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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Luiza Spínola Amaral A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO DA RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA PAULISTANA MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo 2011

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Luiza Spínola Amaral

A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO D A RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA

PAULISTANA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2011

Luiza Spínola Amaral

A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO D A RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA

PAULISTANA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica na área de Análise das Mídias, sob a orientação da Profa. Doutora Leda Tenório da Motta.

São Paulo

2011

Luiza Spínola Amaral

A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO D A RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA

PAULISTANA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

A Comissão Examinadora, abaixo identificada, aprova a dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica da aluna

Luiza Spínola Amaral

Banca Examinadora __________________________

_

___________________________

___________________________

São Paulo, ___ de ____________ de 2011

Este trabalho é dedicado ao meu pai, Fernando Amaral; ao meu padrasto, Renato Maletta e ao

meu avô, Djur Spínola. Em memória de Milton Cabral Viana.

Agradecimentos:

À Eliane, Renato, Fernando, Djur e Estela pelo amor e ajuda, imprescindíveis

para a realização deste trabalho.

Ao Gustavo de Castro por ser o grande mestre a me guiar nos momentos mais

importantes desta pesquisa.

À Leda Tenório da Motta, por toda a orientação nestes dois anos.

Aos amigos e companheiros de pesquisa, Cláudia Leão, Diogo Bornhausen,

Camila Garcia, Luciane Robic e Martinho Junior.

Aos meus irmãos, parceiros de vida, Filipe e Amanda Spínola Amaral,

Guilherme e Eduardo Amaral.

À Nídia, Lígia e Flávia, pelas conversas enriquecedoras.

Aos professores Norval Baitello Junior e Helena Katz pelas aulas inspiradoras.

Ao amigo Leonardo Candian, pelas inúmeras sessões de jazz.

À Daniel Lima, amigo e irmão, pelo acolhimento sempre generoso.

À Júlia, Giordano e Daniel Pedrecal pelas deliciosas tardes de conversas.

À Augusto, pela doce companhia nas tardes de biblioteca.

Às bibliotecas da PUC-SP e da UnB.

Ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq), pelo apio.

“Aonde quer que esteja – se estiver no

encalço da sua bem-aventurança, estará

desfrutando aquele frescor, aquela vida

intensa dentro de você, o tempo todo.”

Joseph Campbell

Resumo

O objetivo desta pesquisa é levantar o registro histórico da memória da

música popular no Brasil, através de um acompanhamento da cobertura

jornalística que os festivais de jazz recebem na mídia impressa

paulistana. Trata-se também de enfocar as relações que se estabelecem

entre a crítica e a indústria cultural, mostrando como nossa memória

musical é inflexionada por certa visão sociológica a partir da qual se

enxerga o jazz como mais um produto da indústria cultural norte-

americana, e como a esta linha que diríamos marcada pela suspeição

contrapõe-se, a partir de determinado momento, à corrente dos

semioticistas, a que pertence, enquanto musicólogo, Augusto de

Campos. Metodologicamente trata-se de uma pesquisa bibliográfica e

documental. O corpus da pesquisa constitui-se no conjunto de matérias

críticas jornalísticas aqui em exame, conjunto do qual foi recortada uma

parcela de textos a analisar.

Palavras-chave: jazz, crítica musical, festivais de música, música brasileira

Abstract:

The main objective of this research is to rescue the historical memoire of

brazilian popular music through the media coverage that jazz festivals

get from São Paulo's press. It's also about focusing on the relationship

between the cultural industry and the critics, exposing how our musical

memory is smothered by a certain sociological view of jazz as just

another product of american culture and how this line of opinion,

suspicious as it is, counterpoints the semiotic stream of critics that,

among other musicologists, belongs Augusto de Campos. It's a

documental and bibliographical research. The core of the research is a

gathering of journalistic stories exposed here, establishing an analytical

overview of São Paulo's press media.

Keywords: jazz, music criticism, music festivals, brazilian music.

Sumário

Apresentação 11

Capítulo 1 - A questão das linhas críticas em tensão, o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular, a vanguarda e o desenvolvimento 17

Capítulo 2 – A História do Free Jazz 35

1985 36

1986 41

1987 48

1988 55

1989 60

A década de 1990 64

1991 65

1992 69

1993 74

1994 78

1995 83

1996 88

1997 93

1998 98

1999 102

2000 107

2001 111

Capítulo 3 – O Jazz na Mídia Impressa 115

Conclusão 128

Referências 130

Apêndices 134

10.09.1988 - Só ouvidos apurados ouvem as fivelas caindo das máscaras - Ruy Castro - O Estado de São Paulo 135

13.09.1988 - No final a síntese do que não foi um festival de jazz - Giron – O Estado de São Paulo 136

01.09.1989 - Derrotas e vitórias na roleta Free - Giron - O Estado de São Paulo 137

18.10.1994 - Jazz precisa ser sempre chato - Guga Stroeter - Folha de São Paulo 138

18.10.1994 - Puristas vivem reclamando - Carlos Calado - Folha de São Paulo 139

26.10.1994 – Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus Miller – Luís Antônio Giron - Folha de São Paulo 140

29.10.1994 – Brown fecha Free Jazz com bordel sonoro – Luís Antônio Giron - Folha de São Paulo 141

14.10.1996 – Bjõrk aponta para o futuro e mostra música globalizada aos brasileiros – Pedro Alexandre Sanches - Folha de São Paulo 142

Anexos 143

Anexo I - Entrevista Carlos Calado 144

Anexo II - Entrevista Júlio Medaglia 154

Apresentação

A proposta inicial para esta pesquisa era analisar as fotografias referentes

ao Free Jazz Festival publicadas nos jornais paulistanos Folha de São

Paulo e Estado de São Paulo. O evento, sempre lembrado pelos amantes

do gênero, teve êxito no país por reunir, a cada edição, grandes nomes da

música nacional e internacional, por dezesseis anos, com apenas uma

interrupção. O banco de imagens é enorme, e como observa Susan Sontag

(2004) no livro Sobre a Fotografia, quando discorre sobre a relação que se

estabelece entre popularidade, imagem e informação, torna-se fácil

perceber a importância que a fotografia vem adquirindo nos jornais:

A informação que as fotos podem dar começa a parecer muito

importante naquele momento da história cultural em que todos se

supõem com direito a algo chamado notícia. As fotos foram vistas

como um modo de dar informações a pessoas que não têm facilidade

para ler. O Daily News ainda se denomina ‘jornal de imagens de Nova

York’, sua maneira de alcançar uma identidade populista. No extremo

oposto do espectro, Le Monde, um jornal destinado a leitores

preparados e bem informados, não publica foto nenhuma. (SONTAG,

2004, p. 32).

A hipótese inicial era a de que as fotografias seriam capazes de contar uma

história do jazz no Brasil, a partir daquela década de 1980, que incluiu o

país na rota dos grandes festivais de música, com visibilidade internacional,

uma vez que a imagem de tais festivais estava associada às grandes

estrelas estrangeiras que traziam para o Brasil. Dessa forma, o panorama

das fotografias publicadas nos jornais, ao exibir lado a lado artistas

nacionais e estrangeiros, parecia incentivar a aproximação entre a música

popular urbana brasileira e a norte-americana, ambas marcadas pela

mistura da cultura popular e erudita.

Ora, se é certo o que disse Zuza Homem de Mello (2003), em seu livro A

Era dos Festivais: Uma Parábola, a saber, que o objetivo de um festival

deste tipo é: “oferecer, em curto espaço de tempo, a oportunidade de

acesso a novas tendências, a novas obras, ao que está em voga, ou ainda,

num sentido diametralmente oposto, revisitar a obra de artistas

amplamente consagrados” (MELLO, 2003, p. 13), parece possível pensar

que as coberturas midiáticas caminhavam no sentido de incentivar a

proposta do festival em promover o encontro de diversas tendências

musicais.

No entanto, com o avanço da pesquisa foi se tornando mais claro que a

crítica musical brasileira divergia em sua valoração do festival. Boa parte

dela vinha amparada naquela visão sociológica que encarava a indústria

cultural como alienadora e classificava o festival como exemplo da

dominação capitalista, que visa apenas fins comerciais. Dessa forma, a

discussão travada nos jornais sobre o festival de jazz não contemplava sua

importância como ambiente estimulador de trocas culturais, fundamental

para a música brasileira, como bem explicou Bernadete Silveira Moraes,

em sua dissertação de mestrado, Jazz: As Matrizes da Mestiçagem:

Com a criação desse espaço de festivais, as tendências musicais

passaram a circular entre músicos nacionais que deram início a um

processo de troca intensa com músicos internacionais. A presença do

jazz, ampliada por meio dos festivais, impulsionou a música

instrumental brasileira. (Silveira Moraes, 2000, p. 88).

A crítica, ao contrário, se preocupava em defender a música brasileira

daquilo que ela (a crítica) não aprovava, tratando o público como

consumidor enganado em relação ao que lhe era prometido e não

cumprido. Afinal, o prometido era o jazz _sinônimo de sofisticação e

refinamento_ e a presença de outros estilos visava, apenas, atrair o

consumidor. Diante disso, o melhor que podia ser visto era, então, uma

pequena parcela da crítica que priorizava o esclarecimento sobre a

constante incorporação de diversos elementos, presentes tanto no jazz

quanto na música brasileira.

Assim, embora as coberturas fotográfiacas sugerissem essa intensa troca

cultural entre os músicos, não erroneamente, são as críticas que ajuízam e

contextualizam os momentos históricos demarcados pela mídia. Com o

diagnóstico de um forte caráter xenófobo na crítica musical brasileira diante

de um festival de jazz no Brasil, o enfoque desta pesquisa foi alterado de

forma a explicitar uma questão crítica recorrente no Brasil entre purismos e

não purismos na música nacional. Algo que começou de forma marcante

no ano de 1922, com a Semana de Arte Moderna e a proposta modernista

de Mário de Andrade para a música nacional, mas que permaneceu por

longos anos nos jornais com a presença de críticos como José Ramos

Tinhorão, conhecido por seus ataques aos estrangeirismos. É claro que,

em paralelo a esse movimento, sempre houve uma outra forma de

apreensão crítica, de forma que o duelo esteve sempre presente na mídia.

Para pôr as coisas nos termos de nossa tradição musical, houve sempre

aqui um certo embate entre o nacionalismo de Mário de Andrade e o

universalismo de Oswald de Andrade, daí conviverem, dentro do mesmo

Jornal do Brasil, Tinhorão, o denunciador do caráter não nacional do jazz e

José Domingos Raffaelli, um especialista em jazz.

Com o surgimento da Bossa Nova, em finais da década de 1950, a

associação entre a música norte-americana e a batida do estilo surgido no

Rio de Janeiro encontrava apoio em vários fatores: semelhança na

sofisticação, valorização do improviso, ritmo sincopado e adoção de novas

harmonias. Inicialmente, essa modernização do samba pelos bossa-

novistas foi ignorada pela crítica musical, como nos mostra Liliana Harb

Bollos ao descrever sobre o silêncio da crítica diante da primeira

manifestação da Bossa Nova no disco Canção do amor Demais, que trazia

composições de Vinícius de Morais e Tom Jobim, arranjos deste último e a

participação de João Gilberto ao violão em duas canções do disco: Chega

de Saudade e Outra Vez:

Alguns músicos comentavam sobre a batida diferente do violão de Gilberto,

porém não houve críticas, com a exceção estampada no Suplemento Literário

do jornal O Estado de São Paulo (...), razão pela qual acreditamos que os

músicos eram os mais interessados naquele disco, e não a crítica (Bollos,

2007, p. 147).

Nessa época, críticos como José Ramos Tinhorão e todo o grupo dos

nacionalistas, tomavam o jazz como uma espécie de atentado à legítima

criação artística brasileira. O que não impedia seu sucesso, em certos

nichos musicais, como nota Júlio Medaglia em entrevista concedida para

esta pesquisa, onde observa que o jazz era uma verdadeira febre entre

compositores como João Gilberto, Carlos Lyra, João Donato, Dorival

Caymmi, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

De fato esses compositores não ignoravam que, semelhante ao samba, o

jazz sofria a tensão entre a cultura africana e a cultura européia, o popular

e o erudito. De resto, também estavam conscientes de que o jazz, já

evoluído, havia se transformado na grande criação artística da América do

Norte.

Em suma: se hoje admitimos que muitas são as semelhanças entre a

música brasileira e a norte-americana, mesmo antes da Bossa Nova,

naquela época, a crítica cultural voltou à Bossa algumas perguntas, que

hoje consideramos datadas, sobre seu pertencimento nacional: é música

brasileira ou americana? É alienação ou vanguarda? A Bossa Nova abriu,

de forma massificada, as portas do país para o jazz, que influenciou nossa

música e trouxe sua história, que em alguns momentos muito se parece

com a do samba. Apesar disso, pouco se falou de sua trajetória em terras

brasileiras. Carlos Calado (2007) em seu livro O Jazz como Espetáculo,

coloca bem a situação do jazz dentro do Brasil:

A história do jazz no Brasil ainda está por ser escrita. Mesmo sendo

detectado já no início da década de 20, tanto através de transposição

direta (isto é, temas originais norte-americanos executados por

formações instrumentais semelhantes às desenvolvidas nos EUA)

como por influências diversas em formas da música popular

brasileira, o jazz jamais mereceu um estudo aprofundado que

determinasse sua trajetória e participação no cenário musical

brasileiro. (CALADO, 2007, p. 221).

Nessa sua apreciação, ele chega a mencionar certa xenofobia da crítica:

É bastante evidente que um dos fatores para que esse trabalho não

tenha sido feito foi o forte caráter xenófobo que marcou a crítica

musical ou mesmo os pesquisadores durante muito tempo. Ao invés

de estudar a fundo essa importante influência, optava-se por

denunciá-la como nociva e ponto final. (CALADO, Idem, ibidem).

Apesar da crítica aversiva que angariou, a Bossa Nova terminou sendo

considerada como a nova música brasileira. Sua repercussão pelo mundo

estimulou a criação artística brasileira e, desta maneira, as trocas culturais.

Seu sucesso levou a música brasileira para além dos territórios do Brasil e

foi graças a ela que a música nacional ganhou espaço no Carnegie Hall

(1962) e, mais tarde, no Festival Internacional de Jazz de Montreux (1978).

Vale notar, então, que, fazendo contraponto à corrente sociológica, atua a

corrente dos semioticistas, da qual Augusto de Campos faz parte. E é ele,

em seu Balanço da Bossa, que confirma a repercussão da Bossa Nova no

mundo: “após o êxito internacional e sua reversão ao mercado externo na

qualidade de produto de exportação, a Bossa Nova passou de ’influência

do jazz‘ a influenciadora do jazz – isso só aconteceu graças aos meios de

comunicação e sua influência na universalidade do mundo” (Campos,

1968, p. 48). Considerando os festivais também como influenciadores do

que Campos chamou de “universalidade do mundo”, visto que estimulam o

encontro de diferentes culturas, parte da mídia brasileira cedeu cada vez

mais espaço para uma crítica menos ortodoxa.

Ou seja, se por muito tempo negou-se a aproximação entre a música

popular brasileira e a norte-americana, embora com pontos em comum,

visto que surgidas num mesmo momento histórico que aproximou o popular

do erudito, criando uma nova música de caráter urbano, os grandes

festivais de música representaram um novo momento para a crítica

brasileira, que teve que se adequar diante da diversidade musical

apresentada em festivais como este. Em 1978, a relação entre a Secretaria

da Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo e a organização do festival

de Jazz de Montreux, fez acontecer o primeiro Festival Internacional de

Jazz de São Paulo, com o objetivo de estimular as trocas culturais e a

revitalização de artistas já consagrados pela mídia mundial, além do

investimento em novos lançamentos no mercado fonográfico. Sessenta mil

pessoas assistiram aos espetáculos realizados no palácio das convenções

do Anhembi, durante oito noites de apresentações, em que instrumentistas

brasileiros dividiram o palco com grandes estrelas norte-americanas. Dois

anos depois, em 1980, aconteceu a segunda edição deste mesmo festival.

É a década de 80, então, que reforça a importância do Brasil no mercado

dos festivais desse tipo. Em 1985 o Rock’n’Rio chama a atenção do mundo

para um festival de rock realizado aqui. Naquele mesmo ano, São Paulo e

Rio de Janeiro assistem ao Free Jazz.

O objetivo desta pesquisa é assinalar, assim, as diferentes posições da

crítica jornalística brasileira diante do avanço da cultura de massa,

notadamente da cultura norte-americana, que exerce maior influência sobre

as demais, durante os anos em que o Free Jazz aconteceu. Mas ao seu

final, aponta, também, para os problemas da contemporânea crítica

musical brasileira, de forma a indicar que o constante fluxo de músicos

internacionais em direção ao Brasil, fortalecido justamente pelos festivais

de música, anseia por uma nova crítica, mais infensa às partilhas

nacionalistas, tanto mais que numa era globalizada. O debate em torno da

entrada de música estrangeira no país foi ainda muito forte durante a

década de 1980, mas parece ter perdido força ao longo dos anos de 1990.

A questão colocada por este trabalho é se ainda faria sentido nos anos

2000.

Capítulo 1 - A questão das linhas críticas em tensã o, o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular, a vanguarda e o desenvolvimento

No início do século XX, o Brasil foi marcado por uma busca de sua identidade

nacional. Busca, aliás, que ecoou por muito tempo no país, através das críticas

referentes ao campo artístico-cultural, que teve seu início a partir da Semana

de Arte Moderna, símbolo dessa busca por uma arte de expressão nacional.

Vale referir, aqui, a precisão trazida por Liliana Bollos em sua tese de

doutoramento, posteriormente transformada em livro: exatamente no mesmo

ano da Semana, completava-se cem anos da independência política do Brasil.

Havia nesta época, portanto, “uma necessidade de se definir o que era a

cultura brasileira, o que era o “sentir brasileiro”, quais os seus modos de

expressão próprios.” (BOLLOS, 2007, p. 49). Ainda de acordo com a autora, a

semana de 1922 pode ser considerada como o “marco zero” da elaboração de

um projeto modernista, em plano musical. Foi Mário de Andrade, um dos

intelectuais mais importantes emergidos daquela semana, quem encabeçou

este projeto musical modernista.

De fato, Mário de Andrade foi o grande idealizador dessa proposta, talvez

porque, como nota José Miguel Wisnik, entendia a música popular como “a

criação mais forte e a caracterização mais bela de nossa raça” (SQUEFF &

WISNIK, 2004, p. 134). O projeto modernista proposto por Mário baseava-se na

idéia de que a música no Brasil tinha esse poder de representar a sociedade

brasileira. Para ele, a riqueza de apropriações, seleções e sínteses criativas

que existiam na nossa música popular não deixava nada a dever para a cultura

erudita (WISNIK, 2004, p. 147).

Mário foi o grande inspirador das reflexões teóricas dos compositores da

época. E para ele, a música brasileira encontraria seu lugar nas artes quando

fizesse música de cunho erudito, atrelada a elementos da música folclórica

brasileira. Dentro dessa visão, a música de caráter nacional oscilaria entre a

música “interessada”, ou seja, aquela presente no imaginário da cultura

brasileira, como as músicas folclóricas; e a música “desinteressada”, que se

destina a fins contemplativos, como a música de concerto. É José Miguel

Wisnik quem nos aponta este panorama. E ele sintetiza de forma clara a

função deste projeto para a música popular: “o seu programa aponta para uma

música “artística” que encontre ao mesmo tempo uma nova função prática (a

conquista da expressão nacional).” (SQUEFF & WISNIK, Idem, p. 144).

Daquela semana, dentre os muitos autores que despontaram, dois mentores

destacam-se por encabeçarem duas vertentes que, embora diferentes em suas

propostas, seguiam juntas na busca da construção de um novo caráter

nacional para o Brasil. Mário de Andrade formula uma proposta voltada para a

realidade brasileira, enquanto que Oswald de Andrade assoma com um cunho

mais universalista, em que os estrangeirismos tem lugar, quando deglutidos e

digeridos, de forma a gerar uma arte, ainda assim, brasileira. Dessa forma

apresenta Liliana Bollos:

A Semana de Arte Moderna teve uma função, digamos, simbólica,

importante na identidade cultural brasileira, pois dali saiu a vertente

nacionalista, sob o comando de Mário de Andrade, que iria

desempenhar o papel de administrar nossos valores e seus

desdobramentos, mas também outra de cunho mais universalista,

cujo objetivo era também a busca de uma brasilidade múltipla, tendo

Oswald de Andrade como a figura principal dessa Antropofagia

Cultural (BOLLOS, 2007, p. 49).

É importante notar que ambos buscavam uma identidade nacional, porém cada

qual delimitando espaços diferentes para a busca de novos elementos para a

criação artística. Oswald de Andrade, como nos aponta Leda Tenório da Motta,

se mostra “mais disposto a nos ver mais como canibais do que bons

selvagens” e aponta para “a preocupação em correlacionar a produção

nacional e a estrangeira, pondo tudo, altivamente, na conta do universal.”

(MOTTA, 1998, p. 48). Leda resume as duas vertentes, então:

os homens de Mário, o “primo pobre” funcionário público, que

trabalha como administrador cultural, e os discípulos de Oswald, o

insuflador estético que é um dândi rico e “homem sem profissão””.

(Idem, p. 50).

Heitor Villa-Lobos foi um dos grandes músicos a incorporar a proposta

modernista de 22, sob a inspiração de Mário. Vale ressaltar, no entanto que,

embora defensores desse projeto nacionalista que parecia ignorar o emergente

nascimento de uma cultura popular urbana em favor da erudição do povo, tanto

Mário quanto Heitor merecem um destaque especial, uma vez que, sob os

olhos da crítica, percebemos de forma marcante a presença desse caráter

dissonante na cultura brasileira, tão evitado na proposta da música

nacionalista, como explica Wisnik:

Villa-Lobos porque se formou musicalmente no meio dos chorões

seresteiros e sambistas do Rio de Janeiro no início do século, e a sua

música, trabalhada pela sua formação erudita em processo de

atualização modernista, nasce tangenciando a mesma fonte sócio-

cultural de onde saiu a música popular urbana de mercado. (...)

Quanto a Mário, homem dividido entre um modo socrático–platônico e

um modo dionisíaco-nietzscheano, embora apresente nos seus textos

programáticos traços daquela resistência aos aspectos polimorfos da

cultura popular (resistência subjacente ao paternalismo folclorista

(...)), lança no Macunaíma o imaginário submerso do mundo

indígena-rural como dado emergente no panorama da cidade,

detonando um confronto vivo, polifônico, agônico-lancinante, que

flagra as defasagens e sintonias inesperadas entre os vários tempos

culturais de um país que vive (como encruzilhadas de destinos) num

aglomerado de relações capitalistas e pré-capitalistas. (SQUEFF &

WISNIK, Idem, p. 136-137).

A questão é que os centros urbanos estavam rápidamente se desenvolvimento

e uma forma musical de caráter urbano, também. A crescente difusão dos

meios de comunicação de massa, com o intenso fluxo de novas informações,

estrangeiras ou não, se propagava intensamente entre essa nova população

urbana e estimulava ainda mais as discussões sobre o nacionalismo no país.

Ou seja, quando a cultura brasileira começa a sofrer as primeiras influências

das comunicações de massa, todo o cenário da cultura musical no Brasil indica

uma mudança a partir de novas incorporações, principalmente as estrangeiras,

norte-americanas de onde se importava essa nova tecnologia. O mercado da

música ganha mais força, estimula a proficionalização do músico, mas traz à

tona os problemas da indústria cultural, como esclarece Jomard Britto, em seu

livro, Do modernismo à bossa-nova:

Através do rádio, não somente a difusão, mas sobretudo o maior incentivo à

criação musical: a disputa, a concorrência, a dificuldade de sobrevivência, o

inicio da profissionalização. Todos esses aspectos como faca de dois gumes:

a necessidade de expansão, de democratização cultural, e os equívocos da

comercialização, da deturpação rotineira. (BRITTO, 2009, p.131).

Diante deste novo cenário, a crítica nacionalista musical atua, então, de forma

a discutir a entrada dessas culturas estrangeiras na nossa produção musical,

facilitada pelos meios de comunicação, e prefere afastar os estrangeirismos,

principalmente o norte-americano, tido como símbolo da indústria cultural, em

favor da busca por um nacional que privilegia o Brasil com seu folclore mas, ao

mesmo tempo, a grande arte com sua música erudita, provinda das instituições

de influência européia. Neste ponto, nos debatemos com a primeira

contradição dessa crítica de cunho nacionalista. Quem nos conta é Enio Squeff

no livro: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira:

O que se condena na crítica da época modernista será sempre, sem

dúvida, sua incompreensão em relação à música exarada da semana

de 22; mas ela não foi menos alienada por ter discutido o problema

do nacionalismo nos termos dos modelos europeus, uma síndrome

que, aliás, se prolongará também à vanguarda (...). O Brasil visto

através da Europa, eis aí um problema que nem um crítico lúcido

como Mário de Andrade conseguiu evitar. (SQUEFF & WISNIK, 2004,

p.122).

A proposta modernista parecia não contar com as mudanças impostas por uma

nova era, ditada pela mídia e pela diversidade. Aceitava a assimilação da

música erudita européia, mas negava a música popular procedente de outras

culturas, como nos mostra Carlos Calado, em seu Jazz como Espetáculo,

quando nos aponta para um fato bem comum na crítica musical dos anos 1920,

diagnosticando o sintoma daquele pensamento marioandradiano em boa parte

da geração de críticos da época: “Ao gravar quatro discos, em 1929, a

Orquestra Típica Pixinguinha-Donga era acusada pelo crítico da revista

PhonoArte, Cruz Cordeiro, de ter se aberto à influência nociva do jazz”

(CALADO, 2007, p.237). O jazz estava, então, começando a se fazer conhecer,

através do rádio.

Outro importante crítico que por muitos anos trabalhou de forma a afastar a

presença da cultura norte-americana sobre nós foi José Ramos Tinhorão. Com

toda sua aversão aos estrangeirismos, concluiu que após o fim da primeira

guerra, um grande número de imigrantes europeus e asiáticos se juntou no

centro-sul-sudeste brasileiro, transformando a população nacional, que se

tornava mais aberta para as influências externas. Para Tinhorão, essa

transformação pela qual a sociedade urbana passava, prejudicou o encontro do

Brasil com o seu verdadeiro caráter nacional: “essa penetração das novidades

americanas iria ser facilitada pela ausência de identidade nacional das novas

camadas de classe média, que se formavam ao influxo das modernas

condições econômicas” (TINHORÃO, 1998, p.251).

Por sua vez, José Miguel Wisnik nos esclarece, então, como se dava o

pensamento ideológico presente na música modernista:

a plataforma ideológica do nacionalismo musical consistia justamente

na tentativa de estabelecer um cordão sanitário – defensivo que

separasse a boa música (resultante da aliança da tradição erudita

nacionalista com o folclore) da má música (a popular urbana

comercial e a erudita europeizante, quando esta quisesse passar por

música brasileira, ou quando de vanguarda radical). (SQUEFF &

WISNIK, Idem, p. 134).

O projeto nacionalista ganha mais força durante os anos de 1930, sob o

governo de Getúlio Vargas, porém, como nos esclarece José Ramos Tinhorão

na sua História Social da Música Brasileira, a proposta governamental, embora

fortalecesse a música nacionalista de Villa-Lobos, também abriu espaço para

todo tipo de música nacional, inclusive à cultura popular emergente:

No plano cultural o espírito do aproveitamento das potencialidades

brasileiras que informava a chamada nova política econômica,

lançada pelo governo Vargas, encontrava correspondente nos

campos da música erudita com o nacionalismo de inspiração

folclórica de Villa-Lobos, na literatura com o regionalismo pós-

modernista do ciclo de romances nordestinos e, no da música

popular, com o acesso de criadores das camadas baixas ao nível da

produção do primeiro gênero de música urbana de aceitação

nacional, a partir do Rio de Janeiro: o samba batucado. (TINHORÃO,

1998, p. 290).

Percebemos então que, em paralelo a este apoio do governo à música erudita

modernista de Villa-Lobos (bem separada da popular por aquele cordão-

sanitário de que fala Wisnik em citação anterior), dá-se também um apoio

crescente a toda essa nova cultura popular de origem urbana que estava

emergindo no Brasil através, principalmente, do samba. A modernidade

capitalista e seus novos meios de comunicação de massa, expandiram as

fronteiras dessa cultura emergente e invadiram todos os lares, quer através de

programas radiofônicos, quer das indústrias e do mercado capitalista em

expansão. O projeto modernista que se originou com uma proposta de música

“nacional-eudito-popular”, em que o erudito bebia nas fontes populares do

regionalismo nacional, precisou se rearticular diante da música popular urbana,

que não tinha sido prevista por ele:

A intelectualidade nacionalista não pode entender essa dinâmica

complexa que se abre com a emergência de uma cultura popular

urbana que procede por apropriações polimorfas junto com o

estabelecimento de um mercado musical onde o popular em

transformação convive com dados da música internacional e do

cotidiano citadino. Como vêem no popular distanciado um ethos

platônico, acham que ele deve retornar de forma organizadamente

pedagógica para desenvolver o caráter perdido pela cultura de

massa. (SQUEFF & WISNIK, Idem, p.148).

Wisnik assinala a origem da discussão modernista diante dessa marcante

presença da indústria – cultural, apontando que houve a “criação de um espaço

estratégico onde o projeto de autonomia nacional contém uma posição

defensiva contra o avanço da modernidade capitalista.” (Idem, p. 134). Esse

espaço estratégico, representado aqui por Mário de Andrade, pretendia, ao

rejeitar essa cultura popular emergente, defender a produção da Grande Arte

contra o avanço da música popular comercial. Objetivava, assim, uma elevação

“estético-pedagógica” do país. O governo aprovava a luta modernista e sua

busca para educar os ouvidos do povo, mas paralelo a isso abarcava, também,

o samba, proveniente dessa nova população urbana, contanto que houvesse a

exaltação do Brasil:

Durante o Estado Novo, o samba, que tradicionalmente sustentava a

apologia da Boêmia e do ócio malandro, dialoga ambigüamente com

o poder, aquiescendo muitas vezes no elogio da ordem e do trabalho.

Ganhando nesta época o tom eloqüente do samba-exaltação, ele

proclama o Brasil como usina do mundo, faiscante forja de aço do

futuro, segundo um ethos heróico pouco comum em sua história. E é

somente esse clima que torna passível de sentido essa pérola do

pleonasmo e da tautologia, incrustada na Apoteose de Ari Barroso:

entendido como uma enorme oficina que “trabalha cantando feliz”,

esse coqueiro que dá coco é finalmente o Brasil. (SQUEFF &

WISNIK, Idem, p. 190).

Percebemos, então, que a intenção governamental, pretendia, antes de tudo,

se aproveitar da música, a fim de colaborar com a sua política nacionalista.

Quem assim pensa é Tinhorão:

a música popular brasileira iria dominar o mercado durante todo o

período de Getúlio Vargas – 1930-1945 -, em perfeita coincidência

com a política econômica nacionalista de incentivo à produção

brasileira e a ampliação do mercado interno (TINHORÃO, 1998, p.

299).

Fato foi que aquela proposta modernista de Mário de Andrade para a música

nacional brasileira excluiu a crescente música popular urbana do contexto do

caráter nacional. Mas o governo de Getúlio Vargas percebeu logo que poderia

se utilizar dela para abraçar o povo e, com o domínio do rádio, atingiu toda a

população que se identificou rapidamente com aquele samba de exaltação

nacional. Afinal, aquela cultura da música erudita já estava muito distante da

realidade do povo das cidades brasileiras e, embora o avanço capitalista tenha

participado direta e indiretamente deste processo cultural urbano, pode-se

considerar que muito da força criativa dessa música foi fundamental para

demarcar sua entrada definitiva na cultura nacional. Assim, acredita Wisnik:

Como a música popular é um espaço de resistência mais forte do que

sua emulação cívico-patriótica além do que ocupando uma posição

relativamente ofensiva no cenário cultural brasileiro urbano-moderno,

o resultado não será na verdade uma conversão do “carnaval” ao “dia

da Pátria”, mas a instauração da movimentada cena da político-

chanchada populista, onde há lugar para o senador gagá dançar seu

samba (como na cena famosa de Terra em Transe) (SQUEFF &

WISNIK, idem, p. 135).

Aqui, Wisnik já está naquela fervorosa década de 1960, quando essas idéias,

até então incisivas, porém implosivas na música nacional-erudito-popular, se

tornam decisivas e explosivas na música popular de então. Quando surge a

Bossa Nova no Brasil, a demarcação dessas posições críticas fica mais

evidente. E, embora Mário de Andrade tenha influenciado a formação de uma

linha crítica purista dentro do universo da música popular brasileira, Jomard

Muniz apresenta a Bossa Nova de forma a colocá-la bem próxima daquelas

propostas modernistas, encarando a bossa não como música estrangeira

devido à utilização de elementos do jazz, mas como uma música de caráter

nacional brasileiro:

Bossa Nova, em seu desenvolvimento, reconstrói os passos da

modernidade lírica brasileira, a partir da Semana de Arte Moderna de

São Paulo, 1922. Começamos ouvindo o lirismo da sen-si-bi-li-da-de,

espontâneo, intimista, levemente irônico, que busca a poeticidade do

cotidiano por meio de uma linguagem de queixa e desabafo. (...) Em

relação a Bossa Nova, essas manifestações líricas partem do folclore,

dos sentimentos e expressões populares, revelando não uma atitude

de “regionalismo tradicionalista” mas assumindo a própria dinâmica

social. (BRITTO, 2009, p.140-141).

A Bossa Nova inovou não só por incluir na música brasileira novos conceitos

estéticos vinculados a um ritmo e a uma harmonia inusitados para a época,

como também renovou ao romper com os excessos de décadas anteriores e

quando expandiu – peço licença para usar um termo de Santuza Cambraia

Naves – a “mulatisse brasileira”, ao utilizar tanto o erudito quanto o popular nas

suas composições. A autora nos mostra que Tom Jobim e João Gilberto nos

servem como metáfora para explicar como se deu esse encontro:

É como se ambos interpretassem o momento histórico em que viviam

de maneiras diferentes: João à maneira construtivista que marcava a

década, tanto na literatura quanto na arquitetura e nas artes plásticas,

e Tom a partir do ponto de vista do modernismo musical,

representado, por exemplo, por Villa-Lobos (NAVES, 2001, p.18).

Santuza explica ainda que a concisão, a objetividade e a racionalidade

presentes na obra de João convergem com as propostas da poesia concreta de

Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari nos anos 1950, que rompem

com tradições associadas ao excesso ao se utilizarem de uma linguagem

sintética bem próxima da publicitária. Já Tom Jobim, de formação erudita,

recorre ao excesso “tanto sinfônico quanto coral” (Naves, 2001, p.19) para

representar um Brasil exuberante e rico em seus elementos físicos e culturais.

Trabalhou algumas vezes com Radamés Gnattali, incluindo na gravadora

Continental onde faziam orquestrações para composições populares. A autora

nos mostra que, dessa relação, Tom aprendeu a transitar entre os domínios do

erudito e do popular, “operando tanto no registro da simplicidade quanto na

estética do excesso” (NAVES, Idem, p.20), assim como fazia o mestre.

Tom se encantou pela Bossa e tanto ele quanto João contribuíram com a dose

certa de erudito e popular na criação do novo estilo. “João Gilberto e Tom

Jobim se complementavam, portanto, com suas contribuições específicas. João

entrou com o ritmo, a batida Bossa Nova, e Tom, com a sua harmonia

requintada.” (NAVES, Idem, p.20).

A Bossa Nova surgiu em perfeita harmonia, não só com a poesia concreta da

época, como também com os anos otimistas e dinâmicos do governo JK e com

a arquitetura moderna de Oscar Niemeyer. Mas neste momento, como nos

aponta Liliana Bollos:

havia também um Brasil aparecendo diante do mundo, com o seu

nacionalismo acentuado, que cobrava de seus artistas uma suposta

fidelidade à Pátria, como se as influências a que éramos submetidos

fossem possíveis de serem abolidas.” (Bollos, Op. cit., p. 129).

Na segunda metade da década de 1950, portanto, retoma-se a discussão do

nacionalismo perante a crítica, num universo aonde a cultura urbana das

cidades industrializadas “financiadas pelo capitalismo internacional e

destinadas a produzir para o mercado interno” (BOLLOS, 2007, p.130), convive

com a cultura popular folclórica “nos versos de João Cabral de Mello em Morte

e vida Severina (1955) e com Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas

(1956)” (BOLLOS, 2007, p.129). Jomar de Britto nos mostra em que ponto se

deu a necessidade de volta dessa discussão:

Nossa situação-momento (a partir de 1955) enfatizava o problema do

desenvolvimento; fazia-se uma análise de nosso processo de

industrialização; exigia-se, quer de mãos dadas com a burguesia

industrial ou não, autonomia nacional, luta contra o imperialismo,

planejamento setorial e global (BRITTO, 2009, p.143).

Santuza, em outro texto publicado no livro Sobre Augusto de Campos, nos

revela como Augusto contrapõe as linhas críticas que se seguiram daí, a partir

de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, apontando:

é significativo o fato de os compositores que defendem o

“tradicionalismo” se basearem em Mário de Andrade, que disse: “o

artista que procura se expressar na arte universal corre o risco de, de

repente, se surpreender fazendo arte de outra nacionalidade que não

a sua” (1993:160). (...) Lembra que, no fundo, repugnava ao próprio

Mário a “estreiteza do ideário nacionalista” (1993:160), e confirma o

antinacionalismo e a proposta antropofágica de Oswald, que

fundamentaria as posições de compositores inventivos, como

Caetano Veloso. (SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon.

Org., 2004, p. 249-250).

Conseguimos perceber, hoje, passada a euforia da invenção da Bossa Nova, o

caráter artístico de nacional brasileiro conquistado por ela. Mas o que

pretendemos esclarecer adiante é que, embora em pleno acordo com a

estética concretista e a proposta moderna do governo de JK (vale lembrar,

ambas as atitudes inovadoras, ainda não bem entendidas pela sociedade), a

nova música brasileira que marcadamente começou em 1958, com a gravação

da canção, chega de saudade (Tom e Vinícius), causou aversão à crítica,

principalmente por carregar o estigma de influência do jazz. Música feita por

norte-americanos, símbolo da dominação estrangeira sobre nossa cultura.

Com o mesmo caráter nacionalista que vinha se imprimindo sobre a cultura

brasileira desde o início do século, a crítica se comportou de forma aversiva,

relativamente às vanguardas dos anos 1950, como se a nossa nacionalidade

estivesse em risco, em face da avalanche de inovações tecnológicas e

midiáticas, que facilitavam o intenso fluxo de outras culturas no Brasil,

principalmente a norte-americana. Seria a forma de impor o seu imperialismo

sobre nós. Vejam como colocou Tinhorão: “o predomínio do modelo americano

(...), levou o plano dos costumes e do lazer urbano a um processo de

americanização destinado a atribuir a tudo o que parecesse “regional" ou

“nacional” o caráter de coisa ultrapassada” (TINHORÃO, 1998, p. 307). Para o

autor, a mudança que acontecia na música não podia ser favorável para o

Brasil, uma vez que, fruto do seu processo de industrialização, quando, para se

modernizar, assumia a entrada de capital estrangeiro (aqui a dominação!) para

a instalação de indústrias.

Tinhorão faz parte daquela crítica de cunho nacionalista, que Liliana Bollos

chamou de nacionalista ortodoxa, uma vez que pretendia preservar os gêneros

autênticos da música popular brasileira e não admitia influências estrangeiras

na música nacional. Para o autor, esse processo de incorporação estrangeira

cria não uma cultura popular urbana, mas a massa popular e a “subordinação

do artístico ao comercial” (TINHORÃO, 1998, p.248) e que isso explicava:

não apenas a crescente transformação da música popular em

fórmulas fabricadas para a venda (depois de obtida a massificação,

basta produzir “o que o povo gosta”), mas a progressiva dominação

do mercado brasileiro pela música importada dos grandes centros

europeus e da America no Norte, sedes também das gravadoras

internacionais e da moderna indústria de aparelhos eletrônicos e de

instrumentos de alta tecnologia (TINHORÃO, 1998, p. 248).

Com a crescente presença da economia estrangeira no país, Tinhorão se

munia de argumentos de cunho sociológico, para esclarecer sobre as

desvantagens dessa presença estrangeira no Brasil, que caracterizou, para ele,

a perda de nossa original identidade brasileira. Além disso, a proximidade da

nossa música com o jazz trazia embutida a fórmula para a criação das massas

urbanas, uma vez que ela era a “nova música de consumo norte-americana”

(TINHORÃO, 1998, p.253). Aceitar essa música significava, então, um estado

de dominação, de colonialismo cultural:

nas nações em que a capacidade de decisão econômica não

pertence inteiramente aos detentores políticos do Poder, como é o

caso de países de economia capitalista dependente – e entre eles o

Brasil em estudo - a própria cultura dominante revela-se uma cultura

dominada. (...) Esta cultura dominante não é sequer nacional, mas

importada e, por isso mesmo, dominada. (TINHORÃO, 1998, p. 10).

Os nacionalistas preferem, então, se fechar contra o processo capitalista

criador da indústria da cultura e do entretenimento, mantendo a devida

distância entre o produto cultural e a grande arte brasileira. Pensamento, aliás,

dominante no cenário crítico brasileiro, como apontou Liliana Bollos: “Em meio

a tanta discussão, poucos foram os que debruçaram o suficiente sobre o

assunto para inserir a Bossa Nova na história da nossa música popular, o que,

evidentemente, ainda naquela data [1962] era difícil de perceber, uma vez que

poucos tinham o discernimento de perceber o quanto aquela música já era

representativa, ainda mais por ser reconhecida internacionalmente” (BOLLOS,

2007, p. 208). Esta linha, marcada pela suspeição, contrapõe-se, a partir de

determinado momento, à corrente dos semioticistas, à qual pertence, enquanto

musicólogo, Augusto de Campos. Esta corrente mantém uma postura otimista

com relação à cultura de massa e, como nos conta Santuza Naves, “traz para a

cena musical um referencial estético que rompe com o modernismo há muito

instaurado, que se fundamentava em Mário de Andrade” (in. SÜSSEKIND,

Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon. Org., 2004, p. 255). E ela continua: “o

referencial estético mencionado é “moderno” e não mais modernista. “Moderno”

no sentido construtivista do termo que pressupõe uma atitude universalista,

cosmopolita, objetiva e funcional” (in. SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio

Castañon. Org., 2004, p. 255). Campos, juntamente com os outros poetas

concretos, incentivam a assimilação não somente da cultura nacional, como da

estrangeira, contanto que se faça uma análise do elemento incorporado, de tal

forma que não seja apenas uma aceitação de algo imposto a nós. E Santuza

conclui:

O modernismo é portanto revisitado a partir da perspectiva de Oswald

de Andrade, recém-retirado do ostracismo a que fora relegado nas

décadas anteriores. Assim, Oswald passa estrategicamente por uma

releitura construtivista e sua proposta antropofágica se converte na

fórmula ideal para se pensar a canção popular brasileira e um projeto

cultural para o Brasil. (in. SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio

Castañon. Org., 2004, p. 255 - 256).

Percebemos assim, duas linhas fortes que divergem entre si. Na visão dos

nacionalistas, o universal e o moderno nada mais eram do que uma cruel

“realidade de dominação econômica” (TINHORÃO, 1998, p.13). Assim coloca

Tinhorão:

ao envolver a idéia de modernidade e universalidade (quando se

sabe que o que se chama de universal é o regional de alguém

imposto para todo mundo), o som importado leva os consumidores

nacionais ao desprezo pela música de seu próprio país, que passa

então a ser julgada ultrapassada e pobre, por refletir naturalmente a

realidade de seu subdesenvolvimento. (TINHORÃO, 1998, p. 13).

Nessa visão, aceitar a influência não levaria à construção de uma cultura

nacional moderna, porém a um complexo de subdesenvolvimento que levaria a

população

a uma progressiva perda ou desestruturação da identidade cultural, o

que desemboca no ridículo de, ao procurarem tais consumidores

colonizados apresentar-se como modernos, só conseguirem aparecer

como estrangeiros dentro de seu próprio país. (TINHORÃO, 1998, p.

13).

Ainda assim, foi a Bossa Nova a primeira a relativizar as fronteiras entre o

erudito e o popular, tão problemática naquela cultura de caráter urbano, que

começou a despontar no início do século no Brasil. E coube à corrente dos

semioticistas, tidos como “eruditos”, a função de críticos da música popular,

que deram um igual valor para as músicas popular e erudita, até então

“separadas nas colunas críticas dos jornais pelos antigos critérios de ‘elevado’

e ‘baixo’” (in. SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon. Org., 2004, p.

251). Como nos coloca Santuza, a palavra “inovação” passou a ser o valor

fundamental para se fazer a crítica musical do momento. E o fato foi que, levar

procedimentos da música erudita de vanguarda para a música popular, facilitou

a assimilação de informações restritas ao público erudito, para uma ampla

gama da população.

Campos ironiza os purismos dos que não aceitam a incorporação da cultura de

massa e rompe com o nacionalismo musical, adotando uma posição

universalista e antropofágica para a criação da nova música popular, uma vez

que “torna bastante difícil, segundo ele, frear a entrada no país de informações

advindas de várias partes do mundo.” (Idem, p. 253). E Naves conclui:

Na avaliação de Campos, esse processo teria ocorrido com o futebol

brasileiro, com a poesia concreta e com a bossa-nova, que teriam

deglutido as técnicas estrangeiras de maneira racional e criativa,

resultando no desenvolvimento de novas tecnologias e produtos

artísticos e culturais altamente exportáveis (Idem, Ibidem, p. 254).

Dessa forma, a música brasileira não se converteria em mero elemento exótico,

quando vista por olhos estrangeiros, mas estaria atualizada e sintonizada com

a produção moderna e urbana do Brasil e do mundo, assim como a proposta

concretista propunha. Dessa forma, os artistas estariam encarando as

influências como uma ação positiva sobre novas criações. Apresentado por

Augusto de Campos no Balanço da Bossa, Brasil Rocha Brito, em 1960,

divulgou na página literária “Inversão” do Jornal O Correio Paulistano,

Não se trata de um regionalismo estreito, armado de preconceitos

contra o que se possa adotar de culturas musicais estrangeiras.

Segundo o conceito de bossa-nova, a revitalização dos

característicos regionais de nosso populário se faz sem prejuízo da

importação de procedimentos tomados a outras culturas musicais

populares ou ainda à música erudita. É necessário, apenas, que da

incorporação de recursos de outra procedência possa resultar uma

integração, garantindo-se a individualidade das composições pela

não-diluição dos elementos regionais. (CAMPOS, 1993, p. 24).

De todo modo, nem só o jazz influenciou a bossa-nova. Em um depoimento

concedido à Santuza Cambraia Naves, para o livro Da bossa-nova à tropicália,

Carlos Lyra aponta diversas outras influências sobre a bossa, como o bolero

mexicano, o impressionismo de Ravel e Debussy, além do jazz feito por

Gershwin, Cole Porter, Richard Rodgers, Larry Hart, dentre outros. Além

dessas várias formas estrangeiras, incorpora-se o samba, o xaxado e a valsa

brasileira. Por sua vez, Liliana Bollos chega a questionar a autenticidade das

várias formas musicais encontradas no Brasil, apontando a influência como

ação benéfica para o amadurecimento da produção musical de um país e

explica:

As polcas européias, quando chegaram ao Brasil com a corte

portuguesa, sofreram influências de vários ritmos populares que

estavam aqui se constituindo, por conta das diferentes culturas e

raças que aqui estão se formando, transformando-se em maxixe e

logo em choro. A mesma polca rumou para a América do Norte e lá,

em contato com outros ritmos, converteu-se em ragtime. O swing,

presente na canção americana e big bands da primeira metade do

século XX, mais especificamente nos anos 1930, chegou ao Brasil e,

em contato com ritmos daqui, inclusive com o samba, impôs uma

estrutura formal própria da canção americana (estrutura com duas

partes, 32 compassos), mas recebeu um novo ritmo, a canção-fox, ou

samba-canção, que em contato com ritmos latinos converteu-se em

samboleros. (BOLLOS, Op. cit., p 135).

Com esse ponto de vista, Liliana considera as influências não somente como

parte do processo da criação musical, mas como “ascendências” necessárias

para a criação da música. E aponta o jazz como mais uma dessas

ascendências das quais a Bossa se utilizou.

No entanto, sendo as propostas concretistas muito novas, no âmbito da crítica

musical brasileira, o novo estilou musical feito no Brasil se firmou pelo estigma

que carrega, de ser influência do jazz, uma vez que aquela visão nacionalista

marioandradida já estava a quase quarentas anos em voga no país. O jazz, por

sua vez, também carrega o fardo de representante da política econômica

capitalista-imperialista estadunidense. O estilo evoluiu sempre na companhia

do rádio, ao lado da evolução capitalista e tecnológica, e rapidamente se

proliferou pelos meios de comunicação e atingiu o mundo todo. No Brasil, como

nos conta Tinhorão no seu livro Música popular: um tema em debate, havia um

grande interesse nos jovens brasileiros pelo estilo, mas isso se dava em

conjunto com todos os outros produtos estrangeiros que nos eram impostos

através do imperialismo americano:

o ideal da juventude representante das camadas médias das

populações urbanas passou a ser, no campo da técnica, a profissão

de aviador (nascia a FAB), no da elegância, o uso dos óculos rayban,

blusões de couro e calça blue-jeans e, no das diversões, o cultivo do

Jazz e a realização de reuniões dançantes ao som dos blues que

chegavam às centenas, mensalmente, como parte de um programa

de reciprocidade falso e desfavorável para o Brasil. (TINHORÃO,

2001, p. 57).

Tinhorão resiste a essa influência estrangeira, por relacioná-la diretamente com

a política de dominação-americana, que se difunde rapidamente pelos meios

de comunicação. Ele também nos aponta que, com a eleição de Getúlio em

1951, e sua “pressa de promover uma “solução nacionalista” para a exploração

do petróleo e sua insistência em beneficiar os minérios brasileiros para reduzir

sua exportação in natura” (TINHORÃO, 1998, p. 308) colocou o governo em

choque com os interesses dos Estados Unidos. Isso teria levado a derrota das

propostas presidenciais e ao seu suicídio em 1954, depois de assinar “um

decreto que regulava a remessa de lucros e dividendos das empresas

estrangeiras para o exterior” (TINHORÃO, 1998, p. 308). Dessa forma,

Tinhorão delimita aquele momento em que a entrada da cultura estrangeira,

principalmente a norte-americana, se deslancha no país. Com isso, adota uma

postura que renega toda essa cultura exterior, justamente porque ela carrega

toda a ideologia estrangeira, desfavorável para a formação da nossa cultura

nacional.

Liliana Bollos nos aponta, então, para duas tendências presentes na recepção

crítica da Bossa Nova, demarcadas mais fortemente na década de 1960, pelas

duas primeiras publicações sobre o estilo: “Música popular: um tema em

debate, de José Ramos Tinhorão, pelo que sabemos, de 1966, é o primeiro

livro de críticas sobra a Bossa Nova que se tem notícia. Balanço da Bossa, de

Augusto de Campos, é de 1968” (BOLLOS, Op. cit., p.240). E ela continua: “a

primeira abraça uma postura nacionalista, embasada em estudos sociológicos,

enquanto que a segunda defende a autonomia dos fenômenos artísticos e em

contato com grupos de vanguarda” (BOLLOS, Op. cit., p.241).

Tinhorão pode ser referido, desta forma, à crítica de cunho sociológico, que

tem como um de seus mestres o filósofo alemão Theodor Adorno, oriundo da

escola alemã de Frankfurt. Trata-se de um crítico acerbo da indústria cultural,

que a toma, inteiramente, como cúmplice da ideologia. Percebe-se a

convergência do pensamento tanto de Adorno quanto de Tinhorão, quando o

assunto é jazz. Adorno, em seu texto: O Fetichismo na Música e a Regressão

da Audição, aponta também para o efeito massificante desta música:

A música, com todos os atributos do etéreo e do sublime que lhe são

outorgados com liberdade, é utilizada sobretudo nos Estados Unidos,

como instrumento para a propaganda comercial de mercadoria que é

preciso comprar para poder ouvir música. [...] Todo o movimento do

jazz, com a distribuição grátis das partituras às diversas orquestras,

está orientado no sentido de a execução ser usada como instrumento

de propaganda para a compra de discos e de reduções para piano.

(ADORNO, 1996, p. 77 ).

Essa crítica renega, então, toda essa cultura nascente nas cidades,

classificando todas elas como produto de massa. Augusto de Campos não

nega a veracidade desse fator, mas aponta um caminho de inclusão:

A expansão dos movimentos internacionais se processa usualmente

dos países mais desenvolvidos, para os menos desenvolvidos, o que

significa que estes, o mais das vezes, são receptores de uma cultura

de importação. Mas o processo pode se reverter, na medida mesma

em que os países menos desenvolvidos consigam,

antropofagicamente – como dirá Oswald de Andrade – deglutir a

superior tecnologia dos supradesenvolvidos e devolver-lhes novos

produtos acabados, condimentados por sua própria e diferente

cultura. (CAMPOS, 1993, p. 60).

O musicólogo afirma que não basta recusar essa cultura emergente, propondo

uma volta ao passado, ou uma atitude “saudosista”, porque a universalidade

está cada vez mais presente na vida urbana mundial:

A intercomunicabilidade universal é cada vez mais intensa e mais

difícil de conter, de tal sorte que é literalmente impossível a qualquer

pessoa viver a sua vida diária sem se defrontar a cada passo com o

Vietnã, os Beatles, as greves, 007, a Lua, Mao ou o Papa. Por isso

mesmo, seria inútil preconizar uma impermeabilidade nacionalística

aos movimentos, modas e manias de massa que fluem e refluem de

todas as partes para todas as partes. (Idem, ibidem).

E classifica a música estrangeira também como um elemento folclórico, porém

das cidades, do contexto urbano: “a música estrangeira também popular, mas

de outro folclore não artificial nem rebuscado, o “folclore urbano”, de todas as

cidades, trabalhando por todas as tecnologias modernas e não envergonhando

delas” (CAMPOS, 1993, p. 62). Augusto revitaliza a nova criação brasileira e

justifica o seu êxito quando nos coloca no patamar de exportadores de

produtos acabados e não apenas como exportadores de “matéria prima do

primitivismo nacional, sob o fundamento derrotista de que “o povo” é incapaz

de compreender e aceitar o que não seja quadrado e estereotipado”

(CAMPOS, 1993, p.61). Assim ele coloca:

E foi justamente por não temer as influências e por ter tido a coragem

de atualizar a nossa música com a assimilação das conquistas do

jazz, até então a mais moderna música popular do Ocidente, que a

bossa-nova deu a virada sensacional na música brasileira, fazendo

com que ela passasse, logo mais, de influenciada a influenciadora do

jazz, conseguindo que o Brasil passasse a exportar para o mundo

produtos acabados e não mais matéria-prima musical (ritmos

exóticos), “macumba para turistas”, segundo a expressão de Oswald

de Andrade. (Idem, p. 143).

O concerto de músicos brasileiros no Carnegie Hall em 1962; a presença de

músicos brasileiros em bandas de jazz norte americanas (como o caso do

percussionista Airto Moreira que gravou com Miles Davis em Bitches Brew de

1968); o encontro de Tom Jobim com Frank Sinatra em 1967 para gravar o

álbum: "Francis Albert Sinatra e Antônio Carlos Jobim"; dentre muitos outros

exemplos, corroboram a afirmativa de Campos.

O Tropicalismo encabeçado por Caetano Veloso e Gilberto Gil segue

acreditando que, nas palavras de Caetano, trazidas por Augusto de Campos,

“só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para

selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com

frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema”

(CAMPOS, Op. cit., p.63). E a partir daí, “do modernismo às bossas do pós-

tudo” (BRITTO, Op. cit., p.153).

Tinhorão mantém sua posição, por pensar que as diferenças de classe

continuam demarcando a existência de uma cultura nacional oposta àquela dita

moderna:

Já chegando aos meados da década de 1970, os compositores e o

público continuavam procurando um novo denominador musical

comum, enquanto incorporava sem cessar aqueles novos dados que

a cultura de massa seguia atirando diariamente ao mercado

consumidor sob a forma de bossas, ondas, modas e tendências de

vanguarda.

E isso enquanto o povo, tranquilo na sua permanente unidade

cultural, estabelecida pelo semi-alfabetismo, e social, determinada

pela pobreza e falta de perspectivas de ascensão, continuava a criar

e a cantar alegremente os seus sambas de carnaval, malhando no

bumbo em seu vigoroso compasso 2/4. (TINHORÃO, Op. cit., p. 235).

De todo modo, o jazz, enquanto estilo, só vai se tornar notícia de forma mais

massificada e, desta forma, se abrir irreversivelmente para o contato com

outras formas musicais, com o advento dos festivais de música. Já havia no

Brasil, desde a década de 60, a tradição de tais festivais, mas até então eram

festivais de caráter competitivo. Em 1978, no entanto, acontece o Primeiro

Festival Internacional de Jazz de São Paulo, com o objetivo de estimular as

trocas culturais e a revitalização de artistas já consagrados pela mídia mundial.

Em 1985 acontece o Rock’n’Rio, festival internacional de rock realizado aqui no

Brasil. Neste mesmo ano nasce o Free Jazz em São Paulo e no Rio de Janeiro

e coloca o Brasil na rota dos mais importantes festivais de jazz do mundo. É

neste momento, então, que percebemos uma crítica que vem marcada pela

índole das diferentes plataformas críticas e não mais, uma predominância dos

tradicionalistas.

Capítulo 2 – A História do Free Jazz

A história do Free Jazz começa em outro festival que já se produzia nos

Estados Unidos, chamado Kool Jazz Festival. Duas irmãs, Monique e Sylvia, e

um terceiro produtor e amigo, Paulo Albuquerque, em meados de 1984,

assistiram a diversos shows de jazz e arrepiaram-se ao som de Wynton

Marsalis e Bobby McFerrin. Tanto que se puseram a pensar sobre como

apresentá-los aos brasileiros, sem ter que esperar vinte anos para isso. O fluxo

de músicos estrangeiros no Brasil, embora existisse, era ainda silencioso. Não

mudo, pois já haviam ocorridos dois grandes festivais de jazz em São Paulo,

em 1978 e 1980, patrocinados pela Secretaria de Cultura do estado em

parceria com o Festival de Montreux, na Suíça. Mas eram eventos caros e

difíceis de manter. E, embora shows de música importada ocorressem, não

duravam mais do que poucos dias na mídia, de forma a diminuir o impacto da

discussão no país. Pois bem, Monique Gardenberg descobriu como apresentar

as grandes estrelas midiáticas do jazz para um Brasil ainda ingênuo na

recepção da música estrangeira.

Durante sua viagem, Monique percebeu que, colocando junto novas

descobertas jazzísticas com músicos mais conhecidos do grande público

brasileiro, poderia obter a presença de ouvintes necessária para produzir um

festival. Ela, que começou sua carreira como produtora do Djavan, nos meses

seguintes após o Kool Jazz Festival, fechou contrato com diversos músicos

para shows no Brasil em julho de 1985. Na lista estavam: o guitarrista Joe

Pass, o gaitista Toots Thielemans, o guitarrista Pat Metheny, o saxofonista

Sonny Rollins, o trompetista Chet Baker, entre outros. Foi uma atitude corajosa,

talvez fruto da energia dos vinte e poucos anos, visto que as irmãs não tinham

ainda um patrocinador para o evento. Talvez porque o jazz no Brasil seja

encarado como música instrumental, a idéia inicial para o nome do evento era:

Festival Internacional de Música Instrumental.

Apostando em uma boa apresentação do projeto para convencer os

patrocinadores, levaram três meses até que, em Maio de 1985, apresentaram

para a Souza Cruz, empresa de cigarros, e pediram o primeiro ano de

patrocínio. A empresa topou, mas não aceitou o curto prazo que precedia o

evento (propôs para Outubro), nem a curta duração do patrocínio, propondo um

investimento de cinco anos para o projeto. Também não aceitou o nome inicial

do festival, e exigiu a presença do evento na capital paulista, uma vez que a

proposta inicial englobava apenas o Rio de Janeiro. Das quatro exigências, a

única que não poderia mudar era a primeira, uma vez que os contratos dos

músicos já estavam assinados e com data marcada. Uma semana depois da

primeira negociação, no entanto, a empresa aceitou fazer o festival no início de

agosto, mudaram o nome para Free Jazz (de forma a aproximar o estilo

jazzístico da marca de cigarros Free) e incluíram São Paulo no roteiro do Free

Jazz Festival.

1985

Talvez por isso a parte paulista do 1º Free Jazz tenha se sentido prejudicada

em relação ao Rio. Nesta época, os jornais paulistas, Folha de São Paulo e O

Estado de São Paulo, costumavam enviar correspondentes de seus jornais

para o Rio, de forma a conseguir, em primeira mão, as críticas dos shows.

Garantiam assim a corrida contra o tempo, grande objetivo da mídia

contemporânea. Mas neste ano, de fato, o Rio foi privilegiado com workshops

ministrados por grande parte das estrelas que o evento trazia. As aulas práticas

foram dirigidas por Joe Pass, Pat Metheny, Toots Thielemans, além dos

saxofonistas Moacir Santos e Ernie Watts, do tecladista Rique Pantoja e do

bateirista Pascoal Meireles. O evento paralelo ao festival aconteceu no Museu

da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Além disso, alguns importantes

instrumentistas do jazz se apresentaram somente na capital carioca, foi o caso

do trompetista Chet Baker e dos saxofonistas Sonny Rollins e Ernie Watts.

O primeiro Free Jazz em São Paulo foi sucesso de crítica, mas não de público.

Com base em matérias publicadas no ano de 1985 sobre o festival,

percebemos que o evento não lotou o Anhembi em nenhum dia. E muitas

foram as suposições para isso. Talvez pelo alto preço dos ingressos (de Cr$50

a Cr$100 mil), ou talvez devido à divulgação ineficiente, visto que em São

Paulo a produção do festival foi elaborada em apenas 70 dias. Podemos supor

ainda, que o público não estivesse familiarizado com a música instrumental,

uma vez que neste ano o único cantor do evento era Bobby McFerrin que,

embora com dois LPs gravados, “Bobby McFerrin” de 1982 e “The Voice”

gravado ao vivo na Alemanha em 1984, nenhum deles existia ainda no Brasil.

César Castanho, diretor de produção do evento disse, no entanto, que o

problema de público do festival se deu devido às férias escolares que

impediram um bom público de estudantes com alto poder aquisitivo a

comparecer ao evento. Ainda assim, o primeiro Free Jazz chegou cheio de

novidades musicais para os brasileiros. Privilegiando os músicos

instrumentistas, trouxe para a capital paulista 12 atrações nacionais e

internacionais, que tocaram no Anhembi e no Palace de 2 a 6 de agosto de

1985. O quadro da programação ficou assim:

Data Local Atrações

02.08.1985 – Sexta-feira Anhembi

Bobby McFerrin Gilson Peranzzetta/ Ricardo Pontes Joe Pass Egberto Gismonti

03.08.1985 – Sábado Anhembi

Zimbo Trio Joe Pass Grupo D’Alma Toots Thielemans Sivica

04.08.1985 – Domingo Anhembi

Pau Brasil Toots Thielmans Bobby McFerrin Toninho Horta

05.08.1985 – Segunda-feira Palace Pat Metheny

06.08.1985 – Terça-feira Palace Pat Metheny

A grande novidade deste ano foi, sem dúvida, Bobby McFerrin. Completamente

desconhecido do grande público brasileiro, mas presente em grandes festivais

de jazz pelo mundo, o músico se tornou a grande sensação da música

improvisada quando trocou o piano pelos sons que fazia com o próprio corpo.

Os improvisos criados com sons extraídos de partes do corpo como língua,

caixa toráxica, dedos dos pés e das mãos e garganta, além de sua completa

consciência da respiração exata e afinação impecável, surpreendeu a todos os

críticos neste ano, de forma unanime. Ele foi, sem dúvida, a grande estrela

neste 1º Free Jazz Paulistano.

Joe Pass também entrou para a lista dos melhores. Não era exatamente um

estreante como McFerrin, mas passou alguns anos em relativa obscuridade

devido ao excesso no uso de drogas. Antes, porém, chegou a se apresentar

com Dizzy Gilespie e Charlie Parker, com Coleman Hawkins e também com Art

Tatum, o que lhe rendeu um currículo jazzístico para ninguém botar defeito. Em

1973, com o pianista Oscar Peterson e o contrabaixista dinamarquês Niels

Pedersen, Pass gravou o LP The Trio, que rendeu o Grammy de Melhor

Performance de Jazz por um grupo, em 1975. Quando veio para o Free Jazz,

portanto, já era uma das grandes estrelas do jazz.

O guitarrista tocou standards do jazz como Summertime, músicas de sua

autoria como Blues in G, e até músicas brasileiras como Tarde, de Milton

Nascimento e Aquilo que eu Sei, de Ivan Lins. Zuza Homem de Mello aprovou

o repertório fino do guitarrista e disse que o músico trouxe a tônica do bom

gosto para o festival. Aprovado pelo público: “Sua delicadeza no tratamento à

guitarra elétrica é tal que se tem a impressão de estar ouvindo um violão

acústico. Joe Pass prefere ir, no máximo, a um mezzo forte, mesmo quando a

satisfação dos aplausos espontâneos ocorridos em seu solo do Blues em Sol o

deixa empolgado.” (MELLO, Zuza Homem de. "Anhembi sob o domínio do bom

gosto". In: Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 06/08/1985). Seu show

foi tão emocionante que um fotógrafo que estava cobrindo o evento, chegou a

deixar a máquina na boca do palco para aplaudir.

Toots Thielemans tampouco era um completo desconhecido no Brasil. Já havia

participado de um dos Festivais de Jazz de São Paulo, além de ter gravado

com Elis Regina o disco “Aquarela do Brasil”, lançado em 1969. Em entrevista

para a Folha declarou, ao falar sobre ele e Joe Pass: “só tocamos o que

queremos e gostamos, nenhuma concessão, e fazemos as pessoas chorar.

Pass me fez chorar. É isso que importa na música. Essa energia que arrepia a

pele. Aliás, na música e na vida. O resto não interessa.” (COURI, Norma. "Três

noites mágicas no Anhembi". In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura.

05/08/1985). Nesse clima emocionante, Fred Hersh, ao piano; Marc Johnson

no contrabaixo e Joey Baron na bateria; aqueceram o palco para o gaitista

belga entrar. Quando a platéia já estava enfeitiçada ele apareceu tocando

poucas notas, como num clima de blues. Com um show bem construído e

conciso, o grupo foi contagiante, principalmente nos improvisos onde os

músicos dialogavam de uma forma que Toots chamou de “conversa a quatro”.

No repertório, Velas Içadas de Ivan Lins, Blues in Green, em homenagem a

Elis Regina e a Bill Evans; Palavras, da pianista brasileira Eliane Elias; Days of

Wine and Roses; um standard de Miles Davis, All Blue; além de seu carro

chefe, Bluesette. Sucesso absoluto de crítica, principalmente quando junto com

Sivuca, tocaram Vai Passar, de Chico Buarque e Luz do Sol, de Caetano

Veloso. O show foi tão empolgante que um afoito gaitero, Aloisio Becker, subiu

ao palco para tocar no microfone de Sivuca, mas foi arrancado dali pela

segurança da casa de espetáculos. Sivuca, radiante, mandou o seu recado

para as gravadoras: “O som da harmônica foi feito para tocar Luz do Sol. E

embora as gravadoras prefiram tocar rock, vão reconhecer que isso aqui virou

festa.” (COURI, Norma. "Três noites mágicas no Anhembi". In: Folha de São

Paulo. Caderno de Cultura. 05/08/1985).

Pat Metheny era o mais novo da turma neste Free Jazz. Com apenas 30 anos,

já havia gravado 12 LPs e conquistado três prêmios Grammy, além de estar na

lista dos mais vendidos pela revista Billboard, neste ano. Já havia se

apresentado no Brasil, em 1980, no Rio Monterey Festival, possuía alguns de

seus discos disponíveis no mercado nacional e tocara com Naná Vasconcelos

por dois anos. Era, portanto, a grande revelação da nova geração influenciada

pelo jazz. Como ele mesmo disse, nasceu em meio à parafernália eletrônica e

descobriu a guitarra colocando uma tomada no interruptor. Natural, então, que

seu som passeasse por outras dimensões musicais que iam desde o jazz,

passando pelo rock, até a utilização de sintetizadores. Para tanto, trouxe 3,5

toneladas de bagagem para o Free Jazz. Com duas noites exclusivas para ele

e sua banda, fizeram dois shows de mais ou menos três horas de duração,

apresentando um fusion que a crítica, diante de tantos prêmios e discos,

preferiu elogiar. Logo depois do Free Jazz, Metheny gravou no disco

“Encontros e Despedidas” de Milton Nascimento, por quem o músico tem

enorme admiração.

É interessante notar que, sendo, excepcionalmente, maioria neste primeiro

Free Jazz Paulista, os músicos brasileiros foram os mais atacados pela mídia.

Com exceção do grupo Pau Brasil, que mereceu destaque por sua releitura de

Bye Bye Brasil de Chico Buarque, além de ser considerado por João Marcos

Coelho, crítico da Folha, como referência entre os músicos brasileiros. Bem à

vontade no palco, o grupo apresentou uma mistura de baião com blues,

chamada “Baionete”. Segundo Sion, saxofonista do grupo, a descoberta foi

feita no Rio Grande do Norte quando, na segunda guerra, nordestinos e

americanos se encontraram numa base militar instalada por lá. O Grupo

D’Alma, recém-chegado de uma turnê no Canadá, onde se apresentou nos

festivais de jazz de Montreal, Quebec e Otawa, mostrou um show mais maduro

na opinião de Zuza Homem de Melo. Ainda assim, João Marcos Coelho chegou

a colocá-los na sua lista dos piores do festival, dizendo que o grupo foi vítima

de seu produtor, que não providenciou um bom esquema de palco para eles.

O pianista Gilson Peranzzetta ao lado do saxofonista e flautista Ricardo

Pontes, também dividiu a crítica do evento. Enquanto para a crítica do Estadão,

Ana Maria Ciccacio, foi um show impecável, com um repertório que os

brasileiros já estão habituados diante desses músicos, para João Marcos

Coelho, crítico da Folha, o show de Gilson e Ricardo murchou a platéia depois

de Bobby McFerrin. Com o Zimbo Trio parece ter acontecido o mesmo. Embora

elogiado, principalmente pela versão de Palco de Gilberto Gil, que segundo

João Marcos, significou a boa forma do grupo, para Zuza Homem de Melo,

crítico do Estadão, o Zimbo precisava de uma revisão em sua dinâmica. Ainda

assim, o trio arrancou muitos aplausos da platéia mais cheia desta edição, com

o Anhembi quase lotado. Sivuca, que tocou na mesma noite, declarou: “não

tem estrangeiro aqui que faça sombra aos brasileiros. Ninguém aqui é melhor

que o Zimbo Trio.” (COURI, Norma. "Três noites mágicas no Anhembi". In:

Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 05/08/1985). O público gostou e

aplaudiu de pé o trio que, neste ano, já estava há 21 fazendo boa MPB. Tanto

foi que durante a apresentação alguém na platéia gritou: “Viva o Brasil!”

Sivuca foi quem encerrou a segunda noite do festival, sem muito sucesso de

crítica. Ao que tudo indica, sua banda era muito grande, com músicos inferiores

ao que se esperava, embora Norma Couri, também da Folha, tenha

classificado como um show perfeito. Foi salvo, no entanto, ao dividir o palco

com Toots Thielemans, com quem, neste ano, gravou no Rio de Janeiro o

disco “Chico’s Bar”, que seria mixado na Suécia. Até João Marcos Coelho, que

incluiu Sivuca entre os piores do festival, teve que se render a beleza do

encontro, que chamou de simpática parceria.

Os shows de Egberto Gismonti e Toninho Horta, no entanto, foram bem menos

elogiados. O primeiro por incluir diversos aparelhos eletrônicos em sua

apresentação, de acordo com Zuza Homem de Mello, se perdeu no meio de

tanta parafernália de sintetizadores. Teve uma única parte do show elogiada:

quando tocou Bachianas Brasileiras n° 5 de Villa Lobos. Talvez tenha

agradado, porque o músico começou acompanhado somente do piano, para

depois entrar com os sintetizadores, ou talvez tenha sido uma homenagem

mais que procedente, como colocou Ana Maria Ciccacio. Já Toninho Horta foi

quem fechou a terceira noite do festival. Erro grave, segundo João Marcos

Coelho: “Encerrar com grupos brasileiros – por melhores que sejam – é

convidar a platéia a ir embora.” (COELHO, João Marcos. "Abaixo das

expectativas". In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 06/08/1985).

Começou sua apresentação com a música Gershwin, mas não convenceu a

crítica em nenhum momento do show. Chegou a ser publicado na Folha, no dia

13 de Agosto, que faltou ensaio para o músico e sua banda. Ficou na lista dos

piores, para João Marcos Coelho: “e de homenagem em homenagem e

desencontros lamentáveis, sem arranjos pré-estabelecidos (guitarra, flauta e

flugelhorn tocando em uníssono), foi trôpego até um final infinitamente tedioso.”

(COELHO, João Marcos. "Abaixo das expectativas". In: Folha de São Paulo.

Caderno de Cultura. 06/08/1985). Foi a única dissonância do festival, na

opinião de Ana Maria Ciccacio. Para ela, não foi surpresa perceber que o

público começou a deixar o Anhembi, antes do fim da apresentação.

1986

Em 1986, mais do que divulgar os shows do Free Jazz, a mídia impressa

paulistana começou a discussão sobre os purismos no jazz, a partir de novas

correntes musicais que o festival abraçava, como no caso do saxofonista David

Sanborn e do guitarrista Larry Carlton, que iam além do jazz, ao incorporar

elementos do pop e do rock em suas músicas. Paralelo a isso, o crescimento

do público foi notável. Três das cinco noites tiveram ingressos esgotados mais

de uma semana antes de seu início na capital paulista, no dia 27 de agosto de

1986. Duas dentre as noites contavam com Ray Charles na programação.

Como já era conhecidíssimo por aqui, devido a três outras vindas ao Brasil,

torna-se fácil associar sua presença à venda notável de ingressos.

A questão sobre os purismos já começa antes mesmo do festival, quando

Matinas Suzuki Jr., na matéria: “Festival para saciar ouvidos com apetite de

jazz internacional”, publica na primeira página da Ilustrada no dia de abertura

do evento:

“O jazz não é mais o mesmo. Anos de convulsão e interferência, além do uso

indiscriminado da etiqueta, levaram a uma ampliação tão abrangente do

conceito de jazz que, nas suas fronteiras mais generosas, abriga fenômenos

musicais inclusive antagônicos. Os festivais de jazz tornaram-se uma das

instâncias que permitiram a desterritorialização deste tipo de existencialismo

musical, os promotores do esvaziamento da idéia original. Para encher sua

programação, do Newport a Montreaux, vale Dizzie Gillespie até Elba Ramalho.

“All is jazz”, nada é jazz.” (SUZUKI JR, Matinas. “Festival para saciar ouvidos

com apetite de jazz internacional”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.

27/08/1986, pág. 1).

No ano anterior tal questão não foi abordada, muito provavelmente devido à

presença exclusiva de músicos instrumentais no festival. Mesmo McFerrin,

considerado o único cantor do evento, não ficou tão dissonante do restante dos

artistas, visto que fez de seu próprio corpo instrumento para improvisação.

Além disso, a novidade proposta pelo festival tinha mais valor noticioso do que

a discussão do jazz no Brasil, uma vez que o intenso fluxo de tal presença

estava ainda em seu começo. A partir de 1986, como veremos, a discussão se

torna bem mais aparente. Matinas Suzuki Jr., na mesma matéria citada acima,

continua a explicação:

“Os festivais passaram a se comportar também como feiras turísticas. Eles

estão ligados à grande crise de criatividade atual do jazz. Este é o estágio onde

pode-se vislumbrar claramente as críticas do musicólogo e pensador alemão

Theodor W. Adorno ao gênero. Os improvisos, que despontaram como a marca

de um fluxo livre das paixões, estão automatizados. Haja saco para agüentar

as longas sessões de improviso que hoje, anos 80, apresentam-se mais como

o fluir da padronização do que da espontaneidade.” (SUZUKI JR, Matinas.

“Festival para saciar ouvidos com apetite de jazz internacional”. In: Folha de

São Paulo. Ilustrada. 27/08/1986, pág. 1).

Embora aberto para artistas que fundiam jazz com outros gêneros musicais, o

Free Jazz Festival de 1986 permanecia ainda bem mais voltado ao jazz do que

a qualquer outro estilo musical, como veremos a seguir. As atividades paralelas

também continuaram neste ano, mas agora tanto no Rio quanto em São Paulo,

com workshops dos músicos internacionais e uma conferência com Leonard

Feather, famoso crítico de jazz. O festival foi gravado e exibido pela rede

Manchete. Vejamos, então, como ficou a programação de shows neste 2º Free

Jazz em São Paulo:

Data Local Atrações

27.08.1986 – Quarta-feira Anhembi

Turíbio Santos Larry Carlton João Donato Wynton Marsalis

28.08.1986 – Quinta-feira Anhembi Marcos Ariel Stanley Jordan David Sanborn

29.08.1986 – Sexta-feira Anhembi Manhattan Transfer Paulo Moura Gerry Mulligan

30.08.1986 – Sábado Anhembi Ricardo Silveira Stanley Jordan Ray Charles

31.08.1986 – Domingo Anhembi Dirty Dozen Brass Band Cesar Camargo Mariano Ray Charles

Na sexta-feira, 29.08.1986, quando voltamos ao jornal para saber sobre as

críticas da primeira noite neste 2º Free Jazz, lá está Carlos Calado dizendo

logo na manchete de sua matéria para a Ilustrada: “Na primeira noite, o jazz

andou na corda bamba”. Calado não comunga com essa linha crítica dos

puristas, mas aponta para os problemas desta primeira noite. O último a se

apresentar nesta quarta-feira foi Wynton Marsalis, um trompetista de apenas 24

anos que já carregava consigo o prêmio de melhor trompetista e músico de

jazz, pelos leitores da Downbeat de 1982, além de ser o único músico a

conquistar dois Grammy em áreas opostas: música erudita e jazz. Quando

menino estudou música clássica, o que lhe rendeu uma sólida formação

musical, de forma a aproximar o seu jazz da música erudita. Depois de ouvir

Clifford Brown e Charlie Parker, ficou apaixonado pelo jazz e aí fez uma

carreira de sucesso. Tocou com o baterista Art Blekey e seus Jazz Messengers

e também com a antiga sessão rítmica de Miles Davis, composta por Herbie

Hancock no piano, Ron Carter no baixo e Tony Williams na bateria. Já havia

gravado cinco discos à frente de sua nova banda, nem todos disponíveis nas

prateleiras brasileiras.

O garoto prodígio do trompete veio para este Free Jazz trazendo de sua banda

original somente o baterista Jeff Watts. Os outros eram: Vernon Hammond no

sax, Marcus Robert no piano e Robert Hurst no baixo. Calado sentiu falta do

irmão de Wynton, o saxofonista Brandfornd Marsalis, mais aberto para

diferentes sonoridades. O grupo tocou poucos standards, embora tenham

apresentado uma versão mais acelerada de April in Paris, terminando o show

com um blues. O show mais sóbrio de jazz, neste festival, ficou por conta deste

garoto revelação. Mas isso só percebeu que ficou até o final e conseguiu

escutar o jazz mais genuíno desta abertura.

Os shows foram longos, quando Marsalis entrou já passava de uma da manhã

e a maioria do público já estava cansado. A noite começou com o violinista

brasileiro, Turíbio Santos. O músico fez uma homenagem a Villa-Lobos, mas

não convenceu a crítica quando chamou quatro integrantes da orquestra de

violões do Rio de Janeiro para a execução de Trenzinho Caipira. Para Carlos

Calado, os cinco violinistas soaram desconjuntados, como se não tivessem

ensaiado.

Larry Carlton foi a segunda apresentação da noite. Fez sua vida profissional

transitando com maior frequência pela música pop, tanto que, como músico de

estúdio tocou com Quincy Jones, Michael Jackson e até Ray Charles, músicos

expoentes da música pop norte-americana. Dentro de um festival de jazz e no

Brasil, a presença de tal estilo não era bem vista pela crítica que chegou a

classificar o guitarrista como preguiçoso, produto da indústria cultural: “é um

desses produtos de supermercado que as gravadoras têm nas prateleiras para

agradar a certo tipo de ouvinte pouco exigente.” (“Larry Carlton e Wynton

Marsalis, atrações de hoje”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 27/08/1986, pág.

1). Carlos Calado nos conta que embora o alto volume de sua apresentação

tenha esquentado a platéia do Anhembi, o fusion apresentado pelo guitarrista

exibiu poucas doses de jazz, valorizando mais o rock e o pop, embora o swing

funk tenha aparecido no som do baixista John Pena, e no solo frenético do

percussionista Alex Acunã que caracterizou o momento menos pasteurizado da

apresentação. A banda tocou temas do último disco do guitarrista, “Alone, but

never alone” (gravado em 1986), como: Smiles and Smiles to Go e High

Steppin, além do blues I’ve Gotta Right to Love my Woman que, segundo

Calado, foi tratada de forma semelhante ao restante do repertório, fato que

demonstra a falta de feeling do blues, pelo músico.

Depois de Carlton foi a vez de João Donato, pianista brasileiro que teve seu

nome associado ao jazz por praticar o estilo durante os quatorze anos que

morou nos EUA. Um fato irônico caracterizou a apresentação do músico: ele

estava nitidamente bêbado quando subiu ao palco e, por isso, cometeu

diversas gafes durante sua apresentação. A mais estranha delas foi quando

Donato anunciou uma de suas músicas mais conhecidas, A Rã, e tocou Speak

Low (Kurt Weill/Ogden Nash), deixando a banda que o acompanhava sem

entender nada. Aliás, para Calado, o show só conseguiu chegar até o fim

graças à competência dos músicos acompanhantes: Mauro Senise (sax e

flauta), Luis Alves (contrabaixo) e Robertinho Silva (bateria), que conseguiram

segurar a apresentação, sem interrompê-la antes do fim.

Na segunda noite do festival, a grande estrela foi, sem dúvida, o guitarrista

Stanley Jordan. O rapaz, com apenas 27 anos, começou tocando piano e

transpassou a técnica para a guitarra. Dispensava a palheta e utilizava todos

os dedos das mãos para tocar seu instrumento. Dessa maneira parecia tocavar

duas guitarras ao mesmo tempo. Em 1984 ainda tocava nas ruas de Nova York

para garantir sua subsistência, mas depois de participar do Kool Jazz Festival

se tornou uma das novas descobertas do jazz. Com o disco “Magic Touch”

bateu recorde de permanência no primeiro lugar entre os mais vendidos pela

revista Billboard. Neste Free Jazz foi comparado a Bobby McFerrin, não

somente porque ambos começaram como pianistas, nem tampouco por

transitarem entre standards do jazz, baladas, música pop até clássicos do rock

como os Beatles. Na verdade, tanto McFerrin quanto Jordan foram revelações

apresentadas pelo Free Jazz. Revelações que mostravam maneiras

verdadeiramente originais de tocar seus instrumentos (McFerrin com seu corpo

e Jordan com a guitarra). E tocaram sozinhos no palco. Jordan começou com

Stolen Moments, passou para All the Children e aí bastava fechar os olhos para

ouvir as duas guitarras. O som do instrumento não parou nem para os

aplausos, foi passeando por várias músicas dentre as quais, Georgia on My

Mind (um hit de Ray Charles), Autumn Leaves (de Joseph Kosma), My One

and Only Love, All Blues (de Miles Davis) dentre outras. No bis a música

escolhida levou a outro bis. Qual música? Stairway To Heaven, do Led

Zeppelin.

Concedendo aos apelos da crítica do ano anterior, nenhum músico brasileiro

fechou as noites do festival em 1986. Nesta quinta-feira, a abertura da noite

ficou por conta do tecladista brasileiro, Marcos Ariel. Com um repertório de

músicas brasileiras numa estética fusion, demonstrou sintonia com a banda,

alternando sons mais pesados com a leveza de um solo de piano acústico,

ofereceu ao público melodia original, mas teve bem menos espaço na crítica

jornalística, visto que o foco midiático estava sobre as grandes estrelas

internacionais.

Para terminar, o saxofonista David Samborn, alvo das críticas que precediam o

festival. Fez um show que surpreendeu, principalmente pelo guitarrista que o

acompanhou, Hiram Bullock. Samborn faz parte daquela turma de músicos que

transita entre vários estilos. Já tocou com Stevie Wonder, James Taylor, David

Bowie, Paul Simon e até Rolling Stones. Ou seja, certo caráter pop faz parte do

seu repertório e isso criava uma aversão a críticos de jazz. Seu guitarrista, no

entanto, agradou pela presença de palco: exibia sua guitarra sem fio

caminhando entre os músicos de forma debochada. Dançou e sentou na beira

do palco para tocar Bluesete (de Thielemans) misturada com Samba de Uma

Nota Só. A extravagância do músico foi destaque da crítica, embora relutante

com Samborn e seu tratamento funk para o repertório do show.

O primeiro show da sexta-feira, 29.08.1986, seria o de Keith Jarret, referência

no improviso com piano, mas devido a exigências que não puderam ser

resolvidas pelo festival, como a de um piano Steinway Hamburgo D, foi

substituído pelo grupo vocal, Manhattan Transfer. Criado em Nova York em

1972, o grupo era formado por quatro vocalistas: Tim Hauser, Janis Siegel,

Alan Paul e Cheryl Bentyne, que exibiam durante suas apresentações não

somente o canto, como pequenos happenings. Foram escolhidos para vir ao

festival, provavelmente devido ao recém-lançamento (na época) do disco

“Vocalese”, onde o grupo mostrava novas versões de clássicos do bep-bop,

recriando com a voz os solos originais. Fizeram um show surpreendente,

principalmente pela perfeita execução de arranjos complexos de clássicos

jazzísticos que iam desde o swing até o bop, sem deixar as canções pop de

fora. De acordo com Calado, ouvi-los ao vivo, sem as estratégias de estúdio,

revelava a alta qualidade do trabalho do grupo.

Paulo Moura, compositor, arranjador, saxofonista e clarinetista brasileiro, foi

quem fez o segundo show desta noite, com mais oito músicos no palco. Já

velho conhecido do público paulistano devido a sua constante presença nas

noites da cidade, quer em gafieiras ou concertos eruditos, foi sucesso, talvez

pela sua capacidade de transitar entre diversos estilos musicais. Ainda assim,

não teve tanto espaço na mídia, possivelmente por ser um músico já conhecido

dos brasileiros. Moura esquentou o palco para que entrasse o também

saxofonista, Gerry Mulligan.

Mulligan, assim como Marsalis, também envergou para a música erudita,

ambos caminham pelas trilhas mais clássicas do jazz moderno e trazem como

núcleo central do trabalho as referências dos anos de 1950. Representaram,

então, a parte mais sóbria do festival. Com apenas um disco lançado no Brasil

até então (o “Summit”, gravado com Astor Piazzolla), o saxofonista não foi

exatamente apresentado aos brasileiros pelo Free Jazz, pois já estivera

presente no Brasil em 1978. Foi um inovador na história do jazz quando, na

década de 50, formou um quarteto que dispensava o piano; além disso, junto

com Miles Davis, elaborou o nascimento do cool jazz. Para seu show no Free

Jazz trouxe Bill Mays ao piano, Michael Formanek ao baixo e Richard de Rosa

na bateria. No Rio de Janeiro ainda teve tempo para um passeio no Jardim

Botânico, junto com seu amigo, Tom Jobim.

No sábado, 30.08.1986, quem abriu a noite foi Ricardo Siveira, guitarrista

carioca, juntamente com o seu grupo, High Life. Fizeram um show baseado no

fusion. Nesta noite, mais uma vez tocou Stanley Jordan, para depois subir ao

palco o músico mais esperado deste festival, o grande Ray Charles. Ele

dispensa apresentações. Os ingressos para os dias que ia se apresentar foram

os primeiros a acabar e seu show foi sucesso não apenas de público, como

também de crítica. Carismático, o rei transitou por todos os tipos da música

negra norte-americana, blues, country, rhythm and blues, sem esquecer o jazz.

Veio com uma big band de 28 músicos, incluindo as back vocals, mais

conhecidas como Raelettes. Ganhou o público quando fez um gesto

característico de sua apresentação, levantando-se do piano e abraçando o ar,

como quem abraça toda a platéia. Mas a sensação de receber tal abraço é algo

indescritível e aí, só quem foi pode relembrar.

A última noite do festival começou com o Dirty Dozen Brass Band. Grupo de

metais composto por: Greg Tate e Efrem Towns nos trompetes, Kevin Harris no

sax – tenor, Roger Lewis no sax-barítono e soprano, Charles Joseph no

trombone, Kirk Joseph na tuba, Jenell Marshall no tarol e vocais e Benny Jones

no bumbo e pratos. Com uma formação típica das bandas de desfile de New

Orleans, fizeram um show animado que trouxe boas surpresas para o público

brasileiro, uma vez que a banda não possuia nem um disco lançado por aqui.

Os músicos animaram a platéia que se divertiu com um fusion de jazz e funk,

mas também de jazz e ritmos latinos. A energia alegre da Dirty Dozen Brass

Band contagiou o Anhembi e deixou o público quente para que então entrasse

o pianista brasileiro César Camargo Mariano e depois, mais uma vez, Ray

Charles.

1987

No ano de 1987, o fusion apareceu com mais força na programação do festival.

A partir daqui se torna mais evidente as diversas posturas críticas: de um lado

os puristas, caracterizando a opção mercadológica do festival, os instrumentos

eletrônicos e os adeptos do fusion, como prejudicial à elaboração da música de

alta qualidade; por outro, uma postura crítica mais aberta para a discussão em

torno das novas influências no jazz, determinando caminhos que podem

funcionar, embora nem sempre apostando em tais novidades.

Neste ano tivemos apenas um artista brasileiro fechando a penúltima noite

neste 3º Free Jazz, o multi-instrumentista Hermeto Pascoal, também conhecido

como bruxo, que já vinha sendo aclamado pela crítica como presença

necessária ao festival, desde 1985. O músico já tinha se apresentado no

Festival Internacional de Jazz de São Paulo em 1978 e também no Festival de

Montreux, na Suíça, em 1979. Depois disso, fez diversas apresentações pela

Europa e tocou até no Japão. Referência da música instrumental brasileira no

mundo, teve um espaço privilegiado neste festival, principalmente devido ao

sucesso adquirido no exterior. Seu reconhecimento no cenário da música

internacional levou o festival a colocá-lo como última apresentação na noite de

sábado, encerrando a penúltima noite do Free Jazz, onde ainda tocaram Chick

Corea e Bill Evans. Vamos, então, às atrações que passaram pelo Anhembi,

neste ano.

Data Local Atrações

09.09.1987 – Quarta-feira Anhembi Laurindo de Almeida Jim Hall e Michael Petrucciani Philip Glass Ensemble

10.09.1987 – Quinta-feira Anhembi Dominguinhos Spyro Gyra Sarah Vaughan

11.09.1987 – Sexta-feira Anhembi Nivaldo Ornelas Art Blakey e The Jazz Messengers Sarah Vaughan

12.09.1987 – Sábado Anhembi The Chick Corea Elektric Band Gil Evans Orchestra Hermeto Pascoal

13.09.1987 – Domingo Anhembi Cama de Gato Lee Ritenour King Sunny Adé

A primeira noite do festival vinha sendo anunciada como a mais clássica do

evento, principalmente devido à presença de Laurindo de Almeida,

homenageado nesta edição (anunciado como Laurindo de Oliveira, por uma

voz em off que o chamou ao palco). Prometeu tocar Debussy, Villa-Lobos e

Mozart. O violinista brasileiro quase desconhecido no Brasil, visto que morou

por mais de 40 anos nos EUA, foi premiado com um Oscar, cinco Grammy,

além de mais de 120 discos gravados por lá, nenhum lançado no Brasil até

então. Chegou para o festival com a promessa de um show mais erudito e,

dizem, falando português com sotaque de americano. Não agradou aos mais

xenófobos, que o considerava um produto da indústria cultural norte-

americana. Petrucciani, que tocou logo em seguida, também demonstrou sua

tendência para os clássicos, mas os clássicos jazzísticos. Um pequeno notável

do piano, na época com 24 anos e apenas um metro de altura devido a uma

doença rara que impedia seu crescimento, se considerava um tradicionalista;

tanto que, em entrevista para o Estadão anunciou seus mestres: Bill Evans,

Oscar Peterson e Herebie Hancock. Neste ano estava há 20 tocando piano e já

preparava seu 16º disco. Foi considerado pela crítica do Estadão, como um

dos herdeiros da tradição clássica do jazz, fato que agradava. Para o festival,

tocou acompanhado do guitarrista Jim Hall e juntos foram a revelação

apresentada pelo Free Jazz neste ano. Durante o show, demonstraram

perfeição na arte do improviso. Hall mais contido e Petrucciani invadindo seu

piano com o pequeno corpo. O show sóbrio e clássico apresentado pela dupla

agradou aos jazzófilos mais ortodoxos, mas foi considerado frio e profissional

em demasia pelo crítico do Estadão, Luís Antônio Giron. No repertório muitos

standards do jazz como: Lover Man e All the Things You Are.

O grande destaque desta noite ficou, entretanto, com o assim chamado “Verdi

da era eletrônica”, Philip Glass. Considerado por Giron como o não-jazz dessa

abertura do festival, fez uma música em que o maestro, Dan Dryden, era o

responsável pela mixagem de som ao vivo. Com uma banda que incluía três

sintetizadores (tocados por Glass, Michael Riesman e Martin Goldray), além da

vocalista Dora Ohrenstein que também controlava o coro gravado digitalmente

em um sampler emulador, e do trio de metais Jon Gibson (sax-soprano e

flauta), Jack Kripl (sax-soprano e flauta) e Richard Peck (sax-soprano, tenor e

alto); o grupo causou uma sensação de hipnose no Anhembi, que enfeitiçou

todo o público, já que manteve a intensidade do som sempre igual, com várias

repetições de estruturas musicais, durante toda a apresentação. Rotulado

como músico minimalista pela mídia (título que não agrada ao musico), tocou

trechos de suas óperas, como: Einstein On the Beach (que fez junto com o

diretor teatral, Bob Wilson), Satyagraha e Akhnaten, além de trilhas de filme

como a de Koyaanisqatsi. Falou em português com a plateia e teve uma

recepção carismática por parte da mídia, que destacou o caráter evolutivo e

inventivo presente em sua obra.

A segunda noite neste festival foi a mais polêmica devido às diferenças

marcantes entre os trabalhos dos artistas que tocaram neste dia. Muito

atacado, Dominguinhos fez uma fusão entre forró e jazz, contando com a

presença de Amilson Godoy no piano, Heraldo do Monte na guitarra, Dirceu

Simões na bateria e Arismar Espírito Santo no baixo. Entrou acompanhado

somente do irmão Waldomiro Moraes no triângulo e do zabumbeiro Boréu,

tocando Lamento Sertanejo, para depois entrarem os outros músicos que o

acompanharam. Juntos tocaram: Pedacinho do Céu, Asa Branca, Triste (de

Tom Jobim) dentre muitos outros clássicos da música brasileira. O público se

divertiu, mas o crítico do Estadão, Luís Antônio Giron, destacou que o trabalho

do músico está mais voltado para o folclore do que para os fraseados

jazzísticos, questionando, assim, a participação do sanfoneiro no festival.

Mas Dominguinhos não foi o mais atacado, a banda Spyro Gyra com sua

música pasteurizada, acabou sendo eleita como uma das piores presenças no

festival. Teve seu trabalho caracterizado como descartável, principalmente por

não mostrar uma evolução no repertório que parecia sempre o mesmo, uma

mistura de jazz, pop, rhythm &blues, salsa e funk, exibindo um aspecto de

música velha, que nunca se renova. Liderada pelo saxofonista, Jay

Beckenstein, a banda tocou músicas de seu último disco, como From the Heart,

num formato rumba-jazz bastante criticado. Talvez por já ter tocado no 1º

Festival de Jazz de São Paulo e por isso ter diversos discos disponíveis no

mercado brasileiro, foi eleita a melhor atração da noite por 57% dos 415

entrevistados pelo DataFolha neste ano.

O longo show do Spyro Gyra levou Sarah Vaughan a entrar no placo depois de

uma hora da manhã. Quem conseguiu ficar até o final, apreciou a grande dama

do jazz numa apresentação que deixou a crítica extasiada com seu primoroso

sentido rítimico e toda sua potência vocal, além dos deboches típicos da

cantora. Ela foi a grande diva nesta 3º edição do festival e na memória do Free

Jazz só restaram elogios. Vejam como a descreve, Giron: “ela é quem valoriza,

amplia e identifica o conceito de jazz como um gênero de música negra que

visa à expansão dos limites ditados pelas leis consagradas dos sistemas

musicais” (GIRON, Luis Antônio. “Bebop com forró com fusão". In: O Estado de

São Paulo. Caderno de Cultura. 10/09/1987). Veio acompanhada de George

Geffrey no piano, Andy Simpkins no contrabaixo e Harold Jones na bateria e

juntos apresentaram um repertório repleto de standards como My Funny

Valentine e um pout-porri de Gershwin (Our Love is Here to Stay, But Not for

Me, Embraceable You, Someone to Watch Over Me), foi do clássico ao bop,

passando pela Bossa Nova, mas quando cantou sem acompanhamento,

Summertime (também de Gershwin), deixou o público arrepiado. Neste ano já

tinha 62 de vida e 43 de carreira que lhe renderam 90 LPs lançados no exterior,

alguns deste já no Brasil.

José Arbex, jornalista da Folha, publicou a 15.09.1987, que durante o show de

Sarah, boa parte da plateia já havia saído, talvez pelo atraso, talvez pela

preferência pelo fusion da banda anterior, mas fez uma constatação grave para

o Brasil: “Os assentos vazios e a movimentação incessante do público do

Spyro durante a apresentação de Sarah Vaughan eram a demonstração mais

acabada de um insuportável terceiro-mundismo, do consumismo irrefreável e

mal-educado de uma audiência certamente destituída de tradição musical”

(ARBEX, José. “Quem nasceu para Spyro nunca vai chegar a Sarah". In: Folha

de São Paulo. Caderno de Cultura. 15/09/1987). A musa parece não ter se

importado, fez um show com 90 minutos de duração, cantou 17 canções e até

tocou no piano a canção Once in a While. Foi aplaudida de pé, no fim da

apresentação. Terminou com a frase: “Eu amo vocês!”

Para Giron, esta noite da diversidade agradou ao público, porém colocou em

jogo o próprio conceito do jazz, assim como o show de Philip Glass. E para

colocar a questão, ele foi ao Aurélio buscar o significado do que é o jazz:

“Música profana, vocal ou instrumental, dos negros norte-americanos, que se

tornou progressivamente, depois da I Guerra Mundial, uma forma de expressão

quase universal.” (GIRON, Luis Antônio. “Bebop com forró com fusão". In: O

Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 10/09/1987). Giron destaca que

está nesse quase universal o problema encontrado no conceito do jazz

estabelecido pelos organizadores do evento, pois com este viés abriu-se o

espaço para uma “confusão” de ritmos.

Já o terceiro dia do festival rendeu bons comentários. É o próprio Giron, mas

agora em matéria para a Folha, quem define, já na manchete, o terceiro dia de

festival: “A grande noite do ritmo e da sedução” (GIRON, Luis Antônio. “A

grande noite do ritmo e da sedução”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.

13/09/1987). Aqui, não somente Ella, como o brasileiro Nivaldo Ornelas e o

baterista Art Blakey com os seus Jazz Messengers, proporcionaram a noite

considerada mais jazzística deste festival

Blakey junto com Ms. Vaughan formaram o time de clássicos do jazz neste

festival. E fizeram a terceira noite do evento brilhar. O baterista foi um dos

responsáveis pela criação do ritmo bepbop e a mídia brasileira só lhe rendeu

elogios. Não era pra menos, nasceu em 1919 e conseguiu acompanhar quase

toda a evolução do jazz, com uma carreira de sucesso, onde tocou com Charlie

Parker e Dizzy Gillespie, com Miles Davis, Keith Jarret, Lee Morgan, Waine

Shorter, Wynton Marsalis dentre muitíssimos outros. Veio para o Brasil

acompanhado de seus mensageiros: Benjamim Green, pianista de apenas 22

anos, responsável por metade dos arranjos apresentados no Brasil; Peter

Washington no baixo; Mark Romero na percussão; Javon Jackson no sax;

Robin Eubanks no trombone e Terence Blanchard, que chegou a ser

comparado a Wynton Marsalis, no trompete.

O grupo, considerado como a face mais genuína do jazz neste festival, fez um

show longo com mais de duas horas de duração. O virtuose da bateria,

comparado a um preto véio na aparência, dirigiu um show vigoroso, coeso e

recheado de pulsação rítmica, contrastando compassos de marcha militar, com

batuques africanos. Antes dele, Nivaldo Ornelas, saxofonista e flautista

brasileiro, apresentou um fusion de qualidade onde jazz e música brasileira

(principalmente ritmos populares) se uniram de forma primorosa. Agradou até

os mais ortodoxos! Esta foi uma noite caracterizada como de rituais

primorosos.

A noite de sábado começou com o alto volume do Chick Corea e sua Elektric

Band. Para Carlos Calado foram eles que apresentaram um fusion de

qualidade neste festival, muito provavelmente porque Corea faz parte daquele

time dos que transitam por várias correntes jazzísticas. Seu swing latino pode

ser explicado pelas vezes que tocou com Mongo Santamaria, percussionista

cubano, mas também pela presença dos brasileiros Airto Moreira e Flora Purim

(respectivamente percussão e vocais) na formação de seu grupo mais ilustre, o

Return to Forever. Também passou pela Bossa Nova ao tocar com João

Gilberto e Stan Getz. Fora isso, trabalhou em três discos com Miles Davis, o

“Filles de Kilimanjaro”, “In a Silent Way”, além do “Bitches Brew”, álbuns

históricos no fusion jazz-rock.

Corea, que alternou por algum tempo trabalhos elétricos e acústicos, veio para

o Brasil junto de sua Elektric Band, para apresentar um show onde os

sintetizadores já apareciam em primeiríssimo plano para os brasileiros. Os

elektrics eram: Eric Marienthal no saxofone, Frank Gambale na guitarra, David

Weckl na bateria e John Patitucci no baixo. Com o apelo massivo do alto

volume sonoro, fizeram um show com fusão eletrificada de pop e jazz, onde o

diferencial encontrava-se na bagagem carregada de homogeneidade e alto

nível técnico dos músicos. Além disso, utilizaram recursos visuais para garantir

a atenção do público, quer com os músicos imitando robôs, quer com o gelo

seco que proporcionava um ambiente esfumaçado para o show. As estratégias

funcionaram. Dos 393 entrevistados pelo DataFolha, 74% do público, neste dia,

elegeram o show da banda como o melhor desta noite.

Depois dele foi a vez de Gil Evans Orchestra. O senhor de 75 anos liderou uma

orquestra que contava com a participação de excelentes músicos como:

George Adams (sax e flauta), Chris Hunter (sax), Lew Soloff (trompete), Delmar

Brown (teclados), Mark Egan (baixo), Hiram Bullock (guitarra), Danny Gottlieb

(Baterista) e Airto Moreira (percussão). Evans mostrou uma nova roupagem

para a já tradicional linguagem das big bands, apresentando o show mais free

desta edição do festival. Adicionou à sua orquestra, teclados eletrônicos, além

de instrumentos menos usuais como a tuba e a trompa. Em seu currículo

encontramos trabalhos importantes na evolução do jazz, principalmente

quando trabalhou com Miles, compondo arranjos para gravações em “Miles

Ahead”, “Porgy and Bass”, “Sketches of Spain”, dentre outros. A parceria

Davis-Evans foi uma das mais extraordinárias na história do jazz,

principalmente pela criação impressionista de Evans, que desconhecia a

monotonia e a repetição, fazendo de Miles um interprete ideal. Seus arranjos

ousados fizeram do show um marco na história do Free Jazz.

Depois de tantas feras veio Hermeto Pascoal com toda sua inovação para a

música instrumental brasileira. Já passavam das 2h30 da manhã quando subiu

ao palco e, embora com o público cansado, a banda chegou para continuar o

clima quente da noite, esbanjando criatividade na articulação de músicas

populares brasileiras, fato que fez a crítica vibrar: “característica de um músico

autoconfiante, que recicla memória e tradição, sem absorver influências

externas” (SMIRKOFF, Marcos. “Hermeto Pascoal atrapalha sono do público

de sábado". In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 14/09/1987).

No domingo, além da noite no Palácio das Convenções do Anhembi, Chick

Corea fez um show de graça na Praça da Paz do parque Ibirapuera, como

parte alternativa do festival. De noite, quem abriu a festa foi o grupo brasileiro

Cama de Gato, que fez um show agradável, mas sem maiores destaques na

mídia, seguido por Lee Riternour que, com menos sorte, entrou para lista dos

piores. Não parece ter sido falta de técnica, o guitarrista apresentou um

dedilhado preciso e ótima definição das notas em escalas muito rápidas, mas a

escolha por melodias fáceis e pasteurizadas, como Dolphin Dreams e Rainbow,

com sua aparente falta de feeling para a execução, deram à sua apresentação

um caráter menos inventivo, de acordo com a crítica. Seu show foi comparado

ao de Larry Carlton no ano anterior.

Na última noite deste Free Jazz a grande estrela foi, sem dúvida, o nigeriano

King Sunny Adé e seus African Beats. Conhecido como o rei da juju music, um

estilo de música popular nigeriana, derivada da percussão Yoruba; veio para o

Brasil mostrar um pouco da música pop africana. Tido pelos jornais como o

incendiário do ritmo, colocou cerca de quatro mil pessoas para dançar durante

as quase duas horas de show que apresentou no Anhembi. Também adepto da

fusão, misturou juju music com funk, soul, blues, rythm & blues e até um pouco

de jazz, a banda integrava guitarras, sintetizadores, e também os tambores

africanos. A fusão exótica parece ter sido a receita certa para garantir elogios

da crítica.

Neste terceiro Free Jazz, gravado e exibido pela Rede Globo, percebemos que

a ousadia do festival em abrir espaço para diferentes estilos musicais, como foi

o caso do minimalista Philip Glass e do forrozeiro Dominguinhos, ampliava o

público, mas mantinha o mesmo valor qualitativo das atrações, sempre

priorizando os artistas jazzísticos. Além disso, manteve o trabalho dos

workshops com os músicos convidados e inovou ao promover conferências

sobre o jazz, todas gratuitas. Era evidente, assim, o caminho expansivo que o

festival tomava.

1988

Em 1988, Miles Davis foi a grande promessa do festival. E, embora tenha sido

o mais noticiado pela mídia, não pôde comparecer devido a um diagnóstico de

pneumonia que o impossibilitou de tocar. Para resolver a ausência de sua

maior estrela, o festival organizou às pressas uma jam session com alguns de

seus convidados estrangeiros: Nina Simone, Michael Brecker, Oscar Castro

Neves, The Lounge Lizards, Tonny Williams, Yellow Jackets, Diane Schuur e

Courtney Pine, mas como nos conta Carlos Calado, o que o festival chamou de

jam session “acabou sendo uma espécie de sessão de cinema com vários

treillers de shows” (CALADO, Carlos. “Festival aumenta seu público mas ainda

não é “free””. In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 13/09/1988).

Ainda assim, o festival foi tão noticiando neste ano que Moacir Galo, gerente de

produção da Souza Cruz, declarou que dentre os três festivais patrocinados

pela empresa (além do Free Jazz, ainda patrocinavam o Carlton Dance e o

Hollywood Rock), era no Free Jazz que conseguia um maior retorno de mídia

espontânea em jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão. Duas

transmitiram o evento, neste ano: a Rede Globo e a TV Cultura, ao vivo, pelo

programa Metrópole. Além disso, uma semana antes do festival começar, a

Folha de São Paulo publicou um enorme Guia do Festival que, além de

apresentar as atrações e divulgar a programação de shows e workshops,

incluía no roteiro uma história do jazz e sua presença em filmes e livros.

Dedicava, assim, um enorme espaço para a ampliação e veiculação do evento,

fato que comprova o crescente número de expectadores e consumidores que o

Free Jazz atingia à medida que os anos se passavam. Ainda assim, continuava

com a proposta de se produzir um festival aonde o jazz pedia por todos os

holofotes.

O time de representantes da mainstream neste ano estava recheado de

grandes feras. Eram eles: Ron Carter e Tony Willians trio, Modern Jazz

Quartet, Stephane Grapelli e o mais novo da turma, o saxofonista britânico,

Courtney Pine (isso sem contar a promessa de Miles Davis!). Também trouxe

Nina Simone que, embora considerada uma estrela pop por alguns críticos,

teve uma carreira de sucesso no universo do jazz, do blues, do gospel, do folk

e da soul music, e nesta época contava mais de 50 discos gravados. Foi

perseguida nos Estados Unidos por abraçar publicamente o combate a todo

tipo de racismo e neste ano voltava às rádios com um grande sucesso, My

Baby Just Cares for Me. O festival também apresentou Diane Schuur,

revelação na época recente, do canto jazzístico, devido à potência e grande

extensão de sua voz; e também, os Lounge Lizards, banda da vanguarda pop

nova-iorquina, que só teriam discos lanços no Brasil, depois de sua

confirmação para o festival. Trouxe o saxofonista Michael Brecker, famoso

como músico de estúdio (gravou com Frank Zappa e Frank Sinatra), que havia

montado sua própria banda recentemente. Apresentaram-se no Anhembi na

quinta à noite e domingo, no parque Ibirapuera. O festival também incluiu o

fusion do Yellow Jackets, fato que não agradou à crítica.

Os brasileiros foram representados pela Banda Zil que era composta por

Ricardo Silveira na guitarra, Marcos Ariel nos teclados, Zé Nogueira no sax,

João Batista no baixo, Jurim Moreira na bateria, Zé Renato e Cláudio Nucci nos

vocais. Além dela, contou com a presença do tecladista Antônio Adolfo, que

acompanhou Elis Regina na era “o fino da bossa” e compôs, ao lado de Tibério

Gaspar, hits como Sa Marina e Teletema. Também gravou temas de Ernesto

Nazareth e Sinhô, de forma a se aproximar da música tradicional brasileira. A

terceira noite do festival foi aberta pelo saxofonista brasileiro Léo Gandelman,

bastante requisitado em gravações de estúdio. E abriu com Pixinga a noite que

traria Nina Simone. O beixista mostrou sua fusion com samba: o funk brasileiro.

Teve lugar até para Almir Sater mostrar o seu regionalismo e para Oscar

Castro Neves matar as saudades do Brasil.

A programação cada vez mais eclética do festival ficou assim, então:

Data Local Atrações

06.09.1988 – Terça-feira Anhembi Banda Zil Ron Carter e Tonny Williams Trio Diane Schuur

07.09.1988 – Quarta-feira Anhembi Antônio Adolfo Stephane Grapelli Modern Jazz Quartet

08.09.1988 – Quinta-feira Anhembi Léo Gandelman Courtney Pine Michael Brecker

09.09.1988 – Sexta-feira Anhembi Pixinga Nina Simone

10.09.1988 – Sábado Anhembi Almir Sater Jam Session

11.09.1988 – Domingo Anhembi Oscar Castro Neves Yellow Jackets The Lounge Lizards

A presença marcante do Free Jazz nas manchetes dos cadernos de cultura

possibilitava um prolongamento sobre as discussões do jazz no Brasil; mas

visto a enxurrada de atrações que demarcavam uma ampla gama de

diversidade musical para o evento, torna-se inevitável o surgimento das

diversas vozes críticas, cada qual apontando direções diversas.

Neste ano, os três primeiros dias concentraram digamos, a nata do jazz. E aí

os puristas puderam se deliciar, primeiro com o Ron Carter e Tony Williams

Trio. Carter no contrabaixo, Williams na bateria e Mulgrew Miller no piano.

Fizeram um show elegante e polido, propondo um jazz moderno, mas que não

abandonava a tradição; precisos, inventivos e virtuosos. O baixista e o baterista

já haviam feito parte de um dos quintetos de Miles Davis, e neste show para o

Free Jazz apresentaram Miller, que foi considerado a grande revelação do

evento.

A segunda noite foi considerada como a mais erudita por Luís Antônio Giron. A

começar por Antônio Adolfo que, junto de sua banda, apresentou ótimos

arranjos para um repertório exclusivamente nacional. Depois foi a vez do

violinista francês Stephane Grappelli que, junto de John Burr (baixo) e Marc

Fosset (guitarra), apresentaram o show mais romântico do festival. Aos 80

anos, o músico disse em entrevista para o Estadão que: “o jazz é só

imaginação” (GIRON, Luís Antônio. “O virtuosismo sobre ao palco do

Anhembi”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 07/09/1988). E foi a

grande atração desta quarta feira ao apresentar no seu repertório As Times

Goes By, da trilha de Casablanca, Chattanooga Choo Choo de Glenn Miller,

Someone to Watch Over Me de Jerome Kern, I Got Rhythm de George

Gershwin, dentre outras que reestabeleceram o elo do sentimentalismo,

fazendo a plateia suspirar.

Quando o público já estava nas alturas entrou o Modern Jazz Quartet, para

uma apresentação rica em elementos do jazz tradicional e da música clássica,

fato que levou Ricardo Soares a afirmar, “sua concepção não admite a menor

interferência de ritmos pagãos” (SOARES, Ricardo. “Milt Jackson, sagrado e

profano”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 07/09/1988). Na

época com 36 anos de trajetória, o grupo composto por Milt Jackson no

vibrafone, Percy Heath no baixo, Connie Kay na bateria e John Lewis no piano;

se mostrou lírico, racionalista e tradicional. Todos passaram por uma formação

clássica rigorosa, embora tenham adotado o jazz como pratica inventiva. Dessa

forma elaboravam um jazz onde o procedimento da prática erudita estava

sempre presente. A ideia era que o público não soubesse quando estavam

improvisando ou não. Para o programa do Free Jazz escolheram um repertório

que começou com The Golden Striker, para depois adentrar o universo de

Duke Ellington, homenageado no último disco gravado pelo grupo nesta época,

“For Ellington”. Começaram por Koko e Prelude to a Kiss e depois por mais oito

temas, deixando as 2.700 pessoas, que encheram o Anhembi, extasiadas.

A terceira noite foi dedicada aos saxmaníacos. E se o som do jazz moderno,

como nos conta Joachim Ernest Berendt, vem do sax, torna-se fácil entender

porque esta foi uma das noites mais concorridas na procura de ingressos.

Começou pelo saxofonista brasileiro Léo Gandelman que acabava de ter o seu

segundo disco, “Ocidente”, lançado pela Polygram. Esquentou o palco para

que então entrasse uma das revelações trazidas pelo festival neste ano,

Courtney Pine. O saxofonista britânico, aos 24 anos, veio para mostrar que a

tradição no jazz continuava viva e prosperando como nunca. Influenciado por

músicos das décadas de 1950 e 60 como John Coltrane, Sonny Rollins e Wyne

Shorter, o músico exibiu gritos eufóricos em sua apresentação. Ele e seu trio,

formado por Delbert Felix no baixo e Mark Mondesir na bateria, tocaram Giant

Steps de Coltrane, Misty de Erroll Garner e também a balada de Gershwin, I

Can’t Get Started. Valorizando o improviso quer com mais velocidade ou com o

ritmo mais lento, o grupo apresentou somente seis canções que foram

suficientes para deixar a todos boquiabertos.

Quem fechou esta terceira noite foi Michael Brecker. Mais conhecido por sua

participação em gravações de discos (além dos Frank Sinatra e Zappa,

também gravou com John Lennon, Charles Mingus, Paul Simon, Eric Clapton,

Chick Corea, James Taylor, para citar só alguns), foi considerado como o

saxofonista de maior influencia nesta década, por Carlos Calado. Seu primeiro

disco, no entanto, só havia sido gravado no ano anterior, 1987. Veio

acompanhado do guitarrista Mike Stern, do baixista Jeff Andrews, do baterista

Dennis Chambers e do pianista Joseph Calderazzo. Por sua aproximação com

o Rock, mas também por utilizar um sintetizador, não obteve tantos elogios da

crítica.

A partir de sua quarta noite, o festival começava a apresentar seus convidados

mais fusion. Ainda assim, Nina Simone foi a grande estrela desta noite, aberta

pelo baixista brasileiro, Pixinga. Ele já havia acompanhado Gal Costa, Evandro

Mesquita e Angela Rô Rô e veio para o Free Jazz apresentar seu trabalho

individual, acompanhado pela banda Pavio Curto. Depois dele foi a vez de

Nina, presença temida pela mídia devido a sua inconstância temperamental,

mas amada pelo público, que fez da sua noite a mais concorrida por ingressos.

A cantora, com sua postura altiva, seduziu o público, que a recebeu de pé no

Anhembi. A recompensa foi um show carregado de emoção. Nina se levantou

do piano, dançou e pediu para que o público cantasse. Tocou grandes

sucessos como: Young, Gifted and Black; Mississipi Goddam; Here Comes The

Sun; dentre outros.... Em algumas canções acentuava as palavras, de forma a

ressaltar o discurso a favor da causa negra. Embora passeando também por

seu repertório mais pop, Nina mergulha nas raízes negra e spiritual de sua

história, de forma a resgatar o sentimento originário do jazz. É possível que

esteja neste fato a enorme popularidade conquistada pela cantora.

Certas presenças, no entanto, despertaram a ira dos críticos. No caso de Diane

Schuur, parece não ter convencido devido à inconstância das interpretações e

do repertório, mas mostrou que pela potência e extensão de sua voz, continua

no páreo para diva do jazz. Já os Yellow Jackets, embora com um Grammy no

setor de Rhythm & blues e oito anos de estrada, não foram bem recebidos,

foram classificados como monótonos devido à falta de variação rítmica e

dinânamica no show. O fusion de rock-blues-jazz parece não ter soado bem

aos ouvidos da crítica.

Os Lounge Lizards tiveram menos sorte. Antes mesmo de chegarem ao Brasil,

já era destaque nos jornais a fama de “fake jazz” que haviam recebido da

crítica norte-americana, talvez por isso a mistura de jazz-pop do grupo, liderado

pelo saxofonista John Lurie, parece ter cansado os ouvidos do público. Com

uma apresentação performática, eles experimentavam uma grande mistura de

sons e rítmos com arranjos que exploravam o cromatismo. Talvez não tenham

desenvolvido bem a idéia proposta, talvez a música apresentada fosse muito

diferente de tudo o que apareceu por aqui neste ano. Com a crítica cada vez

mais agressiva diante desta reunião de tendências musicais nem sempre

ligadas ao jazz e com a ênfase dada a tais artistas dentro da mídia, foi Carlos

Calado, na Folha, quem amenizou a questão: “Por mais que os puristas

reclamem, crucificando o festival ao trazer roqueiros e praticantes da fusion,

fica mais uma vez provado que a subsistência do evento passa por essa opção

mercadológica. De que adiantaria uma edição exclusivamente constituída por

nomes do jazz mais estrito, assistida apenas por algumas centenas de pessoas

se no ano seguinte talvez o festival falisse?” (CALADO, Carlos. “Festival

aumenta seu público mas ainda não é “free””. In: Folha de São Paulo. Caderno

de Cultura. 13/09/1988)

1989

Nesta quinta edição do Free Jazz, algumas mudanças marcaram o crescimento

e o amadurecimento do festival. A começar pelo local onde aconteciam os

shows, que passou do Anhembi para o Palace, criando um ambiente mais

intimista do que o anterior. Os workshops com músicos trazidos pelo evento

também continuou, mas além dele, realizou-se, também como atividade

paralela, uma mostra de filmes históricos sobre o jazz. Arriscando um pouco

mais na programação, pela primeira vez o festival soou free ao apresentar um

expoente do estilo surgido em meados da década de 1960 quando

procedimentos atonais foram introduzidos no jazz, aqui representado pelo

pianista Cecil Taylor. Podemos dizer ainda que as noites foram temáticas,

embora tal afirmativa seja, aqui, apenas o embrião de uma ideia que ganharia

muito mais força na década seguinte.

A programação ficou assim:

Data Local Atrações

25.08.1989 – Sexta-feira Palace Nana Caymmi Count Basie Orchestra Joe Williams

26.08.1989 – Sábado Palace Aquilo Del Nisso John Zorn e Naked City Cecil Taylor Trio

27.08.1989 – Domingo Palace Alemão (Omir Stocker) The Horace Silver Sextet The Max Roach Quartet

28.08.1989 – Segunda-feira Palace Gilson Peranzzetta e Sebastião Tapajós George Benson

29.08.1989 – Terça-feira Palace

Victor Biglione John Lee Hooker & The Coast to Coast Blues Band John Mayall & The Bluesbreakers

30.08.1989 – Quarta-feira Palace Mauro Senise John Scofield Trio Branford Marsalis

Quem sugeriu a divisão temática foi Carlos Calado quando, num pequeno guia

sobre o festival, publicado em 22.08.1989 para a Folha de São Paulo, declarou

que a primeira noite seria a do swing, a segunda a da vanguarda, a terceira a

do bebop, a quarta a do fusion, a quinta a do blues e a última a do ecletismo.

Apresentava, dessa forma, a melhor estruturação dos programas dentro do

festival.

O swing abriu a temporada em São Paulo. Na verdade, Nana Caymmi foi a

primeira atração. A diva do vozeirão, que faz as pessoas chorar, foi

considerada como uma intérprete jazzística brasileira e teve o apoio da mídia

em sua apresentação para o Free Jazz. Mas, depois dela, o público pode

swingar ao som da Count Basie Orchestra. Embora sem o líder que morreu em

1984, mas neste ano dirigida pelo saxofonista, Frank Foster, a big band

agradou aos ouvidos mais saudosistas do Palace.

A história da orquestra de Basie é longa. Em 1989 já tinha mais de 50 anos de

estrada e junto com a orquestra de Duke Ellington formavam as mais populares

e importantes big bands da história do jazz. Fica comprovado pelo extenso

número de talentos que por ela passou: teve Lester Young no saxofone,

Freddie Green na guitarra e os vocais de Billie Holiday, Jimmy Rushing e Joe

Williams que, aliás, se apresentou logo após a orquestra, mas acompanhado

por ela. Para o show do Free Jazz trouxeram os vocais de Carmen Bradford

para acompanhar nas composições do então recém-lançado álbum do grupo,

“The Legend. The Legacy – The Count Basie Orchestra Directed by Frank

Foster”, que saiu pela Denon Records nos E.U.A.

Foster foi o segundo substituto de Basie na direção da orquestra. Entrou para o

grupo na década de 1950, ficou até 1964, quando saiu para formar o próprio

conjunto. Além de compor para a orquestra de Basie e depois para o seu

grupo, também fez arranjos para George Benson, Frank Sinatra, Tonny Bennet,

Diane Shuur, dentre outros. Voltou para dirigir o grupo em 1986, depois da

morte de Thad Jones, primeiro substituto de Basie.

A orquestra se manteve no palco para acompanhar seu ex-crooner, Joe

Williams, conhecido pelo seu vozeirão grave, cantor tanto de baladas

românticas quanto do mais puro swing, mas que deixava a todos boquiabertos

quando cantava o blues. Antes de trabalhar com Basie cantou na banda de

Coleman Hawkins, depois na de Lionel Hampton quando fez parceria com

Dinah Washington. Ficou com Basie de 1954 até 1961, quando resolveu seguir

carreira solo, apoiado pelo mestre. Foi eleito cinco vezes consecutivas, como o

melhor cantor de blues, pelos leitores da revista americana, Downbeat. Veio

para o festival tocar músicas de seu, na época, mais recente álbum, “In Good

Company”, lançado pela Verve Records.

A noite da vanguarda não teve o mesmo sucesso de público, mas rendeu boas

matérias para os jornais. O estilo de Cecil Taylor, por exemplo, até então era

vetado ao público brasileiro tanto em discos como em shows, devido ao caráter

anti-comercail de sua música. Sua presença no Free Jazz revelou, portanto,

um importante capítulo na história do jazz no Brasil. Quem abriu a noite foi a

banda brasileira Aquilo Del Nisso, para depois entrar John Zorn e sua banda

Naked City. Com arranjos criativos que uniam elementos como surf music e

bebop, a banda fez um show onde a música aparecia como uma colagem de

vários estilos. Chegaram a rasgar um country com intervenções pesadas e

pontuaram o espetáculo com temas de filmes. A forma incomum de arranjar

sua música, vez de Zorn uma figura emblemática neste festival. Alguns

acharam que ele queria apenas agradar aos ouvidos jovens da plateia, outros o

enxergaram como um músico de vanguarda.

Inventividade, no entanto, foi com Taylor, uma das grandes sensações

midiáticas. Tanto pelo seu ineditismo no país, como por seu caráter realmente

free. Gravou com Coltrane em 1958, e disse trazer em sua música elementos

da terra e da natureza. Apocalíptico em seu show, algumas pessoas saíram

antes do fim, talvez assustados com as cotoveladas e toques com punhos

fechados que o músico fazia em seu piano. Ele e seu quarteto começaram a

apresentação na penumbra, tocando instrumentos de percussão misturados

aos gritos de Cecil que lembravam as línguas afro-indígenas e a partir daí

apresentaram atonalismos e intensidade, fecharam de forma arrebatadora esta

noite de vanguarda.

Ainda assim, energia é a palavra que descreve a terceira noite de evento que

trouxe o sexteto de Horace Silver e o quarteto de Max Roach. Silver, junto com

Art Blakey, foi um dos introdutores do hard bop, estilo que resgata as raízes

bluesísticas do jazz. Tocou na primeira formação dos Jazz Messengers de

Blakey e depois juntou-se ao quinteto de Miles Davis. Seu currículo no jazz era

suficiente para demonstrar a importância de sua presença no festival. Max

Roach carregava uma importância similar: a partir do bebop foi um dos líderes

da revolução rítmica, quando então, instrumentos não melódicos ganharam o

direito de solar. Trabalhou não só com Miles Davis, como Thelonious Monk e o

próprio Cecil Taylor. Começou o show com um longo solo de bateria

demonstrando elegância e vigor na sua forma de tocar. No quarteto que trouxe,

todos improvisaram com igualdade de condições. Os músicos eram: Odean

Pope (sax-tenor), Cecil Bridgewater (trompete) e Tyrone Brown (baixo). Foi

uma noite para satisfazer os ouvintes de jazz. Luiz Antônio Giron chegou a

caracterizá-la como a melhor apresentação dentre os cinco anos de Free Jazz.

Na noite seguinte, de segunda-feira, era George Benson o grande esperado.

Ele surgiu nos meios jazzísticos e tocou com Miles Davis, Herbie Hancock e

Ron Carter. A partir da segunda metade da década de 1970, no entanto, se

enveredou para o universo do pop e não parou mais de produzir hits como

Breezin, On Broadway e This Mascarade. A crítica esperava que ele se

comportasse mais jazzisticamente neste festival de jazz, mas aqui o show foi

só sucesso, com lugar para todos os hits e poucos solos de guitarra, chamado

de “glacê pop” por Carlos Calado. Ao que tudo indica, o que salvou a noite foi a

apresentação dos brasileiros: Gilson Peranzzetta (piano) e Sebastião Tapajós

(violão), que juntos apresentaram ótimos arranjos para músicas brasileiras.

A terça-feira foi toda do blues. O sucesso de público foi tão estrondoso que

chegou a preocupar certos críticos, como Luís Antônio Giron, que associou a

plateia lotada à simplicidade e emotividade do blues. Não há como negar, o

público que superlotou o Palace, nesta noite, dançou e cantou como em

nenhum outro. John Lee Hooker, tido como o pai do blues, fez mistério.

Primeiro entrou sua banda, a Coast to Coast Blues Band, que tocou dois

números com a vocalista Vala Cupp, para depois entrar o bluesman de terno,

chapéu e óculos escuros. Foi do blues dor-de-cotovelo até o blues swingado

que fez todo mundo dançar. Depois dele, foi a vez de John Mayall. Ele fez

parte daquela leva de músicos brancos ingleses que tiraram o blues da

obscuridade, sendo um discípulo direto de bluseiros como Hooker. Neste Free

Jazz tocou gaita, teclados e guitarra, e manteve o clima quente depois do

mestre. Seu guitarrista, Coco Montoya com seus solos arrebatadores foram, no

entanto, a menina dos olhos da crítica.

A última noite de festival trouxe John Scofield Trio e Branford Marsalis, o

Marsalis do saxofone. Mais eclético do que seu irmão, além de tocar música

erudita, também trabalhou com Sting e fez parte dos Jazz Messengers de Art

Blakey em 1981, quando sua carreira decolou. Neste Free Jazz veio

acompanhado de Kenny Kirkland nos teclados, Bob Hurst no contrabaixo e Jeff

Watts na bateria. Fez um show sem concessões, onde preferiu tocar

composições próprias e longos improvisos ao invés de standards,

demonstrando dessa forma, seu estilo pessoal mais jazzístico do que pop.

Antes dele, Scofield optou por antigas canções rearranjadas por seu estilo

próprio e eletrificado.

A década de 1990

No ano de 1990, pela primeira vez, o festival perdeu o patrocínio e não

aconteceu. Em 1991, no entanto, retomou sua regularidade, patrocinado

apenas pela Souza Cruz embora, no ano seguinte, também pelo Banco

Nacional, ambos de forma prioritária. A partir daqui, perceberemos que cada

vez mais o festival expande as fronteiras do jazz, de forma a aumentar o seu

público e garantir o patrocínio tão necessário à sua perpetuação, ainda que

sem abrir mão do jazz mais estrito. Assim, se confirma como um dos mais

importantes festivais de jazz no mundo. A década de 1990 marca o retorno de

algumas estrelas consagradas nos Free Jazz anteriores e evidencia a

importância do festival para o estabelecimento de uma crítica polifônica e

divergente no país, onde há espaço para puristas e não puristas, para críticos

de música popular, de música erudita e até de música eletrônica.

1991

Vejamos, então, a programação de 1991:

Data Local Atrações

17.09.1991 – Terça-feira Palace

Orquestra de Música Brasileira Little Jimmy Scott & Quartet Dizzy Gillespie & United Nation Orchestra

18.09.1991 – Quarta-feira Palace Marinho Bonffa e Orquestra Christopher Hollyday Quartet Take Six

19.09.1991 – Quinta-feira Palace Natan Marques e Ricardo Leão Zawinul Syndicate Take Six

20.09.1991 – Sexta-feira Palace

Hard Bop & Café Jimmy Smith & Kenny Burrel Ahmad Jamal Wynton Marsalis Septet

21.09.1991 – Sábado Palace Arthur Maia Albert Collins & The Icebreakers Dr. John

22.09.1991 – Domingo Palace Ulisses Rocha Grover Washington Jr.

Nessa lista, o primeiro nome que nos chama a atenção é o de Dizzy Gillespie.

Imagina o que foi assistir a esse show. O trompetista norte-americano

conheceu quase todos os estilos de jazz, visto que nascido em 1917. Foi o

grande par de Charlie Parker e juntos se transformaram em figuras expoentes

do movimento bebop no jazz moderno. Dizzy era carismático e famoso pela

sua forma de cantar e tocar com as bochechas inchadas seu trompete recurvo,

essa talvez seja sua imagem mais conhecida. Na década de 1940, foi

responsável pelo movimento afro-cubano da música jazzística, ao incorporar

elementos africanos e latinos no jazz. Para sua apresentação no Free Jazz

trouxe diversos músicos que seguiam essa tendência. Foi o caso dos

saxofonistas, Paquito D’Rivera de Cuba e Mário Rivera da República

Dominicana; mas também do pianista do Panamá, Danilo Perez; do

percussionista porto riquenho, Giovanni Hidalgo (que nesta apresentação veio

substituindo a brasilidade de Airto Moreira); e do brasileiro, Cláudio Roditi no

trompete. Embora neste ano Dizzy estivesse já mais velho e sem tanto vigor,

caprichou nos solos econômicos e mostrou que na sua orquestra ninguém

brinca em serviço. Vieram promover o disco “Live at the Royal Festival Hall”, e

só receberam elogios da crítica. Afinal, quem ousaria ir contra um dos maiores

jazzistas do século XX?

Ainda assim, a Orquestra de Música Brasileira teve mais espaço nos jornais.

Com músicos abusando do poder performático em apresentações ao vivo,

apareceram fantasiados no palco do Palace e fizeram todo mundo dançar ao

som de maxixes, sambas, baiões e bossa-nova, ressaltando a música brasileira

e seus maiores compositores como Pixinguinha, Ary Barroso, Radamés

Gnatalli e Tom Jobim. Um prato cheio para o público brasileiro, que terminou

de pé, aplaudindo os 40 músicos da orquestra e seu maestro, Roberto Gnatalli.

Christopher Hollyday, na época com apenas 21 anos, veio mostrar como

estava a nova leva de jazzistas norte-americanos. Com os olhos no passado e

carregado de influência bebop, provou que o retorno aos padrões instrumentais

tradicionais também levam ao futuro. O jovem saxofonista mostrou que sabe

fazer música cheia de personalidade, como exige o jazz, apresentando

composições próprias e standards jazzísticos, sempre com uma tendência para

a estética do grito e um vigor vibrante. Apresentou-se com um trio também

jovem que contava com pianista Bradford Mihldou, o baixista John Webber e o

baterista Roland Savage. No bis, o grupo voltou ao palco para tocar um blues e

assim comprovar a proximidade entre o jazz e a música criada nos campos de

plantação norte-americanos. Para Carlos Calado, “o sax de Hollyday prova que

o novo nem sempre é o que está na moda” (CALADO, Carlos. “Som acústico

domina hoje”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 18/09/1991).

O grupo vocal Take Six, no entanto, foi o que agradou a gregos e troianos.

Superlotou o Palace e teve o carinho da crítica, que não poupou elogios ao

grupo que louva a Deus em suas apresentações. Não sei se por sorte ou azar,

a cantora Carmen McRae não pode vir ao festival, fato que garantiu mais uma

noite aos seis vocalistas e mais uma plateia cheia para o Free Jazz. Com um

repertório religioso de gospel e spiritual, o grupo comprovou que mesmo sem o

acompanhamento de instrumentos, pode reunir o beat do funk e do rap no

canto do amor divino e, assim, deixar a plateia em transe. Para os críticos, o

sucesso do grupo comprova que o retorno ao tradicional em tempos de

eletrificação, também é garantia de sucesso.

Neste ano também tivemos o Zawinul Syndicate. Liderado pelo tecladista

austríaco, Joe Zawinul, o grupo composto por Robert Thomas Jr. (percussão),

Randall Bersen (guitarra e vocal), Michael Baker (bateria) e Gerald Veasley

(baixo), mostrou um jazz fusion, com destaque para os sintetizadores de Joe. O

tecladista, que trabalhou com Miles Davis nos discos: “In a Silent Way” e

“Bitches Brew”, foi também idealizador de um dos grupos mais importantes de

electric jazz, o Weather Report que contou com o percussionista brasileiro,

Airto Moreira, com o baixista Jaco Pastorius e o saxofonista Wayne Shorter,

dentre outros. Representaram neste festival a linha fusion e as novas

possibilidades musicais a partir de instrumentos eletrônicos. Joe teve alguns

problemas com seus teclados no começo do show, mas logo comandou o

grupo por uma viajem sonora. Teve espaço até para os cinco músicos solarem

ao mesmo tempo, alcançando voos de completa liberdade. Ainda assim, como

instrumentos eletrônicos eram ainda difíceis de serem aceitos em um festival

de jazz no Brasil, receberam críticas que apontavam para a sonoridade que

não funcionava sem os aparelhos eletrônicos, fato que demonstrava uma

deficiência do grupo. Outros disseram que tais instrumentos deixavam sua

música sempre parecida umas com as outras. De todo modo, o que se viu foi

uma apresentação com um dos maiores representantes deste tipo de fusão.

Na sexta-feira, 20.09.1991, foi a noite da tradição. Quem abriu foram os

brasileiros do Hard Bop & Café com seu neo-bop. Depois subiram ao palco o

organista Jimmy Smith e o guitarrista Kenny Burrell, que ganharam o público

logo no primeiro número. Mesmo com seu órgão elétrico, Jimmy mostrou uma

sonoridade carregada de blues e swing. O auge foi quando tocaram hits como

Got My Mojo Working, onde o órgão ágil e a voz rouca de Smith causaram

arrepios na plateia. A dupla funcionou bem, e levou o clima dos pequenos

clubes de jazz para o Palace. Deixaram o palco quente para receber o quarteto

de Ahmad Jamal. E aí a espiritualidade foi forte, tanto que em uma manchete

para a Folha, foi publicado: “Jamal recebe caboclo Bud Powell no Rio”

(AUGUSTO, Sérgio. “Jamal recebe caboclo Bud Powell no Rio”. In: Folha de

São Paulo. Ilustrada. 20/09/1991). O fato de entrar vestido todo de branco e

fazer uma música simples, porém energética e elegante, onde há espaço para

a pausa e a percussão sempre marcante na sua maneira de tocar, trouxe

leveza e beleza para os ouvintes da noite e talvez esteja nesse ponto a

proximidade que certos críticos encontraram entre a música do grupo e a

espiritualidade. Bem entrosados e combinando elegância, técnica e improvisos

frenéticos, com diversas fragmentações rítmicas, o grupo conquistou todos os

presentes. Depois deles, foi a vez de Wynton Marsalis, que se apresentava

pela segunda vez no festival (a primeira foi em 1986). O septeto mergulhou nas

origens de New Orleans e abusou do efeito de sopros com surdinas, riffs e

contrapontos. Foram aplaudidíssimos, principalmente quando o guitarrista,

Kenny Burrell subiu ao palco para uma canja. Tocaram um blues e estenderam

a pequena jam por mais dois números. Esta foi a noite mais longa, porém mais

apreciada pelos críticos dos jornais. Uma noite para elevar os espíritos.

O blues apareceu na noite seguinte, e foi representado pelo brasileiro Arthur

Maia, pelo guitarrista norte-americano Albert Collins e pelo, também norte-

americano, o pianista Dr. John. Este último, vencedor de um Grammy pelo

disco lançado em 1989, “In a Sentimental Mood”, deu o que falar na mídia

devido a sua aparência exótica. Apareceu para a entrevista coletiva com uma

bengala cheia de penas e penduricalhos, um brinco enorme na orelha direita e

chapéu. Falou de sua aproximação com a religião Vodu e, assim, preparou o

público para sua apresentação que incluiu velas acesas sobre o piano e levou

os críticos a chamá-lo de curandeiro e a temer espíritos obsessores durante a

apresentação. Fez um show longo, de quase duas horas de apresentação,

onde ofereceu uma síntese de sua carreira. Albert Collins ficou prejudicado por

ter duas cordas quebradas durante o show, passou dois números trocando as

cordas e apelou para uma descida à plateia, com sua guitarra demoníaca, para

reconquistar a simpatia do público. Teve direito a bis, com canja do guitarrista

paulista, André Christovam.

A última noite do evento trouxe Grover Washington Jr., a promessa de garantir

o público mais jovem para o festival, mas que perdeu em popularidade para os

vocais do Take Six. O saxofonista norte-americano, embora já tivesse tocado

com Ron Carter e Herbie Hancock, acabou se enveredando para o groove funk

e foi, por isso, cotado como o mais popular deste ano. Ressaltou o jazz em

apenas duas músicas durante o show, In a Sentimental Mood e Blues For D.P.,

mas sua aproximação com o pop criou certo ranço na crítica.

Neste ano, o Free Jazz se ressentiu de atrações mais próximas da vanguarda

e se manteve mais conservador se comparado à edição de 1989. Ainda assim,

foi nesta edição que a mídia destacou com maior visibilidade a aproximação

entre o jazz e o caráter espiritual da música.

1992

No ano seguinte, 1992, algumas mudanças foram marcantes para o festival.

Teve uma noite dedicada exclusivamente à música brasileira, outra para

homenagens e ainda outra para apresentar novas estrelas do jazz atual.

Vejamos como ficou a programação do Free Jazz 1992:

Data Local Atrações

16.09.1992 – Quarta-feira Palace Lyle Mays Quartet Jack DeJohnette Bobby McFerrin & Voicestra

17.09.1992 – Quinta-feira Palace Paulo Moura Dianne Reeves The Duke Ellington Orchestra

18.09.1992 – Sexta-feira Palace Victor Biglione e Cássia Eller Robben Ford Albert King

19.09.1992 – Sábado Palace Pepeu Gomes Kenny G

20.09.1992 – Domingo Palace Pepeu Gomes Kenny G

21.09.1992 – Segunda-feira

Palace Marcus Roberts

Terence Blanchard Michel Camilo

22.09.1992 - Terça-feira Palace Noite brasileira

23.09.1992 - Quarta-feira Palace

Wagner Tiso Eddie Daniels & Gary Burton Herbie Hancock, Wyne Shorter, Ron Carter, Tonny Williams e Wallace Roney

Em seu encerramento, o festival rememorou os grandes nomes do jazz. A

abertura na noite das homenagens ficou por conta do pianista brasileiro,

Wagner Tiso, que aproveitou o evento para divulgar seu último disco na época,

“Profissão Músico”. As homenagens surgiram na sequência, com o show do

clarinetista Eddie Daniels e do vibrafonista Gary Burton que, juntos,

rememoraram Benny Goodman, o rei do swing. Para completar a equipe,

trouxeram Martin Richards na bateria, Mugrew Miller no piano e Marc Johnson

no baixo. Vieram também para divulgar o disco, “Benny Rides Again”, mas a

grande surpresa foi perceber o toque moderno que Eddie e Gary deram para

antigas canções do bandleader. O grupo conseguiu reelaborar as exatas

composições de Goodman, mas com novos arranjos, demonstrando, assim, a

contínua evolução do jazz. Encerraram a primeira homenagem corroborando o

que Burton disse em entrevista coletiva: “A natureza do jazz tem que ser a

criação” (HONÔR, Rosangela. “Celebração do passado encerra festival”. In: O

Estado de São Paulo. Caderno 2. 23/09/1992, p.1).

O Tributo a Miles Davis não podia ser feito por qualquer um e por isso mesmo

só vieram os grandes: Herbie Hancock no piano, Wayne Shorter no saxofone,

Ron Carter no contrabaixo, Tonny Williams na bateria e apresentaram Wallace

Roney no trompete. A celebração ao grande trompetista chegou a ser

considerada como a apresentação do melhor jazz do mundo, talvez por fincar

seus pés no passado, revitalizar a antiga atmosfera do jazz, seus grandes

mestres e a satisfação dos críticos mais saudosistas. Todos da banda eram

músicos consagrados e já haviam trabalhado com Miles, fato que deve ter

emocionado os músicos durante o show, visto que o grande mestre morrera no

ano anterior. Para a crítica, rememorar um Miles pre-fusion, foi a certeza de

uma homenagem necessária e providencial.

A noite brasileira não teve menos prestígio nos jornais. Com Toots Thielemans

no papel de mestre da cerimônia nacional, os modernos músicos brasileiros

deram o ar da graça no festival. O gaitista belga, por ter gravado neste ano o

disco “The Brasil Project”, onde convidou músicos brasileiros para gravarem

repertório nacional, fez um trabalho parecido no palco do Free Jazz ao subir

com a nata da MPB para uma noite dedicada à nossa produção musical.

Recebeu no Palace: Gilberto Gil, Edu Lobo, Chico Buarque, Ivan Lins, Eliane

Elias e Oscar Castro Neves. Marina Lima também deveria participar e, embora

o festival tenha publicado que ela estava doente, nos bastidores foi dito que

sua ausência ocorreu devido a uma briga que teve com Toots. Fofoca à parte,

foi a noite com menos venda de ingressos antecipados, devido a divulgação

tardia dos músicos convidados. O show foi uma grande confraternização entre

amigos, com Thielemans feliz, brincalhão e carinhoso com seus convidados.

Chico chegou de muletas devido a um acidente no jogo de futebol, mas

emocionou a plateia ao cantar, junto com Edu Lobo, Beatriz. Oscar Castro

Neves e o mestre de cerimônia fizeram uma ótima versão para Manhã de

Carnaval e Gilberto Gil exibiu seu swing inigualável quando, em duo com

Chico, apresentaram Baticum. No final, todos juntos, apresentaram a música

de Thielemans, Bluesette. A alegria do encontro fez todo mundo sair com

sorriso no rosto.

Na segunda feira, 21/09/1992, foi a vez de estrear a noite dedicada à nova

geração do jazz. O festival apresentou para o público brasileiro o pianista e

compositor dominicano, Michel Camilo; o trompetista, compositor, arranjador e

bandleader norte–americano, Terence Blanchard; e o pianista, também norte-

americano, Marcus Roberts, que abriu esta sexta noite de evento. O pianista

cego, que tocou por muitos anos com Wynton Marsalis, abriu a noite

acompanhado somente de seu piano e apresentou o som seminal de New

Orleans com seu stride piano (estilo de piano jazzístico que se desenvolveu a

partir do ragtime). Iniciou com a música imortalizada por Charlie Parker,

Cherokee, tocou composições próprias e fechou com uma homenagem ao

grande representante do stride, James P. Johnson. Revelou-se um excelente

improvisador e compositor, deixando o público com sede de jazz. Aí veio o

quinteto liderado por Blanchard, que passou pelo bebop e pelas baladas

jazzísticas de Miles Davis dos anos de 1950, dando continuidade à história do

jazz. Para a surpresa do público, subiu ao palco Oscar Castro Neves e juntos

fizeram uma homenagem a Noel Rosa, ao tocarem uma de suas composições,

Feitiço da Vila. Michel Camilo trio veio depois como representante do moderno

latin jazz, que nos anos de 1940 foi representado pela orquestra de Dizzy

Gillespie. Um virtuose do piano que transita com habilidade tanto pela música

clássica, quanto pelo jazz, quanto pela música latina. Trouxe Cliff Almond para

comandar a bateria e Edward Mann no baixo. O trio mostrou uma versão

moderna para a música centro-americana, como parte de uma nova revolução

estética para esta música. Embora com um Palace vazio, deixaram os poucos

ouvinte boquiabertos. A crítica elegeu esta noite como a grande surpresa do

festival, mas a produtora do evento, Monique Gardenberg, achou muito

arriscado dar continuidade à noite do new generation, a não ser que ela fosse

“apadrinhada” por algum músico conhecido, de forma a garantir sala cheia.

Kenny G, ao contrário, deixou o Palace cheio, embora, pouco cotado pela

crítica. O saxofonista norte-americano não se aproxima tanto do jazz, faz uma

música mais próxima do rhythm’n’blues e prefere as baladas românticas aos

criativos improvisos. Ainda assim, teve direito a duas noites no Free Jazz, com

a abertura de Pepeu Gomes que, na opinião do crítico do Estadão, Lauro

Lisboa Garcia, fez um show superior ao de Kenny G, principalmente por suas

fusões criativas, como “forrock” e sua técnica apurada.

No mais, os grandes encontros deram o tom neste Free Jazz. Além da canja, já

citada, de Oscar Castro Neves no show de Terence Blanchard, muitas outras

foram estimuladas ou até inusitadas. No primeiro dia tivemos muitas delas, a

começar pelo encontro do tecladista Lyle Mays com o baterista Jack

DeJohnette e Bobby McFerrin. Mays, que arrancou poucos elogios da crítica

quando abriu a noite com seu quarteto, tocou até samba, além de temas de

Egberto Gismonti e Milton Nascimento, mas quando participou da jam, com

McFerrin e DeJohnette, obteve melhor desempenho. Já o baterista, parceiro de

Keith Jarret por muitos anos e de Miles Davis na gravação de “Bitches Brew”,

não se prolongou muito, mas não passou em branco com seus toques

marcantes. Ainda assim, a menina dos olhos foi, mais uma vez, Bobby

McFerrin e sua inusitada forma de fazer música. Se destacou tanto na jam,

quanto em sua apresentação solo e acompanhado pela voicestra, uma

orquestra de vozes. O vocalista optou por um repertório novo, com músicas de

seu então mais recente disco, “Medicine Music”. A orquestra que o

acompanhou deu um brilho a mais para a apresentação, mas quando Dianne

Reeves apareceu para uma canja, todos se surpreenderam. Juntos,

terminaram o show reverenciando o Brasil ao cantarem Samba de Uma Nota

Só.

O show de Dianne, no entanto, aconteceu efetivamente, no dia seguinte. Sua

participação na noite de abertura, apenas aumentou a fome dos que

desejavam saborear a música dessa revelação apresentada pelo Free Jazz,

que já chegava elogiadíssima do Festival de Jazz de Monterey, onde cantou

com a orquestra do cubano Tito Puente. A contralto mostrou influências

africanas, passou pelo jazz tradicional e cantou onomatopaicas frases

melódicas. Reforçou o clima de encontros deste Free Jazz e voltou ao palco

para cantar com a Duke Ellington Orchestra, duas canções: I Got It Bad And

That Ain’t Good, do próprio Ellington e Yesterdays, um standard de Jerome

Kern. Foi considerada a grande musa do festival, fama que ganhou caráter

irônico na crítica mais purista, que preferiu ressaltar a apresentação de Paulo

Moura, responsável pela abertura deste segundo dia de festival, que causou

frisson na Alemanha e na Suíça quando, naquele ano, se apresentou nos

festivais de jazz em Munique e Montreux.

O show abrasileirado do saxofonista e clarinetista passou pelas músicas

nordestinas e foi até Tom Jobim, priorizando o respertório nacional com sua

riqueza de estilos. Vejam como o crítico do Estadão, J.J., relevou sua

importância diante da estrondosa presença internacional: “O saxofonista Paulo

Moura, que abriu a noite com seu quarteto, mostrou que o Brasil pode passar

muito bem sem os standards da música popular norte-americana. Ao retomar

temas de Dorival Caymmi e Tom Jobim, Moura mostrou mais uma vez, que o

Brasil tem seus próprios (e ótimos) standards” (J.J.. “Dianne Reeves é a musa

do festival”. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 19/09/1992, p.2). Ainda

assim, a brasilidade parece ter tomado conta daquela noite. A Duke Ellington

Orchestra, embora tenha rememorado antigas canções de seu original

bandleader, também apresentou Jorge Ben, numa animada versão para Mas

que Nada.

A noite do blues teve menos repercussão neste ano. Abriu com a única

presença nacional ainda inédita no festival, a cantora Cássia Eller, que veio

acompanhada do guitarrista Victor Biglione. O canto visceral de Cássia foi,

possivelmente, o motivo de colocá-la na noite do blues, que também trouxe

Albert King, um dos maiores guitarristas do estilo, ao lado de B.B. King, John

Lee Hooker, Albert Collins e Freddie King... O músico nasceu em Indianola,

Mississipi, e chegou a trabalhar em plantações de algodão, para ajudar a

família. Veio para a coletiva com camisa florida e cachimbo na mão, mas sem

muita paciência para conversa com os jornalistas. É possível que pela

indisposição do músico com os respórteres, seu show tenha sido classificado

como cansativo, como colocou Lauro Lisboa Garcia, do Estadão, embora

fazendo ressalva aos clássicos do blues cantados durante o show. De toda

forma, o músico já devia estar cansado fisicamente, visto que morreu em

dezembro deste mesmo ano, aos 69 anos. Mais elogiado do que King foi o

show de Robben Ford. Com um power trio formado por Ford na guitarra,

Roscoe Beck no baixo e Tom Brechtlein na bateria, tocaram músicas do disco

“Robben Ford & The Blues Line”, mas também clássicos como Ain’t got Nothing

but the Blues. O grupo fez um show animado, onde conseguiram transmitir toda

a vivacidade do blues.

1993

A noite das homenagens rendeu bons frutos e continuou neste 8º Free Jazz,

com uma noite homenageando John Coltrane e outra, Tom Jobim. Dessa

forma, voltou as atenções do público e da mídia para as origens do estilo e

seus grandes mestres, fato que deixou a crítica em êxtase. Ainda assim, teve

espaço para o rock’n’roll, o rhythm & blues, passando pelo experimentalismo

de Ornette Coleman, pelo cool de Gerry Mulligan e pelo retorno eletrônico de

Pat Metheny. A programação era:

Data Local Atrações

23.09.1993 – Quinta-feira Palace Ed Motta Clarence “Gatemouth” Brown com

Gate’s Express Bo Diddley e Debby Wastings Band

24.09.1993 – Sexta-feira Palace Betty Carter Duo Assad com Badi Assad Gerry Mulligan Tentet

25.09.1993 – Sábado Palace Jaques Morelenbaum Delfeayo Marsalis Pat Metheny

26.09.1993 – Domingo Palace Joe Henderson Quartet McCoy Tyner Trio Elvin Jones Jazz Machine

27.09.1993 – Segunda-feira Palace

Leo Gandelman e Carlinhos Brown Tributo a Tom Jobim

28.09.1993 – Terça-feira Palace World Saxophone Quartet Ornette Coleman Hermeto Pascoal com Duofel

29.09.1993 - Quarta-feira Palace Chuck Berry Little Richard

A venda de ingressos para os dias, 25 (sábado) e 29.09 (quarta-feira), onde se

apresentaram, respectivamente, Pat Metheny e Chuck Berry & Little Richards,

se esgotaram tão rapidamente que o festival produziu duas sessões extras, a

primeira no Palace, no mesmo dia (sábado), só que mais cedo, às 18h00 e a

segunda no Estádio do Pacaembu, no dia 30.09 (quinta-feira).

A primeira noite seria aquela dedicada ao blues, que neste ano estava mais

para a soul music. Começou com Ed Mota, representante da soul brasileira,

para depois entrar o multi-instrumentista, Clarence Brown, com a banda Gate’s

Express. O bluseiro texano, dizem, é movido a Jack Daniels e, além de

transitar pelo blues, também avança para o rhythm’n’blues. Por isso podemos

dizer que a base swingada deu o tom para as duas primeiras atrações. Mas o

blues apareceu de forma mais marcante com Bo Diddley, que se apresentou

com a Debby Hasting Band, para fechar a abertura deste Free Jazz. O

guitarrista fez muito sucesso em 1955, quando gravou um single com duas

músicas: Bo Diddley e I’m a Man. Esta segunda, hit que o consagrou na mídia

norte-americana. Ele também foi um dos fundadores do rock’n’roll, assim como

Chuck Berry, que também veio para este Free Jazz, se apresentar na última

noite do festival.

E foi neste clima dos primórdios do rock, que se encerrou o Free Jazz. Chuck

Berry, primeira atração da noite, foi anunciado como o grande inspirador de

todos os guitarristas do rock. E não era para menos, também em 1955, gravou

um grande sucesso, Maybellene, música que anunciava o novo estilo, ao

apresentar uma combinação do blues com a música country norte-americana.

Pela gravadora Chess, inaugurou o modelo de uma banda de rock. Veio para o

festival apresentar grandes sucessos como: Sweet Little Sixteen, Johnny B.

Good e Roll Over Beethoven. Depois dele, foi a vez de Little Richard, também

um desbravador do rock, principalmente por algumas atitudes irreverentes,

como a de rasgar as roupas no palco, ou pular em cima do piano. Em meados

da década de 1950 fez diversas canções que estouraram nas rádios, como

Tutti Frutti, Lucille e Long Tall Sally. Vendeu milhões de discos, virou

celebridade nacional e influenciou Elvis Presley, Beatles e Rolling Stones.

Misturou boogie-woogie, rhythm’n’blues e música gospel, tornando-se um

precursor da soul music contemporânea. No fim da década, dedicou-se,

também, à religião. Fez um show animadíssimo para o Free Jazz e, além de

tocar seus grandes sucessos, também homenageou os Stones ao apresentar

uma versão para a música, It’s Only Rock’n’Roll.

E se a Bossa Nova foi rejeitada pelos críticos brasileiros quando surgiu, neste

festival ninguém mais se lembrava disso. A homenagem a Tom Jobim teve a

maior plateia, neste ano, e a bossa se mostrou uma influenciadora do jazz ao

contar com o pianista Herbie Hancock na coordenação do evento, Ron Carter

no baixo e Harvey Manson na bateria. O trio formou a base para a

homenagem, que também contou com a assessoria do violonista Oscar Castro

Neves (convidado por Hancock), com o percussionista Alex Acuña e com a

participação especial do pianista cubano, Gonzalo Rubalcaba, do cantor Jon

Hendricks (responsável pela letra em inglês da música Chega de Saudade), da

pianista e cantora Shirley Horn, do trompetista Freddie Hubbard, do saxofonista

Joe Henderson, da cantora Gal Costa e do próprio Tom Jobim. Como disse

Ruy Castro em matéria para a Folha em 29.09.1993, o que se ouviu nesta noite

foi amor. Amor que pode ser percebido já no medley de abertura: Inútil

Paisagem, Triste e Esperança Perdida. Depois, com Rubalcaba, tivemos uma

emocionante versão para Olha, Maria e Água de Beber. Joe Henderson se

destacou em O Grande Amor e Chovendo na Roseira e o cantor Jon Hendricks

trouxe o bom humor quando tentou cantar em português Desafinado e Chega

de Saudade e foi ajudado pelo coro da plateia. Shirley Horn veio para cantar

Corcovado, Garota de Ipanema e O Amor em Paz, mas foi Gal Costa quem

conquistou a plateia quando, em duo com Herbie Hancock, cantou A

Felicidade, emendou em Se Todos Fossem Iguais a Você e foi responsável

pelo clímax da noite, ao chamar Tom Jobim para o palco. O grande

homenageado começou com Luiza, depois tocou Dindi, Caminhos Cruzados e

Wave. No final, todos juntos tocaram, mais uma vez, Garota de Ipanema.

Depois das quase duas horas e meia de show, a plateia deixou o Palace com

ares de quem vivenciava um momento histórico no festival. A crítica só não

entendeu bem, o porquê de a produção convidar Léo Gandelman e Carlinhos

Brown para o show de abertura, que carregaram na fusão baiana de reggae e

samba e trouxeram as levadas da axé music para a abertura da homenagem.

Outra homenagem bastante procedente para o festival foi a que relembrou

John Coltrane. A noite começou com Joe Henderson, em um show que

marcava sua estreia no país. O saxofonista que recebeu, naquele ano, o título

de melhor músico de jazz pela Downbeat, veio com um quarteto e mostrou que

em seu show os solos dos músicos são sempre bem vindos, tanto que em cada

música do repertório teve espaço para o improviso de cada instrumento.

Tocaram, dentre outras, Take the ‘A’ Train, de Ellington, Swing Springs de

Miles e Ask me Now de Monk. Embora não tenham feito uma homenagem

direta à Coltrane, é inegável a influência do mestre sobre Henderson, que

começa por tocarem o mesmo instrumento. Além dele, o festival trouxe, nesta

noite, dois outros músicos que tocaram, na década de 1960, no quarteto de

Coltrane: o pianista McCoy Tyner e o baterista, Elvin Jones. Para o show no

Brasil, cada um trouxe sua própria banda. Tyner não gosta da ideia de tributos,

por achá-la muito nostálgica, mas garantiu que sua presença já era uma forma

de homenagem. Elvin Jones foi menos aversivo à comemoração e fez um show

memorável. A noite de domingo, que precedeu a homenagem à Tom Jobim, foi

a mais procurada pelos amantes do jazz e deixou a crítica mais purista com

sorriso no rosto.

O título de grande dama, no entanto, foi para Betty Carter com seu estilo

bebop. Cantou 12 músicas, com destaque para You Go to My Head, numa

versão lentíssima e Love Notes, onde seu estilo pessoal ficou bem aparente. A

grande dama do jazz não parou no palco, moveu-se o tempo todo, fazendo do

seu corpo, um reflexo do que cantava. Usou a improvisação de sua voz para

fazer dos standards uma criação própria, com volume e intensidade. Veio

acompanhada de um trio: piano, baixo e bateria, onde o destaque ficou por

conta de Cyrus Chestnut, o pianista. Fizeram um show tão emocionante que,

mesmo sem casa lotada, ficou entre os melhores cotados pela crítica deste

ano. Antes dela, quem se apresentou foi o duo Assad, formado pelos irmãos

Sérgio e Odair, junto com a irmã e cantora, Badi Assad. Os violonistas

brasileiros radicados na Bélgica, já apresentavam uma carreira expressiva na

Europa e vieram para o festival mostrar que, embora de formação clássica,

também trilhavam os caminhos da música popular. Tocaram Piazzola, Gismonti

e Gershwin, com virtuosismo e técnica apurada. Para fechar a segunda noite

do festival, Gerry Mulligan. O saxofonista veio acompanhado por dez músicos e

apresentaram canções do disco “Rebirth of the Cool”, lançado no ano anterior.

O disco reuniu todos os músicos vivos que participaram das gravações de um

clássico de Miles Davis, “Birth of the Cool”, com exceção de Lee Konitz que

estava em turnê, mas veio para se apresentar com Mulligan no Free Jazz. No

show, o saxofonista mostrou a competência de quem participou do movimento

do cool jazz.

Neste ano, o festival ainda trouxe Pat Metheny com seus nove músicos, além

dos instrumentos eletrônicos. Para o crítico do Estadão, Mauro Dias, não foram

exatamente os processadores de voz e sintetizadores que atrapalharam o

show do guitarrista. A música era correta, mas a simplificação e repetição das

notas o aproximavam mais de uma estética pop, do que jazzística. Foi igualado

a Kenny G e George Benson em anos anteriores, embora tenha feito uma

apresentação extra, por fazer esgotar os ingressos em menos de 24 horas,

após iniciarem as vendas. Ainda assim, foi com Delfeayo Marsalis que a crítica

se deleitou. O trombonista, irmão de Wynton e Branford, tocou antes de

Metheny, e corroborou o respeito dedicado aos músicos da família. Mostrou

com maestria a modernidade de estilos antigos em músicas originais de seu

disco de estreia, “Pontius Pilate’s Decision”. Veio acompanhado dos jovens

músicos, John Brown no baixo, Victor Atkins no piano e Martin Butler na

bateria. Juntos, superaram as expectativas dos críticos. Quem abriu a noite foi

o brasileiro Jaques Morelenbaum com seu Cello Samba Trio. Mostraram uma

interessante colisão entre popular e erudito.

A experimentação apareceu no penúltimo dia do festival com o World

Saxophone Quartet, Ornette Coleman e Hermeto Pascoal com Duofel. Os

quatro saxofonistas, James Spaulding, David Murray, Oliver Lake e Hamiet

Bluiett, eram estreantes no país e abriram a noite com a mistura que fazem

com percussão africana e músicas de igreja, sem a utilização de sessão

rítmica. Ornette Coleman foi um dos fundadores do movimento free jazz.

Querido pela crítica, o saxofonista fez um show inspirado, neste Free Jazz.

Hermeto Pascoal veio acompanhado pelo Duofel, dupla de violonistas paulista

e fizeram um show inovador como cabe a Hermeto.

1994

No ano de 1994, o Free Jazz Festival abre de vez o espaço que vinha

oferecendo para outros estilos musicais e assume a fusion como uma vertente

jazzística. O festival já tentava oferecer as noites temáticas, quer dedicada ao

blues, ou às homenagens, mas foi neste ano que efetivamente batizou cada

uma delas. Vejam como ficou com Carlos Calado: “Além da já tradicional noite

do blues, o programa amarra as restantes com os títulos de “Acoustic &Vocal”,

“Crossover”, “Mainstream”, “Rhythm &Soul” e “Acid Jazz”. Melhor para o

público, que pode escolher seus estilos favoritos.” (CALADO, Carlos. “Free

Jazz promete sua edição mais polêmica”. In: Folha de São Paulo. Revista da

Folha. 16/10/1994, p.60). Esse abrir para várias correntes foi a grande

discussão crítica, neste ano, principalmente no que se refere à noite do “acid

jazz”.

A programação ficou assim:

Data Local Atrações

22.10.1994 – Sábado Palace Cristovão Bastos Abbey Lincoln Cassandra Wilson

23.10.1994 – Domingo Palace Etta James & The Roots Band B.B. King

24.10.1994 – Segunda-feira Palace

Guinga Marcus Miller & Friends com Al Jarreau Joe Sample

25.10.1994 – Terça-feira Palace Joshua Redman Quartet Jackie Mclean Sextet J.J. Johnson Quintet

26.10.1994 – Quarta-feira Palace Guru’s Jazzmatazz Us3 Digable Planets

27.10.1994 – Quinta-feira Palace Lenine e Suzano James Brown

A primeira noite, denominada, “Acoustic & Vocal”, traria Mel Tormé como

atração principal, porém, dois dias antes do início deste Free Jazz, foi

divulgado seu cancelamento devido a problemas de saúde. A produção do

festival foi em busca de uma alternativa para substituí-lo e como Carlos Calado,

crítico da Folha, havia acompanhado o Montreux Jazz Festival, na Suíça,

recorreram a ele. Por sugestão do jornalista, convidaram uma das grandes

revelações no festival suíço, a cantora norte-americana, Cassandra Wilson.

Embora em sua primeira apresentação no país, não era exatamente uma

estreante, já havia gravado oito discos pelo selo de jazz alemão, JMT, mas foi

quando passou para a influente Blue Note, que atingiu o grande público e a

liderança nas paradas de jazz das rádios norte-americanas, com o lançamento

de seu nono disco, “Light ‘til Dawn”.

Além de canções próprias, a cantora também recriou clássicos do blues de

Robert Johnson, do folk de Joni Mitchell e Van Morrison, mas também passou

pelo rhythm & blues dos Stylistics. Veio para o Brasil acompanhada de Brandon

Ross na guitarra, Lonnie Plaxico no baixo, Charles Burnham no violino e

bandolim, Lance Carter na bateria e Jeff Haynes na percussão. Durante o

show, apresentaram um repertório mais voltado para o blues e o pop, mas

exibiram doses de jazz em improvisações e recriações de canções do mais

recente álbum da cantora. Nem mesmo o problema ocorrido no amplificador do

guitarrista, Ross, impediu a estrela de brilhar na sua estreia. Bom para o

público que se sentiu menos prejudicado pela ausência de Tormé.

Quem esquentou o palco do Palace para Cassandra foi a cantora, compositora

e atriz, Abbey Lincoln. Famosa também por participar de movimentos em

defesa dos direitos humanos e raciais na década de 1960, veio para o festival

mostrar sua sensibilidade para o canto. Influenciada por Billie Holiday, chegou

a ser comparada a musa, sem que parecesse uma cópia e, embora com uma

pequena extensão vocal, soube usar sua dramaticidade para comover o

público. O mesmo não aconteceu com Cristóvão Bastos, responsável pelo

primeiro show deste Free Jazz. O pianista brasileiro apresentou ritmos do

Brasil como samba, baião e choro, mas pareceu um tanto distante do público,

principalmente quando tocou Lamento, de Pixinguinha, em um recital solo de

piano. Para Carlos Calado, a presença de outro instrumentista poderia ter

deixado o show mais animado.

Ainda assim, quem procurou animação não faltou à noite do blues que trouxe,

além de Etta James, um dos maiores representantes do estilo, B.B. King. A

intensa procura por ingressos para esta noite levou o festival a produzir mais

uma sessão extra para os bluesmaníacos. Aconteceu no mesmo dia, só que

mais cedo, as 18h00, no Velódromo da USP. É possível que o cansaço, ou

talvez o peso, tenham levado a cantora Etta James a cantar sentada quase o

tempo inteiro do show. E, embora alguns críticos esperassem vê-la mais

jazzística, devido a seu mais recente trabalho, “Mystery Lady”, em que James

homenageia a grande dama do jazz, Billie Holiday, ela veio mais bluseira e

debochada do que nunca. Também passou pelo rhythm & blues e por baladas

como I’d Rather Go Blind e A Love is Forever. Abriu a noite que seria do

grande rei do blues, B.B. King.

Quando ele subiu ao palco, toda a plateia se levantou para aplaudir de pé. Não

era para menos, afinal, quem recebe o título de rei do blues, não podia ser

recebido diferente nesta noite que homenageava o estilo. Carlos Calado

chegou a comparar seu show a um culto religioso, que durou cerca de 90

minutos. A voz grave e marcante e o som inconfundível da guitarra fez com que

todos se emocionassem logo nos primeiros minutos do show. E continuou

quando o rei tocou clássicos do blues como Caledonia, Rock me Baby, I’m a

Bluesman e Thrill is Gone. No fim da apresentação ainda distribuiu autógrafos

e lembrancinhas para os fãs que se espremiam na beira do palco para tentar

uma aproximação com o ídolo.

O jazz mesmo, só apareceu na terceira noite, como colocou Luís Antônio

Giron, em matéria para Folha. Não com o brasileiro Guinga que, na opinião do

crítico, tropeçou em suas harmonias complexas. Mas, sim no show de Marcus

Miller, que surpreendeu a todos. O baixista, também discípulo de Miles Davis,

fez uma grande homenagem ao mestre, passando por todos os estilos

desenvolvidos por ele e apresentou, ao final, uma fusion de qualidade. Dessa

forma, demonstrou que mesmo obscurecido pela mídia, o estilo iniciado por

Miles, pode ser bem desenvolvido. Neste festival, Miller foi o responsável por

reabilitar o fusion, tão massacrado pela crítica. O pianista Joe Sample, que

começou sua carreira tocando hard bop e na era do fusion passou para o

instrumento eletrônico, completou o time desta noite, apresentando um fusion

onde a liberdade da improvisação jazzística se sobrepunha aos outros

elementos musicais. Mais à frente perceberemos a diferença entre este fusion

e aquele intitulado acid jazz.

A turma do mainstream veio para satisfazer os ouvidos mais tradicionais, com a

noite mais longa do festival com pouco mais de quatro horas de duração. Não

sei se essa informação é tão relevante, pois há tempos tanto brancos, quanto

negros, mestiços, amarelos e todas as raças fazem jazz, mas dos dezesseis

músicos que subiram ao palco, apenas dois eram brancos. Quem abriu a noite

foi o mais novo dentre as atrações principais. Joshua Redman, de apenas 25

anos, veio para mostrar que nem só por fusion se interessavam os mais novos

talentos jazzísticos. O jovem saxofonista, de fôlego invejável e sopro frenético,

se mostrou adepto do hard bop, mas ao apresentar cinco números de sua

autoria demonstrou conhecimento de vários estilos jazzísticos, inclusive de

Bossa Nova, com a música, Alone in the Morning. Depois dele, em trajes norte-

africanos, subiu ao palco um veterano do saxofone. Jackie Mclean, na época

com 62 anos, provou que vigor para fazer música não é coisa só para jovens.

No melhor do estilo hard bop acrescido da malemolência latina, fez o show

mais longo da noite. Tocou clássicos como Round Midnight, mas precisou de

22 minutos para desenvolver Rhythm of the Earth. Para fechar a noite, J.J.

Johnson, o trombonista que se consagrou por adaptar a sonoridade de seu

instrumento para o estilo bebop, com toques rápidos e desenvoltos, subiu ao

palco do Palace fazendo piada: “Sei que vocês têm que trabalhar amanhã de

manhã, mas nós temos que trabalhar agora.” (AUGUSTO, Sérgio. “Mainstream

mostra sua força”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 26/10/1994). Fez um show

com 75 minutos de duração onde desenvolveu oito temas, dentre eles: Kenya e

Why Indianopolis, Why Not Indianopolis, esta última em homenagem a sua

cidade natal.

A noite do “Acid Jazz” foi, entretanto, a grande polêmica deste ano. Veio para

apresentar ao público uma nova vertente, que combina elementos do hip-hop,

do funk, da sul music e também do jazz. Quem abriu foi o rapper nova-iorquino,

Guru, que trouxe em sua banda, Jazzmatazz, o trompetista Donald Byrd e o

saxofonista Derrick Davis. Neste show, o problema relatado pela crítica foi a

falta de espaço concedida aos músicos jazzistas. Os instrumentos de sopro

não exerceram mais do que uma função decorativa na banda, que preferiu

ressaltar os samples e a levada hip hop. A segunda atração foi a banda Us3.

Referência no gênero, vendeu mais de dois milhões de cópias com seu álbum

de estreia. Começou como um projeto de estúdio e seus músicos nunca

tiveram intensão de se apresentar ao vivo, mas depois do sucesso de vendas,

a gravadora achou necessário, de forma a dar projeção ao grupo e estimular as

vendas. Embora com o direito de samplear qualquer música do rico catálogo da

Blue Note, vieram para o Free Jazz fazer uma apresentação completamente

oposta a de Guru. Valorizaram a música ao vivo, uma vez que toda a

sonoridade do show foi feita com instrumentos de verdade. Não deram espaço

para músicas pré-gravadas e dispensaram DJs. O baterista Cherryl Alleyen

exibiu solos notáveis entre os vocais manifestos pelo rapper Kobie Powell, mas

não só ele, tanto o órgão Hammond, quanto o contrabaixo tiveram

oportunidades para solar. Dessa maneira, exibiram uma fusão mais

enriquecedora, por valorizar todos os estilos propostos pela banda. Digable

Planets, responsável pelo último show da noite, ficou no meio do caminho entre

as duas primeiras atrações, isso porque, além de utilizar uma sessão rítmica ao

vivo, não dispensou os samples, responsáveis por incluir uma sessão de

metais bebop ao show. Esta penúltima noite gerou polêmicas por apresentar

um jazz diluído e subutilizado, mas, de acordo com Monique Gardemberg,

produtora do evento, ela também poderia contribuir para despertar o interesse

dos jovens pelo jazz mais tradicional.

Ainda assim, a noite mais massacrada pela crítica deste ano foi a última, que

trazia como maior atração, James Brown. Isso porque o show se enveredou

mais para o espetáculo do que para a musicalidade. Vestidos de forma

extravagante, músicos e bailarinos se exibiam quer com roupas sensuais, quer

com brincadeiras no palco, que ficou pequeno para os 30 artistas presentes.

Na tentativa de recriar o ambiente dos anos de 1960, quando Brown estava no

auge de sua carreira, o show foi considerado como um kitsch, por Luis Antônio

Giron. O pai do rap tocou todos os seus hits históricos e satisfez os fãs

incondicionais, mas ficou perceptível a perda de energia de um dos músicos

mais importantes do século, que neste ano já tinha passado dos 60. Ainda

assim, foi o responsável por mais um show extra oferecido pelo festival, no

Velódromo da USP, no dia seguinte.

1995

Em seu décimo aniversário, o Free Jazz expande e chega até Porto Alegre.

Aumentou sua área de atuação, mas teve seu jazz reduzido a 1/3 do programa.

A produtora Mônica Garderberg explicou: “O jazz está passando por uma fase

de transição, após a morte de seus grandes ídolos. Por isso, como outros

festivais pelo mundo o Free Jazz tem que se tornar mais híbrido para poder

manter o nível de sucesso que pretendemos” (CALADO, Carlos. “Festival

procura novo formato para próximo ano”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.

23/10/1995, p.5). Carlos Calado, que no ano anterior parecia tranquilo com a

maior abertura que o festival dava para outros estilos musicais, pareceu um

tanto preocupado com os caminhos futuros a partir deste Free Jazz: “com uma

dose de jazz muito menor do que em edições anteriores, o festival completou

10 anos numa encruzilhada: se não redefinir suas salas de espetáculo e

programação, corre o risco de se descaracterizar” (CALADO, Carlos. “Show de

Stevie Wonder provoca lágrimas”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.

23/10/1995, p.5). O pouco jazz deste ano, também foi notícia no Estadão. Na

sua crítica de encerramento do festival, Mauro Dias, apontou: “Na festa – de

pouco jazz – do décimo aniversário do Free Jazz Festival, as grandes

surpresas agradáveis acabaram sendo uma orquestra de mambo, com mais de

50 anos de estrada e mais de 100 discos gravados, e sua ex-crooner.” (DIAS,

Mauro. “Mambo foi melhor surpresa em festival com pouco jazz”. In: O Estado

de São Paulo. Caderno de Cultura. 23/10/1995).

O programa para os shows no Palace ficou assim:

Data Local Atrações

17.10.1995 – Terça-feira Palace

Brasil All Stars Tito Puente e sua Latin Jazz Orchestra Célia Cruz e Caetano Veloso

18.10.1995 – Quarta-feira Palace Roy Hargrove Quintet Rachelle Ferrell & George Duke All Green

19.10.1995 – Quinta-feira Palace

Vernon Reid & Masque The Brand New Heavies Buckshot LeFonque & Branford Marsalis

20.10.1995 – Sexta-feira Palace Leroy Jones Rebirth Brass Band Harry Connick Jr. and his Funk Band

21.10.1995 – Sábado Palace Sounds of Blackness Stevie Wonder

22.10.1995 – Domingo Ibirapuera Gilberto Gil Stevie Wonder

Talvez a melhor mudança incorporada ao festival, neste ano, se encontre logo

na abertura, com a estreia da noite latina. Quem abriu foram os brasileiros da

big band Brasil All Star, formada especialmente para o Free Jazz, que contava

com vinte e três instrumentistas brasileiros. Regendo os próprios arranjos que

escreveram: Wagner Tiso, Paulo Moura e Gilson Peranzzetta, apresentaram

suítes com obras populares de cinco compositores nacionais. Wagner Tiso

explorou sambas de Ari Barroso; Paulo Moura revitalizou Radamés Gnatalli,

Pixinguinha e Severino Araújo; Gilson Peranzzetta inovou a bossa de Tom

Jobim com novas levadas. Depois deles, entrou Tito Puente e sua orquestra,

americano de origem porto-riquenha, Puente foi o responsável por incorporar

improvisação jazzística em ritmos latinos e dentre os grandes convidados que

já havia recebido em sua orquestra podemos citar Dizzy Gillespie e Mongo

Santamaria. Durante o show, como de costume, sacodiu a cabeça com a

língua para fora, fez caretas e rodou as baquetas que usou, também, para

reger a orquestra de apenas dez músicos (três saxes, dois trompetes,

trombone, piano, baixo e duas percussões). Juntos executaram standards do

jazz, com arranjos elaborados pelo maestro, como: I Concentrate on You de

Cole Porter e Yeah de Horace Silver, ainda assim, foi quando tocaram Oye

Como Va que a plateia se animou de vez. Carlos Calado, em matéria para a

Folha, não deixou de caracterizar a performance de Tito, como se o músico

estivesse possuído. Eles continuaram no palco para apresentarem juntos de

sua ex-crooner, Célia Cruz, que foi recebida de pé, pela plateia que encheu o

Palace. Começou com Canto a la Habana, de Bebo Valdes e seguiu com

clássicos da música latina, como Bamboleo, de Simon Diaz, que deixou o

público eufórico. Caetano Veloso foi seu convidado especial, e juntos cantaram

Mi Cocodrilo Verde, Quero ir a Cuba e terminaram com Guantanamera. A

“rainha” também cantou o samba brasileiro, Você Abusou, numa versão

salseira. Esta foi, sem dúvida, a noite mais elogiada pela crítica, neste ano.

O segundo dia começou com o jazz clássico de Roy Hargrove Quintet, passou

pelo jazz pop de Rachelle Ferrell e George Duke e terminou com o gospel soul

de All Green. Hargroove foi anunciado como um dos seguidores na linha dos

clássicos como Wynton Marsalis e por isso foi eleito como única estrela

rigorosamente jazzística nesta edição de aniversário do Free Jazz. O jovem

trompetista, com apenas 26 anos, veio acompanhado de outros quatro jovens

músicos: Gerald Cannon (baixo), Karrien Higgins (bateria), Ronald Blake (sax)

e Stephen Scott (piano). Fizeram uma apresentação de aproximadamente uma

hora, onde mais do que apresentar standards, priorizaram composições

próprias do trompetista, com exceção de The Nearness of You. O músico foi

carismático e em alguns momentos pedia para que a plateia fizesse a

marcação rítmica com palmas. O show foi elogiado de forma unanime pela

crítica, fato que não aconteceu com a atração seguinte. Rachelle Ferrell era

conhecida apenas por sua extensão vocal incomum, capaz de perpassar tons

graves e agudos altíssimos, mas era uma estreante no Brasil. Tinha até então,

apenas dois discos gravados: “First Instrument” (1990), prioritariamente

jazzístico e “Rachelle Ferrell” (1992), produzido por George Duke, mais

direcionado para o pop. Como neste show se apresentou com o pianista, Duke,

voltaram-se mais para o pop do que para o jazz. Para Mauro Dias, do Estadão,

o show foi o pior do festival, devido ao excesso de malabarismo da dupla, que

mostrou boa técnica, mas pouco desenvolvimento. Carlos Calado não perdoou

Duke e também sentiu que faltava direcionamento para o repertório da garota,

mas admitiu seu talento, tanto que a única ressalva que fez para a

apresentação foi quando Rachelle interpretou sozinha ao piano a canção,

Peace on Earth. Já All Green veio cantar amor, carnal e espiritual, e aí ficou

todo mundo seduzido. Embora tenha se convertido a pastor poucos anos antes

do festival, não deixou de apresentar seus grandes hits como Love and

Happiness, Let’s Stay Together e Amazing Grace. Fez um show vibrante e

alegre, distribuiu flores para a plateia e encerrou sem bis com a canção, Sitting

on the Dock of the Bay.

A noite do acid jazz, neste ano, se transformou em noite dançante, com mais

de três mil pessoas dentro do Palace, despido de cadeiras e mesas. A primeira

atração prometida era Jamiroquai, mas o grupo cancelou sua vinda e acabou

sendo substituído pelo, bem menos popular, Vernon Reid com o grupo,

Masque. Com uma música essencialmente instrumental, a banda tocou uma

mistura de rock com hip-hop. Vernon abusou dos solos de guitarra distorcida e

trouxe um DJ para fazer a base e os vocais com vinil. Contaram com a

participação do rapper, Beans, que depois da última música, Mistake Identity,

se jogou do palco para o público, numa atitude irreverente, deixando a platéia

em êxtase para que então entrasse o Brand New Heavies com sua música

inspirada no funk dos anos de 1970. O grupo inglês fez todo mundo dançar,

colocou globo espelhado para caracterizar o cenário e se tornou o favorito do

público. Branford Marsalis e seu, Buckshot LeFonque fecharam a noite. Bem

mais discretos do que a banda anterior, mas também no clima dançante,

apresentaram uma nova proposta musical que assimilava mixagens do DJ

Apollo com solos dos músicos. Receberam Dionne Farris para cantar duas

músicas e, embora com um show sofisticado, demonstraram poucas ideias

realmente inventivas, de acordo com Carlos Calado. Fizeram um show para

priorizar o gosto do grande público, isso porque o seu líder, Branford, embora

herdeiro da longa tradição jazzística da família Marsalis, sempre esteve aberto

para outras influências, transitando bem entre o jazz mais tradicional e o

universo da cultura pop mercadológica.

O jazz mais restrito ainda pôde ser ouvido neste festival. Depois de Hargrove

ele reapareceu, porém em trajes de New Orleans. A noite dedicada ao estilo foi

aberta com um clássico de Duke Ellington, Things Ain’t What They Used to Be,

tocada pelo trompetista Leroy Jones, como forma de homenagem à sua cidade

natal. Além dela, canções escritas de 1920 a 1950, comandaram o repertório

do músico. Entre solos de trompete, caretas e passos de dança, Jones exibiu

seu lado cantor e mostrou, assim, que sua maior inspiração vem do grande

mestre Louis Armstrong. A semelhança foi tanta que chegou a ser noticiada

como excessiva, pelo crítico da Folha, Carlos Calado. A Rebirth Brass Band,

um octeto que usa seis sopros, baixo e percussão, veio na seqüência e fez o

show mais elogiado da noite. Levou a alegria das ruas de New Orleans para o

Palace, de forma a reportar o público para aquele universo. Não teve quem não

se animou. Para terminar, Harry Connick Jr. e sua Funk Band. O líder cantou,

dançou e fez piadas no palco, de forma a não agradar nenhum crítico; salvou-

se ao final, quando convidou as duas atrações anteriores de volta ao palco

para uma animada jam session, responsável pela melhor parte de seu show.

Stevie Wonder não faz jazz, mas o melhor da soul music. Sua popularidade era

tanta que, naquele ano, levou cerca de duas mil pessoas ao Palace. O músico,

já consagrado pela mídia mundial, fez o público chorar ao som de hits como:

Overjoyed e Ribbon in the Sky. Alegre e sempre conversando com a plateia,

não deixou de homenagear a música brasileira. Tocou músicas de Tom Jobim

como, Garota de Ipanema e Desafinado, mas também o samba de Antônio

Carlos e Jocafi, Você Abusou. Para o show em São Paulo, ainda relembrou

Antônio Adolfo com a canção Sá Marina. Ao final de sua apresentação de

sábado, no Palace, convidou os músicos da banda Sounds of Blackness para

retornarem ao palco de forma a promover uma jam com os nove cantores do

grupo vocal negro, responsáveis pela abertura da noite, que começou com

homenagens a Aretha Franklin e James Brown. No show de domingo, no

Ibirapuera, Wonder fez parecido. No final de sua apresentação, chamou

Gilberto Gil de volta ao palco, para que junto cantassem sucessos como I Just

Call to Say I Love You, aliás, música gravada por Gil, responsável por sua

versão em português. De acordo com o Estadão, nesta noite fria de domingo,

apenas dez das trinta e sete mil pessoas esperadas compareceram ao show.

1996

Em sua 11a edição, o festival aumenta o número de artistas convidados, mas

diminui seu tempo de duração, muda-se para o ambiente rústico do Galpão

Fábrica, e renova sua estrutura para melhor adaptar os diferentes estilos que já

faziam parte do cardápio do Free Jazz. Os quatro palcos, ao mesmo tempo que

indicavam a diversidade, acomodavam melhor as 22 atrações que se

apresentaram por apenas três dias, neste ano.

Data Local Palcos Atrações

New Directions (19h00)

Christian McBride Nicholas Payton

Main Stage (21h00) Ernestine Anderson Herbie Hancock & the New Standard All-Stars

10.10.1996 – Quinta-feira

Galpão Fábrica

Free Jazz Club (23h00)

Johnny Alf Clark Terry

New Directions (19h00)

Zé Nogueira James Carter

Main Stage (21h00) Salif Keita Isaac Hayes

Free Jazz Club (23h30)

Edu Lobo Elis Marsalis Trio

11.10.1996 – Sexta-feira

Galpão Fábrica

Free Jazz Groove (23h00)

James Taylor Quartet Incognito

New Directions (19h00)

Mark Whitfield John Pizzarelli

Main Stage (21h00) 808 State Björk

Free Jazz Club (23h30)

Paulinho Trompete Earl Klugh

12.10.1996 – Sábado

Galpão Fábrica

Free Jazz Groove (23h00)

Me’Shell Ndegéocello George Clinton

O Palco Main Stage

Com capacidade para 1600 pessoas sentadas ou o dobro em pé, recebeu

artistas consagrados pela mídia mundial, capazes de atrair grande público para

o seu show. Com o pé mais no pop do que no jazz, trouxe estrelas como

Herbie Hancock, que antes mesmo de se sentar ao piano, apresentou seus

companheiros ilustres: Michael Brecker no saxofone, John Scofield na guitarra,

Dave Holland no baixo, Jack DeJohnette na bateria e Don Alias na percussão.

O animado show mostrou o que, para Hancock, seriam os novos standards do

jazz, de Beatles, passando por Stevie Wonder, fazendo até Prince e os

roqueiros da banda, Nirvana, soarem como jazz. Atrativo mercadologicamente,

por apresentar canções com forte presença na mídia, porém inventivo por

acrescentar a estética jazzística, capaz de reinventar cada melodia original, o

repertório de “The New Standard”, na época o mais recente disco de Hancock,

fez deste show a grande revelação na estréia do Main Stage, que na mesma

noite recebeu, como primeira atração, a cantora, também norte-americana,

Ernestine Hall Anderson que apresentou standards clássicos do jazz como, In a

Mellow Tone de Duke Ellington e Night in Tunisia de Dizzy Gillespie.

Pelo palco também passou, na noite seguinte, o malinês Salif Keita e sua

música tribal africana com levada funk. O músico passou pelo reggae e pela

juju music, sem dispensar a improvisação e ainda recebeu o cantor brasileiro,

Chico César, para que juntos cantassem a música, África. Esquentaram a

platéia para que entrasse Isaac Hayes, compositor de grandes hits da soul

music como Soul Man, teve que readaptar o seu show de forma a torná-lo

menos dançante para o público que, nesta noite, estava sentado. O músico

preferiu, então, priorizar as baladas românticas. Na última noite deste Free

Jazz, o Main Stage estava com lotação máxima e sem cadeiras no salão.

Trouxe sua maior estrela, a cantora Börk. Antes dela, porém, o grupo 808 State

promoveu uma rave abusando dos instrumentos eletrônicos. Quando a cantora

islandesa subiu no palco, o público foi ao delírio. Börk estava no auge de sua

carreira e vinha sendo noticiada de forma exaustiva pelos jornais. Seu show

estridente foi sucesso de público e crítica, talvez porque como disse Pedro

Sanches para Folha, sua vinda ao Brasil significou a inauguração da era da

música globalizada, no país do samba.

Palco New Directions

Como o próprio nome indica, foi responsável por apresentar os mais novos

músicos de jazz, representantes da nova revitalização do estilo. Como novas

tendências nem sempre lotam grandes espaços, o palco era cercado por uma

arquibancada com cerca de 400 lugares para o público. Na noite de sua

estréia, trouxe dois jovens músicos que resgataram antigas tradições do jazz,

sem soar antiquados. Christian McBride, com apenas 24 anos, abriu a primeira

noite e mostrou que em tempos de eletrificação dos instrumentos, o baixo

acústico ainda tem muito a dizer. Junto de seu quarteto, o músico tocou SKJ de

Milt Jackson e demonstrou que o suingue na música vale mais do que a técnica

quando apresentou uma versão de You’ve Got It Bad Girl, de Stevie Wonder.

Depois dele veio Nicholas Payton, um ano mais novo, já era revelação no

trompete jazzístico. À frente de um jovem quarteto, trouxeram para o Free

Jazz, clássicos de sua cidade natal, New Orleans, como Whoopin’ Blues, mas

principalmente repertório de seu recém-lançado disco, “Gumbo Noveau”. Com

arranjos sofisticados, eles demonstraram que o neobop continua em constante

evolução.

A noite seguinte foi ainda mais radical, com James Carter como atração

principal. O furioso saxofonista fez um show bem mais polêmico, onde o que

valeu foi explorar os limites da improvisação. Foi do bebop ao free, num show

de aproximadamente 90 minutos, onde gastou 20, apenas em seu primeiro

solo. Demonstrando certa repulsa pelo excesso de virtuosismo, muitas pessoas

saíram antes que sua apresentação se encerrasse. É possível que o público

tenha se identificado mais com o trabalho apresentado pelo carioca Zé

Nogueira, que na abertura desta noite revigorou o samba e o choro, ao

apresentar canções de Severino de Araújo, Jacob do Bandolim e Paulinho da

Viola. Os últimos shows apresentados neste palco foram Mark Whitfield e John

Pizzarelli. De acordo com Edson Franco, crítico da Folha, o que se viu nesta

noite foi um duelo entre os dois guitarristas norte-americanos, o primeiro negro,

mostrou ser adepto de grandes guitarristas negros como Wes Montgomery e

Grant Green; o segundo, branco, mostrou um repertório tradicional, com

standards jazzísticos. Um duelo entre negro e branco.

Palco Free Jazz Club

O mais intimista dos palcos lembrava uma das vilas de New Orleans. O serviço

foi administrado pelo Bourbon Street Club e contava com garçons para atender

as cerca de 250 pessoas que a sala comportava. Pretendendo resgatar o clima

dos antigos clubes de jazz, o ambiente era esfumaçado e os músicos tocaram

bem próximos do público, de forma a valorizar a escuta das obras, mais

voltadas para o jazz tradicional. Em sua noite de abertura contou com Johnny

Alf e Clark Terry. O primeiro foi um dos precursores da Bossa Nova e recheou

seu show com antigas canções nacionais, cantou Céu e Mar, Ilusão à Toa e

Rapaz de Bem, dentre outros. Depois dele, o trompetista, Terry, veio mostrar

os clássicos dos anos dourados do jazz. Ele já passou pelos maiores

representantes do swing, trabalhou com Count Basie e liderou o naipe de

trompetes de Duke Ellington. Fez todo mundo suspirar com novos arranjos

para velhas músicas, tocou Straight no Chaser de Monk, Mood Indigo e In a

Mellow Tone, ambas de Ellington. A estreia do Palco Club contemplou os

saudosistas.

Os ingressos para a segunda noite deste palco acabaram bem antes do início

do festival. Isso porque apresentava o patriarca da família Marsalis, o pianista

Ellis Marsalis. O músico foi discreto em sua apresentação, com nenhum

excesso de virtuosismo, alterando composições próprias e standards do jazz.

Não deixou de prestar sua homenagem a música brasileira, ao tocar duas

canções de Tom Jobim: Meditação e Corcovado. Sua opção por suavizar

contrastes e diminuir recursos dramáticos, deixou alguns ouvintes

decepcionados. Antes dele, Edu Lobo mostrou-se menos discreto. Passou por

grandes sucessos de sua carreira e fez uma apresentação animada ao contar

com excelentes instrumentistas brasileiros. Juntos mostraram a enriquecedora

influência jazzística para a música brasileira.

Os últimos a pisarem neste palco foram o brasileiro Paulinho Trompete e Earl

Klugh. O primeiro foi considerado o mais jazzístico entre as atrações

brasileiras, por já ter tocado ao lado de grandes mestres do estilo como John

Coltrane e Charles Mingus, além dos brasileiros Gilberto Gil e Leny Andrade.

Seu show mostrou a mescla de estilos de forma brilhante. O segundo veio

mostrar e delicadeza de seu estilo dedilhado para tocar violão.

Palco Groove

Para quem não quis ficar sentado em momento algum do festival, a melhor

opção foi este palco, com capacidade para 2000 pessoas e responsável por

trazer rítmos dançantes, além de dois DJs para esquentarem o público antes

das apresentações. O Palco Groove, diferentemente dos outros três, só abriu

suas portas por dois dias (11 e 12.10.96) e já começou com ingressos

esgotados para os shows do James Taylor Quartet e Incognito, expoentes do

acid jazz. Taylor fez um show relativamente curto, cerca de 45 minutos de

apresentação, mas que movimentou o público com improvisos no seu órgão

Hammond. O Incognito, responsável por um vertente mais dançante do estilo,

fez um show que misturou os maiores hits da banda com baladas mais lentas,

ora agitando ora amornando o público, mas sempre incluindo ritmos brasileiros.

O líder do grupo, Bluey, fez questão de demonstrar sua simpatia com o país e

apareceu para o show com a camisa da seleção brasileira. No segundo e

último dia, subiram ao Groove a cantora e multi-instrumentista, Me’Shell

Ndegéocello, descoberta por Madonna que logo a levou para o seu selo,

Maverick. Me’Shell, que na época tinha dois discos gravados: “Plantation

Lullabies” e “Peace Beyond Passion”, se mostrou adepta do rhythm & blues e

esquentou o palco para que então entrasse George Clinton, o mais esperado

da noite. Ele só apareceu depois de uma longa jam session entre seus

músicos, envolto por um lençol negro e usando apenas ceroulas, cantou One

Nation Under a Groove, ajudado pelo coro da platéia. Com músicas longas, de

aproximadamente 15 minutos de duração, o show foi noticiado como cansativo,

fazendo com que o público saísse antes do fim.

Entre as quatro salas, o ponto de encontro para a convivência do diversificado

público, era o Free Village, reservado não só para bares, administrados

também pelo Bourbon, como para stands das gravadoras e exposições de

fotos, esculturas e vídeo-wall, privilegiando a diversidade já assumida pelo

festival.

Ainda assim, o mais noticiado pelos jornais foi a falta de cuidado, por parte da

produção, com o novo local escolhido para o Free Jazz. Em oposição ao

cronograma super planejado e as notícias referentes ao festival que antecedem

em meses seu início, a desatenção com a estrutura mais importante, que é a

acústica, foi notável. Todos os shows parecem ter sido prejudicados quer pelo

barulho da chuva, quer pelo som abafado do local, que muitas vezes os

tornavam incompreensíveis. Além disso, algumas telhas expostas foram

responsáveis por goteiras nos palcos e no público. Tudo isso fez com que

jornalistas como Pedro Alexandre Sanches, da Folha, destacassem que o

maior compromisso do festival foi com a publicidade e não com a música, seu

carro chefe.

1997

A programação

Data Local Palcos Atrações

Bourbon Street

New Directions (19h00)

Virgínia Rodrigues Natacha Atlas

09.10.1997 – Quinta-feira

Palace

Main Stage (21h30) Marcus Roberts e Orquestra Rhapsody in Blue Mingus Big Band e Elvis Costelo

Bourbon Street

Club (00h00) Dee Dee Bridgewater

Bourbon Street

New Directions (19h00)

Diana Krall Trio Cyrus Chestnut Trio

Palace Main Stage (21h30)

Neneh Cherry Adam F. Goldie & Metalheadz DJs

10.10.1997 – Sexta-feira

Bourbon Street

Club (00h00) Art Farmer Quartet

Bourbon Street

New Directions (19h00)

Donald Harrison Quartet Danilo Perez

Palace Main Stage (21h30) Erykah Badu Jamiroquai

11.10.1997 – Sábado

Bourbon Street

Club (00h00) Pharoah Sanders Quartet

Bourbon Street

New Directions (20h00)

O Trio Kenny Garret

Palace

Main Stage (21h30) Ronnie Earl & The Broadcasters Otis Rush Jimmie Vaughan

12.10.1997 – Domingo

Bourbon Street

Club (23h00) Lee Konitz Trio

Não há como negar que a diversidade de palcos adotada no ano anterior foi

uma ótima solução para que o festival, cada vez mais abrangente, continuasse

a trazer as revelações da música instrumental, sem ter a necessidade de

encher grandes salas. No entanto, o fracasso acústico do Galpão Fábrica, não

conseguiu ser resolvido, obrigando a produção do Free Jazz a retornar ao

Palace, embora adotando o espaço do Bourbon Street Club, como sala

alternativa para os shows mais intimistas. Dessa maneira, durante os quatro

dias de evento, que ia de 9 a 12 de Outubro de 1997, a divisão ficou, assim,

estabelecida: O Palco Main Stage aconteceu no Palace, sempre às 21h30. O

New Directions, sempre às 19h00 com exceção do último dia, às 20h00, no

Bourbon Street, assim como o Palco Club, mas este começava sempre à

00h00, com exceção também do último dia, às 23h00. O Palco Groove não

apareceu neste ano, muito provavelmente porque os três palcos já adaptavam

muito bem as vinte atrações internacionais contra apenas duas brasileiras que

faziam parte do programa deste ano, em São Paulo.

A novidade desta edição estava em apresentar uma nova tendência musical

iniciada na cena underground de Londres no início dos anos de 1990, o

drum’n’bass. Com poucos elementos jazzísticos, esse estilo faz uma mistura de

ragga, hip-hop, acid house, dub e outros diversos estilos. Descendente da

música eletrônica, nele predomina a base rítmica da bateria e do baixo,

gerando um som forte e grave. Veio para o Free Jazz representado por Goldie.

Ex-grafiteiro, trocou as paredes pelas pistas de dança e promoveu uma das

mais conhecidas noites de drum’n’bass londrina, a Metalheadz. Assim,

transformou o Palace em pista de dança, somente com duas pick-ups. Além

dele e dividindo o palco na mesma noite, tivemos Adam F. Sua diferença está

em fazer uma abordagem mais orgânica para o drum’n’bass, pois também toca

piano e instrumentos de sopro. Quem fechou a noite foi Neneh Cherry, porém

com um show que valorizava mais o trip-hop, com batidas lentas que

combinam rhythm’n’blues, rap e também a música eletrônica.

Além disso, o festival promoveu uma mostra de filmes sobre música, que

aconteceu paralelo aos shows, no Museu da Imagem e do Som. E também foi

transmitido ao vivo pelo canal Multishow e pela MTV, para privilegiar aquela

parte da população que não se animou a sair de casa, ou não conseguiu

ingressos. Perdeu a sala de convivência que unia o público dos diferentes

palcos, mas trouxe boas dosagens de jazz que permeou por todos os dias do

festival. Tudo detalhadamente explicado nos dois guias produzidos para o

evento: um que saiu pela Folha de São Paulo e outro pelo Estadão.

Quem abriu este Free Jazz foi Virgínia Rodrigues com um ponto de candomblé

para Exu, orixá da comunicação, mensageiro entre o mundo carnal e espiritual,

é quem abre os caminhos para que tal comunicação aconteça. E foi assim que

Virgínia, a baiana ex-integrante do Olodum, descoberta por Caetano Veloso,

abriu os trabalhos para que se iniciasse o Free Jazz. E só depois disto, e

também do show de Natacha Atlas, a belga descendente de árabes e judeus

que mostrou o pop do Oriente Médio, com canções de influência árabe e batida

de rock; que o jazz tradicional pode ser ouvido. O palco Main Stage, no Palace,

recebeu depois dessa miscigenada abertura, o pianista Marcus Roberts

acompanhado da Orchestra Rhapsody in Blue e a Mingus Band acompanhado

por Elvis Costello. Roberts já havia tocado com Wynton Marsalis além de ter

feito trabalhados homenageando Duke Ellington, Thelonious Monk e George

Gershwin. Foi responsável por um dos momentos mais brilhantes deste Free

Jazz, com uma banda de dez músicos de sopros. Ao fim, juntaram-se a eles

uma sessão de cordas brasileiras e juntos tocaram, na íntegra, a Rapsódia em

Blue, uma composição de George Gershwin, referência no encontro do jazz e

da música clássica. A Mingus Band, formada pela viúva de Charles Mingus,

veio para revitalizar a música de um dos maiores baixistas da história do jazz.

Recebeu a participação de Elvis Costello, como cantor em quatro canções,

duas no início e duas ao final da apresentação. A homenagem aos grandes

nomes do jazz continuou à meia noite no Bourbon, Palco Club, com Dee Dee

Bridgewater. Com sua potente voz e seu gosto pelo duelo com os metais da

banda, a cantora veio apresentar seu então, último disco, Dear Ella. O

repertório do show se baseou em releituras de músicas consagradas na voz da

grande dama bebop, Ella Fitzgerald. E mostrou que Dee Dee também carrega

o gosto pelo improviso vocal.

A segunda noite chegou a ser noticiada como a noite da bela e a fera, por

Cassiano Elek Machado da Folha de São Paulo. Isso por apresentar, no

mesmo dia, jazz e música eletrônica, o pop do momento. Enquanto o Main

Stage ficou responsável pela divulgação do estilo drum’n’bass, o Bourbon

apresentou Diana Krall Trio e Cyrus Chestnut Trio, no New Directions e Art

Farmer Quartet no Club. Diana era, neste momento, a voz mais querida do

jazz. Com o álbum “All for You”, gravado neste ano, liderou por várias semanas

as paradas de jazz radiofônicas e foi indicada ao Grammy na categoria de

melhor vocalista de jazz. O disco gravado em trio (piano, baixo, guitarra) faz

uma homenagem a Nat King Cole. Foi com esta formação que Krall veio para o

Brasil, e juntos fizeram uma releitura de clássicos, sem excesso, sempre

priorizando o repertório deste último disco. E o piano continuou no palco para

que entrasse Cyrus Chestnut acompanhado de baixo e bateria. O trio mostrou

que o jazz também bebe na fonte do gospel. Cyros exibiu sua intimidade com o

piano e com a igreja batista dos americanos do norte, ao começar sua

apresentação como se tocasse o órgão da igreja. Começava calmo e delicado

e atingia o êxtase nos finais líricos e apaixonados de sua música, que levou o

público às origens dos cultos negros e hinos religiosos. A meia noite foi a vez

de Art Farmer, o inventor do flumpet (mistura de flugelhorn e trompete)

transitou bem por diversos ramos jazzísticos, quer com Horace Silver, Gerry

Mulligan ou Benny Carter, nesta apresentação favoreceu os standards com seu

trompete. Afinal, apostar nos clássicos, quando já se é um músico consagrado,

é certeza do sucesso.

O terceiro dia de festival trouxe a maior revelação pop deste período, o grupo

Jamiroquai. O mais noticiado pelos jornais e que já havia cancelado uma vinda

pelo festival, chegou com tudo neste ano e foi responsável pela maior bilheteria

deste Free Jazz. Com letras inteligentes e ritmo pra não deixar ninguém

parado, fez o Palace tremer durante sua apresentação. Contrariando a

presença excessiva do grupo na mídia, a crítica preferiu mostrá-lo como

populista descendente da cultura pop do rock’n’roll. Erykah Badu, atração que

abriu a noite com velas, incensos, exaltação de um símbolo religioso egípcio e

gestante, foi considerada excêntrica, porém competente na arte do canto. Com

apenas 26 anos, já era revelação com seu rhythm & blues cool e sofisticado,

ainda que não muito conhecida no Brasil. Talvez as críticas fossem mais

generosas com a musa, caso tivesse se apresentado no New Directions do

Bourbon, bem mais elogiado do que o popular Main Stage, produzido para o

grande público.

E falando nele, voltemos ao Bourbon, que nesta mesma noite abriu o Free Jazz

com Donald Harrison Quartet. Harrison foi aluno de Ellis Marsalis e também fez

parte dos Jazz Messengers de Art Blakey. Trouxe a sonoridade do saxofone e

mostrou que o jazz pode ser tradicional e inovador, sempre que bem feito.

Depois dele foi a vez do pianista Danilo Perez, a latinidade de seu nome se

encontra, também, na sua música. Nascido no Panamá, apaixonou-se pelo jazz

depois de escutar Bill Evans. Se aprofundou no assunto e identificou-se com

Thelonious Monk, que também tratava seu piano como instrumento percussivo.

Tanto assim, que fez uma homenagem ao mestre no seu primeiro disco,

intitulado, “PanaMonk”. O jovem pianista de 31 anos já havia tocado com

Paquito D’Rivera e na orquestra de Dizzy Gellespie. Veio para a Free Jazz

apresentar a percussividade latino- americana de sua música, que lhe rendeu

elogios a perder de vista. Pharoah Sanders, estrela do Palco Club nesta noite,

encerrou o penúltimo dia do Free Jazz. Conhecido pela forte parceria que

vivenciou ao lado do também saxofonista, John Coltrane, foi aguardado pela

crítica como um dos maiores expoentes do atonalismo surgido em meados da

década de 1960, com o free jazz. Iconoclasmos à parte, fez um show mais

sóbrio e conciso nesta apresentação, frustrando, assim, os que esperavam

ouvir sua ousadia free.

O blues abriu o palco principal do Palace em sua última noite. E para mostrar

que o blues, a música e o amor são de todas as cores e englobam todas as

pessoas, Ronnie Earl, branco e judeu que teve parte da família morta em

campos de concentração europeus, chegou ao Free Jazz para tocar “Colour of

Love”, seu então mais recente disco. Seu encanto pelo blues surgiu depois de

assistir a Muddy Waters no palco. Investiu no estilo e mostrou que o blues já se

disseminou por todas as raças. Tanto assim que o amigo e guitarrista texano,

Jimmie Vaughan, também branco, fechou a noite privilegiando suas canções

mais conhecidas e demostrou que, independente da cor de sua pele, merece

entrar para a lista dos mais expressivos nomes do blues atual. Entre um e outro

tivemos o único negro da noite, o veterano guitarrista Otis Rush, pela primeira

vez no Brasil. Ele também participou do movimento de eletrificação do blues,

mas passou muitos anos longe das gravadoras, tendo retomado em 1994 com

o disco, “Ain’t Enough Comim’in”. Subiu ao palco depois de sua banda tocar

duas músicas, plugou sua guitarra e tocou clássicos do estilo como Homework

e I Got My Mojo Working. Acredito que o mais interessante da noite bluseira,

que garante sua presença sempre no palco principal, seja a importância que os

músicos dão ao canto resposta que exigem do público. Em todos os shows

desta noite a indispensável interação palco – plateia foi garantia de frisson

entre os ouvintes.

Ainda nesta última noite o palco New Directions trouxe o grupo brasileiro, O

Trio, formado por Pedro Amorim (violão e bandolim), Paulo Sérgio Santos (sax

e clarinete) e Maurício Carrilho (violão), que fez releituras de chorinhos, além

de uma procedente homenagem a Pixinguinha. Abriu para Kenny Garret, eleito

no ano anterior pelos leitores da Downbeat como o melhor saxofonista do ano.

Também trabalhou com Miles Davis, com a Duke Ellington Orchestra e os Jazz

Messengers de Art Blakey. Veio para representar a velha guarda do jazz. Mais

tarde, no mesmo Bourbon, porém palco Club, quem encerrou o 12o Free Jazz

foi o saxofonista Lee Konitz. Ele e seus companheiros de palco, Mark Johnson

(contrabaixo) e Jeff Williams (bateria), dispensaram até mesmo os microfones

para exercitarem a completa liberdade de improvisação, a mais forte

característica do jazz. Inverteram a tradicional forma do jazz (tema-improviso-

tema) e começaram quase todas as músicas com improviso, para só depois

indicar o tema. Konitz interagiu diversas vezes com o público e, ao final, foi

pego de surpresa por Zuza Homem de Mello que subiu ao palco com um bolo e

velas para comemorar o 70o aniversário do saxofonista. Quando Lee Konitz

apagou as velinhas já era madrugada de 13 de Outubro, data do seu

aniversário.

1998

Ao passar para o Jockey Club de São Paulo, a 13º edição do Free Jazz

apresentou-se bem próxima do modelo adotado pelo tradicional festival de jazz

de New Orleans. Embora com os palcos menores do que em anos anteriores,

teve recorde de bilheteria, com venda de quase todos os ingressos antes

mesmo do seu início. Sem a mostra de filmes sobre jazz, compensou o

desfalque com a inclusão de uma exposição fotográfica com imagens em preto-

e-branco de artistas consagrados no universo jazzístico, como Billie Holiday,

Miles Davis, Count Basie, Charlie Parker, dentre outros que foram fotografados

por Herman Leonard durante a década de 1940 e início de 50. O fotógrafo,

então com 75 anos, esteve no evento para fazer a abertura de sua exposição.

Ele, junto de um seleto grupo de fotógrafos que inclui William Claxton, Chuck

Stewart, Lee Tanner e Jean–Pierre Leloir, ficou famoso por construir um

imaginário fotográfico para o jazz. Pelas imagens de Leonard conseguimos

visualizar as diversas características que por muito tempo definiram os

ambientes jazzísticos, como o forte contraste entre luz e sombra, a fumaça

sempre excessiva e o refinamento de seus artistas. Além de conter essa

necessária exposição, o Free Village incluía em seu espaço: telão para exibir

vídeos musicais, bares, restaurantes, livros e discos. E pôde ser frequentado

inclusive por quem não conseguiu ingresso para os shows.

Mais intimista em sua nova estrutura, porém mais agressivo em sua

visualidade, o festival, neste ano, já era pauta meses antes de sua estreia, com

direito a longas entrevistas com os artistas, divulgação de novos lançamentos

jazzísticos no Brasil e guia completo para identificar todas as atrações, local e

hora de suas apresentações, que eram, também, exibidas por canais de tevê.

O sucesso de público era tão certo que fez o festival se expandir para Curitiba,

somando-se mais uma cidade às outras três já dominadas por ele, Rio de

Janeiro, Porto Alegre e, claro, São Paulo.

A programação em São Paulo ficou assim:

Data Local Palcos Atrações

New Directions (20h00)

Marc Cary Maria Schneider

Main Stage (21h30) Ben Harper Dave Matthews Band

16.10.1998 – Sexta-feira

Jockey Club

Club (23h00) Banda Mantiqueira Johnny Griffin

New Directions (20h00)

Antonio Hart Mavis Staples

Main Stage (21h30) Kraftwerk Massive Attack

17.10.1998 – Sábado

Jockey Club

Club (23h00) Jane Ira Bloom Hermeto Pascoal

New Directions (20h00)

Farofa Carioca Keb’Mo’

Main Stage (21h30) Wayne Shorter Jeff Beck

18.10.1998 – Domingo

Jockey Club

Club (22h00) Antúlio Madureira Howard Johnson

O palco Main Stage, como sempre, soou bastante diverso. Apresentou uma

vertente da música eletrônica, astros consagrados no jazz e no rock, mas

também os mais novos destaques da tradição musical norte americana, como

foi o caso do Jamiroquai no ano passado e do Bem Harper e da Dave

Matthews Band neste. Aliás, foi nesta ordem que estreou a primeira noite do

Main Stage. Harper foi bastante esperado e chegou vestido com uma camisa

do Brasil. Nesta época tinha apenas três discos lançados, porém muito bem

divulgados, tanto que o publicou cantou junto quase todas as canções de seu

repertório que mistura rock, soul, blues e country. A plateia parecia ainda mais

animada do que o músico que passou quase todo o tempo da apresentação,

sentado. Ainda assim, seu show foi considerado superior ao da atração

seguinte, Dave Matthews Band, já bastante popularizada nos EUA, que veio

apresentar um rock feito com violão amplificado que incluía até violinos na

sonoridade da banda.

A segunda noite do Main Stage trouxe, novamente, música eletrônica. Quem

abriu foram os germânicos do Kraftwerk, que não utilizaram instrumentos no

palco. Parece absurdo, mas a música do grupo formado ainda na década de

1970 é feita somente com aparelhos eletrônicos sonoros, aliada a imagens

exibidas em um telão enorme no fundo do palco. Os integrantes da banda

pareciam quatro figuras robóticas no palco e levaram o público para uma

atmosfera futurística. Ao mesmo tempo em que criavam, também ironizavam

os caminhos contemporâneos da música e como estavam pela primeira vez no

Brasil, deixaram a todos extasiados com aquela proposta criada há longos

trinta anos. A surpresa foi tanta que quando a mais conhecida, Massive Attack,

subiu ao palco, houve certa decepção. Embora tenham sido um dos

responsáveis pela popularização do obscuro trip-hop (uma das vertentes da

música eletrônica), optaram por um show menos eletrônico com um formato

mais convencional de bateria acústica, baixo e guitarra.

O jazz só apareceu no Main Stage em sua última noite e, mesmo assim, abriu

para o rock. Wayne Shorter é um daqueles lendários jazzistas: passou pelo

Jazz Messengers de Art Blakey, pelo segundo quinteto de Miles Davis e pelo

fusion do Weather Report, além de ter transitado pelo hard bop de Horace

Silver no seu tempo de prestação de serviço ao exército. Chegou e já disse na

coletiva: “o mais importante no jazz é o combate e não a perfeição” (CALADO,

Carlos. “Wayne Shorter chega a exagerar da discrição”. In: Folha de São

Paulo. Ilustrada. 20/10/1998). Mas ao que indica Calado, o saxofonista, neste

show, priorizou mais o seu lado compositor, deixando os improvisos para os

músicos que o acompanharam. Ainda assim, sua veia para o duelo jazzístico

pode ser ouvida em Meridianne- A Wood Sylph, quando sax duelou com piano

e novamente no bis, quando tocou Footprints e exibiu seu extraordinário lado

solista. Depois dele veio o guitarrista britânico, Jeff Beck. Inspirados pelo rock

dos anos de 1970, incluiu bons improvisos durante sua apresentação. Mas se

ainda for difícil imaginar qual o tipo de sonoridade produzida pelo músico, basta

relembrar que foi ele quem substituiu Eric Clapton no grupo Yardbirds. Seu

rock, portanto, soou bem diferente daquele apresentado por Dave Matthews,

na abertura deste mesmo palco.

O palco Club, bem mais intimista, seduzia facilmente os ouvidos mais puristas.

E para não romper com a tradição, era o último a abrir suas portas, às 23h00.

Confirmava, assim, aquela velha relação entre o jazz e a noite, estabelecida,

principalmente, entre os músicos das grandes orquestras que, em finais da

década de 1940, se juntavam após as apresentações para fazerem as famosas

jam sessions, responsáveis pela criação de novos estilos jazzísticos, como se

deu com o bebop depois da era do swing. Como atrações da primeira noite

deste Free Jazz, as orquestras chegaram com força total. O Club recebeu uma

delas, que já era presença constante nas casas noturnas paulistanas, a Banda

Mantiqueira retomava a linguagem das big bands, mas com repertório nacional

e sonoridade cheia de energia. Maria Schneider também trouxe sua orquestra,

mas tocaram no New Directions. A regente trabalhou com Gil Evans e chegou

carregada por elogios da mídia norte americana, além de duas indicações ao

Grammy, pelo seu primeiro disco, Evanescence (1993) . Conquistou a crítica

pela delicadeza de seus arranjos que determinaram um contraponto com o

pianista Marc Cary, responsável pela abertura desta primeira noite no palco

New Directions, onde apresentou um jazz eletrificado, com forte influência dos

anos de 1970. Já a Mantiqueira, abriu para o saxofonista Johnny Griffin, outra

lenda do jazz. Já virou lenda, porque participou do movimento bebop logo que

surgido. Tocou com Thelonius Monk e Art Blakey e neste Free Jazz, ao que

dizem os críticos, confirmou sua fama de gatilho mais rápido do bebop,

principalmente quando tocou Night in Tunisia (de Dizzy Gillespie). Um show de

Griffin prova que embora standartizada, a música no jazz se torna sempre uma

nova música.

Em sua segunda noite o New Directions ainda traria a cantora norte-americana,

Madeleine Peyroux, mas devido a calos nas cordas vocais, foi substituída pela

discípula de Mahalia Jackson, Mavis Staples, que embora conhecida por seu

canto gospel, priorizou para o Free Jazz um repertório voltado para a soul

music e fez todo mundo dançar, cantar e bater palmas durante sua

apresentação. Quem abriu a noite para ela foi o novíssimo saxofonista, Antonio

Hart. Com menos de trinta anos, já era um músico promissor que priorizou o

repertório puramente jazzístico para o show, embora com influências do

reggae, da salsa, do blues e até do hip hop em suas composições. Keb’Mo’

tocou no mesmo palco, porém no último dia do festival. Único representante do

blues neste ano, fez um show somente com voz e violão e conseguiu passar

por diversos estilos de música negra norte-americana como o gospel e o

country. Dividiu a noite com os brasileiros do Farofa Carioca que lançavam

neste ano o primeiro cd.

No Club ainda tivemos a veterana saxofonista, Jane Ira Bloom que abriu para

nosso bruxo, Hermeto Pascoal e no último dia, Antúlio Madureira que dentre as

várias excentricidades que apresentou, tocar Ave Maria, de Schubert, com um

serrote, foi a mais surpreendente. Abriu a noite para que depois entrasse

Howard Johnson e sua orquestra de tubas. Os arranjos refinados criados por

Jonhson provaram que a tuba também pode soar leve e bastante musical.

1999

A programação:

Data Local Palcos Atrações

New Directions (20h00)

Jacky Terrasson Quintet Marc Ribot y Los Cubanos Postizos

Main Stage (22h00) MV Bill & The Roots Eagle-Eye Cherry Finley Quaye

15.10.1999 – Sexta-feira

Jockey Club

Club (23h00) Leandro Braga Roy Haynes Group

16.10.1999 – Sábado

Jockey Club

New Directions (20h00)

Pedro Luís e a Parede Cake

Main Stage (22h00) The Crystal Method Orbital Darren Emerson

Club (23h00) Trio Madeira Brasil George Shearing Quintet

New Directions (20h00)

Medeski, Martin & Wood Jonny Lang

Main Stage (22h00) Joshua Redman Nicholas Payton Louie Bellson, Clark Terry e The William Brothers Tap Dancers

17.10.1999 – Domingo

Jockey Club

Club (23h00) Vittor Santos Orquestra Charles Lloyd Quartet com John Abercrombie

Palco Main Stage:

O palco mais eclético e mais popular do festival apresentou diversas

tendências da música mundial, neste final de década. Na primeira noite trouxe

o rapper brasileiro, MV Bill, cujo repertório privilegiou seu então mais recente

álbum, “Traficando Informação”. Neste ano o cantor da Cidade de Deus

concorreu ao Video Music Brasil na categoria rap e também por isso era

presença marcante na mídia brasileira. Ao final de sua apresentação fez um

discurso de paz, mas a arma que carregava na cintura não foi bem vista pelos

jornais. Também cantou com o The Roots, grupo norte-americano, que ainda

se estendeu no palco para mostrar um hip hop que não necessita de DJ ou

sampler, prefere a instrumentação ao vivo. Era um dos principais nomes do hip

hop mundial, principalmente depois de eleito pela revista Rolling Stones como

a melhor banda de hip hop ao vivo. Transitaram pelo rap e pelo jazz, animando

a plateia cheia do Jockey. Depois veio Eagle Eye, irmão de Neneh Cherry.

Durante o show, cantou novas versões para músicas de Bob Marley e recebeu

Naná Vasconcelos para uma participação especial. Quem fechou a primeira

noite do Main Stage foi o cantor escocês Finley Quaye. Com um show mais

voltado para o reggae, também homenageou Bob Marley, mas sem deixar de

apresentar algumas pitadas de trip hop, característica de seu estilo. Chegou

premiado no Brasil como melhor cantor pelo Brit Awards, uma espécie de

Grammy britânico.

Em sua segunda noite, o Main Stage trouxe revelações da música eletrônica

para se apresentarem numa plataforma de cinco metros de altura, colocada no

centro da pista, de forma a destacar os DJs convidados. Começou com The

Crystal Method, duo de DJs norte-americanos, Scott Kirkland e Ken Jordan,

que fez o chão tremer com o big beat característico de seu trabalho. Eles

substituíram a banda inglesa, Propellerheads, que não pode vir devido ao

atraso na gravação de um cd. A segunda apresentação foi do Orbital, formado

pelos irmãos britânicos Paul e Phillip Hartnoll, que exibiu mantras e músicas

psicodélicas em formato de techno music, e fez o público entrar num universo

ritualístico, presente na repetição de algumas batidas. A última apresentação

desta noite ficou por conta do DJ inglês Darren Emerson, que deixou a pista

quente quando trouxe sua house music, numa apresentação com cerca de

duas horas de duração.

O jazz também marcou presença no palco principal, em sua última noite,

dedicada à homenagem de veteranos mestres jazzístas. Começou pelo

saxofonista Joshua Redman. Ele já havia participado do Free Jazz em 1994 e

seu amadurecimento foi pauta na crítica de Carlos Calado, para a Folha.

Recente exponte da nova safra de jazzistas norte-americanos, mostrou que,

mesmo quando toca standards, apresenta novos arranjos, de forma a reciclar

os clássicos à moda contemporânea. Começou por Summertime (dos irmãos

Gershwin). Seu quarteto era composto também pelo pianista, Aaron Goldman;

pelo contrabaixista, Reuben Rogers e pelo baterista, Greg Hutchinson. O

segundo show era uma homenagem a Louis Armstrong, ainda assim, o

também jovem trompetista Nicholas Payton, pareceu ter a mesma preocupação

de Redman quando apresentou Armstrong em novas roupagens, de modo a

não soar como cópia do mestre. Estava à frente de uma big band com 11

músicos que incluía Lew Sloff no trompete, Bob Stewart na tuba e Delfeayo

Marsalis no trombone. Juntos criaram modernos arranjos para o tradicional

estilo New Orleans, típico de Armstrong. A terceira e última apresentação veio

para homenagear Duke Ellington em comemoração ao seu centenário. E o líder

deste tributo foi um representante da velha guarda, ex-integrante da Ellington

Orchestra, que também tocou nas big bands de Count Basie, Benny Goodman,

Tommy Dorsey e Harry James. Era o baterista, Louie Bellson, 75, pupilo de

Ellington, que veio acompanhado pela Duke Ellington Alumni. Também viria

outro veterano, discípulo do mestre, o trompetista Clark Terry, 79, que voltaria

para sua segunda apresentação no Free Jazz, porém não pode vir, devido a

problemas de saúde. Os veteranos da orquestra transitaram por clássicos do

maetro, deixando os mais nostágicos em êxtase com aquela volta aos anos de

1920 e 30. A homenagem também incluiu o grupo de sapateadores, Williams

Brothers Tap.

Palco New Directions:

A primeira noite do New Directions apresentou Jacky Terrasson, pianista

alemão, que incluiu no seu quinteto gaita e flauta de bambu, de modo a criar

um jazz atmosférico, reforçado pelo pulso hipnótico do baixo e da bateria. Abriu

com um clássico de Ravel, Bolero, e não deixou de incluir a música brasileira

na apresentação, que veio representada por Desafinado, do nosso clássico,

Tom Jobim. O encerramento da noite ficou por conta do guitarrista Marc Ribot,

respitado músico vanguardista da cena novaiorquina. Veio acompanhado de

amigos que formavam a banda Los Cubanos Postizos. Nenhum deles

apresentava um histórico de ligação mais profunda com os ritmos cubanos e

talvez por isso o show tenha deixado a dever à música centro-americana, como

publicou Carlos Calado, pela Folha.

Na sua segunda noite, a estréia do palco ficou com Pedro Luís e a Parede, os

cariocas que misturaram rock, maracatu, funk, rap, dentre diversos outros

estilos, elaborando um pop fusion brasileiro, de batucada marcante. Animaram

o público para a entrada da última banda da noite, Cake. Eles estavam com

diversas músicas tocando constantemente nas rádios brasileiras, fato que

explica a forte participação do público, que cantou junto quase todas as

músicas no show. Ao final, receberam Tom Zé para uma participação especial.

Em sua última noite, o New Directions recebeu Medeski, Martin & Wood.

Também representantes da vanguarda novaiorquina, o power trio formado pelo

tecladista John Medeski, o baterista Billy Martin e o baixista Chris Wood,

estrapolavam as barreiras do jazz, somando a ele influências de várias

tradições musicais modernas que ia do funk ao rap, sem deixar os ruídos de

fora. A música do grupo não se baseia no improviso, mas se destaca por

apresentar novas concepções estéticas de composição, foi por isso, bastante

elogiado pela crítica. A última apresentação da noite ficou por conta do único

representante do blues, neste ano. Um jovem de apenas 18 anos, loiro dos

olhos azuis, mas que tinha a potência de um bluseiro na garganta. Jonny Lang

cantou clássicos do blues, como Lie to Me passeou pelo pop e encerrou

exibindo o vigor de um bom estreante.

Palco Club:

Este era o palco preferido dos jazzistas mais ortodoxos. Mais intimista, trazia

no corforto da tradição a certeza de vida longa ao jazz. Neste ano, o primeiro

grande nome a estrear no Club foi o de Roy Haynes, baterista veterano no jazz

que já havia tocado com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Bud

Powell, John Coltrane e até Chick Corea, para ficar só entre alguns. Quando

subiu ao palco pediu para que abaixassem a luz, de forma a estimular os

ouvintes presentes a se atentarem para a conversa jazzística que, junto de seu

grupo, apresentaram para o Free Jazz. Quem abriu para Haynes foi Leandro

Braga, pianista e arranjador paulista que, depois de acompanhar diversas

estrelas da MPB, apresentou para o Free Jazz seu trabalho solo, “Pé na

Cozinha”.

A segunda noite foi aberta pelo Trio Madeira Brasil. Composto por Ronaldo do

Bandolim no bandolim, Marcello Gonçalves no violão de sete cordas e José

Paulo Becker no violão, o trio de cordas presenteou o público com temas

nacionais de Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth e Chico Buarque, passando

também pelo ragtime de Scott Joplin, com lindas versões instrumentais. Depois

foi a vez de outro veterano, George Shearing. O pianista britânico privilegiou as

técnicas eruditas em seu repertório, que passou por standards como Speak

Low e Donna Lee, sem deixar fora as composições próprias, como Lullaby of

Birdland e East of the Sun. Aos 80 anos, chegou de smoking, assim como o

restante do quinteto. O excesso de precisão foi assunto entre os críticos

especializados, que sentiram falta de mais espaço para a liberdade jazzística

do improviso.

A Vittor Santos Orquestra subiu ao palco Club em sua última noite, como

representante das orquestras brasileiras. O trombonista carioca dirigiu mais

vinte músicos que tocaram além de composições próprias do maestro,

clássicos da Bossa Nova e dos afro-sambas de Vinícius de Moraes e Baden

Powell. Para fechar com chave de ouro, Charles Lloyd Quartet junto do

guitarrista John Abercrombie. O saxofonista norte-americano, seguidor de

Coltrane, na década de 1960 chegou a vender um milhão de cópias do seu

disco, “Forest Flower”, e virou ídolo daquela geração hippie. Neste festival veio

lançar o novo disco, “Voice in the Night”, gravado com Abercrombie.

2000

Data Local Palcos Atrações

New Directions (20h00)

Irvin Mayfield Greg Osby

Main Stage (22h30) Sean Lennon Sonic Youth

20.10.2000 – Sexta-feira

Jockey Club

Club (22h00) Hamilton de Holanda Max Roach

New Directions (20h00)

Moreno +2 Manu Chao

Main Stage (22h30) Moloko Leftfield

21.10.2000 – Sábado

Jockey Club

Club (22h00) Chucho Valdés João Donato Ray Brown

New Directions (20h00)

Marcos Suzano Talvin Singh Jay-Jay Johanson

22.10.2000 – Domingo

Jockey Club

Main Stage (22h30) Femi Kuti & The Positive Force D’Angelo

Club (22h00) Ravi Coltrane Art Ensemble of Chicago

Com o mesmo formato dos últimos anos, o Free Jazz seguiu como divulgador e

difusor de diferentes correntes musicais. A música eletrônica apareceu na

segunda noite do Main Stage, através das bandas Moloko e Leftfield. A

primeira estava conhecida, neste ano, por compor a trilha da campanha

publicitária da Lucky Strike com a música, Fun for Me. Era formada por Mark

Bryden, guitarrista, tecladista e baixista e também pela vocalista irlandesa,

Roisin Murphy. A música do duo se voltava para o pop, mas com base na

house music, na soul e no trip-hop. O Leftfield também era um duo inglês,

formado por Neil Barnes, tecladista e baterista e por Paul Daley, também

baterista. Com a ajuda de aparatos eletrônicos transitavam entre o big beat, o

techno e o funk. Além deles, o Free Jazz preparou o Village para receber os

modernos disc jóqueis, contemporaneamente conhecidos como DJs (com

pronuncia das letras em inglês). O espaço de convivência do festival foi

transformado em área para badalação, apresentando a nova safra de DJs

voltados para a música eletrônica. Essa área, aliás, naquele ano, foi muito bem

vista pela crítica musical.

Ainda assim, a grande novidade foi a vinda de representantes do rock indie,

que agradava àquela parte dos jovens mais voltados para a cultura punk e

grunge. Indie significa independet de forma contraída, um tipo de música

alternativa à margem do mercado. O Free Jazz inovou ao trazer, pela primeira

vez, grupos que já eram sucesso entre essa parcela da juventude, como Sonic

Youth, pela primeira vez na América Latina e Sean Lennon, filho de John

Lennon, também pela primeira vez no Brasil. Ambos representantes daquela

tão falada vanguarda nova-iorquina. Eles tocaram no Main Stage na primeira

noite do festival, que teve ingressos esgotados logo que colocados à venda.

Youth saiu como ótimo representante de uma elaborada cultura pop, Lennon

não teve a mesma sorte dentro da crítica brasileira.

Femi Kuti Trouxe a tradição afrobeat africana para o festival, uma espécie de

fusão entre jazz, funk e cantos tradicionais africanos. Filho de Fela Kuti, o

maior representante do estilo, veio para o Free Jazz dar continuidade às letras

contestatórias do pai, mas somando ao tradicional afrobeat, elementos da

dance music. Junto dele vieram os integrantes da Positive Force, sua banda de

apoio. Depois dele e no mesmo Main Stage em sua última noite, subiu

D’Angelo. Chegou como a nova promessa do soul que em outros tempos era

representada por Otis Redding, Marvin Gaye e Curtis Mayfield. Menos visceral

do que seus veteranos, mas igualmente melodioso e sensual, destacou-se no

cenário musical de Nova-York quando conquistou por três vezes consecutivas

o concurso de calouros do Apollo Theater, no Harlem. Para o Free Jazz

apresentou canções de seu primeiro álbum, “Brown Sugar” e de seu segundo e

último álbum, gravado em 1999, “Voodoo”.

Também teve espaço para a músca cubana, no mais intimista dos palcos, o

Club, que teve suas noites todas esgotadas antes do início do festival, na

capital paulista. Chucho Valdés, um pianista cubano dos mais conceituados,

além de compositor, arranjador e bandleader, chegou com dois Grammy na

bagagem, um conquistado em 1978, pelo album “Live at Newport” e outro em

1998, por sua contribuição com duas canções para o disco “Habana”, de sua

banda, Crisol, gravado em 1997. Também era organizador do Havana

International Jazz Festival. Trouxe para o festival brasileiro sua fusão de

influencias popular e erudita, com uma leitura jazzística-caribenha bastante

elogiada. Tocou na mesma noite que João Donato e Ray Brown. Donato, que

em anos anteriores subiu bêbado ao palco do Free Jazz, pareceu regenerado

neste ano. Fez uma retrospectiva da carreira, tocando seus grandes hits, mas

mostrou sua boa forma ao reformular de maneira criativa as antigas canções.

Ray Brawn, baixista que fechou a noite, fazia parte daquela leva de veteranos

que definiram o jazz contemporâneo e que o festival trazia de forma a revisitar

artistas amplamente consagrados. Ele já havia tocado com Dizzy Gillespie,

com Ella Fitzgerald, de quem também foi marido e diretor musical, depois com

Oscar Peterson, Milt Jackson, Joe Pass, dentre muitos outros. A parte alta do

show foi quando o trio fez um medley com as composições de Monk, Round

Midnight e Well, You Needn’t.

Max Roach foi outro importante músico da velha guarda do jazz a se

apresentar no Club, neste ano. O famoso baterista já estivera presente no Free

Jazz de 1989 e voltou com o mesmo sorriso no rosto, mais evidente durante

seus solos. Sua banda era formada pelo trompetista Cecil Bridgewater, pelo

saxofonista Odean Pope e pelo contrabaixista Tyrone Brown, os mesmos que o

acompanharam há 11 anos. Fazendo de sua bateria um instrumento melódico

e em ótima sintonia com a banda, foi responsável por um dos shows mais

elogioados. Antes dele, porém, o show do bandolinista Hamilton de Holanda

parece não ter sido bem entendido pela crítica tanto da Folha quanto do

Estadão. Ele chegava como uma das grandes promessas da música

instrumental brasileira, principalmente por ser finalista do 1º Prêmio Visa de

Música Brasileira. Fez um show privilegiando o choro brasileiro, mas com vigor

e velocidade, característico da sua forma de tocar. Sua incrível habilidade e

sonoridade enérgica, o tornou conhecido como bandolinista heavy metal, fato

mal visto pelos críticos, que preferiram defender o choro desta forma agressiva

de tocar. Vejam como foi publicado na Folha: “O que Hamilton de Holanda faz

é reflexo da esquizofrenia cultural por que passamos, em que tudo é rápido,

fragmentado e tecnologicamente preciso. Sua sonoridade é enérgica, talvez até

demais.” (JUNIOR. Carlos Bozzo. “Faltou choro no show de Hamilton de

Holanda”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 23/10/2000). Mauro Dias, do

Estadão, também advertiu: “corre o risco de virar uma espécie de Armandinho,

talentoso, como se sabe, mas nada além.” (DIAS, Mauro. “Perguntas e

respostas no palco Club”. In: Estado de São Paulo. Caderno 2. 23/10/2000).

Outro menos elogiado foi Ravi Coltrane. Afinal, ser filho de John Coltrane não

deve mesmo ser fácil. Ele fazia parte daquela nova leva de jazzistas, muitas

vezes apresentados aos brasileiros pelo festival. Saxofonista como o pai, não

conseguiu fugir das comparações sendo considerado como músico mediano

pelos críticos. O contrário aconteceu com o Art Ensemble of Chicago e sua

musicalidade free, que funde ritmos africanos, sonoridades orientais e livres

improvisos de todos os músicos da banda. Com os integrantes de rostos

pintados e vestes africanas e com o palco cheio de tambores, gongos,

chocalhos, apitos e buzinas, o show foi contagiante e transgressor, como bem

gosta o jazz.

Os novos músicos de jazz também marcaram presença no palco New

Directions. O primeiro foi Irvin Mayfield, jovem trompetista que estreava no

Brasil, cujo repertório era baseado no seu álbum de estreia, “Irvin Mayfield”.

Sem se esquecer dos clássicos standards, também tocou, Body and Soul e

Giant Step, rearranjadas como samba de forma a homenagear o Brasil.

Aclamado pela crítica, mostrou que o sotaque de sua música vem de sua

cidade natal, New Orleans. Greg Osby, outro jovem músico saxofonista, subiu

ao palco logo depois de Mayfield, dando continuidade à nova safra de jazzistas.

Driblou o previsível e conquistou a crítica. Depois, trompetista e saxofonista

subiram juntos para o bis. A jam promovida por eles foi ainda mais admirada,

reflexo de que o espírito do jazz ainda continua vivo.

Moreno Veloso (violão), filho de Caetano, junto de Domenico Lancelotti (bateria

eletrônica) e Alexandre Kassim (baixo eletroacústico), subiram ao palco para

abrir a segunda noite do New Directions. Representantes da nova safra da

mpb, tocaram composições próprias, mas também homenagearam Ataulfo

Alves com a canção Sinto-me bem, Luiz Gonzaga com Imbalança e até Cole

Porter com Night and Day, que revelou um novo pulso ao trio, destacando a

capacidade multiinstrumental de Kassim e o experimentalismo característico do

grupo. Depois deles foi a vez de Manu Chao, responsável pela voracidade na

venda dos ingressos desta noite. Sucesso absoluto com um único disco

intitulado, “Clandestino”, Manu Chao mostrou para o Free Jazz sua proposta de

música globalizada, que funde diferentes culturas através da mistura de

diversos ritmos e fez a platéia cheia do jockey cantar quase todas as canções.

Em sua última noite, o New Directions trouxe o cantor, instrumentista e

arranjador sueco, Jay-Jay Johanson e o percussionista, produtor e DJ inglês,

Talvin Sing. O primeiro, pela primeira vez na América Latina, também transitou

pela música eletrônica e mostrou, acompanhado por mais cinco músicos, seu

trip hop influenciado por bandas como Massive Attack e Portishead. O segundo

deixou os equipamentos eletrônicos em casa e fez um show basicamente

percussivo com tablas e mais dois percussionistas. Fizeram um show

ritmicamente transgressor. No bis, Marcos Suzano, percussionista brasileiro

que abriu a noite, voltou ao palco para uma tímida participação.

Transmitido pelo canal de tevê, Multishow, o festival neste ano era apontado

pela crítica como transgressor e inovador. Vejam como colocou Jotabê

Medeiros em matéria para o Estadão: “O Free Jazz é o mais ousado e influente

festival de música do país. Espalhou tendências e antecipou movimentos. Sua

permanência, com a independência usual, deveria ser uma bandeira cultural a

ser empunhada” (MEDEIROS, Jotabê. “Jazz, art rock, afrobeat, r&b,

drum’n’bass...”. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 20/10/2000).

2001

Data Local Palcos Atrações

New Directions (19h00)

Marlon Jordan Quintet The New Orleans Nightcrawlers

Main Stage (22h00) Grandaddy Sigur Rós Belle & Sebastian

Club (21h00) Moacir Santos Bill Henderson Quartet Chico Hamilton & Euphoria

26.10.2001 – Sexta-feira

Jockey Club

Cream (00h00) Youself Hernan Cattaneo Sander Kleinenberg Timo Maas

New Directions (19h00)

Funk Como Le Gusta Baaba Maal

Main Stage (22h00) DJ Dolores y Orchestra Santa Massa Roni Size reprazent Aphex Twin

Club (21h00) Yamandú Costa Randy Weston’s African Rhythms Quintet The Benny Golson Sextet

27.10.2001 – Sábado

Jockey Club

Cream (00h00) Mutiny Lottie Ray Roc X-Press 2

28.10.2001 – Domingo

Jockey Club

New Directions (19h00)

Cordel do Fogo Encantado Sidestepper Orishas

Main Stage ((22h00) The Temptations Macy Gray

Club (21h00) Curupira Pat Martino Phil Woods Quintet

Cream (00h00) Scanty Stanton Warriors Jon Carter Fatboy Slim

Em 2001, os jornais pareciam sair em defesa do festival, agora anunciado

como o mais esperado do ano. Com a nova lei proibindo o patrocínio de

eventos culturais por empresas da indústria do tabaco, o fim do festival parecia

cada vez mais evidente, já prenunciado pelos jornais. O número de críticos

especializados em música eletrônica, responsáveis por cobrir as pistas de

dança do festival, já era o mesmo dos responsáveis pela cobertura do jazz e do

rock. E estavam todos a favor da permanência do festival, já não mais tido

como uma ameaça, mas como sinônimo de modernidade e globalização, visto

que caminhava lado a lado com outros festivais de jazz pelo mundo.

A pista eletrônica que no ano 2000 aconteceu no Village, em 2001 consagrou-

se palco e foi batizada como Cream, nome de um dos mais importantes clubes

de música eletrônica de Leverpool, que foi quem promoveu a vinda de 13 DJs

para o festival, destacando a 16º edição do Free Jazz como a mais eletrônica

de todas. Neste ano, os DJs mais esperados eram: o alemão Timo Maas e o

britânico Fatboy Slim que fez os ingressos para a última noite do Cream se

esgotarem antes mesmo do começo do festival. O retorno dos disc jóqueis e a

batida eletrônica eram, agora, apreciados nos jornais, por adequarem o festival

à era da música eletrônica. Apareciam como sinônimos de modernidade e

juventude para o festival. Tanto que o palco principal, Main Stage, dedicou uma

noite só para a nova tendência da música mundial, na noite de sábado, quando

trouxe o produtor e DJ Roni Size junto de sua banda, Reprazent. A idéia foi

apresentar as mixagens feitas por Size junto com músicos tocando ao vivo no

palco. Apresentaram um dram’n’bass misturado com hip hop e ragga. Na

mesma noite, o também DJ e produtor britânico, Aphex Twin, apresentou um

set que fez todo mundo dançar usando apenas um lap top. Os brasileiros

ficaram representados pela presença do pernambucano, DJ Dolores, que veio

acompanhado pela Orquestra Santa Massa. Juntos mostraram o

maracatu’n’bass de Dolores junto com ritmos regionais nordestinos.

A universalidade proposta pelo festival ficava ainda mais aparente com a vinda

de músicos de diferentes nacionalidades que não só brasileiros e norte-

americanos. Vieram os islandeses do Sigur Rós, com um rock que se fazia

acompanhar também por violinos e violoncelos, de forma a aproximar-se da

música erudita. Apresentaram-se na mesma noite que trouxe os escoceses do

Belle & Sebastian, quando o Main Stage apresentou um rock mais novo,

bastante cool, que seguia naquela linha do indie rock, no ano anterior. O New

Directions também trouxe o senegalês Baaba Maal, que veio mostrar a música

tradicional africana influenciada pelo rhythm’n’blues norte americano. Os

Orishas, originário de Cuba que viviam em Paris, trouxeram o swing cubano

aos brasileiros. A crescente e constante presença de músicos vindos do mundo

todo mostrava, então, que nem só de dominação norte-americana se fazia um

festival de jazz.

O jazz, claro, também apareceu na voz de Bill Henderson, na bateria de Chico

Hamilton, no piano de Randy Weston e nos saxofones de Benny Golson e Phil

Woods, todos com mais de 70 anos e carreira longa no jazz. A atração mais

nova dentre os veteranos jazzistas, neste ano, era Pat Martino, na época com

57 anos, que veio para sustituir Art Van Dame, acordeonista norte-americano

que a uma semana do festival, sofreu um enfarte e ficou impossibilitado de vir.

O trompetista Marlon Jordan, no entanto, com apenas 31 anos, fazia parte da

nova geração do jazz. Antigo parceiro de Wynton Marsalis, trouxe a tônica da

erudição para o New Directions em sua primeira noite. O mais interessante a

se perceber, aqui, é que em 2001, diferentemente dos anos de 1980, os

críticos já não tinham no jazz tradicional, como o de Wynton e Jordan, o

exemplo a ser seguido pela nova geração. Ao contrário, criticavam o excesso

de erudição presente e seus shows. Até mesmo a orquestra The New Orleans

Nightcrawlers, quando apresentaram com seus dez instrumentistas a música

tradicional de New Orleans, foram criticados por não se mostrarem modernos.

Jotabê Medeiros, em matéria para o Estadão, disse que o grupo “não trazia

nenhuma inovação evidente para o gênero de brass band” (MEDEIROS,

Jotabê. “New Directions”. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 29/10/2001),

e por isso, desqualificou o show do grupo, cujo interesse era justamente o de

preservar a tradição daquela forma musical.

No ano de 2002 o Free Jazz ficou só na promessa. Embora anunciado como a

última edição do festival, visto que em 2003 ele perderia o patrocínio com a

entrada da nova lei, a Souza Cruz cancelou o que seria seu último patrocínio

para o evento, alegando a instabilidade econômica e a alta do dólar por que

passava o país, como motivos para a desistência. O público e a mídia não

gostaram da decisão. Afinal, depois de tantos anos, o Free Jazz já fazia parte

da agenda cultural do país, como nosso festival mais importante. Em 2003, no

entanto, se assumindo como um festival de música genérico e não mais

jazzista e com o patrocínio da empresa de telefonia, Tim, o festival voltou com

novo nome, Tim Festival, que teve seu fim em 2008, novamente pela perda do

patrocínio.

Capítulo 3 – O Jazz na Mídia Impressa

Concordo com Juremir Machado da Silva, no livro A Miséria do Jornalismo

Brasileiro, quando afirma que a crítica cultural brasileira ainda não nasceu, o

que pode valer para a crítica musical.

A crítica da mídia, na atualidade, que parte do pressuposto do não

mercado, afunda-se na nostalgia e na intolerância. O país necessita

de uma crítica interna ao mercado capaz de postular a ampliação dos

espaços públicos de discussão e de gerar mais democracia nos

limites da sociedade capitalista. A prioridade nacional em termos de

liberdade de expressão está na obtenção de mais espaço para a

dúvida e a contradição, ou seja, para o jogo argumentativo, não para

a imposição de velhas Verdades com novos invólucros. Democracia

rima com desmitificação. (SILVA, 2000, p.27)

Já em seus primórdios, em finais do século XIX, o crítico Oscar Guanabarino

informava que Carlos Gomes não conhecia as obras de Mendelssohn, embora

depois tenha sido provado o contrário. Quem o atesta é Enio Squeff, no livro

aqui já muito referido O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, opinando no

sentido de que a crítica pode ter se equivocado, ou então, sugerido a

ignorância do compositor brasileiro.

Qual a razão da provável mentira de Guanabarino? Supondo-se um

equívoco, nem por isso as suspeitas do crítico poderiam ser levadas

em conta. Mas se pode supor também que Carlos Gomes sugerisse a

ignorância que, afinal, Guanabarino denunciou. As ilações podem

variar ao infinito; a menos inverossímil é a de que Guanabarino de

fato tenha se equivocado – mas, para tanto, talvez tenha contribuído

a idéia que ele fazia de Carlos Gomes, e não apenas desse

compositor, mas de boa parte dos músicos ou homens ligados à

música no Rio da época. (SQUEFF & WISNIK, 2004, p. 108-109).

Pode-se dizer que, naquele período, a música brasileira era ainda bastante

influenciada pela música européia, mas saía do domínio das óperas italianas,

onde encontrava-se Carlos Gomes, como operista brasileiro, para o sinfonismo

alemão. Guanabarino, dessa forma, se preocupava em estabelecer uma cultura

musical que fosse bem vista pelos europeus, tal como o senso comum daquele

período pretendia.

Assim também aconteceu no momento de surgimento da Bossa Nova em finais

de 1950 e início de 60. A crítica que recepcionou o novo estilo foi, a princípio,

bastante aversiva, carregada de um senso comum nacionalista, reforçado,

principalmente, pelo governo de Getulio Vargas, nas décadas de 1930 e início

de 40, que acreditava que, pela influência de estilos estrangeiros, perderíamos

nosso senso nacional e estaríamos submetidos à cultura de massa norte-

americana. Quando a influência se torna influenciadora, fato diagnosticado pela

crítica semioticista, principalmente de Augusto de Campos, mas também de

outros como Júlio Medaglia, os brasileiros se voltam com outros olhos para a

então mais moderna música brasileira. Ainda assim, o senso comum de que a

cultura de massa norte-americana era uma ameaça para o país perdurou por

muitos anos dentro da crítica brasileira, como veremos adiante.

O Jazz, que por muito tempo permaneceu nos primeiros lugares dos

programas radiofônicos nos Estados Unidos, parecia muito ameaçador quando

do surgimento da Bossa Nova, como dizíamos. Sua presença foi bastante

denunciada, aqui, como interferência do estrangeiro ameaçador, símbolo do

domínio norte-americano. Porém, na década de 1980, quando nasce o Free

Jazz, o inimigo não era mais o jazz, a esta altura elevado à categoria de arte,

mas sim o rock’n’roll, a que a crítica se referia como outrora o fazia com

relação ao jazz: o ícone da indústria cultural e do entretenimento alienante.

Quando de seu surgimento, o rock’n’roll conquistou toda uma juventude antes

fiel ao jazz, e foi eleito o novo queridinho da indústria fonográfica, que investiu

pesado na sua proliferação. Seu nascimento é datado de finais da década de

1950 e início de 60, assim como o da Bossa Nova no Brasil, e sua ascensão

caminhou lado a lado com a explosão dos mass-media. O movimento iniciado

nos Estados Unidos e na Inglaterra décadas depois se tornaria fenômeno

mundial e, no Brasil, foi representado por centenas de bandas de rock que

surgiram em meados de 1980, como Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião

Urbana, Ultraje a Rigor, Capital Inicial, dentre muitíssimas outras.

O rock desalojou o jazz de sua carreira popular e o levou a ser música para

minorias, tão artística quanto a música clássica. No entanto, o mais

interessante a perceber aqui é que, quando o jazz retorna de maneira marcante

à mídia brasileira em 1985 pelo surgimento do Free Jazz, outro grande festival

de rock, o Rock’n’Rio, acontecido em janeiro do mesmo ano, comprovava a

força do novo movimento musical perante a cultura brasileira. Ainda assim, sua

trajetória não foi tão expansiva e duradoura quanto a do Free Jazz que, para

sua sobrevivência, acolheu diversos outros estilos, acompanhando uma

tendência global dentro dos festivais de jazz pelo mundo.

O jazz sempre foi vaidoso e teve a versatilidade como eterna companheira, foi

por isso que músicos como Miles Davis, Chick Corea, Herbie Hancock e

Wayne Shorter, com seu Weather Reportot, dentre muitos outros, foram

capazes de fundi-lo tão facilmente ao rock, de forma a garantir sua

sobrevivência junto ao mais novo astro pop. A crítica, purista em sua maioria,

reprovou, assim como reprovou o estilo bepbop em seu nascimento pós-swing

orquestral, como também reprovou o nascimento do estilo free jazz com seu

atonalismo, e como também vem repudiando todo o tipo de fusão com a

música pop.

No entanto, perceberemos que um novo olhar pode ser identificado na mídia

brasileira a partir das críticas de Carlos Calado. Em 1987, por exemplo, quando

o Free Jazz recebeu Chick Corea, num modelo fusion, pelo uso do sintetizador

e performance de rock star, a maioria da crítica parecia saudosa daquele Chick

do piano acústico, mais bem comportado: “O problema é o uso excessivo da

parafernália. Corea se comporta melhor com um piano acústico” (FILHO,

Antônio Gonçalves. “Corea leva 24 mil ao Ibirapuera”. In: Folha de São Paulo.

Caderno de Cultura. 14/09/1987). Enquanto isso, Calado direcionava para a

presença jazzística, mesmo diante dos instrumentos importados do rock: “O

impasse desta música ainda chamada jazz, apesar de toda a diversificação que

a caracteriza, não passa pelo uso cada vez mais intenso que se faz de

instrumentos eletrônicos, mas sim pela concepção que está por trás dessa

parafernália.” (CALADO, Carlos. “Fusion, a nova marca do Free Jazz”. In: Folha

de São Paulo. Caderno de Cultura. 07/09/1987). Dessa forma, enquanto a

maioria da crítica preferia se ver livre dos instrumentos eletrônicos, o crítico da

Folha se preocupava em demonstrar aonde estava a concepção estética do

jazz, independente do tipo de instrumento escolhido pelo músico.

Ora, não se pode fechar os olhos para o mundo que se abre, ainda que para

produtos de uma indústria cultural. E foi essa a proposta que os tropicalistas

trouxeram, porém, mais uma vez, foram mal entendidos pela crítica que os

recebia. Não há como convencer um público que cresceu diante de uma nova

era, de que tudo o que se faz não presta e ponto final. É preciso reestabelecer

o elo que une passado e presente para ampliar o espectro de conhecimento da

sociedade, de forma que cada indivíduo consiga estabelecer suas próprias

conexões e seja capaz de fazer suas análises individualmente e não a partir de

um ponto de vista pré-concebido. A crítica, de forma geral, se comporta como

guardiã das normas vigentes e confirma, assim, as regras estabelecidas pela

sociedade. Evita, pelo menos a princípio, uma transgressão ou um afronto.

Com a devida ressalva, pensando na função crítica de forma totalitária e não

enquanto exercício de um ou outro indivíduo, há de se perceber que ela

também sabe se redimir quando o tempo prova seu erro, e foi isso que a crítica

concretista mostrou. Surgiu como exemplo de modernidade diante daquela

crítica cultural que não acompanhava a arte, que por si só busca a metáfora, a

reinvenção ou a resignificação dos códigos já estabelecidos. Os movimentos

modernista e concretista propuseram uma nova função para a crítica, porém

também foram mal interpretados, de forma que, no Brasil, se restringiram a

marcos históricos na tentativa da busca de novos olhares capazes antes de

abrir, mais do que fechar conceitos como sempre foi feito de forma mais

frequente.

Ruy Castro é um mineiro que se formou jornalisticamente nos grandes jornais

cariocas e paulistanos. Ganhou cada vez mais respeito dentro dos veículos de

comunicação brasileiros, principalmente a partir da década de 1990, quando se

firmou como escritor, com a publicação das biografias de Nelson Rodrigues,

Garrincha e Carmem Miranda. Tornou-se um dos principais escritores da

editora Companhia das Letras, onde também publicou Tempestade de Ritmos.

Foi da música às tradições cariocas com livros como Ela é Carioca e A Onda

que se Ergueu no Mar. Não era averso ao jazz, conhecia muito bem seu

contexto político e social, detectados principalmente na obra de Scott

Fotzgerald, um dos maiores contistas da era do jazz, traduzido por ele. Foi

vencedor de três prêmios Jabuti, tornando-se uma das maiores autoridades do

jornalismo cultural brasileiro.

Durante a década de 1980, no entanto, se fez ouvir, pelo jornal O Estado de

São Paulo, embora na década seguinte, também pela Folha de São Paulo,

como um dos principais críticos do Free Jazz. Ruy Castro faz o tipo cronista,

escreve como se contasse uma história, sem deixar de explicitar sua opinião

sobre o assunto. Ele é um excelente escritor, convida o público para a leitura e

tem conhecimento profundo quando o assunto é música popular. Com relação

ao jazz, no entanto, demonstra uma postura saudosista e classicista, aprova os

já consagrados pela história e seus descendentes, mas reprova o que não

chega carregado de tradição. Em sua crítica de encerramento para o 3º Free

Jazz, mais do que apresentar uma crítica sobre música, preocupou-se em

desmascarar a estrutura econômica que amparava o festival e a indústria

cultural como um todo. É a isso que ele se refere, então, quando anuncia na

manchete: “Só ouvidos apurados ouvem as fivelas caindo das máscaras”.

Numa posição confortável para desmascarar as falsas estrelas convidadas pelo

Free Jazz_ uma vez que evidencia o problema excluindo-se da realidade que o

cerca_ o crítico se ocupa em denunciar a grande estrela responsável por essa

infusão de “enganadores” na rota do jazz: Miles Davis que, “para faturar uns

trocados”, funde rock ao jazz no disco Bitches Brew, e cria “este bebê

anencefálico chamado fusion”, que com sua nova proposta estética anuncia a

morte do estilo: “A ressaca da infusão preparada por Miles Davis fez – por

enquanto – o jazz perder em musicalidade, em mercado e, se não abrir o olho,

corre o risco de ver a sua própria marca transformada numa dessas grifes que

o rock precisa adotar e jogar fora de tempos em tempos, como o new wave,

new bossa e new age. Como epitáfio para um túmulo, não poderia ser mais

tétrico.” (CASTRO, Ruy. “Só ouvidos apurados ouvem as fivelas caindo das

máscaras”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 10/09/1988).

A visão catastrófica do crítico também não era novidade. A previsão de morte

acompanha a crítica jazzística desde sempre, dadas as constantes

modificações estilísticas sofridas, ao longo de sua história. Além disso, a

ameaçadora indústria cultural já havia sido desmascarada através daquele

pensamento de cunho sociológico encaminhado por Adorno, que escancarava

as intenções mercadológicas presentes nas produções feitas para as massas.

Nesta crítica Ruy Castro retoma, como ele mesmo aponta, uma discussão que

começou na década de 1970, época de criação do fusion jazz / rock. Para ele o

assunto chegava atrasado ao Brasil, embora pareça que o próprio crítico,

depois de tantos anos, retomava uma polêmica já fora de voga. Ele parecia

querer evitar o inevitável e, partindo do pressuposto de que a parcela dos

jovens que consomem “fusion” seja apenas alienada, garante: “compra fusion

por jazz sem perceber que está cauterizando uma experiência musical que

poderia enriquecê-la e, pior ainda, está sendo feita de boba.” (Idem). Para ele a

estética fusion é a da pobreza técnica, feita por “enganadores” que

transformam o jazz apenas em uma marca, apoderando-se do forte caráter

vanguardista que sempre rondou o estilo, para se enobrecer, o Free Jazz seria,

então, um disseminador dessa trucagem. Em outra matéria no mesmo ano o

crítico aponta: “Mais uma vez o jazz (sem aspas) empresta a sua generosa

griffe para acolher bandos de bandas que vieram para o festival errado.”

(CASTRO, Ruy. “Os estranhos no ninho do Free Jazz”. In: O Estado de São

Paulo. Caderno de Cultura. 04/09/1988). Vale lembrar que, depois de repudiar

todos os músicos presentes no festival, sem exceções, como enganadores que

se venderam à indústria cultural, mais precisamente dois anos depois ele lança

o livro: Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. Pode-se

supor, então, que sua crítica preparava o terreno para a recepção de seu livro,

pois diante de tanta enganação, escrever sobre a Bossa Nova nos anos 1990,

mais do que uma atitude passadista, seria um retorno à última grande criação

musical brasileira, que depois foi invadida por enganadores.

Luis Antônio Giron também foi um forte crítico cultural dos anos 1980. Forte

devido à grande visibilidade que possuía dentro dos jornais e conhecido por

afrontar artistas consagrados. Figura polêmica, teve que se explicar na mídia,

em 2005, quando acusado de receber um i-pod da gravadora da cantora Maria

Rita, cujo interesse era aumentar os elogios na mídia. Ele é gaúcho de Porto

Alegre e formou-se em jornalismo pela PUC-RS. Mudou-se para São Paulo em

1982 com o objetivo de fazer o mestrado em Comunicação e Semiótica pela

PUC-SP, mas não concluiu. Mudou de área e terminou realizando seu

mestrado em musicologia pela ECA-USP, onde também fez o doutorado em

crítica e história cultural. Ainda nos anos 1980 passou por diversos veículos de

comunicação: foi redator e editor assistente do Folhetim e da Ilustrada de 1985

a 1986. Passou para sub-editor da Veja e logo em seguida para o Caderno 2

do Estadão como editor-assistente e repórter, onde ficou de 1986 a 1989.

Neste mesmo ano voltou como repórter da Ilustrada, onde ficou até 1995. A

partir daí passou pelo Caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil, foi editor

executivo da Revista Cult e professor do curso de Jornalismo do Instituto de

Artes da Universidade Mackenzie. Hoje é editor de cultura da revista Época e

colaborador da rádio Cultura e da revista Bravo. A partir dos anos de 1990

também se firmou como escritor, publicando alguns livros como Mário Reis, O

Fino do Samba (2001) e Minoridade Crítica (2004).

Pela sua trajetória profissional, percebemos que o crítico tem história longa

dentro do jornalismo cultural, mas nos anos 1980 também não aprovava os

excessos musicais que os festivais abraçavam. Não entendia isso como uma

estratégia de sobrevivência, mas de marketing midiático. Assim concluiu o 4º

Free Jazz em 1988: “jazz que é jazz ficou à margem da tietagem barata e do

mundo paralelo simulado pela mídia” (GIRON, Luis Antônio. “No final, a síntese

do que não foi um festival de jazz”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de

Cultura. 13/09/1988). E para desmascarar a farsa exemplificou a partir da

musicalidade do grupo The Lounge Lizards: “a experimentação foi rebaixada à

condição de glamour para imbecis. (...) Os Lizardas são a ponta do novelo da

mediocridade que foi desenrolado durante o festival.” (idem). Percebe-se que,

mesmo incluindo jazzistas em sua programação, era justamente o não jazz que

vingava em sua crítica jornalística quando o assunto era o Free Jazz. Giron

fazia suas ressalvas, mas deixava sua seleção dos melhores para o último

parágrafo de seu texto, majoritariamente opinativo, que priorizava escancarar

os “fiascos” do evento de forma a justificar o que ele considerava como um

festival medíocre de música.

O mais interessante, no entanto, está em outra crítica, publicada no ano

seguinte, dois dias após o encerramento do 5º Free Jazz, em 1989. A

manchete anuncia: Derrotas e vitórias na roleta Free. Aqui, Giron aponta para o

ideal da imprensa de criar um “jazzódromo” capaz de conter suas “apostas” e

“cotações” com os melhores e piores artistas presentes no evento. Quando o

festival se concretiza na agenda cultural do país, quer pelo patrocínio, quer

pelo público garantido, ele destaca o problema: “O Free Jazz deste ano pôs em

confronto, como nenhum outro, público, crítica e músicos” (GIRON, Luis

Antônio. “Derrotas e vitórias na roleta Free”. In: O Estado de São Paulo.

Caderno de Cultura. 01/09/1989). Desse confronto, quem se saiu pior foi o

público, “provou que detesta música de alta informação, adora blues e

despreza os artistas nacionais” (idem). Aqui está a grande questão desta

crítica, Giron não admite uma noite dedicada ao blues num festival de jazz,

apenas porque que tal estilo transita no que ele chamou de “campo das

facilidades”.

O crítico menospreza não só o público, mas também o blues como nenhum

respeitável músico de jazz o faria. O pianista Billy Taylor, por exemplo, acredita

numa profunda aproximação entre os estilos: “Eu desconheço um só grande

músico do jazz, de qualquer período, que não tenha profundo respeito e

identidade pelo blues.” (BERENDT, Joachim E., 2007, O Jazz: do rag ao rock,

p. 123, 124). O blues está na coluna cervical do jazz e por isso é

completamente aceitável dentro do festival. Mas sua simplicidade musical

incomoda o crítico, que esteticamente o classifica como: “esse sapato velho e

folgado que serve em qualquer pé estético.” (GIRON, Luis Antônio. “Derrotas e

vitórias na roleta Free”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura.

01/09/1989). Um pouco mais a frente, quando vai analisar o show de John Lee

Hooker, declara: “sua banda era um lixo, ele não cantou quase nada, mas e

daí? O Blues carrega toda aquela “emoção”, produz efeitos facilmente

assimiláveis e, além de tudo, hoje os brasileiros de bom gosto precisam querer

ser americanos, fingir que falam “yeah” – embora não saibam um fragmento de

letra das belíssimas canções de Hooker.” (idem). Em suma, percebe-se que a

facilidade de assimilação do blues causa certa preocupação ao crítico, pois

reforça a aceitação do público “à redundância do pop e do blues”, além de

facilitar a dominação cultural estrangeira. Além disso, falta um senso crítico

menos subjetivo. Dizer que a banda era “um lixo” e que Hooker não cantou

“nada” é uma definição muito pessoal, além de chula. O leitor fica a desejar o

embasamento que o levou a fazer tal afirmação. De todo modo, vale lembrar

que naquele ano ocorreu um importante festival de blues em Ribeirão Preto, o

1º Festival Internacional de Blues, que trouxe diversos “bluseiros”

internacionais ao Brasil, além de incluir o blues na pauta de cultura da mídia

brasileira. Ou seja, o crítico hostilizava a menina dos olhos da mídia e, dessa

maneira, conduzia os holofotes para si.

O jazz, no entanto, seria o palco das dificuldades vanguardistas que espantam

o público. O exemplo dado pelo crítico foi o show do free style Cecil Taylor: “Se

o blues fez sucesso, a vanguarda naufragou. O magnífico quarteto do pianista

Cecil Taylor esvaziou o Palace no sábado e o teatro do Hotel Nacional no dia

22 com suas performances revolucionárias, em que o pianista dançou sobre o

teclado, rompendo o instrumento e criando a música correspondente à pintura

de ação de Sydney Pollack.” (idem). Giron acredita que um festival de jazz

deve priorizar, portanto, a sua complexidade musical, de forma a afastar-se da

grande massa que não o compreende; assim é quando informa que no próximo

ano o festival continuará com a noite dedicada ao blues, e sugere ironicamente:

“... que, em vez disso, façam também um Free Blues Festival, deixando quem

não gosta de folclore em paz.” (idem). Faltou informar que o festival de blues já

existia, só que em Ribeirão Preto.

O que se percebe até aqui é que tais críticos pretendiam reduzir o espaço de

atuação do jazz que, diferentemente do rock, não servia para encher grandes

salas e divertir grandes públicos, mas se assemelhava à música de concerto,

mais intimista e tida como chata pela juventude roqueira. Esse estereótipo iria

acompanhar toda a trajetória do festival, tanto que em 1994 o crítico e músico

Guga Stroeter adverte em manchete para a Ilustrada: “Jazz precisa ser sempre

chato”. Numa espécie de crônica jornalística, ele começa o texto com a grande

dúvida jazzística, discutida pela crítica, dentro do festival: “a recalcada questão

do que é e do que não é jazz caducou epistemologicamente” (STROETER,

Guga. “Jazz precisa ser sempre chato”. In: Folha de São Paulo. Caderno de

Cultura. 18/10/1994). Isso porque naquele ano surgia a fusão do jazz com o rap

e era preciso, novamente, restabelecer o lugar do “verdadeiro” jazz, que no

passado estava ligado ao universo underground dos negros. Para tanto, Guga

aponta em sua matéria que, ao conversar com um “jazzista feérico”, obteve o

seguinte depoimento: “o jazz precisa necessariamente ser chato, ser um mau

negócio e fazer mal à saúde. Para afugentar o leigo, longas improvisações

podem e devem se tornar monótonas. E, enquanto astros do pop compram

iates e castelos, os músicos de jazz devem viver seu apogeu nas espeluncas,

se drogando pelos cantos.” (idem).

Falta, então, um olhar moderno sobre o jazz. Um festival como o Free inaugura

o Brasil na rota dos principais festivais de jazz do mundo e chega como

representante de um movimento mundial. Aqui a discussão crítica, mais do que

ficar presa à ideia passadista de um jazz suburbano, acústico, marginalizado,

onde os músicos mostram sua dignidade aproximando-se de um ideal de

música clássica, volta-se para o caráter transgressor dessa música que, de tão

admirada, teve seu nome vinculado a um padrão de festivais que determinou

vida longa ao jazz, uma vez que permitiu sua incursão no mercado de shows

mundiais e garantiu a conquista de novos públicos e as constantes trocas

interculturais, fundamental ao jazz.

Nos anos 1990, Carlos Calado ganha cada vez mais espaço dentro da Folha

de São Paulo e assim, uma visão crítica menos ortodoxa e bastante informativa

apresenta-se mais fortemente aos leitores. Ele aprendeu a fazer crítica lendo-

as nos jornais e teve como mestres grandes nomes como Zuza Homem de

Melo, um dos produtores artísticos de Free Jazz; Armando Aflalo, que no

surgimento da Bossa Nova fez parte dos críticos que apoiaram o novo estilo;

Tárik de Souza, que hoje é um dos críticos que defende aquela fusão de

samba/rap feita por músicos como Marcelo D2; além de José Domingos

Raffaelli, que durante seus anos de trabalho no Jornal do Brasil era acusado

pelo xenófobo José Ramos Tinhorão como sendo um jornalista vendido ao

império norte-americano, por escrever sobre jazz. Calado não estava trazendo,

portanto, nenhuma novidade para a crítica brasileira, apenas seguia os passos

de críticos que, como ele, acreditavam na diversidade. Nos anexos deste

trabalho o leitor poderá encontrar mais informações sobre Carlos Calado, numa

entrevista concedida para esta pesquisa.

É ele que, em 1994, durante a polêmica noite dedicada ao jazz/rap, vai sair em

defesa do festival que, para ele, “acerta em se abrir para o rap, como já fez

com o blues”, pois “como outros festivais de prestígio no mundo, o Free Jazz

percebeu que também é preciso investir no público de amanhã.” (CALADO,

Carlos. “Puristas vivem reclamando”. In: Folha de São Paulo. Caderno de

Cultura. 18/10/1994). Em seu ponto de vista, a decisão do festival em dedicar

uma noite à nova fusão pode ter uma função didática, ajudar a nova geração a

se interessar pelo jazz mainstream: “quem sabe, ao ouvir melodias de Herbie

Hancock e Thelonious Monk ou ao escutar solos de Donald Byrd e Courtney

Pine, os fãs do jazz/rap também se interessem pelos trabalhos individuais

desses jazzistas.” (idem). Calado acha que ainda é cedo para definir se a

mistura vai funcionar e formar mais um capítulo na história do jazz, mas

garante: “os puristas se recusam a admitir o óbvio: o jazz nunca foi e jamais

poderá ser música pura.” (idem). Para ele as misturas fazem parte da estética

do jazz, pois uma música que se apoia nos improvisos de cada músico é

constantemente recriada e vive sob constante mutação: “já se misturou com a

música clássica, com os ritmos afro-cubanos, com a música oriental e com o

samba, entre inúmeras combinações.” (idem). Aqui observa-se, finalmente, um

ouvido curioso em relação ao futuro do jazz, diante de um festival como o Free.

Um ouvido que, percebendo as constantes modificações e fusões presentes no

passado do estilo, se abre para entender as diversas novas fusões possíveis,

diante de um alargamento das produções musicais mundiais. Ele preocupa-se

em rejuvenescer o jazz e não em caracterizá-lo como música antiga possível

de agradar aos que, outrora, foram jovens e vivenciaram a verdadeira era do

jazz com seus consagrados músicos.

Durante a década de 1990, diante de uma diversidade cada vez mais ampla

dentro dos festivais, os dois grades jornais paulistanos apresentam ambos um

coro crítico diverso. O Free Jazz com público, investimento e atuação cada vez

maior, se garante como pauta certa dentro das redações, incluindo-se naquele

seleto grupo das pautas midiáticas que giram em torno de cobertura de

eventos, entretenimentos e datas comemorativas, obrigando os jornais a uma

variedade e convivência de idéias. Ora, nesse ponto, não adianta mais insistir

em críticos que lutam contra o festival, quando a divulgação do evento estimula

uma maior vendagem dos jornais. Então críticos mais puristas como Ruy

Castro são redirecionados para shows que lhes interessem mais, revelando-se

mais dóceis perante o evento. Em 1993, numa noite onde os grandes jazzistas

trazidos pelo festival, dirigidos por Herbie Hancock, prestaram uma

homenagem a Tom Jobim, Ruy Castro demonstra seu carinho pelo estilo já na

manchete: “São Paulo ouviu amor na noite de tributo a Tom Jobim” (CASTRO,

Ruy. “São Paulo ouviu amor na noite de tributo a Tom Jobim” In: Folha de São

Paulo. Caderno de Cultura. 29/09/1993) e aí foram só elogios, principalmente

pelo orgulho de ver os norte-americanos cultuando a música brasileira.

Giron também não agride mais o festival, mas fica dividido entre atrações que

ele classifica como de bom gosto e outras que ele ataca, por serem exemplos

da indústria do entretenimento, normalmente aquelas que atraem um grande

público. Assim, em 1994, seleciona o baixista Marcus Miller como um exemplo

a ser seguido dentro do jazz, principalmente porque o músico já havia tocado

com “São” Miles Davis e apresentou uma homenagem ao mestre: “o baixista

demonstrou que a arte de Davis possui uma coerência e um classicismo

obscurecidos pelo marketing da sua fase terminal, popeira e rappeira” (GIRON,

Luís Antônio. “Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus

Miller” In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 26/10/1994). Ou seja, Miller

é bom, porque reativa o passado glorioso de Miles. Em compensação, para

James Brown não restou nada a não ser um “bordel sonoro”. A crítica

pejorativa dedicada ao show de Brown já começa com um trocadilho referente

à música sex machine: “a máquina de sexo do cantor e compositor norte-

americano James Brown, 66, quase emperrou anteontem no Palace” (GIRON,

Luís Antônio. “Brown fecha Free Jazz com bordel sonoro” In: Folha de São

Paulo. Caderno de Cultura. 29/10/1994). Para o crítico o show foi um

“espetáculo patético” que pôde ser facilmente confundido com “kitsch”. Isso

porque Brown já está velho e fora de moda: “Brown também tem o seu lado

arqueológico e está inaugurando no pop a onda da música histórica. Ele se

mostra mestre da taxidermia no funk. Empalhou-se a si mesmo.” (idem). O

texto é tão irônico e tão centrado no gosto particular do crítico que acaba por

perder a seriedade que deveria caber à função da crítica.

Os palcos específicos para cada estilo, dentro do festival, fazem emergir

críticos diversos para cobrir cada um deles. E então abre-se espaço tanto para

críticos mais conservadores quanto menos. Alguns mais jovens já detectam na

diversidade o ar juvenil que sempre pareceu faltar ao festival. Quando em 1996

o Free Jazz convida Bjõrk para se apresentar, Pedro Alexandre Sanches se

mostra aliviado: “a cantora islandesa Bjõrk subiu ao palco no sábado para dar

ao festival de jazz o que lhe faltava: juventude” (SANCHES, Pedro Alexandre.

“Bjõrk aponta para o futuro e mostra música globalizada aos brasileiros”. In:

Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 14/10/96). Naquele momento

percebe-se que o jazz já está marcado como uma música velha, séria e que

não atrai ouvidos jovens, embora unanimemente consagrada pela crítica como

música artística. O interesse dos jornais agora não está mais no medo da

dominação estrangeira e capitalista, mas na era da música globalizada. Não

querem mais defender a cultura brasileira, mas incluí-la no mercado mundial.

Não estão mais contra a proposta “moderna” do festival, mas a favor dela.

Seguem majoritariamente aquele senso comum moderno de que o velho é ruim

e careta, mas o jovem é bom e moderno. Na verdade, os puristas continuam

cobrindo o festival, mas com interesse focado naquilo que eles aprovam, assim

como todo o restante da crítica. Além disso, os jornais perdem um antigo hábito

de escolher um crítico para fazer o balanço geral do festival e apresentam

pequenas críticas para cada show. São críticas que, em sua maioria, ficam

apenas no nível opinativo e não criam condições de análises, nem de conexões

entre estilos musicais próximos.

Fato é que, mesmo com plataformas críticas mais diversificadas, a posição

ideológica dos jornais não é a de discutir a diversidade, porém compartimentá-

la, de modo a fazer com que cada crítico atue na sua área específica. Por

certo, não há como se ser um expert em todos os estilos musicais, mas quando

se faz crítica, principalmente para um festival em que diversas tendências

convergem, é preciso saber transitar entre diferentes estilos, de forma a

exclarecer para o leitor sobre uma tendência não só dentro dos festivais, como

da cultura de forma geral. Além disso, cada vez menos os críticos demonstram

um embasamento teórico capaz de amparar suas ideias, satisfazendo-se com

opiniões cunhadas em seu gosto pessoal o que leva, em certos casos, à

utilização do jornal como veículo para autopromoção do crítico. Isso dá

testemunho do desconhecimento da música de modo geral, que pede domínio

do funcionamento do mercado das gravadoras, da produção de shows e de

mercados paralelos que a música vem criando para driblar o poder das

gravadoras, como a disponibilização de discos pela internet.

Aqui surgem novas perguntas: será que os nossos críticos estão capacitados

para fazer crítica? Será que estão educados para o universo da escuta tão

desestimulado no mundo imagético atual? Não seria o caso de se buscar uma

crítica menos focada na denúncia e mais rica em experiências musicais? E

nossos jornais, será que não precisam de novas pautas que não sejam sempre

aquelas da agenda cultural pré-estabelecidas por eles mesmos? Será que se

importam menos com a importância que dão aos seus críticos? Não há como

responder a todas essas perguntas agora, mas precisamos refletir sobre a

importância da crítica, hoje, dentro dos jornais. Carlos Calado acredita que a

crítica cultural está em franca extinção com espaços cada vez menores dentro

dos jornais que parecem se importar menos com isso do que com as

propagandas que pagam seus custos. No próximo capítulo, então,

abordaremos o pensamento de dois grandes críticos musicais brasileiros, de

forma a ouvir uma autocrítica sobre a crítica musical brasileira.

Conclusão

Carlos Calado nos conta, em entrevista concedida para esta pesquisa, que seu

primeiro curso sobre jazz foi feito através da rádio Cultura, ao escutar um

programa sobre a história do jazz elaborado por Armando Aflalo, também

crítico do Jornal da Tarde. Para ele, os jovens de sua geração foram

privilegiados com programas radiofônicos capazes de apresentar uma

diversidade musical de forma pioneira, ao mesmo tempo em que esclareciam

sobre os antecedentes de cada estilo, de forma a atualizar os ouvintes, ao

rememorar antecedentes musicais, que traziam à tona músicas de períodos

anteriores, que a maioria deles ainda não havia escutado.

Hoje é um consagrado crítico de jazz, principalmente de festivais de jazz.

Cobriu o Free Jazz desde 1987 e outras dezenas de festivais de música pela

América do Norte, Europa, Caribe e África, além de ter colaborado para

diversas revistas de música como a Bravo e a Showbizz. Também mergulhou

na nova tendência dos blogs jornalísticos e criou o seu: Música de Alma Negra.

Fez isso por perder o interesse na crítica jornalística atual. Para Calado, o

espaço concedido a elas está cada dia menor, além de submetidas a uma

política extremamente mercadológica que privilegia as novas tendências

musicais, sem esclarecer sobre sua história e seus antecedentes.

Pois bem, se estamos em um momento em que os jornais impressos já não

competem com a mesma velocidade na transmissão de notícias, diante de

outros meios de comunicação como a internet e a televisão; percebe-se que o

jornalismo impresso contemporâneo deveria se voltar mais para o

esclarecimento, do que para críticas compactas e informativas ao extremo. Não

é uma necessidade de volta ao tempo, de forma a privilegiar um momento

passado que não voltará, mas de estabelecer o elo entre presente e passado,

através de vínculos estéticos, históricos, conceituais, dentre outros, que sejam

capazes de estimular um senso crítico no leitor e não uma posição impositiva

de gosto particular ou pequenas notas de apresentação de artistas.

Júlio Medaglia, também em entrevista para esta pesquisa, parece concordar

com esses problemas. Para ele, a música perdeu aquela saudável

aproximação que mantinha com os meios de comunicação, cujo objetivo, em

décadas anteriores, era fazer parte de todo aquele movimento de vanguarda. O

maestro acredita que: veículos de comunicação e música estão brigados e que,

neste momento da história, está difícil encontrar uma tendência dentro de todos

os estilos de música, desde a música popular até a erudita, passando pelas

vanguardas. Não pela falta de informação, mas pelo excesso dela. Afinal,

depois de tanta liberdade, tanta fusão e tanta diluição, difícil encontrar um

caminho capaz de organizar todas essas informações que, hoje, se

apresentam soltas e diluídas.

Concluímos, assim que, quando propomos uma crítica mais voltada para o

esclarecimento do que para os apelos de um juízo de valor _ diante de um

cenário onde não há mais lugar para nacionalismos de nenhum tipo _

pretendemos que a crítica musical se relacione de forma harmoniosa com a

extensa produção musical da atualidade, de forma a estimular a abertura de

novos caminhos e conceitos, capazes de redirecionar a música, de forma a

incluí-la em uma realidade global e diversificada, em que a separação, quer por

nacionalidade ou estilo, já não faz mais sentido. Diante deste momento

histórico em que todas as artes e todos os diferentes estilos musicais

convergem, quando se começa a falar sobre música globalizada, a falta de

qualificação da mídia brasileira reflete a limitação de um dos sentidos mais

importantes para o homem, perdido nesta atualidade que privilegia a imagem,

sua capacidade auditiva.

1

Referências

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6

Apêndices

7

10.09.1988 - Só ouvidos apurados ouvem as fivelas c aindo das máscaras - Ruy Castro - O Estado de São Paulo

8

13.09.1988 - No final a síntese do que não foi um f estival de jazz - Giron – O Estado de São Paulo

9

01.09.1989 - Derrotas e vitórias na roleta Free - G iron - O Estado de São Paulo

10

18.10.1994 - Jazz precisa ser sempre chato - Guga S troeter - Folha de São Paulo

11

18.10.1994 - Puristas vivem reclamando - Carlos Cal ado - Folha de São Paulo

12

26.10.1994 – Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus Miller – Luís Antônio Giron - Folha de Sã o Paulo

13

29.10.1994 – Brown fecha Free Jazz com bordel sonor o – Luís Antônio Giron - Folha de São Paulo

14

14.10.1996 – Bjõrk aponta para o futuro e mostra mú sica globalizada aos brasileiros – Pedro Alexandre Sanch es - Folha de São Paulo

15

Anexos

16

Anexo I - Entrevista Carlos Calado

No mesmo ano que acontecia o 1º Festival de Jazz de São Paulo, em 1978, ele

trocou o teatro pela música, na mesma ECA-USP onde estudava. Ainda nesse

período o garoto que cresceu ao som do rock’n’roll se apaixonou pelo jazz e daí para

todo tipo de música negra foi um passo rápido. Nos estudos seu foco era música

popular, embora não recusasse as lições de música erudita. De tão fascinado pelos

ritmos negros, assistiu duas vezes aos dois primeiros festivais de jazz de São Paulo:

uma ao vivo, outra pela TV Cultura. Ainda não sabia, mas seu destino o levaria para

sempre nos rumos dos festivais de jazz pelo mundo.

Seus primeiros escritos foram para revista Som Três, cujo editor era Maurício

Kubrusly, primo de uma amiga que os apresentou. Depois foi para Folha de São

Paulo e por lá ficou também por uma coincidência: no dia em que foi entregar um

pequeno artigo para ser publicado no caderno Folhetim, encontrou um conhecido

que o avisou sobre a procura do jornal por novos críticos de música. O conhecido

era Leon Serva, na época chefe de reportagem da Ilustrada, que o convidou para

fazer o teste. Ele fez e passou. Ficou por um tempo como colaborador, escrevendo

críticas e depois reportagens, mas como a Folha estava um pouco descoberta na

área de música, o trabalho foi só aumentando, até que decidiram contratá-lo em

1987. Ele tentou recusar a princípio, porque nessa época estava escrevendo sua

dissertação de mestrado, mas vendo-se sem saída, topou e adiou um pouco mais a

entrega da pesquisa.

Seu primeiro curso sobre jazz foi feito pela rádio Cultura, num programa sobre a

história do jazz elaborado pelo então crítico do Jornal da Tarde, Armando Aflalo, que

ele teve o prazer de conhecer, pois era tio de um amigo. Conheceu o crítico e

também sua discoteca e ficou maravilhado com aquela sala cheia de prateleiras

cobertas por discos. Diz ter aprendido a fazer crítica dentro do dia a dia dos jornais,

lendo os que ele considera grandes críticos musicais, como o próprio Aflalo, João

Marcos Coelho, Tárik de Souza, entre outros. Hoje Calado já tem quatro livros

publicados: O Jazz como Espetáculo, Tropicália: A História de Uma Revolução

Musical, A Divina Comédia dos Mutantes e Jazz ao Vivo. Também já cobriu dezenas

de festivais de música na América do Norte, Europa, Caribe e África, além de ter

17

escrito para diversas revistas de música como Bravo e Showbizz. Também

mergulhou nessa nova tendência dos blogs jornalísticos e criou o seu: Música de

Alma Negra.

Sua presença constante dentro dos veículos de comunicação o torna, hoje, um dos

principais críticos de música no Brasil, com preferência em jazz e música brasileira.

Dentre os críticos do Free Jazz está, sem dúvida, entre os mais importantes, por ter

feito a cobertura desde os primórdios até o final. Responsável por estabelecer um

olhar menos purista dentro do veículo para o qual escreve, a Folha de São Paulo e

com ouvidos abertos para a diversidade, propõem uma crítica menos ortodoxa e

mais rica de elementos históricos, para que desta forma a estética de cada músico

seja mais bem compreendida pelos leitores, mesmo que estes não entendam nada

sobre música. Para ele, o excesso de ortodoxia é um fator empobrecedor da crítica

musical, que em suma, deveria mais esclarecer do que apelar para juízos de valor.

- Muitas vezes a crítica é exageradamente agressiva com o artista. Como você vê

isso?

Acho que a Folha sempre chamou a atenção por ter, em determinados momentos,

pelo menos um crítico que fazia o papel de palhaço. Ele ia para o show realmente

para desancar...

A crítica que eu fiz como teste para entrar na Folha foi “Chuck Mangione, efeito de

latin lover” (Maio de 1986). Eu me arrependo um pouco dela. O Chuck era um

trompetista de jazz respeitável, mas eu não concordava com algumas coisas que ele

fazia. Naquela época, ser crítico significava ter diversos estímulos para, caso tivesse

que falar mal, poder falar bastante mal dos músicos. Se eu tivesse escrito essa

crítica alguns anos depois, eu teria sido um pouco menos venenoso, mas no fundo

era o que eu achava naquele momento e acabou sendo meu teste. Ainda assim, eu

não quero colocá-la na próxima edição do livro Jazz ao Vivo, que deve ser reeditado.

- E o que seria, então, uma boa crítica?

Eu não sou formado em jornalismo, nunca fiz o curso, minha escola foi acompanhar

bons críticos nos jornais. Para mim, fazer uma boa crítica é conseguir achar o ponto

de equilíbrio entre falar para o grande público e falar para o público profissional. A

18

questão é que grande parte dos leitores são leigos, não adianta pensar em falar só

para os seus colegas da escola de música. É preciso equilibrar para não ficar só no

superficial, não basta dizer: “gostei disso”, “não gostei daquilo”, “achei uma droga”,

como muita gente chegou a fazer no início dos anos de 1980.

- Como você percebe a crítica nos dias de hoje?

Hoje em dia a crítica está em franca extinção, é uma categoria no jornalismo cultural

que está sendo enterrada dia-a-dia. Cada vez mais o espaço é mínimo para ela. Um

exemplo que eu dou para explicar o problema está nas páginas dos jornais. No início

dos anos de 1990 eu passei alguns meses como editor das páginas de música do

caderno de cultura da Folha e, naquela época, nós tínhamos duas páginas semanais

inteiras, quase sem anúncios, só para discos, onde os altos de páginas eram

temáticos. Mais ou menos como se faz no Estadão, hoje.

Em finais de 1980 o blues estava começando a aparecer forte por aqui, embora não

fosse novidade na Europa, no Brasil era novidade ter um foco maior no blues,

principalmente porque em 89 aconteceu um festival de blues em Ribeirão Preto, que

trouxe músicos importantes como Buddy Guy, Magic Slim e Bo Didley, importantes

inclusive na história do rock. Esse era um bom tema como matéria para estas

páginas, assim como um pacote de discos de uma determinada corrente que estava

sendo lançado no Brasil, coisas assim. Em média 3 ou 4 reportagens, com o rodapé

todo coberto por pequenas críticas, como se faz hoje no Estadão e se fez por muitos

anos na Ilustrada.

Semanalmente tínhamos, então, essa duas páginas para discos e no Domingo

tínhamos outra página inteira. Ou seja, três páginas inteiras para música. Hoje o

Estadão tem isso, passados 20 anos; a Folha já teve, mas hoje quando consegue

numa quarta-feira encher uma página inteira com música é muito. Essas três

páginas eram fixas, críticas de show exigiam espaço extra. Festivais exigiam mais

várias páginas, muitas vezes didáticas para preparar os leitores para o festival.

Fazíamos cadernos especiais temáticos, pré-festival, para que o público entendesse

o que era o jazz, sua história e modificações ao longo dos anos. Fisicamente houve

uma redução radical de espaço. A ilustrada chegava a ter 36 páginas no final de

semana. Se o espaço do caderno que cobre música foi diminuído radicalmente

19

(acho que hoje deve ter 50% a menos de espaço), qual a primeira coisa que você

acha que foi cortada? A crítica, claro. Gastronomia e moda, ao contrário, ganharam

cada vez mais espaço, saíram dos assuntos marginais. O espírito crítico esta

deixando de ser incentivado.

- Espírito crítico?

Sim. Eu não acho que crítica, necessariamente tem que ser a crítica pejorativa ou a

crítica negativa. Acho que o conceito de crítica é, antes de tudo, tentar decifrar ou,

de certo modo, explicar o que é uma obra para o leitor. Mas o que seria uma boa

crítica sobre um concerto ou um disco? Antes de tudo, contextualizar aquele trabalho

num período histórico, para relatar ao leitor qual o universo estético que aquele

músico surgiu. Na verdade, cada músico tem sua história, suas relações, pertence a

uma geração e tem uma determinada estética que construiu ao longo da vida. Os

“Miles Davis” são raros, quer dizer, um músico que lidera quatro ou cinco mudanças

importantes dentro de um estilo é muito raro. Na maioria dos casos, ou pelo menos

no jazz, a maioria dos músicos acaba se identificando com uma determinada época

e um determinado estilo, assim como no Brasil muitas vezes encontramos músicos

que tocam samba a vida inteira, ou choro, ou mpb, sem mudar nunca. Algo normal,

na verdade.

Por exemplo, um músico que era jovem nos anos de 1930 e 40 e tocou nas big

bands do swing, provavelmente vai tocar swing a vida toda, porque isso é música

para ele, tem a ver com sua juventude. Isso também tem a ver com o gosto pessoal

que normalmente é marcado pela juventude.

Podemos dizer que o primeiro erro de um crítico que não faz direito o seu trabalho

seria o de não se colocar no lugar desse músico e tratá-lo segundo o seu gosto

pessoal. Ou seja, um crítico que gosta de heavy metal não vai fazer um bom

trabalho se tiver que escrever sobre jazz, é possível que ele escreva que o show foi

chato devido às longas improvisações. O efeito será o mesmo de um elefante

pisando em taças de champagne. Pois antes de tudo é preciso familiaridade com o

assunto, sensibilidade para tratar com a música. Eu já vi esse tipo de coisa

acontecer, muitas vezes porque o jornal coloca o cara errado, no lugar errado. É

claro que cada pessoa vai ter o seu estilo preferido, músicas que sensibilizam mais à

20

outras, mas para fazer crítica é preciso ter bagagem, escutar o máximo de coisas e

não ficar circunscrito apenas em um determinado estilo. O conhecimento é

fundamental não só para embasar o texto como também para conseguir certa

parcialidade na crítica, você não está ali para destruir a música, ou chamar aquilo de

chato e dizer que não gostou. Isso é ridículo, você faz com os seus amigos. A

responsabilidade com a crítica é muito maior, o que se espera é que alguém saia

enriquecido com o texto que você escreveu. A crítica para mim não tem que ser um

juízo de valor, tem que ser um esclarecimento, agir como um iluminador, até

conseguir que o leitor tenha um interesse novo sobre aquele evento ou aquela

música. T.S.Elliot já disso isso em outras palavras. Para mim a crítica musical não é

simplesmente uma opinião; pode até ser, mas neste caso você precisa estar muito

embasado.

- Onde está a satisfação neste ofício?

Já faz alguns anos que eu não me identifico com a cobertura da Ilustrada.

Praticamente 90% da cobertura se dedicam ao rock, à música eletrônica e ao pop,

como se somente isso interessasse aos leitores, acho isso bastante discutível. Ainda

assim, acho que a coisa mais satisfatória que aconteceu comigo foi quando, numa

entrevista, perguntaram para o compositor André Abujamra se alguma crítica já o

tinha ajudado em alguma coisa e ele citou textualmente uma crítica minha.

Certamente nós até poderíamos ser amigos, mas não foi o caso, a crítica foi quem

ajudou.

- Mário de Andrade tentou elaborar uma nova função para a música brasileira. Você

acha que ele foi mal interpretado pelos nacionalistas?

A proposta modernista está muito longe da realidade dos jornais. Mário de Andrade

foi um exemplo, mas sua proposta era bem mais ampla, tinha um programa

nacionalista, feita por um antropólogo, musicólogo... É diferente do crítico que cobre

acontecimentos diários para o jornal. Eu, particularmente, me espelhei em

profissionais de redação, aprendi na prática do dia-a-dia dos jornais. Claro que antes

da minha primeira experiência eu já tinha passado uns dez anos lendo críticas do

Armando Aflalo, do Zuza Homem de Mello, do Tárik de Souza, do José Domingues

Rafaeli, do Luiz Orlando Carneiro... Quer dizer, críticos importantes ou de jazz, ou de

21

música brasileira, que eu respeitava. A minha escola crítica foi essa. Mas também os

encartes dos discos, que vinham com longos ensaios sobre o artista.

- Nas críticas do Free Jazz você sempre destacava o caráter mercadológico do

festival como sendo algo que merecesse ser esclarecido. Por quê?

Essa era uma maneira de eu me posicionar frente às discussões que ocorriam nos

bastidores. Eu era relativamente novo diante dos outros críticos que cobriam o

festival e percebia que nos bastidores os comentários eram muitas vezes bastante

ortodoxos. Em primeiro lugar, quase todos eles detestavam rock, até por uma

questão de formação, mas eu cresci ouvindo rock, para minha geração o rock foi

muito forte. Ainda assim, meu interesse pelo jazz surgiu cedo, por volta dos 17, 18

anos e por um tempo eu segui escutando as duas coisas. Também sempre gostei

muito de música negra como soul, rythm’n’blues, blues, funk... Isso tudo sempre me

interessou muito. Assim, ficava bastante claro que o jazz e todos os ritmos negros

sempre mantiveram um forte contato, eram músicas que se completavam. E, nesse

contato com os críticos da velha guarda, eu sentia que tinha muito preconceito com

relação ao festival, devido a abertura cada vez maior concedida a diversos estilos.

Claro, o festival tinha uma obrigação com o patrocinador de manter salas cheias,

mas também havia uma cena musical que estava ficando cada vez mais

diversificada e aí o festival tinha a obrigação, não de se abrir para todas as

tendências, mas de mostrar as novidades, como cabe a um bom festival de música.

Daí a dizer que o Free Jazz, por trazer músicos de blues, do jazz fusion, uma

cantora de soul ou algo do tipo, descaracterizava um festival de jazz, eu encarava

como sendo uma ortodoxia muito grande. Não acho que o festival tivesse que seguir

com fronteiras extremamente definidas, porque isso interessaria a poucas pessoas.

Não estou me colocando acima desses críticos importantes, mas minha geração

teve a sorte de viver em um período aonde o rádio era muito eclético. Nas melhores

rádios, nós tínhamos condições de acompanhar programas semanais de jazz, de

música erudita, de música internacional como a italiana e até bons programas de

música brasileira, que sempre existiram. Havia também uma tendência de se fazer

programas direcionados para o passado e aí nós tínhamos a oportunidade de nos

atualizarmos diante de coisas que não tínhamos ouvido. Então eu nunca senti a

necessidade de determinar especificamente o meu gosto musical, achava

importante transitar entre os vários estilos e por isso, na hora de cobrir o Free Jazz

22

eu me sentia na obrigação de incentivar uma visão mais aberta sobre a música.

Escutar jazz é tão prazeroso quanto escutar um determinado samba ou uma peça

erudita em determinados momentos. Quando eu lia uma crítica muito purista, eu

fazia questão de dizer que não concordava, para estimular uma experiência mais

rica.

- Seu modo de entender o festival acabou deixando a Folha sob um ponto de vista

mais aberto neste sentido.

Voltando àquela linhagem dos palhaços da crítica, eu acho que alguns críticos se

prestaram a isso. Antes de eu entrar na Folha foi o Pepe Escobar, que atuava

majoritariamente na área de música pop. Ele era um cara muito narcisista e escrevia

sob um ponto de vista muito particular, muitas vezes na primeira pessoa _nisso eu

vejo um problema porque acho que o crítico deve escrever com um olhar um pouco

mais distante, de fora do contexto, para conseguir transmitir alguma além da sua

opinião. O Pepe era bastante favorável a críticas mais pejorativas, tanto que, certa

vez, chegou a ser agredido na porta da redação. Quem depois assumiu isso na

Folha foi o próprio Giron, inclusive eu sei de uma história que quando Caetano

Veloso o conheceu, disse para um amigo em comum: “Nossa, esse é o Giron? Até

eu dou uma porrada nele!”. Acho que eu posso falar isso porque acompanhei seu

trabalho diariamente sei que, quando você ataca alguém muito importante, em tese,

passa a ser tão importante quanto sua vítima. Em última instância é isso.

- E o Ruy Castro?

Eu nem acho que o Ruy Castro cria um personagem para se promover como tantos

outros, na verdade ele tem uma relação tão visceral com a Bossa Nova que

realmente acredita que depois dela nenhuma novidade aconteceu no campo musical

brasileiro. É o ponto de vista dele, eu acho bastante pobre, mas é o ponto de vista

dele, eu posso entender, tanto que hoje em dia ele nem está tão voltado para a

crítica, prefere elogiar as coisas que ele gosta, tudo que está ligado ao Rio e à

geração da Bossa Nova.

- Em 1995 você demonstra certa preocupação com os rumos do Free Jazz...

23

É, na verdade começou a virar uma vitrine de novidades, mas faltava uma liga ali...

Acabou virando um panorama da música mundial e não necessariamente com as

coisas mais interessantes dentro do seu contexto. Isso acabou o transformando.

Mas também acontecia de trazer novidades que se destacassem nos grande

festivais de jazz pelo mundo. Eu, por exemplo, dei várias dicas. Quando a Monique,

diretora do festival, me ligou para avisar do cancelamento da vinda de Mel Thormé,

para que eu corrigisse a divulgação, perguntou sobre os músicos interessantes que

tocaram no Festival de Jazz de Montreaux daquele ano. Eu tinha voltado há pouco

tempo de lá e feito uma entrevista com a cantora Cassandra Wilson, estava com o

cartão do seu empresário na mão, porque havia marcado com ele. Eu já era fã e

acabei sugerindo para o Free Jazz. Deu certo! Aliás, teve um ano que eu publiquei

várias sugestões... Um pouco pretencioso, mas vários deles acabaram vindo depois.

- Houve uma descaracterização que levou o festival ao seu fim?

Não, não! Foi um problema realmente de patrocínio, o cigarro não podia mais

bancar. Um festival como o Free, se não tivesse havido essa mudança na

legislação, acho que dificilmente teria terminado naquele momento. Era um festival

de grande sucesso. Sem dúvida, o principal festival de música do país naquela

época, não sei se tanto quanto o Rock’n’Rio o foi, mas se pensarmos em espaço na

mídia e prestígio, o Free era o principal. Depois, num segundo momento, uma

empresa de telefonia assume o patrocínio...

- E aí tiram o jazz do nome...

Sim, e fez todo o sentido, porque naquele momento já não era, exatamente, um

festival de jazz, era um festival genérico de música. O jazz se manteve no palco do

Ibirapuera, construíram uma tenda para a música eletrônica e outro palco para a

música pop... Assumiram esse novo formato. Afinal, os festivais não foram

inventados pelos produtores de jazz, mesmo que por décadas tenham sido muito

importantes como divulgadores desse formato. Mas ainda existem festivais de jazz,

né? O Toy Lima, produtor do Bridgestone Music Festival, ainda mantém, com certa

sensibilidade, o formato de um festival de jazz não tão ortodoxo, mas que pode

perfeitamente continuar sendo chamado de festival de jazz. E no começo dos anos

2000 fez o Shivas Jazz Festival, também bastante jazzístico.

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- Você não acha que havia uma pressão mercadológica para que o Free Jazz

expandisse suas fronteiras musicais?

Imagine um festival como esse, feito pelo Sesc. Poderia, né? E ele até faz coisas

como uma mostra anual, mas não segue um determinado gênero, cada ano a

temática é diferente e multidisciplinar, atuando em várias áreas. Imagine então um

Free Jazz feito pelo Sesc. Certamente depois de alguns anos ele não se tornaria tão

comercialóide como o Free Jazz acabou se mostrando nos últimos anos. Na época

do Tim, o festival já estava numa trajetória do que era muito popular. Claro, tem

gente que gosta e o palco de jazz foi mantido de maneira justa para seus ouvintes.

Mas não posso negar que nestes últimos anos ouvi coisas que, na minha opinião,

não mereciam estar em um festival como aquele. Também não podemos esquecer

que o Free Jazz era mantido por uma empresa de cigarros. E, afinal, qual o maior

interesse de uma companhia de cigarros? Que os jovens se tornem viciados. Isso

era uma coisa a se pensar. Realmente o patrocínio da indústria tabagista num

evento desse porte não era algo politicamente correto. Ou seja, havia um interesse

em atingir os jovens. Não foi à toa que o Free caminhou para o lado mais comercial

da música, associando a marca do cigarro com uma música jovem. Era óbvio que,

quanto mais cedo as pessoas se tornassem viciadas, melhor para a empresa. De

maneira menos prejudicial à saúde, uma empresa de telefonia também se interessa

pelo mesmo público. Por outro lado, acho que valeu o patrocínio em nome de um

festival que, em termos culturais, foi muito importante.

- Foi o mais importante festival de jazz no Brasil?

Sim, pela quantidade de informação que ele nos proporcionou. Afinal, era o grande

festival do ano, que a cada edição dava condições para o público de assistir às

vezes até 16 artistas de uma única vez. A oportunidade de um evento como esse,

que em finais da década de 1980 era novidade no Brasil, mas já ocorriam às

dezenas na Europa e Estados Unidos, foi um momento precioso. Pelo menos eu,

como apreciador do estilo, acharia lamentável não ter um evento desse porte no

Brasil.

- Os festivais são os responsáveis pela continuação da história do jazz?

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Acho que os clubes de jazz continuam, inclusive, em maior número do que em

décadas anteriores. No entanto, o tipo de exposição e de experiência que um festival

oferece, até mesmo a quem ainda está descobrindo a música, é muito importante no

sentido de formar um público. E outra, o festival de jazz se transformou num formato

que está intimamente associado à própria ideia do jazz, porque possibilita encontros

informais, troca entre os músicos. É verdade que antes aconteciam com maior

frequência, porque os festivais eram menos caretas com relação ao horário de

término. Músicos como Hermeto, por exemplo, comandaram jam sessions que

duraram até três da manhã. A questão é que esta instituição da jam session,

essencial no jazz, esta se perdendo, até porque os próprios eventos caminham para

esse lado mais burocrático, que determina o tempo do show em contratos, por

exemplo. Já os jazzistas normalmente possuem um espírito coletivo de troca, de “dar

canja” no show de outro, de assimilar a novidade que desse outro... Em exagero

leva à competição, mas se bem trabalhado pode ser muito saudável. O fato dos

festivais ficarem cada vez mais ecléticos, com certeza ajudou na redução dessas

práticas. Isso porque um músico de jazz é muito diferente de um músico de pop, são

culturas diferentes, atitudes diferentes... Como eu já entrevistei muitos deles, pude

perceber com clareza.

- O Free Jazz deixou herdeiros como o Bourbom Festival ?

Não, acho que não... Mas assim, embora não tenha sido o primeiro, o Free Jazz foi

um festival que durou pelo menos 15 anos, essa estabilidade indica que foi um

festival vitorioso, um modelo bem sucedido, ou seja, claro que estimulou a gerar

outros festivais, mas no caso específico do Bourbom Festival eu não diria isso,

porque conheço sua história e sei que ele é calcado no festival de New Orleans.

Inclusive, quando o Free Jazz passa para o Joquei Club, ele também se inspira no

mesmo festival.

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Anexo II - Entrevista Júlio Medaglia

Júlio Medaglia tem carreira longa dentro do universo musical não somente brasileiro,

como mundial e transita com maestria entre a música popular e a erudita. É regente,

compositor, arranjador e ensaísta, além de apresentador de programas de rádio e

televisão. Com Hans Joachim Koellreutter estudou regência na Universidade Federal

da Bahia e, logo depois, foi para Europa, onde seguiu seus estudos pela

Universidade de Freiburg. Foi amigo e tradutor de Joachim Ernst Berendt,

importante crítico de jazz e produdor musical da Alemanha e, de volta ao Brasil,

esteve presente em movimentos musicais importantes, como a Tropicália e a Música

Nova. Escreveu dois livros que mostram o conhecimento musical abrangente que

possui: Música Impopular e Música, maestro! Do canto gregoriano ao sintetizador.

Conhece toda a história da música ocidental e matém uma postura crítica diante do

cenário musical contemporâneo. Nesta entrevista, ele fez questão de apresentar

todo o cenário de onde surgiu a música popular urbana e afirmou que a música,

hoje, acabou, uma vez que os músicos estão perdidos diante de tantas informações

soltas. Para ele, os meios de comunicação estão brigados com a música, fato que

prejudica ainda mais a assimilação e o direcionamento de tantas idéias que rondam

o cenário cultural nestes anos 2000. Júlio começa esta entrevista, então, lá nos

primórdios da música popular para explicar sobre as origens dessa música. Com

vocês, o maestro:

Em primeiro lugar, o Jazz e a Música Popular Brasileira são filhos da mesma mãe,

ambos vieram da música de salão europeia que, chegada no nos Estados Unidos,

também, através do rio Mississipi, se instalou naqueles butiquins, onde os

marinheiros, músicos e imigrantes faziam suas orgias sonoras. Era um ambiente

propício para isso, onde muito da informação musical era procedente da música de

salão européia. Importada tanto pelos Estados Unidos, quanto pelo Brasil. A

diferença na assimilação se deu na pronúncia desenvolvida em cada país: junto do

negro brasileiro essa linguagem musical caminhou no sentido do choro, a nossa

música instrumental, mais voltada para o melodismo brasileiro, porque no Brasil, um

país latino e por isso melancólico, a tendência é ser mais melódico. Com o negro

americano, essa música se transformou em uma nova linguagem. O jazz

desenvolveu ainda mais o lado instrumental, evoluiu mais neste sentido. Os Estados

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Unidos são um país mais rico, com mais instrumentos, mais recursos pra se fazer

musica. Então a instrumentalidade se desenvolveu mais. O jazz ficou mais amplo em

termos de linguagem. No livro que eu traduzi, O Jazz: do rag ao rock, do Berendt,

fica claro que nos EUA, a cada década o jazz se transformou em um estilo diferente.

E no Brasil não tivemos tanta variedade. Nós temos uma musica inspiradíssima, mas

a tendência é sempre cair no melodismo. Aqui, quando a música não é muito

criativa, cai no melodismo.

O inicio do século começou com Chiquinha Gonzaga, praticamente. Nascia uma

cultura brasileira mais espontânea, de origem das ruas, que nasceu e, de repente,

ganhou status social. Já na segunda década foi menos, porque aí teve a guerra, foi

um período mais melódico, foi quando começaram a chegar aquelas primeiras

músicas da Europa. No final da segunda década surgiu o chorinho, aí toda a década

de 20 foi fortíssima com Pixinguinhas da vida, com todo aquele vigor da música

instrumental, que também era influencia norte americana. Porque o pessoal soltou a

franga, né? Acabou a guerra, estava todo mundo feliz, todo mundo livre. Não tinha

mais conflitos no mundo. Essa felicidade trouxe uma década de 20 bastante

revolucionaria e espontânea, correspondente à segunda metade do século, na

década de 60. Os anos 20 foram brilhantes e cheios de informações novas e de uma

música instrumental rica. Na década de 30, esse entre guerras caiu num certo

melancolismo, também na musica clássica. Não surgiu o neoclassicismo, né? Com

todos os compositores choramingando o passado, copiando o passado. Vila Lobos

imitando Bach. Os compositores norte americanos que não tinham tido classicismo

faziam uma música pré-clássica. Nós estamos falando de um período de nostalgia.

Aí chegaram os anos 40, explodiu tudo de novo. Nasceu o rádio e os meios de

comunicação jogaram tudo para cima. No finalzinho dos anos 30 surgiu o swing, nos

Estados Unidos, que deu uma grande agitação. Ele não só apresentava altíssimo

nível técnico de execução, como também era a musica popular americana da época.

Com o aperfeiçoamento do rádio e do disco essa fúria toda se internacionalizou.

Mas nos anos 50 já caiu outra vez no rame rame, aqui no Brasil, sobretudo;

enquanto nos Estados Unidos veio, neste final dos anos 50, o rock, mais dançante.

Aqui caiu no “ninguém me ama, ninguém me quer”, aquelas músicas trágicas, do

Lupicinio Rodrigues, Maísa, Wilson Batista, Cauby Peixoto: “ah não deu certo”. “A

Conceição veio do morro, virou puta na cidade e tal...” Depois, cansados de tanta

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tragédia, no final dos anos 50, surgiua Bossa Nova, que foi massacrada, na época.

Todo esse pessoal que escreve livro sobre a Bossa Nova, que fala as melhores

coisas; na época, caia de pau em cima.

Bossa Nova era um fenômeno paulista. O João Gilberto fez um dos primeiros

programas de televisão aqui em São Paulo, na TV Tupi. Era aplaudidíssimo aqui.

Walter Silva tinha um programa na rádio bandeirantes, que corria no Brasil inteiro:

Na cadeia verde amarela, que fazia um bruta sucesso. Do sucesso desses

programas é que levaram o Jobim para a tevê. Ele fazia o Bom Tom, onde, sentado

no piano, tocava com amigos em volta, fazendo aquela Bossa Nova bem

transparente, rarefeita, econômica e que tinha influencia do jazz, porque, na

realidade o jazz tinha uma harmonização mais moderna. Mas isso não quer dizer

que era cópia do jazz. Ela tinha aprendido com o jazz e fazia uma musica mais

sofisticada, de câmara. Porque o jazz, naquela época, também era uma música cool.

A Bossa Nova era enxuta, equilibrada, transparente e econômica, assim como as

linhas de Niemeyer e a poesia Concreta. Tudo era enxuto, o cinema também,

principalmente o francês. Não tinha grandes produções, se economizava no roteiro.

Foi um período de concentração de elementos, de implosão de elementos. E assim

foi a Bossa Nova que praticamente acabou com todo aquele rame rame e fez nascer

aquela música, feita por jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, que tinham estudo

universitário, compravam discos, ouviam coisas. Eles também tinham formação no

jazz, conheciam aquelas harmonias todas e tocavam no violão, no piano, etc. Era

uma musica popular mais moderna. Isso tudo fez parte de uma grande evolução

coerente.

No final dos anos 60, a música explodiu mais uma vez com o Tropicalismo. Aquilo

que no início tinha sido implosão virou explosão. Eu participei, fiz arranjos que

davam voz, na música brasileira, para tudo quanto era elemento aparentemente não

musical. Cabia tudo ali dentro: música fina, cafona, de vanguarda, de retaguarda,

grito, apito, canto, riso, portunhol, latim, etc... Tudo que era extremo, mesmo os

incompatíveis e aparentemente antagônicos, apareciam juntos numa mesma

música. Foi um momento de grande criatividade, que realmente trouxe uma

importância muito grande para música popular brasileira, que puxava o carro da

movimentação cultural do Brasil.

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Nos anos 70 já caiu outra vez no rame rame: Joana, Simone, Marina e Ângela Rô

Rô voltaram a choramingar outra vez. Mas nos anos 80 explodiu de novo com Arrigo

Barnabé, Itamar Assunção e esse tipo de gente. Arrigo Barnabé foi líder desse

movimento todo. Na década de 90, outra vez, caimos no rame rame com as duplas

caipiras, que no fundo não faziam música sertaneja, coisa nenhuma. Aquilo não

passava de um bolerão brega de puteiro de cais de porto. Tinha também aqueles

falsos pagodes. Todos eles juntos não valem uma pausa do Cartola. E, assim, a

música brasileira foi, de década em década, evoluindo.

- E agora nos anos 2000, como você percebe a música?

Agora tá tudo misturado, porque a música no Brasil acabou. Os meios de

comunicação se afastaram da musica brasileira e perdeu-se uma relação produção-

consumo. Nas rádios, só porcaria. Nas televisões aboliram completamente a música.

No horário nobre não tem absolutamente nada. Na Globo, a última coisa que

apresentaram de bom no horário nobre foi Chico e Caetano, em 1986. De lá pra cá

aboliram a música, completamente. Nem no Fantástico você vê uma pessoa

cantando ou tocando violão, nunca tem uma única música. Às vezes morre alguém,

aí colocam o cara lá, leva 4 segundos e já tiram do ar. Eles odeiam música. O

grande desafio do século XXI é voltar a acontecer uma relação entre os

maravilhosos meios de comunicação e essa tecnologia sensacional, com o talento

musical. Atualmente essas coisas não estão sabendo como se relacionar.

- Os artistas das vanguardas brasileiras, Bossa Nova e Tropicália, foram ajudados

pelos meios de comunicação? Fabricados por eles?

Ajudados, não. Os meios de comunicação é que faziam questão de participar

daquilo. Afinal, desde que o rádio foi criado no Brasil, sempre exibiu o que havia de

melhor. Você pode imaginar que coisa maravilhosa: em 1936 cria-se uma rádio no

Rio de Janeiro e Radamés Gnattali, Guerra-Peixe, Claudio Santoro, Lyrio Panicali,

Gabriel Migliori, os melhores músicos do Brasil, estavam escrevendo arranjos para

ela. Orquestras sinfônicas eram criadas para tocar ali. Eles tinham um senso de

responsabilidade em relação ao público consumidor que os fazia oferecer para o

ouvinte o que havia de melhor. Depois Getúlio Vargas percebeu que aquele circo era

útil para ele, encheu a rádio nacional de dinheiro. E ela dava lucro. Foi a grande

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universidade da cultura popular brasileira musical, que tinha realmente um altíssimo

nível. Os arranjos, os participantes, as orquestras...

A música brasileira, na década de 60, também teve a tevê como divulgadora. O que

havia de melhor ia pra televisão. Eu participei dos festivais da TV Record. Eu me

lembro, por exemplo, que o festival que foi considerado o mais importante e criativo

de todos, que foi o de 67, deu 94 pontos de audiência, foi parar no Guinness Book.

O Paulinho Machado de Carvalho, dono da TV Record, que morreu agora, mandou

colocar o boletim do ibope de 94% num quadro e dependurou na parede, porque foi

o maior ibope da história. Quer dizer, quanto mais subia a qualidade, mais subia a

audiência. Uma prova de que o brasileiro realmente é musical e sabe identificar o

que é bom. Ou seja, não foi uma coisa forçada pelos meios de comunicação. O

problema é que, hoje, o mundo inteiro esta baseado na pancada, na adrenalina.

Você liga a televisão, assiste a dez canais de cinema e só o que se vê é violência

atrás de violência, uma pior que a outra. Então a música brasileira também partiu

para fazer coisas desse tipo, do ponto de vista mercadológico, mais simples. Não sei

o que toca nas rádios, mas de qualquer maneira, eles acham que, baixando o nível a

coisa vende mais, quando a historia prova exatamente o contrário: quanto mais subir

a qualidade, mais os meios de comunicação vão lucrar. A Record ganhava muito

dinheiro com as Elis Reginas da vida.

Os artistas brasileiros é que não souberam corresponder a esse ritmo de consumo,

ficaram felizes ganhando milhões e milhões, sempre aparecendo na mídia. Uma vez

eu até falei com o Paulinho Machado de Carvalho: “olha, segura essa turma aí, que

nem Frank Sinatra, se cantar toda noite aqui na TV Record você vai aguentar depois

de algum tempo”. Aí chegou um ponto que foi cansando, ninguém conseguia mais

ouvir a Elis Regina. E isso não tem nada a ver com a ditadura. Absolutamente nada.

A ditadura não atrapalhou em nada a coisa. Ao contrário, o período mais criativo da

musica brasileira dos últimos anos foi exatamente no período áureo da repressão.

- O nacionalismo exacerbado de Getúlio Vargas influenciou na difícil aceitação

desses movimentos vanguardistas, no Brasil?

Esse nacionalismo era justificável, porque existia a Grande Guerra Mundial, era uma

época em que os nacionalismos no mundo inteiro estavam sendo exaltados. Mas

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existiam os Pixinguinhas da vida que adoravam ouvir os músicos de jazz, eles se

vestiam iguais a eles, faziam grupos semelhantes aos de King Oliver e Hot Five lá

de Nova Orleans e todos aqueles grupos de jazz americanos.

- Isso falando dos músicos, porque a realidade das críticas jornalísticas era outra...

Esses críticos primitivos, porque, com raríssimas exceções, nós nunca tivemos

grandes críticos. Era fácil ouvir o João Gilberto tocando harmonias mais carregadas

e dizer: “ah! isso é jazz”. Fácil dizer isso. No entanto, o pessoal do jazz, quando

ouviu o João Gilberto e o Jobim, ficou de butuca em cima deles. Os jazzistas

sugavam os músicos brasileiros, tiravam, arrancavam aquela musicalidade. Há 40

anos nenhum musico influenciou tanto o jazz nos Estados Unidos quanto João

Gilberto, uma admiração absolutamente fora do comum. E ele ganhou e continua

ganhando cachês astronômicos. Nós influenciamos mais. Nenhum músico do cool

jazz foi tão cool quanto João Gilberto. Quem é que fazia aquela coisa tão anti-

musical como ele? Uma vez eu fiquei hospedado lá na casa do João Gilberto e o Gil

Evans, aquele que foi o grande revolucionário da orquestração, ficou

impressionando quando ouviu ele tocar. Quer dizer, ao contrário, a música brasileira

é que influenciou muito o jazz e com elementos humanos, inclusive. Quando Egberto

Gismonti e César Camargo Mariano me ligaram pedindo conselhos para os shows

que fariam nos Estados Unidos, eu disse: “esqueça o piano horizontal. Pense no

piano vertical. O que vocês sabem fazer é de cima pra baixo, é fazer ritmos

brasileiros em um piano percussivo, porque o piano horizontal é com eles, só eles

correm de um lado para o outro com tanta desenvoltura”.

- Como se deu o novo espírito crítico trazido pelos concretistas, Augusto e Haroldo

de Campos e Décio Pignatari, no Brasil?

Esse pessoal foi quem entendeu a música brasileira melhor que os críticos. Eu

frequentava a casa deles duas vezes por semana. Eles criaram a poesia concreta e

eu criei as oralizações da poesia concreta, fazia aquelas letrinhas virarem som,

inventei umas partituras onde seria possível oralizar aqueles poemas. A gente

convivia muito. Quando eu os conheci, para minha surpresa, percebi que eles

entendiam mais de música do que todos nós. Porque eles olhavam a música de fora

e tinham uma visão muito aprofundada de todas as outras manifestações artísticas.

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Eles viam a música como fenômeno cultural, com muito mais liberdade.

Investigavam as grandes linguagens musicais do século XX, mais do que todos nós.

Augusto tinha todas as gravações de Schöenberg, Webern, Alban Berg, que não

tinha na casa de nenhum músico. Foi lá que eu ouvi pela primeira vez os quartetos

de Schöenberg, Pierrot Lunaire do Schöenberg, uma gravação maravilhosa. Eram

coisas assim que eles pesquisavam, e tinha a ver com a pesquisa da arte de

vanguarda do século XX. Pra eles a música se enquadrava dentro desse quadro

revolucionário que foi o século XX, século mais revolucionário da história. Eles nos

ensinavam que Erik Satie era o precursor do século XX, embora satirizado por nós,

que dizíamos que sua obra era igual a sopa de quartel, dez gramas de carne e o

prato cheio de água. Para os concretos, aqueles 20 gramas de música era uma anti-

música em relação à Mahler.

Muitos críticos não tinham liberdade suficiente para poder observar todas aquelas

transformações com o distanciamento que a coisa necessitava, ficavam presos em

algum lugar, como acontece no jazz: tem gente que acha que vai até certo ponto,

que termina em determinada época, ou então acredita que só suas raízes são

verdadeiras. O jazz, quando chegou aos anos 60, seu período free, diluiu uma série

de componentes que faziam parte de uma linguagem jazzística. Essa desintegração

houve na música clássica, também. E a música virou happening, virou tudo. O final

do século XX foi o período da diluição em todas as áreas. Todos os sistemas

montados foram desmontados. Quando Caetano e Gil foram presos, logo depois de

soltos, fui visitá-los, e sabe o que disse o geral para eles? “Vocês, com esse negócio

de fazerem da realidade uma pasta informe, diluírem valores constituídos, estão

agindo como uma das formas mais modernas de subversão, talvez a única”. Quer

dizer, os milicos entenderam mais do que ninguém como é que a coisa funcionava.

O duro veio depois de tanta abertura, depois de tanta liberdade, depois de tanta

coisa se misturando... Ficou muito difícil disciplinar uma idéia para trabalhar em cima

dela. Isso ninguém resolveu. Nem o jazz, nem a música brasileira, nem os

compositores de música erudita, nem ninguém. Nem o próprio cinema. Ficou difícil

concentrar tanta poluição, tantos elementos soltos, para trabalhar numa idéia e

disciplinar essa idéia. Tudo está tão solto, tem tanta informação, que fica difícil

encontrar caminhos. A música não tem mais tendências, aliás, nenhuma arte de

modo geral.