lucÍola (josÉ de alencar): o modelo histÓrico … · 2018-08-03 · as estórias são marcadas...

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Universidade Estadual de Maringá, 11 a 14 de junho de 2018. Anais ISSN online:2326-9435 XXIII SEMANA DE PEDAGOGIA-UEM XI Encontro de Pesquisa em Educação II Seminário de Integração Graduação e Pós-Graduação LUCÍOLA (JOSÉ DE ALENCAR): O MODELO HISTÓRICO-SOCIAL DE MULHER EM TEMPOS DE MODERNIZAÇÃO SOUZA. Rayani Antoneli, [email protected] PERIOTTO. Marcília Rosa (orientadora) [email protected] UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ-UEM FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO Introdução A pesquisa buscou compreender a educação feminina no Brasil em meados do século XIX por meio do romance Lucíola, obra de José de Alencar (1829-1877), publicada em 1862. A escolha do autor e da obra é justificada em razão da sua aceitação por parte do público e da crítica e por ser considerado um dos mais importantes autores da época, além de anunciar na trama que envolveu a personagem principal o modelo feminino perfeito às mulheres da elite. Dentre os temas abordados por José de Alencar, as mulheres mereceram um estudo de perfil aprofundado nos seus romances, apontando uma restruturação da presença e atuação feminina como uma exigência dos novos tempos que chegavam ao Brasil e da necessidade de conformar padrões de comportamento adequados ao conservadorismo político e religioso da camada social dominante. A descrição e análise da educação recebida pelas mulheres no interior da sociedade patriarcal era vista uma questão de importância no processo de construção da nação, cujo modelo expressava os interesses das elites política e econômica. O entendimento dessa questão do passado contribui para que a educação dos dias de hoje, ou seja, o modelo atual, se esclareça naquilo que ainda a mantém vinculado a um período histórico não mais existente em termos

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Universidade Estadual de Maringá, 11 a 14 de junho de 2018.

Anais ISSN online:2326-9435

XXIII SEMANA DE PEDAGOGIA-UEM XI Encontro de Pesquisa em Educação

II Seminário de Integração Graduação e Pós-Graduação

LUCÍOLA (JOSÉ DE ALENCAR): O MODELO HISTÓRICO-SOCIAL DE MULHER

EM TEMPOS DE MODERNIZAÇÃO

SOUZA. Rayani Antoneli,

[email protected]

PERIOTTO. Marcília Rosa (orientadora)

[email protected]

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ-UEM

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

Introdução

A pesquisa buscou compreender a educação feminina no Brasil em meados do século

XIX por meio do romance Lucíola, obra de José de Alencar (1829-1877), publicada em 1862.

A escolha do autor e da obra é justificada em razão da sua aceitação por parte do público e da

crítica e por ser considerado um dos mais importantes autores da época, além de anunciar na

trama que envolveu a personagem principal o modelo feminino perfeito às mulheres da elite.

Dentre os temas abordados por José de Alencar, as mulheres mereceram um estudo de perfil

aprofundado nos seus romances, apontando uma restruturação da presença e atuação feminina

como uma exigência dos novos tempos que chegavam ao Brasil e da necessidade de conformar

padrões de comportamento adequados ao conservadorismo político e religioso da camada social

dominante.

A descrição e análise da educação recebida pelas mulheres no interior da sociedade

patriarcal era vista uma questão de importância no processo de construção da nação, cujo

modelo expressava os interesses das elites política e econômica. O entendimento dessa questão

do passado contribui para que a educação dos dias de hoje, ou seja, o modelo atual, se esclareça

naquilo que ainda a mantém vinculado a um período histórico não mais existente em termos

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cronológicos. A realização do estudo centrou atenção na forma como a sociedade da época

delimitada para o estudo definia o papel da mulher no século XIX e a maneira que sua educação

deveria se realizar, pois, a partir dali o modelo feminino a ser consolidado não encontraria

obstáculos na sua consecução.

Para tanto, José de Alencar, um romancista lido pela classe letrada, autor de perfis de

heroínas as quais sintetizavam os caracteres desejados às mulheres da elite, traçou nas suas

obras a mulher idealizada da sociedade burguesa, contrapondo-a sempre aos modelos femininos

rejeitados e também aquela considerada como um modelo que não deveria ser seguido. Há uma

evidente dualidade de performances da mulher em seus romances- a mulher necessária ao

projeto elitista de nação, caracterizada pela sobriedade e pleno conhecimento do papel social

exigido e a mulher profana, que erra, que macula a si e ao meio social com comportamentos

inidôneos e, ao final, deve ser castigada e excluída do convívio da sociedade. O romance

Lucíola, permite adentrar ao debate sobre o modelo de mulher discutido naquela ocasião e

representado pela movimentação dos personagens no decorrer das estórias contadas e

construídas pelo conservadorismo de seu autor.

O estudo da educação da mulher frente ao panorama geral da sociedade brasileira na

segunda metade do século XIX permitiu a construção social da personagem Lucíola quanto ao

comportamento e características pessoais e sociais que apresentava, além de contextualizar a

educação da mulher na sociedade brasileira no século XIX e identificar o ideal civilizatório

implícito na educação feminina no Brasil.

O estudo, realizado a partir dessas definições, pode esclarecer parte da dinâmica social

brasileira na metade do século XIX e os encaminhamentos históricos resultantes das relações

que se construíram em nome de um dado modelo de nação e fortalecimento da elite econômico-

político, cujos propósitos incluíam a determinação plena da sociedade de modo a fazer com que

ela expressasse uma visão de mundo unicamente vinculada ao modo de ser dominante.

Para obter-se uma visão sobre o modelo histórico da educação feminina do século XIX,

utilizamos como fonte Ivan Manoel (2008) que, no livro Igreja e Educação Feminina (1859-

1919) retrata o modelo de educação imposto desde o período imperial até a república, sobretudo

como foi designado a educação para as mulheres sobre o domínio da Igreja Católica e da

oligarquia.

Jinzenji (2010), no livro Cultura Impressa e Educação da mulher no século XIX,

analisa a função educativa por meio d’O Mentor das Brasileiras, jornal impresso entre 1829 e

1832, que transmitia às leitoras informações e procedimentos que alertavam as mulheres de

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como se portar na sociedade, circulando como um meio de comunicação a ensinar os princípios

morais e cristãos que a mulher deveria aprender e seguir obedientemente. Os dois estudos

citados também expõem as condições político-sociais presentes no século XIX, dividido entre

as mudanças que chegavam e o conservadorismo ainda muito presente no cotidiano da

sociedade brasileira.

Pellogio (2009), Oliveira (2008), Martins (2010), Rodrigues (2010), Borges (2013),

estudiosos da educação feminina do século XIX vinculada à obra de alencariana foram

consultados no sentido de contribuir com suas reflexões sobre o universo feminino enfocado

por José de Alencar. Esses autores trouxeram com seus escritos um panorama geral das

condições sociais que geraram, em nome de um modelo de nação político e economicamente

engedrado, um perfil feminino que agradasse aos segmentos dominantes e buscasse estabelecer

uma ordem social, progressista, porém, de caráter conservador.

A análise foi realizada nos termos da pesquisa histórica que busca apontar as conexões

entre as condições materiais e sociais da época histórica nominada e o tipo de indivíduo que daí

emerge, proporcionando uma leitura dos processos educativos vinculados à necessidade de a

elite traçar uma sociedade afinada aos seus interesses e de compreensão da vida.

Desenvolvimento

A literatura romântica brasileira teve destaque no Brasil entre os anos de 1836 a 1881,

neste estilo literário a idealização da mulher e do amor entre um homem e uma mulher ficam

explícitos. As estórias são marcadas pela personificação dessas figuras e situações no contexto

social da época, onde os conflitos e as ordens impostas pela sociedade vão sendo narrados juntos

à estória de amor ora impossível, ora permeada por estratagemas dos amantes e antagonistas.

Os livros conhecidos como “Perfis de mulheres” caracterizam as principais obras do

autor na literatura romântica brasileira. Nestes livros os personagens protagonistas são as

mulheres, compondo romances urbanos, que relatam o perfil da sociedade burguesa e traz o

amor como tema central. Os livros são Senhora, que narra a história de Aurélia, uma jovem

pobre que recebe uma herança deixada pelo avô, e assim é apresentada à sociedade fluminense,

se apaixona por Seixas, que na verdade está interessado em seu dinheiro, e não a reconhece

como a moça pobre que outrora rejeitou. A trama se envolve em um amor por interesse,

vingança e ascensão social, mas tem um final feliz para a protagonista em seu casamento,

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diferente de Lucíola, que mostra a relação da mulher corrompida pela sociedade e seu destino

trágico diante do amor.

O Romantismo se inicia na Europa, no final do século XIX, e vai se espalhando ao redor

do mundo como expressão literária. O berço do romantismo é a Itália, Alemanha e Inglaterra,

mas foi na França que esta literatura ganha maior evidencia e se reproduz na América e por

toda a Europa.

O período romântico retrata a religiosidade, o amor, nacionalismo e as emoções num

quadro de consolidação da sociedade burguesa e aumento significativo da pobreza. No Brasil,

o romantismo chegou logo após a independência política em 1822, abordando traços da nossa

história, exaltando o nacionalismo, O marco inicial do movimento ocorreu com a publicação

da obra Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, em 1836.

José de Alencar retrata o romantismo em suas obras, enaltecendo a natureza, o

regionalismo, a Corte e a sociedade carioca dos oitocentos.

A PRESENÇA FEMININA NA SOCIEDADE BRASILEIRA NOS OITOCENTOS

O entendimento da figura da mulher narrada pelo romantismo de José de Alencar exige

debruçar-se sobre o espaço e as condições ocupadas pelas mulheres na sociedade em questão e

a educação recebida.

A mulher no século XIX é marcada por total obediência à ordem patriarcal e sua

subordinação e devoção ao casamento e aos filhos. Era vista como uma propriedade do pai e

após casada uma propriedade do marido, de forma que era colocada em uma posição de um ser

dependente e frágil, sendo também religiosa, seguindo a moralidade pregada pela igreja.

Seu mundo se definia em ser filha obediente, esposa e mãe devota, não tinha outro

espaço que podia ocupar na sociedade a não ser seu próprio lar, o que a restringia de frequentar

até mesmo a escola. Toda instrução recebida em casa se constituía para fins domésticos,

afastando-as assim de outros assuntos da sociedade. Segundo Áries “Além da aprendizagem

doméstica, as meninas não recebiam por assim dizer nenhuma outra educação” (1981, p.185),

na maioria dos casos.

Outra forte característica da figura feminina do século é a beleza como virtude, um

modelo ideal imposto e copiado das mulheres europeias que viviam na Corte. Podemos

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encontrar tais atributos descritos em uma matéria publicada no jornal O Mentor das Brasileiras

(1830), que dizia:

Para que uma senhora fosse perfeita em beleza, deveria possuir as qualidades a saber:

Três coisas brancas: a pele, os dentes e as mãos.

Três pretas: os olhos, as pestanas e as sobrancelhas.

Três vermelhas: os beiços, as faces e as unhas.

Três longas: o corpo, as mãos e os cabelos.

Três curtas: os dentes, as orelhas e os pés.

Três largas: o peito, a testa, e as pálpebras dos olhos.

Três estreitas: a boca, a cintura e a planta do pé.

Três grossas: os braços, as nadegas e a barriga da perna.

Três finas: os dedos, os cabelos e os beiços.

Três pequenas: os seios, o nariz e a cabeça (apud JINZENJI, 2008, p.174).

Embora essa lista trouxesse o modelo ideal da beleza feminina, a própria excluía boa

parte da população feminina brasileira, formada por mulheres negras, mestiças, mulatas, dentre

outras, o que fazia muitas mulheres desejarem copiar os modelos europeus na moda e

comportamento.

Ao longo do século XIX, o Rio de Janeiro foi se transformando na capital cultural

inspirada nas nações europeias, com grande destaque para a França, de onde se importava

principalmente leitura e moda (JINZENJI, 2008, p. 177).

A EDUCAÇÃO NO SÉCULO XIX E A EDUCAÇÃO DA MULHER NO BRASIL

Em um período marcado pelas oligarquias, a educação feminina torna-se necessária

diante da constante modernização pela qual passava o Brasil junto ao modelo capitalista que se

expande em toda a Europa, o que entra em contradição é como concentrar-se em uma educação

modernizadora e ao mesmo tempo conservadora.

A educação do século XIX, protegida pela Igreja Católica, pregava um ensino

conservador, tanto que os relatos históricos apontam uma educação feminina na qual as

mulheres eram ensinadas a se portar como esposa e mãe e, não sendo alfabetizadas, mantinham

a ignorância acerca de outros assuntos do mundo, atendendo essencialmente a função do

casamento.

Os objetivos da educação católica se direcionavam a duas esferas: a instrução e a

educação. Segundo Manoel:

À instrução caberia municiar a inteligência com as conquistas e descobertas

do saber e da ciência em assuntos meramente humanos. Assim os objetivos

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instrucionais se limitariam a introduzir a educanda no universo das Ciências

Naturais, da Matemática e da Geometria. Á educação caberia a tarefa de

modelar o caráter da educanda conforme os valores morais católicos. Os

objetivos educacionais propunham levar a aluna a absorver esses preceitos

morais e religiosos por meio da pratica da virtude, do conhecimento das

práticas religiosas e da assimilação dos bons exemplos preservados pela

história (MANOEL, 2008. p. 92).

Decorrente da crescente urbanização e dos novos sistemas de produção instaurados na

Europa, chegavam ao Brasil lentamente novas concepções de sociedade, trazendo uma

burguesia que exigia uma restauração social e com isso uma outra relação na cultura e na

educação feminina.

No Brasil, até 1814, as mulheres recebiam sua educação dentro de casa, não

frequentavam escolas, mas a vinda da Corte portuguesa traz consigo a mudança de uma

sociedade que necessita de uma mulher culta para nela se apresentar. A baixa proporção de

meninas matriculadas nas poucas escolas a partir de 1815 resultava da resistência das famílias

de matricularem suas filhas em uma instituição escolar, muitas por razões morais e por

deixarem de ser uma força de trabalho em casa.

Um novo modelo de educação era imprescindível, a educação voltada para o lar não era

mais suficiente, mas sim um ensino em que as mulheres pudessem ler, contar e conversar e

saber um pouco além do que estava ao seu redor. Assim era necessário educar os jovens, mas

não significava uma educação profissional, mas uma educação sociocultural das mulheres na

sociedade.

Com a chegada da Corte e de estrangeiros no país, a figura feminina ganha nova

significação, outras instancias passam também a discutir a mulher, como os jornais que

circulam voltados com matérias para o público feminino. Os artigos endereçados a mulher

relatavam a moda na Corte, a educação feminina, e discutiam doutrinas e moralidades que as

mulheres deveriam seguir. As lições implícitas nos jornais que circulavam na sociedade

visavam assim passar a imagem adequada da mulher ideal: virtuosa e patriota.

Para tal educação a igreja se fazia presente, como as construções de escolas dirigidas

por freiras que educavam e moldavam as mulheres para atenderem ao sistema social vigente no

período em questão. Como exemplo um Projeto de Ensino para a sociedade paulista feitos pelas

Irmãs de São José, em 1859, que se evidencia como:

“Formar as meninas na pratica da virtude que convém ao seu sexo, fazer

com que cedo contraiam hábitos de ordem, modéstia, trabalho; inspirar-lhes

com amor e religião, um grande afeto as obrigações que ele lhe impõe; ornar

o seu espirito com uma instrução apropriada a sua idade e seus deveres que

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um dia terão de cumprir em sociedade...” (PROSPECTO, apud, MANOEL,

2008).

A educação era dada pela Igreja Católica, que formava mulheres para uma sociedade na

qual seu papel estava desde seu nascimento definido, “Assim, a mulher deveria cumprir o seu

papel na sociedade de bom grado para não prejudicar todo o sistema social na qual estava

inserida” (RODRIGUES, 2010, p.2).

O ROMANCE LUCÍOLA

Lucíola foi a primeira obra da trilogia dos perfis de mulheres alencarianas. A narrativa

foi publicada em 1862 por José de Alencar (1829-1877), situado como uma literatura romântica

que contextualiza em um romance urbano e evidencia o momento de mudanças na sociedade e

em seus costumes. Mostrando como eram os valores morais, impostos pela sociedade burguesa

daquela época, na obra o autor mostra o personagem de Lucíola como um exemplo do que não

deveria ser a figura da mulher naquele período. Lucíola é retratada como independente,

excêntrica, com suas próprias vontades, ao contrário de uma mulher submissa, com valores

cristãos, com bondade e romântica. Já os homens eram vistos como corteses, que detinham o

poder para si e se aproximavam de mulheres como Lucíola somente para as suas satisfações da

carne.

O romance é narrado pelo personagem Paulo, que escreve contando em uma carta o

desenrolar da história para uma senhora o romance por ele vivido seis anos atrás com a

protagonista Lucíola.

QUEM ERA LUCÍOLA?

O personagem Lucíola é uma jovem cortesã de dezenove anos, que vive no luxo na

cidade do Rio de Janeiro em 1855, tem em sua vida vários amantes da alta sociedade. Possuía

uma rara beleza, de cabelos longos e escuros, causava cobiça nos homens à sua volta, mesmo

sendo prostituta possuía a imagem de inocência e delicadeza, levava um comportamento

ambíguo, embora se mostrasse interesseira ao dinheiro fácil e devassa em suas ações, o que lhe

trazia um sentimento de culpa por tais ações libertinas, em outros momentos se mostrava uma

figura generosa ao ajudar outras pessoas e seu sacrifício para ajudar a família.“...A expressão

cândida no rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher

revelavam a cortesã franca e imprudente, o contraste inexplicável da palavra e da fisionomia...”

(Lucíola, p. 14.)

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Assim o personagem de Lucíola se mostra em uma vertente onde oscila entre o desejo

de ser a prostituta e o desejo de ser outrora a inocente Maria da Gloria, ambas as mesmas

pessoas. Embora participasse da vida social burguesa, não era vista como um modelo a ser

aceito ou imitado pelas outras mulheres. A sua fortuna, obtida na prostituição abria-lhe portas,

mas não era o suficiente para ser, de fato, considerada uma pessoa a ser incluída nos núcleos

familiares.

A FAMÍLIA DE LUCÍOLA

A família de Lucíola veio de São Domingos para morar na corte, o pai trabalhava nas

obras públicas do Rio de Janeiro e durante dois anos a família viveu feliz:

“A noite toda a família se reunia na sala, eu dava a minha lição de francês a meu mano

mais velho, ou a lição de piano com minha tia. Depois passava o serão ouvindo meu pai ler ou

contar algumas histórias” (Lucíola, p.210.), dizia a heroína, até que em 1850 o surto de febre

amarela atacou a todos: o pai, a mãe, os irmãos e a tia e os levando todos a uma extrema falta

de recursos que impedia a sobrevivência familiar. A partir daí a vida de Lucíola iria mudar

radicalmente.

A TRANSFORMAÇÃO EM LUCÍOLA

Maria da Glória, verdadeiro nome de Lucíola, aos catorze anos vê sua família em um

estado precário; o pai, a mãe, a tia e a irmã doentes com o surto de febre amarela acontecido na

época. Ao ver todos os seus em extrema miséria, não encontra meios dignos para ajudar sua

família e em seu desespero se vê obrigada a receber ajuda de Couto, um rico homem, sem

caráter, que em troca de seus favores usa o corpo de Maria da Gloria. Ao descobrir a prostituição

da filha seu pai a expulsa de casa.

Sozinha, na rua, encontra Jesuína, que a acolhe e a leva consigo, mas a coloca na

prostituição, servindo-a para homens rico. O dinheiro que recebia pela venda de seu corpo era

destinado a um dote para sua irmã menor Ana e socorrer seu pai. Para que a honra de sua família

não fosse manchada, Maria da Gloria, ao perder sua amiga Lucia, troca seu registro com a

falecida simulando sua própria morte e assume o nome de sua melhor amiga que morreu: Lucia.

A DESGRAÇA DA FAMÍLIA E A PROSTITUIÇÃO: A OBEDIÊNCIA FILIAL

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Diante da desgraça que recai sobre sua família com a febre, Lucíola mostra a lealdade

com a família, buscando encontrar uma forma de salvar os seus e acaba vendendo seu corpo a

prostituição para receber em troca condições para restaurar sua família e, após trocar seu corpo

para tal fim, é acusada por seu pai de causar vergonha a família e a expulsa de casa para que

não traga humilhação. Maria da Gloria dá-se como morta, não tem mais contato com sua família

e mostra obediência ao pai por não desejar vê-lo em desonra diante da sociedade por ter uma

filha corrompida pelo pecado. O personagem retrata a obediência a um comportamento onde

faz exatamente aquilo que se espera dela; o afastar-se do contato familiar para não desonrar os

seus parentes e ao pai.

Ela explica a difícil decisão de dar-se como morta e, ao mesmo tempo, ser um alívio aos

familiares o fato: “Morri, pois, para o mundo e para minha família...meus pais choravam sua

filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha restituída” (Lucíola, p.216).

Assim, Lucíola vem ao mundo para ser errante. Levada pela necessidade, maculada pela

sociedade masculina, teve que abandonar o curso natural da vida feminina: casar, ter filhos e

viver honradamente.

O ABANDONAR DE MARIA DA GLÓRIA E A TRANSFORMAÇÃO EM LUCÍOLA

Maria da Gloria é traçada como um personagem frágil, que expõe a ingenuidade, a

pureza, a obediência e a lealdade a família, retratando o perfil esperado pela jovem virgem na

sociedade. Ao ser corrompida, prostituindo-se, Maria da Gloria não se enxerga mais com a

imagem da Virgem Maria, com sua pureza e sua personificação angelical, e assim abandona

sua vida, dando-se como morta e assumindo a identidade de sua amiga falecida, Lucia, vivendo

como uma cortesã de luxo, com vários amantes. A partir dessa nova condição passa a se julgar

indigna de redenção e de encontrar um verdadeiro amor, assim vive em constantes festas, exibe

seu corpo sem pudor a outros homens, travando uma batalha interior para adaptar-se à sua

realidade e aceitar a discriminação da sociedade.

Lucíola, na sua luta interior com a depravação e sua inocência corrompida, sofria com

o preconceito e indiferença da sociedade, ficando a mercê dos acontecimentos da vida. Por ser

religiosa, adepta dos preceitos da fé, Lucia não consegue enxergar para si uma redenção, o que

a impede de encontrar um amor, pois para a sociedade e a igreja não seria aceito um casamento

entre a cortesã e um homem, esse seria condenado por Deus. A única saída para Lucíola seria

a morte, uma forma de redimi-la e ao mesmo tempo servir de exemplo àquelas jovens que se

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deixavam arrebatar pelos chamados de uma vida aventureira, mas indigna aos bons costumes e

moral da sociedade.

Paulo, personagem que narra toda a história, moço pobre, com vinte e cinco anos veio

de Recife para o Rio tentar carreira e se hospeda na casa de seu amigo Dr. Sá, um dos antigos

amantes de Lucíola. Paulo é apresentado a jovem cortesã na festa da Gloria, uma das festas

mais populares da corte naquela época. A primeira impressão que teve de Lucia levou-o a

exclamar “Que linda menina! Exclamei para meu companheiro, que também a admirava. Como

deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso” (Lucíola, p.16).

Mesmo sendo informado de que Lucíola não correspondia à imagem ingênua que

passava, Paulo se apaixona pela cortesã, e busca estreitar laços com a moça, passando então a

frequentar sua casa, oferecendo sua amizade e desfrutando daquilo que Lucíola lhe oferecia;

acompanhava-a em teatros, festas e jantares, embora Lucíola não aceitasse para si o amor de

Paulo, pois acreditava ser indigna de ser amada devido a sua escolha de viver na prostituição.

A ambiguidade do comportamento de Lucíola denota- se na presença de Paulo e com os

demais. Com Paulo, a jovem expõe sua verdadeira identidade; uma docilidade, paixão da vida

que levava antes como Maria da Gloria. Ao se apresentar diante da sociedade, no teatro ou nos

jantares, Lucíola expõe seu lado devasso, provocador, mostrando seu corpo, e afirmando aquilo

que a sociedade vê de sua pessoa: uma prostituta. O seguinte trecho do livro expressa essa

conduta, onde em um jantar na casa do Dr de Sá, alcoolizada fica nua sobre a mesa diante dos

demais convidados:

Lucia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros de flores,

trançou-a nos cabelos, coroando-se de verbena, como as virgens gregas.

Depois agitando as longas tranças negras, que se enroscavam quais serpes

vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e começou a

imitar uma a uma as lascivas pinturas (Lucíola, p. 71).

Lucíola se apaixona por Paulo, mas afasta-se dele por saber que é um amor impossível.

Ao descobrir sua gravidez, a rejeita por ser indigna de conceber devido aos seus pecados

cometidos. Ao ficar enferma Lucia decide vender sua casa com toda a mobília e passa viver em

Santa Tereza, em uma pequena casa. Paulo sai a sua procura e encontra:

Pela primeira vez a mulher submissa, que temia ofender-me, mostrando

ofendida de minhas injustiças, conservava contra mim uma queixa, e assumia

o direito de perdoar, admirando, aceitando, contudo, essa nova situação, como

tinha aceito todas as gradações por que passara a sua existência depois que

nos conhecíamos (Lucíola, p. 210).

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O filho esperado por Lúcia morre em seu ventre e, acreditando ser esse o seu castigo,

Lucia morre devido a uma infecção por se negar a retirar o feto de seu corpo. Antes de sua

morte, Lucíola conta a Paulo sua vida, a lealdade para com os seus, a honra e o respeito pelo

nome de sua família que a levou ao abandono de ser Maria da Gloria e se transformar em

cortesã. Lucíola pede a Paulo que cuide de sua irmã menor, Ana, mantendo a promessa de que

guardaria a irmã para que tivesse um futuro diferente do seu.

Considerações finais

O romance de José de Alencar traz, na leitura das relações sociais da época, o

registro do comportamento feminino, a forma como a sociedade a via e os atributos que deveria

encerrar em si para ser aceita social e moralmente. Primeiramente, deveria ser sustentada pelo

pai, mas, com o casamento, esta responsabilidade passava para o marido, o único lugar que a

mulher se enquadrava era dentro de casa.

Em Lucíola, José de Alencar evidencia a ambiguidade da personagem em travar uma

luta consigo e com o papel feminino estabelecido pela sociedade.

A narrativa feita por Alencar traz o perfil da mulher que sofre o preconceito da sociedade

por não estar num padrão imposto pela igreja: da mulher pura, digna de um amor, e apta ao

casamento. A discriminação e a indiferença da sociedade pela Lucíola prostituta, leva a um

único fim para o personagem: sua morte. Só por meio dela, é que Lucíola se vê livre da

condenação e do castigo de ser uma prostituta.

Ao analisarmos a obra de José de Alencar evidenciamos a educação que as mulheres

recebiam, que se baseava em forma-las para serem apenas donas de casa, esposa, mãe,

sobretudo submissa ao homem, desde seu pai e quando casava ao marido.

O lugar da mulher no espaço social brasileiro no século XIX, como já aludimos

anteriormente, era determinado pelo patriarcalismo, deixando sua margem de decisão com

pouca acessibilidade (Oliveira, 2008).

A mulher traçada por Alencar é a contradição daquela época, ela mostra autonomia em

suas escolhas, cumprindo com o dever de lealdade a família, ao mesmo tempo que não toma

medidas em sacrificar-se pelas ações consideradas improprias por uma mulher de respeito.

Mesmo sendo condenada pela sociedade, e sofrer o preconceito por ser uma prostituta, Luciola

traz uma nova visão de mulher que o autor restitui para aquela época, ainda que fosse por ele

Page 12: LUCÍOLA (JOSÉ DE ALENCAR): O MODELO HISTÓRICO … · 2018-08-03 · As estórias são marcadas pela personificação dessas figuras e situações no contexto social da época,

Universidade Estadual de Maringá, 11 a 14 de junho de 2018. 12

rejeitada e traz à tona os valores morais e religiosos obedecidos frente à autonomia da mulher

em desafiar o modelo de comportamento definido como a única forma de ser às mulheres.

Referências

_________________. Senhora. São Paulo: Edições Pavana, 2012. (Coleção Grandes

Heroínas da Literatura)

ALENCAR, José de. Luciola. São Paulo: Edições Pavana, 2012. (Coleção Grandes Heroínas

da Literatura)

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