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LÉOPOLD SÉDAR SENGHOR NO BRASIL POR UMA “COMUNIDADE LUSO-AFRO-BRASILEIRA” (1964-1977): UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DE SEU DISCURSO POLÍTICO E AS RELAÇÕES COM OS MOVIMENTOS DE DESCOLONIZAÇÃO EM ÁFRICA Camille Johann Scholl Doutoranda PUCRS e-mail: [email protected] Resumo Este trabalho pretende analisar as duas viagens do presidente do Senegal Léopold Sédar Senghor ao Brasil, em 1964 e 1977, pensando os discursos proferidos em 1964 na busca de compreender o significado das relações políticas entre Senegal e Brasil no nível internacional, sobretudo em relação os movimentos de descolonização no continente africano. Esta pesquisa investiga os discursos do presidente Senghor pensando de que maneira este articulou a “Negritude” e a “Latinidade”, na sua busca por incitar a criação de uma comunidade luso-afro-brasileira”. A investigação pretende discorrer sobre estas duas viagens, cada uma em seu contexto histórico e dará ênfase a primeira, com vista a analisar a política internacional perpetrada pelo presidente senegalês Senghor e o que estas viagens representaram para os movimentos de descolonização nas colônias portuguesas em África. Palavras-chave: Léopold Sédar Senghor; descolonização; comunidade luso-afro- brasileira; negritude. Este trabalho pretende analisar as duas viagens do presidente do Senegal Léopold Sédar Senghor ao Brasil, em 1964 e 1977, pensando os discursos proferidos em 1964 1 na busca de compreender o significado das relações políticas entre Senegal e Brasil no nível internacional, sobretudo em relação os movimentos de descolonização no continente africano. A investigação discorre sobre estas duas viagens, cada uma em seu contexto histórico, analisando a política perpetrada pelo presidente senegalês Senghor e o que estas 1 Esta opção se deu pois foi em 1964 que Léopold Sédar Senghor fez uma viagem mais longa a diversas cidades brasileiras e realizou mais discursos, dialogando bastante com políticos e alguns intelectuais brasileiros. Foi esta visita que deu a balisa das relações entre Senegal e Brasil, assim como o tom da aproximação e do discurso, que foi reproduzido em 1977, viagem de menor tamanho.

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Page 1: LUSO-AFRO-BRASILEIRA” (1964-1977): UMA INVESTIGAÇÃO … · 4 Senghor relembra esse histórico em discurso no Brasil: “Fomos, desde 1960, uma das primeiras nações

LÉOPOLD SÉDAR SENGHOR NO BRASIL POR UMA “COMUNIDADE

LUSO-AFRO-BRASILEIRA” (1964-1977): UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DE

SEU DISCURSO POLÍTICO E AS RELAÇÕES COM OS MOVIMENTOS DE

DESCOLONIZAÇÃO EM ÁFRICA

Camille Johann Scholl

Doutoranda PUCRS

e-mail: [email protected]

Resumo

Este trabalho pretende analisar as duas viagens do presidente do Senegal Léopold Sédar

Senghor ao Brasil, em 1964 e 1977, pensando os discursos proferidos em 1964 na busca

de compreender o significado das relações políticas entre Senegal e Brasil no nível

internacional, sobretudo em relação os movimentos de descolonização no continente

africano. Esta pesquisa investiga os discursos do presidente Senghor pensando de que

maneira este articulou a “Negritude” e a “Latinidade”, na sua busca por incitar a criação

de uma “comunidade luso-afro-brasileira”. A investigação pretende discorrer sobre estas

duas viagens, cada uma em seu contexto histórico e dará ênfase a primeira, com vista a

analisar a política internacional perpetrada pelo presidente senegalês Senghor e o que

estas viagens representaram para os movimentos de descolonização nas colônias

portuguesas em África.

Palavras-chave: Léopold Sédar Senghor; descolonização; comunidade luso-afro-

brasileira; negritude.

Este trabalho pretende analisar as duas viagens do presidente do Senegal Léopold

Sédar Senghor ao Brasil, em 1964 e 1977, pensando os discursos proferidos em 19641 na

busca de compreender o significado das relações políticas entre Senegal e Brasil no nível

internacional, sobretudo em relação os movimentos de descolonização no continente

africano.

A investigação discorre sobre estas duas viagens, cada uma em seu contexto

histórico, analisando a política perpetrada pelo presidente senegalês Senghor e o que estas

1 Esta opção se deu pois foi em 1964 que Léopold Sédar Senghor fez uma viagem mais longa a diversas

cidades brasileiras e realizou mais discursos, dialogando bastante com políticos e alguns intelectuais

brasileiros. Foi esta visita que deu a balisa das relações entre Senegal e Brasil, assim como o tom da

aproximação e do discurso, que foi reproduzido em 1977, viagem de menor tamanho.

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viagens representaram para os movimentos de descolonização nas colônias portuguesas

em África nestes dois períodos. Dar-se-á ênfase na viagem de 1964 visto que esta foi mais

longa e intensa, de maior vulto político e mais divulgada.

Neste artigo estão postas opções metodológicas que se referem a valorização da

inclusão de citações de forma a evidenciar os discursos, “ouvindo os autores”, analisando

em consonância com o contexto de fala, observando os vocabulários, conceitos e

expressões. Portanto, é a partir do discurso político presente nas fontes – que são as

transcrições das falas e debates aos quais Léopold Senghor foi protagonista em suas

viagens ao Brasil - que a análise é feita em conjunto com outras fontes que ajudam a

perceber o contexto – dois jornais cariocas2 que acompanharam a viagem de Senghor,

sobretudo em 1964 e que transcreveram seus discursos.

Este trabalho pretende evidenciar como Léopold Senghor manejava com a ideia

proposta pelo nome de “latinidade” em paralelo a “negritude”, pensando sua

intencionalidade na proposta de uma “comunidade luso-afro-brasileira”, tendo como

panorama de análise os distintos contextos das duas viagens de Senghor ao Brasil.

A viagem de 1964: preparação e antecedentes

Léopold Senghor veio ao Brasil no dia 19 de Setembro de 1964. Esta visita tem

uma série de antecedentes que remetem às relações do Estado Brasileiro com o Senegal3,

desde a dissolução da Federação do Mali e a formação do estado independente do Senegal

(BARRY, 2000), com a liderança política do mesmo, em 1960.

No primeiro aniversário de independência do Senegal, em 1961, é enviado uma

missão especial chefiada por Afonso Arinos, senador e ministro das relações exteriores.

Desde então, as tratativas para visita de Léopold Senghor ao Brasil iniciaram. Neste

mesmo movimento de aproximação política4, a embaixada do Senegal no Brasil foi aberta

2 Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Ambos jornais tradicionais do Rio de Janeiro. 3 A maior aproximação inicia-se quando o Brasil, durante o mandato do Presidente Jânio Quadros, propõe

a política de eixo comercial denominada “América do Sul e África”. Neste contexto, determinou-se que o

consulado (criado em 1920 em Dacar) fosse elevado à categoria de embaixada, tendo Frederico Chermont

de Lisboa, o embaixador. 4 Senghor relembra esse histórico em discurso no Brasil: “Fomos, desde 1960, uma das primeiras nações

independentes que viram estabelecer uma embaixada brasileira em sua capital. A primeira, sem duvida, a

receber em sua universidade um professor brasileiro (...) a primeira, seguramente, que se introduziu o

português no ensino secundário e superior (...) Assim, ao interesse do Brasil pelo Senegal e do Senegal pelo

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(em 1963), tendo Gastano Gabriel Carvalho como primeiro embaixador, seguido de

Henry Senghor, em 1964.

A visita do Presidente Senghor, devidamente organizada, em primeiro lugar, pela

designação de seu sobrinho para embaixador, que atuou ativamente em diálogo com o

Itamaraty e com a Imprensa Brasileira, preparando este evento de aproximação entre

Brasil e Senegal, que porventura ocorreu depois do golpe militar de 1964, tendo Castelo

Branco na presidência da república do Brasil.

A preparação da visita de Senghor ao Brasil também foi realizada em um âmbito

cultural: houve a disseminação de um discurso a respeito da proximidade cultural entre o

Senegal e o Brasil a partir de 1963 na Imprensa5. Foi amplamente divulgada a viagem de

Nanette Senghor ao Brasil6, em 1963, que era atriz e sobrinha do presidente. Henry

Senghor visitou jornais cariocas, divulgando a proximidade e amizade entre o Senegal e

o Brasil.

Colunas de opinião eram escritas pelos brasileiros a respeito da proximidade entre

Brasil e Senegal, tanto no âmbito cultural quanto no econômico e político, apontando

sempre para as semelhanças entre os dois estados. Tais como os seguintes enunciados:

“Nas conferências, nos debates que se seguiam e nas entrevistas que

tive com líderes africanos, inclusive com nosso futuro visitante,

Leopold Senghor, presidente do Senegal, senti uma espantosa

receptividade a tudo quanto fosse brasileiro.

Éramos um país também liberto do colonialismo político, também

subdesenvolvido, mas que atingia um estado de desenvolvimento

econômico, tecnológico e político mais avançado e procurava firmar no

mundo uma posição autônoma. Sabiam que éramos razoavelmente

libertos de preconceito e que puníamos por lei a discriminação racial.”

(ALVES, 1964, 1)

“Deverá visitar o nosso país ainda este mês o presidente Senghor, do

Senegal, também poeta da negritude e estadista da independência

africana. Mas, segundo se comenta, não se sabe em que termos ele

manteria contato com o nosso governo, tendo em vista a atual e até certo

ponto indefinida posição do Brasil com relação aos jovens países de

África” (CONDÉ, 1964, 5)

Brasil, expressa no mais alto grau, pela presença do nosso embaixador em Brasília" (O discurso foi

publicado na íntegra pelo Correio da Manhã, 23 de Setembro de 1964. P.3.) 5 Jornal do Brasil e Correio da Manhã veicularam de 1960-1963 diversas notícias sobre o Senegal. 6 Jornal do Brasil e Correio da Manhã.

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Era noticiado um projeto de desenvolvimento conjunto e o discurso em pauta que

justificava a parceria eram dois elementos comuns entre os dois países em graus e tempos

diferentes: ambos eram egressos do colonialismo, países em desenvolvimento - país

pobre, raízes étnicas comuns - e tinham “aspiração pelo progresso material e espiritual”.

Para a relação Brasil-África são apontadas questões sensíveis: o Congo7, a África

do Sul8 e a questão das colônias portuguesas. Esta última foi o principal ponto discutido

com a visita de Senghor ao Brasil. Outra questão pontual abordada era a querela que

tratava de estudantes africanos que foram perseguidos pela polícia política portuguesa por

conta do envolvimento com as lutas de libertação então se refugiaram no Brasil9.

Um deles, José Lima Azevedo, fora preso pela polícia brasileira. Este veio em

presença das autoridades e denunciou tortura dentro das prisões da Marinha. Este seguiu

preso, houveram denúncias por parte da imprensa internacional, Rubem Braga10

denunciava que este seria um ponto de indisposição da visita de Senghor com o governo

brasileiro, o que de fato não se concretizou.

Senghor desembarca no Brasil: itinerário de uma viagem

Tendo estes antecedentes em vista, é nesta conjuntura política que desembarca em

avião da FAB na cidade do Recife, o conhecido poeta e estadista, Léopold Sédar Senghor

e sua comitiva de dezessete pessoas. Logo segue para o Rio de Janeiro, recepcionado pelo

Governador Carlos Lacerda no palácio da Guanabara e a noite tem um jantar de recepção

na Academia Brasileira de Letras, onde profere um discurso importante e é saudado pelo

discurso de Alceu Amoroso de Lima.

Ainda no Rio de Janeiro assiste missa na Igreja da Candelária, almoça no Jóquei

Clube – foi especialmente preparado para ocasião uma corrida de cavalos concorrendo ao

prêmio “Léopold Senghor” de alto valor em dinheiro – e visita o Monumento Nacional

aos mortos na II Guerra Mundial.

7 Questão resolvida pela presença do Brasil nas Nações Unidas. 8 São tocados ressentimentos sobre esta questão, pois o Brasil vende a imagem de uma “democracia racial”

e não se posiciona contra o regime do Apartheid sul-africano. 9 Questão bem tratada pela tese defendida na UNB por Luís Cláudio dos Santos. 10 Jornal do Brasil, 17 de Setembro de 1964. Caderno B. P. 3.

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No mesmo dia segue para a Bahia. Em Salvador, pede para conhecer as igrejas

locais e recebe o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade da Bahia, seguido de

recepção no Palácio da Aclamação. Senghor segue para Furnas e depois Brasília, onde se

encontra com o Presidente Castelo Branco e com o corpo diplomático brasileiro.

De forma que Senghor vem a dialogar, não somente com o Presidente Castelo

Branco, mas com o Supremo Tribunal Federal11 e com o Congresso Federal12. Já em São

Paulo conhece o Instituto Butantã e a USP, de volta ao Rio de Janeiro, no mesmo dia,

profere palestra na PUC RJ seguido de festa no Monte Líbano.

Segundo as informações dadas pela imprensa13, a comitiva do presidente conta

com diplomatas brasileiros e senegaleses e artistas brasileiros, como Vinícius de Morais,

convidado especial de Senghor, assim como alguns senegaleses. A cobertura da viagem

foi feita pela imprensa brasileira, sobretudo pelo Correio da Manhã e pelo Jornal do

Brasil, e por parte do Senegal, pelo correspondente Herny Mendi.

Por ocasião da viagem foi organizada uma Exposição de Arte Negra no Museu

Nacional de Belas Artes. Esta seria inaugurada no dia em que Senghor chegava ao Brasil,

mas as peças, trazidas do Senegal tiveram um atraso em seu translado e só chegaram

alguns dias depois que o Presidente já havia deixado o Brasil. A exposição foi organizada

por José Roberto Teixeira Leite e foi composta de 326 peças pertencentes ao arquivo do

Museu Etnográfico do Institute Français d’Afrique Noire. Esta coleção foi a primeira vez

que estava sendo exposta fora da Universidade de Dacar, sob responsabilidade do curador

Thian Bothiel. Após o Rio de Janeiro, a exposição segue para outros locais do Brasil (São

Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul14).

11 Os discursos foram publicados na íntegra pelo Correio da Manhã, 24 de Setembro de 1964. P.14. 12 Os discursos foram publicados na íntegra pelo Correio da Manhã, 24 de Setembro de 1964. P.14. 13 O itinerário da vigem está descrito na íntegra e foi acompanhado por Jornais Brasileiros. Nesta análise

utilizamos dois jornais cariocas: O “Correio da Manhã” e o “Jornal do Brasil”, jornais com posições

ideológicas distintas. Estes cobriram na íntegra todos os dias de viagem de Senghor e também

transcreveram seus discursos e publicaram-no, assim como as falas dos políticos brasileiros – Presidente

Castelo Branco e Carlos Lacerda, por exemplo. Os discursos de Leopold Senghor foram consultados nos

jornais em confronto com as publicações de outras instituições – como a Academia Brasileira de Letras

(para seu discurso na sua sede), a edição da PUCRJ (do seu debate lá realizado), a fala no Tribunal de

Justiça e no Congresso. Apenas na edição do discurso da Academia Brasileira de Letras foi possível ver a

transcrição do original em francês, os outros discursos são traduções diretas do português já transcritas. 14 Segundo o Jornal Correio da Manhã.

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A “Latinidade” como aglutinador de uma “comunidade luso-afro-brasileira”:

diálogos no Brasil

Tendo o itinerário claro, esta parte do trabalho trata dos debates que foram

travados entre os políticos brasileiros e senegaleses. A questão central que perpassou

todos os diálogos políticos foi o ponto das colônias portuguesas e a negociação de um

apoio às descolonizações africanas nas colônias portuguesas por parte do governo

brasileiro.

Este diálogo começa mal durante a estadia de Senghor no Brasil: em

pronunciamento oficial, o Governador Carlos Lacerda, argumenta a favor do

colonialismo português e da manutenção do domínio lusitano em suas colônias15.

Senghor, na sequência, mostra ao que veio, antes mesmo do encontro com Castelo

Branco.

“Celebrais hoje, o bom êxito de uma civilização, forjada não na

sujeição, mas na Independência em face a uma metrópole de que

rechaçastes a tutela sem renegar-lhe a cultura, deveis desejar, para nós,

os mesmos bons êxitos exemplares. Não se trata, no que se refere a

Angola, Moçambique ou a Guiné dita Portuguesa, de volver as costas

ao antigo colonizador, depois da Independência. Trata-se,

positivamente, para estas terras africanas, uma vez reconhecendo o

princípio de sua autodeterminação, de negociar com Portugal, a antiga

Metrópole, novos vínculos de amizade, diria eu mesmo, de

“fraternidade”. Por que não seria de esperar daí uma comunidade luso-

afro-brasileira, a exemplo da Commonwealth?”16

Logo após, ainda no Rio de Janeiro, pronuncia discurso na Academia Brasileira

de Letras17. Senghor inicia o seu discurso fazendo um elogio ao que ele chama de

“humanismo latino-americano”. Faz um elogio ao Brasil e a “simbiose cultural”, dizendo

que foi neste país que se congregou as “três raças”. Senghor enfatiza que “o que eu menos

admiro é a mestiçagem biológica do que a simbiose cultural” – e diz que os brasileiros

congregam uma fidelidade à “latinidade”, à “negritude e à “indianidade”, que teria

formado um povo que teria como valor a “delicadeza” e a “gentileza”.

15 Correio da Manhã, 20 de Setembro de 1964. p. 6. 16 Resposta do Presidente Leopold Senghor a Carlos Lacerda. Publicado no Correio da Manhã, 20 de

Setembro de 1964. p. 6. Transcrito para os “Anais da Câmara”, 20/09/64, a pedido do deputado Bia Leite

(PTN-SP) pois “trata-se de página de grande saber político e social de autoria de uma das mais fascinantes

personalidades da nova política social”. 17Sessão Extraordinária realizada em 19 de Setembro de 1964. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.

Cópia Digital fornecida pela ABL.

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Por fim, ele realça que “É precisamente, uma das virtudes da latinidade essa

lucidez que impele a pesquisar e assimilar os valores das comunidades exóticas, entre elas

as da África” 18. Diz que o Brasil tem as virtudes do Espírito Contemporâneo e “o vosso

mérito foi, tendo vos libertado da antiga colônia, acharde-vos colocados resolutamente

nos postos avançados (...)”. Como epílogo ele coloca o Brasil como “farol do terceiro

mundo” 19.

Pode-se ver que há um discurso que imbrica um elogio ao Brasil, muito baseado

no lusotropicalismo20, valorizando o discurso de uma simbiose cultural embebida nas

teorias de Gilberto Freyre sobre o Brasil que traz à tona o debate político da

descolonização do denominado “ultramar português”, ou seja, Senghor buscava apoio do

Brasil para os movimentos de descolonização de Angola, Moçambique e especialmente

da Guiné Portuguesa, vizinha do Senegal.

O discurso de Senghor compõe-se de um elogio à história do Brasil e a seu

processo de independência, não belicoso e, segundo ele, dialogado, como um exemplo

para as descolonizações africanas perante Portugal. Defende que o Brasil tem um papel

preponderante, não só como exemplo, mas como o mediador e líder de uma pretensa

comunidade “luso-afro-brasileira”, que congregaria a “lusitanidade” e a “negritude” e

seria formada por Brasil, Portugal e os países africanos em processo de independência

que foram colônias portuguesas, tal como o Brasil.

Quando Senghor vai para Brasília e encontra-se com o Presidente Castelo Branco,

o tom da discussão permanece o mesmo. Porém encontra um debate diferente da posição

pública de Lacerda: Castelo Branco proclama-se como anticolonialista. Em seu discurso

de recepção a Senghor defende a amizade do Brasil e Senegal fundamentada em uma

similitude de identidade – ambos teriam “harmoniosa convivência étnica e religiosa” e

seriam “terra de diálogo – assim como são unidos historicamente por uma “comunidade

18 Sessão Extraordinária realizada em 19 de Setembro de 1964. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.

Cópia Digital fornecida pela ABL. 19 Sessão Extraordinária realizada em 19 de Setembro de 1964. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.

Cópia Digital fornecida pela ABL. 20 Jerry Davila (2011) aponta para o profundo conhecimento por parte de Léopold Senghor a respeito das

teorias defendidas por Gilberto Freyre. O autor também aponta que devido a esse conhecimento, Senghor,

em seus discursos, sabia jogar muito bem com o discurso lusotropicalista (utilizado tanto por parte do

governo brasileiro quanto pelo governo salazarista em Portugal), hora de forma elogiosa ora de forma

crítica. Segundo Davila (2011, p. 146), “o governo de Senghor se esforçou para inverter a retórica da

democracia racial e do lusotropicalismo”.

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de ideal e de interesses” 21. O último ponto tocado por Castelo foi a questão colonial

portuguesa. Proclama-se crítico a colonização, diz que:

“o anticolonialismo encontra a sua justificativa e recebe a nossa adesão

quando nele predominam a preocupação de elevar o homem e quando

nele se reconhece um meio de desenvolvimento e de preservação da paz

mundial”22

“Para o problema colonial, cuja persistência dificulta, sem dúvida, a

convivência entre as nações, o Brasil propõe a busca de uma solução

ordenada e pacífica que anule as tutelas e proporcione o diálogo de

iguais, mas que assegure, por outro lado, a livre manifestação dos

povos, a pretexto da libertação dos povos, apenas se produza uma troca

de submissões” 23

Senghor relembra que “o sucesso brasileiro é um exemplo e encorajamento para

que os portugueses cumpram o que outras nações europeias já cumpriram”24 Argumenta

que:

“Existe, porém, um laço mais preciso se não mais forte, porque laço

cultural, a unir nossos países. É a herança da ‘latinidade’. A língua

oficial do Brasil é o português. A nossa é o francês. Este fato, por si só,

nos aproxima (....) o que aproxima, pois, senhor presidente, os nossos

países é a cultura latina (...) daí a importância dada às letras e as artes

(...) daí a vossa política de integração racial na linha das grandes

civilizações, que foram, todas, sem exceção, civilizações de mestiçam

biológica e cultural. Tal como vós, sobre o fermento da latinidade, nós

levamos avante uma experiência, multirracial e multireligiosa.” 25

Perante este discurso sobre uma “comunidade luso-afro-brasileira” pode-se fazer

algumas considerações. A primeira, é a ênfase na “latinidade” dada por Senghor o que

demonstra a percepção do autor da proximidade da política Brasileira com Portugal e do

que Jerry Davila (2011) chama de “lobby português” no Brasil durante 1964. Portanto,

nesta viagem, os discursos oficiais de Senghor elogiam e enfatizam a questão da

“latinidade” na formação do caráter do Brasil em detrimento da “negritude”, quase não

citada.

21 O discurso foi publicado na íntegra pelo Correio da Manhã, 23 de Setembro de 1964. P.3. 22 O discurso foi publicado na íntegra pelo Correio da Manhã, 23 de Setembro de 1964. P.3. 23 O discurso foi publicado na íntegra pelo Correio da Manhã, 23 de Setembro de 1964. P.3. 24 Jornal do Brasil. Edição 223. 21 Setembro 1964. P.1. 25 O discurso foi publicado na íntegra pelo Correio da Manhã, 23 de Setembro de 1964. P.3.

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Um segundo ponto é a percepção da “pretensão” ou “vontade” imperialista do

Brasil. Para tal, Senghor enfatiza, em seus discursos, um elogio a colocação do Brasil

enquanto líder no contexto mundial, ou seja, um “farol do terceiro mundo”, que

iluminaria, a partir de sua própria experiência histórica, de colonização e de

independência, os processos de descolonização africanos e dariam a diretriz “pacífica”,

“gentil” e “doce” para tais, valorizando “as contribuições” culturais da “lusitanidade”26.

Jerry Davila (2011) também faz uma interpretação a respeito deste diálogo entre

o Brasil e o Senegal em 1964. Segundo ele:

“O novo regime militar brasileiro adotou a ‘fraternidade’ de Portugal, e

Senghor chegou ao Rio de Janeiro disposto a propor uma alternativa a

‘latinidade’ – um espírito universal de valores latinos que, segundo ele,

a África francesa compartilhava com o Brasil, com Portugal e com a

África Portuguesa.”(DÁVILA, 2011, p. 146)

De forma que a “latinidade” seria “um meio de persuasão moral para convencer

os brasileiros com esperança de conseguir afastá-los do colonialismo português”

(DAVILA, 2011, p. 146). Tal asserção de Davila vem ao encontro com as análises do

campo das relações internacionais (Simões, 2011) a respeito da política externa do Brasil

pós-golpe e durante o mandato de Castelo Branco no que dizia respeito a dubiedade da

posição do Brasil com relação a descolonização.

Para o fim da viagem, Senghor e Castelo Branco fazem um pronunciamento

oficial escrito em conjunto que, em suma, trava uma cooperação “cultural e econômica”

entre o Brasil e o Senegal. No âmbito da cooperação cultural foi enfatizado a continuidade

da política de intercâmbio universitário, de professores e sobretudo, alunos africanos para

o Brasil que tinha iniciado em 1963. Também foi dado ênfase a participação do Brasil no

Primeiro Festival Pan Africano de Artes e cultura que iria se realizar em 1966 em Dacar,

com envolvimento da UNESCO, e que contava com a participação de uma delegação

brasileira.

26 Expressões retiradas do discurso pronunciado por Senghor em Brasília em 22 de Setembro de 1964. O

discurso foi publicado na íntegra pelo Correio da Manhã, 23 de Setembro de 1964. P.3.

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No âmbito econômico foram firmadas parcerias comerciais de compra e venda de

produtos. O acordo comercial previu 14 itens que envolvem tratamento favorável em

matéria comercial e aduaneira, estabelece trocas comerciais entre os dois países (relaciona

14 produtos do Senegal e 23 produtos brasileiros para venda27). Cabe ressaltar o discurso

do Brasil em uma postura de venda de manufaturas em troca de algumas matérias primas

baratas.

A viagem de 1977: antecedentes

Dia quatro de novembro de 1977, treze anos depois de sua primeira viagem ao

Brasil, Léopold Senghor desembarca novamente em terras brasileiras governadas agora

pelo presidente militar Ernesto Geisel. Desde 1964, a gestão presidencial que foi

subsequente a Castelo Branco, do presidente militar Costa e Silva, abertamente deu apoio

ao Salazarismo e criminalizou as lutas pelas independências em África, sobretudo das

organizações contra o colonialismo português. Houve uma descontinuidade das políticas

traçadas em 1964.

As relações entre o estado brasileiro e alguns estados situados no continente

africano somente foram retomadas em 1972 com a atuação do chanceler Mário Gibson

Barbosa. Este fez uma longa viagem por nove países africanos, inclusive o Senegal,

visitando o Presidente Senghor. Gibson Barbosa tinha o intuito de “definir o Brasil diante

dos líderes africanos, apresentar a África como sendo significativa para o público e os

militares brasileiros e indicar às autoridades portuguesas que uma mudança era

necessária”. (DÁVILA, 2011, p. 189)

Com relação à guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné, em curso no

período, “era o desejo do chanceler Gibson Barbosa ter alguma influência na questão das

colônias portuguesas (...) ele evitou o confrontar o problema diretamente porque o clima

no Brasil não era propício para isso”. (DÁVILA, 2011, p. 190)

27 Segundo publicação do Jornal do Brasil (24 de setembro de 1964, Caderno 1, p3): segue uma lista de

produtos do Senegal para venda ao Brasil: peixes, amendoim, óleos de amendoim, fosfato, aves, peles,

instrumentos geodésicos, zicron, ilmenita, farinha de trigo, adubo, cimento e artesanato. Assim como uma

lista de produtos do Brasil para venda ao Senegal: mandioca, frutas (laranja), chámate, pimentas, arroz,

carne em conserva, legumes em conserva, vermutes, licores, runs, aguardentes, perfume, artigos de

borracha, madeira, sisal, roupa de cama e mesa, tecido sintético, artificiais, algodão, joias, artigos de caça,

pesca e esporte, móveis de escritório, aparelhos de refrigeração, máquina de escrever e de escritório.

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Tendo em vista a prévia relação entre Brasil e Senegal iniciada em 1964, a viagem

de Gibson Barbosa lá termina, com encontro com Presidente Senghor. Segundo Dávila

“Gibson e Senghor se encontraram várias vezes e discutiram estratégias para lidar com

Portugal” (DÁVILA, 2011, p.198). É importante notar que:

“Senghor descreveu conversas secretas que tinha tido com o General

Antonio de Spínola, o comandante militar na Guiné-Bissau, onde o

PAIGC tinha ocupado a maior parte do território nacional e estava

caminhando na direção de uma declaração de soberania. Spínola via o

despropósito da guerra e tinha aceitado a proposta de Senghor de um

cessar fogo e uma independência negociada. Quando Spínola

apresentou a ideia ao primeiro ministro português Marcelo Caetano,

foi afastado do comando. Senghor e Gibson tinham uma ideia

semelhante sobre como prosseguir.” (DÁVILA,2011,p.198-199)

“[segundo Ricupero] Senghor propôs concretamente, pela primeira vez

que o Brasil fosse intermediário entre as colônias portuguesas e

Portugal; que fosse de fato um mediador para a solução” (DÁVILA,2011,p.199)

Neste escopo, Dávila (2011) apresenta que Gibson Barbosa patrocinaria uma

reunião entre líderes portugueses e africanos, na cidade de Brasília, onde os líderes

africanos proporiam um armistício para Portugal em troca do fim da guerra nas colônias.

Essa seria uma solução que visava a concessão de autonomia de forma a preservar os

laços culturais e econômicos de África com Portugal.

Senghor enfatizava, nestes encontros com Gibson Barbosa, o já conhecido

discurso da manutenção dos laços de África com a cultura e língua portuguesa e colocava

ênfase que seu governo forneceria professores de português para trabalhar nos campos de

refugiados bissauenses (DÁVILA,2011,p.200).

Gibson Barbosa também recebe telegrama de Amílcar Cabral28, apresentado pelo

Chanceler para o Presidente Militar Médici como “o líder português da independência

africana mais respeitado pelos estadistas do continente”. Segundo relato, “explicava que

os membros do PAIGC eram ‘continuadores daqueles que, depois do grito histórico do

28 As relações de Amílcar Cabral com o Brasil e as tentativas de apoio à luta do PAIGC são descritas por

Santos (2011). Este apresenta cartas trocadas entre Cabral e Filomena, angolana no Brasil, companheira de

José Maria Nunes Pereira, ativista do MABLA.

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Ipiranga, lutaram pela independência, estabelecendo as bases sobre as quais se criou e

desenvolveu a grande nação brasileira de nossos dias” (DÁVILA,2011,p.200).

No fim da viagem Gibson remete uma carta ao Presidente brasileiro evidenciando

que interrompesse o apoio a Portugal, demonstrando, sobretudo, o prejuízo comercial -

examinando o contexto desenvolvimentista do Brasil e a necessidade de fontes de

energia29. Essa interrupção nunca aconteceu.

Muito rapidamente as conjunturas histórias se modificam: proclamação da

independência da Guiné-Bissau – reconhecida pelo Brasil – e Revolução dos Cravos,

agora no contexto do governo Geisel e de Azeredo da Silveira como chanceler, governo

ao qual recepcionará, pela segunda vez, o Presidente Léopold Sédar Senghor.

A viagem de 1977

O ainda Presidente do Senegal, Léopold Senghor, vem ao Brasil em 1977 com

fins de inaugurar a nova embaixada senegalesa, agora em Brasília, nomeando,

novamente, um “Senghor” como embaixador: Simon Senghor. É “pela primeira vez na

história diplomática da nova capital, o edifício sede de uma embaixada era inaugurada

pelo presidente do país representado, com correspondente participação do presidente

brasileiro” (MENDES, 1995, p.359)

Esta viagem foi mais curta e menos intensa politicamente possivelmente devido a

conjuntura brasileira de recrudescimento da democracia. Senghor no Brasil questiona,

polidamente, o AI-530 e reitera a questão da cooperação cultural e econômica, travada em

29 O Brasil estava em aprovação do projeto de construção da Usina de Itaipu. A Argentina se colocava

contrária e obteve resolução nas Nações Unidas a favor de seus interesses devido a decisão dos países

africanos de votar em prol da Argentina como sanção ao Brasil pelo apoio a Portugal. 30 Trecho recolhido pela Imprensa: “Mas o que é o AI-5?, perguntou Dr Senghor ao deputado Marcondes

Gadelha (MDB-PB). – É um dispositivo que permite ao Executivo, no Setor do Judiciário, apropriar-se de

poder julgar, respondeu o deputado. (...) O presidente do Senegal procurou saber do Deputado Gadelha e

do Senador Franco Mountoro – que com ele conversavam em francês – o funcionamento do Judiciário

Brasileiro. – Funciona nos moldes conhecidos em todos os países ocidentais com a diferença que subsiste

uma legislação de excessão como o AI-5, esclareceu o deputado oposicionista. – Fora isto, o resto é normal?

Perguntou o Sr. Senghor. – Sim, foi a resposta do Sr. Gadelha.” (Jornal do Brasil. 5 de novembro de 1977.

P.4.)

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1964. Diz que “a conjuntura é propícia já que o grande problema nas Nações Unidas é a

instauração de uma nova ordem econômica”31.

Nesta viagem foram enfatizados os “acordos de cooperação econômica

internacional, esteio fundamental da ordem internacional”32 e foram discutidos a

construção de um centro industrial brasileiro no Senegal: “no centro industrial seriam

instaladas empresas metalúrgicas e de produção de cimento e em troca o Senegal

forneceria fosfato para o Brasil”33.

Considerações finais

Pode-se perceber que a visita de Senghor ao Brasil no ano de 1964 foi de maior

expressão política e de mais extensa cobertura pela imprensa. Esta foi fundante de um

discurso que aproxima o Senegal do Brasil, a partir do apontamento de características

culturais que remetem a miscigenação e a simbiose, na busca de cativar uma cooperação

política e econômica entre os dois países. Já a viagem de 1977 foi de menor expressão

política e pode-se perceber que, 13 anos depois da primeira viagem, ainda houve a

reprodução do mesmo discurso de proximidade cultural para fundamentar uma

cooperação em prol do desenvolvimento econômico.

Foi possível apreender que a visita de 1964 foi preparada dois anos antes, pois

houveram uma série de antecedentes que demonstram a intencionalidade, por parte do

Senegal, de uma maior aproximação com o Brasil para fins políticos importantes. Neste

trabalho foi comentado a designação de Henry Senghor como embaixador do Senegal no

Brasil, personalidade que se tornou bastante significativa em defesa do movimento negro,

divulgando a negritude no Brasil, o que fortaleceu as organizações brasileiras e procurou

dar espaços internacionais, como no Festival Pan Africano de Artes e Cultura34.

Foi possível ver que o discurso de aproximação cultural do Senegal e Brasil por

parte de Léopold Senghor é perpassado pelas ideias do lusotropicalismo, teorização de

Gilberto Freyre. Senghor dizia-se um grande admirador deste intelectual – assim como

31 Jornal do Brasil. 5 de novembro de 1977. P.4. 32 Discurso Presidente Geisel. Jornal do Brasil. 5 de novembro de 1977. P.4. 33 Jornal do Brasil, ano 1977, edição 198. P.5. 34 A atuação de Henry Senghor, sua trajetória enquanto embaixador no Brasil e seu engajamento no

Movimento Negro Brasileiro é bastante interessante e cabe ser melhor aprofundado.

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da língua portuguesa – e, embebido nestes pressupostos, discursa sobre um Brasil

miscigenado – produto da “mistura das 3 raças” – que teria como caráter a cordialidade e

a gentileza, para tal, seria um agente da “paz” mundial.

A partir destas ideias, apresentadas de forma poética amplamente em seus

discursos políticos – em Brasília, na Academia Brasileira de Letras, na PUCRJ e no

Supremo Tribunal Federal – Senghor aproximava o Brasil culturalmente do Senegal, que

segundo sua visão, também seria produto de uma mistura de culturas, que bem viveriam

em conjunto.

Tendo estas questões em vista, Senghor apresenta o conceito de “latinidade”, ou

seja, um suposto caráter que viria com o desenvolvimento histórico dos povos latinos, o

que aproximaria os lusitanos, com sua “lusitanidade” e os franceses, e que comporia o

caráter tanto dos Brasileiros, antiga colônia portuguesa e dos territórios africanos

explorados por Portugal; ou seja; a “latinidade” era o elemento aglutinador para o diálogo

e justificava a formação de uma comunidade política.

Esta comunidade, que seria oriunda de uma vontade política, seria a “comunidade

luso-afro-brasileira” que teria por liderança o Brasil e congregaria elementos lusitanos (a

“lusitanidade”) e elementos africanos (a “negritude”). Portanto, é a partir deste discurso

que Senghor dialoga com os políticos brasileiros de forma a pressioná-los para tomar uma

posição em favor das lutas de descolonização das colônias portuguesas em África, questão

que o Brasil, durante o primeiro governo militar, fazia um jogo duplo – dubiedade que

transparece durante a viagem de Senghor, pois de um lado foi aparente o “lobby

português”, representado pela posição de Carlos Lacerda; e um suposto e frágil apoio à

descolonização, aparente nos pronunciamentos de Castelo Branco durante a estadia de

Senghor no Brasil.

Infere-se que Senghor jogava bem com esta posição dúbia da política

internacional brasileira, assim como com a tendência ao apoio brasileiro aos lusitanos:

nos discursos de Senghor há uma ênfase no elemento da “latinidade” para a conformação

desta “comunidade luso-afro-brasileira” em detrimento do elemento da “negritude” –

pouco trabalhado nos discursos. Portanto, apesar do elogio ao Brasil de sua democracia e

tolerância cultural e racial, embebido no lusotropicalismo, Senghor enfatizava o caráter

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da “latinidade” e da língua portuguesa e aparentemente, era ciente de que a argumentação

e o elogio da “negritude” não seria bem aceito para o público que discursava.

Assim, também trabalha com a ideia de o Brasil ser o “farol do terceiro mundo”,

ou seja, ser um “gigante pela própria natureza”, em pleno projeto desenvolvimentista e

que, por sua experiência histórica, poderia “demonstrar” para os países africanos o

caminho da descolonização e independência. É dentro desta pauta que transparece, por

parte do Brasil, a sua busca pela exploração econômica nos espaços dentro do continente

africano, colocando-se enquanto vendedor de produtos manufaturados e importador de

matérias primas.

O último ponto que foi considerado neste trabalho foi a segunda viagem de

Senghor ao Brasil, em 1977, durante o governo Geisel. Pode-se ver que esta viagem foi

mais curta e de menor importância política, em um rescaldo de afastamento político entre

estes dois estados perpetrados pelas políticas que deram sequência ao mandato de Castelo

Branco. Em 1977, Senghor inaugura o prédio novo da embaixada do Senegal no Brasil.

Os discursos públicos proferidos na ocasião relembram 1964 e reiteram com as mesmas

palavras, embebidas em lusotropicalismo, os elogios ao Senegal e ao Brasil.

Por fim, pode-se dizer que este escrito apontou para questões importantes, que são

abertas a partir deste trabalho, que remetem às relações do Brasil com alguns países

africanos a partir de 1972, sobretudo com os contatos travados inicialmente por Gibson

Barbosa. Este fato denota a continuidade da política lançada por Senghor no Brasil em

1964, que pensa o estado brasileiro como um mediador para as guerras coloniais

portuguesas na África, as quais neste período estão em seu ápice. Esta questão transparece

sobretudo, no caso dos debates secretos entre Spínola, Senghor e Amílcar Cabral, ao qual

foi possível ver que, em um momento, insere-se Gibson Barbosa, o que, por fim, resultou

em uma posição de recusa, novamente, do apoio às descolonizações africanas, o que só

vai ser efetuado após a Revolução dos Cravos.

Referências

Fontes

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