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Lueji, o nascimento de um império: sob as verdades da ficçãoRita Chaves (USP)

Mesmo o leitor mais atento terá dificuldade em definir o foco central do olhar de Pepetela em Lueji, o nascimento de um império. Sobre o poder? So-bre a tradição? Sobre a mulher? Sobre o colonialismo? Sobre Angola? São muitos os temas focalizados nesse romance que tem na multiplicidade uma de suas matrizes e faz do movimento a sua força.

Ao focalizar preferencialmente a região da Lunda e a cidade de Luan-da, o autor confronta dois espaços matriciais na história do país, investin-do em uma operação que reflete a necessidade de ocupação de um territó-rio que a empresa colonial juntou no mapa da apropriação mas manteve sempre cindido. Um dos desafios da luta contra a dominação era, sem dú-vida, construir a ideia de unidade fundida sob o signo de uma utopia asso-ciada à crença na libertação. O desejo de romper a incomunicabilidade projetava-se na vida literária e iria conduzir o itinerário dos intelectuais. Trazer para o reino da literatura esses vários espaços é uma das estratégias de Pepetela, que à rota de suas protagonistas incorpora o sul que Bengue-la também representa.

Na construção romanesca de Lueji, o nascimento de um império, contudo, o espanto maior pode vir do tratamento dado ao tempo. O recorte é am-plo e abriga uma dimensão algo insólita. Traz um passado remoto, perdi-do na fabulação mítica, e um futuro que carrega também traços da mito-logia que cercava o fim do milênio.

Escrito nos anos de 1987 e 1988, o romance foi publicado em 1989, com um enredo constituído numa longa duração: os acontecimentos encadea-dos chegam a um futuro apontado para o fim do século XX, mas começam num passado remoto, identificado num pouco preciso “Quatro séculos atrás (pelo menos)”. Ou seja, plasma-se em um abraço que, atingindo o ano

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de 1999, tem raízes no já longínquo século XV. A sugestão entre parênte-ses é apenas uma das indicações da curiosa relação com a verdade que o romance alimentará.

No centro da narrativa, estão duas mulheres em confronto com os mun-dos em que vivem. Separadas por centenas de anos, Lueji e Lu trilham o caminho da diferença como projeto identitário e assim incursionam por desafios tocados pela aspereza, reiterando percursos que marcam outras personagens femininas do autor, como Ondina, Matilde, Sara… Na figura-ção das trajetórias da rainha do reino da Lunda e da bailarina colocam-se em diálogo esses tempos e espaços diversos, levando-nos a ler as sombras das muitas contradições no peso dos seus dias.

Lueji habita a Lunda de sua época ancorada à volta dos quatro séculos atrás e Lu vive o fim do século XX em Luanda, habitante dessa Angola que a independência traz à cena. Protagonizam experiências que as definem como metonímias de um processo histórico sobre o qual não podem rei-nar certezas absolutas. Colocando em causa a pretensão do discurso cien-tífico, em que se apoiam alguns saberes, a escrita de Pepetela corteja aber-tamente a imprecisão. O recurso a certas fontes, como a narrativa de viagem de Henrique Carvalho ou o trabalho de Vansina, textos de referência para pesquisas sobre a Lunda, combina-se à escavação de base inventiva da qual se afasta o tributo da submissão. Com as fontes, o autor estabelece um jogo muito vivo, procurando sem hesitação preencher com a sua imaginação as lacunas que o saber colonial, a investigação acadêmica e/ou a tradição oral não colmataram.

Mais uma vez, o escritor que o Brasil já conhece de obras como Mayom-be, Yaka, A geração da utopia, A sul, o sombreiro, entre outros títulos, lança mão das potencialidades do romance como um gênero para abrir perspectivas sobre um universo em que se cruzam dimensões da História, em que se mesclam as vias da memória, em que se superpõem as verdades da ficção. Desconsideração com o rigor documental? Talvez. Ironia relativamente ao discurso pretensamente científico? Certamente. Desrespeito ao leitor? De forma alguma. Ao chegar ao fim de suas páginas, compreendemos tão bem: uma história como a de Angola e seus povos bem reclama a energia da fic-ção para dar sentido às profundas contradições que a cercam.

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Quatro séculos atrás (pelo menos)…

Lueji voltou ao lago da sua infância. Era elíptico, grande, só os bons na-dadores o podiam atravessar no sentido do comprimento. As margens esta-vam cobertas de fetos compridos e também dos mais pequenos, de folhas em palma todas recortadas, os fetos da Lunda. Brincavam a se mascarar com estes, através dos quais tudo podiam ver. Além de muitas outras variedades, o lago era rodeado de plantas com caniços compridos e de folha grande, que davam estranhas flores cor-de-rosa na ponta de hastes estreitas, as ro-sas de porcelana. O nome veio certamente da cor das flores e da sua con-sistência carnuda e brilhante, lembrando o material mais puro de que eram feitos moringues e sangas. Era uma planta da espécie das Proteas, mas esse nome não existia por enquanto na Lunda. Diziam os mais velhos, os bol-bos tinham sido trazidos dum lago bem longe, lá onde nasce o rio Cassai, para Ocidente, no berço fabuloso dos Tchokue. Se reproduziram à beira da água, pintando de rosa o verde das margens.

Aos doze anos já Tchinguri atravessava o lago e Lueji pasmava, orgulho-sa dos feitos do irmão mais velho. Chinyama, pelo contrário, mal sabia na-dar. Preguiçoso como só ele, esse seu irmão do meio. Corriam despreocu-pados pelo lago, com outros rapazes. As raparigas olhavam e riam, não participavam das brincadeiras masculinas. Lueji sim. E Tchinguri lhe en-sinou a lançar a funda de caça e a fazer armadilhas para os bichos e a pes-car e a subir às altas árvores da beira-rio para apanhar os favos de mel. Em tudo imitava o irmão mais velho. Chinyama só gostava fazer armadilhas e depois ficar escondido à espera. Gostava era da espera, para inventar estó-rias. Nunca subiu numa árvore e a funda não lhe dizia nada. Tchinguri era o ídolo de Lueji. Nem mesmo Ndumba ua Tembo, um pouco mais velho que Tchinguri e por isso mais forte, se podia comparar a ele. Chinyama

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também admirava o irmão mais velho, mas de maneira diferente: tinha medo dele. Pois Tchinguri era violento. À menor contrariedade, batia os pés no chão e dava uma surra no caçula. Também tentou duas vezes bater em Lueji mas esta se defendeu. Lhe mordeu um braço e Tchinguri nunca mais usou de violência contra ela. À sua maneira de irmão mais velho, res-peitava-a também. Chinyama se encolhia todo quando Tchinguri gritava ou mesmo abria demasiado os olhos. Pior então quando ele batia os pés no chão. E obedecia sempre.

Ela olhou o lago. Deserto. Ninguém nas pedras onde as raparigas se ba-nhavam e lavavam roupa. Nenhuma canoa de pescador no meio das águas. Um silêncio só cortado pelos gritos angustiantes das aves e um restolhar ligeiro de peixes a comer. Sentou num rochedo, por baixo duma grande ár-vore. As bimbas estavam quietas e as garças roçagavam nelas com a ternu-ra do cio. Caniços de papiro se agitavam levemente com a viração. A super-fície do lago, parada, refletia o azul dum céu sem nuvens. Céu de espera. No entanto, a tranquilidade do lago acalmou-a, nada podia acontecer pe-rante aquela paz.

Tinha fugido da casa materna e procurado refúgio no lago da sua in-fância. Mais uma vez Tchinguri era responsável pela fuga. Numa discussão violenta com Ndumba ua Tembo, que era o único com coragem de lhe fa-zer frente, saiu furioso do tchota e bateu na primeira mulher que encon-trou. O marido da mulher viu a cena e, cego pela raiva, não reconheceu o filho do chefe. Lhe deu logo uma bassula e Tchinguri ficou vermelho do pó da terra. Se levantou, irado, e então o outro reconheceu nele o provável her-deiro da Lunda. Antes mesmo que Tchinguri puxasse do punhal, já o ou-tro tremia, paralisado pelo susto de ter atirado o filho de Kondi a terra. Tchinguri apunhalou-o, mas desconseguiu de o matar porque outros mu-atas o seguraram, implorando calma. Não satisfeito com a vingança, Tchin-guri arrastou a mulher para a sua chipanga e violou-a. Aí as opiniões diver-giam, os amigos do príncipe dizendo a mulher não gritou, por isso aceitou. O caso foi levado a Kondi para ser julgado. O encontro entre os dois, filho e pai, foi uma cena penosa, pois o chefe andava furioso com os desmandos constantes de Tchinguri, mas era velho demais para impor a sua autorida-de. Tchinguri gritava não vai haver julgamento nenhum, ele me atacou pri-meiro, quem ousa levantar a mão para Tchinguri e fica impune? Lueji gos-tava muito do pai, fraco mas justo. E ainda gostava mais do irmão. Fugiu para o lago, evitando o drama.

Agora ali estava, procurando a paz. Lembrou a vez que Tchinguri lutou com Ndumba ua Tembo, tinha o irmão uns catorze anos e já era caçador.

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Dos jovens, Ndumba era o melhor caçador e lutador, ia ser um grande che-fe, diziam os mais velhos. Apesar dos dois anos a mais, e nessa idade isso conta, Ndumba desconseguiu de levar a melhor na luta. Durou mais duma hora, de mãos nuas. Ficaram muito feridos, mas nenhum desistiu. Podia? Só a prostração os venceu, ao mesmo tempo. Ninguém ousou separá-los, muito menos Lueji. O irmão até que podia morrer, mas nunca ia se dar por vencido. E nunca perdoaria quem interrompesse o combate. A partir daí, Ndumba e Tchinguri eram rivais, mas não se defrontavam senão por pala-vras e piadas venenosas, cada um respeitando a força do outro. Numa coi-sa partilhavam a mesma opinião, era quando se tratava de decidir sobre a lição a dar nalguma aldeia recalcitrante ou num grupo estranho que pene-trava o território de caça. Porrada! No mais estavam sempre em desacor-do. Só pelo prazer de contrariar o outro.

Escureceu e a Lua subiu, inteira Lua de prata se refletindo no lago, azul--escuro ao luar da Lunda. Lueji nela viu a silhueta do homem eterno, elás-tico e firme. E foi sonho ou ilusão, foi pressentimento ou magia, mas do ou-tro lado da margem, banhado pelo luar, estava o homem que saiu da Lua, alto e quase nu, um machadinho de chefe na mão esquerda e um longo arco na direita. A princesa teve um assomo de consciência e levantou a cabeça para olhar a Lua. O disco de prata estava liso, vazio, só brilhava. E o homem caminhava pela margem, se afastando. Agora só havia o silêncio e a figura difusa se recortando no luar. Quis gritar, chamar, travar a despedida, mas a garganta estava seca, não emitiu senão um gemido. Ficou parada, muda e angustiada, vendo-o desaparecer para lá da colina. E do horizonte azul da sua vida. Um soluço subiu e ficou tremeluzindo ao luar.

Regressou altas horas da noite, esquecendo as onças e leões se agitan-do nas chanas. Levantava pó vermelho no caminho entre capim alto, pelo arrastar dos pés colados ainda à visão do lago. Mussumba dormia e passou entre as cubatas sem ninguém encontrar. As brasas se consumiam nas fo-gueiras e só os cães ladravam de vez em quando. Das cubatas vinham la-mentos, suspiros, ruídos de gente que dorme ou faz amor. Nada de vozes ciciadas, discutindo a maldade de Tchinguri ou a justiça do chefe dos Tu-bungo. Nada a indicar ter havido um drama. Passou à frente da casa do ho-mem esfaqueado, vigiado pelo kimbanda e pela irmã dele. A mulher fora dormir para perto dos pais, escorraçada pelo marido ofendido. Mas não havia lamentos nem pragas. Só o silêncio das ruas entre as cubatas, incon-táveis na capital do reino. Passou pela onganda real, grande paliçada den-tro da qual se situavam as cubatas onde dormia o pai e cada uma das suas quatro mulheres. Não entrou na onganda dessa vez. Avançou mais um pouco

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e passou ao lado da chipanga de Chinyama e mesmo da rua se podia ouvir o ronco de homem gordo. Logo à frente se situava a chipanga de Tchingu-ri. Tinha um guarda dormindo na porta. Foi o chefe que mandou o guar-da ou era precaução de Tchinguri? Voltou para trás, penetrou na onganda real, fez um gesto ao soldado da entrada e foi para casa da sua mãe, Nayo-le, a segunda mulher de Kondi. Se deitou na esteira de caniços tenros so-bre o catre de madeira, se enrolou em duas peles de onça, tentou adorme-cer. Mas a visão do lago não a deixou.

Levantou de manhã bem cedo, sem ter dormido. A vida agitava Mus-sumba. Pescadores passavam com as nassas e mujias para o rio, mulheres iam com enxadas para as lavras, os mais velhos se reuniam aos poucos no tchota. As crianças aqueciam ao sol nascente, a ganhar energia para as cor-rerias. No cercado da cozinha encontrou apenas Musole, a quarta mulher de Kondi, era a sua vez de preparar a comida para o chefe dos Tubungo. Sentou ao lado dela e perguntou qual a decisão do pai.

Musole muxoxou, aquele teu irmão Tchinguri ué, contou o julgamen-to, o relato das testemunhas, as falas dos familiares do homem apunhala-do, a defesa feita pelos amigos de Tchinguri, tinha muitos pois já viam nele o futuro chefe. E falou também da soberba do príncipe, que não admitia a falta. E Chinyama? Não falou, esse teu outro irmão também, tchá, e a de-cisão de Kondi foi dez cabritos de multa e uma grande reprimenda, não foi muito duro pois o apunhalado não ia morrer e um muata deve defender a honra conspurcada pela plebe, ainda mais se tratando do herdeiro, portan-to o castigo era apenas o macoji da mulher violentada, por gosto ou não, a família foi ofendida e merece macoji de dez cabritos. Assim Musole expli-cou os fatos e ainda a atitude altiva de Tchinguri se levantando no meio da assembleia sem para tal ter recebido autorização do pai, gritando para um serviçal, Chimbica vai apanhar os dez cabritos, os piores que encontrares, porque eu não os apanho, não me sujo, sou um guerreiro, o que era de novo uma falta grave, manda a tradição o culpado deve apanhar ele mesmo os cabritos e entregar aos ofendidos, em gesto de humilde arrependimento, mas Tchinguri nunca aceitaria e Kondi deixou passar, encolhendo os om-bros, o filho não tinha cura, o que foi apreciado pelos amigos do herdeiro, nisso viam um sinal de força, mas herdeiro nada, disse Musole, na véspera falou com Kondi e este não sabia como evitar a subida ao trono de Tchin-guri, talvez o Conselho dos Tubungo não o vai aceitar, o que era a sua es-perança, pois era difícil ele não indicar o filho para sucessor, só em caso de falta extremamente grave e ainda te digo mais, Lueji, Kondi vai consultar

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Kandala, o grande adivinho da Lunda e já partiu bem cedinho pois Kan-dala mora longe de Mussumba, num cercado isolado no cimo dum morro.

– Que quer o meu pai saber?– Já te disse. Tem medo que Tchinguri seja um mau chefe, que o povo

sofra com ele. Quer saber o que deve fazer.Lueji calou mas não gostou. Tchinguri ia se moderar quando subisse ao

poder, passaria a ouvir os conselhos dos Tubungo. Era o mais corajoso de todos os lundas e um grande guerreiro, as tribos vencidas aí estavam para o provar. Era capaz também de gestos justos, como quando defendeu o seu amigo Nandonge, acusado injustamente de feitiçaria por dois adivinhos. Exigiu que se repetissem as adivinhações, mas com o cesto de Kandala, o maior dos adivinhos. E Kandala deu razão a Nandonge e provou o feiticei-ro era alguém da família da vítima. Tchinguri subiu na consideração dos muatas e de Lueji, se ainda era possível. Porque precisava muita coragem para defrontar a opinião de dois adivinhos num caso de feitiçaria. Podia atrair as raivas deles para numa próxima oportunidade ser ele próprio acu-sado. E mais. Só uma grande lucidez conseguia destrinçar o falso e o ver-dadeiro, quando se trata com espíritos malignos. Tchinguri o fizera, podia ser um mau chefe?

O mujimbo se espalhou, Kondi foi consultar Kandala, pois Musole era incapaz de guardar segredo. À tarde toda Mussumba aguardava impacien-te o regresso do chefe dos Tubungo. Mas ele não veio. Caso complicado, Kandala desconseguia de dar resposta imediata. Lueji aproveitou ir visitar Tchinguri. Este não tinha saído de casa todo o dia, seria vergonha do que passara, seria raiva do mujimbo que Chinyama correu a lhe contar? Lueji encontrou lá Chinyama e também o inseparável Nandonge.

Tchinguri estava uma fera, dava os seus passinhos miúdos dum lado para o outro, no terreiro embaixo da árvore. A barba afilada no queixo pa-recia mais desafiadoramente espetada para a frente. Tchinguri era baixo e em tudo contrastava com o irmão mais novo, pachorrentamente sentado num banquinho ao lado de Nandonge, os pneus da barriga saindo genero-samente da tanga. Tchinguri usava também só tanga, tecida artisticamen-te de ráfia, o punhal eternamente colocado à cintura, com ele dormia. O único ornamento no peito era o colar de unhas de onça, bicho que ele ma-tara, ornamento e poderoso amuleto, pois no meio tinha um tubinho de madeira com ervas e pós mágicos. Quando se voltava, tal era a fúria que o colar chocalhava. Na cabeça usava as miluínas, ornamento que só o pai e ele podiam possuir. Eram três objetos, em forma de chifre, mas feitos de pelos e fios, que desciam do alto da cabeça para as duas têmporas, presos

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ao cabelo. As pontas vibravam quando ele se irritava. No pé esquerdo tinha a lucanga, pulseira que só os herdeiros podiam usar. Chinyama também ti-nha a lucanga, imposta depois da circuncisão, mas não as miluínas.

Lueji cumprimentou, batendo as palmas rituais, respeito que se deve ao irmão mais velho. Este falou logo:

– O pai já voltou?– Não. Deve passar lá a noite.Lueji sentou num banco, sem esperar convite. Apesar de mulher, tinha

certos direitos por ser filha de chefe.– Então Kondi quer deserdar-me?– Assim me disseram – respondeu ela.– E o povo todo está contente com isso, não é?– Não me disseram. E não acredito.Tchinguri parou a olhar para ela. Pela primeira vez, os olhos ficaram me-

nos maus. Um breve fulgor de sorriso nos lábios?– Felizmente os meus irmãos estão comigo. E os amigos. É um consolo

para quem tem um pai velho e caquético.– Não fales assim do pai, Tchinguri.– É a verdade, Lueji. Está a morrer de velho e já não tem as ideias claras.

Só faz o que lhe aconselham certos Tubungo, como o Kakele e o Kakolo, esses cretinos.

– Mas muata Kakolo é teu sogro… – disse Lueji.– E depois? É outro caquético. Quem o diz é a filha dele. E anda a intri-

gar a favor de Ndumba ua Tembo. Ele, o Mbumba, o Moxico… Os caquéti-cos intriguistas que têm o poder na Lunda! Se eu não for o sucessor ou o Chinyama…

– Nem quero ouvir falar – cortou Chinyama. – Já me viram chefe dos Tu-bungo? Dá muita chatice, uma pessoa emagrece. E a propósito, Tchingu-ri, o ndoka acabou?

O chefe da casa bateu impacientemente as palmas. Não foi preciso fa-lar. Logo apareceu uma mulher com uma cabaça grande cheia de hidromel e uma cabacinha pequena cortada ao meio. Chinyama pegou logo na caba-cinha, mergulhou-a na cabaça grande e retirou-a cheia de ndoka. Assoprou a afastar os restos de abelhas e bebeu gulosamente. Depois, passou a caba-cinha aos outros, estalando a língua. Só Nandonge aceitou beber.

– Como eu dizia, se não formos nós os escolhidos, será Ndumba ua Tem-bo. Ele tem apoio dos muatas.

– Não é Kondi quem decide, é o Conselho dos Tubungo – disse Nan-donge.

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– Vai dar no mesmo – disse Chinyama lentamente. – O Conselho sem-pre aprova a proposta do chefe. Kondi tem o lukano e com ele o poder so-bre a chuva. O Conselho vai desafiar o poder do lukano? Nunca.

– Só com o chefe morto – disse baixinho Tchinguri. O silêncio que se seguiu foi aproveitado por Chinyama para encher de

novo a cabacinha. Lueji adiantou falar:– Estão só aí a fazer suposições à toa! A verdade é que o nosso pai está

muito triste com o que fizeste, Tchinguri. Não tem razão? Precisas ter mais calma, não te enfurecer por qualquer coisa…

– Estás contra mim, mana? Afinal?– Sabes que não. Mas o julgamento foi justo e faltaste ao respeito ao che-

fe. A culpa é tua… Mas a raiva do pai passa. Qualquer que seja o oráculo de Kandala. Sempre me ensinaste que é preciso interpretar as palavras dos adivinhos e que cada um entende à sua maneira. Não acredito que o pai passe o poder para fora da sua família, é contra a tradição.

– A tradição se torce quando é preciso – disse Chinyama.– A tradição depende da força – reforçou Nandonge.– E quem tem a força? – perguntou Lueji.– Kondi – disse Tchinguri. – Ele tem o lukano.Lueji foi dormir. Os outros ficaram a beber. Na sua cubata, deitada, mui-

to tempo ela ouviu as vozes pastosas de ndoka se elevando da chipanga de Tchinguri. Até que adormeceu, sonhando com um lago e um homem a sair da Lua, com uma machadinha e um longo arco. Ela ia com ele, uma rosa de porcelana na mão.

Kondi só regressou na tarde do dia seguinte. Vinha cansado, de passos trôpegos, acompanhado de três homens do seu séquito. As pessoas saíam das casas para o cumprimentar, batendo as palmas, bem-vindo, Kondi, fi-lho de Yala Muako, e ele só respondia com um breve aceno de cabeça. Lue-ji estava em casa dele e viu, Kondi tinha envelhecido. Chinyama tinha ra-zão, o poder dá cabo da saúde. O chefe se embrulhava no manto tecido de casca de árvore e pintado de vermelho, sem coragem de tomar banho. No entanto, o fim da tarde não estava frio.

Logo chegaram os Tubungo mais próximos, muata Kakele à frente. Se vinham na esperança de um mujimbo, ficaram defraudados, pois Kondi despediu-os logo, estava cansado. À noite ia passar o mujimbo a Musole, a sua atual confidente.

Lueji foi também se despedir. Ajoelhou, poisou a cabeça nos joelhos do pai, como fazia em pequena. Ele apoiou a mão sobre a cabeça dela.

– Pai, perdoa o meu irmão Tchinguri.

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Kondi não respondeu. Acariciou a cabeça da filha. Ela repetiu a súplica.– Ele é que devia pedir.– É orgulhoso. Sabes bem, pai.– Faltou ao respeito ao soba dos Tubungo, em pleno julgamento. Um

futuro soba não pode faltar ao respeito ao soba atual. Como depois se faz respeitar, se deu aos outros o mau exemplo?

– Conheço-o melhor que ninguém. E juro, pai, ele vai mudar.– Sim, tu conheces Tchinguri melhor que ninguém. Conheces com o

coração. E teu coração é grande, Lueji.– Se ele for soba, a responsabilidade obriga-o a pensar antes. E a mode-

rar o seu orgulho.– É essa a minha esperança.Assim falou Kondi e Lueji entendeu, o pai não tinha ainda decidido de-

serdar Tchinguri. Se foi deitar, tranquila, a crise ia ser ultrapassada. Con-selho de Kandala, o que sabe tudo, o depositário do saber do povo lunda?

Lembrou, de certeza pela evocação do nome de Kandala, a cena de uma mulher do povo ser tomada por um espírito e se arrojava no chão e se en-colhia, se revolvia no pó vermelho e depois começou falar palavras à toa que ninguém entendia, as pessoas se aproximando para ouvir a voz do es-pírito que nela cavalgava, mas não dava para entender, pois só disse uma frase construída, incompreensível aos ouvidos de Lueji mas que enfureceu um nobre presente, muata Kalucinga de seu nome, bêbado inveterado, o qual, tomado pelo vinho de palma, bateu na pobre mulher inconsciente, talvez que ela o acusou de não tratar bem os espíritos dos antepassados, e a mulher gritava e esperneava no seu delírio e o muata batia, batia, sem nin-guém que lhe travasse e ela, Lueji, não pôde mais, era uma garota mas se agarrou ao braço do muata e obrigou-o a parar, apesar dos safanões e dos gritos e dos insultos, quem era a mulher que ousava levantar a mão para um Tubungo, nem mesmo sendo filha do soba, era ofensa que se lava com sangue, até que outros vieram apartar e Kalucinga exigiu reparação da ofen-sa, o que só Kondi podia decidir e decidiu pela filha, não por ser filha mas porque tinha sido justa e corajosa, heresia era violentar uma mulher caval-gada por um espírito e que se duvidavam perguntassem a Kandala, que tudo sabia, o que foi confirmado pelo adivinho, Lueji não só agira bem como conquistou o coração do povo simples, não dos muatas que sempre se podem defender mas dos outros, os que só têm a palavra quando um es-pírito os elege para serem cavalgados.

Estava pois Lueji deitada quando ouviu as vozes de Tchinguri e Chinya-ma se dirigindo para a casa de Kondi. Preocupou-a o tom das vozes, de

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quem passara o dia a beber ndoka. Não ouviu mais, mas ficou atenta, pers-crutando o silêncio de Mussumba. Soube depois…

Os filhos encontraram Kondi ainda sentado no banco, os pés numa ba-cia de água morna e com uma cabacinha na mão.

– É marufo, pai?– É água.– Que pai é este que nem nos dá de beber? – disse Tchinguri. – Até ma-

rufo nos negas?– Já disse é água. E agora vou dormir.– Velho mentiroso – disse Tchinguri. – Bebes às escondidas dos teus fi-

lhos. Fazes tudo às escondidas dos teus filhos. Não tens coragem de fazer de frente?

– Rua da minha casa, seus bêbados. Rua! O grito fez Tchinguri perder a cabeça, ainda a tinha antes? Avançou para

Kondi, lhe deu duas chapadas na cara.– Isso, Tchinguri, dá mais nesse velho maluco – apoiou Chinyama. Kondi caiu do banco e a cabeça rachou ao chocar contra uma trave. Os

gritos de Musole e dos serviçais despertaram a vizinhança. Lueji saltou da esteira e foi, nua, ver o que passava. Já Tchinguri e Chinyama saíam da on-ganda aos berros, é para aprenderes a não mentir aos teus filhos, velho ca-quético. O soba jazia prostrado no chão, o sangue escorrendo da cabeça. Lueji foi a primeira a pegar nele, depois Musole. Estenderam-no na esteira e tentaram estancar o sangue. Mensageiros foram enviados à pressa buscar os melhores kimbandas. Os ngomas e chingufos não pararam mais o seu ba-tuque, invocando os espíritos protetores da linhagem do soba. Toda a noi-te Kondi passou inconsciente, apesar de estar nos braços de Lueji que lhe aplicava emplastros de ervas para parar o sangue e apesar de todas as medi-cinas dos kimbandas. A cubata estava cheia do fumo das ervas e das penas de galinha, cheirava a sangue de homem e também das galinhas e capotas sacrificadas para o salvar. As invocações dos kimbandas se misturavam aos ruídos vindos de fora, do batuque interminável e das preces das mulheres.

Já o Sol estava alto quando Kondi abriu os olhos. Muito tempo ficou sem entender o que passara. Depois a inteligência foi aparecendo nos olhos des-botados, olhou a cara de Lueji inclinada sobre ele, sentiu o colo nu dela onde a cabeça apoiava, sorriu. Não foi preciso explicar, lembrava agora tudo. Se via. Ninguém falou e ele adormeceu.

Kondi acordou de novo à tarde e voltou a ver a cara da filha. Ouviu o rí-timo monótono do batuque. Viu depois Kandala que mexia à sua frente o ngombo de adivinhações. Pegava numa mahamba, depois noutra, mistu-

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rava e olhava, olhava para dentro do cesto e mexia e remexia os ossos car-comidos, os pedaços de madeira, as figurinhas de madeira e pano, os bú-zios de todas as formas apanhados nos rios, os restos de peles e pelos, o pedaço branco de caulino, a pemba, misturava tudo e olhava, olhava e me-ditava. Todos estavam suspensos das suas palavras. Mesmo os kimbandas tinham parado as suas fumigações para observar a figura veneranda do mais velho entre os velhos, chamado para ditar o destino do soba grande dos Tubungo. Kondi sabia, a sua vida estava ser jogada às sortes, mas não estremecia.

Kandala levantou os olhos para ele e ficou calado, o ar triste de muito velho.

– Então, Kandala? – disse Kondi numa voz fraca. O adivinho abanou a cabeça e suspirou.– Deves preparar-te, filho de Yala Muako.Musole saiu a correr aos gritos. No terreiro à frente se pôs a lamentar e

a xinguilar, mataram o meu homem, mataram o chefe dos Tubungo. Veio também a primeira mulher de Kondi, mãe de Tchinguri, e a segunda, e a terceira, se puseram a xinguilar, que vai ser de nós, que vai ser do povo da Lunda, sem chefe a quem falam os espíritos, sem chefe para fazer vir a chu-va e o bom tempo, sem chefe para chamar a caça e as sementes do massan-go e da massambala, aquele que dos espíritos ganha ventos propícios vai morrer, o pai das gentes vai morrer, que seremos nós, seus órfãos, crianças abandonadas em plena chana infestada de feras, que seremos nós, povo da Lunda?

Kandala saiu da cubata e gritou para as mulheres que já atraíam gente correndo de todas as partes:

– Calem-se, mulheres. Ele ainda não morreu. O respeito era demais e as mulheres calaram. As pessoas estacaram, não

entraram na onganda. Kandala voltou para dentro, dizendo deixem-nos sós.Ninguém nunca soube o que falaram os dois sozinhos, mas dá para su-

por. Lueji aproveitou para ir pôr o pano, desde a véspera estava nua e nada tinha comido. A mãe dela, a segunda mulher de Kondi, levou-a para a sua cubata, mesmo atrás da do soba e lhe deu xima de massango e um pedaço de carne, come, estás com mau aspecto. Ela obedeceu, olhando a mãe. Tam-bém estava velha. Novas eram a terceira mulher, mas estéril, e Musole, que ainda não tinha concebido. Diziam as más línguas a esterilidade não era delas, apesar de se saber que um soba é sempre fértil até à hora da morte. Mas o povo lunda ainda obedecia pouco ao saber dos mais velhos que lhe queriam impor a tradição, achava um rei era apenas um muata quase como

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Page 14: Trecho do livro "Lueji - O nascimento de um império"

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Lueji, o Nascimento de um Império

os outros que tinha o dom de fazer chover e aplacar as forças da natureza. Só. Também podia ser estéril na velhice. E as más línguas grassavam na Lunda, apesar dos ditos dos muatas e dos adivinhos. Kandala, sim, esse sa-bia tudo e disse o soba vai morrer.

Saíram as duas da cubata de Nayole e encontraram a primeira mulher sentada à frente da sua. Estava abatida pelo crime cometido pelos dois fi-lhos. Nada disse e elas passaram, como se a mãe de Tchinguri não existis-se. Pelo crime dos filhos, perdia a primazia de Muari, a primeira mulher, talvez até fosse condenada por feitiçaria, quem sabe. A palavra estaria com os adivinhos.

Depois Kandala saiu. Se espreguiçou, falou para Lueji:– Podes entrar, filha de Kondi.O pai estava com pior aspecto. Lueji ajoelhou ao lado da esteira, com-

pôs a pele de onça que o tapava. O velho sorriu para ela.– Ainda me pedes para perdoar os teus irmãos?Ela baixou a cabeça e soluçou.– Um chefe não pode ouvir o seu coração, sobretudo se é um coração

grande. Tchinguri não presta. E Chinyama não é melhor.– São teus filhos, pai.– São. E vê o que fizeram ao pai. Talvez a culpa seja minha, defeito meu,

não soube fazer filhos bons. Só uma filha.– Que vais fazer a eles?– O castigo está decidido. Nenhum será chefe dos Tubungo. Mas não

quero que sofram outro castigo. São filhos de chefe e devem ser respeitados.Lueji agarrou na mão dele, sussurrou:– És o homem mais justo que conheci, pai. Ficaram longos momentos em silêncio, escutando o som dos ngomas

que invocavam os espíritos, pedindo a cura de Kondi.– Mas Kandala também se pode enganar, pai.– Não. Sinto, esta noite tudo termina.– Terá de ser assim?– Assim está escrito no ngombo de Kandala… Lueji, tomei uma deci-

são. O lukano não pode passar para fora da minha família, essa é a tradi-ção dos Tubungo. Nós descendemos diretamente de Tchyanza Ngombe, a mãe Nhaweji, a grande serpente que criou o Mundo, assim como o fogo e a água. Nenhuma outra linhagem descende diretamente dela, tu sabes. Mas os teus irmãos não merecem o lukano. Como fazer? Só há uma solu-ção. Entrego-te o lukano.

– A mim, pai? Não, não quero.

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