição do habeas-corpus, e pode-se mofa prisão meses seguidos sem ao menos saber qual a acusação, e mu

menos ser julgado. Finalmente ficamos sabendo, por intermédio de umrisioneiro libertado, que Smillie fora preso por "carregar armas". Asarmas", como eu sabia, eram duas granadas de mão, do tipo primitivotilizado no inicio da guerra, e que ele levava para a Inglaterra a fim de

mostrá-la em suas palestras e conferências, juntamente com osagmentos de granadas e outras lembranças. As cargas explosivas e spoletas foram retiradas dos petardos, que eram apenas cilindros deço inteiramente inofensivos. Tornava-se óbvio que isso constituía

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penas um pretexto, e que ele fora preso devido à sua conhecida ligaçom o P. O. U. M. As lutas em Barcelona chegavam a seu fim, e naque

momento as autoridades mostravam-se extremamente aflitas por nãoeixar que ninguém saísse da Espanha, caso estivesse em condições ontradizer a versão oficial dada às mesmas. Como resultado, qualquem podia ser preso na fronteira por motivos mais ou menos frívolos. É

em possível que a intenção, inicialmente, fosse apenas deter Smillie pns dias, mas o problema é que na Espanha, depois de estar-se presom geral fica-se preso, com ou sem julgamento.

Ainda estávamos em Huesca, mas mandaram-nos mais para a direita,m frente ao reduto fascista que capturamos temporariamente algumaemanas antes. Eu agia agora como teniente - o que corresponde aegundo-tenente no Exército inglês - e estava no comando de uns trint

omens, ingleses e espanhóis. Indicaram meu nome para uma comissegular, e não se sabia se haveria aprovação. Anteriormente os oficiaismilicianos negaram-se a receber comissões regulares, o queepresentava mais dinheiro e entrava em choque com as idéiasgualitárias da milícia, mas eram agora obrigados a aceitar. Benjamin jávera o nome publicado oficialmente como capitão, e Kopp estava aaminho de tornar-se major. O Governo, naturalmente, não podiaispensar os oficiais da milícia, mas não confirmava qualquer um delesm patente superior à de major, sendo de presumir que o fazia paraeservar os comandos superiores para oficiais do Exército regular e osovos oficiais da Escola de Guerra. Como resultado, em nossa divisão

Vigésima-Nona) e com certeza em muitas outras, tinha a situaçãouriosa na qual o comandante-de-divisão, os de brigadas e os deatalhão eram, todos eles, majores.

Não havia grandes acontecimentos no front. A batalha ao redor dastrada para Jaca terminara e não recomeçou senão em meados de

unho. Em nossa posição o problema maior eram os franco-atiradores.As trincheiras fascistas estavam a mais de cento e cinqüenta metros d

istância, mas encontravam-se em terreno mais alto e em dois ladosossos, com nossa linha formando um ângulo reto enfiado na deles. Aonta dessa saliência era lugar perigoso, e sempre houvera certoúmero de baixas ali, causadas por atiradores inimigos. De quando em

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ez os fascistas nos atiravam uma granada de fuzil, ou arma semelhanla fazia um estrondo medonho - e amedrontador, pois não dava parauvi-la ainda a caminho e a tempo de nos protegermos - mas nãoonstituía grande perigo, pois o buraco que abria no chão não era maioo que uma banheira. As noites mostravam-se agradavelmente mornas dias muito quentes, os mosquitos começavam a tornar-se uma

molação e a despeito das roupas limpas que trouxemos de Barcelonacamos quase imediatamente tomados pelos piolhos. Lá nos pomaresbandonados, na terra de ninguém, as cerejas embranqueciam nasrvores. Houve chuva torrencial por dois dias, os abrigos ficaram

nundados, o parapeito abaixou um palmo. Depois disso vieram maisias de cavar a argila pegajosa com aquelas desajeitadas pásspanholas, que não têm cabo e se dobram como colheres de estanho

rometeram-nos um morteiro de trincheira para a companhia, e eu oguardava com grande animação. A noite fazíamos as patrulhas deostume - mais perigosas do que antes, pois as trincheiras fascistaschavam-se mais bem guarnecidas e eles estavam mais alerta, tendospalhado latas vazias pela parte externa do arame farpado, costumanbrir fogo com as metralhadoras ao ouvirem alguma delas "cantar".

Durante o dia abríamos fogo lá da terra de ninguém. Rastejando uns cmetros podíamos chegar a uma vala, oculta pela grama alta, que ficav

cima de uma lacuna no parapeito fascista. Preparamos um apoio parauzil na vala, e quem esperasse tempo suficiente veria uma figuranvergando uniforme cáqui passar apressadamente por aquele espaço

iz diversos disparos em tais condições, e não sei se acertei alguém,mas é muito improvável, pois minha pontaria é ruim com fuzil. A coisa,

ntanto, mostrava-se bastante divertida, os fascistas não sabiam dende vinham os tiros, e eu achava que mais cedo ou mais tardepanharia um deles. O diabo é que aconteceu o contrário - um deles éue me apanhou. Eu estivera uns dez dias na linha de frente quando isconteceu. O que se sente quando atingido por bala é muito

nteressante, e acredito que valha a pena pormenorizar aqui.

u estava no canto do parapeito, às cinco horas da manhã. Era semprma hora perigosa, pois tínhamos o sol surgindo às nossas costas, e

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uem pusesse a cabeça acima do parapeito ficava claramente delineaontra o céu. Conversava com as sentinelas, antes de trocar a guarda

De repente, quando dizia alguma coisa aos mesmos, senti... É muitoifícil descrever o que senti, embora relembre tudo com a maior clarez

or assim dizer, era a sensação de estar no meio de uma explosão.

areceu-me que houvera um estouro e um relâmpago de luz ofuscanteo meu redor, e senti um choque tremendo - dor nenhuma, apenas umhoque violento, como o que se recebe de um fio elétrico. E sobreveioma sensação de fraqueza absoluta, de ter sido batido e reduzido aada. Os sacos de areia à minha frente recuaram para distância enorm

Acredito que se sinta coisa bem parecida caso um raio nos atinja. Sabnstantaneamente que fora atingido, mas por causa do que me parece

estampido e relâmpago, achei que fora um fuzil por perto que dispara

cidentalmente e me atingira. Tudo isso ocorreu em espaço de tempomuito inferior a um segundo. No momento seguinte meus joelhos cediaeu caía, batendo com a cabeça no chão com muita força e isso, para

meu alívio, não doeu. Encontrava-me tomado por uma sensaçãombotada e estonteada, a consciência de estar seriamente ferido, masor nenhuma, no sentido comum.

A sentinela norte-americana com quem estivera falando adiantou-se pa

mim.Puxa! Você está ferido?

ormou-se um grupo de pessoas ao meu redor, bem como a agitaçãoomum a essas ocasiões.

Levantem o homem! Onde está ferido? Abram a camisa dele! Etc. etc

O norte-americano pediu uma faca para abrir minha camisa. Eu sabia tma no bolso e tentei apanhá-la, mas descobri que o braço direito estaem movimentos. Não sentindo dor alguma, fui tomado por certaatisfação. Aquilo certamente ia agradar minha mulher, estavaensando. Ela sempre quisera que eu fosse ferido, o que impediria

minha morte quando chegasse a grande batalha. Somente agora é queme ocorria perguntar onde fora atingido, e se era coisa grave; eu não

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entia coisa alguma, mas estava cônscio de que a bala me pegara emlgum lugar na parte dianteira do corpo. Quando tentei falar, descobriue perdera a voz e só conseguia emitir um guincho dos mais débeis,

mas na segunda tentativa tive êxito em perguntar onde estava ferido. Narganta, disseram. Harry Webb, nosso padioleiro, trouxera uma ataduuma garrafinha de álcool das que nos davam para providenciar

rimeiros socorros. Enquanto me suspendiam, saiu bastante sangue pminha boca, e atrás de mim um espanhol disse que a bala atravessarameu pescoço de um lado a outro. Senti o álcool, que em ocasião comueria ardido como o diabo, mas que agora embebia o ferimento comgradável frieza.

useram-me novamente no chão, enquanto alguém apanhava umaadiola. Assim que soube que a bala atravessara o pescoço de fora a

ora, achei naturalíssimo que ia morrer. Jamais ouvi falar em homem onimal que recebesse uma bala pelo meio do pescoço e conseguisseobreviver. O sangue escorria pelo canto da boca, e cá comigo penseiLá se foi a artéria!" Fiquei a imaginar quanto tempo alguém dura quancarótida é cortada; não deviam ser muitos minutos. Tudo estava muit

onfuso. Devem ter transcorrido uns dois minutos nos quais pensei estmorto. E também isso foi muito interessante, quer dizer, é interessanteaber quais seriam os pensamentos numa hora daquelas. Meu primeirensamento, coisa bastante convencional, foi para minha mulher. Oegundo foi o rancor violento por ter de deixar este mundo que, diga-se

á o que disserem, para mim é muito agradável. Tive tempo de sentir isom muita vividez. O caráter fortuito e estúpido da coisa enchia-me deúria. A falta de sentido naquilo tudo! Ser liquidado, nem mesmo ematalha, mas naquele canto sujo de trincheira, por causa do descuido dm instante! Pensava, também, no homem que me acertara - se era

spanhol ou estrangeiro, sua aparência, se sabia que me acertara, essim por diante. Não conseguia sentir qualquer raiva dele. Achava quendo ele um fascista, eu teria dado cabo de seu canastro, se pudesse

mas que se ele fosse aprisionado e trazido ali, naquele instante, euimplesmente lhe teria dado parabéns pelo belo tiro. Pode ser, porém,ue quem realmente esteja morrendo tenha pensamentos muitoiferentes.

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Mal me puseram na padiola e meu braço paralisado voltou à vida eomeçou a doer miseravelmente. Naquela ocasião imaginei que ouebrara quando caíra ao chão, mas a dor trouxe reconforto, pois euabia que as sensações não se fazem mais agudas quando alguém es

morrendo. Comecei a achar-me mais normal e a ter pena dos quatroobres-diabos que suavam e escorregavam, carregando a padiola nos

mbros. Era uma caminhada de dois quilômetros até à ambulância, e ustirão pavoroso, passando por trilhas cheias de buracos escorregadias. Eu sabia como isso era duro, tendo ajudado a carregarm ferido na véspera ou antevéspera. As folhas dos choupos prateadoue, em alguns pontos beiravam nossas trincheiras, roçavam em meuosto, e achei bom estar vivo num mundo onde cresciam chouposrateados. Por todo aquele tempo, no entanto, a dor no braço era

nfernal, fazendo-me praguejar e depois tentar parar com isso, poisempre que o fazia o sangue borbulhava e caía pela boca.

O médico pôs mais ataduras no ferimento, deu-me uma dose de morfinmandou que me levassem para Sietamo. Os hospitais em Sietamoram barracões de madeira, construídos às pressas, onde os feridoscavam, via de regra, apenas algumas horas antes de serem mandadoara Barbastro ou Lerida. Eu me sentia banzeiro por causa da morfina

mas a dor continuava acentuada, achava-me praticamente incapaz deazer qualquer movimento, e engolia sangue todo o tempo. Era bempico de hospitais espanhóis o fato de que, enquanto estive nessestado, a enfermeira tentasse enfiar a refeição regulamentar do hospitm enorme prato de sopa, ovos, ensopado gorduroso e assim por dianpor minha garganta abaixo, e parecesse surpresa quando me recuse

ngerir aquilo. Pedi um cigarro, mas estávamos atravessando um doseríodos de falta absoluta do artigo, e não se achou um só em todo o

ugar. Não tardou para que dois camaradas, tendo obtido licença paraeixarem a linha de frente por algumas horas, surgissem ao lado deminha cama.

Olá! Está vivo, não é? Ótimo! Queremos seu relógio, seu revólver e santerna elétrica. E mais a faca, se tiver.

aíram dali com todos os meus pertences portáteis. Sempre acontecia

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sso quando alguém era ferido - tudo quanto possuía era logo dividido,ada mais justo, pois os revólveres, relógios e objetos assim constituíareciosidades na linha de frente, e se percorressem a linha comertences de um ferido certamente seriam roubados em algum ponto.

A noite já se acumulara uma quantidade suficiente de doentes e ferido

ara lotar algumas ambulâncias, e eles nos mandaram para BarbastroQue viagem! Costumava-se dizer que naquela guerra a coisa ia bemara quem fosse ferido nas extremidades, mas sempre morria quemstivesse ferido no abdômen. Agora compreendo por quê. Ninguém quudesse sangrar internamente conseguiria sobreviver àquela distânciae solavancos sobre estradas que foram reduzidas a pedaços poraminhões pesados e jamais consertadas desde o início da guerra.

Cataprus, cataprás upa! Aquilo me fez voltar à infância e a uma coisa

ssustadora, chamada o Wiggle-woggle ("sacode-balança") na Feira didade. Esqueceram-se de nos amarrar às padiolas. A mim restava foruficiente no braço esquerdo para segurar-me no leito, mas umobre-diabo foi atirado ao chão e sofreu agonias que só Deus sabe. Uutro, capaz de andar e que estivera sentado no canto da ambulância,omitou. O hospital em Barbastro estava muito cheio, as camas postasão perto umas das outras que quase se encostavam. Na manhãeguinte eles puseram bom número dos pacientes no trem-hospital, eos enviaram para Lerida.

stive cinco ou seis dias em Lerida. Lá ficamos num hospital grande,om doentes, feridos e pacientes civis comuns mais ou menos juntos.

Alguns dos internados em minha enfermaria tinham ferimentos horríveNa cama a meu lado encontrava-se um rapaz de cabelos pretos queofria de alguma doença e recebia remédio que tornavam sua urinaerde-esmeralda. Seu urinol era uma das coisas a serem vistas nanfermaria. Um comunista holandês e que falava inglês, sabedor de quavia um cidadão britânico no hospital, veio fazer camaradagem comigtrouxe jornais da Inglaterra. Ficara terrivelmente ferido na luta deutubro, e de algum modo conseguira estabelecer-se no hospital deerida, tendo-se casado com uma das enfermeiras. Graças ao seu

erimento, uma das pernas murchara até tornar-se tão grossa quantomeu braço. Dois milicianos em licença, que eu ficara conhecendo na

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rimeira semana passada na linha de frente, vieram visitar um amigoerido e me reconheceram, Eram rapazes com seus dezoito anos dedade. Ficaram ao lado de minha cama, desajeitados, pensando no quodiam dizer, e depois, para demonstrar seu pesar pelo meu ferimentoraram dos bolsos todo o fumo que tinham, deram-no a mim e sairam ressas, para que eu não lhes pudesse devolver o presente. Foi atitud

picamente espanhola. Mais tarde eu verificaria que não era possívelchar fumo em parte alguma da cidade, e que eles me deram toda raçe uma semana.

Depois de alguns dias consegui levantar-me e andar por ali, com o braa tipóia. Doía muito mais quando o baixava. Por algum tempo senti

ambém muita dor interna devido ao machucado resultante da queda, minha voz desaparecera quase por completo, mas não houve um só

nstante de dor causado pelo ferimento da bala, propriamente dito.arece ser o comum em casos assim. O choque tremendo que a balaausa impede a sensação local, e um fragmento de granada ou bombaue é irregular e em geral atinge a pessoa com menos força,rovavelmente doeria como o diabo, Havia um aprazível jardim no

erreno do hospital, e nele um tanque com peixes dourados e algunsutros cinzento-escuros - alburnetes, talvez. Eu costumava ficar alientado a olhá-los, horas seguidas. O modo de fazer as coisas emerida proporcionava-me uma visão do sistema hospitalar na frente de

Aragón, e não sei se acontecia o mesmo nas outras frentes de luta. Osospitais eram muito bons. Os médicos mostravam-se competentes, eão parecia haver falta de remédios e equipamento. Mas havia duas

alhas graves devido às quais não tenho dúvidas que centenas oumilhares de homens morreram, quando poderiam ter sido salvos,

Uma era o fato de que todos os hospitais próximos à linha de frente ersados mais ou menos como pontos de triagem das baixas. O resultadra que não se recebia tratamento ali, a menos quem estivesse feridoemais para ser transportado. Em teoria, a maioria dos feridos eranviada diretamente a Barcelona ou Tarragona, mas devido à falta deansporte levava-se muitas vezes uma semana ou dez dias para cheg

á. Os feridos eram mantidos na espera por volta de Sietamo, BarbastrMonzon, Lerida e outros lugares, e enquanto isso não recebiam qualqu

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atamento, exceto uma limpeza ocasional de ataduras, e às vezes nemsso. Homens com ferimentos horríveis causados por granadas, ossosartidos e assim por diante, eram envoltos numa espécie de couraça

eita de ataduras e gesso, sobre a qual escreviam uma descrição doerimento, e via de regra essa couraça não era removida até que oaciente chegasse a Barcelona ou Tarragona, dez dias depois. Era

uase impossível ter o ferimento examinado no mesmo dia de chegadaos poucos médicos existentes não podiam dar conta da tarefa, eimplesmente passavam às pressas pelos leitos dos pacientes,izendo-lhes:

Sim, sim, eles o tratarão em Barcelona.

empre circulavam boatos de que o trem-hospital partiria para Barcelo

mañana. A outra falha era a falta de enfermeiras competentes. Pareciaão haver qualquer número delas na Espanha, talvez porque antes dauerra esse serviço era desempenhado principalmente por irmãs dearidade e freiras. Não tenho queixas contra as enfermeiras espanholaue sempre me trataram com a maior bondade, mas não resta dúvida ue eram tremendamente ignorantes. Todas sabiam tomar a

emperatura, outram saíam-se muito bem na colocação de ataduras, mra quase só isso. O resultado era que os homens feridos demais para

e defenderem viam-se muitas vezes vergonhosamente negligenciadoAs enfermeiras deixavam um homem ficar constipado por toda umaemana, e raramente lavavam os que se encontravam fracos demaisara fazê-lo sozinhos. Lembro-me de um pobre coitado com braçostraçalhado a contar que passara três semanas sem que lhe lavassemrosto. Até as camas ficavam sem arrumar por dias seguidos. A comidm todos os hopistais, era muito boa - boa demais, até. Mais ainda naspanha do que em qualquer outro pais a tradição parece ser a dempanturrar os doentes com comida pesada. Em Lerida as refeiçõesram uma coisa louca. O desjejum, por volta das seis da manhã,ompunha-se de sopa, omelete, ensopado, pão, vinho branco e café, elmoço era maior ainda - e isso numa época quando a maior parte daopulação civil se encontrava seriamente desnutrida. Os espanhóisarecem não conhecer uma dieta leve - e vinham sempre os mesmosratos gordurosos, com tudo empapado em azeite.

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Certa manhã foi anunciado que os homens em minha enfermariaeveriam ser mandados a Barcelona naquele dia. Consegui enviar um

elegrama à minha mulher, dizendo-lhe que estava a caminho, e logoles nos levaram de ônibus, tocando para a estação. Foi somenteuando o trem já partia que o ordenança do hospital, viajando em nossompanhia, disse de modo casual que não íamos para Barcelona, masarragona. Acho que o maquinista mudara de idéia. "Bem espanhol!"ensei. Mas também foi bem espanhol que eles concordassem em retetrem enquanto eu enviava outro telegrama, e mais espanhol ainda o

ato de que o mesmo jamais chegou à destinatária.

useram-nos em carros de terceira classe, com bancos de madeira, emuitos dos homens estavam bastante feridos e deixaram o leito pela

rimeira vez aquela manhã. Não tardou que, com o calor e osolavancos, metade estivesse em estado de colapso e diversosomitassem no chão. O ordenança do hospital andava em meio aosorpos espalhados por toda a parte, levando uma grande bolsa de águeita com pele de cabra, que espirrava nesta ou naquela boca. Era umgua repulsiva, e ainda me lembro de seu paladar. Chegamos aarragona quando o sol se punha. O leito ferroviário percorre a costa aouca distância do mar, e enquanto nosso comboio chegava à estação

artia de lá um trem de tropas, cheio de homens da Coluna Internacionavendo um bolo de pessoas na plataforma a lhes acenar. Era um tremmuito comprido, inteiramente lotado de homens, com canhões nas

ôndolas e mais homens em torno às peças de artilharia. Lembro-meom especial clareza daquele espetáculo que era o trem passando à lumarelada do entardecer, janelas após janelas repletas de rostos

morenos e sorridentes, os longos canos dos canhões, cachecóisscarlates a tremular ao vento, tudo isso a deslizar perto de nós contra

m pano de fundo azul-turquesa que era o mar.Extranjeros - disse alguém. - São italianos.

Não podia haver dúvida de que fossem italianos, pois nenhum outro pooderia ter-se agrupado de modo tão pitoresco, ou respondido aoscenos da multidão com tanta graça - graça que não era menor pelo fae metade deles estar bebendo diretamente nas garrafas de vinho

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oltadas para cima. Mais tarde ficamos sabendo que eram alguns dosoldados que obtiveram a grande vitória de Guadalajara em março.stiveram em licença e viam-se transferidos agora para a frente de

Aragón. Receio que a maioria tenha morrido em Huesca, poucasemanas depois. Em nosso trem, aqueles que tinham forças para issouseram-se às janelas para saudar os italianos. Uma muleta era

acudida pela janela, em saudação, e braços enfaixados faziam oumprimento comunista. Era como um quadro alegórico da guerra, umomposição ferroviária cheia de homens orgulhosamente a caminho daente de luta, os homens feridos e aleijados a chegar lentamente, e po

odo esse tempo os canhões nas gôndolas abertas, fazendo os coraçõalpitar como sempre fazem, e revivendo aquele sentimento perniciosoo qual é tão difícil livrar-se, de que a guerra é mesmo uma coisaloriosa, afinal de contas.

O hospital em Tarragona era bem grande, e estava cheio de feridosindos de todas as frentes. Que ferimentos podia-se ver ali! Empregavli um certo modo de tratar ferimentos que suponho estivesse de acordom a prática médica mais adiantada, mas particularmente horrível deer. Consistia em deixar o ferimento inteiramente aberto e sem atadura

mas protegido das moscas por fina rede de tecido, esticada sobrerames. Pela rede dava para ver o ferimento entreaberto e semifechad

Havia um homem ferido no rosto e garganta, que tivera a cabeça postaentro de uma espécie de capacete esférico, feito do mesmo tecido; suoca estava fechada, e ele respirava por meio de um tubo pequeno,osto entre os lábios. O pobre-diabo parecia muito sozinho, andando dm para outro lado e olhando-nos por aquela gaiola de rede, incapaz d

alar. Estive três ou quatro dias em Tarragona. Recuperava as forças eerto dia, movendo-me devagar, consegui descer até à praia. Era

stranho a vida litorânea prosseguindo quase como de costume, osafés elegantes ao longo do passeio e a roliça burguesia do lugar aomar banho de mar e sol em cadeiras preguiçosas, como se nãoxistisse guerra alguma naquela parte do mundo. Ainda assim, vi umanhista afogar-se, proeza que julguei impossível naquele mar raso euente.

Oito ou nove dias depois de deixar a linha de frente é que, afinal, meu

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erimento foi examinado. Na cirurgia onde os casos recém-chegadosram vistos, médicos com tesouras enormes abriam as couraças deesso onde foram enfiados os homens com costelas partidas e outrosssos quebrados, nas estações de primeiros cuidados situadas perto dnha de combate, e pelo buraco destinado ao pescoço, naquelasarapaças grandes e mal feitas, como que se estendiam os rostos aflit

ujos e com a barba de toda uma semana. O médico, homem bempessoado e gestos rápidos, fez-me sentar numa cadeira, apanhou aonta de minha língua com um pedaço de gaze, puxou-a até ondeossível, enfiou um espelhinho de dentista pela minha garganta erdenou que eu dissesse "Eh!". Depois de repetir o processo até que

minha língua sangrasse e os olhos marejassem com lágrimas, declaroue uma corda vocal estava paralisada.

E quando vou recuperar a voz? - indaguei.Sua voz? Ora, jamais ela voltará! - respondeu com tom dos maisnimados.

nganou-se, no entanto, como verifiquei mais tarde. Por uns dois mesão consegui falar mais alto do que num murmúrio, mas depois disso

minha voz se tornou normal de modo bastante repentino, tendo havido

ma "compensação" por parte da outra corda vocal. A dor em meu brara devida ao fato de que a bala perfurara uma porção de nervos emminha nuca. Vinha em pontadas, como a nevralgia, e continuou a

presentar-se por mais ou menos um mês, especialmente à noite, demodo que eu não conseguia dormir muito. Os dedos da mão direitaambém se encontravam semiparalisados e ainda agora, cinco mesespós, meu indicador continua entorpecido, efeito bem curioso para um

erimento no pescoço.

De certo modo meu ferimento era curiosidade e diversos médicos oxaminaram, estalando bastante as línguas e dizendo "Que suerte! Quuerte!" Um deles, com ar de autoridade, declarou-me que a bala deixae cortar a artéria por "perto de um milímetro". Não sei como pôde ver

sso. Nenhum dos que conheci nessa ocasião - médicos, enfermeiros,racticantes ou colegas pacientes - deixou de me asseverar que umomem atingido por bala que lhe atravesse o pescoço, sobrevive, é a

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mais afortunada das criaturas. E eu não conseguia deixar de achar queeria sorte ainda maior o não ser atingido.

3

m Barcelona, por todas aquelas últimas semanas que ali passei,einava no ar a atmosfera particularmente má de suspeita, medo,ncerteza e ódio velado. As lutas de maio deixaram marcas indeléveis.Ao cair o Governo Caballero, os comunistas entraram definitivamente

oder, a incumbência de manter a ordem interna fora entregue a seusministros, e ninguém duvidava de que os mesmos destruiriam seus riv

olíticos assim que dispusessem de alguma oportunidade para isso.Naquele interregno nada acontecia, eu próprio não formara qualquer

uadro mental do que ia suceder, mas mesmo assim encontrava o

entimento constante e vago de perigo, a consciência de que algo ruimos rondava. Por menos que se estivesse realmente conspirando, atmosfera nos obrigava a sentir que éramos conspiradores. O tempo eouco para manter conversas sussurradas nos cantos dos cafés, ou pa

maginar se o sujeito sentado à mesa do lado não era um espião daolícia.

Graças à censura da imprensa, circulavam boatos sinistros de todos os

pos. Um deles afirmava que o Governo Negrin-Prieto planejava encerguerra mediante acordo com os fascistas. Naquela ocasião inclinei-mdar ouvido, pois o inimigo aproximava-se de Bilbao e o Governo, de

modo bem claro, nada fazia para salvar aquela cidade. Em Barcelona andeiras bascas esvoaçavam por toda a parte, moças sacudiam as

atas de coleta nos cafés, e ouvíamos as irradiações costumeiras aespeito dos "defensores heróicos", mas os bascos não recebiamualquer ajuda verdadeira. Era tentador acreditar que o Governo

stivesse jogando com pau de dois bicos, e mais tarde os fatosemonstraram que eu me enganara redondamente nesse particular, marece provável que Bilbao seria salva, se alguém demonstrasse umouco mais de energia. Uma ofensiva na frente de Aragón, até mesmoem êxito, teria forçado Franco a desviar parte de seu exército, e o fatoue o Governo não iniciou qualquer ação ofensiva senão quando já era

arde demais - na verdade somente o fez quando Bilbao caiu. A C.N.T

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istribuía grande número de folhetos onde afirmava: "Estejam emuarda!" e insinuava que um certo partido (significando os comunistas)stava tramando um golpe de estado. Prevalecia, também, o medoeneralizado de que invadissem a Catalunha. Em época anterior, quanegressamos ao front, eu vira as defesas poderosas que se construía p

muitos quilômetros de extensão, por trás da linha de combate, e em

arcelona cavavam novos abrigos contra bombas. Eram freqüentes osustos causados pela ameaça de incursões aéreas ou navais inimigasa maioria das vezes tratava-se de alarme falso, mas sempre que asereias gemiam as luzes se apagavam em toda a cidade, por horaseguidas, e os mais tímidos corriam aos porões. Os espiões da políciancontravam-se por toda a parte, e as cadeias continuavam abarrotade prisioneiros feitos nas lutas de maio, enquanto outros elementos -empre anarquistas e adeptos do P. O. U. M., naturalmente -esapareciam das ruas para as prisões, aos pares ou um por um. Aténde se sabia, nenhum deles era julgado ou mesmo acusado - ainda qe coisa tão definida quanto o "trotskismo". O cidadão era simplesmentirado à prisão e mantido lá, geralmente incomunicável. Bob Smillieontinuava preso em Valência, e nada pudemos descobrir a seu respexceto que tanto o representante local da I. L. P. quanto o advogadoontratado para o caso não conseguiram permissão para vê-lo. Os

strangeiros da Comuna Internacional e demais milícias davam com oostados nas cadeias, em número cada vez maior. Via de regra eramresos como desertores, sendo típico da situação geral o fato de queinguém soubesse com certeza se o miliciano era voluntário ou soldadegular. Alguns meses antes todos que ingressavam na milícia sabiamer voluntários, e que poderiam, se assim o desejassem, receber osocumentos de baixa a qualquer época na qual entrassem em licença.á agora parecia que o Governo mudara de idéia, o miliciano era solda

egular e seria considerado desertor caso quisesse ir embora. Atémesmo sobre esse ponto, no entanto, não havia grande certeza. Emlgumas partes do front as autoridades continuavam dando baixa aosomens. Na fronteira, essas baixas eram às vezes reconhecidas, deutras não, caso em que o elemento via-se imediatamente atirado naadeia. Mais tarde o número de "desertores" estrangeiros atingiuentenas, mas a maioria foi repatriada depois de ser feito algum barulh

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m seus países de origem.

urmas de Guardas de Assalto, bem armados, percorriam as ruas, osGuardas Civis continuavam retendo os cafés e outros edifícios em

ontos estratégicos, e muitos dos edifícios do P .S. U . C.ncontravam-se defendidos por sacos de areia e barricadas. Em

iversos pontos da cidade havia postos guarnecidos por Guardas Civisu Carabineiros, que detinham os transeuntes e exigiam-lhes osocumentos. Todos me preveniram para que não mostrasse o cartão d

miliciano do P .0. U. M., mas apenas o passaporte e bilhete de hospitaAté o fato de ter servido na milícia do P. O. U. M. mostrava-seagamente perigoso. Seus milicianos que foram feridos ou estavam decença eram castigados de modo mesquinho - tornavam-lhes difícil, poxemplo, receberem seu pagamento. La Batalla continuava saindo, ma

censura quase a eliminara de vez e Sotidaridad, bem como os outrosornais anarquistas, também se achavam sob forte censura. Surgira noeterminação, no sentido de que a matéria censurada nos jornais nãoevia ser apresentada como espaço em branco nos mesmos, masreenchida com outra, de modo que muitas vezes era impossível dizere alguma coisa fora eliminada.

A escassez de gêneros alimentícios, que oscilara por toda a guerra,

ncontrava-se num de seus períodos ruins. Faltava o pão e asariedades mais baratas do artigo eram adulteradas com arroz; o pãoecebido pelos soldados nos quartéis era uma coisa horrível, parecend

massa de vidraceiro. O leite e o açúcar mostravam-se muito escassos fumo quase inexistente, a não ser pelos cigarros contrabandeados e

aros. Era aguda a falta de azeite, que os espanhóis usam para diversns. As filas de mulheres à espera para comprar azeite eram controlador Guardas Civis a cavalo, que às vezes se divertiam fazendo osnimais recuarem sobre a fila e procurando levá-los a pisá-las. Um dosborrecimentos menores da ocasião era a falta de troco. A prata foraetirada, e nenhuma outra cunhagem de moedas surgira, de modo queão havia valor divisionário entre a moeda de dez cêntimos e a nota deuas e meia pesetas, ao mesmo tempo em que todas as notas abaixo ez pesetas mostravam-se muito raras (15) . Para as pessoas maisobres isso representava maior escassez de gêneros, e quem tivesse

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ma só nota de dez pesetas poderia ter de esperar horas a fio, numa fara poder chegar à mercearia e não comprar coisa alguma, pois oendeiro não dispunha de troco.

Não é fácil dar idéia da atmosfera de pesadelo daquela época - anquietação peculiar produzida por boatos sempre mudando, os jornais

ensurados e a presença constante de homens armados. Não é fácilorque, no momento, não existe na Inglaterra o ingrediente essencialara tal atmosfera. Na Inglaterra ainda não se encara com naturalidade

ntolerância política, e existe a perseguição política de um modomesquinho - se eu fosse mineiro, não gostaria que o patrão soubesse

ue eu era comunista - mas o "bom partidário", o gramofone-gangster olítica continental européia, constitui ainda uma raridade, e a idéia deiquidar" ou "eliminar" quem discorde ainda não parece natural. Pois e

arcelona essa naturalidade era grande até demais. Os "estalinistas"ncontravam-se no poder, sendo por isso pacífico que todos osrotskistas" estavam em perigo. O que todos receavam era uma coisaue, afinal de contas, não aconteceu - uma nova eclosão de lutas nasuas que, como antes, seria atribuida ao P .0. U . M. e anarquistas.

Houve ocasiões nas quais percebi que estava à escuta dos primeirosros. Era como se alguma inteligência grande e malevolente estivessem meditação, pairando sobre a cidade. Todos a notavam eomentavam, sendo bizarro o modo como se referiam a isso com quass mesmas palavras: "A atmosfera deste lugar... Que coisa horrível! Éomo estar num asilo de doidos". Mas talvez eu não devesse dizer todois alguns dos visitantes ingleses que passavam rapidamente pelaspanha, de um para outro hotel, parecem não ter notado qualquer corrada na atmosfera geral. A Duquesa de Atholl comenta o seguinte,omo vejo registrado no Sunday Express de 17 de outubro de 1937:

Estive em Valência, Madri e Barcelona... e predominava emtodas as três cidades uma ordem perfeita, sem qualquerexibição de força. Todos os hotéis em que me hospedei eramnão só "normais" e "decentes", como extremamenteconfortáveis, a despeito da escassez de manteiga e café.

Os viajantes ingleses apresentam essa peculiaridade, a de não

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creditarem realmente na existência de qualquer coisa que vá além dootéis elegantes. Espero que tenham encontrado alguma manteiga paDuquesa de Atholl.

stive no Sanatório Maurín, instituição dirigida pelo P .0. U . M. Ficavaos subúrbios, perto de Tibidabo, a montanha de formato curioso que

presenta abruptamente por trás de Barcelona e que, pela tradição,credita-se ter sido a montanha sobre a qual Satanás mostrou a Jesuss países da terra (daí seu nome). A casa pertencera a algum burguêsco e fora tomada por ocasião da revolução. A maioria dos internadoscara inválida fora da linha de combate ou recebera ferimento que a

ncapacitara definitivamente para a luta - membros amputados, e assimor diante. Encontrei diversos ingleses ali - Williams, com a perna feridtaffod Cottman, rapaz de dezoito anos e vindo das trincheiras com

uspeita de tuberculose, e mais Arthur Clinton, cujo braço esquerdoontinuava preso a uma daquelas enormes armações de arame,pelidadas "aeroplanos", que os hospitais espanhóis utilizavam. Minhasposa era ainda hóspede do Hotel Continental e em geral vinha dearcelona durante o dia. De manhã eu costumava freqüentar o Hospita

Geral para receber tratamento elétrico no braço. Era uma coisa curiosama série de choques com formigamento, que faziam os diversosonjuntos de músculos saltarem, mas parecia causar algum bem, poisecobrei o uso dos dedos e a dor diminuiu um pouco. Minha mulher e eesolvemos que o melhor seria regressar à Inglaterra o quanto antes. E

me achava extremamente fraco, a voz parecia ter acabado para sempos médicos afirmavam que seriam precisos meses seguidos até eu

oltar a condições de luta. Precisava começar a ganhar algum dinheiromais cedo ou mais tarde, e não parecia adiantar grande coisa minha

ermanência na Espanha, consumindo alimentos que faziam falta a

utras pessoas. Mas os motivos para desejar o regresso eram egoístam sua maior parte. Eu me encontrava tomado pelo desejo esmagadoe largar tudo aquilo, a atmosfera horrível de suspeita e ódio político, auas cheias de homens armados, ataques aéreos, trincheiras,

metralhadoras, bondes elétricos a fazer um barulhão pela cidade, cháem leite, cozinha onde usavam azeite e a escassez de cigarros - tudoquilo, enfim, que eu aprendera a ligar à Espanha.

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Os médicos no Hospital Geral declararam-me fisicamente incapacitadomas era preciso ver uma junta médica num dos hospitais próximos ao

ont para conseguir a baixa, e depois tocar para Sietamo a fim de quearimbassem os documentos na sede da milícia do P. O. U. M. Koppcabara de regressar do front, cheio de júbilo. Estava saindo de umação militar e dizia que Huesca seria tomada, afinal de contas. O

Governo enviara tropas da frente de Madri e estava concentrando trintmil homens, com grande número de aeroplanos. Os italianos que eu vicaminho da frente, em Tarragona, atacaram a estrada para Jaca, ma

ofreram grandes baixas e perderam dois tanques de guerra. Aindassim, a cidade deveria cair, afirmava Kopp. (Pois isso não ocorreu. Otaque foi uma trapalhada terrível e resultou unicamente numa onda d

mentiras nos jornais.) Enquanto isso, Kopp precisava ir a Valência parantrevistar-se com alguém no Ministério da Guerra. Levava uma carta

General Pozas, que comandava o Exército do Oriente - aquela cartaostumeira, descrevendo Kopp como "pessoa de minha inteiraonfiança" e recomendando-o para um posto especial na seção dengenharia (Kopp fora engenheiro na vida civil). Ele deixou a cidade,artindo para Valência, no mesmo dia em que toquei para Sietamo - 15e junho.

evei cinco dias para regressar a Barcelona. Seguimos em caminhãootado de homens, e por volta de meia-noite chegávamos a Sietamo, ea sede local do P .0. U . M. tivemos de formar uma fileira, sendo-nosados fuzis e munição antes mesmo de anotarem nossos nomes.arecia que um ataque estava para começar e eles poderiam necessite reservas a qualquer momento. No bolso eu trazia o bilhete doospital, mas não podia recusar-me a ir com os outros. Deitei-me nohão, tendo por travesseiro uma caixa de munições e tomado por

ensação de completo abatimento. O estar ferido eliminara minhaoragem por completo - acredito que isso seja comum, por algum tempm situações idênticas - e a possibilidade de estar sob fogossustava-me horrivelmente. Mas houve um pouco de mañana, como ostume, não fomos chamados para lutar, e na manhã seguintepresentei o bilhete de hospital e saí à cata da baixa. Isso significavama série de jornadas confusas e cansativas. Como sempre,

mandavam-me de um para outro lugar, de um a outro hospital - Sietam

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arbastro, Monzon, depois volta a Sietamo para carimbarem minhaaixa, depois pela linha de combate outra vez, passando por Barbastroerida - e a convergência de tropas em Huesca monopolizara todos osansportes e desorganizara tudo. Lembro-me de ter dormido em lugaros mais disparatados - uma vez em leito de hospital, e outra numa vaepois num banco muito estreito sobre o qual caí em meio da noite, e

utra feita num tipo de pensão municipal em Barbastro. Quem sefastasse da estrada de ferro não tinha como viajar, a não serpanhando carona em caminhões. Era preciso ficar à beira da estradaoras seguidas, até três ou quatro, com grupos de camponesesesconsolados que carregavam embrulhos cheios de patos e coelhos,

azendo sinal para caminhão após o outro. Quando finalmente sencontrava um desses veículos que não estivesse superlotado deomens, pão ou caixas de munição, os solavancos naquelas estradas

nfames reduzia o sujeito a uma almôndega. Nenhum cavalo me fez puanto quanto aqueles caminhões. O único meio de viajar era ficarmosodos bem juntos e agarrarmo-nos mutuamente. Para minha humilhaçãescobri estar ainda fraco demais para subir num caminhão sem ajudalheia.

Dormi uma noite no Hospital de Monzon, onde fui ver a minha juntamédica. Na cama a meu lado estava um Guarda de Assalto, ferido acim

o olho esquerdo. Mostrou-se amigo e deu-me cigarros, e comentei cole:

Em Barcelona, teríamos feito fogo um sobre o outro.

Rimos bastante disso. Era estranho como o espírito geral parecia semodificar, ao chegar-se a qualquer ponto próximo da frente de luta. Ali

vaporava todo o ódio maligno dos partidos políticos, ou quase todo. P

odo o tempo que passei no front não me recordo de uma única vez naual os membros do P. S. U. C. demonstrassem hostilidade pelo fato du ser P .0. U. M. Aquilo era uma coisa própria de Barcelona, ou de

ugares ainda mais distantes da guerra. Em Sietamo havia bom númere Guardas de Assalto, enviados de Barcelona para participarem notaque a Huesca. Sua corporação não fora criada para lutar no front, e

muitos deles não estiveram antes sob fogo inimigo. Em Barcelona, era

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s donos das ruas, mas ali eram quintos (recrutas) e tornavam-se osamaradas de meninos milicianos, com 15 anos de idade, que tinham

meses seguidos de experiência na linha de frente.

No Hospital de Monzon o médico repetiu a rotina de puxar a língua enfiar o espelinho pela minha garganta abaixo, ecoou a afirmação

nimadora dos outros, de que jamais recuperaria a voz, e assinou meuertificado. Enquanto aguardava para ser examinado, dentro da sala dirurgia estavam efetuando alguma operação pavorosa, e sem anestesor que sem ela, não sei. A coisa seguiu sua marcha grito após grito, euando entrei havia cadeiras atiradas pelo chão, bem como poças deangue e urina.

Os detalhes daquela jornada final apresentam-se em minha lembrança

om uma clareza estranha. Eu me encontrava com espírito diferente,mais observador do que ocorrera naqueles últimos meses. Receberaminha baixa, carimbada com o selo da Vigésima-Nona Divisão, bemomo o atestado médico no qual era "declarado inútil". Estava livre paregressar à Inglaterra e por conseqüência sentia-me capacitado, quaseela primeira vez, a observar a Espanha. Era preciso aguardar um diam Barbastro, pois dali só partia um trem diário, e em ocasiõesnteriores eu vira a cidade em vislumbres, e ela me parecera apenas

ma parte da guerra - um lugar acinzentado, enlameado e frio, cheio daminhões tonitruantes e soldados esfarrapados. Agora parecia coisaem diversa. Percorrendo-a, notei as ruas agradavelmente sinuosas,elhas pontes de pedra, casas de vinho com enormes barris da altura dm homem, e lojas semi-subterrâneas das mais atraentes, onde home

abricavam rodas de carroças, punhais, colheres de madeira e bolsasara água confeccionadas com pele de cabra. Observei um homem qu

abricava uma dessas bolsas e descobri, com grande interesse, que sãeitas com o pêlo por dentro e sem ser retirado, de modo que quemtiliza tais recipientes está, na verdade, bebendo pêlo de cabra destilau bebera neles meses inteiros, sem saber desse detalhe. Na parteaseira da cidade havia um rio raso e de água verde, de cujo leitomergia um penhasco perpendicular tendo na parte superior algumasasas, de modo que pela janela de seu dormitório podia-se cuspiriretamente na água, a trinta metros lá embaixo. Nas reentrâncias do

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enhasco um número enorme de pombos fazia sua moradia. E emerida havia antigos edifícios em ruínas, em cujas cornijas muitos

milhares de andorinhas construíram seus ninhos, de modo que de certistância a forma dos mesmos assemelhava-se a um ornamento floridoo período rococó. Era estranho perceber que por quase seis meses eão tivera olhos para ver coisas assim. Tendo no bolso os documentos

e baixa, eu me sentia novamente um Ser humano, e também um tanturista. Sentia que estava realmente na Espanha, país que por toda aida desejara visitar. Nas ruas menores e calmas de Lerida e Barbastroensei ter um vislumbre, um tipo de percepção distante daquela Espanue está presente na imaginação de todos. Cordilheiras brancas,ebanhos de cabras, masmorras da Inquisição, palácios mouros, tropainuosas formadas por mulas, oliveiras acinzentadas e grupos demoeiros, moças com mantilhas negras, os vinhos de Málaga e Alicantatedrais, cardeais, corridas de touros, ciganos, serenatas - em suma, spanha. De toda a Europa, fora o país que parecera apoderar-se mae minha imaginação. Era uma pena que quando finalmente conseguishegar lá, visse apenas aquele canto ao nordeste, em meio a umauerra confusa e durante o inverno na maior parte do tempo.

ra tarde quando voltei a Barcelona, e não encontrei táxis. Nãodiantava tentar chegar ao Sanatório Maurín, que se situava fora daidade, de modo que parti para o Hotel Continental, parando no caminara jantar. Lembro-me da conversa que tive com um garçom bastanteaternal a respeito dos garrafões de carvalho, envoltos em cobre, nosuais serviam o vinho. Disse-lhe que gostaria de comprar alguns para

evar comigo de volta à Inglaterra, e ele mostrou-se compreensivo.

Sim, são muito bonitos, não é mesmo? Mas é impossível comprar hom dia. Ninguém mais os está fabricando, ninguém mais está fabricanoisa alguma. Esta guerra... Que lástima!

Concordamos em que a guerra era uma lástima, e mais uma vezenti-me como turista. Ele perguntou gentilmente se eu gostara daspanha, se voltaria. Ah, sim! Eu voltaria à Espanha. A qualidadeanqüila da conversa continua em minha lembrança, devido ao queucedeu logo depois.

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Quando cheguei ao hotel minha esposa estava sentada no salão despera. Levantou-se e caminhou para mim com o que pareceuaturalidade, passou o braço por meu pescoço e com doce sorrisoestinado a ser visto pelas outras pessoas presentes, murmurou em muvido:

Dê o fora!O quê?

Saia daqui imediatamente!

O quê?

Não fique ai parado! Precisa sair agora mesmo!

Por quê? Que está dizendo?

la já me pegara pelo braço e seguia comigo, levando-me para ascada. Quando descíamos, encontramos um francês - cujo nome nãoou revelar, pois embora não tivesse qualquer ligação com o P.O. UM.oi bom amigo nosso durante todas as dificuldades. Ele me encarou coxpressão de preocupação.

Escute! Não deve vir aqui. Saia depressa e esconda-se antes que eleelefonem para a policia.

mais! Ao pé da escada um dos empregados do hotel, membro do.O.U.M. (sem a gerência saber disso, ao que presumo) saiu

urtivamente do elevador e me disse, em inglês estropiado, para sair dAté então eu não compreendera o que acontecia.

De que diabo estão falando?indaguei, assim que chegamos à calçada, - Você não soube?

Não. Soube do quê? Soube de nada!

O P .0. U. M. foi extinto. Eles tomaram os edifícios e praticamente todstão presos. Dizem que já começaram a fuzilar alguns.

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ntão era isso! Precisávamos encontrar um lugar para conversar. Todos grandes cafés na Ramblas estavam lotados de policiais, masncontramos um café sossegado numa rua lateral. Minha esposaxplicou o que ocorrera enquanto eu estivera fora da cidade.

A 15 de junho a polícia efetuara a prisão repentina de Andrés Nin, em

eu próprio gabinete, e na mesma noite invadira o Hotel Falcón,rendendo todos os presentes, em sua maioria milicianos em licença. ugar fora imediatamente convertido em prisão, e não tardou para queegurgitasse de prisioneiros de todos os tipos. No dia seguinte o.O.U.M. fora declarado ilegal e todos os seus escritórios e centros,vrarias, sanatórios, centros de Ajuda Vermelha e o mais eram tomadonquanto isso, a polícia prendia todos que encontrasse e soubesse

erem qualquer ligação com o P.O. U. M. Em questão de dois dias os

uarenta membros da Comissão Executiva, ou quase todos, estavamresos. Talvez um ou dois houvessem escapado e procuradosconderijo, mas a polícia adotava o truque (muito utilizado por amboss lados, nessa guerra) de prender a esposa do cidadão como refém,aso ele desaparecesse. Não havia meio de descobrir quantos foramresos, e minha mulher ouvira dizer que somente em Barcelona o totara de quatrocentos. Mais tarde eu calculei que mesmo naquela época

al número fosse bem maior. E efetuaram prisões das mais disparatadam alguns casos a polícia chegara ao ponto de arrastar milicianoseridos para fora dos hospitais onde se achavam internados.

udo aquilo causava abatimento profundo. Que diabo estavacontecendo? Eu podia compreender a extinção do P .0. U. M., mas pue estavam prendendo gente? Por nada, até onde se podia descobrirarecia que a supressão do P. O. U. M. apresentava efeito retrospectiv

e modo que sendo agora uma organização ilegal, todos quantosertenceram à mesma estavam transgredindo a lei. Como de costumeenhum dos presos fora acusado. Enquanto isso os jornais comunistase Valência soltavam faíscas com o relato de uma imensa "trama

ascista", comunicações pelo rádio com o inimigo, documentos assinadom tinta invisível, etc. etc. Já fiz referência anterior a esse caso. O

mportante era que isso só aparecia nos jornais de Valência, e acreditostar certo ao dizer que não surgiu uma só palavra sobre a questão, ou

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obre a supressão do P .0. U. M., em qualquer jornal de Barcelona, fosle comunista, anarquista ou republicano. Tomamos conhecimento daatureza exata das acusações contra os dirigentes do P. O. U. M. nãom qualquer jornal espanhol, mas nos jornais ingleses que chegavam arcelona com um ou dois dias de atraso. O que não podíamos saberaquela época era que o Governo não tinha a responsabilidade pela

cusação de traição e espionagem, e que os seus membros iriam maisarde repudiá-la. Sabíamos apenas vagamente que os dirigentes do P U. M., e presumivelmente todos nós, os filiados menores daquela

rganização, éramos acusados de estar a soldo dos fascistas. Eirculavam já os boatos de que eram feitas execuções secretas nasrisões. Foi grande o exagero nesse particular, mas certamente ocorrem alguns casos, e não resta dúvida que Nin teve esse destino. Depoie sua prisão, foi transferido para Valência e daí para Madri, e já a 21

unho chegava a Barcelona o boato de que fora fuzilado. Mais tarde ooato adquiria forma mais definida: Nin fora fuzilado na prisão pelaolícia secreta, e seu corpo jogado na rua. Essa história vinha deiversas fontes, inclusive Federico Montsenys, ex-membro do Governo

A partir daquele dia não se ouviu mais dizer que Nin estivesse vivo.Quando, posteriormente, o Governo foi interrogado pelos delegados de

iversos países, seus componentes hesitaram e declararam apenas qu

Nin desaparecera e eles não conheciam seu paradeiro. Alguns jornaisublicaram a história de que ele fugira para território fascista. Provalguma foi apresentada nesse sentido e Irujo, o Ministro da Justiça,eclarou mais tarde que a agência noticiosa Espagne falsificara seuomunicado oficial (16) . Seja como for, é altamente improvável que umrisioneiro político com a importância de Nin pudesse fugir, e a menosue apareça vivo no futuro, acredito que foi assassinado na prisão.

A narrativa a respeito das prisões estendia-se sempre, cobrindo període meses, até que o número de prisioneiros políticos, sem contar osascistas, atingira a casa de milhares. Um detalhe notável era autonomia dos escalões inferiores da polícia. Muitas das prisões erameconhecidamente ilegais, e diversas pessoas cuja libertação forardenada pelo Chefe de Polícia foram presas novamente na porta daadeia e levadas a prisões secretas. Caso típico é o de Kurt Landau eua esposa. Foram presos por volta de 17 de junho, e Landau

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mediatamente "desapareceu". Cinco meses depois sua mulher ainda sncontrava presa, sem julgamento e sem notícias do marido. Declarouma greve de fome, após o que o Ministro da Justiça mandouarantir-lhe que o marido estava morto. Pouco depois ela era libertadauase imediatamente presa outra vez e lançada de volta à prisão. Era otar-se também que a polícia, ao menos de início, parecia inteiramen

ndiferente aos efeitos que seus atos pudessem causar sobre a guerraeus elementos estavam prontos a prender oficiais ocupantes de postmportantes, sem receberem permissão antecipada para isso. No final unho José Rovira, o general comandante da Vigésima-Nona Divisão, ereso em algum ponto próximo à linha de frente por um grupo deoliciais vindos de Barcelona. Seus comandados enviaram umaelegação para protestar junto ao Ministério da Guerra, onde se verificue nem esse ministério, nem Ortega (o Chefe de Polícia) tinham sequido informados quanto à prisão de Rovira. Em toda essa questão oetalhe que ficou mais atravessado em minha garganta, embora talvezão seja o mais importante, é que todas as noticias sobre oscontecimentos eram impedidas de chegar aos soldados no front. Comleitor terá visto, nem eu nem pessoa alguma no front soubera daxtinção do P.O.U.M. Todas as sedes milicianas do P. O. U. M., seusentros de Ajuda Vermelha e demais órgãos funcionavam como de

ostume, e até 20 de junho em Lerida, na linha de frente e a somente80 quilômetros de Barcelona, ninguém sabia o que estava acontecenodas as notícias a respeito eram mantidas fora dos jornais dearcelona (os de Valência, que publicavam as histórias de espionagemão chegavam á frente de Aragón), e certamente um dos motivos pararisão dos milicianos do P. O. U. M. licenciados em Barcelona fora

mpedir que eles regressassem ao front com tais novidades. Aonvocação com a qual eu fora para a linha de frente, a 15 de junho,

eve ter sido a última. Ainda estou sem saber como aquilo foi mantidom segredo, pois os caminhões de abastecimento e demais veículosontinuavam a trafegar de um lado para outro, mas não resta dúvida due tal segredo tenha sido mantido e, fiquei sabendo mais tarde, osomens na linha de frente de nada souberam, senão dias após. O motara tudo isso é bastante claro. O ataque a Huesca estava começando

milícia do P. O. U. M. formava ainda uma unidade separada e,

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rovavelmente, recearam que se os homens soubessem o que ocorriaiam recusar-se a lutar. Na verdade, nada disso aconteceu, quandohegaram as noticias. Naqueles dias intermediários deve ter havido boúmero de homens que morreram sem ao menos saber que os jornaisa retaguarda os chamavam de fascistas. Coisas assim são um poucoifíceis de perdoar. Sei que a orientação comum era não deixar que m

oticias chegassem às tropas, e talvez isso se justifique como regra. Mquestão se torna diferente, quando homens são mandados à luta eem sequer sabem que às suas costas seu partido está sendouprimido, seus dirigentes acusados de traição, e seus amigos earentes atirados nas prisões.

Minha mulher começou a contar o que acontecera com nossos amigosAlguns dos ingleses e outros estrangeiros atravessaram a fronteira.

Williams e Stafford Cottman não foram presos quando o SanatórioMaurín foi invadido, e estavam escondidos em algum lugar. O mesmocontecia a John McNair, que estivera na França e regressara áspanha depois do P .0. U.M. ser proclamado ilegal - decisão

mprudente, mas ele não quisera estar a salvo enquanto seus camarade encontravam em perigo. Quanto aos demais, era uma simplesepetição: "apanharam Fulano", "apanharam Sicrano", "apanharameltrano". Pareciam ter "apanhado" quase todos, e meu espanto foinorme ao saber que também haviam "apanhado" George Kopp.

O quê? Kopp? Pensei que ele estivesse em Valência!

Ao que parecia, Kopp regressara a Barcelona, trazendo uma carta doMinistério da Guerra para o coronel-comandante do setor de engenhar

a frente oriental. Ele sabia que o P. 0. U . M. fora extinto, é claro, erovavelmente não acreditara que a polícia chegasse à estupidez de

rendê-lo a caminho do front em urgente missão militar. Viera ao HoteContinental recolher suas coisas, e na ocasião minha mulher se

usentara. Os elementos do hotel o detiveram com alguma história falsnquanto telefonavam à polícia. Reconheço ter ficado com raiva aoaber da prisão de Kopp. Era meu amigo pessoal, servira sob suasrdens meses seguidos, estivemos juntos sob fogo inimigo, e euonhecia sua história pessoal. Era homem que sacrificara tudo - família

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acionalidade, subsistência - para vir à Espanha lutar contra o fascismor ter deixado a Bélgica sem permissão e ingressado em exércitostrangeiro enquanto membro da reserva do exército belga e tendoegalmente, antes disso, ajudado a fabricar munições para o Governospanhol, ele acumulara para si muitos anos de prisão, caso regressaspátria. Estivera na linha de frente desde outubro de 1936, subira de

miliciano a major, entrara em ação não sei quantas vezes e fora feridoDurante as desordens de maio, como eu próprio vira, impedira a lutaocalmente e com isso devia ter salvo dez ou vinte vidas. E tudo quantoabiam fazer para recompensar um homem assim era atirá-lo na cadeicar com raiva é pura perda de tempo, mas a estupidez dessas coisasonsegue esgotar a paciência de qualquer um.

nquanto isso, não haviam "apanhado" minha esposa. Embora ela

ermanecesse no Continental, a polícia não tomara qualquer medidaara prendê-la. Tornava-se bem claro que a usavam como chamariz,mas duas noites antes, pela madrugada, seis policiais à paisananvadiram nosso quarto e vasculharam tudo. Apoderaram-se de todos apéis que possuíamos, com a afortunada exceção dos passaportes evro de cheques. Levaram meus diários, nossos livros, recortes deornais que se acumularam nos meses anteriores (muitas vezes procurm vão, imaginar de que lhes serviram esses recortes), os objetos queu guardava como recordações da guerra, e todas as nossas cartas. (assagem quero registrar que levaram bom número de cartas que euecebera de leitores. Algumas não foram respondidas, e está claro queão mais disponho dos endereços. Caso alguém que tenha escritocerca de meu último livro e não tenha recebido resposta leia estasnhas, peço aceitar minhas desculpas.) Mais tarde fiquei sabendo que olícia também se apoderara de diversos pertences por mim deixados

anatório Maurin. Levaram até uma trouxa de roupas sujas, contando,alvez, encontrar nelas alguma coisa escrita com tinta invisível.

ornava-se óbvio que, para minha esposa, era mais seguro continuar otel, pelo menos provisoriamente. Se procurasse fugir, partiriam logom seu encalço. Quanto a mim, teria de seguir diretamente para umsconderijo, e isso me revoltava. A despeito das inúmeras prisõesfetuadas, era-me quase impossível acreditar que estava em perigo.

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udo aquilo parecia demasiadamente destituído de sentido. Fora amesma recusa em levar aquele assalto imbecil a sério que resultara na

risão de Kopp. Eu continuava indagando o motivo pelo qual alguémoderia prender-me. O que fizera eu? Nem sequer era membro partidáo P. O. U. M. Decerto estivera com armas na luta de maio, mas issocontecera a uns quarenta ou cinqüenta mil homens. Além disso, esta

or demais necessitando de uma boa noite de sono. Queria arriscar-mvoltar ao hotel, mas minha esposa não o admitiu. Cheia de paciênciaxplicou-me a situação. Não importava o que eu fizera ou deixara de

azer. Não se tratava de uma batida para apanhar criminosos, apenas m reinado de terror. Eu não era culpado de qualquer ato definido, mae "trotskismo". O fato de que servira na milícia do P .0. U . M. era maio que suficiente para levar-me à prisão. Não adiantava ater-me à noç

nglesa de que se está seguro enquanto se respeitar a lei. A lei, paraodos os fins práticos, era o que a polícia resolvia fazer. Só me restavasconder e ocultar o fato de que tivera qualquer ligação com o P. 0. U

M. Examinamos todos os papéis e documentos em meus bolsos, e elabrigou-me a rasgar o cartão de miliciano, que apresentava a sigla.O.U.M. em letras grandes, bem como uma fotografia de milicianos coandeira daquele partido ao fundo, pois coisas assim é que causavamrisão das pessoas naqueles dias. Eu precisava ficar com meus

ocumentos de baixa, porém, e até eles constituíam um perigo, poisaziam o carimbo da Vigésima Nona Divisão, e certamente a políciaaberia que essa unidade era o P .0. U . M. Sem os documentos,ntretanto, poderiam prender-me como desertor.

ra preciso pensar, agora, em sair da Espanha. De nada servia ficar aom a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, seríamos presos. A bea verdade, nós dois teríamos gostado imensamente de ficar, só para

er o que ia acontecer. Mas eu previa que as prisões espanholas eramugares infestados de piolhos (e na verdade, mostraram-se piores do qu calculara), que uma vez preso não saberia quando viria a soltura, e

minha saúde estava em péssimo estado, para não falar na dor no braçMarcamos encontro para o dia seguinte, no consulado britânico, local

ara onde também Cottman e McNair se dirigiriam. Talvez fossemrecisos uns dois dias para regularizar os passaportes. Antes de deixaspanha tínhamos de carimbar os passaportes em três lugares

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iferentes - a Chefia de Policia, o consulado francês e junto àsutoridades imigratórias da Catalunha. A Chefia de Polícia era o perigoaturalmente. Mas talvez o Cônsul inglês arrumasse as coisas semeixar transparecer que tivéssemos qualquer ligação com o P. 0. U . Mra óbvio que devia haver uma lista de suspeitos "trotskistas"strangeiros, e provavelmente nossos nomes estavam nela, mas com

lguma sorte poderíamos chegar à fronteira antes dessa relação. Comerteza haveria muito embaraço, confusão e mañana, mas por sortestávamos na Espanha, não na Alemanha. A polícia secreta espanholnha algum espírito da Gestapo, mas não a maior parte de suaompetência.

assim nos separamos. Minha mulher voltou ao hotel e eu saí pelascuridão, procurando onde dormir. Lembro-me de estar mal disposto

ntediado. Queria tanto dormir numa cama! Não tinha para onde ir, caslguma onde me refugiar. O P.O.U.M. não possuía praticamenteualquer organização subterrânea. Seus dirigentes sempre perceberamue o partido poderia ser extinto, mas não contavam com uma caça potacado. Tão pouco esperaram, na verdade, que davam prosseguimens modificações nos edifícios do P .0. U . M. (e entre outras coisasonstruíam um cinema no edifício da Direção do partido, que fora antem banco) e o fizeram até o dia em que o mesmo foi extinto. Poronseqüência, não existiam os pontos de encontro e esconderijos queodo partido revolucionário deve possuir. Só Deus sabe quanta gente -ue tivera a residência vasculhada pela polícia - estava dormindo nasuas, aquela noite. Eu tivera cinco dias de viagens cansativas, dormiram lugares os mais incômodos, meu braço doía miseravelmente, e agoqueles imbecis estavam em meu encalço e era preciso dormir no chã

mais uma vez. Meus pensamentos não passaram desse ponto, e não

ve qualquer reflexão política correta, pois não as tenho quando asoisas estão acontecendo. Parece ser sempre assim, quando me mistom guerra ou política - não tenho consciência de coisa alguma, a nãoer do desconforto físico e de um desejo profundo de que acabe essebsurdo infernal. Depois é que posso perceber o significado doscontecimentos, mas enquanto eles se desenrolam apenas desejo est

ora deles - o que talvez constitua um traço dos mais ignóbeis.

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Andei muito e fui parar nas proximidades do Hospital Geral. Queriancontrar um lugar onde pudesse deitar-me sem que algum policial

ntrometido me visse e exigisse documentos. Procurei um abrigontiaéreo, mas era de escavação recente e a umidade gotejava alientro. Depois disso fui às ruínas de uma igreja que fora assaltada e

ncendiada na revolução. Não passava de uma casca, com suas quatro

aredes sem coberta a cercar montões de destroços. Naquelaemi-escuridão, fui tateando e descobri uma espécie de oco onde podeitar-me. Blocos de argamassa partida não são coisa das melhoresara quem procura uma cama, mas felizmente a noite foi quente eonsegui dormir várias horas.

4

ior de tudo, para quem é procurado pela polícia em Barcelona, é queida da cidade começa tarde demais. Quem dorme ao relento semprecorda de madrugada e nenhum dos cafés de Barcelona abre as portantes de oito e meia. Passaram-se horas até eu conseguir uma xícara afé e fazer a barba. Na barbearia pareceu-me bastante divertida aroclamação anarquista ainda afixada à parede, explicando que asorjetas estavam proibidas. "A Revolução rompeu nossos grilhões", dizquele documento. Senti vontade de dizer aos barbeiros que os grilhõe

ão tardariam a voltar, a menos que eles tomassem cuidado.Regressei ao centro da cidade e vi que por cima dos edifícios do P. O.M. as bandeiras vermelhas foram rasgadas, as cores republicanas

rapejavam em seu lugar, e grupos de Guardas Civis armadosncontravam-se em suas portas. No centro de Ajuda Vermelha quecava na esquina da Plaza de Cataluña a policia se divertira um bocaduebrando-lhe quase todas as vidraças. As barracas de livros do P .0.

M. foram esvaziadas e o quadro para cartazes em ponto mais além, naRamblas, fora encoberto por um desenho anti-P .0. U . M., aquele damáscara e o rosto fascista por baixo. Na extremidade da Ramblas, per

o cais, deparei com um quadro bizarro - uma fileira de milicianos, aindsfarrapados e enlameados, recém-chegados do front, escarrapachadas cadeiras ali existentes para os engraxates. Eu sabia quem eles erana verdade, reconheci um deles, Eram milicianos do P. O. U. M., vind

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o front na véspera; descobrindo que o partido fora extinto, forambrigados a passar a noite na rua, pois tiveram suas casas vasculhada

Qualquer miliciano do P .0. U . M. que regressasse a Barcelona naquecasião podia escolher entre rumar diretamente para um esconderijo ontão para a prisão - o que não constituía recepção agradável, depois ês ou quatro meses de combate.

Nós nos encontrávamos em situação das mais esquisitas. A noite,ramos fugitivos procurados, mas durante o dia podia-se levar uma viduase normal. Todas as casas que davam abrigo a adeptos do P .0. U

M. estavam - ou deviam estar - sob vigilância, sendo impossível ir param hotel ou pensão, pois fora decretado que à chegada de qualquerstranho o hoteleiro devia informar imediatamente a polícia. Issoignificava praticamente passar a noite ao relento. Durante o dia, por

utro lado, numa cidade com as dimensões de Barcelona, estava-seazoavelmente a salvo. As ruas encontravam-se cheias de GuardasCivis, Guardas de Assalto, Carabineiros e policiais comuns, e mais um

uantidade inimaginável de espiões à paisana, mas ainda assim nãoodiam deter todos os que passavam, e quem tivesse aspecto normalodia escapar-lhes à observação. O que tínhamos a fazer era evitarstar por perto dos edifícios do P .0. U. M. e não ir aos cafés eestaurantes cujos garçons nos conhecessem de vista. Passei bastantempo naquele dia, e no seguinte, tomando banho num dos banheirosúblicos, o que me pareceu bom meio de passar o tempo e ficar fora dirculação. Infelizmente a mesma idéia ocorreu a muita gente, e algunsias depois - quando eu já deixara Barcelona - a polícia invadiu um dosanheiros públicos e prendeu bom número de "trotskistas" inteiramenteelados.

m meio à Ramblas encontrei um dos feridos do Sanatório Maurín, eocamos aquele tipo de piscadela invisível que as pessoas usavam nacasião, e conseguimos de modo disfarçado encontrar um café maislém naquela rua. Ele escapara à prisão quando o sanatório foraasculhado mas, como os outros, fora tocado para as ruas. Estava em

mangas de camisa - tivera de fugir sem a jaqueta - e não dispunha deinheiro algum. Descreveu-me como um dos Guardas Civis rasgara orande retrato colorido de Maurín, que se encontrava na parede do

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anatório, e depois o reduzira a pedaços mediante pontapés. Maurin (uos fundadores do P .0. U. M.) era prisioneiro dos fascistas, e naquelapoca acreditava-se que fora fuzilado por eles.

ncontrei minha mulher no consulado britânico às dez horas, e McNairCottman surgiram pouco depois disso. A primeira notícia que me deram

oi a de que Bob Smillie morrera. Isso acontecera numa prisão emValência, e ninguém sabia com certeza qual fora a causa de sua morteepultaram-no imediatamente, e o representante da I. L. P. no lugar,

David Murray, não tivera permissão para ver o cadáver.

stá claro que imaginei, no mesmo instante, que Smillie fora fuzilado.ra o que todos acreditavam na época, mas mudei de opinião. Mais

arde a causa de sua morte era dada como apendicite, e soubemos de

utro prisioneiro, que fora posto em liberdade, que realmente Smilliedoecera na prisão. Talvez a história de apendicite fosse verídica,evendo-se a um capricho malévolo a recusa a que Murray visse oorpo. Tenho a dizer, no entanto, que Bob Smillie era um moço compenas vinte e dois anos e fisicamente uma das criaturas mais rijas quonheci. Acredito que fosse o único homem, entre os que conheci,spanhol ou inglês, que permaneceu três meses nas trincheiras semdoecer um só dia. Gente rija assim não morre de apendicite, se receb

uidados adequados. Mas quem visse as prisões espanholas, as cademprovisadas que se utilizavam para os presos políticos, poderiaompreender quão reduzida era a possibilidade de que um homemoente recebesse qualquer cuidado médico adequado. As cadeias era

ugares que somente poderiam ser descritos como calabouços. Nanglaterra, seria preciso voltarmos ao Século XVIII para encontrar alguoisa comparável. Os indivíduos eram amontoados em cubículos onde

mal havia espaço para deitar, e muitas vezes iam ter a porões e outrosugares sem luz. Não se tratava de medida temporária - pois havia case gente que fora mantida quatro ou cinco meses sem ver a luz do diaecebiam uma alimentação suja e insuficiente, de dois pratos de sopa ois pedaços de pão por dia. (Alguns meses mais tarde, no entanto, aomida parece ter melhorado um pouco.) Não estou exagerando, eugiro uma consulta a qualquer suspeito político preso na Espanha.enho relatos sobre as cadeias espanholas, vindos de numerosas

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ontes, e eles concordam uns com os outros em grau que não pode seosto em dúvida. Além disso, eu próprio tive alguns vislumbres de umaadeia espanhola. Outro amigo inglês, preso mais tarde, declara que,elo que ele passou na cadeia, "torna-se mais fácil compreender o case Smillie". Mas a morte do rapaz não é coisa que eu possa perdoar co

acilidade. Tratava-se de um moço corajoso e cheio de talento, que

bandonara sua carreira na Universidade de Glasgow para lutar contraascismo e que, como eu mesmo pudera ver, desempenhara sua tarefaa linha de frente com coragem e presteza impecáveis; e tudo quantoodiam descobrir para recompensá-lo era uma cadeia onde o deixaram

morrer como um animal abandonado. Sei que em meio a uma guerranorme e sangrenta não adianta fazer muito barulho por causa de um

ndivíduo morto. Uma bomba despejada por aeroplano e que caia em rheia de gente causa sofrimento muito maior do que boa parte deerseguição política. Mas o que enraivece, no caso de uma morte assia absoluta falta de propósito. Morrer em batalha - sim, eis o que sespera. Mas ser atirado à cadeia, nem mesmo por um crime imaginário

mas apenas por causa de um capricho cego e malévolo, e depois morra solidão - isso é diferente! Não consigo ver como tal tipo de atitude -ão apenas porque o caso de Smillie fosse excepcional - pudesseontribuir de algum modo para a vitória.

Naquela tarde, minha esposa e eu visitamos Kopp. Podia-se visitar osrisioneiros que não estivessem incomunicáveis, embora não seonsiderasse de bom alvitre fazê-lo mais de uma ou duas vezes. Aolícia vigiava as pessoas que vinham e iam, e quem visitasse asadeias com muita freqüência acabava sendo carimbado como amigo rotskistas", não tardando em fazer-lhes companhia. Isso já ocorrera aom número delas.

Kopp não estava incomunicado, e obtivemos permissão para vê-lo semmaiores dificuldades. Enquanto nos mostravam o caminho, passando

elas portas de aço que davam para a cadeia, um miliciano espanholue eu conhecera no front estava de saída, entre dois Guardas Civis.

Nossos olhares cruzaram, e mais uma vez foi aquele piscar invisível. Erimeira pessoa que vimos lá dentro foi um miliciano norte-americanoue partira de volta a seu país alguns dias antes. Tinha os documentos

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m ordem, mas detiveram-no na fronteira assim mesmo, provavelmentorque ainda usava culotes de belbute, sendo por isso identificável com

miliciano. Passamos um pelo outro como se fossemos inteiramentestranhos, e foi horrível. Eu o conhecera por meses seguidos, partilharm abrigo com ele, que ajudara a carregar-me pela linha de frenteuando eu fora ferido, mas era só o que podíamos fazer naquelas

ircunstâncias. Os guardas com uniformes azuis estavam espionandoor toda a parte, e seria fatal reconhecer um número demasiado deessoas.

A chamada cadeia não passava, na verdade, do pavimento térreo dema loja. Em dois salões que mediam, cada um, perto de trinta metrosuadrados, encontravam-se presas umas cem pessoas. O lugar tinha parência de uma prisão do Século XVIII, com sua sujeira bolorenta, o

glomerado de corpos humanos, sua falta de móveis - apenas o chãoso de pedras, um banco, e alguns cobertores rasgados - e a luz mortiois as cobertas de aço ondulado foram baixadas sobre as janelas Naaredes encardidas, refrões revolucionários - "Viva P.O. UM.!,' ou "Viv

a Revolucióne", e outros - foram garatujados. O lugar era utilizado comepósito de presos políticos por meses seguidos, e o vozerio eransurdecedor. Estávamos na hora das visitas, e era tanta gente acotovelar-se, que se tornava difícil andar. Quase todos os presentesram da parte mais pobre da população trabalhadora. Víamos mulherebrindo minúsculos embrulhos de comida que traziam, e encontramosiversos feridos que estiveram internados no Sanatório Maurln, entre orisioneiros. Dois deles amputaram a perna, e um fora trazido sem a

muleta, de modo que pulava por ali na perna que lhe restava. Vimosambém um menino que não devia ter mais de doze anos, fazendoensar que estavam também prendendo crianças. O lugar tresandava

quele fedor animalesco que sempre se forma quando muita gente émontoada num só lugar, sem que se tomem as medidas sanitáriasdequadas.

Kopp abriu caminho no meio daquele povo para vir encontrar-seonosco. Seu rosto gordo e corado parecia o de sempre, e naquele lug

mundo ele conseguira manter limpo o uniforme e até barbear-se. Haviutro oficial com uniforme do Exército Popular entre os prisioneiros, e a

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assarem um pelo outro ele e Kopp trocaram continência, num gesto qe algum modo foi bastante patético. Kopp parecia bastante animado.

Bem, suponho que vamos ser todos fuzilados! - comentou cheio deraça.

u, no entanto, senti um estremecimento involuntário. Uma bala entrarm meu próprio corpo, antes, e a sensação ainda estava fresca em

minha lembrança, não sendo agradável pensar em coisa idênticacontecendo com quem conhecemos bem. Naquela época eu achavaatural que todos os elementos principais no P. O. U. M., e Kopp entreles, seriam realmente fuzilados. O primeiro boato sobre a morte de N

á se infiltrara, e sabíamos que o P O. U. M. era acusado de traição espionagem. Tudo indicava um grande julgamento forjado, seguido pe

massacre dos "trotskistas" principais. É terrível ver um amigo na prisãostar-se impotente para ajudá-lo, pois nada havia que pudéssemos fazra inútil apelar até mesmo para as autoridades belgas, pois Koppansgredira a lei de seu país. Eu tinha de deixar a conversa quase todara minha mulher, pois com a voz pouco além de um guincho nãoonseguiria ser entendido naquela zoada. Kopp estava falando sobre omigos que fizera entre os demais presos, sobre os guardas, alguns duais eram bons sujeitos e outros que abusavam e surravam os

risioneiros mais tímidos, e também sobre a comida, que era "lavageme porcos". Felizmente lembramo-nos de trazer um pacote de comida,em como cigarros. Em seguida Kopp começou a falar dos papéis que

he tomaram ao ser preso. Entre os documentos apreendidos estava sarta do Ministério da Guerra, endereçada ao coronel-comandante dasperações de engenharia no Exército do Oriente. A policia se apossarao documento e não quisera devolvê-lo. Diziam que estava no gabineto Chefe de Policia, e a situação de Kopp poderia melhorar muito se

osse recuperada.

ercebi imediatamente a importância disso. Uma carta oficial daquelepo, trazendo recomendação do Ministério da Guerra e do Generalozas, tornaria bem clara a idoneidade de Kopp. Mas a dificuldadestava em provar a existência do documento, e se fosse aberta noabinete do Chefe de Polícia era certo que algum dedo-durô a destruir

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Apenas uma pessoa poderia obtê-la de volta: o oficial a quem estavandereçada. Kopp já pensara nisso, e escrevera uma carta que queria

me entregar para que a tirasse dali e pusesse no correio. Entregá-laessoalmente a seu destinatário, no entanto, seria muito mais rápido eerto. Deixei a mulher em companhia de Kopp, tratei de sair, e depois

muita procura achei um táxi. Sabia que o tempo era tudo, e os relógios

marcavam cinco e meia, o coronel provavelmente deixaria seu gabinets seis horas, e só Deus sabia onde a carta poderia estar no diaeguinte; destruída, talvez, ou perdida naquele monte de documentosue se formava à prisão de cada novo suspeito. O gabinete do coronecava no Departamento de Guerra, perto do cais. Quando eu subiapressadamente as escadas, o Guarda de Assalto em sentinela na poarrou-me a entrada com sua longa baioneta e exigiu "documentos".acudi meus papéis de baixa diante de seu rosto: era evidente que oujeito não sabia ler, e deixou-me passar, impressionado pelo vago

mistério dos "documentos". Lá dentro, encontrei uma complicação denúmeros gabinetes em cada pavimento, tudo em volta de um pátioentral, e como aquilo era Espanha, ninguém fazia a menor idéia dende estava o gabinete que eu procurava. Continuei a repetir: "El corojefe de ingenieros, Ejército de Este!" Riam e sacudiam os ombros co

raça. Todos que tinham um palpite mandavam-me em direção diferen

ubi esta escada, desci aquela, passando por corredores intermináveisue davam em becos sem saída. E o tempo se esgotava. Estava tomaor sensação estranhíssima, de que me encontrava num pesadelo - sudescer escadas às pressas, aquela gente misteriosa que ia e vinha, o

elances pelas portas abertas que davam para gabinetes caóticos, comapéis espalhados por toda a parte e máquinas de escrever funcionano tempo a escoar, tendo talvez uma vida na balança.

Cheguei a tempo, no entanto, e para minha ligeira surpresaoncederam-me uma entrevista. Não estive com o Coronel - mas comeu ajudante-de-ordens, ou secretário, um camarada baixote,nvergando elegante uniforme de oficial, de olhos grandes e vesgos, qeio estar comigo na ante-sala. Comecei a desenrolar minha história.

Viera em nome de meu oficial superior, Major Jorge Kopp, que sencontrava em missão urgente no front e fora preso por engano. A carara o Coronel era de natureza confidencial e devia ser recuperada se

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emora. Eu servira com Kopp por meses seguidos, ele era um oficial dmais elevado caráter, obviamente sua prisão fora fruto de engano, a

olícia o confundira com outrem, etc. etc. etc. Continuei a falar sobre argência da missão de Kopp no front, pois era esse o ponto mais forte essaltar. Minha apresentação do assunto, no entanto, deve ter-searecido a uma história esquisita, narrada em meu espanhol infame, q

pelava para o francês nos momentos de crise. O pior é que minha voumiu quase imediatamente, e apenas mediante violento esforço é queu consegui emitir uma espécie de grasnada. Causava-me pavor a idée que ela faltasse por completo e o oficialzinho se cansasse de tentaruvir o que eu tinha a dizer. Muitas vezes, depois disso, fiquei

maginando o que ele achou estar acontecendo com minha voz - seulgou que eu me encontrava bêbado, ou apenas sofrendo os rigores dma consciência culposa.

Ainda assim, ouviu-me com paciência, anuiu muitas vezes e apresentoeservada concordância para o que eu afirmava. Sim, parecia tercorrido um engano. Era claro que a questão devia ser examinada.Mañana..." Eu protestei. Mañana, não senhor! O caso era urgente, e

Kopp já devia estar na linha de frente. Mais uma vez ele pareceuoncordar. E fez, então, a pergunta que eu receava:

Esse Major ....... Em que força estava servindo?u tinha de pronunciar a palavra fatídica:

Na milícia do P.O.U.M.

P.O.U.M.!

u gostaria de poder dar ao leitor uma idéia do alarme que o oficial

emonstrou na voz. É preciso lembrar como o P. O. U. M. estava sendisto naquela época. Estávamos então no auge do medo aos espiões, rovavelmente todos os bons republicanos acreditaram, por um ou doiias, que o P. O. U. M. não passava de imensa organização despionagem a soldo dos alemães. Ter de dizer uma coisa daquelas a uficial do Exército Popular era o mesmo que ingressar repentinamenteum convento do século passado, vestido de diabo e cuspindo fogo.

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eus olhos negros examinaram meu rosto em trajeto oblíquo, 1eguiu-se outra pausa bem longa, e então ele indagou bem devagar:

E diz que esteve com ele no front. Nesse caso, também estavaervindo na milícia do P. O. U. M .?

Sim.

O homem fez meia volta e mergulhou para o interior do gabinete dooronel. Pude ouvir que, lá dentro, travavam conversa das mais agitadTudo acabado", pensei resignadamente. Jamais conseguiríamos a cae Kopp. Além disso, eu tivera de confessar que também estava no.O.U.M., e sem dúvida eles chamariam a polícia e entregar-me-iamreso, para adicionar mais um trotskista à coleção. Mas logo o oficialeaparecia, arrumando o quepe na cabeça e fazendo-me sinal austeroara que o acompanhasse. Estávamos seguindo para o gabinete do

Chefe de Polícia. A distância era longa, requerendo uma caminhada deinte minutos. O oficial seguia à minha frente, marchando com passosgidos, e não trocamos uma só palavra durante o caminho. Quandohegamos à Chefia de Policia, vimos diante da mesma uma coleção deriaturas que me pareceram os patifes mais repugnantes, evidentemenedos-duros, informantes e espiões de todo o tipo. O oficialzinho entro

eguiu-se prolongada e agitada conversa. Dava para ouvir as vozes que erguiam com fúria, e podia-se adivinhar que lá dentro havia gestosiolentos, gente dando de ombros, esmurrando a mesa. Era evidente qpolícia se recusava a ceder a carta. Mas o oficial apareceu, finalmen

ermelho mas trazendo um grande envelope oficial. Era a carta de Kopivemos uma pequena vitória - que, do modo como as coisas andaramão fez qualquer diferença. A carta foi devidamente entregue, mas osuperiores militares de Kopp não conseguiram tirá-lo da cadeia.

O oficial prometeu-me que a carta seria entregue. Mas, que me dizia dKopp? perguntei. Não podíamos soltá-lo? Ele deu de ombros. Isso era

utra questão. Não sabiam por qual motivo Kopp fora preso, e só podiaizer que seriam efetuadas as investigações adequadas no caso. Nãoavia mais o que tratar, chegara o momento de nos separarmos. Ambozemos ligeira mesura, e nisso ocorreu uma coisa estranha eomovente. O oficialzinho hesitou um instante, mas em seguida

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aminhou até onde eu estava, e apertou minha mão.

Não sei se posso fazer o leitor compreender a profundidade com quequele gesto me sensibilizou. Parece coisa tão insignificante, mas nãoorna-se necessário compreender o sentimento da época - a atmosferorrível de desconfiança e ódio, as mentiras e boatos circulando por to

parte, os cartazes a proclamar nos tapumes que eu e os outros éramspiões fascistas. É preciso lembrar que estávamos diante do gabineteo Chefe de Polícia, em frente daquela malta imunda de informantes egents provocateurs, qualquer um dos quais poderia saber que eu eraprocurado" pela polícia. O gesto era o mesmo que apertar publicamenmão de um alemão, durante a guerra mundial. Acredito que ele tenhachado que eu realmente não fosse espião fascista, mas ainda assim om receber seu aperto de mão.

Registro o acontecimento, por banal que pareça, porque de algum modle se mostra típico da Espanha - dos lampejos de magnanimidade que recebe dos espanhóis, nas piores circunstâncias. Tenho da Espanhs piores recordações, mas são pouquíssimas as recordações más quuardo dos espanhóis. Só recordo duas vezes em que fiquei seriamennraivecido com espanhóis, e em ambas, quando reflito sobre elas,credito que eu próprio estivesse errado. Não há a menor dúvida de qu

les possuem uma generosidade, uma espécie de nobreza, queealmente não pertencem ao Século XX. É o que nos faz manter asperança de que, na Espanha, até o fascismo adquira uma formaomparativamente mansa e tolerável. Poucos espanhóis apresentamquela eficiência e coerência miseráveis de que um estado moderno

otalitário necessita. Vimos um exemplo pequeno e curioso desse fatooucas noites antes, quando a policia vasculhara o quarto de minhasposa. A bem da verdade, essa busca fora coisa muito interessante, u gostaria de tê-la assistido, se bem que talvez não agüentasse.

A polícia efetuou a busca no estilo reconhecido da OGPU ou Gestapo.De madrugada bateram à porta, e seis homens entraram, ligaram a luzogo tomaram posições diferentes no quarto, em manobra que eralaramente planejada com antecedência. Depois deram uma batida emmbas as peças (havia um banheiro ligado ao quarto), com

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meticulosidade inconcebível. Sondaram as paredes, levantaram osapachos, examinaram o chão, apalparam as cortinas, olharam debaixa banheira e do aquecedor, esvaziaram todas as gavetas e malas,palparam todas as peças de roupa e as examinaram contra a luz.

Confiscaram todos os papéis, inclusive os que se achavam na cesta,evando também todos os nossos livros. Entraram num êxtase de

uspeita ao verificarem que possuíamos uma tradução francesa do MeKampf de Hitler, e se fosse o único livro por eles encontrado, nossoestino estaria selado. Está claro que quem lê Mein Kampf só pode se

ascista! Logo em seguida, no entanto, encontraram um exemplar doanfleto de Stalin, Meios de Liquidar Trotskistas e Outros Velhacos, e derto modo isso os acalmou. Numa das gavetas havia bom número de

maços de papel para enrolar cigarros. Examinaram cada maço, folha polha, para ver se havia mensagens escritas ali. Levaram perto de duaoras para efetuar a batida, mas por todo esse tempo não examinaramama. Minha mulher continuara deitada todo o tempo, sendo óbvio queodíamos ter submetralhadoras debaixo do colchão, para não falar em

oda uma biblioteca de documentos trotskistas sob o travesseiro. Mas etetives não fizeram qualquer menção de tocar a cama, e nem sequespiaram debaixo dela. Não posso crer que isso constitua um traçoomum às batidas efetuadas pela OGPU. Precisamos recordar que a

olícia estava quase inteiramente sob controle comunista, e aquelesomens deviam ser membros do Partido Comunista. Mas eramspanhóis, também, e tirar uma mulher da cama era coisa forte demaisara eles. Essa parte do trabalho ficou silenciosamente abandonada,

ornando sem sentido toda a batida.

Aquela noite McNair, Cottman e eu dormimos num gramado alto, ao lae um lote residencial abandonado. Foi fria a noite para a estação do

no em que nos encontrávamos, e nenhum dos três conseguiu dormirastante. Lembro-me das horas compridas e desalentadas em queondávamos de um para outro lado até se poder tomar uma xícara deafé. Pela primeira vez desde que chegara a Barcelona fui espiar aatedral - uma catedral moderna, e um dos edifícios mais repugnantese todo o mundo. Tem quatro torres com ameias, apresentando a formxata de garrafas de cerveja.

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Diversamente da maioria das igrejas em Barcelona, não fora danificadurante a revolução, e diziam que fora poupada devido a seu "valorrtístico". Acredito que os anarquistas demonstraram mau gosto em nãfazer explodir quando tiveram oportunidade para isso, emboraenduras sem uma bandeira rubro-negra entre suas torres. Aquela tard

minha mulher e eu fomos visitar Kopp pela última vez. Não havia coisa

lguma que pudéssemos fazer por ele, absolutamente nada, a não serar adeus e deixar dinheiro com amigos espanhóis, que lhe levariamomida e cigarros. Pouco mais tarde, no entanto, depois de deixarmosarcelona, ele era posto em incomunicabilidade, e nem comida podia

mais ser mandada para ele. Aquela noite, descendo a Ramblas,assamos pelo Café Moka, que os Guardas Civis continuavamcupando. Seguindo um impulso, entrei e conversei com dois deles, qustavam debruçados no balcão, com os fuzis pendurados nos ombros.erguntei se sabiam quais os seus companheiros que estiveram aliurante a luta de maio. Não sabiam e, com a costumeira vaguezaspanhola, ignoravam também como se poderia descobrir. Eu disse qu

meu amigo Jorge Kopp estava na prisão e talvez fosse levado aulgamento por alguma coisa relacionada à luta de maio, que os homeli presentes saberiam que ele fizera parar a luta e salvara algumasidas, que deviam apresentar-se a dar testemunho nesse sentido. Um

os homens com quem falei era sujeito estúpido e de aspecto bronco,ue só balançava a cabeça porque não conseguia ouvir minha voz emmeio ao ruído do tráfego. Mas o outro era criatura diferente. Disse que

uvira alguns companheiros falarem no ato de Kopp, e que este era umuen chico (um bom sujeito). Mas naquele momento eu sabia que aqura inútil. Se Kopp fosse submetido a julgamento, seria com provas

alsas, como acontece em todos os julgamentos assim. Se foi fuzilado eceio que tenha ocorrido isso) esse será seu epitáfio: o buen chico do

obre Guarda Civil, que fazia parte de um sistema sujo mas humano oastante para conhecer um ato decente quando o podia ver.

ra uma existência extraordinária e aloucada a que vivíamos. A noiteramos criminosos, mas durante o dia nos tornávamos prósperosisitantes ingleses - seja lá como for, era assim que nospresentávamos. Mesmo depois de dormir ao relento, barbear-se, tomanho e engraxar os sapatos fazem milagres com a aparência da

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essoa. O mais seguro naquela ocasião era parecer tão burguesesuanto possível. Freqüentávamos o quarteirão residencial elegante daidade, onde nossas fisionomias não eram conhecidas, íamos aestaurantes caros e nos mostrávamos muito ingleses com os garçonsela primeira vez em minha vida passei a escrever coisas nas paredess corredores de diversos restaurantes elegantes receberam um "Visc

. O. U . M.!" em letras tão grandes quanto eu as pude escrever. Duraodo esse tempo, embora estivesse escondido em teoria, não conseguentir-me em perigo. Aquilo tudo parecia absurdo demais. Eu possuía

nalterável crença inglesa de que "eles" não podem prender a gente, amenos que tenhamos transgredido a lei. Trata-se de crença das mais

efastas durante um pogrom político. Havia ordem de prisão emitidaontra McNair, e as possibilidades eram de que também estivéssemosa lista. As prisões, batidas e buscas continuavam sem cessar, eraticamente todos que conhecíamos, a não ser os que ainda sencontravam no front, já se achavam presos a essa altura. A políciastava examinando até os navios franceses que periodicamente partiaom refugiados, retirando dos mesmos os suspeitos de "trotskismo".

Graças à bondade do cônsul inglês, que deve ter passado uma semanastante difícil naquela ocasião, conseguimos pôr os passaportes emrdem. Quanto mais cedo partíssemos, melhor. Havia um trem queeveria partir para Port Bou às sete e meia da noite, e podíamos calcuue o fizesse por volta de oito e meia. Fizemos preparativos para que

minha esposa pedisse um táxi com antecedência e então arrumasse amalas, pagasse a conta e deixasse o hotel no último instante possível,

ois se desse aviso com tempo suficiente ao pessoal do hotel elesertamente mandariam avisar a polícia. Cheguei à estação por volta daete horas, e descobri que o trem já partira - saíra aos dez para as sete

O maquinista mudara de idéia, como de costume. Felizmenteonseguimos avisar minha mulher ainda a tempo. Havia outro trem queartiria cedo na manhã seguinte. McNair, Cottman e eu jantamos emequeno restaurante próximo à estação, e mediante perguntasautelosas descobrimos que seu dono era membro da C . N . T. e amigosso. Deu-nos um quarto com três camas e esqueceu-se de notificar olicia. Foi a primeira vez, em cinco noites, que pude tirar a roupa paraormir.

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orque pareciam-se demais a burgueses, ao que acredito. Agora a coistava ao contrário, e parecer burguês constituía a única salvação. Noegistro de passaportes eles procuraram nossos nomes no fichário deuspeitos, mas graças à ineficiencia da policia eles não estavam lá, ne

mesmo o de McNair. Fomos revistados dos pés à cabeça, mas nadaossuíamos que nos incriminasse, exceto meus papeis de baixa, e os

arabineiros que me revistaram não sabiam que a Vigesima-NonaDivisão era o P.O.U.M. Assim e que passamos pela barreira, eanscorridos seis meses exatos, eu regressava ao solo francês. Minhanicas recordações materiais da Espanha eram uma bolsa de água, feom pele de cabra, e uma daquelas minúsculas lamparinas de ferro, nuais os camponeses de Aragón queimavam azeite -- lamparinas quepresentavam quase o mesmo formato das de terracota, utilizadas pelomanos dois mil anos antes - e que eu apanhara em alguma choçarruinada, tendo continuado em minha bagagem sem que eu saibaomo.

Afinal de contas, verificamos que saímos da Espanha na hora exata. Orimeiro jornal que vimos anunciava a prisão de McNair por espionage

As autoridades espanholas mostraram-se um tanto prematuras aonunciar isso, e felizmente o "trotskismo" não constitui motivo paraxtradição.

Não sei qual e o primeiro ato apropriado para quem vem de um pais emuerra e chega a outro em paz. A primeira coisa que fiz foi correr param quiosque-tabacaria e comprar a quantidade de charutos e cigarrosue podia acomodar nos bolsos. Depois disso fomos todos ao bufete,

omamos uma xícara de chá, a primeira com leite fresco que eu ingeriam muitos meses. Passaram-se alguns dias para eu me habituar à idée que podia comprar cigarros sempre que o desejasse fazer. Estavaempre receando o fechamento das portas das tabacarias, e oparecimento do sinal proibitivo: No hay tabaco,

McNair e Cottman iam prosseguir viagem ate Paris. Minha esposa e euesembarcamos em Banyuls, a primeira estação na linha, achando queria bom descansarmos um pouco. Não fomos muito bem recebidos eanyuls, quando souberam que vínhamos de Barcelona, e muitas veze

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i-me envolvido na mesma conversa:

Então vocês vem da Espanha? Em que lado estavam? Com oGoverno? Oh! - e surgia acentuada frieza.

Aquela cidadezinha parecia compactamente favorável a Franco, comerteza devido aos diversos refugiados espanhóis fascistas quehegavam ali de vez em quando. O garçom no café que eu freqüentavra um espanhol a favor de Franco, e costumava brindar-me com olhae desprezo enquanto servia o aperitivo. Já em Perpignan as coisasram diferentes, pois o lugar estava repleto de partidários do Governospanhol, e todas as facções se achavam representadas ali, em cabalma contra as outras, de modo quase idêntico ao que ocorria emarcelona. Havia certo café no qual a palavra "P. O. U. M." granjeava

mediatamente a amizade dos franceses e o sorriso do garçom.Acho que ficamos três dias em Banyuls, e para mim foi uma ocasião d

stranha inquietação. Naquela pequena cidade de pescadores, distantas bombas, metralhadoras, filas de gêneros, propaganda e intriga,evíamos sentir-nos profundamente aliviados e gratos. Nada dissocorreu. As coisas que víramos na Espanha não ficavam para trás entravam na proporção justa, agora que estávamos distante delas; ao

nvés disso, voltavam a nossos espíritos com vigor e mostravam-se mumais vividas do que antes. Pensávamos, conversávamos e sonhávamoonstantemente sobre a Espanha, Meses antes dizíamos a nós mesmue "quando sairmos da Espanha" iremos para algum lugar ao lado do

Mediterrâneo e lá ficaremos algum tempo, e talvez pesquemos umouco, mas agora que estávamos ali, tudo aquilo não passava de tédioesapontamento. O tempo esfriara, um vento persistente vinha do margua mostrava-se descolorida e encapelada, e ao redor do porto uma

amada de cinzas, rolhas e tripas de peixe batia nas pedras. Pareceoucura, mas o que ambos desejávamos era regressar à Espanha.mbora isso não pudesse fazer bem a pessoa alguma, e na verdadepenas causaria muito dano, queríamos ambos ter ficado lá, prisioneir

untamente com os demais. Acho que não consegui demonstrar, nestaáginas, grande coisa do que representaram, para mim, aqueles mesea Espanha. Registrei alguns acontecimentos externos, mas não cons

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egistrar os sentimentos que eles deixaram em mim. A coisa toda estámisturada a visões, cheiros e sons que não podem ser transmitidos po

scrito: o odor das trincheiras, as alvoradas nas montanhasstendendo-se a distâncias inconcebíveis, o pipocar gelado das balas,strondo e clarão das bombas; a luz fria e clara das manhãs dearcelona, e a cadencia das botas no pátio do quartel, isso em

ezembro, quando o povo ainda acreditava na revolução; e as filas paomprar gêneros, as bandeiras vermelhas e negras, os rostos dosmilicianos espanhóis; acima de tudo, os rostos dos milicianos - homens

ue eu conhecera na linha de frente e que estão agora espalhados sabDeus por onde, alguns mortos em batalha, outros mutilados, outros na

risão - a maioria, ao que espero, ainda sã e salva. Boa sorte a todos!spero que ganhem sua guerra e expulsem da Espanha todos osstrangeiros - alemães, russos e italianos de cambulhada. Essa guerraa qual desempenhei papel tão insignificante, deixou-me recordações

más, em sua maior parte, mas ainda assim eu não desejaria deixar dee-las. Quando se consegue um vislumbre de desastre tamanho - eualquer que seja seu desfecho a guerra espanhola terá sido umesastre espantoso, para não falar na matança e no sofrimento físico -aí não resultam obrigatoriamente a desilusão e o cinismo. Curioso quareça, toda aquela experiência deixou-me uma crença não menor,

orem maior, na decência dos seres humanos. E espero que a narrativqui contida não seja das mais enganadoras. Acredito que em questãoomo esta ninguém se possa mostrar inteiramente verídico, E difícil tererteza de qualquer coisa, exceto o que vimos com nossos olhosróprios, e consciente ou inconscientemente todos escrevem comoartidários. Caso eu não o tenha dito em ocasião anterior, desejo dize-gora: cuidado com meu partidarismo, meus enganos de fato e aistorção inevitavelmente causada por ter visto apenas um lado dos

contecimentos. E peço que tenham o mesmo cuidado, quando leremualquer outro livro escrito sobre esse período da guerra civil espanho

or achar que devíamos fazer alguma coisa, embora realmente nadaouvesse nesse sentido, deixamos Banyuls antes do que havíamoslanejado. A cada quilômetro que se percorria para o Norte a França

ornava-se mais verde e macia. Longe da montanha e das videiras, deolta aos prados e aos olmos. Quando eu passara por Paris a caminho

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a Espanha, a cidade parecera decadente e sombria, muito diferenteaquela Paris que eu conhecera oito anos antes, quando a vida eraarata e não se ouvia falar em Hitler, Metade dos cafés que eu conhecstava fechada por falta de freguesia e todos se mostravam obcecadoom o alto custo de vida e o medo à guerra. Agora, depois de ter estada pobre Espanha, Paris afigurava-se alegre e próspera, e a Exposiçã

e encontrava em pleno funcionamento, embora conseguíssemos deixe visitá-la.

depois disso a Inglaterra - aquela Inglaterra meridional querovavelmente possui a paisagem mais insinuante de todo o mundo. Éifícil, para quem passa por ali, ainda mais quando sossegadamenteecobrando do enjôo do mar com almofadas de pelúcia do vagão deassageiros sob o traseiro, acreditar que realmente esteja acontecend

lguma coisa em qualquer parte do mundo. Terremotos no Japão, foma China, revoluções do México? Não se preocupe, o leite estarámanhã cedo em sua porta, o New Statesman sairá sexta-feira. Asidades industriais estavam distantes, num borrão de fumaça e misériaculto pela curvatura da superfície terrestre. Ali continuava existindo a

nglaterra que eu conhecera na infância: os cortes do leito ferroviárioomados por flores silvestres, os prados onde cavalos grandes erilhantes pastam e meditam, os rios e córregos de águas calmas erlados de salgueiros, os verdes seios dos olmos, as esporinhas nos

ardins das casas de campo, e depois disso o enorme agreste pacífico eriferia de Londres, as barcaças no rio barrento, as ruas conhecidas, artazes falando de partidas de cricket e casamentos na Corte, homenom chápeus-de-coco, os pombos da Praça Trafalgar, os ônibusermelhos, os policiais de azul - tudo isso dormindo o sono profundo,

muito profundo. da Inglaterra, do qual as vezes receio que jamais

espertaremos, senão quando arrancados dele pelo estrondo dasombas.

RECORDANDO A GUERRA CIVIL

m primeiro lugar desejo registrar as recordações físicas, os sons,heiros e aspecto das coisas.

curioso que, com nitidez maior do que qualquer outra coisa ocorrida

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osteriormente na guerra civil espanhola, eu me lembre da semana emue recebemos o chamado "treinamento", antes de seguirmos para aente de luta - o enorme quartel de cavalaria em Barcelona, com seusstábulos arejados e pátios cobertos de paralelepípedos, o frio regelada bomba onde se lavava o rosto, as refeições imundas que eram

ornadas toleráveis pelas vasilhas cheias de vinho, as mulheres

milicianas de calça comprida e rachando lenha, e a chamada bem cedela manhã, na qual meu prosaico nome inglês fazia um espécie denterlúdio cômico entre os retumbantes nomes espanhóis, ManuelGonzalez, Pedro Aguilar, Ramon Fenellosa, Roque Balíaster, JaimeDomenech, Sebastian Viltron, Ramou Nuvo Bosch. Enuncio estes nom

orque recordo muito bem as fisionomias de seus donos. Com exceçãe dois, que eram da rale e certamente se tornaram bons falangistas asta altura, e provável que os demais estejam mortos. Dois deles eu seue morreram, o mais velho com seus 25 anos, o mais novo comezesseis.

Uma das coisas essenciais da guerra e o fato de jamais podermosscapar aos odores nada atraentes e de origem humana. As latrinas sbjeto já por demais descrito na literatura de guerra, e eu não fariaualquer referencia às mesmas, a não ser pelo fato de que as de nossuartel tiveram sua parte na destruição de minhas ilusões a respeito dauerra civil espanhola. O tipo de latrina dos latinos, na qual é precisocococar-se, já não constitui coisa muito boa, mas aquelas eram feitase algum tipo de pedra polida, tão escorregadia que se tornava difícilstar de pé. Alem disso, estavam sempre entupidas. Ora, tenho muitasutras coisas desagradáveis na memória, mas acredito que foram essa

atrinas o que trouxe, pela primeira vez, o pensamento que voltaria comanta freqüência: Aqui estamos nós, soldados de um exercito

evolucionário, defendendo a democracia contra o fascismo, lutandouma guerra que foi travada por algum motivo, e o detalhe de nossasidas e tão sórdido e degradante quanto seria numa prisão, quanto maum exercito burguês! Muitas outras coisas vieram, mais tarde, reforçassa impressão, como por exemplo o tédio e a fome animalesca queespertava a vida de trincheira, as intrigas mesquinhas por causa deomida, as brigas importunas e ridículas em que se empenham homensgotados por não dormirem o bastante.

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O horror básico da vida militar (e quem foi soldado sabe o que queroizer por horror básico da vida militar) e pouquíssimo afetado pelaatureza da guerra em que se esteja lutando. A disciplina, por exemploem finalmente a ser a mesma em todos os exércitos. As ordens tem der obedecidas, e postas em vigor mediante castigo, se necessário, e elação entre oficial e subordinado precisa ser a de superior e inferior.

uadro de guerra apresentado por livros como All Quiet on the Westerront ("Tudo Tranqüilo na Frente Ocidental") é verdadeiro, em sua maiubstância. As balas doem, cadáveres cheiram mal, muitas vezes osomens submetidos a fogo inimigo ficam com medo a ponto de

molharem as calças. É verdade que o ambiente social do qual venha uxercito dá cor a seu treinamento, tática e eficiência geral, e também qconsciência de estar no lado certo fortalece o moral, embora isso afe

mais a população civil do que as tropas. (Esquecemos que um soldadom qualquer ponto próximo à linha de frente em geral está com fome,

medo ou frio demais, ou então por demais cansado para preocupar-seom as origens políticas da guerra). Mas as leis da natureza não sãouspensas para um exercito "vermelho", do mesmo modo como nãoessam para um outro que seja "branco". Um piolho é um piolho, umaomba é uma bomba, ainda que a causa pela qual lutemos seja justa.

or que vale a pena dizer coisas tão óbvias? Porque a maior parte daslasses instruídas, inglesas ou norte-americanas, manifestou-selaramente ignorante disso naquela ocasião, e continuam a sê-lo agora

Nossas memórias mostram-se fracas hoje, mas voltemos atrás umouco, examinemos os arquivos de New Masses ou Daily Worker, eastará um olhar à tralha guerreira que nossos esquerdistasmpregavam naquela ocasião. Aquelas frases antigas e cediças! A

nsensibilidade destituída de imaginação em tudo aquilo! O sangue-frio

om que Londres soube do bombardeio de Madri! Não estou dandoualquer atenção aos contrapropagandistas da direita, os Lunns, Garvt hoc genus, gente que nem merece referencia. Mas ali estavam as

mesmas pessoas que, por vinte anos, gritaram e saudaram a "glória" duerra, agitaram histórias de atrocidades, patriotismo e até a coragemsica, saindo-se com palavrório que, com alteração de alguns nomes,odia ser aceito pelo Daily Mail de 1918. Se havia uma coisa com a qus elementos instruídos, na Inglaterra, estivessem comprometidos, ess

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ra a versão que desmoralizava a guerra, a teoria de que a guerra seompõe de cadáveres e latrinas, e jamais conduz a qualquer resultadoproveitável. Pois bem, os mesmos que em 1933 soltavam risadinhasiedosas para quem dissesse que, em certas circunstâncias, lutaria peais, estavam em 1937 a denunciar como trotski-fascista quem afirmasaver algum exagero nas reportagens do New Masses, falando de

omens ainda feridos que bradavam por regressarem à luta. E oslementos instruídos da esquerda faziam sua reviravolta, passando deuerra é inferno" para "A guerra é gloriosa", não só faltos de qualquerentimento de coerência, mas quase sem passarem por uma etapa

ntermediária nessa transformação. Mais tarde a maioria iria fazer outraansições igualmente violentas. Deve ter havido bom número deessoas, uma espécie de núcleo dessa gente instruída, que aprovava eclaração de "Rei e Pátria" em 1935, gritava por uma "linha firme conAlemanha" em 1937, apoiava uma Convenção Popular em 1940 e esgora exigindo uma Segunda Frente.

No que diga respeito ao povo, as viradas extraordinárias de opinião aue estamos assistindo em nossos dias, as emoções que podem serostas a correr, ou fechadas, como uma torneira, constituem o resultada hipnose praticada por jornais e rádio. Nesses círculos instruídos euiria que elas resultam mais do dinheiro e da simples segurança física.m dado momento elas podem ser "a favor da guerra", ou "contra auerra", mas em qualquer dos casos não possuem um quadro realista uerra, em seus espíritos. Quando se entusiasmaram pela guerra civilspanhola sabiam, naturalmente, que havia gente morrendo e que

morrer é desagradável, mas achavam que para um soldado no exercitoepublicano espanhol a experiência da guerra, de certo modo, não eraegradante. Havia ocasiões, e de supor, em que as latrinas fediam

menos, a disciplina mostrava-se menos irritante. Basta olhar o Newtatesman para ver que elas acreditavam nisso, pois as baboseiras deeor idêntico estão agora mesmo sendo redigidas a respeito do Exercit

Vermelho. Tornamo-nos civilizados demais para compreender o que ebvio, pois a verdade não pode ser mais simples. Para sobreviver,

muitas vezes e preciso lutar, e para lutar temos de emporcalhar-nosntes. A guerra é um mal, e com freqüência constitui o mal menor. Osue tomam a espada morrem por ela, e os que não o fazem morrem d

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oenças fedorentas. O fato de que tal trivialidade mereça registroemonstra o que os anos de capitalismo rentier nos fizeram.

Com relação ao que acabo de afirmar, desejo fazer alguns comentárioobre atrocidades.

Disponho de poucas provas diretas a respeito de atrocidades cometidaa guerra civil espanhola. Sei que algumas foram praticadas pelosepublicanos, e em medida bem maior (que prossegue ainda hoje) peloascistas. Mas o que me chamou a atenção antes, e desde então nãoeixou de chamá-la, é o fato de que as atrocidades são tidas comoerdade ou mentira unicamente com base na predileção política de cadm. Todos acreditam nas atrocidades praticadas pelo inimigo, eecusam-se a crer nas cometidas pelo seu próprio lado, sem ao menosxaminar as provas. Faz pouco tempo que preparei uma tabela,egistrando as atrocidades perpetradas durante o período que vai de918 à atualidade e não encontrei um só ano no qual elas deixassem dcorrer numa ou noutra parte, mas não consegui achar um só caso emue tanto a esquerda quanto a direita dessem credito simultâneo às

mesmas histórias. Mais estranho ainda é que, a qualquer momento, a

ituação pode inverter-se, e a história de atrocidades mais do queomprovada de ontem, pode tornar-se mentira ridícula hoje, apenasorque o programa político transformou-se.

Na guerra atual encontramo-nos na situação curiosa de que nossacampanha de atrocidades" foi levada a efeito, em grande parte, antesuerra começar e principalmente pela esquerda, formada por aquelasessoas que via de regra se orgulham de sua incredulidade. Naquele

mesmo período a direita, os propagandeadores de atrocidades de914-18, estava examinando a Alemanha nazista e recusando-seerminantemente a ver qualquer mal ali. E depois, assim que a guerrastourou, eram os pró-nazistas de ontem que repetiam histórias deavor, enquanto os antinazistas repentinamente se viam duvidando atéa existência de uma Gestapo. Tampouco era isso apenas o resultadoo Pacto Russo-Germânico. Devia-se, em parte, ao fato de que antes uerra a esquerda acreditara erroneamente que a Grã-Bretanha e a

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Alemanha jamais entrariam em luta entre si e, portanto, conseguia ser mesmo tempo antigermânica e antibritânica. Também em parte isso er

evido à propaganda oficial de guerra, com sua hipocrisia asquerosa eirtude autoproclamada, que sempre se inclina a fazer com que asessoas dotadas de discernimento simpatizem com o inimigo. Parte doreço que pagamos pelas mentiras sistemáticas de 1914-17 foi a reaçã

ró-germânica exagerada que se seguiu. Nos anos entre 1918 e 1933ra vaiado pelos círculos esquerdistas quem sugerisse que a Alemanhvesse ao menos parte da responsabilidade pela guerra. Em meio aodas as denúncias feitas contra o Tratado de Versalhes naqueles anoão creio ter uma só vez ouvido a pergunta de quem se interessasse eaber o que teria acontecido se a Alemanha ganhasse a guerra, e mui

menos vi o assunto ser debatido. O mesmo ocorre com as atrocidadeserdade, ao que se percebe, torna-se inverdade quando pronunciadaelo inimigo. Recentemente observei que as mesmas pessoas quengoliam qualquer narrativa de horror a respeito dos japoneses em

Nanquim, em 1937, recusavam-se a acreditar nas mesmíssimas históreferentes a Hong Kong, em 1942. Havia até a tendência a achar que atrocidades de Nanquim tinham-se tornado, por assim dizer,etroativamente inverídicas, porque o Governo britânico estava agorahamando atenção para elas.

A verdade sobre atrocidades, no entanto, mostra-se desgraçadamentemuito pior do que quando ocorre ao mentir-se a seu respeito, e ao sere

ansformadas em propaganda. A verdade é que elas ocorrem. O fatomuitas vezes aduzido como razão para ceticismo - o de que as mesma

istórias de horror aparecem em guerra após guerra - simplesmenteorna mais provável que elas sejam verdadeiras. É evidente queonstituam fantasias generalizadas, e a guerra proporciona a

portunidade para serem postas em prática. Do mesmo modo, emboraenha deixado de estar na moda o dizer isso, resta pouca dúvida de qus que podemos a grosso modo chamar de "brancos" cometamtrocidades muito maiores e piores do que os "vermelhos". Não resta a

menor dúvida, por exemplo, sobre o comportamento dos japoneses naChina. Tampouco resta grande dúvida a respeito da longa lista de

frontas fascistas nos últimos dez anos, no continente europeu. Oolume de testemunhos prestados mostra-se enorme, e respeitável

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roporção dos mesmos vem da imprensa e rádio alemães. Essas coisaealmente acontecem, e é o que precisamos fixar de modo bem claro.

Aconteceram até mesmo quando Lord Halifax disse que eram verdadeiolação de mulheres e carnificina nas cidades chinesas, as torturas noorões da Gestapo, os idosos professores judeus atirados em sentinas

metralhamento de refugiados nas estradas espanholas - tudo isso

correu, e não ocorreu com menor intensidade apenas porque o Dailyelegraph tenha, repentinamente, descoberto isso, com cinco anos detraso.

m duas recordações, a primeira sem provar qualquer coisa definida, eegunda proporcionando, a meu ver, certa percepção da atmosfera de

m período revolucionário:em cedo, em certa manhã, outro homem e eu saímos para caçar

ascistas nas trincheiras ao redor de Huesca. A linha deles e a nossaistavam uns trezentos metros uma da outra, pelo que nossos fuzis nãodiam funcionar com grande precisão, mas deslizando até um pontoue ficava a uns cem metros do inimigo poderíamos, com sorte, atingirlguém por uma lacuna no parapeito inimigo. Infelizmente o terreno

ntermediário era um campo plano, plantado com beterrabas, semobertura alguma exceto algumas valas, tornando-se necessário sairnquanto ainda estava escuro e regressar logo depois do amanhecer,ntes de a luz tornar-se demasiada. Dessa feita não surgiram fascistascamos tempo demais, sendo apanhados pela alvorada. Estávamosuma vala, mas atrás de nós havia duzentos metros de terreno planonde não se dispunha de cobertura sequer para um coelho. Estávamoinda procurando juntar coragem para correr e atravessar aquele

spaço, quando um clamor e assovios na trincheira fascista veionunciar que alguns aeroplanos nossos estavam-se aproximando. Nes

momento um homem, que presumivelmente levava mensagem a umficial, saltou da trincheira e correu por cima do parapeito, bem à nossista. Estava semivestido, e segurava as calças com ambas as mãosnquanto corria. Deixei de atirar nele. É bem verdade que sou mautirador e não deveria atingir um homem correndo, a cem metros de

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istância, e também que meu pensamento principal estava em voltar àossa trincheira enquanto os fascistas estivessem com a atenção voltaara os aeroplanos. Ainda assim, não atirei em parte por causa desseetalhe das calças. Eu viera abrir fogo contra "fascistas", mas umomem que segura as calças nem chega a ser um "fascista", sendoerceptivelmente um semelhante, contra quem não se vai disparar.

Que fica demonstrado por incidente assim? Não se trata de grandeoisa, pois é o tipo de ocorrência constante em todas as guerras. O ou

ncidente é diferente, e não creio que ao narrá-lo possa fazer com que orne comovente para o leitor, mas peço acreditar que o foi para mim,omo incidente característico da atmosfera moral de um determinado

momento.

Um dos recrutas que vieram ter conosco enquanto eu estava no quartera um rapaz de olhar esgazeado, vindo das ruas pobres de Barcelonastava esfarrapado e descalço, e era extremamente moreno (de sangurabe, ao que me parece) e fazia gestos que em geral os europeus nã

azem. Um desses gestos - o braço estendido, a palma em vertical – earacterístico dos indianos. Certo dia um embrulho de charutos, queodíamos comprar a baixo preço naquela época, foi roubado de minhaama. Sem pensar no que fazia, dei parte disso ao oficial e um dos

elhacos de que já falei apresentou-se prontamente e disse, faltando dodo à verdade, que vinte e cinco pesetas foram roubadas de sua camor algum motivo que ignoro o oficial resolveu, ali mesmo, que o rapaz

moreno devia ser o ladrão. Havia rigor contra o roubo na milícia, e emeoria os ladrões podiam ser fuzilados. O pobre rapaz deixou-se levarara a casa da guarda para ser revistado, e o que mais me impression

oi que ele mal procurou protestar sua inocência. No fatalismo de suatitude podia-se perceber a pobreza desesperada em que fora criado. ficial ordenou-lhe que se despisse. Com humildade que, para mim, foorrível, ele se pôs nu e suas roupas foram revistadas. Está claro queem os charutos, nem o dinheiro, foram encontrados ali, e na verdadele não os roubara. O mais penoso de tudo é que ele não pareceu

menos envergonhado depois de ficar esclarecida sua inocência. Aqueloite levei-o ao cinema e lhe dei brandy e chocolate, mas tudo aquilo forrível demais, isto é, a tentativa de apagar um insulto com dinheiro.

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or alguns minutos eu quase acreditara que ele fosse ladrão, e isso nãodia ser apagado.

ois bem, algumas semanas depois, no front, tive problemas com umos homens em minha seção. A essa altura eu era "cabo", no comande doze homens. Estávamos em guerra estática, fazia um frio terrível,

trabalho principal estava em colocar sentinelas nos postos e fazer coue permanecessem acordadas. Certo dia um homem recusou-se a irara determinado posto, dizendo muito acertadamente que ali estariaxposto ao fogo do inimigo. Era uma criatura franzina, e eu o agarrei eomecei a arrastá-lo para lá. Isso fez despertar os sentimentos dosutros contra mim, pois os espanhóis, ao que penso, são mais sensíveo toque do que nós, os ingleses. No mesmo instante fui cercado poromens a gritar: "Fascista! Seu fascista! Solte o rapaz! Isto não é um

xército burguês! Seu fascista!", etc. etc. Tão bem quanto pude, em mspanhol muito ruim, gritei também que as ordens tinham de serbedecidas, e a briga se transformou num daqueles debatesrolongados por meio dos quais a disciplina é gradualmente implantados exércitos revolucionários. Alguns diziam que eu tinha razão, outrosue eu estava errado, mas o fato é que quem mais ardorosamente meefendeu foi o rapaz moreno. Assim que viu o que ocorria, entrou no

meio dos outros e começou a defender-me calorosamente. Com seuesto estranho e indiano, não parava de afirmar: "É o melhor cabo que

emos!" (No hay cabo como ei.) Mais tarde ele pedia licença parangressar em minha seção.

or que tal incidente me comove? Porque, em quaisquer circunstânciaormais, teria sido impossível o restabelecimento de bons sentimentosntre aquele rapaz e eu. A acusação de roubo não seria aliviada, e talv

osse um tanto agravada, por meus esforços no sentido de reparação.Um dos efeitos da vida segura e civilizada é uma supersensibílidademensa que faz todas as emoções primárias um tanto asquerosas. Aenerosidade mostra-se tão penosa quanto a mesquinhez, a gratidão tdienta quanto a ingratidão. Mas na Espanha de 1936 não estávamosivendo uma época normal. Era época na qual os sentimentos e gestoenerosos mostravam-se mais fáceis do que ocorre normalmente. Euoderia narrar uma dezena de incidentes semelhantes, que na verdade

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ão são comunicáveis mas que estão presos em meu espírito com atmosfera especial daquele tempo, com as roupas andrajosas e osartazes revolucionários de cures alegres, com o uso geral da palavracamarada" e com as balas antifascistas impressas em papel ordinárioendidas por um penny, com as expressões como "solidariedaderoletária internacional", repetidas de modo patético por homens

gnorantes que supunham terem algum significado. Era possível sentirmizade por alguém, e tomar seu lado numa briga, depois de sergnominiosamente revistado em sua presença, à busca de coisas queupunham ter sido roubadas dessa pessoa? Não, isso era impossível.

Mas poderia acontecer, se ambos passassem por alguma experiênciamocionalmente ampliadora. Eis um dos subprodutos da revolução,mbora nesse caso fosse apenas o início de uma revolução, claramenondenado a malograr.

A luta pelo poder entre os partidos republicanos espanhóis constitui umato infortunado e distante que não desejo reviver agora. Menciono-apenas para dizer: não creiam em coisa alguma, ou quase nada, do qu

erem a respeito dos assuntos internos no lado do Governo. Qualquerue seja sua fonte, é tudo propaganda partidária - isto é, mentira. A

erdade ampla a respeito dessa guerra mostra-se bastante simples. Aurguesia espanhola entreviu sua oportunidade de esmagar osmovimentos trabalhistas, e valeu-se dela, auxiliada pelos nazistas e

elas forças da reação em todo o mundo. É duvidoso que se venha aositivar qualquer coisa além disso.

embro-me de ter dito certa feita a Arthur Koestler que "a história parom 1936", ao que ele assentiu com sua compreensão imediata.

stávamos ambos pensando no totalitarismo em geral, porém de modomais particular na guerra civil espanhola. Em ocasião anterior de minhida notei que acontecimento algum é apresentado de maneira corretaum jornal, mas foi na Espanha que, pela primeira vez, pude observarelatos jornalísticos que não possuíam qualquer relação com os fatos,em mesmo aquela relação que fica implicada numa mentira comum. Vs relatos de grandes batalhas onde não se travara luta alguma, e

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ilêncio absoluto quando centenas de homens tinham sido mortos. Violdados que lutaram corajosamente denunciados como covardes eaidores, e outros que jamais ouviram um tiro sendo proclamados heróe vitórias imaginárias. E vi jornais em Londres divulgando essas

mentiras, e intelectuais apressados construindo superestruturasmocionais sobre acontecimentos que nem sequer ocorreram. Na

erdade, vi a história sendo escrita não em termos do que acontecera,mas do que deveria ter acontecido, de acordo com as diversas "linhasartidárias". Ainda assim, por mais terrível que fosse tudo isso, de cert

modo nada importava. Estava preso a questões secundárias - como auta pelo poder, travada entre o Cominform e os partidos esquerdistasspanhóis, e os esforços do Governo russo no sentido de impedir aevolução na Espanha. Mas o quadro amplo da guerra que o Governospanhol apresentava ao mundo não era falso. As questões principaisram as declaradas. Quanto aos fascistas e seus seguidores, jamaisoderiam chegar tão perto da verdade. Como poderiam enunciar seuserdadeiros objetivos? Sua versão para a guerra era pura fantasia, eaquelas circunstâncias não poderia ser outra coisa.

A única linha de propaganda que restava para nazistas e fascistasstava em se apresentarem como patriotas cristãos que salvavam aspanha de uma ditadura russa. Isso acarretava fingir que a vida naspanha, na parte do Governo, constituía apenas um longo massacre

vide o Catholic Herald ou o Daily Mail, embora esses dois nãoassassem de brinquedo infantil diante dos órgãos continentais da

mprensa fascista), e envolvia exagero imenso na escala da intervençãussa. De toda a pirâmide de mentiras formada pela imprensa católica eacionária de todo o mundo, cito apenas um exemplo - a presença dexército russo na Espanha - Partidários devotados de Franco

creditavam nisso, todos eles, e os cálculos quanto ao efetivo de talxército russo atingiam até quinhentos mil homens. Ora, não houveualquer exército russo na Espanha. Pode ter havido um punhado deviadores e outros técnicos, algumas centenas quando muito, masxército, não! Alguns milhares de estrangeiros que lutaram na Espanhara não falar em milhões de espanhóis, foram testemunhas disso. Poem, seu testemunho não causou impressão alguma sobre osropagandistas de Franco, nenhum dos quais pusera o pé na Espanha

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o Governo. Toda essa gente se recusava simultaneamente aeconhecer o fato da intervenção alemã ou italiana, ao mesmo tempo eue a imprensa germânica e italiana se jactavam abertamente das

açanhas de seus "legionários". Escolhi apenas um ponto paramencionar aqui, mas na verdade toda a propaganda fascista a respeito

a guerra se manteve nesse nível.

sse tipo de coisa me assusta, pois muitas vezes me proporciona oentimento de que o próprio conceito da verdade objetiva está acabanm nosso mundo. Afinal de contas, a probabilidade maior está em que

ais mentiras, ou então mentiras semelhantes, passarão à História. Coerá escrita a história da guerra civil espanhola? Se Franco continuar noder, seus nomeados escreverão os livros e (para ater-me ao pontoscolhido) um exército russo que nunca existiu tornar-se-á fato históric

os estudantes aprenderão isso nas gerações seguintes. Masuponhamos que o fascismo seja finalmente derrotado e se restaurelgum tipo de governo democrático na Espanha, no futuro mais ou

menos próximo. Ainda assim, como se escreverá a história da guerra?Que tipo de registros e documentos terá Franco deixado? Suponhamomesmo, que os registros e documentos, pelo lado do Governo, sejamecuperáveis. Ainda assim, como se poderá escrever uma verdadeiraistória da guerra? Pergunto isso porque, como indiquei antes, também

Governo emprega mentiras em larga escala. Pelo ângulo antifascista,eria possível escrever uma história em geral verdadeira, mas isso serbra partidária, inidônea em todos os pontos menores. Mas algum tipoe história será escrito, afinal de contas, e depois de estarem mortos

odos os que realmente se lembrarem do conflito, ele terá aceitaçãoeral. Para todos os fins práticos, portanto. a mentira ter-se-á tornadoerdade.

ei estar em voga a afirmação de que a maior parte da históriaocumentada não passa de mentiras. Estou pronto a crer que a histórieja imprecisa e infiel, mas o que se mostra peculiar de nossa própriara é o abandono da idéia de que a história poderia ser fielmente escri

No passado as pessoas mentiam deliberadamente, ou de modonconsciente davam cor ao que escreviam, ou esforçavam-se porncontrar a verdade, sabendo muito bem que tinham de cometer muito

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nganos; mas em todos os casos acreditavam que os "fatos" existissefossem mais ou menos encontráveis. E na prática sempre houve um

onjunto considerável de fatos sobre os quais quase todos concordavae olharmos a história da última guerra, por exemplo, na Encyclopaedritannica, verificaremos que respeitável soma de material informativo xtraída das fontes alemãs. Um historiador inglês e seu colega alemão

iscordariam profundamente em muitas coisas, até mesmo em pontosundamentais, mas continuaria de pé aquele conjunto de, por assimizer, fatos neutros, no qual nenhum dos dois divergiria seriamente doutro. É exatamente essa base comum de acordo, com sua implicaçãoe que os seres humanos são todos uma espécie de animal, que o

otalitarismo vem destruir. A teoria nazista, na verdade, nega de modoem claro que exista qualquer coisa como "a verdade". Não existe, porxemplo, coisa tal como "Ciência". Existe apenas a "Ciência Alemã", aCiência Judaica", etc. O objetivo contido nessa linha de pensamento ém mundo de pesadelo no qual o Dirigente, ou algum grupo governantontrola não só o futuro, mas também o passado. Se o Dirigente disseuanto a tal ou qual acontecimento, que o mesmo jamais ocorreu, é iss

mesmo - jamais ocorreu! Se disser que dois e dois são cinco - pois muem, dois e dois são cinco. Essa perspectiva me amedronta muito maio que as bombas - e depois de nossas experiências nos últimos anos

ão estou fazendo uma afirmação frívola.alvez seja infantil, no entanto, ou mesmo mórbido, apavorarmo-nos cisões de um futuro totalitário. Antes de cancelar o mundo totalitárioomo pesadelo que não se poderá concretizar, no entanto, convém

embrar que, em 1925, o mundo de hoje teria parecido um pesadelo sefetivação possível. Contra esse mundo fantasmagórico, no qual o preode ser branco amanhã, e as condições atmosféricas de ontem possa

er mudadas por decreto, só existem realmente duas salvaguardas. Uque, por mais que neguemos a verdade, ela continua existindo, porssim dizer, atrás de nossas costas, e por conseqüência não aoderemos violar por modos que diminuam a eficiência militar. A outraue enquanto algumas partes da terra continuarem inconquistadas,oderá ser sustentada a tradição liberal. Deixemos o fascismo, ou umaombinação de fascismos diversos, conquistar o mundo, e essas duasondições deixarão de existir. Nós, na Inglaterra, subestimamos o peri

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presentado por esse tipo de coisa, pois nossas tradições e segurançaassada proporcionaram-nos uma crença sentimental de que, no fim,

udo dá certo, e aquilo que mais receamos realmente jamais aconteceNutridos, séculos a fio, numa literatura em que invariavelmente o Bem

iunfa no último capítulo, acreditamos de modo semi-instintivo em quemal sempre derrota a si próprio, com o tempo. O pacifismo, por exemp

stá em grande parte fundamentado nessa crença. Não resistamos aomal, e de algum modo ele se destruirá sozinho. Mas por que haveria dazê-lo? Que prova existe de que isso aconteça? E que exemploncontramos de um moderno estado industrializado entrando emolapso, a menos que conquistado por força militar vinda do exterior?

xaminemos, por exemplo, a reinstituição da escravidão, Quem poderer imaginado, vinte anos atrás, que a escravidão voltaria à Europa? P

em, ela foi restaurada bem diante de nossos narizes. Os campos deabalhos forçados, espalhados por toda a Europa e África do Norte,nde os poloneses, russos, judeus e prisioneiros políticos de todas asaças labutam na construção de estradas ou drenagem de pântanos,ecebendo em troca apenas rações de subsistência, não passam deimples escravidão. O mais que alguém pode dizer é que não se perminda a compra e venda dos escravos. De outro modo - no rompimentoas famílias, por exemplo - as condições mostram-se piores hoje do qu

oram nas plantações de algodão da América, Não há motivo para crerue tal estado de coisas se modificará, enquanto perdurar algum domí

otalitário. Não compreendemos ou percebemos todas as suasmplicações, porque em nosso pensamento místico acreditamos que uegime fundamentado na escravidão tem de cair. Mas vale a penaomparar a duração dos impérios escravistas da antigüidade à deualquer estado moderno. Civilizações fundamentadas na escravidão

erduraram até quatro mil anos.Quando penso na antigüidade, o detalhe que me assusta é que centen

e milhões de escravos, em cujas costas a civilização se escorou porerações sucessivas, não deixaram qualquer registro histórico, Nemequer conhecemos seus nomes. Em toda a história grega ou romanauantos nomes de escravos se tornaram conhecidos? Só consigo penm dois, talvez três. Um é Espártaco, o outro Epícteto. No salão roman

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o Museu Britânico encontramos uma jarra de vidro com o nome de seabricante escrito no fundo: "Felix fecit". Faço um quadro mentalisualizando o pobre Félix (gaulês de cabelo vermelho e aro de metal eolta ao pescoço), mas na verdade ele pode não ter sido escravo, de

modo que restam apenas dois nomes conhecidos, e devem ser poucoss que conseguem lembrar-se de mais. Os outros, todos,

esapareceram em silêncio completo.

spinha dorsal da resistência a Franco foi a classe trabalhadoraspanhola, em especial os membros dos sindicatos urbanos. A longorazo - sendo importante lembrar que isso só acontece a longo prazo -lasse trabalhadora continua sendo o mais ferrenho inimigo do fascism

implesmente porque ela é que mais tem a ganhar com a reconstruçãoecente da sociedade. Diversamente de outras classes ou categorias,ão pode ser permanentemente subornada.

Dizer isso não é idealizar a classe trabalhadora. Na luta que se seguiuRevolução Russa, foram os trabalhadores manuais que se viram

errotados, sendo impossível deixar de achar que fora por sua própriaulpa. Repetidamente, num país após o outro, os movimentos

rganizados da classe trabalhadora foram esmagados pela violênciaberta e ilegal, e seus camaradas no exterior, ligados a eles por umaolidariedade teórica, simplesmente olharam o que ocorria e nadazeram: e por baixo de tudo isso, como causa secreta de muitas traiçõsteve o fato de que entre os trabalhadores brancos e os de cor nemequer se fala hipocritamente em solidariedade. Quem pode acreditar roletariado internacional com consciência de classe, depois doscontecimentos dos últimos dez anos? Para a classe trabalhadora

nglesa o massacre de seus camaradas em Viena, Berlim, Madri, ounde tenha ocorrido, pareceu coisa menos interessante e importante due a partida de futebol jogada na véspera. Isso, no entanto, não altera

ato de que a classe trabalhadora prosseguirá sua luta contra o fascismepois das outras classes terem caído. Um dos traços da conquista darança pelos nazistas foi o número espantoso de deserções no meio dente instruída, inclusive alguns elementos da esquerda política. A

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lasse instruída é formada pelas pessoas que mais alto clamam contraascismo, mas ainda assim uma respeitável proporção delas cai emerrotismo quando chegam os tempos difíceis. Elas dispõem de visãouficiente para perceberem as dificuldades erguidas contra si próprias,lém disso podem ser subornadas - pois já se tornou evidente que osazistas acham valer a pena subornar os intelectuais. Com a classe

abalhadora ocorre o contrário. Formada por elementos ignorantesemais para verem além do truque que executam contra eles, engolemom facilidade as promessas do fascismo, mas cedo ou tarde semprempreendem novamente a luta. Têm de fazer isso, pois em seusróprios corpos sempre descobrem que as promessas do fascismo nãodem ser cumpridas. Para conquistarem de modo permanente a clasabalhadora, os fascistas teriam de elevar o padrão de vida geral, o qurovavelmente não quereriam fazer, e não podem fazer. A luta da clasabalhadora é como o crescimento de uma planta. A planta é cega estúpida, mas sabe o bastante para continuar subindo para a luz, e far

sso a despeito de todas as dificuldades e empecilhos. Pelo que estãoutando os trabalhadores? Apenas pela vida decente que cada vez maabem ser tecnicamente possível. Sua consciência desse objetivoumenta e diminui. Na Espanha, por algum tempo, as pessoas agiamonscientemente, marchando para uma direção que desejavam seguir

isando uma meta que acreditavam poder atingir. Isso explicava oentimento curiosamente alegre que a vida da Espanha do Governopresentou nos primeiros meses da guerra. As pessoas comuns sabiaentiam nos próprios ossos, que a República era sua amiga e Franco oeu inimigo. Sabiam estar certas, pois lutavam por algo que o mundo

hes devia, e podia proporcionar-lhes.

preciso lembrar disso para ver a guerra civil espanhola em sua

erdadeira perspectiva. Quando se pensa na crueldade, miséria eutilidade da guerra - e neste caso particular, nas intrigas, perseguiçõementiras e incompreensões - sempre surge a tentação de dizer: "Umado é tão ruim quanto o outro, e eu sou neutro". Na prática, porém,inguém pode ser neutro e não existe guerra onde não faça diferençauem ganhou. Quase sempre um lado é a favor do progresso. O outrostá mais ou menos com a reação. O ódio que a República espanholaespertava nos milionários, duques, cardeais, playboys, coronéis Blimp

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mais deveria por si só bastar para mostrar as direções. Tratava-se, euma, de uma guerra de classes. Se fosse ganha, a causa do povo emoda a parte seria fortalecida. Foi perdida, e em todo o mundo osecebedores de dividendos esfregaram as mãos em contentamento. Essa a questão verdadeira, e tudo o mais não passava de cortina de

umaça.

O desfecho da guerra civil espanhola foi acertado em Londres, Paris,Roma, Berlim - em qualquer lugar, menos na Espanha. Depois do verã

e 1937 os que tinham olhos na cara compreenderam que o Governoão poderia ganhar a guerra, a menos que ocorressem transformaçõerofundas no panorama internacional, e ao resolverem prosseguir na l

Negrin e os demais devem, em parte, ter sido influenciados pelaxpectativa da guerra mundial, em 1938, e na verdade eclodida em939. A desunião muito propagandeada, no lado do Governo, nãoonstituiu causa maior de derrota. As milícias governamentais foramormadas às pressas, estavam mal armadas e não contavam comrandes recursos em possibilidade militar, mas teriam sido a mesmaoisa ainda que existisse completo acordo político desde o início. Aoclodir a guerra, o operário espanhol comum nem sequer sabia como

isparar o fuzil (jamais houvera serviço militar obrigatório no país), e oacifismo tradicional da esquerda constituiu grande tropeço. Os milhare estrangeiros que serviram na Espanha formavam boa infantaria, maavia pouquíssimos técnicos de qualquer especialidade entre os

mesmos. A tese trotskista de que a guerra poderia ter sido ganha se aevolução não fosse sabotada provavelmente era falsa. Nacionalizar aábricas, demolir as igrejas e emitir manifestos revolucionários nãoeriam medidas capazes de tornar mais eficientes os exércitos. Osascistas venceram porque eram mais fortes, dispunham de exércitos

modernos, e os seus oponentes não. Nenhuma estratégia políticaoderia contrabalançar isso.

O ponto mais intrigante na guerra civil espanhola foi o comportamentoas grandes potências. Na verdade, essa guerra foi ganha para Francoelos alemães e italianos, cujos motivos para fazê-lo eram bastante

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videntes. Já os motivos a justificar a atitude de França e Inglaterraarecem menos fáceis de entender. Em 1936 já se tornarauficientemente claro para todos que se a Grã-Bretanha desse qualqueuxílio ao Governo espanhol, até mesmo na medida de alguns milhõese libras em armas, Franco cairia e a estratégia alemã ver-se-iaeriamente deslocada. Naquela época ninguém precisava ser

larividente para sentir que se aproximava a guerra entre Inglaterra eAlemanha, e podia-se mesmo prever sua eclosão com antecedência dm ou dois anos. Ainda assim, do modo mais mesquinho, covarde eipócrita a classe governante inglesa fez o possível para entregar aspanha a Franco e aos nazistas. Por quê? Porque ela própria era

avorável aos fascistas, eis a resposta. Certamente o era, mas aindassim, quando chegamos ao ponto decisivo, preferiu fazer frente à

Alemanha. Está ainda muito obscuro o plano pelo qual ela agiu,poiando Franco, e pode ser que não tivesse plano algum. Saber se alasse governante inglesa é podre ou apenas estúpida constitui um donigmas mais difíceis de nossa época, e em certos momentos constituergunta das mais importantes. Quanto aos russos, sua motivação nauerra civil espanhola mostra-se completamente inescrutável. Teriamles, como acreditam os simpatizantes do comunismo, intervindo naspanha a fim de defenderem a Democracia e ir contra os nazistas?

Nesse caso, por que intervieram em escala tão insignificante, ecabaram deixando a Espanha no buraco, entregue a si própria? Oueriam, como sustentam os católicos, intervindo a fim de fomentar aevolução na Espanha? Nesse caso, por que fizeram tudo quantouderam para esmagar os movimentos revolucionários espanhóis,efender a propriedade privada e entregar o poder à classe média,ontra a classe trabalhadora? Ou teriam, como sugeriram os trotskista

ntervindo apenas para impedir uma revolução espanhola? Nesse caso

or que deixaram de dar seu apoio a Franco? Na verdade, seus atosornam-se mais fáceis de explicar quando supomos que estivessemgindo impulsionados por diversos motivos contraditórios. Acredito queo futuro, passaremos a perceber que a política externa de Stalin, ao

nvés de tão diabolicamente hábil quanto dizem, foi apenas oportunistastúpida. Seja lá como for, a guerra civil espanhola demonstrou que osazistas sabiam o que estavam fazendo, e seus oponentes não. A gue

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oi empreendida em baixo nível técnico, e sua estratégia principal eraastante simples. O lado que tivesse armas seria o vencedor. Osazistas e italianos deram armas a seus amigos fascistas espanhóis, es democracias ocidentais e os russos não as deram aos que deveriam

er sido seus amigos. Assim foi que a República espanhola caiu, tendorecebido o que não fazia falta a república alguma".

aber se estava certo, como todos os esquerdistas em outros paísesertamente o fizeram, incentivar os espanhóis para o prosseguimento

uta, quando não podiam vencer, eis questão difícil de elucidar. Eu,essoalmente, acho que estava certo, pois acredito que é melhor - doonto de vista da sobrevivência - lutar e ser batido do que render-se se

uta. Os efeitos sobre a estratégia global da luta contra o fascismo aindão podem ser avaliados. Os exércitos esfarrapados e sem armas da

República sustentaram o embate por dois anos e meio, o que certameoi mais tempo do que o esperado pelos inimigos. Mas saber se issoeslocou o cronograma fascista ou se, por outro lado, simplesmentediou a guerra maior e deu aos nazistas mais tempo para ajustar sua

máquina de guerra, eis outras questões ainda por elucidar.

amais consigo pensar na guerra civil espanhola sem que duasecordações venham ao meu espírito. Uma delas é da enfermaria deospital em Lerida, e as vozes bastante tristes dos milicianos feridos,antando alguma canção cujo refrão dizia:

Una revolucion,

Luchar hast' al fin!

ois bem, eles lutaram até ao fim, não resta a menor dúvida. Nos últimezoito meses da guerra os exércitos republicanos devem ter lutadouase sem cigarros, e com pouquíssima comida. Já quando deixei aspanha, em meados de 1937, a carne e o pão eram raros, o fumo ain

mais, e o café e açúcar quase impossíveis de conseguir.

A outra recordação é do miliciano italiano que apertou minha mão na

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ala de guarda, no dia em que ingressei na milícia. Escrevi acerca desomem no inicio de meu livro sobre a guerra civil espanhola. e não queepetir o que disse ali. Quando lembro - e com que nitidez! - de seuniforme surrado e rosto feroz, patético e inocente, parecem diluir-se

odas as questões complexas da guerra, e vejo com clareza que nãoavia, ao menos, dúvida alguma sobre quem estava no lado certo. A

espeito da política das potências e das mentiras jornalísticas, a questentral da guerra estava na tentativa feita por gente como ele poronquistar a vida decente que sabiam ser seu direito. É difícil pensar nm provável desse homem, sem sentir diversos ressaibos amargos.endo-o conhecido no Quartel Lênin, tratava-se provavelmente de umotskista ou anarquista, e nas condições peculiares da época, quandoente assim não é morta pela Gestapo, termina assassinada pela G. P

U. Mas isso não afeta as questões de longo prazo. O rosto daqueleomem, que vi por um minuto ou dois, apenas, contínua comigo como

embrete visual do que estava realmente em jogo naquela guerra. Paramim ele simboliza a flor da classe trabalhadora européia, perseguida

ela polícia de todos os países, a gente que enchia as valas comuns depultamento em massa nos campos de batalha da Espanha e que esgora, na casa de alguns milhões, apodrecendo nos campos deabalhos forçados.

Quando se pensa em todas as pessoas que apoiam ou apoiaram oascismo, fica-se espantado por sua diversidade. Que seleção!ensemos num programa qualquer que, de algum modo, pudesse reu

Hitler, Pétam, Montagu Norman, Pavelitch, William Randolph Hearst,treicher, Buchman, Ezra Pound, Juan March, Cocteau, Thyssen, Pad

Coughlin, o Mufti de Jerusalém. Arnold Lunn, Antonescu, Spengler,everley Nichols, Lady Houston e Marinetti, todos no mesmo barco! M

pista mostra-se realmente, muito simples. São, todos eles, gente queem algo a perder, ou gente que anseia por uma sociedade hierárquicaeceia a possibilidade de um mundo de seres humanos livres e iguais.or trás de toda a bobagem que circula a respeito da Rússia "sem Deuo "materialismo" da classe trabalhadora, encontramos a intenção

imples daqueles que têm dinheiro ou privilégios aos quais se aferrar. mesmo ocorre, embora contenha uma verdade parcial, com toda aalação a respeito da falta de valor de uma reconstrução social que não

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eja acompanhada por uma "modificação do coração". Os elementosiedosos, desde o Papa até os iogues da Califórnia, dão grande valor ssa "modificação do coração", que se mostra em seu ponto de vista

muito mais importante do que uma modificação no sistema econômicoétam atribui a queda da França ao "amor ao prazer por parte dasessoas comuns". É possível ver isso na perspectiva certa quando se

ára a fim de imaginar quanto prazer contém a vida de um camponês oabalhador francês comum, comparada à de Pétam. A impertinênciaretina desses políticos, sacerdotes, literatos e o que mais for, queepreendem o socialista da classe trabalhadora por seu "materialismo"udo quanto o trabalhador exige é o que esses outros considerariam o

mínimo indispensável para si próprios, sem o que a vida humana nãoode ser vivida. O suficiente para comer, libertação quanto ao pavor quausa o desemprego, o conhecimento de que os filhos terãoportunidade justa, um banho diário, roupa de cama limpa comeqüência razoável, um teto que não tenha goteiras, o horário deabalho bastante curto para deixar um pouco de energia no corpo, aoncerrar-se o dia de trabalho. Nem um só dos que pregam contra o

materialismo consideraria a vida coisa digna de viver, sem dispor dessoisas. E com que facilidade esse mínimo poderia ser alcançado, seesolvêssemos prestar-lhe atenção por apenas vinte anos! Elevar o

adrão de vida de todo o mundo ao nível alcançado na Grã-Bretanhaão constituiria empreendimento maior do que a guerra que acabamose empreender. Não afirmo, e não conheço quem afirme, que issoesolvesse alguma coisa por si só. O fato é que a privação e o trabalhoruto têm de ser abolidos antes que se possam atacar os verdadeirosroblemas da humanidade. O maior problema de nosso tempo está noeclínio da crença na imortalidade pessoal, e ele não poderá serxaminado enquanto o ser humano comum está em trabalho servil, co

oi de canga, ou tremendo de medo da polícia secreta. Como estãoertas as classes trabalhadoras, em seu "materialismo"! Como estãoertas, ao compreenderem que o estômago vem antes da alma, não nscala de valores, mas na questão do tempo! É compreendermos issohorror prolongado que estamos sofrendo se torna, ao menos,

nteligível. Todas as considerações prestam-se a fazer com queaquejemos - as vozes estridentes de um Pétam ou um Gandhi o fato

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nescapável de que para lutar é preciso degradar-se, a posição moralquivoca da Grã-Bretanha, com suas frases democráticas e seu impéraseado no trabalho servil, o desenvolvimento sinistro da Rússiaoviética, a farsa desbotada da política esquerdista - tudo isso esmaecvemos apenas a luta do homem comum, que desperta gradualmente

ontra os senhores da propriedade e seus empregados, mentirosos e

ambe-rabos. A questão é muito simples. Gente como aquele soldadoaliano deve ou não deve ter permissão para viver a vida decente enteiramente humana que hoje se tornou tecnicamente atingível? Deveomem comum ser empurrado ou não de volta à lama? Pessoalmentecredito, talvez com base insuficiente para isso, que o homem comumencerá sua luta mais cedo ou mais tarde, mas desejo que seja maisedo, e não mais tarde - nos próximos cem anos, digamos, e não emlgumas épocas situada nos próximos dez mil anos. Era essa a questãerdadeira na guerra civil espanhola, e também da última guerra, e talveja a de outras guerras que ainda estão por vir.

Nunca mais vi aquele miliciano italiano, e tampouco fiquei sabendo come chamava. Posso ter como certo que esteja morto. Quase dois anosepois, quando já se via que a guerra estava perdida, fiz os seguintesersos em sua memória:

The Italian soldier shook my handBeside the guard-room table;

The strong hand and the subtie hand

Whose palms are only able

 To meet within the sound of guns,

But oh! what peace i knew then

in gazing on his battered face

Purer than any woman's!

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 For the flyblown words that make me spew

Still in his ears were holy,

And he was bom knowing what i had learned

Out of books and slowly. 

The treacherous guns had told their tale

And we both had bought it,

But my gold brick was made of gold –

Oh! who ever would have thought it? 

Good luck go with you,

Italian soldier! But luck is not for the brave;

What would the world give back to you?Always less than you gave.

 Between the shadow and *he ghost,

Between the white and the red,

Between the bullet and the lie,

Where would you hide your head? 

For where is Manuel Gonzalez,

And where is Pedro Aguilar,

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And where is Ramon Feneilosa?

The earthworms know where they are. 

Your name and your deeds were forgotten

Before your bones were dry,

And the lie that slew you is buried

Under a deeper lie.

 

But the thing that i saw in your faceNo power can dísinherit:

No bomb that ever burst

Shatters the ciystal spirit.

O soldado italiano apertou-me a mão/ bem ao lado da mesa da guardA mão forte e a mão sutil/ Cujas palmas só conseguem/ encontrar-se aom de canhões,/ mas que paz de espírito eu tive,/ ao ver-me o rostoxperiente,/ mais puro que o de uma mulher! l Pois as palavras sujas q

me fazem vomitar ainda eram santas aos seus ouvidos / e ele nasceraabendo o que eu / nos livros aprendera devagar./ As armas traiçoeiraaviam falado / e ambos tínhamos acreditado,/ mas eu vinha de berçouro,/ Oh! Quem teria imaginado isso?/ Boa sorte para você, soldadoaliano! l Mas a sorte não é para homens valentes./ Que lhe teria dado

mundo em troca?/ Sempre menos do que você lhe deu./ Entre a sombo fantasma,/ entre o branco e o vermelho,/ entre a bala e a mentira,/ nde iria você ocultar a cabeça?/ Pois onde está Manuel Gonzalez?/ 

Onde está Pedro Aguilar?/ Onde está Ramon Fenellosa?/ Os vermesabem onde eles estão./ Seu nome e feitos foram olvidados,/ antes deeus ossos secarem./ E a mentira que o matou está debaixo / de ment

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mais profunda ainda;/ Mas o que vi em seu rosto./ Nenhum poder e'apaz de anular:/ Nenhuma bomba que venha a explodir./ Estilhaça ospírito cristalino.

- Personagem cômico de militar entre velho e demente, criado peloatirista David Low, na imprensa inglesa, durante a ultima guerra mund

antes, em deliciosas charges que também circularam - ao menoslgumas - no Brasil. (N . T.)

- Quíroga, Barrios e Giral. Os dois primeiros recusaram-se a distribuirmas aos sindicatos.

- Comite Central de Milícias Antifascistas. Seus delegados eramscolhidos em proporção ao número de membros de suas organizaçõe

Nove delegados representavam os sindicatos, três os partidos liberaisCatalães, e dois os diversos partidos marxistas (P.O.U.M., comunistas

utros).

- Por isso eram tão poucas as armas russas na frente de Aragón, onds soldados em sua maioria eram anarquistas. Até abril de 1937 a únicrma russa que vi - com exceção de alguns aeroplanos que podem terido russos ou não - foi uma submetralhadora.

- Na Câmara de Deputados, março de 1935.- A melhor narrativa da interação dos partidos no lado do Governoncontra-se no livro The Spanish Cockpit, de Franz Borkenau. Trata-seem a menor dúvida, do livro mais completo já publicado até agora sobguerra espanhola.

- As cifras referentes aos membros do P .0. U . M. são dadas da

eguinte maneira: julho de 1936, 10 000; dezembro de 1936, 70 000;unho de 1937,40.000. Mas elas vêm de fontes do P.O.U.M., e umastimativa hostil provavelmente as reduziria à quarta parte. A única coiue se pode afirmar com certeza a respeito do número de membros noartidos políticos espanhóis é que cada um destes superestima taisifras.

- Gostaria de abrir uma exceção para o Manchester Guardian. Em

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elação a este livro, tive de examinar os arquivos de bom número deornais ingleses, e entre os maiores do país o Manchester Guardian ve

ser o único que me deixa com um respeito maior por sua honestidad

- As patrulhas de trabalhadores, ao que se afirma, fecharam 75% doordéis.

0 - Membros do Royal lrish Constabulary, recrutados na Inglaterra paervirem na Irlanda durante as desordens e agitações de 1919-1921,ontra o movimento pela independência de seu próprio país.

1 - Uma edição recente de Japrecar afirma o oposto - que La Batallardenou aos soldados do P.O.U.M. que deixassem a linha de frente! Auestão pode ser facilmente elucidada mediante consulta à La Batalla ata citada.

2 - New Statesman (14 de maio).

3 - A eclosão da guerra os Guardas Civis tomaram por toda a parte, oado do mais forte - Em diversas ocasiões subseqüentes, como emantander, os Guardas Civis locais passaram-se incorporados para o

ado fascista.

4 - Os relatos sobre as duas delegações podem ser encontrados em opulaire (7 de setembro), La Flèche (18 de setembro), Relatório sobrelegação Maxton, publicado pelo lndependent News (219 Rueaint-Denís, Paris), e o panfleto de McGovern, TERROR IN SPAIN

5 - O poder aquisitivo da peseta era, aproximadamente, de quatroenni's. 16 - V. relatórios da delegaçao Maxton a que me referi noapítulo li.

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