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Lugar da palavra e do exemplo: os púlpitos do Carmo de Ouro Preto como modelo de arquitetura religiosa Ms. Renato César José de Souza Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix São bastante conhecidas, e certamente serão alvo de muitos debates neste Congresso, as influências externas sobre a arte e arquitetura barrocas realizadas no Brasil e em outras localidades do mundo ibérico. Menos estudadas, e nem por isso menos importantes, são as influências locais e regionais, circunscritas a pequenas áreas. Constituem o fruto do trabalho de um artista original ou de uma solução ar- quitetônica particular, capaz de produzir uma mudança na orientação das constru- ções, pela adoção, por exemplo, da repetição de um detalhe inovador e específico na maneira de construir ou de resolver um problema arquitetônico. Nesta comunicação, propomos discutir a construção da igreja dos terceiros car- melitas de Ouro Preto, bastante rica em fatos de renovação arquitetônica que termina- ram por promover alterações estilísticas em posteriores construções religiosas em Ouro Preto. Este tema é o recorte de uma pesquisa mais ampla que temos realizado desde 1996, sobre as construções religiosas dos terceiros carmelitas em Minas Gerais. Iniciado em 1767, o Carmo de Ouro Preto passou, como era costume, por modificações durante sua execução, num total de seis louvações sucessivas. Numa dessas louvações, as novas plantas para o corpo da capela, datadas do final 1770 e atribuídas por Lúcio Costa a Antônio Francisco Lisboa, traziam importantes e ino- vadoras modificações. Interessam em especial as que, eliminando os possíveis cor- redores laterais da nave e redesenhando toda a sua parede externa, levaram a uma engenhosa solução para o acesso aos púlpitos, arranjo que mais tarde foi copiado em outras igrejas de Ouro Preto, introduzindo uma “verdade arquitetônica” que alteraria a leitura externa da arquitetura dessas igrejas, numa curiosa antecipação de ideais da arquitetura moderna. 1 Nessa comunicação técnica usa-se a denominação Ouro Preto e não Vila Rica. A louvação era o exame, por peritos, que funcionavam como árbitros dando parecer sobre obras ou andamento de construções, de modo a se estabelecer as condições de pagamento (Corona e Lemos: 197,303). Seria um procedimento semelhante às atuais medições de obra, acrescido de atualizações funcionais e estilísticas sempre que necessário.

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Lugar da palavra e do exemplo: os púlpitos do Carmo de Ouro Preto�

como modelo de arquitetura religiosa

Ms. Renato César José de SouzaCentro Universitário Metodista Izabela Hendrix

São bastante conhecidas, e certamente serão alvo de muitos debates neste Congresso, as influências externas sobre a arte e arquitetura barrocas realizadas no Brasil e em outras localidades do mundo ibérico. Menos estudadas, e nem por isso menos importantes, são as influências locais e regionais, circunscritas a pequenas áreas. Constituem o fruto do trabalho de um artista original ou de uma solução ar-quitetônica particular, capaz de produzir uma mudança na orientação das constru-ções, pela adoção, por exemplo, da repetição de um detalhe inovador e específico na maneira de construir ou de resolver um problema arquitetônico.

Nesta comunicação, propomos discutir a construção da igreja dos terceiros car-melitas de Ouro Preto, bastante rica em fatos de renovação arquitetônica que termina-ram por promover alterações estilísticas em posteriores construções religiosas em Ouro Preto. Este tema é o recorte de uma pesquisa mais ampla que temos realizado desde 1996, sobre as construções religiosas dos terceiros carmelitas em Minas Gerais.

Iniciado em 1767, o Carmo de Ouro Preto passou, como era costume, por modificações durante sua execução, num total de seis louvações� sucessivas. Numa dessas louvações, as novas plantas para o corpo da capela, datadas do final 1770 e atribuídas por Lúcio Costa a Antônio Francisco Lisboa, traziam importantes e ino-vadoras modificações. Interessam em especial as que, eliminando os possíveis cor-redores laterais da nave e redesenhando toda a sua parede externa, levaram a uma engenhosa solução para o acesso aos púlpitos, arranjo que mais tarde foi copiado em outras igrejas de Ouro Preto, introduzindo uma “verdade arquitetônica” que alteraria a leitura externa da arquitetura dessas igrejas, numa curiosa antecipação de ideais da arquitetura moderna.

1 Nessa comunicação técnica usa-se a denominação Ouro Preto e não Vila Rica.� A louvação era o exame, por peritos, que funcionavam como árbitros dando parecer sobre obras ou andamento de construções, de modo a se estabelecer as condições de pagamento (Corona e Lemos: 197�,303). Seria um procedimento semelhante às atuais medições de obra, acrescido de atualizações funcionais e estilísticas sempre que necessário.

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A igreja da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto mostra o empenho da irmandade na afirmação de seu poder local, ao querer ocupar o local da primitiva capela de Santa Quitéria, que já existia antes de 17�0, sobre o morro que separava os arraiais do Pilar e de Antônio Dias, em frente ao local onde, em 1747, se cons-truiria o Palácio dos Governadores.

De acordo com Francisco Lopes, a primeira reunião da mesa da Ordem Ter-ceira do Carmo de Ouro Preto na Capela de Santa Quitéria realizou-se em 4 de novembro de 1753, tratando, entre outras coisas, da

“muyta nesesidade que havia de comodo p.a despacho e Caza do Noveciado e guarda de todos os moveis e imagens da d.a Orde que servem nos actos expirituais e se devia meter em boa guarda com todo o seu aseyo que lhe he devido.” (1942:11).

Resolveu-se então mandar fazer uma construção que servisse às duas necessida-des detectadas - casa do noviciado e depósitos -, ao lado da capela de Santa Quitéria, para a parte da Barra. Esse prédio, onde hoje funciona o Museu do Oratório, deve ter sido um significativo edifício em Ouro Preto, entre os anos 1750 e 1760.

Desde o início, sabiam os irmãos do Carmo que a capela de Santa Quitéria era pequena demais e de conservação precária, cogitando certamente de construir um novo e maior templo, no local dessa antiga capela, da qual se tornaria proprietária. Relata Lopes que a ordem deliberou em 1� de maio de 1755, mesmo sem consultar a irmandade de Santa Quitéria, mandar construir nova capela, pois arruinada como estava a antiga,

“redeficalla com custo grande hera milhor, e mais acertado o fazella nova.” (Lopes:1942,13).

Devem ter pensado em uma grande igreja, o que geraria grandes gastos, pois, nessa mesma ocasião, a mesa acertou que os mesários repartissem entre si os “Dis-tritos da Capitania”, a fim de pedirem esmolas aos irmãos de fora da vila, para ocorrer às despesas da construção, bem como que se mandasse

“fazer o risco peito irmão Manoel Fran.co Lisboa para por elle se fazer a dita obra.” (Lopes:1942,13).

Não conseguindo se entender inicialmente sobre isso com a outra agremiação, os terceiros carmelitas chegaram a pensar em construir sua igreja em outro lugar, abaixo do atual, terreno que chegou a ser nivelado, só vindo a ser ocupado em 189� pela escola de Farmácia. Mesmo assim, enviaram petição ao rei, solicitando a doação daquele terreno da capela de Santa Quitéria. Com a demora da resposta real, finalmente convenceram os antigos proprietários. Nesse acordo, os irmãos de

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Santa Quitéria não só continuariam a fazer suas funções na nova igreja, como a imagem de sua padroeira seria conservada em “lugar inferior ao de Nossa Senho-ra”, bem como, no frontispício, figuraria a insígnia da sua irmandade, abaixo das armas de Nossa Senhora do Monte do Carmo (Lopes:194�,14).

É considerável o número de grandes artistas, artífices e mestres convocados pela Ordem do Carmo de Ouro Preto para a realização do seu templo. Quase todos os expoentes da época tiveram algum contato com esta construção, iniciada em 1767 e prolongando-se até cerca de 1840. Infelizmente, lembra o mesmo Lopes que

“nem sempre se pode documentar, afirmativa ou negativamente, a execução de trabalhos de arte, que a tradição constante atribui a determinados artistas” (Lopes:1942,34).

E, sendo assim, na obra do Carmo ficaram muitos trabalhos importantes sem uma autoria comprovada, a não ser aquela da comparação estilística.3

Resolvida a iniciar imediatamente a construção da sua igreja, a Ordem ado-tou, como risco, o projeto que havia sido encomendado a Manuel Francisco Lis-boa. Tendo entregado esse risco, Manuel Francisco faleceu no ano de 1767.

Em 3 de agosto de 1766, João Alves Viana, mestre português de Braga, arrema-tou as obras de pedra da capela. A construção devia ficar pronta no prazo de seis anos, responsabilizando-se por isso o fiador do arrematante. Também, prática co-mum na época, seriam feitas louvações durante toda a execução.

A construção do projeto de Manuel Francisco Lisboa foi iniciada pela sacristia, capela-mor e consistório, que ficaram prontos antes do corpo da capela. A eleva-ção lateral da igreja denuncia as duas fases de sua execução. Essa providência permitiu que a ordem realizasse na capela-mor todas as suas funções religiosas, o mais cedo possível.

Com o andamento das obras, foram sendo introduzidas modificações no pro-jeto original, decorrentes, naturalmente, das necessidades detectadas durante os trabalhos ou, talvez, impostas pela ordem. Em razão das modificações registradas durante a execução, aconteceu uma louvação em 1770, para emendar as “dificul-dades e embaraços” que havia no risco de Manuel Francisco Lisboa, decidindo-se fazer novas plantas para o corpo da capela. Em 15 de dezembro de 1770, o irmão procurador apresentou o novo risco e as suas condições.

3 Rodrigo Melo Franco de Andrade levanta a hipótese de que até mesmo João Gomes Batista, abridor de cunhos da Casa de Fundição de Ouro Preto e mestre de desenho do Aleijadinho, te-ria prestado colaboração à obra do Carmo, fornecendo um risco para os púlpitos da igreja, ris-co esse que, por motivo desconhecido, foi substituído pelo que serviu de base para a execução dos púlpitos atuais, - o que nos privou de um elemento precioso no sentido de ajuizarmos da influência daquele artista erudito sobre o estilo de António Francisco Lisboa (Lopes:194�,IV).

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Passava o corpo da capela a ter “decomprido pelo meyo, cento e quinze palmos e o bojo na forma daplanta” (Lopes:194�,1�4). A mudança de medidas na largura aponta, talvez, a eliminação de corredores laterais da nave, previstos no risco de Ma-nuel Francisco Lisboa, que assim fizera na matriz de Antônio Dias. Essa solução, com corredores laterais à nave, pode ser vista na planta do Carmo de São João del Rei.4

Toda a parede externa teve de ser redesenhada e os corredores da capela-mor passaram a se comunicar diretamente com a nave, por meio de duas portas colo-cadas em diagonal nas ilhargas do arco cruzeiro, encimadas por duas janelas ras-gadas com parapeito sacado. Grandes janelas passaram a iluminar a nave aumen-tando a luminosidade em toda a igreja.

Com a nave sem os corredores laterais, a escada dos púlpitos, ou servidão, teve de ter nova solução, agora de modo engenhoso e certamente desenhado no novo risco, já que nas novas condições previa-se sua execução. Resolvia-se a nova servi-dão embutindo-se nas paredes externas uma escada helicoidal. Para isso, aumenta-va-se a largura dessas paredes junto aos púlpitos, encurvando-as externamente, e delas tirando partido plasticamente, resolvendo-se essa protuberância em pilastra, com capitel idêntico ao dos cunhais das torres. Mais tarde, esse arranjo foi copiado em outras igrejas de Ouro Preto.

Lúcio Costa, comparando o novo risco da igreja do Carmo de Ouro Preto, com o de S. Francisco de Assis de S. João del Rei, atribuiu a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, a introdução das novidades que modernizaram e atualizaram a sua nave da igreja do Carmo. De fato, na louvação em que se apresentaram o risco novo e as novas condições, foi Antônio Francisco Lisboa, filho do autor do risco original, o louvado encarregado da “medissão do risco”, isto é, da comparação do risco com a obra (Lopes:194�,�7). Se assim foi, ele não só mediu, como também redesenhou o que o pai havia criado.

Os alicerces do novo frontispício foram levemente encurvados, e as torres passavam a ter “o feitio ou formalid.e que mostra anova planta”, modificando-se a grossuras das suas paredes, recuando-as para dentro quatro palmos, destacando-as mais da parede curva da parte central. O arrematante também foi obrigado a mu-dar duas portas colaterais do frontispício para as laterais da igreja (Lopes:194�,1�3-1�4), revelando que, em princípio, estavam previstas três portas nessa fachada, podendo-se supor, como era de uso nesse arranjo, que eram acompanhadas por

4 A Igreja do Carmo de São João del Rei, segundo Viegas, data de reforma e ampliação de an-tiga capela existente no local. No final da década de 1750 se cogitou dessa ampliação e, em 1759, encontram-se documentos que comprovam ter a primitiva capela carmelita passado por grandes reformas e ampliação. A primitiva capela teria as dimensões da nave central da igreja atual, com pequena capela-mor, tendo ao lado direito a casa do despacho e a casa do noviciado e, do lado esquerdo, a sacristia e as suas torres tinham forma quadrada. Em 1759, portanto, os oficiais de pedreiro José Francisco Maya, Antônio Francisco Sarzedo e Manoel Francisco, arremataram por “80 oitavas de ouro de mil e duzentos reis” o retelhamento da igreja e capela-mor, as casas do despacho e noviciado e a sacristia, e todo o reboco interno e externo (Viegas, 1988:47-48).

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três janela na altura do coro. Nenhuma igreja foi construída com três portas em Ouro Preto, recurso comum, na época, em Portugal e no litoral brasileiro, mas raro nas Minas.

Na igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, projeto do mesmo Antônio Francisco Lisboa, também foram fechadas por ele as duas portas que faziam parte, ainda que em situação diversa, da fachada principal. Era uma clara afirmação da tradi-ção das fachadas das igrejas mineiras com apenas uma porta central, evolução do que vinha se processando com um caráter bem definido, desde o início do século.

As modificações atribuídas a Antônio Francisco Lisboa deram sobriedade ao frontispício do Carmo. Diminuindo o número de portas na fachada principal, ele aumentou a força expressiva da portada, que concentraria toda a atenção da facha-da. Tirou ainda partido da cor e da textura da cantaria do Itacolomi, e de seu con-traste com a pedra sabão e a alvenaria caiada, e, ao movimentar a fachada, fugiu aos esquemas tradicionais e rígidos, ainda presos às formas retangulares (Del Ne-gro:1961, vol.I,68). Se as portas que foram retiradas da fachada principal e passa-das para a lateral foram parte do projeto de Manuel Francisco Lisboa, não se pode saber. É certo, entretanto, que a sobreverga das portas laterais do Carmo - que de-vem ter sido as transferidas de seu frontispício, com seu frontão triangular interrom-pido na base - apresentam uma solução única em Ouro Preto. Foi provavelmente feita para aumentar visualmente a proporção das portas no novo pano de fachada, onde passaram a se inserir, tendo, talvez, inspirando o frontispício tardio da capela de Nossa Senhora das Mercês do Pilar ou Mercês de Cima, Cima, que se volta para a lateral do Carmo.

Del Negro lembrou a presença de outros louvados, que, estando também pre-sentes naquela data, poderiam ter modificado o risco inicial do Carmo. Porém, nada do que fizeram em outras obras se assemelha às modificações então introdu-zidas (Del Negro:1961, vol.I,68).

Lembrando Lopes que afirmou que no Carmo de Ouro Preto “nem sempre se pode documentar, afirmativa ou negativamente, a execução de trabalhos de arte, que a tradição constante atribui a determinados artistas” Selma Melo Miranda faz algumas observações. Sugere que o novo risco de 1770 resultou de ponderações de “Irmãos intiligentes e m,tos profeçores” sobre “as dificuldades e embaraços q. ha-vião no primeiro risco”, afirmativa tomada a partir de registros da mesa.

Sendo assim, quando Antônio Francisco mediu o risco, juntamente com Manoel Francisco de Araújo, as decisões renovadoras teriam sido tomadas por vários mestres como Lima Cerqueira, Domingos Moreira de Oliveira e José Pereira Arouca. O obje-tivo era resolver as dúvidas levantadas pelo arrematante sobre as diferenças nos cus-tos da obra, decorrentes das modificações introduzidas, e, portanto, caso Antônio Francisco fosse o seu autor, não teria participado da louvação representando o arre-matante, “principalmente em um processo em que este questiona o arbitramento feito pelos louvados indicados pela Irmandade” (Melo Miranda: s/d, 10).

A planta do Carmo de Ouro Preto se apresenta como um grande retângulo de cerca de 54,0m por 14,5m, que se desenvolve na direção leste-oeste, voltando-se

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o frontispício para o poente. A área total ocupada pela igreja, incluindo-se as duas torres, é de cerca de 793m�. A grande nave e a capela-mor têm área aproximada de 448m� (�8,0m x 16,0 m), e 144,5m� (17,0m x 8,5m), respectivamente.

As obras da capela dos terceiros carmelitas prolongou-se por muitos anos. Só em 181�, já terminados os quatro primeiros altares da nave, a ordem tratando da feitura dos dois que faltavam, ajustou-os juntamente com os dois púlpitos, “com Justino Ferreira de Andrade pelo que respeita as suas maons, e de seus officiaes pela quantia de seis centos e settenta mil reis”.

Justino Ferreira veio morar junto da casa do noviciado, e Rodrigo Bretas (Vas-concellos: 1979,155) afirmou que pelos anos de 1811 a 181� Justino, depois de muitas instâncias, conseguiu que Antônio Francisco fosse inspecionar e dirigir os trabalhos, residindo então o mestre nessa mesma casa. Por ocasião do natal, Justino retirou-se à rua do Alto da Cruz, onde tinha a família, e deixou ali seu mestre, in-válido pelo adiantado da moléstia que o afetara, agravada pela idade. Sem cuida-dos durante muitos dias, Antônio Francisco perdeu quase inteiramente a vista.

Os púlpitos executados por Justino Ferreira têm bom trabalho de talha no tam-bor, que se apóia em bacia de pedra, sustentada por duas cabeças de anjos que se fundem com as vergas e sobrevergas das portas de sua servidão. Levantamos a hi-pótese de terem sido executados com orientação de Antônio Francisco Lisboa, principalmente pela presença das inscrições em latim, que, se não constavam do risco original, podem ser mais uma contribuição do mestre, que, sempre que pôde, usou frases latinas em seus medalhões e relevos.

No púlpito do lado da epístola, lê-se “Docentes eos” e, no do lado do evange-lho, “Praedicate evangelium”, significando respectivamente, “Ensinai-os” (Mateus, �8, 19-�0) e “Pregai o evangelho” (Marcos 16,15)5, frases extraídas das últimas palavras de Jesus aos apóstolos, no final dos dois evangelhos citados, e que pode-riam ter sido escolhidas pelo mestre Antônio Francisco, representando a sua pró-pria missão de ensinar ao seu discípulo Justino Ferreira.

5 Marcos 16:15: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura”. Mateus 28:19-20: “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”.

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A solução dos púlpitos do Carmo de Ouro Preto funcionou, ela própria, como modelo capaz de ensinar, em obras contemporâneas ou posteriores, uma maneira nova de se resolver um problema arquitetônico.

Sem dúvida, em Ouro Preto, depois do Carmo, essa solução apareceu em mais três igrejas, a capela de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, ou Mercês de Baixo, a capela de São Francisco de Paula e, com intenção diferente, a capela de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, ou Mercês de Cima, como é conhecida. Con-siderando-se que só em 15 de dezembro de 1770 o irmão procurador dos terceiros do Carmo apresentou o novo risco e as suas condições, que incluía como visto, bem como a nova servidão dos púlpitos, podem-se fazer algumas inferências na construção de cada uma dessa capelas, nas quais aparece solução semelhante.

A capela de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, ou Mercês de Baixo, na fre-guesia de Antônio Dias, foi construída pelo Padre José Fernandes Leite, que a doou em 1770 à Ordem Terceira de N. Sra. das Mercês e Redenção dos Cativos. Ocupou o local de uma primitiva capela, dedicada ao Bom Jesus dos Perdões, construída acima da Matriz de Antônio Dias, no caminho para o morro de Santa Quitéria.

Por sua vez, a capela de Bom Jesus dos Perdões havia abrigado os irmãos do Carmo, que ali celebraram a festa de sua padroeira, antes de se estabelecerem na antiga capela de Santa Quitéria. O local também abrigou, em certo período, os terceiros franciscanos, demonstrando a importância de sua localização, já que para

Figuras 1e � - Planta do 1º nível da Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto (desenho do autor) e vista da fachada lateral com a pilastra central resultante do engrossamento das paredes para resolver o problema da servidão dos púlpitos.

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as imediações se dirigira o centro administrativo da vila. Tanto os franciscanos quanto os carmelitas iriam construir seus templos nas proximidades.

O risco da nova igreja das Mercês e Perdões é do Aleijadinho. Sofreu a edifica-ção várias mudanças no século XIX, incluindo a substituição das paredes de taipa por alvenaria de pedra e a construção de um novo frontispício. Ao que parece, sua facha-da não se voltava originalmente para a Barra. Teria a mesma direção de São Francis-co de Assis e, sem torres, era vista de frente por quem descia a ladeira rumo à Matriz de Antônio Dias. Sylvio de Vasconcellos (1956:95) explica que a reconstrução, orien-tada para o sul, deveu-se ao fato de que “impetuosos ventos” fustigavam a “porta principal da parte do norte”.

O Aleijadinho teria fornecido o risco da capela-mor: para este fim recebeu um pagamento em 1775 e, por duas ocasiões, em 1777 e 1778, alguns negros foram pagos para transportar o infeliz doente até o local das obras, para que fosse consul-tado sobre seu risco (Bazin:1983, 77).

No tocante à solução para os púlpitos, das três analisadas como tendo recebi-do influência da capela do Carmo, é a que apresenta volume curvo mais pronun-ciado externamente, acompanhado por igual projeção da cimalha, corresponden-do à posição dos púlpitos. Esse pronunciamento excessivo da pilastra talvez tenha origem na necessidade estrutural provocada pela substituição das paredes de taipa da nave por alvenaria de pedra no século XIX.

A igreja de São Francisco de Paula, por sua vez, teve suas obras prolongando-se por todo o século XIX e paralisadas por um intervalo de �0 anos, pela insuficiên-cia de recursos de sua irmandade. Ocupou o terreno que pertencia à ermida de Nossa Senhora da Piedade. Mesmo assim, mantém alguns padrões de arquitetura do século XVIII.

Situa-se num dos pontos mais elevados de Ouro Preto. Dali são vistos os principais monumentos da cidade: a igreja de São Francisco de Assis, a Casa de Câmara e Cadeia, a igreja da Ordem Terceira do Carmo, o Palácio dos Governadores, a igreja do Rosário do Caquende, a igreja de São José, e todo um pitoresco casario, descendo até a matriz do Pilar, tendo ao fundo a serra dominada pelo pico do Itacolomi.

Segundo o projeto do engenheiro Francisco Machado da Cruz, o lançamento da pedra fundamental foi em 1804, mas a construção deste enorme templo, des-proporcional em relação às necessidades da irmandade, foi muito lenta. Apenas em 1839, iniciou-se o corpo da igreja e a capela só foi concluída em 1878. O altar-mor foi dourado em 1898 e os altares laterais em 1901.

A capela de São Francisco de Paula apresenta um projeto muito parecido com o da capela do Carmo, tanto em soluções arquitetônicas quando internamente, em sua decoração. Externamente à nave, aparece idêntica solução de pilastra leve-mente ressaltada em curva, com pouco pronunciamento da cimalha, repetindo a elegância da solução da capela carmelita.

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Foi em 1771 que a confraria de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia do Bairro de Ouro Preto, abrigada há �0 anos na igreja de São José, decidiu construir uma capela particular. Há vários documentos relativos aos trabalhos executados neste período. A obra foi arrematada por Henrique Gomes de Brito e desde 1774 menciona-se a execução do telhado e do reboco nos recibos de pagamentos feitos a este artista. Em 1° de janeiro de 1773 já havia uma parte da igreja inaugurada.

Figura 3 – Vista da Capela de São Francisco de Paula, também vendo-se, na lateral, o pequeno volume gerado pela pilastra curva correspondente à servidão dos púlpitos, em solução idêntica à da capela dos terceiros do Carmo, mostrando a vitalidade das solu-ções inovadoras do século XVIII em pleno século XIX.

Em novembro de 1817, o corpo da capela, que inclui solução semelhante à do Carmo para os púlpitos, ainda estava em obras, pois no arrematante da obra do “corpo da capella”, Gregório Mendes Coelho comunicou à Mesa que, por se encontrar impos-sibilitado de prosseguir com a obra, encarregara Manuel Antônio Viana de substituí-lo (Bazin: 1983, 77). Nas laterais da nave, pilastras encurvadas que seguem até a cimalha, que também se encurva para recebê-las, anunciam uma solução de púlpitos que, no entanto, inexistem. Como a capela foi bastante alterada no século XIX, inclusive com a adoção da torre central feita pelo pedreiro Manoel Fernandes da Costa em 18�9 (Cam-pos: �000,47) que, na opinião de Germain Bazin avilta a fachada (Bazin: 1983, 77), talvez o engrossamento das paredes no local presumível dos púlpitos seja um fingimen-to, ou uma solução que não foi inteiramente levada a cabo.

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No campo da arte e arquitetura brasileiras, a arquitetura religiosa é um dos aspectos de maior interesse. Não apenas pelo grande volume e diversidade de exemplares que apresenta em todo o Brasil, mas, sobretudo, pela qualidade de seus objetos sagrados. Construções, imagens, pinturas e alfaias foram produzidas por gente que nelas colocou suas angústias e esperanças, expressando as contradições de sua época, talvez com o intuito de ser lembrada no futuro.

Na arte e na arquitetura religiosa, todo objeto simboliza, além de seu tempo e de suas particularidades, um todo maior, universal, de caráter espiritual e simbóli-co. Sua intenção era permitir ao fiel a contemplação de mistérios insondáveis, posto que metafísicos, dentro de um conjunto de construções, símbolos e liturgias, que tentavam reproduzir em escala humana a ordem, a beleza, a regularidade e eternidade do universo.

Desse modo, os púlpitos do Carmo de Ouro Preto, com a sua repetição, através do exemplo construtivo, em outras igrejas de Ouro Preto, pode ser visto como metá-fora de pedra do sermão barroco, composto tradicionalmente por uma argumentação sustentada pela exemplificação e pela citação bíblica.

Em sua origem, os púlpitos eram as plataformas elevadas nas igrejas de onde se pregava e se cantava a epístola e o evangelho, aparecendo nas primitivas basíli-cas com o nome de ambões. Situavam-se próximos do altar mor, geralmente ados-sados a uma das paredes da nave.

Figuras 4 e 5 – Vista das Capelas de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, ou Mercês de Cima (esquerda) e de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, ou Mercês de Baixo (direita), ressaltando-se nas laterais o volume gerado pela pilastra curva correspondente à servidão dos púlpitos. A curiosidade reside no fato de que a Capelas de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia não ter púlpito, podendo a marcação externa ser um fingimento acrescentado no século XIX ou representar uma obra incompleta.

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Em Portugal e por toda a Península Ibérica, a parenética religiosa encontrou eco em muitos pregadores que, em seu tempo, notabilizaram os púlpitos como local privilegiado para manifestações da retórica sagrada com fins de convenci-mento e doutrina. O sermão barroco retrata circunstâncias históricas, culturais, sociológicas e devocionais específicas, marcado pela orientação doutrinária triden-tina. Dos púlpitos, em vigorosos sermões, denunciava-se a falta de temor de Deus e do amor à virtude, não raro enveredando por caminhos onde transpareciam in-quietações sociais e políticas.

Era comum o sermão apresentar frases interrogativas em que a linguagem ob-jetiva cedia lugar a metáforas, comparações através de imagens simbólicas que procuravam fazer vir à tona a sensação, a percepção dos homens que escutavam as palavras, trabalhando a realidade através dos seus sentidos.

Se hoje, com a evolução litúrgica e as aparelhagens de som, esses púlpitos permanecem vazios e sem palavras, continuam, como no caso enfocado dos púl-pitos do Carmo de Ouro Preto e suas influências, a ser evocados como lugar do exemplo, ainda que restritos às possibilidades arquitetônicas que representaram como solução inventiva e renovadora, solucionando problemas e criando novas maneiras de pensá-los.

Olhando as igrejas vemos, externamente, a presença das marcas dos púlpitos - esses lugares voltados ao exemplo - e já podemos antecipar uma visão que, de outro modo, só poderia ser usufruída no interior das igrejas. Essa solução aproxima um pouco mais a arquitetura religiosa mineira da arquitetura moderna, que preconizava uma verdade construtiva e uma honestidade formal, sendo o resultado da soma das verdades arquitetônicas de cada uma de suas partes em que a planta é geradora, promotora da ordem e essência de toda sensação. E no caso específico da Capela das Mercês de Cima, figuram como algo que não acontece, resultando apenas em um recurso decorativo, próximo da cenografia barroca.

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