lundum y modinha

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  • Apostila do cursoHistria da Msica Brasileira

    Instituto de Artes da UNESP 9A MODINHA E O LUNDU NOS SCULOS XVIII E XIX

    Paulo Castagna

    1. Introduo

    Apesar do interesse crescente em torno da modinha e do lundu, ainda no foisuficientemente investigada a origem e o desenvolvimento desses gneros musicais deimportncia luso-brasileira. Inicialmente, seu estudo foi uma preocupao maior dosbrasileiros que dos portugueses, mas na dcada de 1990 essa tendncia se inverteu,sendo impressas importantes contribuies em Portugal.

    Um dos primeiro trabalhos sobre o assunto foi publicado por Slvio ROMERO(1881), mas foram propriamente os estudos de Mrio de ANDRADE (1930 e 1944) quese tornaram o ponto de partida para a compreenso das principais caractersticas damodinha e do lundu. Joo Baptista SIQUEIRA (1956) e Eunice Evarina PereiraMENDES (1959) possuem trabalhos importantes sobre as antigas canes brasileiras,seguidos de Mozart de ARAJO (1963), o primeiro pesquisador que se dedicou sorigens histricas da modinha e do lundu. Essa tendncia aparece tambm em GerardBHAGUE (1968) e Bruno KIEFER (1977), sendo os trabalhos mais recentes nessalinha os de Manuel MORAIS (2000), incluindo, no primeiro deles, o estudo de RuyVieira Nery sob a forma de prefcio.

    Afora as obras dos autores acima citados, importantes coletneas foramimpressas por Antnio Alexandre BISPO (1987), pelo Instituto da Biblioteca Nacional edo Livro (JORNAL DE MODINHAS, 1996) e por Edilson de LIMA (2001).

    2. A modinha

    Na segunda metade do sc. XVIII desenvolveu-se, inicialmente em Portugal eposteriormente no Brasil, um estilo peculiar de cano camerstica, que acabou sendodenominada modinha. A origem dessa designao est ligada moda, que foi, em todoo sc. XVIII, palavra portuguesa para qualquer tipo de cano camerstica a uma oumais vozes, acompanhada por instrumentos.

    A moda, em Portugal no sc. XVIII, foi um tipo genrico de cano sria desalo, que inclua cantigas, romances e outras formas poticas, compostas por msicosde alta posio profissional. As modas foram to comuns em Portugal no reinado de D.Maria I que popularizou-se o dito de que na corte dessa rainha era moda cantar amoda (ENCICLOPDIA, v.1, p.494).

    A origem da modinha est relacionada um fenmeno europeu - e no apenasportugus - da segunda metade do sculo XVIII. Com a progressiva ascenso daburguesia e, consequentemente, com a mudana de hbitos da nobreza, surgiu umaprtica musical domstica ou de salo destinada a um entretenimento mais leve e menoserudito que aquele proporcionado pela pera e pela msica religiosa. Assim, a msicadomstica urbana, praticada por amigos e familiares em festas ou momentos de lazer,privilegiou formas de pequeno nmero de intrpretes, de fcil execuo tcnica e derestrito apelo intelectual.

  • 2Nessa fase desempenharam especial funo na msica de salo as canesacompanhadas, que alm dos requisitos acima, uniam a msica poesia, outra arte queconquistou os saraus domsticos setecentistas. Surgiam, ento, canes a uma ou maisvozes, em idiomas locais e acompanhadas de instrumento harmnico. Na Itlia apareceua canzonetta, na Espanha a seguidilla, na Frana a ariette, na ustria e Alemanha o Liede em Portugal a modinha.

    Todos esses gneros de canes foram derivados de algum tipo de canto teatral.No caso portugus, existem razes suficientes para se crer que a estrutura meldica dasmodinhas foi uma derivao das melodias opersticas, apenas adaptadas ao idioma locale s particularidades da prtica domstica. Assim, esto presentes nas modinhas, comonas peras daquele perodo, os duos em teras ou sextas paralelas, a ornamentao daslinhas vocais e as melodias ricas em notas diminudas ou passagens geis. Observe-setais particularidades no exemplo 1, o dueto Entre a selva de Diana, de autor noindicado, impresso em 1792 (JORNAL DE MODINHAS, p.15).

    Exemplo 1. ANNIMO. Entre a selva de Diana (duetto), c.1-7.

    No foi sem razo que vrios autores portugueses de modinhas foram tambmcompositores de peras, como Joo de Sousa Carvalho (1745-1798), Marcos AntnioPortugal (1762-1830) e Antnio Leal Moreira (1758-1819), enquanto outros foramcompositores de msica religiosa (naquele tempo j fortemente influenciada pelapera), como Jos Maurcio (Mestre da Capela da Catedral de Coimbra), Antnio daSilva Leite (Mestre da Capela da Catedral do Porto), Antnio Galassi (Mestre da Capelada Catedral de Braga) e Lus Antnio Barbosa (Mestre da Capela da Catedral de Braga).

    Mas a evoluo da moda em Portugal recebeu importante contribuio de umbrasileiro, o mulato Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, c.1740 - Lisboa, 1800),residente em Portugal a partir de 1770 e introdutor nos sales lisboetas de um gneroparticular de cano: a moda brasileira. Caldas Barbosa disfrutou de considervelascenso social no Reino: recebeu ordens menores, tornou-se conhecido na corte etomou parte na nova Arcdia de Lisboa, sob o pseudnimo de Lereno Selinuntino.Dividiu opinies em Lisboa, depois da difuso das modas brasileiras, tendo a seu favor

  • 3os marqueses de Castelo Melhor, mas como opositores Filinto Elsio, Antnio Ribeirodos Santos e o conhecido Bocage.

    Foi somente a partir de 1775 que Caldas Barbosa comeou a praticar seu novoestilo potico, cujos textos foram preferentemente denominados cantigas e publicadossomente em 1798 (Lisboa), com o ttulo Viola de Lereno, enquanto um segundo volumesurgiu em 1826, vinte e seis anos aps sua morte. A denominao modinha, entretanto,foi criao do prprio Caldas Barbosa, registrada por cronistas portugueses poucotempo aps seu surgimento, como ocorreu com o poeta portugus Nicolau Tolentino deAlmeida em 1779 (ARAJO, p.38):

    Cantada a vulgar modinha,que a dominante agora,Sai a moa da cozinha,e diante da senhoravem desdobrar a banquinha.

    [...]

    J dentre as verdes murteiras,em suavssimos acentoscom segundas e primeiras,sobem nas asas dos ventosas modinhas brasileiras

    Outro caso digno de nota uma carta do escritor portugus Antnio Ribeiro dosSantos a um amigo (Lisboa, final do sc. XVIII), referindo-se a um sarau que assistiu acontragosto. O texto, de grande valor informativo, tornou-se a mais precisa exposiodo significado das modinhas nos saraus lisboetas do sc. XVIII (ARAJO, p.39-40):

    Meu amigo. Tive finalmente de assistir assemblia de F... [D.Leonor de Almeida, Marqueza de Alorna] para que tantas vezes tinha sidoconvidado; que desatino no vi? Mas no direi tudo quanto vi; direisomente que cantavam mancebos e donzelas cantigas de amor todescompostas, que corei de pejo como se me achasse de repente embordis, ou com mulheres de m fazenda. Antigamente ouviam e cantavamos meninos cantilenas guerreiras, que inspiravam nimo e valor; [...]Hoje, pelo contrrio, s se ouvem cantigas amorosas de suspiros, derequebros, de namoros refinados, de garridices. Isto o com que embalamas crianas; o que ensinam aos meninos; o que cantam os moos, e o quetrazem na boca donas e donzelas. Que grandes mximas de modstia, detemperana e de virtude se aprendem nestas canes! Esta praga hojegeral depois que o Caldas comeou de por em uso os seus rimances, e deversejar para as mulheres. Eu no conheo um poeta mais prejudicial educao particular e pblica do que este trovador de Vnus e de Cupido;a tafularia do amor, a meiguice do Brasil e, em geral, a moleza americanaque em seus cantares somente respiram as imprudncias e liberdades doamor, e os ares voluptuosos de Paphos e de Cythera, e encantam comvenenosos filtros a fantasia dos moos e o corao das Damas. Eu admiroa facilidade da sua veia, a riqueza das suas invenes, a variedade dosmotivos que toma para seus cantos, e o pico e graa dos estribilhos eretornelos com que os remata; mas detesto os seus assuntos e, mais ainda,a maneira com que os trata e com que os canta

  • 4O texto de Ribeiro dos Santos, especialmente em seu final, informa compreciso qual era a novidade, nas modas brasileiras, em relao s portuguesas: osassuntos amorosos, tratados com ousadia e permissividade. No aspecto meldico,entretanto, pouco deveriam diferir das modas em uso, mantendo as melodias derivadasdas rias e duetos opersticos. Por isso, Ribeiro dos Santos admira a facilidade da suaveia, a riqueza das suas invenes, a variedade dos motivos que toma para seus cantos,e o pico e graa dos estribilhos e retornelos com que os remata.

    O musiclogo portugus Manuel MORAIS (2000a) questiona a verso correntede que Caldas Barbosa seria compositor e tocador de viola, acreditando que suaparticipao na histria da modinha teria sido principalmente a de letrista. De fato, noso conhecidas melodias seguramente compostas pelo mulato carioca, mas to somenteletras de modinhas. Assim, o adjetivo brasileira deve ser entendido, neste caso, comouma peculiaridade do texto e no exatamente das melodias, ainda que isso demandassegestos e maneiras prprias de interpretao das canes. Exemplo tpico de uma modabrasileira a cano Se tem outra a quem adora, de Jos Palomino, publicada emLisboa em 1792 (JORNAL DE MODINHAS, p.10-12):

    Se tem outra a quem adora,regale-se, meu senhor,escusa fazer-me agoraouvidos de mercador

    E no se envergonha.Ora, no me segue.Cuida que sou bruxa.Eu no sou pamonha.Sou p de moleque.Sou cocada puxa-puxa,pois fui a primeiraem ser seu baju,serei catimpoeira,serei seu caju

    Faa embora o que quiser,maltrate-me com rigor;achar muita mulher,mas no acha tanto amor

    E no se envergonha, etc.

    Depois que o meu triste peitoestalasse em viva dor,diga, ingrato, a que respeitovoc quis ser-me traidor

    E no se envergonha, etc.

    Desde o estudo de Mozart de ARAJO (1963), acreditou-se que as modinhasbrasileiras possuam esse nome por serem canes compostas no Brasil e que acabaramsendo difundidas em Portugal. Embora ainda haja muito a ser estudado sobre essaquesto, tudo indica que o centro geogrfico onde surgiram as modinhas foi mesmoLisboa, lugar que atraiu contribuies originrias da Frana, da Itlia, do Brasil e outrasregies com as quais Portugal mantinha contato.

  • 5Coletneas de modinhas, com texto e msica, surgiram somente a partir daltima dcada do sculo XVIII. Entre 1792 e 1796 foi publicado o Jornal de modinhas,peridico quinzenal editado em Lisboa pelos franceses Francisco Domingos Milcent ePedro Anselmo Marchal. Nos dias 1 e 15 de cada ms, o peridico apresentava umanova cano, sendo numeradas de 1 a 24 as canes impressas em cada ano de edio(julho a junho). O Jornal de modinhas chegou ao quinto ano, mas desse foramanunciados apenas oito nmeros, tendo sido impresso um total de cento e quatrocanes, das quais poucas dezenas foram reeditadas. Todos os nmeros recebiam amesma pgina de rosto, com as seguintes informaes (JORNAL DE MODINHAS,p.1):

    JornalDE

    MODINHASCom acompanhamento de CravoPELOS MILHORES AUTORES

    DEDICADOA Sua Alteza RealPrinceza do Brazil

    Por P.A. Marchal Milcent.No primeiro dia e no Quinze de cada Mez, Sahir

    huma Modinha nova.Preo 200. R.s

    LISBOANa Real Fabrica e Armazem de Muzica no Largo de Jezus

    onde se podera Abonar para a Coleca de cada anno pella quantia de 2880.na mesma Real Fabrica se acha toda qualidade de Muzica

    Afora quatro obras perdidas e dezesseis sem indicao de autoria, dezoitocompositores so mencionados como autores das canes. Em geral, tais compositoresj eram consagrados no meio musical lisboeta e seus nomes conferiam destaque scanes:

    Antnio Bernardo da SilvaAntnio da Silva LeiteAntnio GalassiAntnio Jos da SilvaAntnio Jos do RgoAntnio Leal MoreiraAntonio PuzziCorricelliFrancisco Xavier BatistaJoo de Sousa CarvalhoJos Caetano Cabral de MendonaJos de MesquitaJos MaurcioJos PalominoJos Rodrigues de JesusJosinoLus Antnio BarbosaMarcos Antnio [Portugal]

    Observando-se os termos que designam as canes no Jornal de modinhas,pode-se perceber, em primeiro lugar, que a palavra modinha era raramente utilizada,apesar de figurar no nome do peridico. Sua diversidade, entretanto, demonstra que adesignao modinha abarcava vrios tipos musicais e poticos:

  • 6a voce solacanzoncinachula cariocadilogo entre dois amantesdilogo jocosrioduetoduettoduetto italianoduetto novoduetto novo ao som do zabumbaduetto novo por modo de lunduduoduo novoimprovisomoda a duomoda a solomoda brasileiramoda da copa das caldasmoda do lundumoda do zabumbamoda novamoda nova a solo do saboeiromoda nova brasileiramoda originalmodinha a solomodinha do zabumbamodinha novarond pastoraltercettotercetto noturnotercetto novo

    A grande maioria das canes impressas no Jornal de modinhas est destinada adois cantores com acompanhamento instrumental, sendo bem menos freqentes aquelaspara uma ou trs vozes. Quanto ao acompanhamento, so majoritariamente de cravo e,pelo que se deduz de algumas informaes impressas nas partituras, boa parte deles foiescrita pelo prprio Marchal. Em casos mais raros aparecem acompanhamentos para osseguintes instrumentos: viola; violino; guitarra (portuguesa); duas guitarras; duasguitarras e viola; duas guitarras, viola e baixo; cravo e dois bandolins; dois bandolins ebaixo.

    Outras colees foram impressas em Portugal a partir do incio do sculo XIX,como o Jornal de modinhas novas dedicadas s senhoras, de Joo Batista Waltmann e aDivertimento muzical ou colleca de modinhas de Lus Jos de Carvalho, os dois em1801 (JORNAL DE MODINHAS, p.x; NERY, p.15). Aps seu surgimento na capitalportuguesa, com a colaborao da meiguice do Brasil e da moleza americana, essetipo de cano comeou a se difundir pela colnia, provavelmente j na dcada de 1790.

    A existncia na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, de um manuscrito intituladoModinhas do Brazil, com trinta canes a duas vozes, acompanhadas de viola ou cravo(BHAGUE, 1968), levanta a possibilidade de ser essa uma coletnea de obrascompostas no Brasil na ltima dcada do sculo XVIII. Por outro lado, a inexistncia deoutros documentos referentes prtica de modinhas no Brasil, em perodo anterior aosculo XVIII, pode indicar que o manuscrito Modinhas do Brazil contenha obrasescritas em Portugal, mas com a utilizao de elementos de origem brasileira,especialmente no texto. Alguns dos textos das canes desse manuscrito so de autoria

  • 7de Domingos Caldas Barbosa, o que levou BHAGUE (1968) a supor que o poetapoderia ter sido o autor das obras, hiptese j enfraquecida luz das informaes oradisponveis (MORAIS, 2000a).

    Seja como for, a designao modinha brasileira continuou a ser utilizada nosculo XIX, mesmo em canes compostas e impressas no Brasil, o que faz supor queesse, como o tango brasileiro e a valsa brasileira, designem mais um gnero musicalque a procedncia geogrfica das composies. A transio do sculo XVIII para o XIXfez surgir um novo tipo de cano, obviamente derivada das modinhas setecentistas, queprivilegiou o canto a uma voz. Suas caractersticas, de acordo com DODERER (p.viii),foram as seguintes:

    Pelos finais do sculo [XVIII] surge em primeiro plano um novotipo de Modinhas. Decisivamente cunhada pela cultura musical da altaburguesia, a Modinha transforma-se agora numa cano de sala a umavoz com acompanhamento de piano. A linha meldica do canto torna-semais diferenciada meldica e ritmicamente e leva pela sua constantealterao de tempos fortes a uma caracterstica oscilao de acentos.Mantm-se os textos literrios cheios de sentimentalismo e de penas deamor que encontram a sua contraparte numa delineao meldicaconsiderada pelos ouvintes de ento como doce e deliciosa. A par douso freqente dos contrastes maior-menor, a subdominante sobrepe-sena constelao tonal. Numa linguagem musical cheia de suspiros e deais, a personagem do homem que quase sempre se dirige Dona doseu corao. A loucura da pera reflete-se no repertrio das Modinhas;rias ou motivos de peras especialmente queridas - aos quais seadaptou um texto portugus - encontram imediatamente como novasModinhas acolhimento entusistico.

    Foi esse tipo de modinhas que se estabeleceu no Brasil e iniciou um grandedesenvolvimento no sculo XIX, sendo representante a cano Minha Marlia no vive(MODINHAS, p.25-26), do compositor carioca Cndido Incio da Silva (exemplo 2). essa modinha da primeira metade do sculo XIX referida por Ernesto VIEIRA (1899,p.350), em descrio que concorda com as idias acima apresentadas:

    Modinha. ria, espcie de romana portuguesa muito em vogadurante os fins do sculo passado [XVIII] e primeira metade do atual[XIX]. A modinha era uma melodia triste, sentimental, freqentementeno modo menor, com letra amorosa. Muitas modinhas eram tambmextradas das peras italianas que mais agradavam.

    A modinha passou de Portugal para o Brasil e ainda ali no foide todo abandonada, tornando-se tambm mais caracterstica pelosrequebros lnguidos com que as brasileiras a cantam. [...]

    Exemplo 2. CNDIDO INCIO DA SILVA. Minha Marlia no vive (modinha), c.1-8.

  • 8Deve-se, entretanto, a Grigry Ivanovitch Langsdorff (1774-1852), Cnsul daRssia no Brasil, o primeiro registro musical de uma modinha seguramente cantada emsolo brasileiro (exemplo 3), mais especificamente na Vila de Nossa Senhora do Desterroda Ilha de Santa Catarina em 1806 (LANGSDORFF, 1818, entre p.54-55;LANGSDORFF, s.d., f.56), sob a designao ria brasileira (Brasiliaansche Aria emholands e Brasilische Arie em alemo). O viajante fez acompanhar o exemplo daseguinte observao, que tambm parece ter sido a primeira referente s modinhas noBrasil (LANGSDORFF, 1818, p.54):

    [...] noite as pessoas se encontram em pequenos grupos defamiliares, onde se dana, brinca, ri, canta-se e contam-se anedotas,conforme a tradio portuguesa. Os instrumentos musicais mais usadosso a viola e o chocalho. A msica cheia de expresso, terna esentimental. As canes so de contedo modesto, freqentementereiterando temas como amor por mulheres, coraes sangrentos eferidos, desejos e saudades. [...]

    Exemplo 3. ANNIMO (registrado por Grigry Ivanovitch Langsdorff). Quando o mal se acaba (riabrasileira), c.1-16.

  • 9Mas a primeira coletnea de modinhas praticadas no Brasil foi publicada pelospesquisadores austracos Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Philippvon Martius (1794-1868), enviados pelo rei da Baviera, para realizar um levantamentobotnico, zoolgico, mineralgico e etnolgico nas provncias de So Paulo, MinasGerais, Bahia, Pernambuco, Piau, Maranho e Amazonas. Alm de seu monumentallevantamento botnico e mineralgico, importante at hoje nos meios cientficos, Spix eMartius publicaram em Munique, entre 1823-1831, trs volumes intitulados Reise inBrasilien (Viagem pelo Brasil), nos quais relataram suas aventuras e apresentaramimportantes aspectos da histria, geografia e cultura brasileira.

    Martius, responsvel pela redao da Viagem pelo Brasil, tambm era um bomconhecedor de msica e, para enriquecer a publicao, elaborou um anexo musicalintitulado Brasilianische Volkslieder und Indianische Melodien (Canes popularesbrasileiras e melodias indgenas), com quatro canes recolhidas em So Paulo, uma emMinas Gerais, uma na Bahia, uma com a indicao de Minas e Bahia e outra com aindicao de Minas e Gois, alm de um lundu instrumental (sem indicao delocalidade) e 14 melodias indgenas.

    Embora Martius tenha observado, ao passar pela cidade de So Paulo em 1818,que, alm da viola, nenhum outro instrumento estudado (SPIX e MARTIUS, v.1,p.141), o autor apresentou suas transcries dos Volkslieder em verses para canto epiano. Ainda no se realizaram pesquisas para se determinar com preciso quaisinstrumentos de cordas eram utilizados no Brasil para acompanhar o canto nesseperodo e se estes possuam cordas simples ou duplas (na nica gravura de seu livro naqual aparece um instrumento como esse, o mesmo foi representado com seis cordassimples): o autor austraco sempre utiliza o termo alemo (e bastante genrico)Gitarre e, apenas uma vez, informa que, entre ns, era denominado viola. Quandoesteve no Rio de Janeiro, em 1817, Martius afirmou textualmente (DODERER, p.ix):

    O brasileiro tem, tal como o portugus, uma boa sensibilidadepara modulaes agradveis e seqncias regulares, dando assim ao seucanto um maior apoio graas ao acompanhamento simples da viola. Aviola aqui, como no sul da Europa, o instrumento preferido, ao passoque o piano uma muito rara pea mobiliria que se encontra apenasnas casas ricas.

    Presume-se, portanto, que Martius elaborou um acompanhamento para pianodestinado aos seus leitores austracos e no exatamente por t-lo observado no Brasil.Alm disso, as canes brasileiras registradas pelo escritor austraco receberam adesignao populares, mas no com o mesmo significado que o termo possuiatualmente. Tal expresso, para Martius, designaria um aspecto no erudito, distante da

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    corte, do teatro ou da igreja e mais ligado aos costumes domsticos e familiares,relativos, porm, elite e no s classes baixas. isso o que se deduz da observao queo autor austraco fez dessas canes, quando esteve no Rio de Janeiro em 1817(DODERER, p.ix):

    As canes populares so acompanhadas pela viola e tm a suaorigem tanto em Portugal como no prprio pas. pelo canto e pelossons do instrumento que o brasileiro facilmente levado a danar,dando expresso sua boa disposio atravs de contradanas suts, noambiente das camadas sociais eruditas, e atravs de movimentos eposies mmico-sensuais parecidos com os dos pretos, no ambiente dascamadas baixas.

    Some-se a essas observaes o fato de que as modinhas portuguesas e brasileirasdo perodo monrquico, apesar de alegres e ousadas, repletas de termos de origempopular, eram divulgadas em refinadas partituras ou manuscritos, obviamentedestinados a freqentadores dos crculos cultos. somente na transio do sculo XIXpara o XX que a modinha atingir uma difuso social que admitir a designaopopular.

    As observaes de Martius so ricas para se compreender o significado quetiveram as canes que este ouviu no Brasil, no final do reinado de D. Joo VI.Denominando-as modinhas e informando que aqui se ouviam tanto as compostas nopas, quanto as trazidas de Portugal, foi capaz de estabelecer a diferena entre ascanes locais e as de origem lusitana. Seu relato mais importante em relao a esseaspecto foi escrito no Rio de Janeiro, em 1817 (DODERER, p.x):

    [...] As canes populares so de origem portuguesa oubrasileira. As ltimas sobrepe-se no que diz respeito naturalidade dotexto e da melodia; mantm-se dentro do gosto do povo e demonstram, svezes, um verdadeiro mpeto lrico dos autores, na maior parteannimos. Amor desprezado, tormentos de cime e penas de despedidasso os objetos da sua musa e uma inspirada referncia naturezaoferece a estes poemas um ambiente prprio e sereno. Esta atmosferacriada parece a uma pessoa europia tanto mais deliciosa e suavequanto se sente em disposio idlica provocada pela riqueza e pelotranqilo prazer que toda a natureza em volta respira. As canes quejuntamos no Atlas serviro, certamente, para provar a verdade dasnossas palavras.

    Em 1826, o escritor francs Ferdinand DENIS (p.581-582) publicava um relatono menos interessante sobre o canto das modinhas no Brasil, no qual informa que,apesar da flagrante simplicidade tcnica dessas canes, sua irresistvel atranciacontaminava at mesmo os europeus recm chegados ao pas:

    [...] Ao mesmo tempo que a msica de Rossini admirada nossales, porque cantada com uma expresso que nem sempre seencontra na Europa, os simples artesos percorrem ao sero as ruascantando essas encantadoras modinhas, que impossvel ouvir sem comelas se ficar vivamente comovido; quase sempre servem para pintar osdevaneios do amor, as suas penas ou a sua esperana; as palavras so

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    simples, os acordes repetem-se de uma forma bastante montona; mastm, por vezes, um tal encanto na melodia, e por vezes uma taloriginalidade que o europeu acabado de chegar no pode cansar-se deas ouvir e compreende a indolncia melanclica desses bons cidadosque ouvem durante horas seguidas as mesmas canes.

    Na primeira metade do sculo XIX, o principal centro de difuso das modinhas,no Brasil, foi o Rio de Janeiro. As primeiras canes desse gnero comearam a serimpressas na dcada de 1830 e centenas foram publicadas at o final do sculo, porautores brasileiros ou radicados no Brasil, como os abaixo indicados:

    Antnio Carlos Gomes (1836-1896)Antonio Tornaghi (sc. XIX)Cndido Incio da Silva (c.1800-1838)Francisco da Luz Pinto (?-1865)Francisco Joaquim de Santana Matos (sc. XIX)Francisco Manuel da Silva (1795-1865)Gabriel Fernandes da Trindade (c.1790-1854)Joo Mazziotti (?-1850)Jos Joaquim Lodi (?-1856)Jos Maria da Silva Rodrigues (sc. XIX)Joseph Fachinetti (sc. XIX)Padre Telles (sc. XIX)Rafael Coelho Machado (1814-1887)

    A partir da segunda metade do sculo XIX foram impressas vrias coletneas detextos de modinhas, como o TROVADOR (1876) e A CANTORA BRASILEIRA(1878), fenmeno semelhante ao que ocorrera com as modinhas de Domingos CaldasBARBOSA (1944) no sculo XVIII. Coletneas com texto e msica so mais comuns apartir do incio do sculo XX, como o caso das Canes populares do Brazil, de JuliaBrito MENDES (1911), cujo ttulo j indica uma terceira fase evolutiva das modinhas,embora a publicao contenha obras compostas desde o incio do sculo XIX.

    3. O lundu instrumental

    Em meados do sculo XVIII estabeleceu-se no Brasil uma modalidade de danaque seria conhecida, j no incio do sculo seguinte, como a dana nacional.Denominada lundu, londu, landu, landum ou lundum, esse tipo de msica parece tersido a mais antiga dana brasileira da qual conhecemos exemplos musicais, embora sejanecessrio esclarecer em que medida o lundu foi exatamente brasileiro.

    Se no existiu qualquer documento portugus ou brasileiro anterior a 1775 coma denominao modinha, o mesmo ocorreu em relao ao lundu. Apesar de ter sidocomum no Brasil, durante o sculo XVIII, um ritual africano denominado calundu,difundido tambm em Portugal j no sc. XVII, parece no haver relao direta entre amsica que teria sido utilizada no calundu e a msica do lundu nos sculos XVIII eXIX. Por outro lado, no existe dvida que o nome dessa dana seja de origem africana,como informa Ernesto VIEIRA (1899, p.319):

    Lundum ou Landum. Dana chula africana, usada tambm noBrasil. O dicionrio da lngua bunda por Conecatim tem land, todavia aforma geralmente seguida lundum.

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    Tudo indica que o lundu tenha mesmo surgido no Brasil, mesmo sendo oresultado da mescla de elementos musicais e coreogrficos de origens diversas. A dananacional portuguesa na segunda metade do XVIII era a ffa, danada aos pares, ao somde violas e guitarras (portuguesas); parece no ter sido muito utilizada no Brasil, j quenormalmente no citada em documentos brasileiros. No Brasil setecentista, aocontrrio, foram predominantemente citadas duas danas: o lundu e o batuque.

    O batuque, a julgar pelas descries e ilustraes disponveis (as principaisforam publicadas por Carl Friedrich von Martius e por Johann Moritz Rugendas), foiuma denominao portuguesa genrica para todo tipo de dana de negros, praticada emfazendas durante o dia e ao ar livre, nos fins de semana ou dias de festa. O batuque eraacompanhado pela percusso de instrumentos idifonos ou membranfonos ou, maiscomumente, pela batida das prprias mos, empregando-se tambm a umbigada, recursocoreogrfico que se difundiu por todo o pas em gneros que ainda so observados entrepopulaes de origem negra.

    J o lundu parece ter sido uma dana mais difundida socialmente, praticada entrenegros, brancos e mulatos. Carl Friedrich von Martius, que esteve em Belm em 1819,associou o lundu aos mulatos da cidade, com a seguinte observao (SPIX eMARTIUS, v.3, p.29): Para o jogo, a msica e a dana, est o mulato sempredisposto, e movimenta-se insacivel, nos prazeres, com a mesma agilidade dos seuscongneres do sul, aos sons montonos, sussurrantes do violo, no lascivo lundu ou nodesenfreado batuque. Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que acompanhouLangsdorff em uma expedio pelo Brasil entre 1821-1829, confirma a diferena socialque existiu entre o batuque e o lundu, no Malerische Reise in Brasilien (Viagempitoresca pelo Brasil), publicado em 1835 (RUGENDAS, p.157-158):

    A dana habitual do negro o batuque. Apenas se renemalguns negros e logo se ouve a batida cadenciada das mos; o sinalde chamada e de provocao dana. O batuque dirigido por umfigurante; consiste em certos movimentos do corpo que talvez pareamdemasiado expressivos; so principalmente as ancas que se agitam;enquanto o danarino faz estalar a lngua e os dedos, acompanhandoum canto montono, os outros fazem crculo em volta dele e repetem orefro.

    Outra dana negra muito conhecida o lundu, tambmdanada pelos portugueses, ao som do violo, por um ou mais pares.Talvez o fandango, ou o bolero dos espanhis, no passem de umaimitao aperfeioada dessa dana.

    Acontece muitas vezes que os negros danam sem parar noitesinteiras, escolhendo, por isso, de preferncia, os sbados e as vsperasdos dias santos.

    Rugendas tambm produziu duas gravuras com o ttulo Danse landu, nasquais foram retratadas duas situaes sociais distintas, em torno da mesma dana. Naprimeira delas (RUGENDAS, 3 div., pl.18), representou uma cena noturna ao ar livre,ao lado de uma casa grande e em frente a uma fogueira, envolvendo um casal dedanarinos, um tocador de viola e dezenove espectadores, constitudos de negros,mulatos e brancos, entre os ltimos um clrigo e um homem armado com espada, aolado de sua companheira. O danarino, vestido portuguesa, com sapatilha e meias,mantm os dois braos levantados, com castanholas nas duas mos, enquanto adanarina movimenta-se com as mos na cintura. Na segunda gravura (RUGENDAS, 4

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    div., pl.17), existe uma cena semelhante, porm ao cair da tarde e junto a um casebre, naqual observa-se um casal de danarinos mulatos, ambos descalos, mas realizando osmesmos movimentos da gravura anterior: o homem com os braos erguidos,aparentemente estalando os dedos, e a mulher com as mos na cintura. Treze pessoas,entre negros e mulatos, presenciam a dana, um deles a cavalo.

    Alm da difuso social, Rugendas tambm atesta uma ligao direta entre olundu e certas danas ibricas (portuguesas ou espanholas) como o fandango e o bolero,nas quais eram utilizadas as castanholas, os estalos dos dedos e o acompanhamento dasviolas, chegando at a afirmar que as verses ibricas seriam derivadas do lundu.

    Assim como no caso das modinhas, bem possvel que o lundu tenha passadopor transformaes na transio do sculo XVIII para o XIX. Por outro lado, asinformaes conhecidas da segunda metade do sculo XVIII concordam com aquelasapresentadas por Martius e Rugendas. O prprio Domingos Caldas Barbosa relaciona olundu ao fandango (ARAJO, p.22-23):

    Eu vi correndo hoje o Tejo,vinha soberbo e vaidoso;s por ter nas suas margenso meigo lundum gostoso.

    Que lindas voltas que fez;estendido pela praia,queira beijar-lhe os ps

    Se o lundum bem conhecera,quem o havia c danar;de gosto mesmo morrera,sem poder nunca chegar.

    Ai, rum, rum,vence fandangos e gigasa chulice do lundum.

    [...]

    Outra informao importante do final do sc. XVIII pode ser encontrada em umacarta de 1780 do ex-governador de Pernambuco, D. Jos da Cunha Gr Athayde eMello, segundo a qual alm da relao com as danas ibricas, o lundu era comum entrebrancos e mulatos (ARAJO, p.55):

    [...] Os pretos, divididos em naes e com instrumentos prpriosde cada uma, danam e fazem voltas como arlequins, e outros danamcom diversos movimentos do corpo, que, ainda que no sejam os maisindecentes, so como os fandangos em Castella e fofas de Portugal, olundum dos brancos e pardos daquele pas.

    A descrio mais pormenorizada de um lundu, entretanto, foi-nos deixada nasCartas Chilenas (1787), de Toms Antnio Gonzaga. Neste texto, alm de uma vezmais ser informada a tendncia de expanso social do lundu, o poeta indica a presenada viola e dos estalos dos dedos, mas acusa o uso da umbigada, elemento coreogrficooriginrio do batuque (ARAJO, p.22):

    Fingindo a moa que levanta a saiae voando na ponta dos dedinhos,

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    prega no machacaz, de quem mais gosta,a lasciva embigada, abrindo os braos.Ento o machacaz, mexendo a bunda,pondo uma mo na testa, outra na ilharga,ou dando alguns estalos com os dedos,seguindo das violas o compasso,lhe diz - eu pago, eu pago - e, de repente,sobre a torpe michela atira o salto. dana venturosa! Tu entravasnas humildes choupanas, onde as negras,aonde as vis mulatas, apertandopor baixo do bandulho a larga cinta,te honravam cos marotos e brejeiros,batendo sobre o cho o p descalo.Agora j consegues ter entradanas casas mais honestas e palcios!

    Manuel Raimundo QUERINO (p.293) confirma a presena dos traos ibricosno lundu oitocentista, apresentando a seguinte descrio da coreografia de uma variantedo lundu denominada lundu de marru:

    Duas pessoas na posio de danarem a valsa, davam comeo aolundu. Depois, apertavam as mos; levantavam os braos em posio graciosa,a tocar castanholas, continuando a dana desligadas.

    Outro autor, ARARIPE JUNIOR (p.169-170), mantm a crena de ter existidorelao direta entre o lundu e certas danas ibricas, apresentando outra descrio de suacoreografia:

    [...] O lundu, que tudo que pode haver de mais dengoso emmatria de canto e coreografia, excede seguidilha espanhola, com aqual guarda parentesco, e a dana volupturia do ventre, das orientais.No to ideal como a primeira, nem to brutalmente carnal como asegunda: , porm, mais quente do que ambas, sem desabrochar nalubricidade descabelada das falotomias antigas. No lundu h uma levezade pisar, um airoso de porte e uma meiguice de voz, que no se encontraem nenhuma das manifestaes similares de outros povos mestiados; ea sua maior originalidade consiste no ritmo resultante da luta entre ocompasso quaternrio rudemente sincopado dos africanos e aamplificao da serranilha portuguesa. Essa fuso de ritmos napennsula deu cabimento caninha verde e chula, cuja grosseriadiariamente observamos. A mulata, entretanto, vibrtil, ciosa, por vezeslnguida, pondo os incitamentos desses dois ritmos nos quadris, comoexpresso da sexualidade, subordinados ao canto apaixonado, estuoso eao mesmo tempo grcil, comeou a sincopa-lo a capricho, produzindoflexuosidades quase inexprimveis e de um erotismo refinado.

    Como j referido anteriormente, o nome lundu indica a existncia de algumarelao entre essa dana e a cultura africana, que at o momento no foi totalmenteapurada. Por outro lado, os mais antigos exemplos musicais conhecidos de lunducorroboram sua possvel origem ibrica. Uma das peas do anexo musicalBrasilianische Volkslieder und Indianische Melodien (n.9) o Landum, BrasilianischeVolktanz (lundu, dana popular brasileira), a nica obra instrumental da coletnea

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    (exemplo 4) e, ao mesmo tempo, o mais antigo registro musical que se conhece dessetipo de dana, no Brasil (SPIX e MARTIUS, v.2, p.301).

    Exemplo 4. ANNIMO (registrado por C.P.F. Martius). Landum (instrumental), c.1-25.

    No lundu recolhido por Martius observa-se a variao contnua de um motivo dequatro compassos, no qual o terceiro e quarto compassos so uma repetio do primeiroe segundo. Alm disso, o motivo alterna um compasso na tnica e um na dominante datonalidade utilizada, no caso l maior. O exemplo apresenta vinte e trs variaes (huma repetio errnea dos dois primeiros compassos da vigsima primeira variao,logo aps o c.92), seguidas de seis compassos finais que no participam do processo devariao, especificamente destinados ao encerramento da pea. exceo da stimavariao, que possui oito compassos (os quatro primeiros iguais aos quatro seguintes),as demais possuem sempre quatro compassos repetidos de dois em dois, estando oscompassos mpares na tnica e os pares na dominante.

    Ora, o esquema acima descrito nitidamente aparentado s diferenciasinstrumentais, compostas por vihuelistas espanhis do sculo XVI, como Lus deNarvez, Alonso Mudarra, Enriquez de Valderrabano e outros. Esse tipo de msicaentretanto, alm de no ser um tipo de dana, estava destinado a um ambiente corteso eexplorava tanto a diversidade musical quanto a destreza manual do executante,parecendo, em geral, mais exuberante que o exemplo registrado por Martius. Por outrolado, a prtica das variaes na Pennsula Ibrica a partir das diferencias acabou sendotransferida para danas espanholas e portuguesas j no sculo XVII, chegando at ofandango do sculo XVIII.

    Nesse aspecto, portanto, no h dvidas de que o lundu representou a recepo,no Brasil, de um gnero de dana ibrica que, embora transformada, manteve

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    caractersticas suficientes para se reconhecer sua origem. Essa idia contradiz a maiorparte das opinies correntes sobre o lundu, que a do como dana de origemexclusivamente africana, problema que decorre principalmente da escassez de exemplosmusicais, cuja anlise permita concluses mais abrangentes.

    Felizmente, outros exemplos de lundu do incio do sculo XIX foramrecentemente apresentados pelo musiclogo paranaense Rogrio BUDASZ (p.313-317),procedentes de um manuscrito de msica para saltrio copiado em Paranagu (PR) nasprimeiras dcadas do sc. XIX, por Antnio Vieira dos Santos (Porto, 1784 - Morretes,1854). Esse documento contm algumas danas denominadas lundu, lundu da Bahia,lundu do Rio e lundu de marru (SANTOS, p.21). Duas delas, sob o ttulo Primeirolundu da Bahia e Segundo lundu da Bahia (SANTOS, p.57-62) podem ser parcialmenteobservadas nos exemplos 5 e 6.

    Exemplo 5. ANNIMO (registrado por Antnio Vieira dos Santos). Primeiro lundu da Bahia(instrumental), c.1-28

    Exemplo 6. ANNIMO (registrado por Antnio Vieira dos Santos). Segundo lundu da Bahia(instrumental), c.1-20.

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    No Segundo lundu da Bahia (exemplo 6), tal como no lundu registrado porMartius, ocorre a alternncia de compassos na tnica e na dominante, tambm de lmaior. Um motivo de dois compassos, com ritornello, inicia a dana, sendo repetidodepois de cada variao. Esse motivo contm a mesma repetio interna observada nolundu impresso por Martius mas, diferentemente deste, as variaes possuem apenasdois compassos, sem a referida repetio. Observe-se, entretanto, que na terceiravariao (c.11-14) a repetio est presente, fazendo supor que, embora nem sempreindicada, a repetio poderia estar subentendida.

    No Primeiro lundu da Bahia (exemplo 5) o esquema formal prximo aoexemplo anteriormente analisado, sendo visvel apenas um procedimento particular apartir do c.17, com a fuso do motivo inicial s variaes, fazendo com que aqueletenha um compasso a menos e estas um a mais, porm sempre mantendo a alternnciados compassos na tnica e na dominante.

    Apesar das diferenas entre os lundus registrados por Antnio Vieira dos Santose aquele impresso por Carl Friedrich von Martius, grande sua semelhana no que serefere ao princpio formal, subsidiando a hiptese de que o tipo de variao que exibemseria a principal caracterstica meldica dessa dana, ao menos no incio do sculo XIX.Mais difcil, entretanto, a tentativa de localizar elementos de origem africana no somdessa dana, a qual ter de aguardar novos estudos para seu esclarecimento.

    4. O lundu-cano

    At o momento, os autores que se dedicaram ao estudo do lundu aceitam ahiptese de que Domingos Caldas Barbosa o tenha introduzido nos sales lisboetas,porm no como dana instrumental, mas j como uma modalidade de cano. Essenovo tipo de lundu, que para ser diferenciado da dana instrumental pode serdenominado lundu-cano, na verdade um tipo de modinha que possui algumascaractersticas particulares.

    Um dos primeiros exemplos de lundu-cano foi impresso no JORNAL DEMODINHAS (p.52-53 e ARAJO, p.79-80) em 1 de maio de 1793, no n.21 doprimeiro ano. trata-se de uma moda do londu composta por Jos de Mesquita, sob otexto J se quebraram os laos (exemplo 7).

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    Exemplo 7. JOS DE MESQUITA. J se quebraram os laos (lundu-cano), c.1-32.

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    A moda do londu de Jos de Mesquita possui um motivo inicial de quatrocompassos no cravo, reapresentado nos c.17-20, o qual manifesta o mesmo tipo derepetio interna dos lundus instrumentais anteriormente analisados. A diversidade deacordes, entretanto, um pouco maior, mas evidente uma certa tendncia de sealternar compassos na tnica e na dominante (de f maior). Paralelamente, a pea estinteiramente dividida em clulas de oito compassos, que receberam barras duplas noexemplo 7, somente para facilitar sua visualizao.

    Embora no possam ser caracterizadas como variaes, tais clulas exibem,entre si, contrastes na figurao, ao mesmo tempo que procuram repetir certos padresmeldicos, como ocorre entre as clulas dos c.9-12 e 29-32. Observe-se, finalmente,que, nas citadas clulas, o terceiro e quarto compassos so uma repetio (compequenas modificaes) do primeiro e segundo, tal como referido no caso do lunduinstrumental.

    Tais caractersticas corroboram a hiptese, tambm corrente, de que o lundu-cano teria se originado do lundu instrumental. A diferena, entretanto, no seriaapenas musical, mas tambm social: inicialmente, o lundu-cano fora praticado comomsica de salo em meio elite lisboeta, como uma espcie de imitao do lunduinstrumental danado por brancos e mulatos brasileiros e, por essa razo, teria mantidoalgumas de suas caractersticas sonoras.

    H, entretanto, uma outra particularidade verificada em alguns dos lundussetecentistas, que permaneceu em seus congneres do sculo XIX: o carter sincopadodas melodias vocais. Tal efeito pode ser observado na exemplo 8, Eu nasci semcorao, sexta cano do manuscrito Modinhas do Brazil, cuja letra do prprioDomingos Caldas Barbosa (BHAGUE, p.44-61; MORAIS, 2000b, p.71-75; LIMA,p.224).

    Exemplo 8. ANNIMO. Eu nasci sem corao (lundu-cano), c.1-15.

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    Em toda a cano Eu nasci sem corao alternam-se compassos na tnica e nadominante, observando-se a remanescncia do princpio da variao entre os c.3-7 e 9-13, o que caracteriza esta pea como um lundu, apesar dessa designao no ter sidoespecificada no manuscrito. Mas a caracterstica mais evidente nesse exemplo a fortesincopao das melodias destinadas ao canto, fenmeno que ainda no pode serfacilmente explicvel a partir das informaes ora disponveis.

    possvel que a presena de elementos africanos (ainda no totalmenteidentificados) no lundu instrumental tenha feito com que alguns deles fossemtranspostos para o lundu-cano, estando entre eles o uso constante da sncopa. Sejacomo for, o lundu-cano, tal como a modinha, comeou a ser composto no Brasil apartir do princpio do sculo XIX, muitas vezes mantendo a utilizao da sncopa.Inicialmente, a temtica amorosa continuou em uso assim como nas modinhassetecentista.

    No decorrer do sc. XIX, contudo, o lundu cano foi abandonando a temticaamorosa, recebendo um carter satrico, como se observa nas composies de CndidoIncio da Silva, Gabriel Fernandes da Trindade, Padre Telles, Francisco Manuel daSilva e outros. Um dos primeiros exemplos publicados no Rio de Janeiro foi o lunduGraas aos Cus, de Gabriel Fernandes da Trindade (DODERER, p.17-19), cujo texto o que se segue.

    Graas aos cus, de vadiosas ruas limpas estodeles a casa est cheia,a Casa da Correo

    J foi-se o tempo de mendigar,fora vadios, vo trabalhar!

    Senhor chefe da Polcia,eis nossa gratidopor mandares os vadios Casa da Correo

    J foi-se o tempo de mendigar, etc.

    Sede exato, pois, senhor,em tal deliberao,que muita gente merecea Casa da Correo

    J foi-se o tempo de mendigar, etc.

    Na primeira metade do sculo XIX, o lundu-cano continuou a ser comum noBrasil, sem deixar de ser praticado em Portugal. Por outro lado, tanto a modinha quantoos dois tipos de lundu sofreram fortes transformaes a partir do final do sculo XIX,especialmente relacionadas ao seu desnivelamento social. J fazendo parte da prticamusical popular, a modinha e o lundu chegaram ao sculo XX reconhecidos comogneros tipicamente brasileiros, apesar de sua origem europia e africana.

    5. Referncias bibliogrficas

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  • 22

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