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Suplemento Luiz Pacheco e as Caldas Este suplemento faz parte integrante da edição nº 4686 da Gazeta das Caldas e não pode ser vendido em separado

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Page 1: Luiz Pacheco e as Caldas - gazetacaldas.com · que alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldas da Rainha. ... LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica de

11 de Janeiro 2008 SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADE I

Suplemento

Luiz Pacheco e as Caldas

Este suplemento faz parte integrante da edição nº 4686 da Gazeta das Caldas e não pode ser vendido em separado

Page 2: Luiz Pacheco e as Caldas - gazetacaldas.com · que alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldas da Rainha. ... LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica de

11 de Janeiro 2008SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEII

Luiz Pacheco e as Caldas1935-40?

Luiz Pacheco acompanha o Pai em tratamento nas ter-mas das Caldas no Verão. Aluga casa a D. Eugénia Augustade Vasconcelos Soeiro de Brito, na Rua General Queirós.

“Tinha uma instrução aprimorada, aprendera (e traduziralivros) do francês, do italiano. Ela era correspondente doórgão católico e monárquico A Voz.”

1938-39?“A história sentimental: eu, que tinha uma vida familiar

agreste (os meus pais davam-se mal) fiquei seduzido pelafigura, maternal e ordenada e inteligente da Dona Eugénia.E fui crescendo. E já rapazola, a criatura (mais velha que omeu Pai) não é que se apaixona por mim?! Um amor madu-ro e taralhouco.”

Em O caso das criancinhas desaparecidas, obra redi-gida entre 1968 e 1971, há reminiscências da situação aque alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldasda Rainha. Ali me confessei comunguei crismei guiado su-gestionado engodado por cavacas e trouxas d’ovos pelamão terna e fanática de uma velha que usava pêra e bigo-de. Era horrorosa. Achava-me bonito oh! E muito minha ami-ga. Apaixonadamente assim. Coitada, já morreu (antes elaque eu). [...] Desapareceu primeiro a Dona Eugénia Soeirode Brito, Belzebu-pêra-e-bigode, que, como solteirona ecrente e apaixonadíssima, era um autêntica garota em ma-téria de comportamento social e também, lógico, sexual.”

1964

Ano de 64Publica ComunidadeComunidadeComunidadeComunidadeComunidade (stencil)Nasce Maria Eugénia (Maio), segundo filho de Irene Ma-

tiasDez de 64

O Cachecol do ArtistaO Cachecol do ArtistaO Cachecol do ArtistaO Cachecol do ArtistaO Cachecol do Artista, edição a stencil, indica comomorada R. Rafael Bordalo Pinheiro, 2, r/c, Caldas da Rai-nha

Dez 641ª tiragem de ComunidadeComunidadeComunidadeComunidadeComunidade, edição a stencil

1965

10 JaneiroCarta de A. J. ForteCarta de A. J. ForteCarta de A. J. ForteCarta de A. J. ForteCarta de A. J. Forte

Satisfeito por saber do paradeiro de Pacheco, depois deter recebido aviso dos CTT, devolvendo encomenda envia-da para Hotel Lisbonense. Pacheco já se mudara para casaalugada na Rua Bordalo Pinheiro, nº 2.

Fevereiro ou Março 65Carta a Mário Cesariny (“Querido mano”)Carta a Mário Cesariny (“Querido mano”)Carta a Mário Cesariny (“Querido mano”)Carta a Mário Cesariny (“Querido mano”)Carta a Mário Cesariny (“Querido mano”)Luiz Pacheco acaba de ser posto na rua pela senhoria.

? MarçoCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da Ponte

“Tenho agora aqui uma casa, velha mas excelente soboutros aspectos, que me cai do céu, mobilada, e sem encar-gos especiais por 250$00 (água e luz inclusive)”.

11 AbrilCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva Tavares

“Mantenho, e estou a piorar! uma engrenagem mental efamiliar muito arrevesada, que de vez em quando me deixainerte, ou ocupado em coisas Marginais que, de momento,se me tornam obsessivas. Quando tiver mais vagar e pa-chorra, e dinheiro, hei-de consultar um bom psiquiatra, tãolouco como eu, que me livre destes complexos...”

LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica deCircunstância. O livro já tem decididos os aspectos deestrutura, o prefácio de V. Martinho está entregue, mas a“Nota do Autor aos 40 Anos” não está concluída.

17 AbrilCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte Dácio

“A minha situação nas Caldas melhorou bastante, no querespeita ao crédito... Mas o futuro está negro, pois tenho desair daqui no fim do mês e depois de ter perdido uma casabelíssima por 400$00, agora dei sinal para duas (!) ambasmobiladas e o lote custando a incrível soma de 300$00. Istoacontece porque fiz sociedade com um dr. meio-maluco,que tem uma casa de campo abandonada há muito e emque ninguém pega e pretende alugar aqui uma casa nocentro para montar loja divina e fazer lá os seus hinos lute-ranos (pretexto, suspeito eu, de caçar uns subsídios às fun-dações luteranas, do Canadá, Suíça e Austrália. Ele até seescreve com o Tchombé!).”

17 Abril

zemos. E o que notaraem Setúbal e vimaqui confirMar é decomo o País andadesligado, se igno-ra mutuamente,cada terra é umailha segregada, emesmo os me-lhores não pen-sam senão emcopos de vinhoe mulheredo.Com possibi-lidades aosmontões defazerem vidamelhor, digo:mais espiritual,esta gentinhafaz de larvasempre pe-gada àcouve .Agoraperce-bo porque tu querias ir a Lisboa, respirar a atmosfera intoxi-cada dos cafés ...Por aqui há ar a mais, há vazio!”

29 JulhoCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Se soubesses, se o Dácio avaliasse o que esse contorepresentou aqui para a economia da Tribo! Digo-te queveio mesmo no fim. Nesse dia tinha eu ido à Secla (já te falonesta) pedir algum dinheiro para as papas. Mas estava tãodesanimado ou abatido, que passei uma hora ou mais auns metros da porta da fábrica, e mais pertinho da porta docemitério que é ali mesmo defronte, e nem coragem tive depedir a massa. Chego a casa mais emburrado do que nun-ca e a minha tosca mostra-me o vale: até acabar, e acaboulogo no dia seguinte, não parámos de semear dinheiro porcredores caldenses, já um tanto desamparados de espe-ranças de reverem o deles. Mas isto é lamúria; mudei muitode então para cá: aderi ao artesanato. Resolvi entrar naMarabunta, usando as armas que vejo usar e fazendo omesmo que os outros fazem. Agora sou um homem dividi-do, uma espécie de Dr. Jenkill e Mister Hyde: desfaço denoite o que fiz de dia (mito de Penélope caldense), aldrabode dia o suficiente para ser eu de noite. Achas que isto sepode manter???! A ver vamos.”

29 JulhoCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Por Letras e Artes: leste uma entrevista com o Ferreira daSilva. Falei-lhe em tempos que talvez aí por Londres se pu-desse fazer uma exposição com peças dele, que são muitoboas (como ceramista ele é Prémio Soares dos Reis (SNI)de escultura, mas depois de lhe atribuirem o prémio não lhopagaram ou ele não aceitou, é um caso confuso que aindanão pude tirar a limpo, razão por que a minha entrevista nãose lhe refere). A coisa creio que teria interesse para o Dáciona sua qualidade oficial e despesas nenhumas, porque aSecla (fábrica onde o Ferreira da Silva todo lo manda, comoartista, tá visto) poria aí as peças embaladas, seguradas,etc. Não sei se sabes que a produção ceramista é toda parafora (América, principalmente) de modo que a exposiçãohonraria o nome português e traria honra e proveito dumamaneira geral. (...) Não descures este assunto, que supo-nho fácil de concretizar e muito proveitoso para Mano eMano. Aliás, o FS que é um tímido e um inábil do ponto devista da propaganda pessoal (levei 6 meses para lhe arran-car esta entrevista, começada logo em Janeiroeiro! mereceapoio. Ele tem tido bolsas da Gulbenkian para ir ao estran-geiro, mas dumas vezes não lhe deram passaporte, doutrafoi ele que se desleixou com uma matrícula ou documentoque era preciso. Um empurrão, um estímulo para o libertaraqui das Caldas, eram justos, e foi isso que tentei começarcom a entrevista. E se há mais tempo não te falei nisto ou aoDácio era porque a entrevista seria o cartão de apresenta-ção.”

29 JulhoCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

Sobre Figueiredo Sobral:“(...) Figueiredo Sobral, que como te recordarás tanto cha-

teava a gente com ideias (?) dele tiradas do Zdanov sobre orealismo socialista”

29 JulhoCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Temo-nos abeirado demais da fome, real e sem pão, to-

Carta para Ricarte Dácio (Oliveira)Carta para Ricarte Dácio (Oliveira)Carta para Ricarte Dácio (Oliveira)Carta para Ricarte Dácio (Oliveira)Carta para Ricarte Dácio (Oliveira)“Estou a ver que tenho de desistir destes trabalhos literá-

rios e ir vender couves para a Praça das Caldas...”18 Abril

Carta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasRefere que pediu a Manuel Vinhas uma bolsa para “afi-

nar o livro” Exercícios de Estilo, mas não obteve resposta.Pede intercessão de Seixas, tal como sucedeu em Setúbal,quando Vinhas aceitou pagar a renda da casa a LP durante6 meses. “A verdade é que nunca precisei tanto de ser aju-dado e me julguei tão merecedor de ajuda como agora, nomomento em que estou perto de realizar algumas das obrascom que sonhei e pelas quais lutei durante quarenta anos.Uma vida!”

13 MaioCarta a Mário Cesariny:Carta a Mário Cesariny:Carta a Mário Cesariny:Carta a Mário Cesariny:Carta a Mário Cesariny:

Sugere que ele venha para as Caldas (Cesariny está noestrangeiro, em Londres) e contém claras alusões à suapederastia e ao Parque como Harrar.

“Pode ficar no Hotel do Paulino ou não (depois de me terposto a mim na rua, não se atreverá a repetir a gracinhacontigo, espero).

Prometo que enquanto cá estiveres serei mais Homemdo que nunca e que a minha companhia não te comprome-terá”.

21 MaioCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José Forte

“Estou, como tu, talvez, bastante isolado, não há com quemfalar por estas bandas. Sob certos aspectos, o meio, embo-ra mais pequeno, é artisticamente, intelectualmente maisrequintado e informado do que Setúbal. Mas a mim o queme escasseia é tipos do nosso tempo, que o tivessem com-partilhado e tivessem evoluído paralelamente a mim. Com-panheiros de jornada. O tipo mais porreiro (estilo progres-sista) que pára no café é um professor da Escola industrial.Simplesmente ... vem-me com argumentos e desculpas queeu já ouvi da boca dos neo-realistões em 1945, há vinteanos pois. Olha que gaita!”

21 MaioCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José Forte

“Aqui, a Tribo (o Paulocas faz amanhã só dois anos, abarriga da Irene deve despejar em Setembro) é uma comu-nidade bastante frágil, quase indefesa. A zona da minhaMulher, que não me preocupou durante seis anos, está emfalência absoluta, o meu filho mais velho até já se lembraque tem um pai ... E o sabê-lo a servir bebidas a americanosno Bar da Shell (é garçon) não me serve para alevantar omeu moral. Enfim, eu não tenho de que me queixar, eles éque têm que se queixar de mim; andei a semear filhos aosventos durante vinte anos, é justo, íssimo, íssimo!, que es-tas coisas me pesem na lombeira.”

18 JunhoCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da Ponte

“O pior é que eu mais a Tribo também andamos esgota-dos de todo, o que estou agora a fazer não tem circulaçãoimediata ... nem sei se o acabarei ainda.”

Pede a Bruno que use influência no Jornal de Letras parapoder continuar a publicar lá alguns textos, nomeadamenteuma entrevista com Ferreira da Silva.

“Estas estadias na Província têm destes inconvenientes... Já estou habituado; os amigos esquecem-nos, os edito-res põem-nos na gaveta do fundo, etc.”

24 JunhoCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de Lima

“Devo estar a mudar-me das Caldas, provavelmente ire-mos para o Porto. Aqui o clima está a aquecer (tive hojemensagem do meu merceeiro; a senhoria deu-me ordemde despejo). O que me consola é não faltarem terras novaspara estadias de pouca permanência ... e também a nossabagagem é tão pouca!”

14 JulhoCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José Forte

“Fiz esta versalhada, que vai junta, e tentei publicar aquinas Caldas, primeiro na folha de couve local o que se refe-ria ao Figueiredo, depois em folheto numa tipografia o con-junto das 30 coplas. Não quiseram, que tinham medo (dis-seram).”

Pede para A.J. Forte saber preços na “tipografia do ca-checol” de 500 ou 1000 exemplares.

14 JulhoCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José Forte

“A vida na Província, sabes isso há mais tempo que eu,tem destes contras: a couve é fácil, mas a convivência difícil,não há. Em certa medida já creio ter esgotado uma boamédia de caldenses de quem estou tão farto como eles demim. E os livros são muito bons para colher opiniões detudo, excepto para uma certa clarividência sobre o que fa-

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mates com um azeite, ou óleo, de chicarro frito com oito diasde reserva (delicioso tomate e delicioso cheiro a peixe),para neste altura e com agravames certos a curto prazopoder estar a olhar para o lado.”

29 JulhoCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Há as minhas descidas ao Harrar, propulsionadas é cer-to por grandes doses de “abtinto”. The Rake‘s progress...Mas um total ou quase sentimento de fracasso amoroso, demiséria monetária, de vestuário de faz-tudo dão-me logopró torto no que respeita às minhas antigas conquistas he-terosexuais embora com menores de doze anos (lembras-te daquele caso aqui nas Caldas, na garagem dos Capris-tanos?). Para substituir isso, que já pouco me apetece de-pois do caso de Setúbal (o que motivou o próximo bébé),que há? Sem vinho, inapetência total; frieza cadavérica. Como abtinto, coisas que terei pavor de escrever seja a quem for.Coisas amalucadas, de estarrecer o mais sabido, de te es-tarrecerem a ti. Sintomas psiquiátricos? O Lima assim o pro-pala, não sabia que ele tinha curso de facultativo ...masjulga que eu já me esqueci dos sintomas ou psiquiátricosou gagás que eu e tu viste com a nossa amiga Natália ...ciumeiras ou raivinhas que o levaram duma vez à Venezue-la! fora outras. Agora a ti te pergunto: pode-se viver semamor? pode-se viver sem um objecto de amor, digo de con-quista, de entrega, se surpresa, de sangue e nervos, mes-mo só imaginado ou desejado em sonhos? Pode-se viversem uma esperança? Estás ou estarias tu ainda vivo semisso?”

29 JulhoCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Aqui nas Caldas estarias bem, suponho (em relação acertas pessoas cartonadas ou cracházadas). Mas não com-prometas, ou compromete mesmo se te apetecer a tua situ-ação. Para o mais e o antes e o resto, cá me tens. Se queresdinheiro, diz (há-de se arranjar). Se queres casa, diz (aindacá cabes). E aquilo do tomate nem sempre é verdade: faleinisso porque basta que seja uma vez verdade para eu jánão gostar. E quem gostaria?

(...) Vive o mais que possas. Pensa um pouco em mim. Etem um pouco de pena, quando essas névoas londrinas tepungirem deste Sol de cá (que o Sol não é tudo) destemano pró-caldense, tão lucidamente enrascado que pre-meditadamente ainda se procura enrascar mais.”

4 AgostoCarta de Mário CesarinyCarta de Mário CesarinyCarta de Mário CesarinyCarta de Mário CesarinyCarta de Mário Cesariny

“De Ferreira da Silva há o seguinte: hipótese de uma ex-posição na Casa de Portugal, em Londres. Se lhe agrada aideia, ele que envie para aqui, Walton St., para o Dácio, omelhor que tiver em fotografias de obras FS.”

30 AgostoCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da PonteCarta para Bruno da Ponte

Indica quanto valem artigos “Cartas ao Director”, uma dasquais endereçada ao Ministro, enviadas e pede pagamen-to, pois deve renda (“devo metade e mais 10% da renda deAgosto) e na farmácia (“perto de oitocentos escudos”)

6 SetembroCarta a Mário CesarinyCarta a Mário CesarinyCarta a Mário CesarinyCarta a Mário CesarinyCarta a Mário Cesariny

Refere o nascimento do “miúdo novo”, “faz amanhã quin-ze dias”. Conta que “só agora é que vamos estando habitu-ados à sua aparição” e que “felizmente que a Mãe tem lei-te”.

6 SetembroCarta a Mário CesarinyCarta a Mário CesarinyCarta a Mário CesarinyCarta a Mário CesarinyCarta a Mário Cesariny

“(...) tive cá duas visitas de crachat com que não contava(não percebi ao que vinham). Dei-lhes o Diálogo do Sade,que era a leitura mais divertida que lhes achei no momento.Foram todos contentes.”

? SetembroCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro SeixasCarta para Cruzeiro Seixas

“Estou a tentar arranjar aqui um emprego, de preferênciacomo manual (operário duma fábrica) pois empregos deescrita com patrões não me falem, cansam-me muito! E aomesmo tempo farei um panfleto mensal, género Farpas ouGatos, em dó menor, bem entendido, que não sou o Eça ouo Fialho (quanto ao Ramalho é um grande xato, um chaga).Tive cá a Pide em casa. Gostaria de lhes dar razões para mevisitarem mais vezes, mas a bicharada aumentou e pedempão... há que ser prudente. Limitar-me a estas tricas dasartes e das letras, onde não faltam matérias-primas paradissecação.

(...) O azar foi o Dácio e o Vinhas terem parado com asbolsas. Mas algo se arranjará.”

(Queixa-se também de Manuel de Lima que teria sabota-do, por inveja, as suas crónicas “Na berlinda”, no Letras aArtes, e influenciado Bruno da Ponte a idêntica sabotagem).

? 1965? 1965? 1965? 1965? 1965Edição do folheto O Prato do Diabo. 30 coplas de pé

quebrado compostas, musicadas, cantadas por Delfim daCosta, o Cangalheiro da Cidade. Edições Contraponto.

Figueiredo SobralFigueiredo Sobral é o principal alvo da chacota de Delfim

da Costa, a propósito de uma exposição que fez no CaféCentral. Há uma entrevista imaginária com o cangalheiroque “fomos encontrar em pacata vilegiatura nas Caldas daRainha, sentado no Café Central remexendo a bica em rá-pidas rotações de colherada, muito incomodado e muitoenjoado por uma data de quadros que se viam pendurica-dos nas paredes”

No essencial, a ironia sobre Figueiredo pode resumir-seassim: tão revolucionários que eles eram, tão críticos dodecadentismo dos outros (de nós) e tão reaccionários eque agora são (“este mesmo que Você aqui vê a pintar natu-rezas-mortas, um ovo cozido, caritas de anjos com asas nasorelhas e outras alegorias saloias”).

As quadras dedicadas a Figueiredo levam o título “Dapintura militante à pintura fortificante”.

Na paz do Café CentralOnde os democratas piam

Há agora um festivalDe pinturas que arrepiam

A preços sem competência(C´o a mira no turista...)Pintadas com tal ciência

Inté fazem mal à vista!

Os Caldenses não são tontosE sabem o que é pintar...

Óleos a sete contos?!Ó filho, vai-te matar!

Os turistas gastam cobres

E lá vão enchendo as sacas...Mas não é com o Bigodes,

É em fruta e cavacas!

Os que são de Arte inlustradosPreferem uma outra tecla:

Compram os barros assadosNa padaria da Secla.

Marido, mulher e tintasÉ coisa de enaltecer...

“- Se eu pinto, também tu pintasHavemos de enriquecer!”

F. Sobral pertenceu ao Grupo Surrealista nos anos 50Alusão a Quina, mulher do pintor

26 SetembroCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de LimaCarta para Manuel de Lima

Refere-se à irritação que provocou em Figueiredo Sobral,que o terá ameaçado

Verão 65Luiz Pacheco: lembrança de Santos Fernan-Luiz Pacheco: lembrança de Santos Fernan-Luiz Pacheco: lembrança de Santos Fernan-Luiz Pacheco: lembrança de Santos Fernan-Luiz Pacheco: lembrança de Santos Fernan-

d od od od od o“E é bem vivo que o Santos Fernando me aparece em

Caldas da Rainha, no Verão de 1965. Grande corpo, grandecopo, bom garfo, grande Amigo. Uma presença aberta emriso no gozo vivido de estar. Uma gentileza e uma delicade-za de sentimentos que espantavam. Também, a solerte ime-diata percepção do grotesco e absurdo das coisas e daspessoas, mas sem acrimónia”.

“Tenho coisas tocantes a relembrar desses tempos dasCaldas, tão afectuosos como isto: ele trazia-me frequente-mente de manhã fruta excelente de que se privava ao pe-queno almoço no Hotel Rosa, surpreendia-me na cama emplena ressaca para me reaniMar com uma piada jovial, umapasseata repousante pelo Parque, uma arrancada às raja-das de iodo e sal do Mar da Foz. E, caso invulgar entrecolegas escribas, estimulou por palavras e actos o meu la-bor então bastante incómodo e isolado quase”.

Santos Fernando, escritor humorista, de seu verdadeironome Fernando Santos, nasceu em 1927 e faleceu em 1975.

10 OutubroSantos Fernando: lembrança de Luiz Pa-Santos Fernando: lembrança de Luiz Pa-Santos Fernando: lembrança de Luiz Pa-Santos Fernando: lembrança de Luiz Pa-Santos Fernando: lembrança de Luiz Pa-

checochecochecochecochecoO texto tem a forma de carta, com o vocativo “Pachequís-

simo!”Referência à “tasca acolhedora e terna” da Cova da Onça

que funciona como “o teu ancoradouro, o teu retiro”.Referência às múltiplas actividades de Pacheco: “editor,

tradutor, autor, panfletista, polemista (dos únicos!), surrea-lista (dos autênticos!).”

Referência a idiosincrática figura: “homem de gargalhadi-nha curta, seca, quiçá húmida, variável, barométrica, e Mar-retada longa, pisco de irónica mirada escondida por diver-sas dioptrias”.

Referência à sua proverbial falta de dinheiro: “No dia emque cheguei às Caldas da Rainha descreveste assim a tuaindumentária: - “Casaco que era do Manuel de Lima, cami-sola que era do Ferreira da Silva, calças que eram do MárioAlberto, sapatos que eram do Vasco Luís ... meias que sãominhas!”.

Referência a Figueiredo Sobral (e, indirectamente à ex-

A casa onde viveu mais anos nas Caldas da Rainha A Pensão 1º de Maio, um dos locais onde viveu

Foto Margarida Araújo

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11 de Janeiro 2008SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEIV

posição de cerâmicas do Picasso que a Tertúlia apresentouno Verão): “Fotografei na Tertúlia Artes e Letras as cerâmi-cas de Picasso em exposição. Mas sem que o Carlos Manu-el visse, meti entre elas uma cerâmica do Figueiredo So-bral. Tenho mostrado a fotografia aos iluminados da Arte,aos conhecedores da Técnica, aos sábios da Plástica, al-guns dos quais bem “coxos”. E todos dizem: - “Isto, sim, vê-se logo que é Picasso”. E quase sempre apontam a peça deFigueiredo Sobral”.

Referência ao Inferno da Azenha: “Tens ido à Azenha,tens visto o nosso amigo Barreto, o querido “Peras do Infer-no”? Que saudades daquele tinto da Quinta de Santo Antó-nio em botijas de barro, em obuses de 7,5 (goza,mas nãoabuses)”.

Referência ao pintor José Maria que teria enfiado o canodo tubo de escape da mota na canela, num desastre emTornada.

Fecho da carta:“Pachequíssimo amigo, fica-te pelo Parque e pela Mata,

Cova da Onça (copo) e Tertúlia (arte), agarra-te ao “agácé-sar” e desanca-me o teclado, ri sem receio (nas vê lá se asgargalhadas deitam abaixo o velho quartel que reflecte nolago uma quimérica paisagem suiça) dispensa uma cavacaao cisne mais jovem, abraça o Dr. António Maldonado Frei-tas, o Barosa, o Caldas Faria, faz uma exposição de trouxasno paradoxal Casino, quebra todos os pratos ao trogloditado Regional e assiste ao cair da folha. Que te caiam muitasfolhas aos pés. Dos plátanos? Não, do Banco de Portugal!”

10 NovembroCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Aquele meu Mecenas caldense, o Vasco Luís, deu oempurrão de saída, e o resultado está à vista (por correioanexo): safei da Sertã os 500 Contrapontos 3 que lá esta-vam há anos. E há um livro meu já na fase publicitária, a dopostalinho: Textos Locais. São coisas já feitas, prontas paraa máquina, só rever em provas.”

10 NovembroCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

Referência a uma vinda de Ricarte Dácio às Caldas:“Escrevo também ao Dácio. Não já a pedir dinheiro ... para

que serve isso, do dinheiro? Mas a agardecer-lhe a visita cáàs Caldas, o Jantar, a companhia, e o espanto (dele).”

10 NovembroCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte Dácio

“Vocês por aí estão em vantagem: contemplam esta Terrade Cavacas e de Trampinas como se estivessem na ópera-bufa... Eu, para me esquecer que sou um exilado do interior,ou chorar sobre isso, só tenho o Dois Tintos da ordem. Masvão lendo os jornais. Desta apagada e vil tristeza, como jásabia o outro, vai para meio século, é muito capaz da mon-tanha parir um rato: Textos Locais, de Luiz Pacheco. Hajasaúde!”

15 NovembroCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José Forte

“Ainda ontem cá esteve o meu Editor da Ulisseia, com aEsposa, a espicaçar-me para eu acabar a tal Nota final parao livro, e que eu já poderia ter o livro cá fora há muito tempoe estar a editar outro, etc., etc.”

Refere-se à “Nota do Autor aos 40 anos” e ao livroCrítica de Circunstância

15 NovembroCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José ForteCarta para António José Forte

“Vi o recente fracasso dum rapaz daqui, e não dos piores,que expôs uma série de quadros numa galeria, a Tertúlia,que tu já conheces. E depois, foi muito sossegadamentepara a tasca, como é hábito, ao que parecia convencidoque ia haver comboios especiais para encher as Caldas deMarchands, de mirones, de visitantes. E já estava a fazercontas ao dinheiro que ganharia, etc. Eu, que sou amigodele e gosto do que ele pinta, passei até ás 6 da manhã apendurar quadros, limpar aqui e ali, dar sugestões, etc. Sin-ceramente convencido do êxito dele, ou pelo menos da jus-tiça do êxito. Ou, pelo menos: que estava a colaborar emalgo que não fosse apenas comer a couve na panela ebeber o copinho. Uma coisa válida em si, por si e pelo gozoque me dava participar nela, seque na função de moço defretes. Pois bem: não foi ninguém à exposição, apesar dapropaganda que eu ainda fiz no Letras e Artes e pelos cafésdas Caldas. O rapaz arrepelou-se: fala agora em queimartoda a sua obra: o equívico dele, raciocinei depois, é igual-zinho ao do Jaime Salazar Sampaio que quer andar lá pe-los Parises, desdenhar do Chiado, mas que o Chiado, mira-culosamente, passe as tardes a falar dele e das peças dele,

que ninguém viu ou leu, sendo ele o principal culpado dis-so!”

15 Nov 65“Memorial” dirigido ao Ministro“Memorial” dirigido ao Ministro“Memorial” dirigido ao Ministro“Memorial” dirigido ao Ministro“Memorial” dirigido ao Ministro

da Saúde e Assistência da Saúde e Assistência da Saúde e Assistência da Saúde e Assistência da Saúde e AssistênciaToma como pretexto declarações do Ministro feitas em

Viseu e transcritas no Diário Popular da véspera, onde sepercebe preocupação com a tendência para o envelheci-mento da população portuguesa. Pacheco corrobora as afir-mações do Ministro com a menção de causas como “a san-gria causada pela emigração maciça” e “a saída para oUltramar português, em missão de soberania, de fortes con-tingentes de jovens”, acrescida da deficiente assistênciamaterno-infantil. Pacheco aproveira para apresentar doiscasos. “Precisamente, os episódios que passarei a relatar aV. Ex.ª demonstram que há outros factores a acrescentar aesse negro quadro. E não fora um conjunto de circunstânci-as felizes, e a minha pronta actuação, e de vizinhos e ami-gos, e um bébé que vejo agora rosado e feliz no seu berço,com três meses incompletos, estaria a esta hora no cemité-rio local, no grosso da taxa da nossa mortalidade infantil”.

Queixa-se que a Assistência nas Caldas materno-infantildeixa muito a desejar, a começar logo pela assistência aoagregado familiar. No caso da sua família, chegou de Setú-bel com três filhos e não obteve qualquer apoio da Assis-tência, apesar das diligências na Junta de Freguesia e ex-posição ao deputado Anibal Correia, Presidente da Comis-são Municipal de Assistência.

“Este Senhor recambiou-me para a Delegação Distritalem Leiria, única entidade capaz (em sua opinião) de resol-ver o meu assunto (e, como o meu, de tantos outros, neces-sitados ou doentes, a quem igualmente davam com a portana cara), assunto que, suponho, estaria nas mãos do Presi-dente debelar, ou, ao menos, que o devia preocupar ... Qualnão foi o meu espanto ao ter conhecimento, aquando dumareunião preparatória das eleições efectuada nos Paços doConcelho e presidida pelo Subsecretário de Estado da Pre-sidência do Conselho, Sr. Dr. Paulo Rodrigues, um calden-se ilustre, que (sigo agora a reportagem da Gazeta dasCaldas, nº 1896, de 3/XI, 65); “discursou depois o Dr. AníbalCorreia que solicitou ao Governo urgência na concessãodas facilidades necessárias ao prolongamento da Praça daRepública.” !!! (sublinhados e exclamações minhas).”

Enumera a seguir as razões de queixa contra o procedi-mento do Dispensário Materno-Infantil e do médico do Hos-pital de Santo Isidoro que não fez internar a mulher grávida,tendo o filho nascido em casa, com o pai ausente em Lis-boa, o nascimento assistido por vizinhas.

Narra a seguir como a mesma criança esteve a morrer hápouco tempo, porque o médico do Dispensário que a viu eacompanhou não era pediatra, mas um clínico geral.

Protesta que as dotações do Dispensário são certamenteinsuficientes, responsabilidade que cabe ao Ministério e àCâmara das Caldas. A propósito refere que esta vive umasituação financeira desafogada, pois conforme se deduz de“uma notícia inserta na Gazeta das Caldas de 8 de Junhop.p., no seu nº 1854” estamos perante “um município rico,mais rico que o próprio Estado”, tendo logrado um saldoefectivo a 31 de Dezembro último superior ao do próprioEstado.

Termina com uma proposta de difusão “Pelo que, se V. Ex.ªnão vir inconveniente nisso, darei a este documento peque-na difusão local, procurando contribuir para um melhor co-nhecimento das realidades e para um esclarecimento dasconsciências e em tudo isto fazendo obra A bem da Nação”.

Fins de 65Texto de Vitor Silva Tavares anunciando aexto de Vitor Silva Tavares anunciando aexto de Vitor Silva Tavares anunciando aexto de Vitor Silva Tavares anunciando aexto de Vitor Silva Tavares anunciando a

edição da “Crítica”edição da “Crítica”edição da “Crítica”edição da “Crítica”edição da “Crítica”“PACHECO: escriba incómodo. Quarenta anos (e meio)

de idade. Vive no exílio das Caldas da Rainha. Oito filhos.Colaboração dispersa: da Seara Nova ao Norte Desportivo.Sem esquecer os textos a stencil ou impressos em papel deembrulho. O mais corajoso (e andrajoso) Editor da Cidade.Também o mais magro. O Homem da Contraponto. EditouCesariny, António Maria Lisboa, Natália Correia, Raúl Leal,Herberto Helder, Virgílio Ferreira, Mário Sacramento, Manu-el de Lima. E o Sade e o Ionesco e o Kleist e o Apollinaire eo Durrenmatt e o Supervielle e o Jaspers e o Buchner. Obvi-amente faliu. Tem muitas testemunhas de acusação e muitopoucas de defesa, o diabo do homem. Aceita toda a sorte deesmolas, que o artista precisa de um cachecol para o Inver-no. Vai ser publicado (finalmente!) o seu primeiro livro degrande circulação: Crítica de CircunstânciaCrítica de CircunstânciaCrítica de CircunstânciaCrítica de CircunstânciaCrítica de Circunstância. Um li-

vro inquietante, que não se recomenda às pessoas sosse-gadas nem aos heróis de pau carunchoso”.

Fins de 65Circular de agradecimentoCircular de agradecimentoCircular de agradecimentoCircular de agradecimentoCircular de agradecimento

“Luiz Pacheco e a sua Pequena Tribo (Maria Irene, Adeli-na Maria, Paulo Eduardo (o Paulocas), Maria Eugénia ( aGeninha), e Jorge Manuel (o Jorginho), agora em amenavilegiatura, querem agradecer a todos quantos contribuí-ram para a sua sobrevivência no ano de 1965 com as suasdádivas para o Cachecol do Artista, emprestando ou fiandoe muito principalmente acarinhando, que nem só de pão ebacalhau vive o homem.

Luiz Pacheco, mantendo no coração os outros membrosda sua Grande Tribo (Maria Luísa, João Miguel, FernandoAntónio e Luiz José, afora um outro filho putativo de quenão sabe o nome nem lhe interessa e afora algumas mulhe-res e deliciosas raparigas que muito gostaria de ter na suacompanhia como pio muçulmano), comunica a próxima sa-ída dos seus livros Crítica de Circunstância (Compre!...Leia!... É bom, é da Ulisseia!) e Textos Locais (é mau mas éportuguês), com os quais espera demonstrar ao EstimávelPúblico o mérito que em si cabe e os apoios de que foi alvoatestam, achatando a raiva dos inimigos e metendo-lhes aviola desafinada num saco. A todos, Amigos ou inimigos, aTribo Pachecal cumprimenta e deseja honras e glórias, di-nheiro e muita saudinha em 1966 que talvez seja o ano detocarmos a corneta. Amen.”

Morada indicada: Solar do Parque, na Rua Raphael Bor-dallo Pinheiro, 2-r/c, Caldas da Rainha.

1966

1º trimestre?Luiz Pacheco anuncia “Textos Locais” eLuiz Pacheco anuncia “Textos Locais” eLuiz Pacheco anuncia “Textos Locais” eLuiz Pacheco anuncia “Textos Locais” eLuiz Pacheco anuncia “Textos Locais” e

traça o seu auto-retratotraça o seu auto-retratotraça o seu auto-retratotraça o seu auto-retratotraça o seu auto-retrato“Mas como se trata de literatura comestível (destinada ao

Autor comer melhor) e bebível (Luiz Pacheco é sócio hono-rário da Sociedade de Geografia da Cova da Onça, vulgoas Manas, nas Caldas da Rainha, bastante cara no preço:cinquenta escudos”.

“A voz, ora grave ora jocosa, de um exilado do interior, umquase expulso da Cidade, um contemplativo da infância(que é a suprema liberdade e inocência) com os olhos pos-tos no futuro (que é para todos a Caveira). Decerto um bur-guês. Talvez um inconformista. Talvez, ainda, um jogador,um patriota. Quem sabe se um palhaço? Mas sempre umespectador atento e apaixonado do seu tempo e da suaprópria personagem”

Bilhete Postal impresso-resposta autorizado pelos CTT,endereçado à Contraponto Editora, Rua Raphael BordalloPinheiro, 2 - r/c, Caldas da Rainha

1º trimestreCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

Refere-se ao texto do Comunicado ou Intervenção da Pro-víncia, ainda por publicar, mas a que deu divulgação.

“Em 3 dias não podia dizer-te talvez mais do teu poemado que essas 4 folhas de prosa. Todos os que a leram poraqui, a consideraram um bom texto. Está exposta, em localpúblico, emoldurada e emoldurando em escrita manual umagravura do Ferreira da Silva. Hoje mesmo será vista, lidapor dezenas de pessoas e num local bastante próprio. Ali-ás, belíssimo e onde és esperado com impaciência e ondevenderás uma mão-cheia de exemplares a 200$00 logoque o queiras ou possas.”

1º trimestreCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva TavaresCarta para Vitor Silva Tavares

“Caldas, logo após a chegada do carteiro e de abrir umolho para a linda manhã. A tribo à m/volta imita na perfeiçãoa Feira das Mercês: barulheira, penicos (de plástico), etc.”

5 MarçoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio Martinho

“A verdade é que conto pisgar-me daqui em breve, logoapós a saída do livro do Sade com o meu prefácio já a corrertipografias. Este prefácio tem picos: não podia perder a altu-ra de dizer certas coisinhas ao tal Arelo Manso e a toda amoralidadezinha que ele representa e, até, aos puritanosque ele condena - não vão no futuro ficar equívocados como meu silêncio dagora.”

Refere-se à edição de A Filosofia na Alcova, de Sade.O livro tem 2 prefácios, um de Mourão Ferreira, “Contra

Sade” e outro de Luiz Pacheco. O texto de LP contém diver-sas referências ao Dr. Arelo Manso, Juiz da Boa Hora, cujasentença moralista o autor cobre de ironia. LP defende a

Page 5: Luiz Pacheco e as Caldas - gazetacaldas.com · que alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldas da Rainha. ... LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica de

11 de Janeiro 2008 SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADE V

propósito de Sade que a libertinagem é sinónimo de liber-dade, porque supõe diálogo amoroso e não apenas sub-missão, como o Marialvismo, e que a verdadeira comunica-ção com o Outro é a que o sexo possibilita (é ele que viabi-liza “a posse e entrega absolutas”).

5 MarçoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio Martinho

“A nossa opinião democrática ainda não está preparadapara a libertinagem: aqui nas Caldas, um figurão que andoucom o Delgado, e seria se fosse um possível Presidente daCâmara no futuro, ficou danado: acha que a Natália deveser presa e eu numa jaula ao lado... Ao menos, com estes jásabemos com o que contamos ou contámos.”

12 MarçoConferência de Santos Fernando no CCC, integrado no

ciclo “Serões do CCC”, “Arte e Cultura pela Palavra”. A pa-lestra intitulava-se “Humor é tema de juventude - tudo o quetem espírito é jovem”.

Veio acompanhado de Ferro Rodrigues, Vitor Silva Tava-res e Virgílio Martinho. Luiz Pacheco recebe-os.

4 AbrilEdição de Crítica de CircunstânciaEdição de Crítica de CircunstânciaEdição de Crítica de CircunstânciaEdição de Crítica de CircunstânciaEdição de Crítica de Circunstância

5 Abril 66Edição de Comunicado ou Intervenção da ProvínciaSegundo se lê na contracapa do folheto, o texto destina-

va-se a “comparticipar de surpresa numa sessão de autó-grafos do poeta Mário Cesariny de Vasconcelos para o seulivro A Cidade Queimada, na Livraria Divulgação, a 15 deJaneiro de 1966.

O folheto é editado por Contraponto, com direcção gráficae extratexto de Ferreira da Silva.

O texto está impresso a duas cores e composto de modoa figurar duas garrafas. Uma pequena zona foi deixada embranco previsivelmente para aí ser colado o extra-texto, quesuponho seria um desenho ou fotografia de uma falo emcerâmica, típico das Caldas. É uma elegia a Cesariny, poetado corpo e portanto da Liberdade.

7 AbrilCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Confessa ter feito “uma coisa grave: joguei tudo, ou qua-se, num prefácio a uma tradução do Sade que foi apreendi-da no mesmo dia em que saíu. A PJ tomou conta do assunto.E este processo somado ao outro da Antologia Erótica (que,segundo consta, foi parar ao Tribunal Plenário, é uma honrapara a gente, mas perigosa) e ao meu cadastro, deve darpara uma estadia prisional duradoura”.

A abrir: “Tenho cá uma impressão que a minha vida vaientrar num plano inclinado e muito escorrega-dio, com dois locais à vista: Aljube ouLimoeiro.Preferia o segundo, que já co-nheço e onde gostava de colher maisapontamentos para um livreco em partohá anos: O Limoeiro Revisitado em 1959.

7 AbrilCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Refere que procura um lugar onde se es-conder com a tribo, mas a resposta recebidanão inclui a tribo. Reaje indignado a tal ideia“Se eu quisesse um nicho só para mim, natu-ralmente pedia só isso! Naturalmente, nemme preocupava com as polícias porque no Li-moeiro não se está mal de todo, já sei”.

7 AbrilCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Relação com a tribo, depois de anunciar quepensa poder saír das Caldas em breve.

“Estou a estudar in vivo uma criatura humana,ou duas, com a noção de que três inocentes quebrincam à roda podem pagar por isso (mas é ocostume). Não se pode viver na mentira ou com aimpressão de que somos carcereiro, empata-fodasdoutrém. E muito mais quando já houve o que hou-ve (...) e quando se tem por essa cobaia amor de paiao mesmo tempo que amor de amante, companhei-ro, etc. Se a Tribo tiver de manter-se unida, e faço osmaiores ou alguns esforços para isso, será consoli-dada pela ternura duma rapariga a um velhote atra-palhado, ou que ela julga atrapalhado. Estou a pô-la àprova como, aliás, faço há mais de um ano até agoradei-me bem. Ainda um dia espero pôr isto em literatura,e com tanta mais necessidade quando vejo que a maio-ria dos homens portugueses, ainda os mais evoluídosou que como tal se supõem, acham as mulheres deles

um objecto de posse, assim como uma bengala onde seencostam ou cadeira onde eles se sentam quando lhes ape-tece. E não um bicho vivo, com direitos próprios de pessoahumana, e com órgãos que lhes pesam chamados ovários,útero e o que está à mostra”.

7 AbrilCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Projecta fazer um apelo geral aos admiradores e amigos,pondo-os à prova: “O Luis Pacheco tem a cadeia à vista; esupõe que tem possibilidades de se aguentar cá fora, unstempos, sendo ajudado; e quer escrever ainda umas lara-chas. Deve ser preso por inércia ou indiferença dos amigose admiradores, ou não? Se sim, para que o admiram tanto?Ou não será tudo uma amizade platónica? Uma admiraçãosuperficial?”

7 AbrilCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Conta que Cesariny (“aquele meu Mecenas de Londres”)veio de taxi ás Caldas há meses e deu Jantarada com finose caros vinhos. E que agora lhe propõe que vá com ele paraLondres, prometendo arranjar dinheiro para a caução. Nãoacredita.

7 AbrilCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

“O agente local da Singer é que é afinal meu amigo emeu admirador” (não lhe retira a máquina, apesar da faltade pagamento).

9 AbrilCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

LP preocupado com diligências da PJ por causa da edi-ção do Sade e com falta de reacções à saída da Crítica deCircunstância.

Informa que só no dia anterior ficou pronta a impressãodo texto do Comunicado.

Anuncia um panfleto que já iniciou sobre Ferreira de Cas-tro e intitulado A Caça em Portugal.

Questiona a possibilidade de se acolher a uma casa deDácio em Macieira de Cambra, durante o Verão.

? AbrilCarta de Virgílio MartinhoCarta de Virgílio MartinhoCarta de Virgílio MartinhoCarta de Virgílio MartinhoCarta de Virgílio Martinho

“Só hoje fui à Ulisseia e tenho o teu livro. Só hoje soubeque foi apreendido. Lamento-o danado, este livro devia serlido por muita gente, porque é um dos únicos que “pulam”nas nossas mãos. Um dos poucos com “maté- ria”. Ùnicode exemplo. Claro que não po- dia ficarimpune.”

? AbrilCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“(...) me basta recordar todos os apoios que no ano de 65me prodigalizaste, e sem exageros nenhuns talvez me ti-vessem mantido vivo, para que te queira contemplar noamplo céu e não de cócoras a apanhar pontapés.”

? AbrilCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“(...) Passei esta última semana numa crise de várias qua-lidades. Esta manhã mesmo, andava aqui pelo Parque, umpouco na angústia do Horto das Oliveiras, salvo o devidorespeito.

(...) a saída da Crítica, dizia, não me irá facilitar a vida; oprocesso da Natália, menos; o prefácio ao Sade, péssimo!Mas tudo isto seriam episódios para a gente mais tarde serir, se a minha Tribo estivesse unida. Escrevo agora à tarde:quando comecei esta carta, logo depois de ler o postalzi-nho, a coisa estava mais negra. Houve tempo de falar com aIrene, combinámos a vida, chegámos provisoriamente (comas mulheres é tudo provisório) a uma entente. Mesmo as-sim, estou na contingência de fortes aborrecimentos. Maspodemos recuar? Ainda valeria a pena? Acho que não. Eem nome de quê? Pelo contrário, chegou a hora. A conse-guir dinheiro, a convencê-la a vir comigo, cavamos daqui.Técnica de bombista: se possível, não ser atingido pelosestilhaços da bomba; sendo necessário, atirar-se prá frentecom ela na algibeira. A nossa capacidade de recuperaçãovai diminuindo? temos de carregar na força do ataque, nasua pontaria, eficácia.”

? AbrilCarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos

“Perdeu-se muito, perdi quase tudo, filhos, editados, edi-ções, e ainda há mais para perder? pois venha tudo comoprova ou contra-prova do que se queria criar e do que senão obteve criar, salvar. O espírito ainda é o mesmo. A mi-nha força chama-se carácter.

(...) A minha paródia de coragem ou sacrifício implica ou-tra gente, inocentes, que podiam jogar outro jogo, ir à praiano Verão, tger comida que não têm. Sabes como foi hoje onosso almoço? Fartos da sopa que nos dão e esfomeados,toca de empenhar um sobretudo pele de veado e um dicio-nário de italiano. Estão agora a almoçar, têm tanto direitodisso como qualquer um. E a esta mesma hora um filho meuserve brandis no Clube Shell a Americanos imbecis. Curva-se no gosto ou jeito da gorjeta. E eu que sei e não gosto,mas não posso evitá-lo, encho-me de aiva e não esqueço.O resto são farófias”.

8 MaioCarta a Manuel VinhasCarta a Manuel VinhasCarta a Manuel VinhasCarta a Manuel VinhasCarta a Manuel Vinhas

Agradece com atraso “generosa oferta que teve a amabi-lidade de para aqui enviar, pouco depois do Natal. A Peque-na Tribo dos Pachecos, de que sou o prudente pastor, con-serva uma fome ancestral, milenária, lusitana ... e aprecioucomo o Sr. Dr. bem calcula as suas batatinhas e rebuçados.Eu muito lhos agradeço, também, embora já esteja na faseem que mais bebo do que como”.

Protesta agradecimento pelo apoio que “tem prestado aeste desonhecido” e quexa-se da polícia que “tomou pormim ou pelos meus escritos um interesse especial, que eumuito bem dispensava, mas duplamente me deixa honradoe satisfeito”.

Quanto aos méritos da Crítica de Circunstância:“Mas quando ainda em Setúbal peia o vosso auxília, não

prometia gato por lebre, perdoe-se-me o plebeísmo. Era oque podia fazer, não queria enganar ninguém. Em minhaconsciência nãoo o fiz. E, ou por imodéstia ou por lúcidoreconhecimento das minhas qualidades e dos meus limi-tes, sinto-me capaz de fazer melhor, tenho até, quer publi-cados (“O Teodolito”, “Os Namorados”, e, quanto a mim,o meu prefácio ao Sade: “O Sade aqui entre nós”), queinéditos, textos superiores”.

Cópia dactilografada, mas incompleta. Constante de dos-sier confiado por LP a JBS

? MaioEduardo do Prado Coelho sobre Critica de Circunstân-

cia“Ora, o que acontece com este livrinho de Luiz Pache-

co, que tem por título Crítica de Circunstância, é precisa-mente isso: lê-se com prazer do princípio até ao fim, rapi-damente, numa tarde, até, que será, com certeza, uma

tarde bem passada. Num estilo irreverente, com inegávelhumor, com certa facilidade de escrita, Luiz Pacheco fala-nos de tudo e de nada sempre com o mesmo à-vontade”

A “Comunidade” éum dos livros mais

conhecidos do escritor

Page 6: Luiz Pacheco e as Caldas - gazetacaldas.com · que alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldas da Rainha. ... LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica de

11 de Janeiro 2008SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEVI

(…)Subitamente – ao cabo de umas cem páginas turbulentas

– assalta-nos uma dúvida, uma pavorosa dúvida: Luiz Pa-checo não tem ideias. Será possível??? (…)

É um livro com graça, sim; é um livro oportuno, é claro; éum livro com personalidade, evidentemente; mas – coisaterrível – não tem ideias. Podemos dizê-lo (inconsolavel-mente): não tem uma única ideia. (…)

8 MaioLuiz Pacheco sobre a crítica de Eduardo doLuiz Pacheco sobre a crítica de Eduardo doLuiz Pacheco sobre a crítica de Eduardo doLuiz Pacheco sobre a crítica de Eduardo doLuiz Pacheco sobre a crítica de Eduardo do

Prado CoelhoPrado CoelhoPrado CoelhoPrado CoelhoPrado Coelho.....Acusa-me ele, entre alguns piropos pára-raios a preve-

nir-se ou a provocar a minha tal verrina, que o meu livro nãotem ideias, sic: não tem uma única ideia. Podia responder-lhe que o defeito é um tanto dele e da Família dele. Naverdade, já aturei três gerações de Prados Coelhos: o Coe-lho A. (avô deste menino), o Jacinto (pai do dito) e ele pró-prio, Eduardo. Fui aluno do A. do Prado Coelho no LiceuCamões, sem modéstia, ou por engano do professor, fui,por sinal, o melhor aluno dele. Não me transmitiu ou nãoassimilei, ao que parece, nenhuma ideia do mestre, exce-lente criatura que durante um período inteiro nos fazia reci-tar a Balada da Neve ... e, ali, de facto, não há grandesideias, nem o Augusto Gil era o Kant. Lendo o Jacinto, esti-mável criatura também, topei algumas ideias, mas por certonão me entraram na cachimónia. Do mais novinho dos Co-elhos, tenha lido coisas acertadas, mas (com mais atenção)percebi que as ideias dele eram francesas, por um vícioconscienciosamente e constitucionalmente lusitano. E aquichegamos ao ponto.”

(Página em falta) uma camioneta cheia de ideias ... oudizendo doutra maneira : a minha biblioteca inteira. Vinte milvolumes, fora revistas, fascículos, etc. Foi tudo parar ao Ruivi-nho (!?), alfarrabista da Rua da Glória, o qual se teve tempo paraler tudo o que eu já lera até então deve estar um filósofo deprimeiríssima ordem, se assimilou melhor do que eu, que, naboca do Eduardinho não assimilei uma para a caixa, nem asescrevo, depois, no papel. Detesto vender livros, os meus, ado-ro vender livros, os que editei e edito. Trago comigo o (talvezfalso) orgulho de pensar que nenhuma biblioteca hoje em Por-tugal decente (uma biblioteca decente, viston que a nossa tristepatriazinha é o país mais indecente do Globo) poderá dispen-sar um livro meu editado editado, começando no Sade e aca-bando no Suassuna. Mas, na altura, havia pelo meio um feto detrês meses se não vendesse os livros - e um filho, Senhor Dr.,vale mais que a biblioteca de Alexandria toda junta; e havia,também, uma rapariga que eu amava e amo - e uma paixãovale mais do que tudo qaunto o Coelho leu até hoje e lerá.

Como fiquei sem livros fiquei sem ideias ... é o que me pareceque o Coelho quer dizer e ele exemplifica abundantementeno que escreve.

Tenho a fazer mais livros, se tiver tempo e cabeça para osfazer. Nâo tenho ideias? paciência. Je prends mon bien oùje le trouve, confessava o Molière. Assim, eu. O que precisoé de livros. Não são muitos. Nem são, talvez, os que o Coe-lho Junior leu, lê, ou gostaria que eu lesse ou tivesse lido.Mas são-me indispensáveis. Uma meia-dúzia.”

22 MaioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte DácioCarta para Ricarte Dácio

Datada de Caldas-Sur-Merde.“Depois da saída do meu livro e consequente apreensão,

não me têm faltado convites para colaborar aqui e ali, até járazoavelmente pagos. Mas tudo vem a dar no mesmo: sefaço prosa leviana, fico cheio de desgosto; se encaro coisamais séria, ou não sai ou me dá um trabalhão, e logo setorna prosa não-rendosa, outra vez. É um círculo fechado ecriminal, por parte do meio (o costume...), pois o que nofundo se pretende é que o Escriba se distraia (dos seusfundamentos ou propostas mais íntimas) distraindo os mais,para a euforia geral e comercializada. Não adiro. Por cons-ciência, por coerência e por nojo. E como exemplo.

28 MaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar Sampaio

Indica a morada da casa nova Casal da Rochida, Estradado Coto, Caldas da Rainha. Anuncia novo estilo e novofôlego, depois da Crítica e dos Textos Locais. “Mas em tudoagora devo ser mais exigente e cauteloso, ou, não queren-do não ser, isso é cá comigo”. Mas declara estar envolvidoem “Tema novo que me surgiu há dias, obra portanto decriação e de teste, para eu mesmo perceber se estou piorou mais vigoroso na escrita e na cachimónia, obra de des-forra e de desafio também, terei de usar de todas as caute-las. Até ver.”

28 MaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar Sampaio

“O que de cruel me acontece, ainda hoje a partida damiúda, a Lina, para Angola É Nossa, tomo-o como preço, eregisto na conta-corrente de que certos outros, esta Socie-dade fascista, me tem de pagar um dia, ou agora, começan-do já”

“Pelos meus cálculos, aí por Outubro ou Novembro, devoestar a revisitar o Limoeiro, ou partir, sair das Caldas e per-der-me da Tribo”

? MaioReferência à forma como ludibriou a Pide, escondendo

umas centenas de exemplares da Crítica de Circunstânciaque Victor Silva Tavares e Edite Soeiro tinham conseguidosalvar, em Óbidos, com a ajuda de Irene: “mandei-os paraÓbidos e depois fui-os buscar com a Irene, a nunca esque-cida, que vivia então comigo e tu conheceste em Setúbal”.

28 MaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar SampaioCarta a Jaime Salazar Sampaio

Sobre Ferreira da Silva “ceramista dos melhores, dizem,que já duvido de tudo. Travei com este tipo, durante mais deum ano, aquele nosso conhecido combate: não te deixes irabaixo! Faze o teu melhor! Luta pela tua Arte! Então esseorgulho?”

Conta que FS acaba de perder, pela terceira vez, a bolsada Gulbenkian (ano e meio em Paris, devia partir em De-zembro). Recebeu o prémio Soares dos Reis do SNI, 5 con-tos, embora lhe tivesse dito que o recusara. “Falava-me numahomenagem a Espártaco em barro da Secla e o que faz édançar o yé-yé”. coisa e outra /grandes alegrias, grandesdissabores ao procurar desviá-lo das meadas em que sedebate/”

22 JulhoCarta a Laureano Barros (possivelmenteCarta a Laureano Barros (possivelmenteCarta a Laureano Barros (possivelmenteCarta a Laureano Barros (possivelmenteCarta a Laureano Barros (possivelmente

não enviada)não enviada)não enviada)não enviada)não enviada)“Ontem já de madrugada, portanto hoje, rigorosamente,

tive notícia pelo Diário de Lisboa que saíra a noveleta “OsNamorados” numa antologia do Ribeiro de Mello. A sequên-cia está prevista: apreensão, PJ, Tribunal da CoMarca, e omais que se verá a soMar à Antologia da Natália, ao Sade,ao passado. Ainda a 20 fui aqui a tribunal receber a notifica-ção de culpa da Antologia. Vou à cabeça: agravantes poruma sucessão de crimes e mais uma condenação na Sertãque nem sabia. Valha-nos isso! a minha libertinagem não ésó literária, tem cadastro arquivado nos tribunais do EstadoNovo. Tudo, afinal, pequenino e nem sequer monstruoso:aquele tipo de Chicago, o al Speck, é que percebe de sadis-mos…

Tudo isto são lérias. Modos de diversão salazaresca. Umaespécie de Grande Roda, na Feira Popular, onde figuro depalhaço pobre, e já agora triste – isso tão-pouco o ignorava.Vem lá, nos namorados.

? JulhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio MartinhoCarta para Virgílio Martinho

Datada de Caldas-sur-Merde.“Falo-te da minha nova oficina. É um pequeno palácio.

Vistas imensuráveis. Ares mais que lavados. Água-pé à von-tadinha.

(...) Na passada semana tive cá a visita, entre outras, doDácio e Cesariny, Kitty e Seixas. Vinham tesos (para mim...)e gastaram só num almoço 270$00. Hoje, mandei postal aoMário dizendo-lhe duas das minhas, porque não sirvo paracuriosidade turística e os estrangeiros que se arriscam na-quelas quintas ao pé do Alto de S. João, bairros de miséria,ou ficam lá estendidos ou pagam caro a mirada. É a lei quevou impôr cá nas Caldas. Entretanto os projectos fervilham...Logo que me aclimate à casa nova, e antes que rebente a

bomba da Antologia das Novelas Eróticas, do Ribeiro deMello (já revi provas de Os Namorados vai para quinze dias),com as costumadas operações: apreensão, processo naP.J., intimação a tribunal, etc. (ainda na 2ª feira fui aqui cha-mado para depor no processo Sade) pretendo dar ao dedoum bocadinho, quanto mais não seja para encher o Verão.”

13 AgostoAtenção para João Bonifácio SerraAtenção para João Bonifácio SerraAtenção para João Bonifácio SerraAtenção para João Bonifácio SerraAtenção para João Bonifácio Serra

O pretexto é uma entrevista que JBS deu ao suplemento“Juvenil” do jornal República. “Não é vulgar o caso desterapaz. E não o é, por duas razões: pelos dotes naturais querevela e pelo ambiente em que se processam”.

Oportunidade para LP criticar severamente “a vida cultu-ral nas Caldas como realidade colectiva” que a seu ver “écoisa inexistente”. Passa em revista os diversos sectores:cine-clube não existe, e portanto não existe instrumento paracontrariar a política de distribuidores e exibidores, para alémdas deficiência da sala de cinema do Pinheiro Chagas; oCCC está paralizado e em mais de um ano limitou-se aapresentar a peça O Borrão (“é uma sede, uma colectivida-de fantasma”). A Biblioteca não tem leitores e sobretudonão tem uma “função activa” (através de colóquios, exposi-ções). O mesmo panorama no campo das artes: em quasedois anos houve duas exposições, ma Tertúlia e no CaféCentral (esta de Figueiredo Sobral, de um ecletismo desori-entado e desorientador)

Artigo publicado na Gazeta das Caldas de 13 de Agostode 1966.

16 AgostoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Hoje, foi o ferro eléctrico pró chaço, trocado em comedo-rias”.

“...o que já ingeri hoje: café, um papo-seco, três tintos dedois, meio queijo daqueles tamanho moeda morabitina, tipoTomar” .

16 AgostoCarta a Vitor Silva Tavares.Carta a Vitor Silva Tavares.Carta a Vitor Silva Tavares.Carta a Vitor Silva Tavares.Carta a Vitor Silva Tavares.

Sobre Irene e filhos:“Esta minha Dona Pantera é uma criatura de excepção.

Vê-se, parece-me. Numa idade em que as outras andam nobailarico, já ela era mãe de dois sobrinhos e com um filhona barriga. Depois vieram mais dois para a barriga. Viu-os,não viu? Irrepreensíveis. Gorduchos. Vivos como diabo. Aspessoas atribuem tudo à mamã, e está quase certo. Mas eusou o contra-regra; há uma vigilância minha contínua, queaprendi com o meu pai: “olha que o menino cai; amanhãnão é o dia da vacina? o miúdo tá borrado.” Etc. Depois,outra sobre a mamã: as companhias, as senhoras vizinhas,os Marialvas seditores. Porque, talvez a vida não lho tenhaainda ensinado, Vitor, mas o bicho humano é a coisa maisfacilmente degradável, mais rapidamente queda dum anjoque há. E o meio, o nosso, a coisa mais degradante e cor-ruptora que há, talvez, agora, no Mundo. Junte a isso a sopaazeda, que é preciso esmolar a 500 metros de rampa. Pior:a incerteza do amanhã, o estar à espera do carteiro parasaber se... Como elas me aturam, esse não é só um milagredelas, é também uma obra-prima minha, de atenção, dealegria ou folia, de técnicas amatórias e de paciência decorno (quando é preciso de todo em todo...). Reuno o papáao amante ao juiz ao Marido ao pai dos filhos ao padrastotolerante, etc.

Ora o combate com esta ferazinha, que eu amo, começouna terra dela. Está escrito, por mim e por ela. Ela enganou opai, mãe, uma aldeia inteira, comigo sempre na posição decontra-regra, ponto assustadíssimo, doente a sério, a fingir,etc.”

Narra um episódio que sucedeu naquele instante, ilustra-tivo da actividade de contra-regra, pois está sozinho emcasa a tomar conta dos miúdos.

“Depois, por aí fora, Lisboa, Setúbal. O etc. O Jorginho. Afuga, eu, toujours, a dar um torção à mofina.

Referência a Setúbal e aos maus tratos da Tia aos sobri-nhos, primeiro o rapaz mais velho e depois a Lina “a queMarchou para Angola, e está bem ao que julgo”. Referênciaaos ditos das vizinhas depreciando LP pela figura e pelaidade e lamentando tantos filhos e tão pouco dinheiro. Fi-nalmente, a ruptura, que é descrita nestes termos:

“Agora vem a técnica da tragédia: Uns fatos novos e quelhe ficavam bem a ela; o corte da trança, para dar um armignonne, os ditos das amigalhaças, a Azenha (maus exem-plos da). E eu livre da Lina, eu endureci (recorda-se de lhoter dito na Praça, aqui, no dia santos fernandino?) O sarrode Setúbal voltou-me, a rabujice, com os copos, azeda. Caí

Foto Margarida Araújo

Page 7: Luiz Pacheco e as Caldas - gazetacaldas.com · que alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldas da Rainha. ... LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica de

11 de Janeiro 2008 SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADE VII

na maneira dura. E nem sempre me dei bem, hélas! E nãopensando logo, mas agindo como, e depois reparando, avan-cei na escalada.”

Mas o plano inclinado não podia senão agravar-se.“Mas o sarro de Setúbal não é só ele, sarro sadino: são

outros, uma boa dúzia. São quatro casas destruídas, é umfilho meu em Bucelas, entregue a campónios e campóniode todo e que quase não me reconhece. É o Eduardo PradoCoelho (Você não percebeu? eu detestei aquilo, até porqueo tipo tem alguma pouca razão (...). É a apreensão da Críticade Circunstância, Sade, etc. É o caruncho. É trança da Irenecortada. É tudo junto.

A vinda cá para cima foi uma tentativa que deu em dispa-rate. Eis a minha explicação (...). Lá em baixo, havia a sopaa dois passos, o banco do Montepio para os tremeliquesmeus, farmácia, os fiados de dois anos de estadia, o caféque fia a bica, o bagaço. Aqui, ir buscar a sopa é uma aven-tura: vai ela? Fico aos salto e a fazer de ama-seca comoagora (...)”

Em suma, a situação agravou-se. Irene sente-se mais elaprópria e empurrava-o para o papel contraditório de guardiãodo lar.

Em Julho escreveu muito, acreditando talvez numa “saídahonesta”, mas a suspensão do Jornal de Letras e Artes nãopermitiu criar “aquele movimento de moeditas a entrar e a saírque fazem a alegria da tribo”.

Você já me estará a entender que o climax avança. O meunervosismo, desatenção é claro que se transmite à Pantera quedevolve esses fluidos quadruplicados em fúria e dentadas. Oraeu estou-me Marimbando. E não me estou Marimbando”.

6 Setembro“Na Morte de António Pedro”“Na Morte de António Pedro”“Na Morte de António Pedro”“Na Morte de António Pedro”“Na Morte de António Pedro”

Invoca António Pedro para, lembrando a sua actividadeno Teatro Experimental do Porto, se referir ao CCC, e ao“impasse” em que se “encerrou”.

“No C.C.C. não se passa nada. E porque?” A crítica de LPdirige-se às estruturas que dependem de um só homem,como foi o caso do TEP, é o caso da Ribalta de Setúbel e doCCC nas Caldas. “Quando no C.C.C. três ou quatro elemen-tos-chave (por ex., o Paniágua, o Velhinho, o Fonseca Lo-pes, tudo bons Amigos meus, mas (a verdade diga-se) amu-am, ou a sua vida profissional os impede, o grupo fica tolhi-do ... como presentemente se verifica”.

Gazeta das Caldas, edição de 6 de Setembro de 19668 Setembro

Carta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira“Estas terras de Província, e já por cá ando há 5 anos, são

só boas para trabalhar, isolado. Para concatenar ideias eproduzir in loco são uma caca. Não dão ideias, dão perso-nagens, paisagem, algum vocábulo mais típico. Mai‘nada!E solidão de pavor.”

8 SetembroCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Aqui no meu reduto, o Forte da Rochida, são tudo con-versas de burros, que vou começar a registar exactamente.Conversas de Índios. Mas Lisboa ... segundo me dizem, eoutro dia vi, está tudo podre”

8 SetembroCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Tenho agora um Mecenas (a sério) que me paga livros: odr. Manuel Vinhas”

29 SetembroEm documento dirigido ao Chefe da Secretaria do 4º Juí-

zo Criminal da CoMarca de Lisboa, indica rol de testemu-nhas no processo que lhe foi movido por crime de abuso deliberdade de imprensa (para o qual lhe foi nomeado defen-sor oficioso): Jaime Salazar Sampaio, engenheiro silvicultor,Vitorino Nemésio, professor catedrático, António ManuelCouto Viana, poeta e realizador teatral, José Manuel Sauda-de e Silva, estudante de Direito, João Bonifácio Serra, estu-dante de Direito, Serafim Ferreira, escritor, Amândio César,funcionário superior da Emissora Nacional e escritor, Orlan-do Vitorino, escritor e funcionário superior do serviço de bibli-otecas da Gulbenkian, Virgílio Ferreira, escritor e professordo Liceu Camões, António Maria Pereira, advogado.

1 OutubroComo refere em carta a Serafim Ferreira, datada de 16 de

Agosto do mesmo ano, nesse dia devia apresentar a defesanos processos da Antologia da Natália e do prefácio ao Sade

5 OutubroCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

Referência aos mandatos de captura que foram emitidoscontra si na Sertã há 3 anos.

28 OutubroPostal para JBSPostal para JBSPostal para JBSPostal para JBSPostal para JBS

“Meu caro Serra: grato pela sua carta e pelo que nela mediz. Não sei quando poderei ir a Lisboa (só de boleia). Claroque gostaria de estar consigo e com esses amigos, mastudo depende de imprevisíveis, pois a minha situação noaspecto material, e etc. vai-se agravando. Cuidado com essavelhada da República, que tem ronha que se farta (tambémjá me enganaram). Há, que me lembre, 2 tipos simpáticos: oAugusto Ricardo (da velha guarda) e Vasco Granja (porrei-ríssimo). Li poema. Preferia prosa ... o Serra já sabe a minhaopinião sobre a sua incursão diletante nas Musas. Não seofenda. É sincera (o que é muito raro). Mandei mais 2 textospara a Gazeta. Literatura comestível. E deve saír dentro dedias panfleto local (idem). Mas estou em riscos de ficar sema máquina, a luz, a casa, o coiro cabeludo - de me arripiar acoçá-lo - , a família. O Forte da Rochida não se rende sembrava luta. Um forte abraço do Luiz Pacheco”

28 OutubroCarta a desconhecidoCarta a desconhecidoCarta a desconhecidoCarta a desconhecidoCarta a desconhecido

“Tudo se tem agravado por aqui. Vim a saber que o meuprocesso na Antologia da Natália levantou outro, talvez es-quecido ou suspenso, en sursis, de um crime maluco naSertã: “rapto” da rapariga que vive há quatro anos comigo ede quem tenho três filhos, morada conhecida da família, dapolícia, morada poública em suma. Sentencia: 18 mesesmais 50 dias, o que dá em n.os redondos 2 anos e acrece afria fúria natural dos meus Meritíssimos da Boa- Hora. Semadvogado. Sem nada.

Como solução desesperada, mas pensada, de emergên-cia, tentando evitar o pior, fui á Sertã dar-me à prisão. Inge-nuidade minha e portuguesa: ali deparei com uma barafun-da incalculável, o edifício do tribunal em obras, ninguémpar me atender (prender). À portuguesa, século XX e daquipara trás. Fugi a rir muito, e com mais medo logo que soubeque a cadeia, que supunha ao alto da vila, um autênticosanatório, era num vale, cheia de água e musgo nas celas.Agora aguardo. De dia, a rir. Às noites, que não durmo, a terpesadelos.”

Provável destinatário: Laureano Barros, professor em Pon-te da Barca

28 OutubroCarta a desconhecidoCarta a desconhecidoCarta a desconhecidoCarta a desconhecidoCarta a desconhecido

“Subitamente, há poucos dias, envolveu-me uma grandecalma: não visionar males maiores, aproveitar estes dias deOutuno calmo e nas Caldas com sol, com a bicharada emvolta. Trabalhar, assim, ler, passear, como um lagarto gozara natureza. Nâo temer (mas só durante o dia, à noite a zonade franja mental funciona atrozmente). Quererá guardar aí,para mandar depois, uns volumes ou pastas de originais,correspondência, que me farão falta para ler e consultar, setiver de acontecer o pior? E o pior para mim, é isto: a famíliafica não abandonada materialmente (a minha rapariga étipo Maria da Fonte) mas desinteressada de mim.”

? OutubroEm edição a stencil com chancela Contraponto sai o fo-

lheto Maravilhas & Maravalhas Caldenses. FormatoA3, com 18 páginas. A publicação é anunciada como pri-meiro fascículo de uma série. Menções, a seguir ao título“sigla: ubi es ibi patria”; “tiragem: 100 exemplares, numera-dos e assinados pelo Editor”; “preço de amigo: vintes(20$00)”; “este primeiro fascículo contém: MEMORIAL, NAMORTE DE ANTÓNIO PEDRO, O CASO FERREIRA DA SIL-VA”; “Outubro de 1966”.

Uma página apensa, não numerada, anuncia-se que “Ma-ravilhas & Maravalhas Caldenses publicará nos próximosfascículos, talvez já impressos tipograficamente, O QUE SEPASSA NO CCC? (depoimentos variados), VOCÊS JÁ VI-RAM O INFERNO D‘AZENHA ? O CASO DO CHICHARROINSINUANTE, AQUELE RAPAZ FRANZINO, O CIDADÃOQUE ERA POMBO, de Gary, A MULHER DO BOTICÁRIO,de Tchecov (traduções minhas).

O autor agradece todas as sugestões, críticas, informa-ções, que possam caber numa obra do género desta, “lite-ratura comestível”, forma de intervenção desapeixonada nosproblemas locais. Não espera enriquecer. Toda a corres-pondência para Contraponto - Casal da Rochida, nº 1, 1ºEsq. Estrada Municipal do Coto, Caldas da Rainha.

OutubroMaravilhas & Maravalhas Caldenses: “OMaravilhas & Maravalhas Caldenses: “OMaravilhas & Maravalhas Caldenses: “OMaravilhas & Maravalhas Caldenses: “OMaravilhas & Maravalhas Caldenses: “O

Caso Ferreira da Silva”Caso Ferreira da Silva”Caso Ferreira da Silva”Caso Ferreira da Silva”Caso Ferreira da Silva”Há uma conspiração para destruir Ferreira da Silva“Uma cidade de passagem, sem vida cultural própria; um

patronato guloso das horas, da imaginação criadora dequem o serve, e enredado, estandardizado no afã comerci-alista rotineiro; uma mulher limitada porém umaníssima nosseus anseios e reacções de fêmea, de mãe. Registo: umaesposa portuguesa, patrões egoístas portugueses, uma ci-dade pequenina e portuguesa conspiram, talvez inconsci-entemente, cada qual pelo seu lado,m numa acção descon-certada mas não menos eficaz, não menos perigosa para avítima; paracem todos apostados em; ou podem vir a estarem vias de DESTRUIR UM ARTISTA”.

Como é de Caldas da Rainha que falo, era escusadodizer-lhe o nome, tão conhecido ele é. E não só nas Caldas,e não só no País inteiro (Prémio Soares dos Reis de Escul-tura, obtido em 1964 no Salão da Primavera da S.N.B.A.)mas internacionalmente. Um Artista portuguêsm com audi-ência, com clientela internacional. ‘tá-qui diante de mim umpapelinho impresso, dum senhoreco americano, MisterGeorge H. Frost, de Nova-Iorque, bem explícito a tal respei-to. Diz assim:” Unique studio pieces: each na original signedwork of art. Pots, plaques, jars, jugs, bowls or purely imagi-native creations; suitable for lamps, flower arrangementgs,etc.,or to stand alone like fine statuary just for looking at andenjoying. Gay, witty, colorful, they are mostly the productionof the Portuguese ceramist, Ferreira da Silva”.

Mas este será, vamos! o ponto de vista do importador, deum Marchand que de todo pouco tenha. E a crítica? Leia-seo nº 37, junho de 1962, da revista francesa Aujourd‘hui, deArte e Arquitectura, a pag. 55, numa nótula à II ExposiçãoGulbenkian, efectuada em Lisboa. Começa assim: “L‘Artportugais est à peu près inconnu à l‘étranger. Les représen-tations officielles aux grandes biennales sont délaisséespar la presque totalité des artistes portugais valables, leséchanges culturels sont nuls et le Marché inexistant; on res-te là-bas pratiquement coupé de la vie artistique internatio-nale”. A entrada é desanimadora, mas passados 4 anos já,por certo, não se comprova pelo factos - e por isso transcre-ve anteiormente o prospecto de Mr. Frost. Mas tenham abondade de ler o último parágrafo da dita nótula: “Si lesgravures exposées fonte état d‘um mouvemente nationalassez intéressant (Cid, Charrua, PoMar), il n‘en va pas demême avc la sculpture où, parmi de piètres oeuvres démo-dées (celles de Rocha, Cutileiro e PoMar mises à part), onne saurait reMarquer que l‘inconformisme criant de Ferreirada Silva, par qui le scandale arriva à Lisbonne...” Assinado:J.A. França.”

“Ora esse é o drama actual (o talento por si só vale muito,mas se não zelarem por ele estiola) de Ferreira da Silva.

Conheço-o bem, a ele e ao seu drama. Há perto de doisanos, numa amizade atenta, numa camaradagem em quenão lhe regateei louvores e apoios, mas soube ser tambémbrusco e leal nos reparos, tive tempo de sobra para estudare definir o seu tipo bastante singular. Dum ponto de vistaestético, nele se congregam o artífice de vasta experiênciacom as características que Marcam o Artista criador: cargainstintiva, imaginação e, até, pendor humanista, porque éum revoltado de classe, um inconformista por temperamen-to. À humildade do artesão (é vê-lo na sua oficina da Secla,como reparei e sublinhei numa entrevista publicada no Jor-nal de Letras e Artes) alia-se o orgulho, a imponente, es-pectacular arrogância do Artista (é vê-lo cá fora na Praça, eisso Caldas inteira reparou já; é ouvi-lo como ataca, irado,as vaidadezinhas dos amadores, só simpáticos na sua per-tinácia e, vá lá, úteis como público mais esclarecido nummeio restrito como é o caldense).

Encaminhado desde muito novo para a vida artística, F.S.percorreu no campo da escultura, da cerãmica e tambémda gravura, desenho, pintura, todos os graus, cumpriu to-das as tarefas, até atingir a posição de que hoje desfruta. Éum profissional. Um mestre, principalmente em esculturacerâmica. Quem sou eu, que percebo eu disso para o dizer?Mas di-lo (por exemplo) o Areal, o Nelson di Maggio, o Fi-gueiredo Sobral. Repetiu-mo há dias a Clara de Oliveiraque por duas vezes veio às Caldas aprender cerâmica comele. Dizem-no, com a sua responsabilidade, os membros dojúri da Fundação Gulbenkian que lhe atribuíram uma bolsa,sem que o F.S. tenha nada do insistente maçador que nãolarga a Gulbenkian. Escreveu-lho o Sèlles Paez. Sabem-notodos os seus camaradas da Secla.

Eu nem sei se os Caldenses já repararam bem, mas de-vem a este rapaz uma nova visão. Na verdade, vou a casade um Amigo, a um consultório, visito um Mecenas e, derepente, estamos envolvidos numa atmosfera F.S., isto é,num mundo de formas e cor que o F.S. criou e é inconfundí-

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vel. Aquele painel da Tertúlia, o belo mural em casa do VitorSebastião, o Ferro-velho do Vasco Luís (autêntico MuseuF.S.), as esculturas e decorações do Inferno d‘Azenha seri-am, serão um dia lugar de romagem para turistas - e já oeram, e obrigatório, a haver nesta terrinha um pouco deamor pelas coisas de cá, um serviço turístico a sério. (...)

... Nâo lhe regateemos louvores, nem o poupemos emnossas críticas. Pergunta directa: como é que um Artista as-sim dotado pela Natureza e experimentado numa técnica,cuja bagagem cultural decerto não é tão extensa como se-ria de lhe exigir mas é muito mais vasta (e intensa, já que setrata de um institntivo, um sensual) do que ele aparenta;como é que um consagrado, já laureado, possuindo clien-tela e admiradores entre peritos, está em riscos de perecer(como Artista, bem entendido)? Isso é outra história, outrraverdade. Na citada entrevista, Clara de Oliveira afirmou-me:“A Arte do F.S. não evoluiu nada de há um ano para cá”.Pode objectar-se que um ano, na vida de um Artista, contapouco. Outrossim, poderá perguntar-se é se a criação doF.S. teria condições de evoluír, aqui, nesta encantadora pe-quena cidade de província, onde vale a pena vir só pelospêcegos enormes ... e aqui é que bate o ponto e somostodos aqui cúmplices ou culpados cada qual à sua escalanessa não-evolução. Caldas é um meio privilegiado para acriação artística, mas tanta facilidade conduz à dolce vita,ao farniente. Ao optimismo. E este, ao deixa andar, à repeti-ção, à glóríola local que localmente se contenta. O maisprecavido cai nisso. A tendência geral é para o nivelamento.Assim, meios esteticamente avançados, onde a competi-ção é árdua, produzem artistas superiores; em meios dedébil exigência, de vida fácil, os artistas são sugados para afacilidade, a não exigência consigo próprios. Falhos de con-vivência, de estímulo esclarecido, de público, em suma, ten-dem para o narcisismo, para a mitomania.

São palavras duras de ouvir?A mim próprio as digo e muitas vezes. No caso do Ferreira

da Silva sabem-no muitos que não exagero. Que ele está nasmelhores condições (de idade, de vigor oficinal, de ambi-ções, de possibilidades materiais) de levar para a frente asua criação. Dispõe de uma bolsa para se especializar emParis. Façamos-lhe então uma homenagem pública e um fa-vor pessoal que em nosso proveito reverterá (porque o quefaz um Artista interessa a todos): incitemo-lo. Não o desvie-mos da sua carreira. Acreditemos nele e nela. O companhei-rismo fácil é cómodo. A convivência exige a lealdade. O caso(artístico) F.S. não está encerrado. Talvez, quem sabe?, váentrar numa fase decisiva. Não estou, ninguém nas Caldasdeve ficar, indiferente à sua personalidade como à sua obrafutura.

9 DezembroPostal a João Bonifácio SerraPostal a João Bonifácio SerraPostal a João Bonifácio SerraPostal a João Bonifácio SerraPostal a João Bonifácio Serra

“Meu Caro João Bonifácio SerraTenho no meu estaminé, no Casal da Rochida provisoria-

mente e até fins deste mês, uma papelada que gostava de de-por no teu sapatinho ... desde que pendures uma de vintes naminha árvore de Natal.

O processo da Natália parece que ficou parado, travado, pe-los encantos femininos da dita. Em compensação, o do Sade(como os réus são tudo gente feia) avança a passos assustado-res. O Montenegro descobriu que o Virgílio Ferreira é qu‘era debanguarda... Para o arreliar, estou a escrever um texto “Os Ami-gos. Os Bambinos”, em estilo do mais clássico. E esta?

Abraço casto do Luiz Pacheco”A papelada a que se refere LP é provavelmente a publicação

Maravilhas & Maravalhas CaldensesOs Amigos. Os Bambinos foi publicado em Exercícios de Es-

tilo, 1971.1966 (?)

Folheto intitulado “1 Burro para o Artista”Folheto intitulado “1 Burro para o Artista”Folheto intitulado “1 Burro para o Artista”Folheto intitulado “1 Burro para o Artista”Folheto intitulado “1 Burro para o Artista”o escritor luiz pacheco que está farto de trabalhar este ano

já publicou uma data de larachas livros quase todos esgota-dos benza-os Deus! e centenas de cartas e postalinhos aosamigos com cravanços benza-os Deus! precisa de 1 burro

um burro mesmo burro com pés ferrados porque o artistanão se aguenta nas pernetas e mora longíssimo das caldasda rainha num alto sobranceiro o casal da rochida onde che-ga quando chega sempre com os bofes de fora cardíacoadiantado asmático hereditário neurasténico por convicçãodialéctica e muita leitura dos jornais diários excessivamentesubalimentado vai para mais de trinta anos desde que seuavâ materno o capitão-de-Mar-e-guerra-engenheiro-maqui-nista-naval josé miguel gomes morreu.

um burro sai barato (as burras, sim, estão caríssimas! aíuns dois contos) pequeno consumo de fava e palha aos dez

quilómetros não bebe vinho geralmente não toma cocaínanem oblivon poupa os nossos sapatos que estão uma cares-tia nas montras e faz melhor conversa mais entretida compa-nhia que muitos intelectuais lusitanos que o luiz pacheco dizque conhece de ginjeira e são todos uns xatos.

um burro pacato pouco zurrador dando a sua peidoca paraa pvt é o meio de transporte ideal para as autoestradas quelevam a casa do artista. e quem nos diz que não seja o dr.álvaro ribeiro em sua metamorfose mental? Apuleio contacaso parecido. E depois e depois todos os velhos amigosmudistas e os novíssimos anarquistas de luiz pacheco têmagora um carro – porque é que esse malandreco do pache-co não há-de também viajar enquanto o deixarem?

CAMPANHA NACIONAL 1 BURRO PARA O ARTISTAA/c Luiz PachecoCasal da Rochida, nº 1, 1º. Esq.Estrada Muunicipal do CotoCaldas da Rainha – PortugalNome………………… Morada

………………………..$$$$………

1967

Ano 1967Publicação de Textos Locais, com dedicatória a Vasco Luís

(que pagou as despesas de tipografia)14 Fevereiro

Carta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira“Estive a patinar Domingo de manhã e esta noite, por cá,

julguei que não via a madrugada ... O músculo cardíaco tá aentrar em panne. Ai Zazuz!”

16 Fevereiro “pelo Café há caras já tão espantadas de me verem com-

prar 2 jornais e escrevinhar com os sapatos rotos (esta mi-nha distracção no cruzar das pernas) que logo percebo quedesabafar com saloios maleitas destas era caso de me le-varem ao posto de socorros, aqui a dois passos, como alie-nado”

16 FevereiroCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Vou ver se entro hoje para a fábrica dos bolos. - Açúcar écaloria!”

1 MarçoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Ontem esteve cá o Carlos Faria, o Poeta Pânico”. “Daí, termos andado em turné de tasco para adega, e de

copo para mais copos”1 Março

Carta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira “Desde que a mãe sai para a fábrica”. “... ser afinal um

quase chulo de uma rapariga que ganha 20$ em 9 horasdiárias a trabalhar em pé”.

Irene trabalhava na Frami11 Março

Carta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira“O Jaime Salazar Sampaio, que esteve cá no Domingo, a

quem detalhei o plano do texto e que conhece a primeiraversão (Os Amigos. Os Bambinos), escrita em Setúbal vaipara três anos, nesse ponto concordou comigo”.

11 MarçoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

Referência que pode ser entendida como a Irene ter deci-dido entregar o filho Joca, sem o acordo de LP.

11 MarçoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Porque, levando meses a apurar o texto ( e tenho até deler o Séneca, ó Serafim !), com a máquina emperrada, aIrene indignada, o senhorio escaldado, a luz apagada, otempo tomado nos biscates, nas traduções, no empregodos bolos ou num qualquer absorvente emprego em Lis-boa, melhor pago, mas massacrante para os meus miolos?”

24 MarçoCarta de José MariaCarta de José MariaCarta de José MariaCarta de José MariaCarta de José Maria

Tendo por remetente este e Ferreira da Silva (Académiede Paris Métiers d‘Art, 5 Rue de Thorigny, Paris 3 ème). JoséMaria queixa- se de que “isto por aqui vai bera”. Provavel-mente regressará em breve.

8 AbrilCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Vale chegado, vale metido não sei onde, vale achado,vale gastado” .

8 AbrilCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“E para aqui, sabe porquê? Continuamos à luz de velas eeu sofro de perto de vinte dioptrias”

8 AbrilCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Esta semana apareceu-me um emprego de empregadode balcão numa tasca. Não quiseram acreditar-me! Ora operigo seria (a ser, eu nem gosto de vinho) dar-se o caso deeu beber mais que os clientes , isto é, ser o melhor clienteda tasca. O gozo da coisa é que acontece precisamenteisso ao dono da dita tasca e ao filho. Quer dizer: podíamosfechar a porta e mandar pedir rodadas para três. Negócioperfeito. Mas não valerá mais, do meu ponto de vista econó-mico, poder publicar o livro escrever umas larachas a ce-mzes?”

12 AbrilPostal a JBSPostal a JBSPostal a JBSPostal a JBSPostal a JBS

Meu Caro SerraNa melhor das hipóteses, sai Domingo a piada ao F. So-

bral. Dieu le veut!Não quererá V. publicar um desmentido, aqui, na Gazeta,

ou noutro lado qualquer, dizendo que ele não é jovem, nãoé caldense, não é ceramista?

Antigamente, chamava-se a isto pôr os pontos nos ii. Ago-ra chama-se propaganda à americana, pois quanto mais sefalar num gajo (neste, por exemplo) mais importante ele é.

Abraço do Mano mais velho Luiz Pacheco”16 Abril“O Picasso das Caldas”, dedicado a Figueiredo Sobral

Luiz Pacheco e Ferreira da Silva (anos 60)

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11 de Janeiro 2008 SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADE IX

“O jovem pintor caldense” que “obteve enorme êxito naexposição que recentemente efectuou numa galeria lisboe-ta”.

Ridiculariza, usando a ironia, Figueiredo Sobral: usa umachapéu Palhinhas para cumprimentar toda a gente, só pen-sa em ganhar dinheiro, não é solidário com ninguém, é umjogador de xadrês que está sempre a recolher a peça joga-da, tem falta de lógica da argumentação, os autores queadmira não têm qualidade, e sobretudo os seus trabalhoscaracterizam-se pelo facilitismo.

O jogo de xadrez de Figueredo Sobral: “F.S desnorteia osseus adversários caldenses do Café Central tocando peçassucessivas, desfazendo jogadas, voltando atrás duas e maisvezes, com memória impecável, impondo ao adversáriosucessivas e diferentes tácticas. Figueiredo Sobral a jogarxadrez vale por três. Ou por outras palavras, um jogo comele custa ao adversário três ou mais, daí que o melhor édesistirem, com o cérebro estafado numa barafunda. Alémdisso, Figueiredo Sobral usa o truque psicológico de asso-biar, e sempre afinado, desde o momento em que dispõe aspeças no tabuleiro até o xeque-mate, aquela ária do Sina-tra, Strangers in the night, oh bidu, bidu... o que enerva,mete raiva, torna-se obcecante”.

“Três autênticos valores que vivem na região (Ferreira daSilva, agora em Paris como bolseiro da Fundação Gulbenki-an, e Hergildo Velhinho, ambos das Caldas da Rainha; eJorge Almeida Monteiro, JAM do Bombarral). Todos estes,porém, empregavam um metal nobre, o cobre, nos seusMartelados. Figueiredo Sobral usa o zinco ou o alumínio”(...)

Publicado no “& ETC”, do Jornal do Fundão, e republica-do em Literatura Comestível, Lisboa, Estampa, 1972

Maio 67Data com que Serafim Ferreira assina o posfácio de Tex-

tos Locais: “Luis Pacheco, uma alma sem inquilinos”14 Maio

Postal a Jaime Salazar SampaioPostal a Jaime Salazar SampaioPostal a Jaime Salazar SampaioPostal a Jaime Salazar SampaioPostal a Jaime Salazar SampaioTendo como endereço do remetente a Cadeia Civil das

Caldas da RainhaReferência a uma amnistia do dia anterior e ao suicídio

de João Rodrigues.15 Maio

Carta a Jaime Salazar Sampaio, da cadeia das CaldasReferência ao advogado António Maldonado Freitas. A

carta denuncia o facto de a estratégia da defesa dos outrosco-reús do processo Sade pretender limitar, tal como noprocesso Antologia, um eventual contra-ataque de LP, nofundo impedir que LP apresente uma estratégia autónoma.No processo da Antologia, o juiz nomeou defensor oficioso,caindo a escolha no Dr. António de Sousa, poeta. No pro-cesso Sade, o advogado de LP é o Dr. Fernando Calixto,com escritório na Rua do Ouro.

15 MaioCarta a Jaime Salazar Sampaio, da cadeia das CaldasReferência à solidariedade na responsabilidade:“quando te proibem uma peça é comigo. Também é comi-

go. Quando o João Rodrigues se atira janela abaixo, é co-migo. Quando me apreendem um livro, é contigo. Também écontigo. Quando me processam, me prendem, é tambémcontigo.”

Referência à amizade“Não há Amigos, e cada vez os tolero menos, mesmo

tendo de os aceitar, a 25%. É tudo total.“Esta lógica fatal da Amizade, da caMaradagem, do com-

panheirismo (esta semana, em nova versão de Os Amigos.Os Bambinos, procurarei dizê-lo) é dura? pois que dúvida?Exige sacrificios? já cá se sabia!

Mas é a única coisa que ainda nos salva, quando (aos 42anos) já se perderam muitas ilusões. É uma força que meaguenta. Acho (até me provarem que estou errado) que épor eu ser assim, duramente Amigo de meia-dúzia de fula-nos, é que mantenho, mesmo aqui dentro, na cadeia, mes-mo inteiramente (logicamente) só, alguns Amigos.”

Referência a uma carta de um desconhecido do Portoque lhe estende mão amiga.

Amigo do Porto: Laureano Barros29 Maio

CarCarCarCarCarttttta para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesarina para Mário Cesariny de Vy de Vy de Vy de Vy de Vasconcelosasconcelosasconcelosasconcelosasconcelos“Soube ontem que a audiência do Sade foi adiada. Boa

notícia talvez. A verdade é que continuo preso, à míngua deuns contos ou de três assinaturas de fiadores, com bens aoluar, idóneos. Vamos a ver se os consigo.

O calabouço é, no dizer do próprio Dr. Delegado do Minis-

tério Público daqui, uma pocilga. Somos poucos, 5; a comi-da é bastante boa. Mas o ar é infecto, asma todas as noites,e o coraçãozinho a badalar. Mas Lá Fora está-se bem me-lhor!”

29 MaioCarta a Carol e Jaime Aires Pereira, daCarta a Carol e Jaime Aires Pereira, daCarta a Carol e Jaime Aires Pereira, daCarta a Carol e Jaime Aires Pereira, daCarta a Carol e Jaime Aires Pereira, da

cadeia das Caldascadeia das Caldascadeia das Caldascadeia das Caldascadeia das CaldasInforma que Textos Locais já está a imprimir e o julgamen-

to do Sade adiado (“duas boas notícias”). Protesto pelo fac-to de o Dr. António aparentemente não fazer nada para ocolocar fora da cadeia (“ateimando que a cadeia me engor-da e desintoxica (com ataques todas as noites e o coraçãoa ir-se abaixo”).

Mais queixas sobre a saúde:“Estou com Tedral (remédio contra a asma e fortíssimo,

perigoso para o coração como a breca). Mas principalmen-te à noite, isto é irrespirável. Meu rico ar da Rochida em quenão tive asma quase um ano a fio, nem no Inverno!”

Crença em apoios que hão-de chegar:“Penso, com 3 ou 4 fiadores que o António tinha a estrita

obrigação de juntar, pois todos aguardam uma palavra dele,em fazer um grande apelo à escala nacional. Ou com 5letras de favor, de 5 contos cada, e não para descontar nobanco, mas para garantir aqui um fiador com dinheiro, oVasco Luís, cuja visita aguardo hoje, resolver depressa estaMarabunta”.

9 JunhoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

Textos Locais estão quase a sair.? Junho

Dedicatória de Textos Locais: Ao Vasco Luís e para o Dá-cio

9 JunhoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Mas, humanamente, creio que os meus filhos, girandona órbita moral e sentimental das mamãs, não me perdoamnem perdoarão nunca”.

4 OutubroCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmente năoCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmente năoCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmente năoCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmente năoCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmente năo

enviada; năo publicada)enviada; năo publicada)enviada; năo publicada)enviada; năo publicada)enviada; năo publicada)Descreve choque com advogado a respeito de relação

com Irene e processo da Sertã“Vítor!Recebi vale e cheque. Comecei logo a actuar, com vista à

minha partida para a Sertã, pagando dívidas, desempenhan-do coisas, bebendo alegremente. Aqui se levantou, porém,uma cha-ti-ce com que não contava, imperdoável porqueestupidez. O António, estupidamente e ao quadrado ou àQuinta potência, faz para a Irene uma carta a chamar-medesgraçado e a aconselhá-la de moderação no julgamen-to, que era ou foi ontem. Disparate! Pior: mostra-me a carta,julgando na maior parvoeira, que ia gostar do retrato. Queestava certo e não carregado ou retocado, mas era a coisapior que ele, na altura, me podia fazer. Ataquei logo. Pedi-lhe que não mandasse a carta, que eu faria outra, que (indapor cima) com uma nota de cinquenta dentro iria lançar naraça Matias (palavras frequentes do Pai Matias) uma ale-gria (humilhadora para mim) que eu não lhe Marecia a ele,meu ADVOGADO!!

Não sei se a mandou. Avisei-o de que lhe saíria caríssimae logo nessa mesma tarde, c´os copos, lhe disse horroresde que nem me lembra. Faltei ao julgamento. Do advogadoda Sertã veio um bilhete (o tipo é o Presidente da Câmarasalazarista), despretencioso, dizendo que faria o julgamen-to, “Deus queira que tenha êxito” (sic). Com uma Irene queeu não queria enfrentar, afrontar cara-a-cara (carta e o aba-timento em que ando), com a raça Matias em alvoroço, sa-bendo-me (é quase certo, o António mandou a carta) vítimafácil, proprietária e, o que é pior, não tendo mandado nadado que ela me pediu (roupas, fogão a gás - a minha máqui-na ao ar, em troca - cama do Jóca) por falta de coragem, afúria havia de ser linda. Pedi ordens ao António. Tartamu-deou. Fiquei-me por cá. Ontem, de cabeça varrida, la mortdans l´ame, como diz o outro, fiz (mesmo assim) o que tinhaa fazer: tentei telefonar para a Sertã. Não consegui. Meiahora antes do julgamento, que era às 10, falei a um dosfiadores (3, são 25 contos) e, finalmente, como o Antónionão aparecia, fui aqui ao Tribunal entregar-me à bicharada.Foram mais humanos ou sabidos do que poderia julgar:mandaram-me embora e que metesse, no prazo de cincodias, um atestado médico justificando a falta.Venho para apensão (uma casa deserta, que só vendo, é a filial) e come-ço a limpar os bolsos que estavam cheios de tralha. Descu-

bro 50 paus! Vou de seguida ao correio mandar uma enco-mendinha que já tinha preparada aqui na pensão para aIrene e recebo outros 50 paus do Luís AMaro, da Portugália,esta crítica, e um cartão muito simpático do Rómulo de Car-valho (poeta António Gedeão e meu ex-professor de Físico-Químicas no Liceu Camões). Moralizado, ataco! Meto unstintos, vou à Rochida, estava expulso da casa, com toda atralha, incluindo a edição numa garagem húmida. Não acheigraça nenhuma, por dentro, mas, ao fim e ao cabo, elestinham tomado a resolução certa, que eu andava, estupida-mente, sentimentalmente, a adiar vai para um mês, mais.Desde 24 de Agosto. Pior que uma fera, fui buscar um taxi,mudei tudo da Irene, mandei-lhe tudo, o fogão também deveter sentido, paguei ao homem do despacho (que me pare-ceu sério e tinha já gratificado) que me embalou o fogão evim meter-me aqui na Pensão onde tomei um melhoral quedizem não faz mal mas é aspirina e acho que desmaiei (oudormi?). Acordei horas depois, fui ainda à procura do Antó-nio e acabei por caír na companhia de 2 Manos que meembeberam de tinto e algum presunto. Logo a seguir apare-ceram 2 Manas (bonitas a valer) e fomos a Alfeizerão. Bran-cos e pão-de-ló. Música de máquina automática e bidu-bidu.Eis o quadro.”

10 OutubroCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmenteCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmenteCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmenteCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmenteCarta a Vitor Silva Tavares (eventualmente

não enviada; não publicada)não enviada; não publicada)não enviada; não publicada)não enviada; não publicada)não enviada; não publicada)Desorientação“Desejo-te boa viagem. Tenho ainda aqui 4 ou 5 proble-

mas graves a resolver, e vamos lá a ver! Atestado, saber seo fogão foi ou não, máquina de escrever e a edição, forapapéis meus e roupa. Depois disso, como não posso viverdo ar e não vou (porque não quero) comer à Pensão (sede)- não sei que faça. Não sei ainda o que se passou na Sertã.5ª feira é a merda do Plenário, que já veio nos jornais anun-ciada. Escrevi há dias ao Calixto, não me respondeu que eusaiba. Que queres que faça?

Francamente, eu não sei. Ou sei? Nem sei. Agora, não.Escrevo, como já percebeste, para desabafar, entreter-me.Esta pensão é horrível, e só por isto: é uma casa vazia,cheia de quartos com camas, um silêncio implacável, qua-dros na parede com barcos, um relógio parado com estedístico Horas Felizes ... só mesmo filmado. Um deserto pa-checal, em que converso, amalucado, com os retratos daIrene e lhe chamo, a chorar (tintos?) “minha filha!”, “minhamenina!” Nada disto tem senso, eu sei. Mas alguma coisa, eem mim, tem senso?

Desculpa-me este disparate. Se eu estivesse doido detodo não me, te fazia tantas perguntas. Os doidos só têmcertezas porque se criaram um Mundo (pessoal) onde só jáhá certezas, luzes, imagens limpas, lúcidas (em relação aeles). Ainda não cheguei aí.

Abraço do ManoLuiz Pacheco

24 OutubroCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires Pereira

Deve estar a decorrer julgamento. LP que não compare-ceu é um homem acossado. “Limpei quase tudo. Devo se-guir para Santarém, no sábado, a tempo de os despistar.”

(...) “Já salvei (e destruí também) uma data de coisas. Fal-ta pouco. E está tudo combinado

24 OutubroCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires Pereira

“e aqui estou na minha “cela” de vinte ou mais quartos,pensão fantasma, onde falo sozinho e com o retrato da Ire-ne - que é, em retrato, emoldurada, muito mais tratável doque antes”.

26 OutubroCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Coloca à sua guarda 650 Textos Locais . “Não quero, atéonde possa, deixar caír a edição no charco. Sei que tereileitores e mais força, com ela à venda. Trata-se de vendercara a pele”.

3 NovembroCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires Pereira

Informa que o julgamento da Sertã foi adiado e mostrapreocupação com o paradeiro de Irene, com a qual nãoconseguiu falar (encontrar-se-ia perto de Tomar, onde viveum irmão, na apanha da azeitona).

Preocupação com os Textos Locais, mil exemplares, cujadistribuição ficou acordada com Vitor Silva Tavares.

3 NovembroCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires PereiraCarta a Carol e Jaime Aires Pereira

Situação judiciária: “não vou à Sertã, hoje tinha aqui uma

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11 de Janeiro 2008SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEX

contra-fé para o Tribunal das Caldas, cena da porrada em15 de Agosto com a Irene, faltei, vou amanhã (este proces-so não me mete medo, por ora!). Dia 7 são as alegações dadefesa na Boa-Hora, no processo do Sade. Ainda não seise irei.”

Calcula que fique preso, se for e por isso mandou algumaroupas. “Caxias, Limoeiro ou Linhó são casas confortáveisem face da cadeia da Sertã e das Caldas, esta deserta. Oranaquele calabouço, a falar sozinho ou com os meus fantas-mas, a loucura avança-me ainda mais depressa para a mi-oleira”.

4 NovembroCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires PereiraCarta a Jaime Aires Pereira

Considera terminada limpeza na Rochida, falta apenasescolher alguma papelada na Pensão. Admite ir assistir àsalegações no dia 7 e ficar preso.

1968

1968LP novamente preso nas Caldas e depois transferido para

o Limoeiro1968

Na revista Notícia, texto sobre Virgílio FerreiraUma imaginária passagem de ano no Ferro Velho, uma

“ceia com cabrito assado e muito regada”, depois da qualVF surge dançando o ié-ié, cantando baladas coimbrãs,tocando violão, incendiando a mesa com anedotas pican-tes, saltando para um banco ao dar a meia noite. “Descon-traído. Todo anti-angústias. Por vezes isolando-se co-migo numa palestra mais atenta. Doutrinando-me.Apanhando alguma alfinetadas cá da minha lavra. Ani-mando a solidão em que encontrara. Deitando à soca-pa olhares lúbricos a uma admiradora desconhecida(e belíssima, mas com Marido ao lado, e atleta) queinsistiu (ela, a madona) em que lho apresentasse e ele(V.F.) quis logo saber pormenores, nome e morada.”

Literatura ComestívelSem indicação de data precisa de publicação.

27 JunhoCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim FerreiraCarta a Serafim Ferreira

“Fui apreendido. Corolário lógico: depois de encafua-rem os livros, segue-se o Autor”

Verão 68Carta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada da

Cadeia das CaldasCadeia das CaldasCadeia das CaldasCadeia das CaldasCadeia das CaldasConsidera insatisfatórias as explicações para o facto

de estar preso. Ácido para com António Freitas: “António,meu extremoso amigo perante os estranhos, para inglês(os estranhos tais) ver ... e sacaneando-me à fartazanapelas costas, como terei a gracinha de provar em públicochegando a altura própria.”

Verão 68Carta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada daCarta a Jaime Aires Pereira, enviada da

Cadeia das CaldasCadeia das CaldasCadeia das CaldasCadeia das CaldasCadeia das Caldas “Sem tirar conclusões apressadas, não queria estar na

pele do tipo a quem devo estes cinco meses a mais, fora aestupidez dos outros doze, os quais devo à Lei, ao António,à Irene e, principelmente, a mim, porque, conhecendo-asembora na perfeição, não usei as regras do jogo que eralixar esses parceiros à má-fila e pôr-me na alheta quandoera tempo, isto é, em 1962 logo”.

Verão 682ª carta a Jaime Aires Pereira, da Cadeia2ª carta a Jaime Aires Pereira, da Cadeia2ª carta a Jaime Aires Pereira, da Cadeia2ª carta a Jaime Aires Pereira, da Cadeia2ª carta a Jaime Aires Pereira, da Cadeia

das Caldasdas Caldasdas Caldasdas Caldasdas CaldasAcusações a António Maldonado Freitas (responsável pelo

cúmulo jurídico ter prejudicado LP)“Ora o António (...) estava-se Marimbando desde há muito

para os meus processos e apenas agia aMarrado pelo medoque eu cavasse e a caução dos 25 contos fosse ao ar. (...)Nunca, como advogado meu, ele teria permitido a saída daIrene das Caldas, se é que não a facilitou em muito pormuitas atitudes, não contribuía para nos lixar a vida a am-bos - caso da renda da casa que ele falhava pontualmentetodos os meses e nem chegou a pagar até ao fim, segundome consta - nunca, aliás, e é aqui a parte mais reles, desli-gando-se claramente do compromisso que de livre vontadeassumira. Como sou fatalista e conservo algo do meu espí-rito católico, sei que Deus não dorme. Mais cedo ou maistarde ele paga-as todas, e sem que eu tenha de mexer umdedo”.

Manda dois artigos que publicou na Notícia. Está anima-do por ter conseguido desempenhar a máquina de escre-ver. Tem colaborações comprometidas com a Notícia e o

Jornal de Notícias.14 Agosto

Transferido para o Limoeiro. Em Novembro ainda lá seencontrava a cumprir pena.

1968-1971

1968-1971O Caso das Criancinhas...O Caso das Criancinhas...O Caso das Criancinhas...O Caso das Criancinhas...O Caso das Criancinhas...

“Gosto muito de Caldas da Rainha. É uma terra muitobonita que tem um Parque muito catita. Ah, também temuma mata muito bonita com plátanos, mas fica mais acima.Tem uma igreja muito velha. Tem gente muito velha comotodas as cidades de Província e gente que parece gente.Gosto muito de passear no parque das Caldas. Tem árvoresflores um cinema muito velho um museu quase novo. Cal-das da Rainha tem uma grande categoria: é a terra ondemelhor se caga, porque é a terra onde melhor se come: Vemmesmo gente de muito longe (de Lisboa, de Setúbal, dasFrâncias, das Alemanhas e doutros lados muitos) para ex-perimentar. Às vezes comem mal e por vingança vão cagara outro sítio; nessas alturas, os Caldenses ficam muito tris-tes muito (direi?) quase envergonhados e ou melindradosporque o segredo da abundância e excelente qualidadedas produções hortícolas e frutícolas das jeiras dos arrabal-des que abastecem o mercado é a alta muita qualidade dosestrumes caldenses. Os Caldenses quando cagam guar-dam a merda toda na cabeça e só adespejam

para unscaldeirões que os matarroa-

nos vêm depois buscart em carrocitas puxa-das à mão ou pot jericos quando está a abarrotar e algumturista de passagem repara nisso.

(...) Gosto muito de Caldas da Rainha, É uma terra, etc.Tem um bairro de lata, as Morenas (como todas as cidadesque se prezam), onde morava o Senhor Jota (de que adian-te talvez se dê notícia). Os maiorais da cidade passam otempo nos cafés, discutindo filosofia (todos os estrangeirose mesmo até alguns Gregos ficaram impressionados comesta peculiaridade local; tiraram fotografias, filmes, grava-ções, reportagens lindas). O alto nível da cultura caldenseavalia-se na frequência pelos indígenas às suas bibliote-cas e museus: numa há semore um leitor, no museu sempreo porteiro. Às vezes, aparece um cisne ou pato ganso aquerer entrar (com que direito?!), mas são logo expulsospara não perturbar quem está. Como diz o rifão: quem está,está.

(...)Gosto de Caldas da Rainha. Tem lojas montras muito bo-

nitas, talhos cheios de carne tudo quanto é bom e uma es-pecialidade regional delciosa: as morcelas de arroz. O mer-cado das Caldas é dos mais falados do País, o peixe, fres-quíssimo! vem da Nazaré ou de Peniche parece vivo. E afrutinha? os tomates? os pêssegos? nada de melhor nestesubalimentado povinho.Tal abundância alegra sim alegra avista aquece as tripas ensaliva-nos espevita o paladar. Ostubos digestivos dos Caldenses são dos que mais bem per-corridos fornecidos andam. E a doçaria? uma ma-ra-vi-lha!

Era por isso, talvez, que lá em casa não se faxiam economi-as: havendo dinheiro comprava-se de tudo, gastava-se detudo num dia. Uma alegria! um (depois) cagar nunca visto!

(...)E gosto de Caldas da Rainha porque os pacíficos selvíco-

las estremenhos Caldenses belmente nas percebiam, per-cebiam a nossa avidez intervalada ou espaçada entre se-manas de muita debilidade tripal.”

Escrito, conforme se depreeende do próprio texto, entreJaneiro de 1968 e Maio de 1971

13 Dezembro 1968Carta a Jaime Aires de Sampaio

Informa que vai saír do Limoeiro a 21. Refere que aindatem roupa nas Caldas que precisa de reaver.

“Outrossim, gostaria que o Dr. António, o Maldonado daminha desgrácia, o Freitas da sopa da Irene, soubesse daminha saída. Afinal, no meio de muito episódio evitável (departe a parte), dos vinte meses em que vinha condenadoem 1963, a chatice passou, além dos sustos, para quaseum terço. E dessa ninguém me livrava senão ele e chateou-se mais do que se podia exigir. Muito mais! Telefona-lhe,daí, podendo, como coisa tua. Obrigado.

Depois de 19681971

Pacheco projecta colaborar com Carlos Plantier em re-portagem sobre prisões, escrevendo sobre as prisõesdas Caldas (nova e velha) e Limoeiro

1972Edição de Literatura ComestívelEdição de Literatura ComestívelEdição de Literatura ComestívelEdição de Literatura ComestívelEdição de Literatura Comestível

Integra, entre outros, os textos “O Picasso das Cal-das” e “O meu F.A., com V.F. no F.V., fareJaneirodo a C.F.”,ou seja, “O meu Fim-de-Ano, com Virgílio Ferreira, noFerro-Velho, farejando a Carta ao Futuro”

19731 Dezembro

RevisãoRevisãoRevisãoRevisãoRevisão“O plano inclinado em que, conscientemente, me deba-

tia nas Caldas (e que o próprio Dr. António me falou váriasvezes, ele foi o mais actuante para me amparar, mas pro-metendo mais que fazendo e não fazendo o bastante -como é que podíamos comer só sopa?) simplificava mui-

ta coisa que, dolorosamente, numa luta danada de anosalijei: a Lina, o Paulocas, a Geninha, a Irene, o Joca,

a casa. Mesmo assim, foram anos de trabalho: es-túpido, inglório, anónimo, mal pago (para o Letrase Artes), outros compensadores (a Crítica de Cir-cunstância, os Textos Locais), outros numa esca-lada (que premeditadamente arrisquei) e deramno que deram: processos e cadeia, tudo por água-abaixo. Em certa maniera, a honra do escriba fi-

cara salva: a pessoa pachecal é que tinha ficadotão abalada, inerme, ao desamparo da sua solidão,

que caí logo na primeira esparrela sentimental - a Elsa- que me apareceu meses (poucos) depois da saída doLimoeiro”.

1974Edição de LEdição de LEdição de LEdição de LEdição de Luis Puis Puis Puis Puis Pacheco Vacheco Vacheco Vacheco Vacheco Vererererersus Cesarinsus Cesarinsus Cesarinsus Cesarinsus Cesarinyyyyy

O livro é dedicado ao Dr. Laureano BarrosMaio 77

Edição de Textos Malditos.Edição de Textos Malditos.Edição de Textos Malditos.Edição de Textos Malditos.Edição de Textos Malditos.O livro é dedicado aos causídicos graciosos do Pequeno

Libertino, Dr. António Maria Pereira e Dr. Fernando da Ro-cha Calixto, e à memória do Dr. António Maldonado Freitas.

1981Edição de O Caso das Criancinhas Desapa-Edição de O Caso das Criancinhas Desapa-Edição de O Caso das Criancinhas Desapa-Edição de O Caso das Criancinhas Desapa-Edição de O Caso das Criancinhas Desapa-

recidas.recidas.recidas.recidas.recidas.1996

Homenagem a médicos amigos; em Caldas da Rainha:Dr. José Machado, Dr. Custódio Maldonado Freitas. in O Uivodo Coiote

1999JaneiroJaneiroJaneiroJaneiroJaneiro

Correspondência entre João Bonifácio Serra e Luiz Pa-checo.

2000Publicação de Continuação, contendo num capítulo so-

bre Luiz Pacheco (“O libertino passeia pelas Caldas...)Entrevista a Luiz Pacheco realizada por Carlos Cipriano

com a colaboração de JBS (inédita)

João B. Serrawww.cidadeimaginaria.org

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11 de Janeiro 2008 SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADE XI

«Não tenho safa, parece. Saio do camarim assobiando(...) para o maior número do espectáculo, a minha rábula,prometido no cartaz e já previsto há muito (...). Depois osalto mortal lá mais pró fim, no trapézio sem rede semesperança sem avé-marias sem nada. Olho para baixo,sinto o medo dos tipos da plateia, uns cagões mortos demedo que devia ser o meu e eu tenho, rapazes! e euescondo, cavalheiros! detrás da minha fatiota larga, sara-pintada, cetim fulgurante a sete e quinhentos o metro, fatode palhaço barato para melhor e mais os intrujar, ofender,insolências de polichinelo feitas a rir para gente que dávontade de rir – e quem neste suave país não há-de que-rer rir, mesmo com o rabo cagado de medo? (...)

- e é tão fácil a um morto rir! e é tão fácil rir de um morto!...(...) Os tambores vão atacar num rufo calculado cúmpliceda minha morte (...). Olho o País da Gargalhada e rio con-vosco. Choro, talvez, oh que vergonha! Oiço o tambor. Éagora!”

(Luiz Pacheco in «Os Namorados», Editorial Estampa) O Pacheco, animal «crocodilupa», é um daqueles em

quem nós coincidimos e reincidimos: Gostamos. Gosta-mos muito, pronto! Gostamos à brava! E é assim desde hámuito tempo...

Amigos de «cemzes», fomos subscrevendo livros e pan-fletos mais ou menos à medida que foram saindo. Para oresto, correu-se alfarrabistas e comprou-se o que se foipodendo, prosa revista e acrescentada de notas manus-critas (do Autor, está bem?), enquanto se ia regateandocom unhas e dentes a chico-esperteza de olhinho gulosoem mais-valias oportunistas. É que o Pacheco, à pala doescritor maldito que nunca quis ser, e sem que, para aamostra, tivesse ganho um cêntimo com isso, agora «ven-de-se bem», sabiam?

Não tenho safa

Ou seja, gostamos tanto que decidimos, vai aí para unsdois anos, montar um espectáculo com textos seus. Mais doque o pícaro que ele também foi, interessa-nos aquela es-crita de circunstância, duma crítica implacável, plena dehumor truculento, ácidos e comestíveis exercícios de estilo,

do melhor que a Literatura Portuguesa pariu; (não se devedizer isto desta maneira, porque a esta hora já estará abrindar-nos com manguitos, t’arrenego, queixando-se aomano Cesariny que está «lixado com estes gajos» e apôr em causa a virtude das nossas mãezinhas, que, coita-das, não têm culpa nenhuma!)

Cá por coisas, vai-se chamar «Contraponto», o tal es-pectáculo. E há-de falar de sonhos, alcançados ou nega-dos, de amores, uns vividos, outros frustrados, de ami-zades traídas, outras não, do périplo por prisões e hospi-tais, de copos bebidos em muita tasca, também no Ferro-Velho e na Azenha do Inferno, do caso das criancinhasdesaparecidas, nas cartas rabiscadas a tantos do tal des-ta «Caldas-sur-merdre» no casal da Rochida, na rua Ra-fael Bordalo Pinheiro aos intervalos de ser escrivão es-pontâneo de petições e requerimentos dos analfabetosindefesos, na Pensão 1º de Maio, na Pensão Estremadu-ra, no Hotel Lisbonense, andanças do verdadeiro libertino,aquele, que segundo os dicionários, ousa ser «livre-pen-sador e amante da Liberdade».

De tudo isto lhe fomos dando conta, a inventar contra-voltas elásticas para as escassas moedinhas, muito orça-mentais, culturais e ministeriais, Clara está... Curiosidadesatisfeita a tremeluzir nas dioptrias concêntricas, passou-nos sentença sardónica:

- Ó pá, já só vejo isso lá de cima! Foi mesmo. O Pacheco que passou a vida a fazer figas

à Morte, desta vez piscou-lhe o olho. Deixou-se ir no seuúltimo engate. A desgraçada nem sabe com quem semeteu!...

José Carlos Faria

Anónimo, LISBOA, PortugalMas quem é este Luiz Pacheco que dizem que é “singu-

lar” e, por isso “irrepetível” e que, afinal “todos somos pó”,como outro também diz! Vejam lá, não tragam para aquinenhum aspirador do pó! Eu, e todos aqueles que eu co-nheço e a quem perguntei, nunca tínhamos ouvido falardele! Alguém pode dizer-nos, aqui nos comentários, o queé que ele fez de valor, para ter tantos elogios, apesar deser “pó”, “singular” e “irrepetível”? Coisas lindas que aspessoas dizem para se fazerem notadas.

Conheci o Luiz Pacheco nas Caldas da Rainha nosanos 60.

Nunca saberei se “A Comunidade” foi aí escrita ou emSetúbal, mas as condições em que ele vivia, na minhaterra, bem poderiam ter servido como substrato para essetexto maior da Literatura Portuguesa do século XX.

Li a sua obra muito novo, o meu pai era um dos seus“mecenas” que em troca da ajuda que lhe dava recebiado Pacheco correcções à métrica da sua poesia e propos-

Luiz Pacheco Versus Ignorantes AnónimosNa morte de Luiz Pacheco o jornal Público, no seu site, recebeu várias opiniões sobre o escritor, na maioria conhecedores da sua obra expres-sando o seu pesar e a falta de reconhecimento público do seu trabalho. Um comentário sobressai pelo absurdo e por isso não resisto a reproduzi-lo aqui, já que inspirou, como poderão concluir, o título desta minha homenagem.

tas de alteração eruditas.Para o adolescente que eu era será sempre inesquecível

a Umbelina do “Teodolito”...e a sua prima Nicha...Nos anos 90 escrevi um pequeno livro de poesia, em ho-

menagem a meu pai, incluindo poemas meus, do meu pai eo “fac-simile” de uma carta do Luiz Pacheco para o meu pai.

Não sei como o Luiz Pacheco descobriu o livreco masescreveu ao editor a pedir alguns exemplares.

Enviámos alguns livros e recebemos uma carta muitosimpática do Pacheco em que se referia a mim e ao meupai como poetas: o maior elogio que a minha escrita des-pretensiosa poderia ter recebido.

Há alguns meses (Verão 2007) a nossa amiga comumMargarida Araújo pôs-me a falar com o Luiz Pacheco aotelefone registando o momento em fotografia.

É visível a satisfação com que falava desses tempos nasCaldas nos anos 60.

Ainda hoje recordo a sua memória prodigiosa e a luci-dez com que comentava as recordações que partilháva-mos.

Combinamos nesse telefonema um encontro no Montijoque infelizmente não aconteceu.

Ficou essa conversa mágica, a felicidade do momento.Os textos malditos do expoente primeiro do neo-abjecci-

onismo português perdurarão para sempre.

J. Jorge Figueiredo Ferreira

Combinamos nesse telefonema um encontro no Montijoque infelizmente não aconteceu

Decorrente da colaboração que tenho tido, com o Tea-tro da Rainha, fomos em Agosto do ano passado ao Mon-tijo para uma conversa informal com o Luiz Pacheco, queserviria, de precioso complemento a um futuro espectá-culo* da Companhia. A minha tarefa era (e foi) a de regis-tar fotograficamente o momento. Confesso a surpresa pelainesperada jovialidade do modelo: olhos com idade demenino e sorriso agaiatado. Ao longo de três rápidas ho-ras, falou-nos um pouco de tudo e de muitos. Visita ágil àsua memória, que também é uma parte minha e nossa.Essas palavras, tenho-as recordado muitas vezes, comos amigos então presentes (o Victor Santos, o FernandoMora Ramos e o José Carlos Faria) e com tantos outrosque ele lembrou. Falou ao telefone com gente das Caldas

“Vadiara feliz ou infeliz”

Confesso a surpresa pela inesperada jovialidade domodelo: olhos com idade de menino e sorriso agaiatado

e riu com gosto. Guardo, a par da sua escrita, essa tardede Verão.

“Dormira, decerto. Um longo sono cansado. Como umgato, um vadio de um gato, saíra pelos campos fora, cor-rendo parando dormindo por ruas e escadas, portas etelhados, descera andara perdera-se é possível, vadiarafeliz ou infeliz – como um gato.” (Luiz Pacheco, Exercíci-os de Estilo, Editorial Estampa, Lisboa, 1971, livro quecomprei nesse ano e que me custou 70 paus!)

*Contraponto (espectáculo em concepção pelo Teatroda Rainha, que estabelece uma viagem por dentro daobra de Luiz Pacheco)

Margarida Araújo

Foto Margarida Araújo

Foto Margarida Araújo

Foto Margarida Araújo

Page 12: Luiz Pacheco e as Caldas - gazetacaldas.com · que alude a carta de Luiz Pacheco. “Gosto muito de Caldas da Rainha. ... LP já fechou acordo com Ulisseia para editar Crítica de

11 de Janeiro 2008SSSSSOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEOCIEDADEXII

Na paz do Café CentralOnde os democratas piam

Há agora um festivalDe pinturas que arrepiam

A preços sem competência(C´o a mira no turista...)Pintadas com tal ciência

Inté fazem mal à vista!

Os Caldenses não são tontosE sabem o que é pintar...

Óleos a sete contos?!Ó filho, vai-te matar!

Os turistas gastam cobresE lá vão enchendo as sacas...

Mas não é com o Bigodes,É em fruta e cavacas!

Os que são de Arte inlustradosPreferem uma outra tecla:

Compram os barros assadosNa padaria da Secla.

Marido, mulher e tintasÉ coisa de enaltecer...

“- Se eu pinto, também tu pintasHavemos de enriquecer!”