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A ORALIDADE NA AULA DE PLE: APRESENTAÇÃO DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA TRABALHAR OS PARES MÍNIMOS COM BASE NO CONTO MARCELO, MARMELO, MARTELO Bernardino Valente Calossa Assistente Estagiário Escola Superior Politécnica da Lunda Sul Universidade Lueji A’Nkonde – Angola Mail : [email protected] RESUMO Neste artigo, apresenta-se uma proposta de sequência didática para se trabalhar a questão da oralidade dos alunos numa aula. Trata-se de um domínio que, apesar de ser muito importante na aprendizagem de uma língua, tem sido normalmente menos trabalhado em contextos de ensino-aprendizagem de Português Língua Estrangeira comparativamente à outros. Assim, na primeira parte apresenta-se uma brevíssima contextualização teórica sobre o tema em abordagem, em que também procuramos perceber como esta temática é tratada nos documentos orientadores e, em seguida, explica-se de que forma se articulam os elementos que constituem a sequência didática. A proposta como tal, assim como o texto escolhido, aparecem na parte final deste artigo. Palavras-chave: sequência didática, oralidade, estratégias, competência ABSTRACT In this article we present a proposal of a didactic sequence to work the orality of students in class. It is an area that, although it is very important in the learning of a language, has usually been less worked in teaching-learning contexts of Portuguese Foreign Language compared to others. Thus, the first part presents a very brief theoretical context on the topic in approach, where we also try to understand how this theme is addressed in the guidance documents and then explains how the elements that make up the sequence are articulated didactic The proposal as such, as well as the text chosen, appear at the end of this article.

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Page 1: Lueji A’Nkonde

A ORALIDADE NA AULA DE PLE: APRESENTAÇÃO DE UMA SEQUÊNCIA

DIDÁTICA PARA TRABALHAR OS PARES MÍNIMOS COM BASE NO CONTO

MARCELO, MARMELO, MARTELO

Bernardino Valente Calossa

Assistente Estagiário

Escola Superior Politécnica da Lunda Sul – Universidade Lueji A’Nkonde – Angola

Mail : [email protected]

RESUMO

Neste artigo, apresenta-se uma proposta de sequência didática para se trabalhar a questão

da oralidade dos alunos numa aula. Trata-se de um domínio que, apesar de ser muito

importante na aprendizagem de uma língua, tem sido normalmente menos trabalhado em

contextos de ensino-aprendizagem de Português Língua Estrangeira comparativamente à

outros. Assim, na primeira parte apresenta-se uma brevíssima contextualização teórica

sobre o tema em abordagem, em que também procuramos perceber como esta temática é

tratada nos documentos orientadores e, em seguida, explica-se de que forma se articulam

os elementos que constituem a sequência didática. A proposta como tal, assim como o

texto escolhido, aparecem na parte final deste artigo.

Palavras-chave: sequência didática, oralidade, estratégias, competência

ABSTRACT

In this article we present a proposal of a didactic sequence to work the orality of students

in class. It is an area that, although it is very important in the learning of a language, has

usually been less worked in teaching-learning contexts of Portuguese Foreign Language

compared to others. Thus, the first part presents a very brief theoretical context on the

topic in approach, where we also try to understand how this theme is addressed in the

guidance documents and then explains how the elements that make up the sequence are

articulated didactic The proposal as such, as well as the text chosen, appear at the end of

this article.

Page 2: Lueji A’Nkonde

Keywords: didactic sequence, orality, strategies, competence

Introdução

No processo de desenvolvimento das competências necessárias à aprendizagem de uma

língua não materna, um conjunto de metodologias e meios de ensino são necessários,

tendo sempre em conta as caraterísticas dos alunos, bem como a necessidade de se olhar,

sempre que possível, para os fins da aprendizagem. Neste artigo apresenta-se uma

sequência didática em que se trabalha sobretudo a produção, perceção a interação oral

dos alunos, mais concretamente os chamados pares mínimos que, por serem muito

próximos uns dos outros, são frequentemente confundidos pelos aprendentes da língua,

dificultando, desta forma, a sua rápida aprendizagem.

Assim, a sequência representa uma sugestão metodológica (concebida e aplicada no

âmbito da Unidade Curricular de Avaliação e Conceção de Materiais Didáticos em

Português Língua Não Materna do Mestrado em Português Língua Não Materna da

Universidade do Minho) para que se facilite a aprendizagem dos sons da língua, pois

dependendo da língua materna de quem aprende o Português, alguns segmentos, por

serem muito difíceis de serem articulados, são considerados de aquisição lenta e tardia.

Tal proposta está constituída por três momentos, i. a compreensão do sentido global do

texto, ii. reconstrução do sentido do texto e iii. conhecimento e distinção dos sons da

língua, ao longo dos quais o professor deverá orientar e/ou desenvolver um conjunto de

atividades que farão com que o aluno encontre nos exercícios apresentados, a o

esclarecimento das suas dificuldades.

Relativamente ao texto, enquanto um meio comprovadamente eficaz para o

desenvolvimento de competências linguísticas, se bem selecionado e bem trabalhado em

contextos de sala de aulas, escolheu-se Marcelo, Marmelo e Martelo1 que, pensamos nós,

apresenta-se como um bom instrumento para trabalhar a oralidade, uma vez que nele se

conta a história de um menino que, achando que as coisas deveriam ter nomes mais

apropriados, decide usar a língua à sua maneira.

1 Ruth Rocha, Marcelo, Marmelo, Martelo e outras histórias, 27ª edição, Rio de Janeiro: Salamandra,

1976, pp. 1-21.

Page 3: Lueji A’Nkonde

A perceção, produção e interação oral nas aulas de Português língua estrangeira

Ao ensinar uma língua é um processo que deve estar direcionado de acordo com os fins

de aprendizagem dos aprendentes, isto é, pode-se enfatizar mais o domínio da

compreensão (oral e escrita) em relação à produção (interação e expressão oral e escrita)

e vice-versa, associados aos aspetos qualitativos de uso, como o âmbito, a correção, a

fluência, interação e a coerência, além de outros aspetos de carácter extralinguísticos,

igualmente importantes. Entretanto, apesar de ser muito importante, «o ensino da

pronúncia é frequentemente ignorado pelos professores, que se limitam a corrigir, por

vezes, os alunos, sem um trabalho metódico e consistente»2.

Ao depreciar a componente oral, em detrimento das outras no processo de ensino de uma

língua, o professor cria um desequilíbrio que, em muitos casos, dificulta o alcance dos

objetivos dos alunos, sobretudo aqueles cujo fim da sua aprendizagem é, por exemplo,

viajar para um país onde se fala essa língua.

Tendo-se apercebido desta situação, vários trabalhos têm surgido para colmatar esta

insuficiência. Destacam-se, por exemplo, os trabalhos de Pinto3 que apresenta um leque

de atividades, com grau crescente de dificuldades, tendo em vista a desenvolver a

oralidade em aulas de português para hispanofalantes. Este autor destaca a leitura em voz

alta, o poema cantado, a exposição oral formal, a entrevista formal e informal, o debate,

a interação ficcionada e a interação espontânea, como estratégias que podem ser utilizadas

numa aula de português língua estrangeira. Bagão4, por sua vez, elaborou uma série de

textos autênticos e respetivas propostas de abordagem em contextos de aprendizagem que

qualquer outro investigador ou professor pode utilizar para comprovar a sua eficácia.

Duarte de Carvalho5 trabalharam igualmente nessa perspectiva; no seu relatório de

estágio descrevem uma experiência baseada na conversação informal (contato com outras

pessoas em contexto de imersão), enquanto uma estratégia para aperfeiçoar a oralidade

em português língua estrangeira. Os resultados mostraram que os aprendentes realizaram

2 Luísa Coelho e Carla Oliveira, Manual de Pronúncia e Prosódia, Lisboa: Lidel Edições, 2014, p. 7. 3 Paulo Feytor Pinto, A oralidade na aula de português para hispanofallantes. In Limite, nº 4, 2000, pp.

141-151. 4 Maria Teresa Sousa Bagão, Compreensão oral em aulas de PLE: contributos para atividades no nível

C. Dissertação de mestrado. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014. 5 Isabel Duarte e Ângela Carvalho, Treino da oralidade na aula de PLE: uma experiência com conversas

orais informais no nível A. In Studia Universitatis Babes-Bolyai nº 2, 2018.

Page 4: Lueji A’Nkonde

esta atividade de forma colaborativa e satisfatória, porém em alguns casos houve

desistências face as dificuldades encontradas.

No que respeita à distinção de pares mínimos, estudos como o de Ferreira6, Yang et al7.

e de Macedo8, por exemplo, já têm demostrado que esta é uma área problemática para em

que os aprendentes de português língua estrangeira, em maior ou menor escala, a

depender das diferenças ou semelhanças das suas línguas maternas.

Tendo em conta que «trabalhar o domínio da compreensão oral progride deste a

identificação de palavras isoladas, até à mestria de estruturas complexas»9, é importante

referir que investigadores da área da aquisição da linguagem apresentam como sugestão

uma metodologia baseada na construção de um modelo de aprendizagem linguística,

segundo a qual a atenção deve estar direcionada para qualquer evidência que seja

relevante para um domínio de aprendizagem particular. Isso quer dizer que

a atenção deve ser especificamente focada e não somente global. A fim de adquirir

fonologia, deve-se atentar aos sons do input da língua-alvo, especialmente àqueles

que são contrastivos nessa língua, e se o objetivo do aprendiz é soar como um falante

nativo, ele deve atender a detalhes subfonémicos também. A fim de adquirir

vocabulário, o aprendiz deve atender tanto à forma das palavras bem como a

quaisquer informações que estão disponíveis no input que podem levar à

identificação dos seus significados. A fim de adquirir pragmática, o aprendiz deve

atender tanto à forma linguística dos enunciados bem como aos traços contextuais e

sociais relevantes com os quais estão associados. A fim de adquirir morfologia, deve

atender às formas dos morfemas e a seus significados, e a fim de adquirir sintaxe,

deve atender à ordem das palavras e aos significados aos quais essas estão

associadas10.

Isto não quer dizer que os outros domínios não sejam trabalhados ao longo de uma aula;

podem aparecer ao longo do desenvolvimento das atividades desde que não se perca o

foco de progressão da sequência didática.

6 Joana Ferreira, Competência fonológica de alunos de português língua não materna que frequentam o

ensino regular português. Dissertação de mestrado. Lisboa: Universidade Católica, 2014. 7 Shu Yang; Anabela Rato; Cristina Flores, Perceção das consoantes oclusivas de português de PL2 sob

influencia do Mandarim L1. In Diacrítica, 29 (1), 61-94. 8 António Macedo, Estudo da perceção (problemática) de vogais e de ditongos orais de alunos de PLNM

falantes de Mandarim. Dissertação de mestrado. Braga: ILCH – Universidade do Minho. 9 Coelho e Oliveira, Op. Cit. 10 Ingrid Finger e Elena Ortiz Preuss, «Atenção ao Input e Aprendizagem: o papel da instrução explícita na

aquisição do Espanhol como L2» in Letras de Hoje, 44 (3), 2009, p. 80.

Page 5: Lueji A’Nkonde

Deste modo, entre as muitas estratégias que podem ser desenvolvidas para o domínio da

expressão e perceção oral especificamente podem ser usadas as seguintes:

i. Ensinar métodos articulatórios;

ii. Trabalhar pares-mínimos;

iii. Fazer exercícios de audição e repetição;

iv. Ensinar a entoação;

v. Fazer uma análise contrastiva entre a língua materna e a língua estrangeira

(perceber o que pode facilitar ou dificultar);

vi. Correspondência imagem – som/palavra;

vii. Correspondência som/palavra – imagem;

viii. A interação controlada (incitação à resposta e a comportamentos);

Quanto à ordem, cada professor pode escolher uma sequência de trabalho em termos da

organização dos conteúdos em função das necessidades dos alunos e tendo em conta a

língua materna dos mesmos, mas as autoras sugerem que se comece com as vogais,

progredindo para os ditongos, seguindo para as consoantes – contraste entre consoante

vozeada e não vozeadas, ponto de articulação, grupos consonânticos – ensinar a

acentuação, a divisão silábica e, por fim, a entoação.

A perceção, produção e interação oral segundo os documentos orientadores do

ensino do Português Língua Estrangeira

Em contextos naturais de aquisição de uma língua, as competências de perceção,

produção e interação oral são as primeiras a serem adquiridas, uma vez que há

necessidade dos falantes se comunicarem entre si no meio em que estiverem inseridos,

independentemente de se saberem ler ou não.

Por isso, ao ensinar Português como língua estrangeira, o professor deve encarar todo o

processo de uma forma especial, visto que os alunos já possuem uma experiencia

comunicativa na sua língua materna e o seu aparelho fonador não está preparado, em

alguns casos, para produzir certos sons da língua alvo.

De modo a sistematizar a atividade dos professores e categorizar as competências

necessárias a aprendizagem de cada nível nos diferentes domínios da língua, surgiu o

Quadro Europeu Comum de Referência das Língua (QECRL), elaborado pelo concelho

Page 6: Lueji A’Nkonde

da Europa, «um instrumento linguístico essencial para a harmonização do ensino e da

aprendizagem das línguas vivas na grande Europa»11.

A primeira referência relacionada com os domínios da produção, perceção e interação

oral no QECRL encontra-se na grelha para a autoavaliação das competências linguísticas,

tendo em conta descritores de uso da língua. Assim, as capacidades, divididas em

compreensão (ao nível da oralidade) e expressão (interação oral e produção oral), são

apresentadas do nível de iniciação A1, ao nível mais avançado C2, de modo a que os

professores não só consigam identificar através delas o estágio de desenvolvimento

linguístico (neste caso oral) dos que aprendem uma língua12, mas também identificar as

insuficiências que estes apresentam para, com base nelas, efetivar o processo de ensino

da língua.

Relativamente a interação oral, o QECRL salienta a necessidade de se desenvolverem

estratégias por meio das quais o «utilizador da língua desempenha alternadamente o papel

de falante e o de ouvinte com um ou mais interlocutores, de modo a construir

conjuntamente um discurso conversacional através da negociação de sentido e seguindo

o princípio da cooperação»13. E, como sugestão, o documento orienta a realização de

conversas informais, discussões informais, debates, entrevistas, negociações, o

planeamento conjunto e cooperações práticas com vista a fins específicos.

Tendo como base o QECRL e os resultados de formações contínuas de professores

efetuadas de 2002 a 2007, em diferentes contextos de Ensino Português no Estrangeiro,

surgiu o Quadro de Referência para o Ensino do Português no Estrangeiro (QuaREPE),

um documento que estabelece diretrizes especificamente viradas ao Ensino do Português

fora de Portugal.

Relativamente à produção, perceção e interação oral, o documento reproduz as

competências, níveis de proficiência e os temas apresentados pelo QECRL com ligeiras

adaptações aos países de língua portuguesa e diversas experiências de ensino. Destaca-

se, de todas as orientações, «a necessidade de privilegiar a prática comunicativa e a

reflexão sobre a língua, adotando uma abordagem orientada para a ação em que o público

11 Conselho da Europa. Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas: aprendizagem, ensino e

avaliação. Porto: Edições ASA, 2001, p. 7. 12 Cf. Conselho da Europa, Op. Cit. pp 53-54. 13 Idem, p. 112.

Page 7: Lueji A’Nkonde

aprendente será sobretudo ator social e utilizador da língua»14. Para isso, os

conhecimentos devem ser vinculados através de suportes vários e os tipos de textos15

podem incluir, para o caso da oralidade, instruções orais diversas, anúncios públicos,

conversas em presença, noticiário na rádio e na televisão, conversas telefónicas,

espetáculos, teatro, leituras públicas, canções, comentários desportivos entre outros

documentos autênticos.

De modo a facilitar a integração de alunos que não têm o Português como língua materna

no sistema de ensino português, a Direção Geral de Investigação e Desenvolvimento

Curricular do Ministério da Educação de Portugal elaborou as Orientações

Programáticas de Português Língua Não Materna - Ensino Secundário (OPPLNM), um

documento igualmente importante, sobretudo porque as suas diretrizes têm em conta, de

forma mais contextualizada, a diversidade linguístico-cultural em sala de aulas.

Desta forma, as OPPLNM, ao abordar a proficiência, faz a distribuição da competência

oral (através dos conteúdos a serem abordados) por níveis, nas suas três vertentes

(produção, compreensão e interação), apelando a uma seleção cuidadosa dos temas, dos

materiais e das estratégias, tendo sempre em conta as caraterísticas dos alunos16.

Outros aspetos que este documento apresenta, no que respeita às orientações

metodológicas, e que merece referência, estão relacionados ao erro e à necessidade de

recurso à metalinguagem. Quanto ao erro, orienta-se que mesmo «(oral ou escrito) não

deve ser tomado exaustivamente como um dado indicador de um desempenho limitado,

mas também como evidência reveladora de estratégia de aprendizagem»17 e quanto à

metalinguagem, orienta-se «a introdução paulatina e cautelosa de termos metalinguísticos

do domínio da fonética, da morfologia e da sintaxe, da semântica, do léxico, do texto e

da pragmática, bem como termos metaliterários relativos à figuração estética do discurso

e aos géneros literários»18, para que, desta forma, o aluno possa aprender implicitamente

outras competências igualmente importantes.

14 Maria José dos Reis Grosso (Coord.), Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro:

documento orientador. Lisboa: Ministério da Educação, 2011, p. 17 15 Entende-se aqui por texto qualquer documento oral ou escrito, objeto de perceção, produção ou troca

(Idem, p. 17). 16 Leiria, Isabel (coord.), Orientações Programáticas de Português Língua Não Materna – Ensino

Secundário. Lisboa: DGIDC /ME, 2008, p. 17-18. 17 Idem, p. 14. 18 Idem, p. 15.

Page 8: Lueji A’Nkonde

A sequência didática (em anexo)

Uma sequência didática tem sido definida normalmente como sendo o «conjunto de

atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos

educacionais, que têm um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores como

pelos alunos»19.

Independentemente da estrutura que se tenha de escolher, as atividades devem sempre ser

diversificadas, apresentadas de forma progressiva, articuladas entre si e devem concorrer

para o alcance dos objetivos previamente elaborados.

Conteúdo

- A produção, perceção e interação oral;

Nível: A2 (conforme o QECRL)

Conforme o QECRL, e tendo em conta o texto escolhido, é nos níveis A 2.1 e A2.2 que

o aluno deve ser capaz de compreender, diferenciar e produzir expressões e vocabulários

de uso mais frequente relacionados com aspetos de interesse, ao nível da perceção,

produção e interação oral no processo comunicativo20.

Articulação objetivos, conteúdos e estratégias

A grande preocupação ao elaborar a sequência didática em anexo foi a de estabelecer uma

articulação entre os objetivos, conteúdos e as estratégias, tendo em conta a necessidade

de harmonizar as diferentes partes que a constituem. Por isso, ao formular um objetivo

geral como «melhorar a comunicação oral dos alunos»21, tivemos o cuidado de formular

objetivos específicos que, se atingidos, concorrem para o alcance simultâneo do objetivo

geral, como i. «discutir oralmente o sentido global do texto», ii. «ensinar métodos

articulatórios dos sons da fala» (tendo em conta as caraterísticas dos alunos e das suas

línguas maternas), iii. «distinguir os pares mínimos dos sons em palavras semelhantes» e

iv. «resolver exercícios com base na audição e repetição dos sons da fala».

São os objetivos específicos que, por sua vez, ajudaram a selecionar as estratégias a serem

desenvolvidas ao longo da aula e os recursos de ensino necessários. Assim sendo,

19 Zabala, Antoni, A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 18 20 Conselho da Europa, Op. Cit., p. 53-54 21 Observar a proposta de Sequência Didática

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conforme o objetivo geral e os específicos acima, optamos por atividades como i.

«discussão oral do sentido global do texto» (independentemente da pertinência do texto,

o professor pode estimular e moderar a discussão através de perguntas previamente

elaboradas), ii. «repetição de palavras pronunciadas pelo professor, por falantes nativos

e/ou gravadas», iii. «resolução do teste dos pares mínimos» iv. «correspondência imagem

– palavra/som» e v. «correspondência palavra/som – imagem».

Competências a desenvolver

Competências linguísticas: podem ser adquiridas através da exploração vocabular

e semântica do texto, na abordagem fonético-fonológica dos sons que constituem

as palavras, ao mesmo tempo que, implicitamente, se podem aperfeiçoar os outros

domínios;

Competências de leitura e de escrita: podem ser adquiridas ao longo da leitura,

quer a expressiva, quer a silenciosa, do texto e no momento da resolução dos

exercícios de produção escrita.

Competências discursivas: podem ser adquiridas através da compreensão dos

sentidos que as palavras ou frases têm no texto, em comparação com outros que

as mesmas possam ter em outros contextos de comunicação.

Competências socioculturais: o texto escolhido constitui uma representação do

modo de vida da população brasileira e portuguesa e pode ser usado como

exemplo quando se trata de relações socioculturais e familiares.

Competências de literacia: espera-se que os alunos obtenham da leitura e análise

do texto escolhido, bem como das atividades de perceção e produção oral,

conhecimentos que lhes sirvam para desenvolver as suas potencialidades e, desta

forma, participar ativamente da sociedade.

O texto Escolhido

Marcelo, Marmelo e Marmelo é um conto de Ruth Rocha, uma escritora brasileira de

livros infantojuvenis. Conta a história de um menino que, achando que as coisas deveriam

ter nomes mais apropriados, começa a utilizar a língua à sua maneira. O texto torna-se

apropriado ao conteúdo escolhido porque muitas palavras que o mesmo apresenta

Page 10: Lueji A’Nkonde

diferenciam-se por pares mínimos, ou seja, por «palavras que apenas num som se

distinguem e que têm significados diferentes»22.

Assim, além de ser muito benéfico para estimular uma reflexão básica, à medida das

capacidades dos alunos, sobre a utilização da língua e questões de arbitrariedade e a

criatividade linguística, o mesmo é um excelente instrumento no qual se pode fazer um

levantamento de todas as vogais e de todas as consoantes da língua (em posição inicial,

medial ou final) que, se trocadas por outras muito próximas em termos de articulação, o

significado altera e, desta forma, desenvolver os exercícios propostos, ao mesmo tempo

que se desenvolve outras competências.

Considerações finais

Ao ensinar de uma língua, é importante sempre que se organize estruturalmente todas as

atividades programadas para o efeito, de modo a desenvolver todas as estratégias

seguindo um plano que, tendo em conta as circunstâncias, possa ser adaptado às

necessidades educativas dos aprendentes da língua. A insuficiência de conhecimentos

linguísticos de uma parte significativa dos professores de línguas estrangeiras deve ser

também uma componente que deve ser acautelada/trabalhada pelas organizações

responsáveis pelo ensino do português língua estrangeira, pois esta tem sido igualmente

apontada como uma das causas para que haja esse desequilíbrio, uma vez que a produção

e perceção oral carecem de uma abordagem cuidadosa que passa pela identificação de

todas as fases dos referidos processos, isto é, a produção da cadeia sonora de acordo com

as regras articulatórias do sistema linguístico do português, a perceção da fala, enquanto

primeira etapa da compreensão, e a segmentação dos sons com base em unidades com

significados, enquanto segunda etapa, de formas a decifrar a mensagem ouvida .

Uma boa sequência didática é, assim, o primeiro passo para o sucesso de todo o processo

e a aplicação requer do professor um cauteloso controlo do tempo, o domínio dos assuntos

a serem abordados, bem como a capacidade para redirecionar as abordagens em caso de

necessidade. Para o caso da produção, perceção e interação oral, é preciso servir-se de

todos os meios que possam facilitar, desde os recomendados pelos documentos

22 Martins, Ana Maria, «Conceito de par mínimo», in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Respostas. 2008,

p. 1, acessível em «https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-definicao-do-conceito-de-par-

minimo/25303», acedido em 7 de Maio de 2018.

Page 11: Lueji A’Nkonde

orientadores, a outros igualmente necessários para o sucesso do processo de ensino-

aprendizagem do português enquanto língua estrangeira.

A sequência didática apresentada como proposta pode ser adaptada de acordo com as

necessidades pontuais do contexto de aprendizagem e dos alunos, substituindo, por

exemplo, o texto utilizado por um outro que seja do interesse do aluno, que permita

trabalhar os pares mínimos e que, desta forma, contribue para a o calce das competências

orais em português língua estrangeira.

Bibliografia

António Macedo, Estudo da perceção (problemática) de vogais e de ditongos orais de

alunos de PLNM falantes de Mandarim. Braga: ILCH – Universidade do Minho.

Bagão, Maria Teresa Sousa, Compreensão oral em aulas de PLE: contributos para

atividades no nível C. Dissertação de mestrado. Porto: Faculdade de Letras da

Universidade do Porto, 2014.

Coelho, L. & Oliveira, C., Manual de Pronúncia e Prosódia. Lisboa: Lidel Edições, 2014.

Conselho da Europa, Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas:

aprendizagem, ensino e avaliação. Porto: Edições ASA, 2001.

Duarte, I. M. e Carvalho, A., Treino da oralidade na aula de PLE: uma experiência com

conversas orais informais no nível A. In Studia Universitatis Babes-Bolyai nº 2,

2018.

Finger, I. & Preuss, E., Atenção ao Input e Aprendizagem: o papel da instrução explícita

na aquisição do Espanhol como L2. In Letras de Hoje, 44 (3), 78-85, 2009.

Disponível online em: «http://hdl.handle.net/10183/169733». Acessado em 7 de

Maio de 2018.

Grosso, M. J. (Coord.), Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro:

documento orientador. Lisboa: Ministério da Educação, 2011.

Joana Ferreira, Competência fonológica de alunos de português língua não materna que

frequentam o ensino regular português. Dissertação de mestrado. Lisboa:

Universidade Católica, 2014.

Leiria, I (coord.), Orientações Programáticas de Português Língua Não Materna –

Ensino Secundário. Lisboa: DGIDC /ME, 2008.

Page 12: Lueji A’Nkonde

Martins, A., A definição do conceito de par mínimo. In Ciberdúvidas da Língua

Portuguesa. Respostas, 2008. Acessível em «https://ciberduvidas.iscte-

iul.pt/consultorio/perguntas/a-definicao-do-conceito-de-par-minimo/25303».

Acessado em 7 de Maio de 2018.

Pinto, P. F., A oralidade na aula de português para hispanofallantes. In Limite, nº 4, 2000,

pp. 141-151.

Rocha, R., Marcelo, Marmelo, Martelo e outras histórias (27ª edição). Rio de Janeiro:

Salamandra, 1976.

Shu Yang; Anabela Rato; Cristina Flores, Perceção das consoantes oclusivas de

português de PL2 sob influencia do Mandarim L1. In Diacrítica, 29 (1), 61-94.

Zabala, Antoni, A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 18

ANEXO I – SEQUÊNCIA DIDÁDICA

Centro de Línguas da Universidade do Minho

Disciplina: Português Língua Estrangeira

Tema: A produção, perceção e interação oral: os pares mínimos

Nível: A2.1 (A2.2)

Professor:

Duração da Aula: 2 horas

Data:

Unidade didática:

- Compreensão, produção e interação oral (Conforme o Programa de PLE, nível A2

do Instituto Camões).

Conteúdos:

- Leitura e compreensão do texto;

- Breve reflexão oral sobre o carácter convencional e arbitrário da língua e a

criatividade linguística (com base no texto);

- Exercícios de releitura e produção escrita;

- Caracterização de alguns sons da fala do português europeu;

- Métodos articulatórios dos sons da fala;

- Exercícios de articulação e perceção dos sons da fala.

Page 13: Lueji A’Nkonde

Objetivos

Objetivos gerais:

- Compreender o sentido global de um

texto;

- Aperfeiçoar as competências de

escrita dos alunos;

- Melhorar a comunicação oral dos

alunos;

Objetivos específicos:

- Ler expressivamente um texto;

- Ler silenciosamente um texto;

- Explorar, ao longo da leitura do texto, o

vocabulário, através da consulta de

significados no dicionário;

- Resolver os exercícios com base numa

releitura do texto;

- Melhorar a escrita através da resolução

dos exercícios de produção escrita;

- Ensinar os métodos articulatórios dos sons

da fala;

- Distinguir os pares mínimos dos sons em

palavras semelhantes;

- Fazer exercícios de audição e repetição

dos sons da fala;

- Direcionar a atenção do aluno aos sons

inexistentes na sua língua materna.

Recursos /Materiais:

Texto, imagens ou retroprojetor, quadro, canetas, além de todo o material diário dos

alunos

Competências a desenvolver:

- Competências linguísticas;

- Competências de leitura e de escrita;

- Competências discursivas;

- Competências socioculturais;

- Competências de literacia;

Page 14: Lueji A’Nkonde

Atividades/ Estratégias

Atividade 1: Leitura e discussão oral: exploração vocabular e discussão do sentido global

do texto, bem como sobre o carácter convencional e arbitrário da língua e a criatividade

linguística com base no texto.

Depois de uma leitura silenciosa, cada aluno, indicado pelo professor ou de forma

voluntária, lê em voz alta um parágrafo enquanto os outros colegas acompanham. Nos

intervalos, o professor pergunta à turma se há, no parágrafo lido, alguma palavra ou frase

cujo sentido alguém não tenha percebido.

A seguir à leitura do texto, o professor começa uma discussão oral para a compressão do

sentido global do texto. Alguns exemplos de perguntas que podem ser feitas aos alunos

são:

1. Qual é o tema principal do texto?

2. Com quem Marcelo vive?

3. Por que razão Marcelo começou a usar uma linguagem diferente da do resto da

família?

4. Qual foi a consequência desta atitude de Marcelo?

5. O que aconteceu no fim da história? Marcelo mudou de comportamento?

Atividade 2 – Reconstrução do sentido do texto através de um exercício de produção

escrita.

Após a discussão oral, o professor pede para que os alunos se organizem em grupos de

três ou quatro elementos para que em conjunto possam responder às seguintes perguntas:

a. Rescreva as seguintes frases, substituindo as palavras destacadas por outras,

conforme o sentido que elas têm no texto.

1. Mamã, queres passar-me o mexedor?

2. Papá, dás-me o suco de vaca?

3. Bom solário para todos.

4. Sabem o que eu vi na rua? Um puxadeiro a puxar uma carregadeira.

5. O possuidor ficou danado.

6. Bom lunário.

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7. Papá, embrasou a moradeira do Latildo!

8. Está uma branqueira danada!

b. Com a ajuda dos seus colegas, tente perceber por que razão usou as palavras

solário, lunário, moradeira, embrasou e latildo, ao invés de palavras conhecidas

por todos.

Atividade 3 – Explicar aos alunos que em Português, tal como em outras línguas, existem

sons muito parecidos e que, se trocados, podem consequentemente alterar o significado

da palavra. A explicação será feita usando a seguinte tabela:

Vogais bala – bela – bila – bola – bula

Ditongos pai vs pau / Rui vs rua

Oclusivas polo – bolo tia – dia cola – gola

Oclusivas nasais minho – ninho

Fricativas faca – vaca soar – zoar chá – já

Laterais falar – falhar – mal

Vibrantes carro – caro – mar

3.a – Teste dos pares mínimos:

Neste exercício, os alunos devem completar as frases abaixo com uma das palavras entre

parênteses:

1. A irmã do pai do Marcelo é _____(tia/dia) do Marcelo.

2. Marcelo precisava de uma_______(vaca/faca) para cortar o pão.

3. A pessoas têm que chamar as coisas ______(belo/pelo) mesmo nome.

4. Na ______(casa /caça) de Marcelo ninguém o entendia.

5. Marcelo ______ (orou/olhou) toda a noite de joelhos pelo seu cachorro.

6. Marcelo estava a ______(falhar/falar) uma língua diferente.

7. Marcelo precisava da colher para misturar o açúcar no____(já/chá).

8. Alguém passava na _______(lua/rua) e atirou uma ponta de cigarro.

9. A mãe do Marcelo______(pecou/pegou) na colher e deu ao Marcelo.

10. O cachorro________ (era/erra) o melhor amigo de Marcelo.

11. A forma de falar de Marcelo faria com que ele tirasse má _____(nota/mota) na

escola.

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3.b – Correspondência imagem – som e som – imagem

Este exercício está dividido em duas partes: na primeira o professor pronuncia uma

palavra e o aluno vai ao quadro, onde estarão projetadas duas imagens, e escolhe a que

corresponde o som que ele ouviu; e na segunda parte faz-se um exercício inverso, isto é,

o professor mostra as imagens e o aluno vai pronunciando o som correspondente a

imagem que ele estiver a visualizar.

A.

Bola vs Bolo B

Queixo vs Queijo

C

Selo vs Gelo D.

Fila vs Filha

E.

Martelo vs Marmelo

F.

Fala vs Vala

G.

Pai vs Pau H.

Beijo vs Beiço

Tarefa

- Procurar 10 pares de palavras parecidas em Português, bem como a diferença entre elas.

Avaliação

Observação do desempenho dos alunos (através da ficha de avaliação) ao longo:

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- Da leitura e interação oral acerca do texto;

- Da realização dos exercícios de produção escrita;

- Da participação do trabalho em grupo;

- Da Perceção, distinção e produção dos sons nos exercícios propostos;

Ficha de Avaliação

A ficha de avaliação será preenchida com uma menção qualitativa do desempenho dos

alunos, expressa na seguinte escala: Mau (0 a 5), para os alunos que não reconheçam os

pares mínimos ou não articulem corretamente os sons em português na leitura,;

Insuficiente (6 a 9), para os alunos que apesar de articularem ligeiramente bem as palavras

ao longo da leitura, não seja suficiente para a compreensão do que leem e apresentem

muita insegurança na distinção dos pares mínimos; Suficiente (10 a 13), para os alunos

que, apesar das dificuldades, conseguem fazer-se perceber na leitura em voz alta e

manifestem uma média aceitável de acerto da distinção dos pares mínimos; Bom (14 e

15), para os alunos que, numa escala de ascensão apresentem uma leitura quase fluente e

distinguem os pares mínimos em, pelo menos 70%; Muito bom (16 e 17), para os alunos

que leem e distinguem os parem mínimos fluentemente, errando num ou noutro caso; e

Excelente (18 a 20), para os alunos que não cometem, nenhum erro na leitura em voz alta

e na distinção dos pares mínimos.

Nome do aluno Leitura Escrita Produção oral Perceção oral Interação oral

Aluno A Bom Suficiente Suficiente Insuficiente Suficiente

Aluno B

Aluno C

Aluno D

ANEXO 2 – TEXTO

MARCELO, MARMELO, MARTELO

(Todas as Coisas Têm Nome)

Marcelo vivia a fazer perguntas a toda a gente:

— Papá, por que é que a chuva cai?

— Mamã, por que é que o mar não derrama?

— Vovó, por que é que o cachorro tem quatro pernas?

As pessoas grandes às vezes respondiam. Outras vezes não sabiam como responder.

— Ah, Marcelo, sei lá...

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Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas:

— Mamã, por que é que eu me chamo Marcelo?

— Ora, Marcelo foi o nome que eu e teu pai escolhemos.

— E por que é que não escolheram martelo?

— Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta...

— E por que é que não escolheram marmelo?

— Porque marmelo é nome de fruta, menino!

— E a fruta não se podia chamar Marcelo, e eu chamar-me marmelo?

No dia seguinte, lá vinha ele outra vez:

— Papá, porque é que mesa chama mesa?

— Ah, Marcelo, vem do latim.

— Puxa, papá, do latim?! E latim é língua de cachorro?

— Não, Marcelo, latim é uma língua muito antiga.

— E por que é que esse tal latim não pôs à mesa nome de cadeira, à cadeira o nome de

parede e à parede nome de bacalhau?

— Ai, meu Deus, este menino deixa-me louco!

Daí a alguns dias, Marcelo estava a jogar futebol com o pai:

— Sabe, papá, eu acho que o tal latim pôs nomes errados nas coisas. Por exemplo: por

que é que bola se chama bola?

— Não sei, Marcelo, acho que bola lembra uma coisa redonda, não lembra?

— Lembra, sim, mas... e bolo?

— Bolo também é redondo, não é?

— Ah…, não! A mamã faz sempre bolo quadrado...

O pai do Marcelo ficou atrapalhado. E Marcelo continuou a pensar:

"Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo.

E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que

as coisas deviam ter nomes mais apropriados. Cadeira, por exemplo. Devia chamar-se

sentador e não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar-se

cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar Assim”.

Logo de manhã, Marcelo começou a falar a sua nova língua:

— Mamã, queres passar-me o mexedor?

— Mexedor? Que é isso?

— Mexedorzinho, de mexer café.

— Ah... colherinha, queres tu dizer.

— Papá, dás-me o suco de vaca?

— Que é isso, menino!

— Suco de vaca, ora! Que está no suco do vaqueiro.

— Isso é leite, Marcelo. Quem é que entende este menino?!

O pai do Marcelo resolveu conversar com ele:

— Marcelo, todas as coisas têm um nome. E toda a gente tem que chamar as coisas pelo

mesmo nome porque, senão, ninguém se entende...

— Não acho, papá. Por que é que eu não posso inventar o nome das coisas?

O pai do Marcelo suspirou:

— Vai brincar, filho, tenho muito o que fazer...

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Mas Marcelo continuava a não entender a história dos nomes. E resolveu continuar a falar

à sua moda. Chegava em casa e dizia:

— Bom solário pra todos...

O pai e a mãe de Marcelo olhavam-se e não diziam nada. E Marcelo continuava a

inventar:

— Sabem o que eu vi na rua? Um puxadeiro a puxar uma carregadeira. Depois, o

puxadeiro fugiu e o possuidor ficou danado.

A mãe do Marcelo já estava a ficar preocupada. Conversou com o pai:

— Sabes, João, eu estou muito preocupada com o Marcelo, com essa mania de inventar

nomes para as coisas... Já pensaste quando começarem as aulas? Esse menino vai dar

trabalho...

— Não, Laura! Isso é uma fase que passa. Coisas de criança...

Mas estava a custar a passar... Quando vinham visitas, era um caso sério. Marcelo só

cumprimentava dizendo:

— Bom solário, bom lunário... — que era como ele chamava o dia e a noite.

E os pais de Marcelo morriam de vergonha das visitas.

Até que um dia...

O cachorro do Marcelo, o Godofredo, tinha uma linda casinha de madeira que o senhor

João tinha feito para ele. E Marcelo só chamava a casinha de moradeira e o cachorro de

Latildo.

E aconteceu que a casa do Godofredo pegou fogo. Alguém atirou uma ponta de cigarro

pela grade e foi aquele desastre!

Marcelo entrou em casa a correr:

— Papá, papá, embrasou a moradeira do Latildo!

— O quê, menino? Não estou a entender nada!

— A moradeira, papá, embrasou...

— Eu não sei o que é isso, Marcelo. Fala direito!

— Embrasou tudo, papá, está uma branqueira danada!

O senhor João percebia a aflição do filho, mas não entendia nada... Quando o senhor João

chegou a entender o que Marcelo estava a dizer, já era tarde. A casinha estava toda

queimada. Era um montão de brasas. O Godofredo gania baixinho... E Marcelo,

desapontadíssimo, disse para o pai:

— Gente grande não entende nada mesmo!

Então a mãe do Marcelo olhou para pai do Marcelo. E o pai do Marcelo olhou pra mãe

do Marcelo. E o pai do Marcelo falou:

— Não fiques triste, meu filho. A gente faz uma moradeira nova para o Latildo.

E a mãe do Marcelo disse:

— É sim! Toda branquinha, com a entradeira na frente e um cobridor bem vermelhinho...

E agora, naquela família, toda a gente se entende muito bem. O pai e a mãe do Marcelo

não aprenderam a falar como ele, mas fazem um esforço para entender o que ele diz. E

nem se incomodam com o que as visitas pensam...

Ruth Rocha (Adaptado) in Marcelo, Marmelo, Martelo e Outras Histórias