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Universidade Federal do Rio de Janeiro MUSEU NACIONAL Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Luana Machado de Almeida Munduruku e Pariwat : Relações em transformação Rio de Janeiro 2010

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MUSEU NACIONAL

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Luana Machado de Almeida

Munduruku e Pariwat:

Relações em transformação

Rio de Janeiro

2010

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Luana Machado de Almeida

Munduruku e Pariwat:

Relações em transformação

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Fausto

PPGAS-MN/UFRJ

Rio de Janeiro

2010

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Almeida, Luana Machado de

Munduruku e Pariwat: Relações em transformação. Rio de Janeiro, 2010

162 f.

Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional – Universidade Federal

do Rio de Janeiro, 2010.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Fausto

1. Etnologia Indígena 2. Munduruku 3. Transformação

I. Fausto, Carlos (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro III.

Munduruku e Pariwat: Relações em transformação

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Luana Machado de Almeida

Munduruku e Pariwat: Relações em transformação

Banca Examinadora:

______________________________

Prof. Dr. Carlos Fausto – orientador

PPGAS-MN/UFRJ

______________________________

Prof. Dra. Aparecida Vilaça

PPGAS-MN/UFRJ

______________________________

Prof. Dr. César Gordon

UFRRJ

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Para meus pais,

Marcos e Elsie.

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Agradecimentos

À Capes e ao Acordo Capes/Cofecub (2007-2011), por meio do Projeto “Arte, Imagem e

Memória”.

Ao meu orientador, Carlos Fausto... por ter acolhido meu desejo de estudar etnologia, mesmo

quando esse ainda era tímido e inseguro; pela sugestão de pesquisar os Munduruku; pela

generosidade, orientação e apoio ao longo desses três anos... a ele, um sincero “muito

obrigada”.

Aos professores do PPGAS-MN, especialmente Márcio Goldman e Luiz Fernando Dias

Duarte, pela formação em teoria antropológica; Bruna Franchetto, pelas lições de lingüística;

Eduardo Viveiros de Castro, pelos cursos de etnologia e pelo pensamento instigante; e

Fernando Rabossi, pelas reflexões sobre o trabalho etnográfico.

À Aparecida Vilaça e José Antonio Kelly, pelo acolhimento em seus cursos e pela inspiração

que seus trabalhos representam para mim.

À Fátima Nascimento, responsável pelo Setor de Etnologia do Museu Nacional, por ter me

recebido no acervo e por ter, gentilmente, cedido imagens digitais de objetos da coleção

Munduruku.

Aos Munduruku, de um modo geral, e em particular à Ademir Kaba, Carlos Cosme e família,

Wenceslau Cosme, Antônio Cosme, Venâncio Puxo, Genildo Kaba, Adonias Kaba, Marisa

Kaba, Felista Bõrõ, Lucia Kirixi, Francisco de Assis Akay, Inocêncio Akay, Albino Saw, Luis

Waro e às famílias que residem na aldeia Tamanqueira.

À Irmã Conceição, Irmã Marta e Irmã Mirna, pelo cuidado e pelo carinho com o qual me

receberam.

Àqueles que me acolheram em Jacareacanga, especialmente dona Dé, dona Penha e Minero.

Às técnicas de enfermagem da Funasa, Eloana e Verônica, com as quais dividi a “casa” e dei

muitas risadas.

Ao agente de endemias da Funasa, Antonilson Macário, pela disposição em ajudar sempre

que possível.

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À Jayne Colevatti, pelas dicas sobre como tecer meu caminho pelas plagas da Mundurukânia

e pelos comentários sempre oportunos e bem humorados.

Aos meus colegas de turma (ingressos em 2007), pelos momentos compartilhados em sala de

aula e, especialmente, fora dela: Flávia, Orlando, Pedro, Silvia, Ariana, Kleyton, César,

Rogério, Wescisley, Raphael, André, Beatriz. À Leonor, Felipe e Leonardo, pela companhia

até o final do segundo tempo.

Aos demais colegas do PPGAS... é impossível nomeá-los todos.

Aos funcionários da secretaria, Xerox e biblioteca do PPGAS, pela paciência e pela

disposição para resolver qualquer “pepino”.

Aos amigos “de fora”, que acompanharam toda, ou parte, dessa história: Brenda, Márcia,

Karla, Gretha, Janaina, Erika, Yuli, Camila, Chloe, Mariana, Taís, Milena e Henrique.

Aos fiéis companheiros desde a infância, meu irmão, Pedro, e meu primo, Lucas.

Aos excelentes revisores: tio Luis, tia Glacy e Marta Daschieri.

Às minhas queridas avós, por compartilharem comigo o “conhecimento dos antigos” e ao meu

avô Esequiel (in memorium), que deixou saudades.

À Eneida, pelas portas (e braços) sempre abertas no Rio de Janeiro; e à Inês, pelos mimos,

mesmo estando longe.

Aos meus pais, Marcos e Elsie, pelo apoio incondicional e por permitirem que a antropologia

fosse para mim uma escolha.

À Bruno Emilio, pelo amor, carinho, cuidado e amizade; pelo aprendizado que é viver a seu

lado; pela companhia e parceria constantes; pela paciência e pelo tudo que é.

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“E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as

próprias realidades?”

Clarice Linspector

“As in all things, the first step toward wisdom is the awareness

that we really do not know what we are talking about”

Robert Murphy

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Resumo

ALMEIDA, Luana Machado de. Munduruku e Pariwat: Relações em transformação.

Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.

Esta dissertação é sobre os Munduruku que residem na região do Alto Tapajós, no estado do

Pará. O objetivo específico é refletir em torno da afirmativa de que estão “virando branco”. A

questão surgiu a partir de um breve trabalho de campo, realizado no final do ano de 2008, no

qual os Munduruku afirmavam com frequência que estavam “virando pariwat (branco)”.

Cinquenta anos atrás, o antropólogo norte-americano, Robert Murphy, já havia registrado esse

mesmo processo, o que nos levou a perceber que não se trata de um movimento

exclusivamente contemporâneo. Sendo assim, tal afirmação suscitou duas perguntas que

vieram a orientar este trabalho: o que os Munduruku poderiam estar dizendo ao falar que

estavam virando pariwat? E, como é possível virar pariwat sem, contudo, deixar de ser

Munduruku? Para responder a essas perguntas, inspirei-me em teorias que buscam pensar as

situações de contato interétnico sob uma ótica alternativa à da aculturação e em trabalhos

etnográficos que analisam a mudança cultural na Amazônia a partir de uma perspectiva

indígena da transformação. Dessa maneira, conciliando informações históricas e dados

etnográficos, as transformações contemporâneas emergem menos como “perda cultural” e

mais como manifestação de um modo característico de ser (e/ou continuar sendo)

Munduruku.

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Abstract

ALMEIDA, Luana Machado de. Munduruku e Pariwat: Relações em transformação.

Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.

This dissertation is about the Munduruku living in the Upper Tapajós region of Pará state,

Brazil. The aim is to reflect upon the affirmation that the Munduruku are “becoming white”.

This question emerged out of a brief period of fieldwork at the end of 2008 when the

Munduruku frequently stated that they were “becoming pariwat (white)”. Fifty years ago the

north-american anthropologist Robert Murphy had registered the same process underway; this

leads us away from the assumption that such a movement is exclusively recent. That being the

case, two questions come to orient this work: what could the Munduruku be saying when they

say that they are becoming pariwat? How is it posible to become pariwat whilst remaining

Munduruku? To respond to these questions, I was inspired by theories of interethnic contact

which avoid recourse to acculturation discourses, and by ethnographic works which analyse

cultural change in Amazonia taking off from indigenous perspectives on transformation. Thus,

using both historical and ethnographic data, contemporary transformations emerge less as

“culture loss” and more as manifestations of a characteristic being (and/or continuing to be)

Munduruku.

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Sumário

Introdução 1

Capítulo 1: Delineando o problema 9

A perspectiva da aculturação 10

Relações de conflito e dominação 16

O lugar da história 20

O papel da alteridade 32

Corporalidade e políticas de indentidade 35

O desafio da indigenização da modernidade 40

Capítulo 2: Imagens na História 44

Primeiros contatos 45

Os caçadores de cabeça 48

Intensificando relações 54

Missão São Francisco do Cururu 56

A chegada do SPI 60

Capítulo 3: Robert Murphy, um etnógrafo entre os Munduruku 64

Savana versus rio Cururu 66

Patri- versus Matri- 72

Perda e transformação 77

Capítulo 4: Virando branco ou... Devir-pariwat 84

Impressões etnográficas 84

A chegada: Jacareacanga 84

Perdendo a cultura: as aldeias do Cururu 86

A escola na Missão 93

Missa e festa de formatura 95

Virando branco ou... Devir-pariwat 97

Os Wari‟ e a experiência de outro ponto de vista 98

Os Yanomami e o “tornar-se napë” 101

Munduruku: devir-pariwat 106

Considerações Finais 116

Referências Bibliográficas 122

Anexos 133

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Anexo I: Relações dos Pólos Base com suas respectivas aldeias e população 134

Anexo II: Região do rio Tapajós 137

Anexo III: Possíveis rotas de migração dos Munduruku – séc. XIX e XX 138

Anexo IV: Região do Alto Tapajós 139

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Lista de Ilustrações

FIGURAS 140

Figura 1: Jovem Munduruku tatuado 141

Figura 2: Mulher e Criança Munduruku 142

Figura 3: Chefe Munduruku 143

Figura 4: Cabeça-troféu Munduruku 144

Figura 5: Cabeça-troféu Munduruku 145

Figura 6: Coifa com cobre-nuca 146

Figura 7: Cinto Munduruku 147

Figura 8: Bandoleiras Munduruku 148

Figura 9: Par de braçadeiras Munduruku 149

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Lista de Ilustrações

FOTOGRAFIAS 150

Foto 1: Residência do Frei Gilberto e “porta de entrada” da Missão 151

Foto 2: “Casa das Irmãs” 151

Foto 3: Habitação indígena – Missão São Francisco 152

Foto 4: Aldeia Missão São Francisco 152

Foto 5: Barco do Careca, o regatão local 153

Foto 6: Distribuição da aposentadoria feita pela Irmã Conceição 153

Foto 7: Luiz Waro, um guerreiro Munduruku 154

Foto 8: Caminho para chegar à Missão Velha 155

Foto 9: Venâncio Puxo, o capitão da Missão Velha 156

Foto 10: O “porto” da Missão Velha 157

Foto 11: Meninas no igarapé 157

Foto 12: Formandos da 8ª série em frente à Igreja 158

Foto 13: Participação na missa de formatura 159

Foto 14: Formandos da 8ª série no barracão da comunidade 160

Foto 15: Formandos da 8ª série 160

Foto 16: Mulheres durante o café da manhã da formatura 161

Foto 17: as meninas... 161

Foto 18: ... e os meninos 162

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Introdução

Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida.

– Clarice Linspector –

Esta é uma dissertação sobre os Munduruku, um povo indígena pertencente à família

linguística munduruku, do tronco Tupi. Sua população atual é composta por cerca de 10.000

pessoas e se encontra dispersa em diferentes regiões nos estados do Pará, Amazonas e Mato

Grosso. A maior parte, contudo, reside no Alto Tapajós, na Terra Indígena Munduruku –

homologada em 2004 e localizada ao sul do município de Jacareacanga, no Pará.1 Um censo

populacional feito pelo DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Rio Tapajós, no primeiro

semestre do ano de 2009, indica 7.280 mundurukus residindo nessa localidade e divididos em

104 aldeias [anexo I].

Apesar de manterem relações pacíficas com os brancos há mais de dois séculos, a

última (e única) etnografia publicada sobre eles data de mais de cinqüenta anos. Trata-se da

tese de doutorado do antropólogo norte-americano, Robert Murphy, o qual, junto com sua

esposa, Yolanda Murphy, esteve na região do Alto Tapajós em meados da década de 50 [anexo

II]. No que diz respeito à produção bibliográfica existe ainda uma rica fonte documental

deixada por cronistas e viajantes no século XIX, e algumas pesquisas de cunho histórico

produzidas recentemente. Em comum com todos esses trabalhos está o fato de os dados

fornecidos se limitarem à década de 60.

A existência de um rico material histórico e etnográfico, aliado à relativa ausência de

dados contemporâneos, contribuiu para a decisão de estudá-los durante o mestrado. Além

deste, dois outros fatores foram fundamentais nessa escolha. Em primeiro lugar, a localização

1 Estimativa fornecida pela Funasa (2002) e retirada do verbete Munduruku, em “Povos Indígenas no

Brasil” – publicação online do Instituto Sociambiental (www.socioambiental.org).

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geográfica, de acesso relativamente fácil, permitiria fazer uma visita a campo ainda durante o

mestrado.2 Apesar de suas limitações (como a extinção de certos rituais, meu

desconhecimento da língua nativa, o desinteresse dos próprios Munduruku no tema

pesquisado e o pouco tempo disponível para trabalho de campo), acreditava que a experiência

de conhecer pessoalmente uma aldeia Munduruku ajudaria a delinear os rumos da

investigação.

O outro fator que pesou na escolha foi ter conhecido Ademir Munduruku, que na

época estava terminando sua graduação em Ciências Sociais, pela UFPA (Universidade

Federal do Pará). Conheci Ademir por intermédio da lingüista Gessiane Picanço, e trocamos

mensagens eletrônicas durante alguns meses. A família de Ademir reside no Alto Tapajós, mas

ele, na época, morava em Belém. O diálogo com um Munduruku que também fosse

antropólogo (ou vice-versa) parecia-me uma oportunidade intelectualmente fértil. Além do

mais, Ademir era um contato “de dentro” e poderia facilitar a negociação com a comunidade.

Sendo assim, no primeiro semestre de 2008, elaborei um projeto com finalidade de

obter permissão para visitar a Terra Indígena Munduruku e, após submetê-lo à avaliação do

CNPq e da FUNAI, aguardei a consulta que deveria ser feita aos próprios indígenas. Neste

projeto concentrei-me no entrelaçamento entre as práticas rituais e a organização social do

grupo.

A idéia surgiu a partir da leitura da bibliografia, onde se destacavam características

como a tatuagem corporal, o uso de adornos plumários e, em especial, as “cerimônias” em

torno do troféu que era feito com a cabeça dos inimigos. Além dos textos de cronistas e

viajantes, utilizei, em especial, a monografia de Murphy, Mundurucú Religion (1958). Nesta,

encontra-se um extenso registro de práticas rituais, mitologia e xamanismo; em suma, um

conjunto de informações compiladas pelo autor como expressão de uma “religião

2 Para o trabalho de campo, contei com o apoio financeiro do Projeto “Arte, Imagem e Memória”,

desenvolvido no âmbito do Acordo Capes/Cofecub (2007-2011) e coordenado, no Brasil, por meu orientador,

Prof. Dr. Carlos Fausto.

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Munduruku”. Além disso, a descrição de uma organização social complexa parecia destacar-

se do padrão compartilhado por outros grupos Tupi. A existência de aldeias circulares com

uma casa dos homens no centro, a divisão em metades exogâmicas e a segmentação interna

em múltiplos clãs parecia configurar certo “enigma etnológico”, como sugere Menget (1993:

313).

Sabendo que a situação encontrada não se assemelharia àquela descrita na bibliografia,

e tendo como objetivo suscitar memórias e discussões sobre esses temas, preparei um álbum

com gravuras e fotos de tatuagem corporal, plumárias e cabeças-troféus. Algumas destas

imagens foram retiradas de livros e outras foram fornecidas por Fátima Nascimento,

responsável pelo Setor de Etnologia do Museu Nacional – o qual possui uma rica coleção de

objetos Munduruku. Possivelmente, o álbum provocaria lembranças em meus interlocutores e,

dessa forma, renderia dados interessantes – ou, ao menos, um punhado de boas histórias.

No início de outubro de 2008, cheguei à Jacareacanga, cidade de mais ou menos

20.000 habitantes, localizada às margens da Tranzamazônica e porta de entrada para a

Mundurukânia – conforme designou Aires de Casal (1977 [1817]). Tinha em mãos uma

autorização da FUNAI, contudo, condicional à aceitação dos próprios Munduruku. Como já

aguardava a autorização há alguns meses e esta tardava a vir, orientaram-me a solicitá-la

pessoalmente. Ao chegar, a primeira providência foi entrar em contato com a Associação

Pusuru, organização indígena Munduruku localizada em Jacareacanga. Inicialmente, pedi

permissão para ir à Cabruá, aldeia localizada na região chamada de “campos do Tapajós” e

conhecida ainda hoje como uma das “mais tradicionais”. Conversei com algumas lideranças

da região que, preocupados com as intenções do meu trabalho e apreensivos em permitir meu

acesso ao “conhecimento dos antigos”, negaram meu pedido.

Diante dessa recusa, abandonei a idéia de ir para Cabruá e solicitei autorização para a

Missão São Francisco, aldeia fundada há quase um século por missionários franciscanos.

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Dessa vez, contei com a ajuda de Ademir, que estava em Jacareacanga e interveio junto a seu

tio, uma liderança importante na Missão. Poucos dias depois, embarquei em uma voadeira

rumo ao rio Cururu, um dos afluentes do rio Tapajós. Permaneci cerca de dois meses na aldeia

e, nesse período, muita coisa mudou no que diz respeito ao projeto inicial.

Quando me questionavam sobre o porquê de estar ali, respondia que desejava saber

como eles viviam, contava-lhes que sabia um pouco sobre os Munduruku, mas eram

informações muito antigas – queria saber o que era importante para eles nos dias de hoje. Os

comentários ao meu discurso bem intencionado eram sempre em tom de lamentação: “ah, não

vivemos mais como antigamente, estamos virando pariwat (branco; não-índio)”. O álbum que

carregava comigo de fato despertou bastante interesse, mas não exatamente da forma

esperada. Nos primeiros dias, era comum que as pessoas se juntassem para olhar as gravuras

e, nesses momentos, faziam muitos comentários, sempre na língua munduruku. No entanto,

em seguida, quando eu perguntava o que haviam dito, costumavam me dizer apenas que “nós

não fazemos mais essas coisas não, isso é tudo coisa dos antigos”.

Esse tipo de afirmação tornou-se constante e o tempo todo ouvia como os Munduruku

estavam perdendo sua cultura, sua língua e seus costumes. “Os jovens só querem saber de

coisas de pariwat”, reclamavam os mais velhos. Contudo, em paralelo a esses comentários,

afirmavam a importância de se conhecer a “tradição”, saber como viviam os antigos, manter a

língua e ensiná-la na escola. O álbum parecia funcionar também nessa direção, pois se tratava

de um registro de como eram as “coisas dos antigos”. Lembro-me de um dia quando, olhando

a foto de um cocar, um grupo de pessoas chegou à conclusão de que o cocar que a maioria dos

homens utiliza nas comemorações dos dias atuais não é “verdadeiramente Munduruku”, pois

tem as penas para cima ao invés de serem rentes à cabeça. Apenas uma pessoa ou outra

possuía o “cocar de verdade”.

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A partir dessa breve experiência de campo, o interesse da pesquisa direcionou-se

progressivamente para o relacionamento estabelecido entre os Munduruku e o “mundo dos

brancos”, seja através das mercadorias, da escola, dos funcionários da Funasa ou das visitas

periódicas à cidade. Tal preocupação conduziu-me ao outro livro de Murphy, Headhunter´s

Heritage (1978 [1960]), o qual havia deixado em segundo plano por conta do privilégio dado

ao Munduruku Religion. Fruto de sua tese de doutorado, nele o autor aborda o processo de

mudança social e econômica pelo qual os Munduruku vinham passando desde o início do

século XX. Já nessa época, Murphy registrara o mesmo processo de transformação que seria

encontrado cinquenta anos mais tarde, pois, assim como hoje, os Munduruku já afirmavam

estar virando pariwat (1978 [1960]: 147). Essa constatação levou-me a questionar o que os

Munduruku poderiam estar dizendo ao afirmar que estavam “virando branco”, pois não

parecia tratar-se de um movimento exclusivamente contemporâneo e sim de um processo que

se desenrola há pelo menos meio século; um “virar” onde nunca se atravessa efetivamente

para “o outro lado”. Tudo se passa como se “virar pariwat” fosse um modo de ser (e/ou

continuar sendo) Munduruku.

Assim, ao escolher o “virar branco” como tema da dissertação, surgiram outros

questionamentos, tais como: quem é índio e quem é branco? O que é ser índio? Como

identificar uma pessoa ou um grupo como indígenas? Ou ainda, se é possível “virar branco”, é

possível também “virar índio”? Existiriam diferenças e/ou semelhanças entre esses dois

processos? Apesar da pertinência destas questões (especialmente na produção de laudos

antropológicos, processos de demarcação de terra ou assistência governamental), o objetivo

do presente trabalho não é lidar diretamente com elas, muito menos fornecer-lhes uma

resposta. No âmbito desta dissertação, o foco principal foi entender como o processo de

contato poderia ser compreendido a partir do “mundo vivido” Munduruku.

No primeiro capítulo, busquei mapear as principais correntes teóricas que abordaram o

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contato entre índios e brancos nas terras baixas da América do Sul. A intenção foi expor

diferentes leituras de um mesmo problema e, para isso, reuni uma variedade de autores,

situações etnográficas e interpretações, dando ênfase àqueles com os quais mais me identifico.

De um modo geral, o objetivo desse capítulo foi mostrar a possibilidade de enxergar as

mudanças históricas por um viés da transformação; ou, dito de outra forma, uma tentativa de

entender o processo de mudança a partir das sócio-cosmologias nativas. Essa revisão

bibliográfica, por sua vez, teve a função de fornecer uma base teórica para a discussão

empreendida nos capítulos seguintes.

No segundo capítulo procurei (re)construir uma “história do contato”, ou seja, traçar

um quadro do desenvolvimento histórico das relações de contato. A exploração dos rios

Tapajós e Madeira teve início ainda no século XVII, com as viagens de reconhecimento e a

instalação das primeiras missões jesuítas. No entanto, apenas no século seguinte a região do

Alto Tapajós passou a ser desbravada. Desse período, predominam relatos de cronistas e

viajantes naturalistas, como Spix e Martius (1976 [1817/1820]), Tocantins (1877), Hartt

(1885) e Coudreau (1977 [1897]). Com o boom da borracha, na segunda metade do século

XIX, a ocupação dos brancos acelerou-se mas, ainda assim, uma parte da população

Munduruku permaneceu relativamente “isolada” nas regiões interioranas do Alto Tapajós.

Seguindo o fluxo da colonização, o século XX presenciou uma ocupação progressiva da

região por parte dos brancos e o contato, antes intermitente, consolidou-se em um cenário de

intensas relações interétnicas.

O terceiro capítulo teve como objetivo apresentar ao leitor a obra do antropólogo

Robert Murphy. Além das duas monografias acima citadas (Headhunter‟s Heritage e

Munduruku Religion), o autor publicou artigos sobre temas diversos e um livro, escrito em

parceria com sua esposa, Yolanda Murphy, no qual analisa as relações de gênero na sociedade

munduruku, dando ênfase ao papel das mulheres. O objetivo foi colocar à disposição do leitor

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um conjunto consistente de informações etnográficas e, simultaneamente, fazer uma leitura

crítica das teses apresentadas pelo autor. Como dito anteriormente, um dos focos da pesquisa

de Murphy foi o processo de mudança pelo qual os Munduruku vinham passando. Cinquenta

anos depois, encontrei–me estudando o mesmo tema, mas buscando conferir novas

interpretações àquele cenário que Murphy havia identificado como sendo de “progressiva

deterioração social” (1978 [1960]: 2)

É necessário salientar que o terceiro capítulo não teve como propósito criticar a obra

de Murphy, tampouco desprezar a preocupação que ele manifestou quanto ao destino do povo

munduruku. Passado tanto tempo, seria fácil e cômodo simplesmente olhar para trás e mostrar

que suas “previsões” estavam erradas – os Munduruku continuam existindo como um grupo

etnicamente distinto e tem, inclusive, apresentado significativas taxas de crescimento

demográfico. Além de pioneiro, o trabalho de Murphy deve ser valorizado pelo que continua

sendo ainda hoje: a fonte de dados etnográficos mais completa e rica sobre os Munduruku. No

entanto, decorridas cinco décadas, é possível fazer uma releitura desse trabalho, apresentando

tanto suas limitações quanto os pontos que poderiam, dado o atual desenvolvimento da

etnologia amazônica, ser analisados sob outra perspectiva.

Sendo assim, no capítulo seguinte, busquei interpretar a relação dos Munduruku com

os brancos a partir da minha experiência entre eles. O capítulo divide-se em duas partes. Na

primeira, há uma breve descrição da viagem que fiz à Mundurukânia, no final de 2008; trata-

se antes de impressões etnográficas que de análises propriamente ditas. O objetivo dessa

descrição é compartilhar com o leitor as razões pelas quais decidi estudar a relação entre

Munduruku e pariwat. Em seguida, analisei os trabalhos de dois antropólogos que,

trabalhando com povos em localizações geográficas e com histórias de contato bastante

diversas, dedicaram-se a compreender a complexidade por trás do “fenômeno” do “virar

branco” (Vilaça 2006; Kelly 2009). Esses trabalhos, aliados à discussão apresentada no

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primeiro capítulo, serviram de inspiração para tentar compreender a situação atual dos

Munduruku.

Dessa forma, a presente dissertação buscou abrir caminho para outras pesquisas que se

dediquem ao assunto; um tema intelectualmente fascinante e fundamental de um ponto de

vista político. Somente quando entendermos o lugar dos brancos na pluralidade das sócio-

cosmologias indígenas será possível minimizar os equívocos recorrentes, oriundos dessa

relação entre mundos tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes.

Por fim, cabe fazer uma pequena observação. Buscando tornar a leitura mais fluida,

optei por traduzir todas as citações feitas em língua estrangeira. Como em toda tarefa de

tradução, é necessário um esforço para manter o sentido original, mas, inevitavelmente, algo

se perde no caminho. Não há como reproduzir fielmente algo tão subjetivo como o estilo de

escrita de um autor. Sendo assim, e esperando que essa decisão venha a facilitar a vida do

leitor, assumo antecipadamente responsabilidade por qualquer eventual imprecisão.

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Capítulo 1

Delineando o problema

O etnólogo deve, entretanto, ter sempre presente no espírito que as instituições primitivas não são apenas capazes de conservar o que existe, ou

de reter provisoriamente os vestígios de um passado que se desfaz, mas

também de elaborar inovações audaciosas, ainda que as estruturas

tradicionais com isso se transformem profundamente

- Claude Lévi-Strauss -

O contato entre povos autóctones e a civilização ocidental é uma questão que está na

pauta da antropologia desde sua instituição enquanto disciplina o que, por sinal, se deu a

partir do encontro entre esses dois “mundos”. Apesar de ter recebido diferentes inflexões

teóricas, uma preocupação acompanha o imaginário antropológico desde seus primórdios: a

idéia dos “primitivos” ou “selvagens” como um “objeto em extinção” (Sahlins 1997).

Lembremos a preocupação expressa por Malinowski em 1922 ao lamentar que, “embora

atualmente ainda se encontre um bom número de comunidades nativas disponíveis ao estudo

científico, dentro de uma ou duas gerações essas comunidades ou suas culturas terão

praticamente desaparecido” (Malinowski 1976: 15).

De fato, não foram poucos aqueles que sucumbiram ao “encontro”, mas ao observar

essas relações estritamente sob a ótica da extinção e da dominação, os povos ditos tribais se

viram muitas vezes restritos a recipientes inertes de um processo – violento, sem dúvida –

sobre o qual não teriam o menor domínio. Preocupada, com razão, com o destino desses

povos, boa parte da produção antropológica até a década de 80 acabou por tratá-los como

espectadores de uma história que os engloba e os determina, uma história que se restringe à

malfadada “história do contato”.

A chegada dos europeus e as mudanças subsequentes – como o abandono de práticas

tradicionais e a incorporação de mercadorias e valores capitalistas – foram, frequentemente,

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encaradas como um processo de deterioração progressiva, ou seja, um movimento de perda

cultural. O contato representava uma marcha, sem volta, rumo à civilização. Tal movimento,

aliado à recorrente preocupação com a destruição do Outro, acabou por “negar qualquer

autonomia cultural ou intencionalidade histórica à alteridade indígena” (Sahlins 1997: 52).3

No entanto, ao menos no que diz respeito às populações indígenas no Brasil, as últimas

décadas tem nos mostrado que a história não seguiria caminhos tão previsíveis. Diversos

grupos fadados à extinção persistem nos dias atuais como coletividades diferenciadas, e não

são raros os casos em que uma população reduzida a poucas famílias vem experimentando um

crescimento demográfico. Por sua vez, os antropólogos tentaram acompanhar as diferentes

configurações que essa relação foi assumindo, e diversas abordagens foram desenvolvidas

para dar conta dos cenários encontrados.

A perspectiva da aculturação

O modelo da aculturação desenvolvido nos Estados Unidos foi a principal orientação

teórica, até pelo menos o início da década de 50, utilizada para lidar tanto com o processo de

mudança causada pela conjunção de dois, ou mais, sistemas culturais, quanto com a adaptação

seletiva de sistemas de valores em processo de integração. Muita tinta foi gasta buscando

definir o conceito e as maneiras de aplicá-lo, não sendo poucas as controvérsias. As

abordagens variaram desde a necessidade de coleta e documentação dos elementos

considerados puros até o fenômeno da difusão. Apesar dos enfoques distintos, alguns pontos

3 Apesar da preocupação com as consequências desastrosas para os povos nativos diante do contato

com a civilização ocidental, a antropologia tornou-se semelhante ao colonialismo que, justificadamente,

condenava. “A antropologia é talvez a única disciplina fundada no princípio da coruja de Minerva: ela começou

como uma disciplina profissional justamente quando seu objeto de estudo já ia desaparecendo. Mesmo se nem

todos os assim chamados povos primitivos estavam fisicamente morrendo, suas culturas exóticas estavam

certamente se desintegrando (por “aculturação”) sob o assédio da ordem capitalista mundial. Parecia que logo

nada mais restaria a contemplar senão versões locais da “civilização” ocidental. Nesse sentido, a antropologia

originalmente partilhava com os senhores coloniais a mesma crença na inexorabilidade do progresso, ainda que

eventualmente a lamentasse.” (Sahlins 1997: 42, grifo meu).

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unificavam estas pesquisas: uma “crença” na inexorabilidade da civilização e uma

necessidade de identificar os elementos culturais de uma dada sociedade como autênticos e

genuínos, ou fruto de alterações e empréstimos.

Uma das tentativas de elaborar um esquema teórico para o “fenômeno da aculturação”

foi o seminário organizado pelo Social Science Research Council em 1953.4 Neste, os autores

demonstram as nuances envolvidas no processo de mudança aculturativa, revelando uma

formulação mais complexa que a idéia de uma mera transposição dos elementos culturais de

um sistema a outro. Um dos pontos centrais é a constatação da mudança como algo

permanente em qualquer sistema cultural. A existência de um estado de equilíbrio, ao invés de

indicar uma estrutura social enrijecida, apontaria para o fato de que as mudanças são

governadas por uma dinâmica própria. Desta maneira, as modificações induzidas pelo contato

não seriam a transferência de um estado estático para um ativo, e sim uma alteração de

direção na qual as mudanças ocorrem; dito de outra forma, as mudanças passam a ser

orientadas por forças externas, não mais internas (Siegel et all 1954: 984).

Segundo os organizadores do seminário, a dimensão criativa envolvida no processo de

aculturação não permite tratá-lo como uma simples absorção passiva de um sistema por outro,

pois a incorporação de elementos externos ocorre simultaneamente à produção interna de

novos elementos. A aculturação é vista, então, como um processo criativo, mesmo quando

suas conseqüências são um declínio no número e na variedade de elementos pré-existentes

(Siegel et all 1954: 985). Contudo, conforme o processo se desenrola, estes mecanismos

criativos acabam bloqueados e o sistema termina por perder sua autonomia. Mesmo sem uma

conotação fatalista, as conseqüências dessa dinâmica acabam sendo mais destrutivas que

criativas, não sendo raros os casos de sistemas que são conduzidos a uma completa

desintegração.

4 “Acculturation: an exploratory formulation”, American Anthropologist, 1954, pp. 973-1000 –

organizado por Barnett, Broom, Siegel, Watson, Vogt.

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No cenário brasileiro, o paradigma da aculturação exerceu forte influência nos estudos

das populações indígenas. Numa fase pioneira, destacam-se as publicações de Baldus (1937),

Oberg (1949), Altenfelder Silva (1949) e Wagley e Galvão (1961 [1949]), sendo este último

considerado um dos estudos mais completos sobre aculturação de um grupo indígena

brasileiro (Schaden 1964).

Wagley e Galvão (1961 [1949]) identificaram os Tenetehara como uma cultura em

transição, uma cultura que há muitos anos vinha atravessando um processo gradual de

assimilação e que, dentro de algumas gerações, acabaria completamente incorporada àquela

circundante. Uma situação recorrente no encontro entre diferentes sociedades, quando a

distância cultural existente a princípio diminui progressivamente, até que uma seja

completamente absorvida pela outra. Os Tenetehara seriam a expressão de um processo de

mudança cultural resultante do contato entre duas tradições culturais distintas, as quais

reagem, absorvem elementos que não lhe são próprios e os readaptam em harmonia ao seu

todo cultural (Wagley & Galvão 1961 [1949]: 9). Seguindo uma metodologia comum aos

estudos de aculturação, os autores sugerem a identificação de traços culturais que indiquem

mudança e/ou continuidade com práticas do passado – lê-se, pré-contato. No entanto, não

possuindo registros da cultura dos Tenetehara de outrora, acabaram utilizando dados de outros

grupos tupi para tecer suas comparações entre um “antes” e um “depois”. Na ausência de

documentação, a história que se atribui aos Tenetehara é tomada emprestada aos registros

feitos sobre os Tupinambá no século XVI, utilizados como espécie de arquétipo dos

Tenetehara antigos.

Ainda assim, Wagley e Galvão (1961 [1949]) destacam que, apesar das modificações

sofridas, os Tenetehara mantiveram padrões tradicionais que permitiam distingui-los enquanto

cultura e sociedade distintas. No entanto, como também foi assinalado em outros trabalhos da

época, os autores previram que o desenvolvimento de novos meios de comunicação, aliado ao

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crescimento da população brasileira, resultaria em uma intensificação do contato e uma

aceleração progressiva da assimilação; o que resultaria, inevitavelmente, no desaparecimento

dos Tenetehara no espaço de uma ou duas gerações. A transformação dos índios em caboclos

integrados à população rural era vista como um processo inexorável, no qual o destino destes

povos se via restrito a dois caminhos: extinção ou civilização.

Outra pesquisa pioneira que procurou entender as condições e as consequências do

contato entre índios e brancos foi realizada pelo antropólogo norte-americano Robert Murphy,

junto aos índios Munduruku. Segundo Schaden (1964: 54), esta é “talvez a investigação mais

metódica e completa das transformações sofridas por uma cultura indígena do Brasil em

virtude do convívio com representantes da civilização”. Em um de seus livros, Murphy (1958)

analisa as mudanças ocorridas na esfera da religião em sua inter-relação com a estrutura

social, mostrando como a desintegração da organização tradicional e das práticas religiosas

ocorreram paralelamente. Um movimento no qual as instituições que garantiam a coesão do

grupo – como a guerra, o xamanismo e os rituais coletivos – deram lugar a práticas mais

individuais, incrementando o potencial disruptivo interno das aldeias.

Em outro trabalho, no qual examina mais a fundo o processo de aculturação, Murphy

(1978 [1960]) relaciona as transformações ocorridas na estrutura social com uma esfera sócio-

econômica mais ampla – a indústria de extração da borracha. Conjugando dados históricos

com uma análise funcionalista, o autor investiga a dinâmica das mudanças internas e sua

interdependência com a sociedade envolvente (Murphy 1978 [1960]: 178-180). Assim, um

dos méritos de Murphy estaria em buscar entender as mudanças culturais em sua base

estrutural e, ao mesmo tempo, elucidar as condições socioeconômicas que as geraram, ou que

aconteceram paralelamente.

Como sugere Schaden (1964: 153-154), a pesquisa empreendida por Murphy é um

exemplo de como as transformações em um sistema social indígena ocorrem primeiramente

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pela eliminação interna de elementos tradicionais, e não pela adoção de instituições externas.

Nesse sentido, as mudanças tenderiam a se suceder muito mais de dentro para fora do que de

fora para dentro. Numa situação de contato interétnico, a sociedade indígena veria as bases de

sua estrutura e sua coesão social solapadas, ao mesmo tempo em que experimentaria uma

ampliação de seu horizonte social e cultural. Ao invés de viverem fechados em si mesmos,

tais grupos passariam a interagir com a sociedade nacional e a responder às exigências de um

mercado que força o estabelecimento de vínculos e produz uma abertura para o mundo

exterior. Dito isto, uma das principais transformações sofridas pelos grupos ameríndios em

contato com as frentes econômicas nacionais seria a passagem da condição de sociedades

fechadas para a de sociedades abertas, sendo as mudanças uma decorrência deste processo

(Schaden 1964).

Em um artigo escrito para a Cultural Anthropology, Alcida Ramos (1990) sugere que,

ao ser transposta para o cenário brasileiro, a orientação aculturativa recebeu uma inflexão

política. Derivada, em parte, da preocupação com o destino das culturas indígenas que vinham

sendo violentamente excluídas do mapa devido ao avanço das frentes de expansão da

sociedade nacional. A ênfase no contato e nas relações interétnicas refletiria, assim, um

contexto histórico de compromisso político com a defesa dos direitos dos povos estudados,

mesclando atuação política e pesquisa acadêmica.

Um dos expoentes dessa corrente foi o antropólogo Darcy Ribeiro, o qual, seja como

antropólogo, indigenista, funcionário do SPI ou político, sempre atuou em defesa dos povos

indígenas e expressou uma preocupação com o destino dessas populações. Um dos maiores

méritos de seu trabalho foi a publicidade conferida à questão indígena, bem como a

capacidade para sensibilizar um público mais amplo quanto à valorização e à preservação de

tais culturas. O trabalho com diversos grupos, em diferentes condições e com diferentes graus

de interação com a sociedade nacional, possibilitou-lhe observar, ao longo de décadas, o

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impacto da civilização sobre as populações indígenas no Brasil e, dessa forma, elaborar uma

teoria geral a respeito dos processos de mudança sociocultural. Influenciado pelo neo-

evolucionismo e pelos estudos de aculturação norte-americanos, Ribeiro (1982 [1970])

estabeleceu uma classificação para as populações indígenas brasileiras de acordo com o grau

de contato com a sociedade nacional: isolados, contato intermitente, contato permanente e

integrados.

No entanto, Ribeiro (1982 [1970]) recusou a idéia de que a evolução ao longo dessas

etapas conduziria a uma integração absoluta, pois o impacto da civilização desencadearia uma

transfiguração étnica e não uma assimilação plena. Por transfiguração étnica entenda-se o

processo pelo qual as populações tribais em contato com sociedades nacionais persistem

enquanto entidades étnicas, apesar das sucessivas alterações: “um processo geral de passagem

dos grupos indígenas da condição de isolamento à de integração, com todas as suas

consequências de mutação cultural e social e de redefinição do ethos tribal” (Ribeiro 1982

[1970]: 15). Em suma, trata-se de uma transformação que os conduz da condição de índios-

tribais à de índios-genéricos. Uma barreira étnica os condena a permanecerem índios, no

entanto, “índios civilizados”; ou seja, passam a participar da vida nacional, mas mantêm

traços distintivos de uma identidade étnica genérica. Assim, enquanto parte dos estudos de

aculturação se concentra em examinar a difusão e a adoção de elementos culturais, Ribeiro

(1982 [1970]) ressalta a necessidade de se analisar a relação entre as estruturas tribal e

nacional, bem como a maneira pela qual uma se introduz na outra.

De modo semelhante à análise de Schaden, Ribeiro (1982 [1970]) propõe a existência

de um engajamento compulsório que conduz as sociedades indígenas a uma situação de

subordinação, passando de um sistema fechado e auto-suficiente para outro mais aberto, do

qual se torna dependente. No entanto, como bem colocou Sahlins (1997: 54), ao depositar

demasiado peso na presença de forças destruidoras, a variedade de respostas locais se viu,

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muito frequentemente, “dissolvida pelo pessimismo sentimental em uma aculturação

universal”.

Relações de conflito e dominação

Uma alternativa à teoria da aculturação foi proposta por Roberto Cardoso de Oliveira,

que buscou pensar cenários de contato por meio do conceito de fricção interétnica. Crítico das

abordagens culturalistas, Cardoso de Oliveira (1964) desenvolveu um projeto de pesquisa

sobre as relações entre índios e brancos, no qual estas são descritas e analisadas como

relações conflituosas que emergem de um encontro entre duas populações com interesses

opostos, ainda que interdependentes. Sob tal ótica, o contato se apresenta como uma situação

competitiva, na qual imperam interesses contraditórios entre grupos tribais e segmentos da

sociedade brasileira. As configurações de tais situações variam conforme a natureza

socioeconômica das frentes de expansão. Cardoso de Oliveira (1988 [1979b]) denominou-as

como “fricção interétnica”, por se tratarem de sistemas de relações sociais que tem como

essência um conflito estrutural, latente ou manifesto, entre as etnias que o compõem.

Conferindo ênfase às relações sociais, o modelo desenvolvido por Cardoso de Oliveira

(1964: 104) sugere a existência de uma estrutura étnica sob uma estrutura de classes, nas

quais as diferenças da primeira seriam amenizadas na medida em que as diferenças sociais se

tornassem mais agudas. Dessa forma, o processo de contato percorreria diversas etapas, cada

qual manifestando uma determinada consciência de classe. No decorrer desse percurso, os

índios acabariam completamente assimilados pela sociedade envolvente, deixando de

pertencer a uma categoria étnica para ocupar uma posição numa estrutura de classes

(seringueiro, camponês, proletário, etc.). As relações de fricção interétnica seriam assim “o

equivalente lógico (mas não ontológico) do que os sociólogos chamam de „luta de classes‟”

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(Cardoso de Oliveira 1978 [1967]: 85). Na mesma direção, o autor sugere que este processo

conduz a uma progressiva alienação dos índios; o que é, na verdade, apenas um capítulo de

uma alienação mais geral (Cardoso de Oliveira 1964). Apesar de inseridos na ordem nacional,

os índios permanecem considerados membros ilegítimos pela sociedade regional – situação

alterada apenas com a destruição de sua identidade étnica.

Cardoso de Oliveira (1978 [1973]) sugere ainda que a mudança dos sistemas

socioculturais admitiria certas regras, o que permitiria elaborar modelos para diagnosticar

situações e prever, com grau variável de precisão, o desenvolvimento do contato entre índios e

brancos no Brasil. Na tentativa de examinar os rumos desse desenvolvimento, o autor

elaborou um projeto de pesquisa para mapear áreas de fricção interétnica em território

brasileiro e identificar “potenciais de integração” presentes nesses contextos de contato

(Cardoso de Oliveira 1978 [1967]). Esse modelo teria como finalidade identificar os

elementos responsáveis pela integração, além de oferecer esquemas classificatórios capazes

de descrever e analisar a interação entre populações distintas em termos de um sistema de

relações sociais.

Além de mapear as áreas de fricção interétnica, Cardoso de Oliveira (1988 [1979a,

1979b]) demonstrou preocupação quanto ao modo de gerir esse processo; ou seja, o modo de

impedir (ou ao menos amenizar) que as populações indígenas sofressem os efeitos desastrosos

do contato com a sociedade nacional. Para esse fim, o Estado deveria intervir nas relações

entre índios e brancos através de órgãos competentes, regulamentando as relações interétnicas

de forma a garantir a sobrevivência e a perpetuação das populações indígenas, preservando-as

do processo de dominação que as transforma em minorias dependentes e oprimidas. Esta seria

a função tutelar do Estado, na época considerada a única maneira de exercer proteção e

assistência aos povos indígenas, sem com isso pôr em risco a posse coletiva e o usufruto

permanente das terras que ocupam. No entanto, para atingir tais objetivos, a prática da tutela

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deveria assegurar a autonomia e a autodeterminação desses povos, ou seja, minimizar ao

máximo sua intervenção no interior das sociedades indígenas e evitar a imposição de medidas

e parâmetros “civilizatórios” (Cardoso de Oliveira 1988 [1979a]: 44).

O trabalho desenvolvido por João Pacheco de Oliveira Filho veio, de certa forma, dar

continuidade ao projeto de pesquisa de Roberto Cardoso de Oliveira. Sua tese de doutorado,

escrita a partir de pesquisa desenvolvida com os índios Ticuna, no Alto Solimões, teve como

eixo central a relação entre os órgãos indigenistas (SPI e FUNAI) e o grupo indígena (Oliveira

Filho 1988). Sua investigação concentrou-se na função tutelar e na ação protecionista do

Estado brasileiro, bem como nas consequências da implantação de um processo de assistência

e de dominação das populações indígenas. Em seu trabalho, Oliveira Filho (1988: 14)

constatou que a presença de uma proteção oficial do Estado contribuiria para a constituição de

um modo de ser característico dos grupos tutelados, uma indianidade que seria construída e

atualizada em situações históricas específicas. Dessa forma, sua análise do contato interétnico

considera, por um lado, o caráter central do conflito nas relações sociais e, por outro, os

fundamentos internos da dominação como processo social que articula instituições nativas e

coloniais.

Igualmente crítico dos estudos de aculturação, Oliveira Filho (1988) argumenta que

estes, ao se preocuparem apenas com as trocas culturais, com as aquisições e com os

empréstimos existentes em situações de contato interétnico, acabaram ocultando o fenômeno

da dominação. Novamente nos deparamos com a crítica de que, sob essa perspectiva, a

mudança cultural apresenta uma direção geral e única que, no caso das sociedades indígenas

brasileiras, se manifesta como uma progressiva descaracterização cultural decorrente da

absorção de crenças e costumes dos brancos. “Limitando a atenção a focalizar o grupo tribal e

suas reações, ignorando-se as suas potencialidades, suas elaborações e sua capacidade de

interferir e reinterpretar uma situação de contato, tal tipo de antropologia se enclausura em

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rígido esquema analítico” (Oliveira Filho 1988: 32).

No entanto, nos anos 90 configura-se um novo cenário. Grupos indígenas

considerados extintos – pois haviam “completado” o processo de aculturação, virando

caboclos ou camponeses – começaram a ressurgir e a protagonizar um interessante processo

de reivindicação étnica. Localizado majoritariamente no Nordeste, esse movimento abrange

tanto a emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já conhecidas, além de

mostrar a inadequação do paradigma da aculturação e da “perda cultural” para a compreensão

de fenômenos contemporâneos.5 “A 'etnologia das perdas' deixou de possuir um apelo

descritivo ou interpretativo e a potencialidade da área, do ponto de vista teórico, passou a ser

o debate sobre a problemática das emergências étnicas e da reconstrução cultural” (Oliveira

Filho 1998: 53). Um cenário que impõe novas questões e exige o desenvolvimento de nova

abordagem.

Dessa maneira, baseado nos estudos sobre contato interétnico de Roberto Cardoso de

Oliveira e inspirando-se em bibliografias inglesa e norte-americana sobre etnicidade e

antropologia política, Oliveira Filho (1998) é pioneiro na abertura dessa nova frente de

estudos para a etnologia brasileira. No entanto, o autor chama atenção para o fato de que não

deseja com isso empreender um tipo de etnologia específica (“etnologia dos índios do

Nordeste” ou “etnologia dos índios misturados”) como contraponto ao modelo dos

americanistas. Seu interesse é buscar caminhos para o desenvolvimento de uma antropologia

histórica, ou seja, empreender análises que situem as sociedades e culturas indígenas do Brasil

em sua dimensão histórica e na condição de sujeitos históricos plenos, inseridos em eixos

espaço-temporais e relacionados a conjuntos específicos de atores, com valores e estratégias

sociais bem determinados (Oliveira Filho 1999).

5 Chamo atenção para o fato de que Oliveira Filho (1998) considera problemática a utilização de termos

como “etnogênese”, “novas etnicidades”, “índios emergentes”, “emergência étnica”, pois estes costumam

incorporar uma metáfora biológica, com seu respectivo ciclo de nascimento e morte. Dessa forma, tem-se a falsa

impressão de que apenas nessas situações existiria um processo de formação de identidade, quando, na realidade,

tal processo é fruto de um desenvolvimento histórico sempre em curso.

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O lugar da história

Escrevendo sobre “o estilo brasileiro de se fazer etnologia”, Ramos (1990) aponta a

existência de duas tendências principais. Em uma delas, a preocupação com o contato e suas

consequências é atribuída a uma geração de pesquisadores que estariam, simultaneamente ao

trabalho acadêmico, preocupados com os efeitos políticos das relações interétnicas (ver

Baldus 1937; Cardoso de Oliveira 1964, 1978; Galvão 1959, 1979; Ribeiro 1982 [1970]). A

outra tendência, por sua vez, teria privilegiado os aspectos internos, como organização social,

xamanismo, parentesco, guerra, entre outros (ver Carneiro da Cunha 1978; Da Matta, 1976;

Overing Kaplan 1981; Rivière 1984; Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro 1979). No

entanto, as pesquisas dedicadas a descrever e compreender o funcionamento de sociologias e

cosmologias nativas, mesmo sem dar destaque às relações interétnicas, foram fundamentais

para uma geração de trabalhos mais recentes que imprimiram novo tom à antiga questão do

contato (Albert 1992; Gordon 2006; Gow 1991, 2001; Kelly 2005, 2009; Lasmar 2006; Vilaça

2000, 2006).

De um modo geral, podemos dizer que a perspectiva histórica adotada pelos estudos

de aculturação desconsiderou a capacidade de agência daqueles envolvidos no processo de

mudança sociocultural. Um olhar que acabou dificultando aos antropólogos enxergar a

criatividade e o dinamismo presente nas sociedades que estavam estudando. A sensibilidade

frente às ameaças sofridas por essas populações, aliada à angústia de vê-las extintas em um

futuro próximo, tornou-se dominante, restringindo a complexidade de suas vidas à luta pela

sobrevivência.

Já nos estudos do contato interétnico, a ênfase na dominação política e na perspectiva

do Estado e dos órgãos indigenistas acabou deixando uma lacuna quanto ao conhecimento de

como funcionavam os sistemas sociais nativos; ou seja, o funcionamento da organização, da

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estrutura social e da cosmologia indígena permaneceu relativamente inexplorado (Viveiros de

Castro 2002a: 156-167). Além disso, a dimensão histórica acabou sendo considerada apenas

parcialmente, ou seja, como “história do contato”. Conforme ressaltou Ortner (1982), a

história foi, “frequentemente, tratada enquanto algo que chega, assim como um navio, de fora

da sociedade. Dessa forma, nunca conhecemos de fato a história de uma sociedade, mas tão

somente o impacto da (nossa) história sobre ela”. Ou, como lembrou Viveiros de Castro

(2002d: 341), é preciso estar atento para o fato de que a história destes povos não começou

em 1492 – ao contrário, em muitos casos ela terminou ali.

No entanto, a partir da década de 80, inspirado especialmente pela abordagem de

Sahlins (2008 [1981]) no que diz respeito às relações entre estruturas sócio-culturais e

transformação histórica, o tema do contato interétnico recebeu uma nova possibilidade de

interpretação antropológica (Viveiros de Castro 2002a: 128). Investigando noções de

temporalidade nativa – bem como sua inscrição na prática, seja ritual, discursiva, cotidiana,

ou outra – e evitando projetar as próprias idéias de história aos povos estudados, começaram a

se produzir etnografias que não apenas contestam, mas também apresentam alternativas à

antiga divisão entre sociedades “puras” e “aculturadas”. Com maior conhecimento sobre

sociologias e ontologias nativas, muitos americanistas buscaram compreender,

etnograficamente, as transformações contemporâneas enfrentadas pelos povos indígenas nas

terras baixas da América do Sul. Invocando Sahlins, podemos considerar que

o problema agora pertinente é o de explodir o conceito de história pela

experiência antropológica da cultura. A história, até há pouco tempo obscura,

de ilhas remotas, merece o seu lugar ao lado da autocontemplação do passado europeu – ou da história das civilizações – por contribuições

próprias e notáveis a uma compreensão histórica. Assim, multiplicamos

nossos conceitos de história pela diversidade de estruturas e assim, de repente, há um mundo de coisas novas a serem consideradas (2003 [1987]:

94).

Apesar de não tratarmos aqui de um grupo homogêneo, dois pontos me parecem unir

esses pesquisadores: uma tendência estruturalista, inspirada na obra de Lévi-Strauss, e uma

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sensibilidade relativa aos diferentes regimes de historicidade. Dito de outra forma, uma nova

visão (ou uma expansão) do conceito de história, aliada à noção de transformação estrutural

proposta por Lévi-Strauss, contribuiu para evidenciar a mudança como intrínseca às

sociedades indígenas e não simplesmente “fruto” do contato (Fausto & Heckenberger 2007).

As transformações que experimentam nos dias atuais podem ser distintas daquelas de outras

épocas, mas, ainda assim, interessa o fato de que as mudanças tem ocorrido ao longo de todo

seu desenvolvimento histórico. Segundo Viveiros de Castro (2002d: 339), dois fatores

contribuíram para uma modificação na forma de conceber as sociedades indígenas: por um

lado, estas deixaram de ser vistas como atualizações mecânicas de princípios estruturais

atemporais; por outro, a mudança social deixou de ser entendida como resultado inexorável de

determinações externas.

Conforme mencionado acima, a obra de Sahlins (2008 [1981], 2003 [1987]) foi

marcante nesse movimento. Partindo do episódio da chegada dos europeus nas ilhas do Havaí,

o autor analisou a relação entre estrutura e história, demonstrando como um evento

aparentemente inesperado poderia ser absorvido pela cultura que o recebe como algo já

previsto na própria cosmologia; algo presente no pensamento mítico. Em estruturas como a

maori ou a havaiana, tudo se passa como se ocorresse um colapso do tempo e do

acontecimento, no qual o passado produz o presente e este reproduz o passado. Percebemos a

existência de uma concepção de tempo não-linear, uma estrutura em constante atualização que

coloca em prática eventos vividos, ou ao menos prefigurados, na arena cosmológica (Sahlins

2003 [1987]).

Contudo, com isso não devemos supor que o sistema seja invulnerável à mudança,

mas sim que se reproduz de maneira flexível, incorporando contingências em uma estrutura

aberta e dinâmica, e percebendo relações míticas em ações históricas (Sahlins 2008 [1981]).

Enquanto o pensamento ocidental postula um antagonismo radical para uma série de

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oposições – como estático x dinâmico, ser x devir, estado x ação, condição x processo –, a

experiência havaiana mostra que estrutura e história, por exemplo, não são alternativas

mutuamente exclusivas. Transpondo sua análise para a ordem cultural, Sahlins argumenta que

a mudança prática é também uma reprodução cultural, que “a cultura funciona como uma

síntese de estabilidade e mudança, presente e passado, diacronia e sincronia” (2003 [1987]:

180).

Ou, em outras palavras, um evento não é somente um acontecimento no

mundo. É a relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. E

apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões procedentes de outros mundos (sistemas), não são essas

propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da

forma que é projetada a partir de algum esquema cultural. O evento é a

interpretação dos acontecimentos e interpretações variam (Sahlins 2003 [1987]: 191).

Dessa forma, se por um lado a experiência humana implica uma continuidade das

categorias culturais, por outro, existe sempre o risco de que estas adquiram novos valores

funcionais e, estabelecendo novas relações, transformem a própria estrutura. Compõe-se,

assim, um jogo no qual mudança e reprodução se implicam reciprocamente; em que a

transformação de uma cultura também é um modo de sua reprodução.

Segundo Sahlins (2008 [1981]), existe uma “estrutura da prática”, ou uma “estrutura

da conjuntura”, na qual as relações e as categorias culturais são postas em xeque e podem

afetar percepções e condutas dos indivíduos, uns em relação aos outros. “Uma alteração nas

relações entre categorias dadas afeta suas possíveis relações com outras categorias. A

estrutura, como conjunto de relações entre relações, é transformada” (Sahlins 2008 [1981]:

75). Dito de outra forma, as pessoas agem conforme seus pressupostos culturais, mas, na

prática, as categorias adquirem novos valores e são redefinidas funcionalmente, o que faz com

que aquilo que começou como reprodução termine em transformação (Sahlins 2008 [1981],

2003 [1987]).

Outro autor que conjugou as noções de estrutura e transformação foi Lévi-Strauss

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(1976 [1960], 2004 [1964]). No entanto, ao preocupar-se com estruturas universais (e

imutáveis) do pensamento humano, o autor acabou alvo de críticas que o acusavam de negar a

história dos povos nativos. Ao concentrar-se nos processos inconscientes de ordenação da

experiência, o método estrutural acabaria relegando o evento histórico a um papel secundário.

Assim, ao privilegiar a sincronia em detrimento da diacronia, o estruturalismo desconsideraria

um elemento central para a compreensão do comportamento e do pensamento humano: seu

desenvolvimento histórico, ou seja, o modo como sociedades e culturas se transformaram no

decorrer do tempo, até se tornarem o que são hoje.

A distinção feita por Lévi-Strauss entre sociedades “quentes” e “frias” parece ter

alimentado boa parte dessas críticas, e algumas leituras acabaram por equacioná-la a uma

divisão entre povos “com história” e povos “sem história”. Temos, por exemplo, a coletânea

organizada por Hill (1988) com objetivo de desconstruir o que caracteriza como “mito das

sociedades frias”; um mito que, segundo o autor, teria criado uma imagem de tais sociedades

como estruturas a-históricas e resistentes à mudança. Na introdução, Hill (1988: 4) ressalta a

importância de pesquisas que buscam mostrar a inexistência de algo como sociedades frias,

sem história, ou quentes, que progrediram para além do mito.

No mesmo volume, Turner (1988) argumenta que falar em sociedade frias, ou

“míticas”, é ignorar sua dinâmica e sua capacidade de mudança, bem como os eventos

históricos presentes na formação e reprodução dessas sociedades. Buscando desvincular-se do

formalismo e da perspectiva sincrônica da abordagem estruturalista, os autores da coletânea

enfatizam a dimensão política e performática da vida social indígena (Fausto & Heckenberger

2007). Segundo Turner (1988), os mitos não seriam simplesmente mecanismos passivos para

classificar e dar sentido aos eventos históricos, mas instrumentos de orientação social e

política, voltados para a ação histórica.

No entanto, a constatação de que as sociedades incorporam as mudanças em sua

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prática ritual e narrativa não contradiz o argumento lévi-straussiano, já que este baseia-se na

idéia de transformação estrutural e não em noções de estabilidade ou rigidez. Como nos

mostram Fausto e Heckenberger (2007), essa mesma distinção inspirou discussões e reflexões

quanto ao modo pelo qual a temporalidade ou os regimes de historicidades nativas estruturam

tanto o trabalho dos antropólogos como a vida dos povos que estudam (ver Overing Kaplan

1977). Conforme Overing Kaplan (apud Fausto & Heckenberger 2007: 9) sugeriu no

Simpósio de 1976 – Time and Social Space in Lowland South America –, a representação do

tempo para os indígenas na Amazônia implicaria na negação, não do tempo em si, mas das

mudanças ocorridas ao longo deste.

O que talvez seja importante perceber é que, ao realizar tal distinção, Lévi-Strauss não

proclama que os povos ditos primitivos não sejam afetados pelo desenvolvimento histórico (e

como poderiam não ser?), mas chama atenção para o fato de que reagem de forma muito

diferente a esta comum condição.

(…) algumas a aceitam de bom ou de mau grado e, pela consciência que

disso tomam, amplificam suas consequências (para elas mesmas e para as

outras sociedades) em enormes proporções; outras (que por este motivo chamamos primitivas) querem ignorá-la e tentam, com uma habilidade que

subestimamos, tornar tão permanentes quanto possíveis estados que

consideram os “primeiros” de seu desenvolvimento (Lévi-Strauss 1970: 269).

Vistas nestes termos, sociedades quentes, como a nossa (euro-ocidental), tendem a

conceber a si próprias através de um desenvolvimento progressivo no tempo enquanto as

frias, como aquelas baseadas no “pensamento mítico” (sociedades indígenas), funcionam de

modo a “anular” a sucessão de eventos históricos.6 Nestas últimas, os acontecimentos

6 Segundo Albert (1992: 151), “as representações de contato abrem um campo privilegiado para a

antropologia, por constituírem uma dimensão crucial da reprodução cultural das sociedades que as elaboram”.

Sendo assim, o autor considera que a história do contato e suas representações devem ser analisadas de maneira

indissociável. Os Yanomami, por exemplo, tiveram que adaptar seu mito de origem dos estrangeiros para integrar

nele a criação dos brancos, o que não se trata tanto de uma transformação mítica, mas sim de hipóteses em

experiência. Através de uma análise dos mecanismos de “incorporação histórica” entre os Yanomam, Albert

(1992: 183) mostra como estes buscam “reproduzir culturalmente eventos e mudanças enquanto atualizações de

um modelo pré-existente, absorvendo-os no movimento aparente de um ciclo de transformações lógicas”.

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históricos são incorporados a sua estrutura de forma que pareçam sempre ter estado ali, o que

é diferente de dizer que elas os “ignoram” ou os rejeitam (Lévi-Strauss 1970: 268).7

Essa famosa distinção remonta à outra, também bastante polêmica, entre história

cumulativa e história estacionária, apresentada em Raça e Historia (Lévi-Strauss 1976 [1952]:

344-349). Apesar de a terminologia permitir tal entendimento, não se trata de estabelecer que

determinadas sociedades, ícones do progresso, mudam no decorrer do tempo enquanto outras

permanecem estáticas. Ao invés disto, o autor questiona se a atribuição de imobilismo a

determinadas sociedades não seria fruto de nossa ignorância quanto aos seus valores e

interesses. As culturas que nos parecem mais ativas são aquelas que se deslocam no sentido da

nossa, enquanto as estacionárias são as que possuem uma orientação divergente.

Segundo Goldman (1999), ao fazer tais distinções, é possível pensar que Lévi-Strauss

“não apenas dirige um ataque verdadeiramente epistemológico ao evolucionismo social (…)

como elabora uma crítica mais profunda ao imperialismo da história em geral”. Assim que, ao

contrário de “excluir” a história, podemos ver na obra do autor um longo diálogo com ela,

seja para diferenciar o método etnológico do método histórico (Lévi-Strauss 1973 [1949]),

seja para reivindicar, paralelo à diversidade sociocultural, a existência de diferentes regimes

de historicidade. De acordo com Viveiros de Castro (1993a), estes regimes diferenciais de

historicidade estariam implicados na divisão entre historicidades frias e quentes. Por regime

de historicidade entenda-se, “os modos concretos de estar no tempo de cada forma sócio-

cultural, e que são tributários de seu modo de produção e reprodução, de sua estrutura

morfológica, de sua cosmologia, sua filosofia da história e de sua 'cultura' em sentido mais

amplo” (Viveiros de Castro 1993a: 25).

7 Em uma entrevista, Lévi-Strauss diz “que as sociedades que o etnólogo estuda, comparadas à nossa

grande sociedade moderna, são um pouco como as sociedades 'frias' em relação às sociedades 'quentes', como os

relógios em relação às máquinas a vapor. Estas sociedades produzem extremamente pouca desordem, aquilo que

os físicos chamam 'entropia', e tem uma tendência a se manter indefinidamente em seu estado inicial, o que nos

explica porque elas nos parecem como sociedades sem história e sem progresso” (Charbonnier 1961: 38, grifo

meu).

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Dessa forma, uma das contribuições de Lévi-Strauss seria justamente pensar a história

do ponto de vista da antropologia, ou seja, da diversidade (Goldman 1999).8 Por sua vez, os

diferentes tipos de historicidade e as distintas formas de habitar o tempo não devem ser

considerados desvinculados de uma determinada estrutura social. Sem se mostrar indiferente

aos processos históricos, a etnologia deve buscar atingir,

(...) além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam

de seu devir, um inventário de possibilidades inconscientes, que não existem

em número ilimitado; e cujo repertório e relações de compatibilidade ou de incompatibilidade que cada uma mantém com todas as outras fornecem uma

arquitetura lógica a desenvolvimentos históricos que podem ser

imprevisíveis, sem nunca ser arbitrários (Lévi-Strauss 1973 [1949]: 39)

Outra contribuição importante introduzida pelo pensamento lévi-straussiano foi a

aplicação do método estrutural à análise mítica. Na tetralogia que forma o conjunto das

Mitológicas, Lévi-Strauss reúne inúmeros mitos de diferentes tribos localizadas no continente

americano, com objetivo de mostrar como se estrutura o pensamento mítico. Dessa forma, o

autor elabora um esquema onde a idéia de transformação e o conceito de estrutura se

implicam mutuamente.9 Separando-os em “grupos de transformação”, Lévi-Strauss (2004

[1964]) demonstra as elaboradas operações de inversão e oposição envolvidas na

transformação de um mito a outro. Não existe uma versão original ou verdadeira, pois um

mito é sempre um desdobramento de outro, de forma que os menores detalhes se mostram

relevantes – oposições e inversões, contradições e repetições, presenças e ausências.

Utilizando o método de transformação estrutural, Gow (2001: 287) demonstra como a

8 Malinowski e Radcliffe-Brown excluíram a análise histórica do pensamento antropológico por não a considerarem propriamente científica, já que lida com um objeto extinto – o passado –, e um dos méritos de

Lévi-Strauss teria sido justamente reintroduzir a importância da história, enquanto método e/ou objeto, na

antropologia. “Se o funcionalismo e o estrutural-funcionalismo haviam excluído da antropologia certo tipo de

história, como condição necessária para estabelecê-la como uma ciência séria, o próximo passo era desenvolver

uma conceitualização especificamente antropológica da história. No meu entendimento, foi isto o que fez Lévi-

Strauss” (Gow 2001: 13). 9 De fato, em sua aula inaugural no Collège de France, Lévi-Strauss (1976 [1960]: 25-26) já havia

chamado atenção para a existência de “uma relação bem estreita entre a noção de transformação e a de

estrutura”. Nesta mesma conferência o autor define estrutura como um sistema regido por uma coesão interna,

coesão que não é revelada em análises isoladas e sim no estudo das transformações, o qual permite encontrar

propriedades similares em sistemas aparentemente diferentes.

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obliteração do tempo, característica do pensamento mítico, é um modo específico de lidar

com a temporalidade. Enquanto, por exemplo, Turner (1988) argumenta que história e mito

são formas complementares de consciência social, a leitura de Lévi-Strauss feita por Gow

(2001: 11) busca mostrar como os mitos são, em si, objetos históricos, “apesar de serem de

um tipo curioso: são objetos históricos cujo propósito é negar a história”.

Em outras palavras, os mitos não podem ser tratados como se fossem “objetos”

estáveis até o advento desestabilizador da (nossa) história. Ao contrário, eles existem

justamente em função da história, existem para anular os efeitos perturbadores que ela

provoca e, dessa forma, manter a coerência e o significado do mundo. A aparência de

estabilidade e a ilusão de serem a-temporais e inabaláveis pelas mudanças do mundo ocorrem

devido ao seu modo de operar transformações incessantemente.10

“Para que o mito possa

'obliterar o tempo' e fornecer a ilusão quente de uma estabilidade fria, ele deve estar em

contínua transformação, sendo, por definição, um objeto histórico que pode ser interrogado

enquanto tal” (Souza & Fausto 2004).

A pesquisa de Peter Gow (1991, 2001) com os Piro é um exemplo de como uma

sensibilidade relativa a diferentes regimes de historicidade oferece um olhar diferenciado para

examinar um cenário de intensas relações interétnicas. Formado na tradição malinowskiana de

trabalho de campo, Gow (1991) aplica um método primordialmente etnográfico para uma

abordagem da história. Se tivesse optado por um método histórico teria, de modo geral, que

buscar informações sobre o passado do grupo para elucidar aspectos de sua organização

contemporânea. Ao invés disto, concentrou seu esforço nos acontecimentos considerados

pelos Piro como significativos para se tornarem o que são, agirem da maneira como o fazem e

viverem a vida que vivem. Evitando abordar a história dos Piro sob a ótica da aculturação ou

do contato interétnico, Gow (1991: 15) preocupou-se em descobrir o que as pessoas ali

10 Chamo atenção para o fato de que os mitos não apenas operam através de transformações, pois um

mito é sempre transformação de outro, mas são eles próprios histórias sobre transformação, histórias de um

tempo no qual homens, animais e plantas comunicavam-se entre si.

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pensavam ser os processos e os eventos significativos da sua história.

Tal postura metodológica permitiu-lhe questionar uma visão de história que divide os

povos nativos em tradicionais e aculturados. Tendo como “objeto” um grupo “aculturado”,

Gow (1991: 284) segue uma orientação teórica voltada para o estudo de povos “tradicionais”,

ou seja, busca encontrar coerência e integração ao invés de incongruências e decomposição –

consideradas fruto da mudança histórica. Segundo o autor, o problema central de análises

como a da aculturação ou a do contato interétnico é justamente a prioridade analítica dada à

história. Nessas orientações, o foco recai sobre a transformação de uma cultura ou sociedade

tradicional sob o impacto de uma cultura ou sociedade estrangeira, e a história desses povos

acaba se resumindo a esse processo (Gow 1991: 14). Pouca atenção é dedicada a explicar

porque as pessoas falam e agem da forma como o fazem, sendo comum atribuir às falas dos

nativos uma espécie de “falsa consciência”, como se não soubessem de verdade o que está

acontecendo.

Servindo-se da análise lévi-straussiana dos mitos, Gow argumenta que “novas

estruturas são transformações de estruturas anteriores, logo, a história não tem um começo. A

própria noção de um ponto único a partir do qual a mudança histórica teve início é uma

ilusão” (1991: 17). Coloca-se a questão de qual seria o significado de história para os Piro, ao

invés de redigir uma história sobre eles. Considerar a historicidade implicada em narrativas

míticas e performances rituais, por exemplo, pode conduzir à descoberta de modos

propriamente indígenas de habitar o tempo. Sendo assim, Gow (1991) propõe que a história

seja incorporada nas análises antropológicas não apenas enquanto fonte documental, ou por

meio do impacto da nossa história nos sistemas sociais nativos, mas enquanto possibilidade de

ver surgir novas concepções de história e historicidade.11

11 Em trabalho mais recente, Fausto e Heckenberger (2007) apontam também para a necessidade de se

compreender os diferentes modos de produzir transformações, os regimes de historicidade que os acompanham,

as maneiras pela qual a mudança e seus agentes são concebidos e a forma como narrativas do passado são postas

para a construção do presente.

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Quando chegou pela primeira vez na comunidade de Santa Cruz, Gow (1991) sabia

que não encontraria um grupo “tradicional”, devido ao longo tempo de contato com os

brancos. Porém, ao invés de buscar resgatar um passado, ou encontrar um fundo original por

debaixo de uma aparente aculturação, o autor dedicou-se a saber como o Piro mantiveram sua

identidade étnica diante do contato – especialmente dado o alto número de casamentos

interétnicos que haviam sido reportados pelos missionários (Gow 1991). De fato, sua pesquisa

mostrou como o casamento entre diferentes grupos estaria relacionado a uma identidade Piro,

pois a união entre pessoas diferentes é o que os constitui como tal. A história, para eles, é o

próprio processo de “tornar-se civilizado”, o modo pelo qual vieram a se tornar o que são:

gente de sangre mezclada (Gow 1991: 252).

Com o idioma do sangue misturado (“of mixed blood”) os Piro demonstram que o

parentesco é produto da história, pois a história é o movimento incessante de contato e

casamento entre diferentes “tipos de pessoa”. História é parentesco, pois tanto a forma quanto

o conteúdo da narrativa histórica são os laços de parentesco.

Meu argumento de que os nativos (Native People) identificam as mudanças

históricas com a criação de parentesco se torna manifesto através do idioma

das “pessoas misturadas” (of 'mixed people'), o qual afirma que o parentesco é em si um produto da história. Concebido como um conjunto de relações

baseadas no casamento e na criação dos filhos, o parentesco é identificado

com as contingências da história e com o contato entre diferentes “tipos de pessoa”. (…) História e parentesco deixam de se relacionar enquanto

domínios separados. Para os nativos (Native People), história é parentesco

(Gow 1991: 204).

Tal identificação entre história e parentesco, segundo Gow (1991: 204), sugere que os

povos indígenas podem experimentar a mudança histórica como central no processo de sua

vida social. Aspectos importantes na vida dos Piro, como narrativas míticas ou xamanismo,

somente fariam sentido no contexto de noções como parentesco ou história, pois estes se

implicam mutuamente e não podem ser considerados campos separados. Não existe um

processo histórico desvinculado da constituição dos laços de parentesco. Em um livro mais

recente, Gow comenta que

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uma coisa ficou clara da análise feita em Of Mixed Blood: os povos

indígenas na Amazônia podem fazer mais coisas com a história, e na

história, do que costumamos imaginar. (…) Eles não apenas se submeteram, sobreviveram ou resistiram. Eles deram a volta por cima e inventaram um

novo modo de viver, coerente com suas experiências históricas recentes e

que lhes parece ser intelectual e emocionalmente satisfatório (2001: 9).

Inicialmente, o autor ficou surpreso pois, ao falarem do seu passado e de como se

tornaram dependentes dos patrões da borracha, os Piro não expressavam a dimensão

desastrosa implicada nessa transição. Segundo ele, era como se uma amnésia coletiva tivesse

apagado de suas memórias toda a exploração sofrida. Ao invés de saudar nostalgicamente o

tempo perdido, os Piro demonstravam desprezo pelo fato de os antigos não saberem “viver

bem” (viviam na floresta, brigando entre si, sem os parentes) e valorizavam a chegada dos

patrões da borracha, pois foi a partir de então que eles começaram a casar-se entre si e

tornaram-se civilizados. Esta situação permitiu ao autor perceber que havia algo importante na

maneira como os Piro habitam o tempo: um modo de estar no mundo que é inerentemente

transformacional e que, tudo leva a crer, está presente antes mesmo do contato com os agentes

coloniais.

Seguindo por esse caminho, Gow (2001: 26-27) emprega o conceito de “mundo

vivido” (“lived world”) para dar conta desse sistema em constante transformação. Tal

conceito lhe permite escapar de noções como cultura ou sociedade enquanto entidades

transhistóricas, ou seja, alheias aos processos pelos quais as pessoas atribuem significado a

suas vidas.12

O “mundo vivido” Piro, expresso neste processo de transformação contínua,

permite conceber um sistema que não está preocupado com transmissão da tradição ou auto-

reprodução idêntica ao longo do tempo. Existiria uma dimensão de continuidade implícita

nesse processo, mas uma continuidade encontrada exatamente em seu aspecto

12 O conceito de “mundo vivido” foi retirado do livro de Nancy Munn, The Fame of Gawa, e denota

uma aproximação com os estudos de fenomenologia. Ao ser utilizado pelo autor, ele expressa uma determinada

postura etnográfica. Não se trata de um estudo sobre “a cultura Piro” ou “a sociedade Piro”, mas um estudo feito

a partir da observação e convívio com um grupo de pessoas, em algumas comunidades Piro, durante um período

que, em uma perspectiva histórica, é bastante curto (Gow 2001: 26).

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transformacional. Por estarem sempre mudando, os Piro continuariam sendo “os mesmos”.13

Ou, como diz o velho ditado francês, plus ça change, plus c‟est le même chose.

Para os Piro, as diferenças experimentadas ao longo do tempo (como no vestuário, no

xamanismo ou na vida ritual) não implicam um problema de continuidade ou mudança, pois

eles sabem que se trata de “transformações de transformações”. “Por exemplo, 'as roupas dos

antigos' e 'as roupas dos brancos' são certamente diferentes, mas elas são versões

transformacionais da mesma transformação que todas as roupas operam” (Gow 2001: 309).

No entanto, tais transformações não fariam sentido caso se postulasse a existência de uma

cultura ou sociedade Piro que fosse estável, no passado, e tivesse começado a se transformar

somente por conta de uma interferência externa, a chegada dos brancos. Reconhecer o caráter

dinâmico destes sistemas implica considerar que sua dimensão criativa não surgiu a partir do

encontro com os brancos. Não existe uma tradição autêntica, pura ou imutável, que

permaneça idêntica a si mesma até o advento desestabilizador da chegada dos europeus e o

começo de uma “era” de mudanças e transformações (Santos-Granero 2009: 492). Assim, ao

invés de conceber um sistema reproduzindo-se ao longo do tempo, e que teria sido

desestabilizado com o contato, deparamo-nos com estruturas sociais marcadas por extrema

abertura e labilidade.

O papel da alteridade

Em um artigo escrito em 1943, The social use of kinship terms, Lévi-Strauss ressaltou

a importância da relação de cunhados (brother-in-law relatioship) entre os ameríndios. Porém,

foi apenas a partir do final da década de 60 que a literatura etnológica passou a extrair as

consequências presentes na intuição do autor, ou seja, a idéia de que o cunhadio ameríndio

13 Isso não significa que, por experimentarem a mudança como inerente ao funcionamento do sistema,

os Piro sejam indiferentes a elas. A sugestão é simetricamente oposta, pois o que esse caráter transformacional

implica é justamente a mudança enquanto necessidade para constituição do “mundo vivido”.

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“funcionaria como dispositivo de abertura do universo do parentesco, servindo para

estabelecer relações sociais mais amplas” (Souza & Fausto 2004: 98). Inicialmente, a

categoria de afinidade surgiu como mecanismo interno de constituição de grupos locais (ver

os trabalhos de Rivière 1969 e Overing Kaplan 1975). No entanto, ela foi, progressivamente,

ganhando espaço enquanto mecanismo relacional que se estende para além do grupo local

(ver Albert 1985) e do conceito de humanidade (ver Viveiros de Castro 1996 e Lima 1996).

Uma série de estudos sobre fenômenos como guerra e canibalismo vieram imprimir à

alteridade e à inimizade uma posição-chave na constituição dos universos ameríndios. Nesse

movimento, o Outro surge como determinação positiva e necessária à constituição e ao

funcionamento dos sistemas sócio-cosmológicos indígenas (Souza & Fausto 2004).

Podemos considerar que esse status conferido à alteridade fortaleceu-se especialmente

a partir da intuição lévi-straussiana de que o pensamento ameríndio opera com base em uma

“abertura ao outro”. Partindo da associação entre um mito tupinambá e um mito Jê sobre a

origem do branco, Lévi-Strauss (1993 [1991]) demonstrou como essa abertura se manifestou

no episódio da chegada dos europeus. Apesar do pouco tempo de contato, os brancos foram

rapidamente incorporados à mitologia indígena, sugerindo que já houvesse ali um lugar que

lhes fosse próprio.14

A criação dos índios pelo demiurgo, por exemplo, teria tornado

automaticamente necessária a criação dos não-índios – uma interpretação que remonta ao

velho problema do dualismo ameríndio, elaborado extensamente pelo autor (ver Souza &

Fausto 2004).

Ainda na mesma obra, o autor analisou uma série de mitos, da costa norte-americana

ao Brasil Central, e verificou a recorrência de um motivo comum: a recusa à gemelaridade, ou

seja, a impossibilidade de uma igualdade entre pares (Lévi-Strauss 1993 [1991]). Partindo

14 Em uma conferência intitulada O eterno retorno do encontro, Ailton Krenak (1999) comenta que

diversas narrativas indígenas previam a chegada dos brancos como o retorno de um irmão que há muito tempo

tinha ido embora. Morando em terras distantes, estes teriam aprendido novas tecnologias e novos modos de se

organizar, mas um dia iriam acabar voltando pra casa.

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deste ponto, constatou que a relação entre identidade e diferença seria bastante distinta nos

pensamentos ameríndio e europeu. O fato de uma metade ser sempre superior à outra indicaria

a existência de “um dualismo em perpétuo desequilíbrio (…) que se expressa de modo

coerente, ora na mitologia, ora na organização social, ora em ambas” (Lévi-Strauss 1993

[1991]: 215). Um “desequilíbrio” que garante o bom funcionamento do sistema e o impede de

cair num estado de inércia; que, em suma, “coloca em movimento a máquina do universo”

(Lévi-Strauss 1993 [1991]: 65-66).

Dessa forma, entender a noção de identidade no pensamento indígena como um estado

provisório e revogável, uma posição inalcançável, marcaria a diferença entre uma etnologia

amazônica de ênfase estruturalista e aquela inspirada por uma antropologia da identidade

(Souza & Fausto 2004: 116-121). Enquanto os europeus estavam preocupados com questões

de identidade (seriam os índios gente como eles?) e buscando fazer do diferente um igual

(vejam-se as inúmeras tentativas de conversão), os índios se mostravam interessados na

relação com a alteridade, na oportunidade de capturar elementos e forças exógenas para

tornarem a si mesmos algo novo e mais potente. Surge assim a possibilidade de entender

como elementos “externos” e “desestabilizadores” podem ser incorporados aos sistemas

indígenas, justamente por fornecerem o dinamismo que lhes é necessário.

Viveiros de Castro (1993b: 184-192) denominou este sistema sócio-cosmológico de

economia simbólica da predação, pois nele “a predação do exterior surge como condição da

produção do corpo social em sua dimensão local, como o elemento de construção das

diferenças e dinamismos internos (sexuais, etários, estatutários)”. Sistemas nos quais as

relações de produção são englobadas pelas relações de predação, ou seja, em que a economia

política do casamento e da alocação de recursos produtivos se submete a uma economia das

trocas simbólicas ligadas à criação e à destruição de componentes humanos (Viveiros de

Castro 1993b: 186).

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Nesse sentido, baseado em uma concepção de sociologia indígena na qual a dimensão

do parentesco se vê englobada por outros circuitos de troca simbólica, o autor distinguiu

diferentes aspectos da afinidade nos sistemas amazônicos, separando-a em três manifestações

básicas: “1. a afinidade efetiva ou atual (os cunhados, os genros, etc.); 2. a afinidade virtual

cognática (os primos cruzados, o tio materno, etc.); 3. a afinidade potencial ou sociopolítica

(os cognatos distantes, os não-cognatos, os amigos formais, etc.)” (Viveiros de Castro 1993b:

167). Esta última, a afinidade potencial, seria a categoria definidora do socius, a alteridade ou

exterioridade que lhe é “interna” e instituinte. Como afirmou Viveiros de Castro,

(...) a afinidade potencial, coletiva ou genérica, abre a introversão localista

do parentesco ao comércio com a exterioridade: no mito e na escatologia, na

guerra e no rito funerário, nos mundos imaginários do sexo sem afinidade ou da afinidade sem sexo. Ela se 'reduz' a uma pura relação, que articula termos

justamente não-ligados por casamento. O verdadeiro afim é aquele com

quem não se trocam mulheres, mas outras coisas: mortos e ritos, nomes e

bens, almas e cabeças(1993b: 179).

Nessa fórmula, os afins potenciais seriam aqueles que fornecem os elementos

essenciais para o estabelecimento de relações simbólicas e político-rituais. Segundo o autor,

configura-se assim uma teoria geral da socialidade amazônica a partir de seu conceito de

parentesco, em que a figura da alteridade desempenha um papel constitutivo na definição das

identidades coletivas (Viveiros de Castro 2002d, 2002e). Seja por meio do xamanismo, da

guerra ou do casamento, o Outro (jaguar, inimigo, mortos, grupos vizinhos ou os brancos) se

apresenta como essencial para a constituição da sociedade (Chaumeil 1985; Taylor 1985,

1993, 1994; Menget 1993, 1996; Viveiros de Castro 1986; Descola 1993; Fausto 1999, 2001;

Vilaça 1992, 2006).

Corporalidade e políticas de identidade

Partindo de sua pesquisa entre os Wari‟, e munida da idéia de corpo como locus do

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ponto de vista, Vilaça (2000) sugere que a transformação experimentada pelos indígenas na

Amazônia se dá mais nos termos de uma metamorfose corporal do que de uma mudança

cultural. Segundo Viveiros de Castro (1996), nas cosmologias amazônicas, as operações de

identificação e de diferenciação se expressam no corpo, por meio de um processo gradual de

adoção de novas disposições corporais, novos hábitos, novos acessórios, nova alimentação,

nova linguagem.15

Sendo assim, ao invés de “aculturação” ou “fricção”, Vilaça propõe uma

“fisiologia do contato interétnico”, pois nesses contextos a mudança operaria, pela

convivialidade e comensalidade, uma transubstanciação (2000: 65-66).16

A adoção de hábitos oriundos do mundo dos brancos não seria uma perda cultural ou

um abandono da tradição, mas sim uma oportunidade de experimentar outro ponto de vista,

assim como ocorre na prática xamânica. Dessa forma, Vilaça nos apresenta uma leitura da

relação dos Wari' com os brancos por meio da metamorfose corporal e do xamanismo. A

capacidade de transformação dos xamãs lhes permite comunicar e estabelecer relações com

outros seres (como animais e espíritos) de forma que, ao “trocar de roupa”, o xamã adquire a

capacidade de transitar livremente entre diferentes esferas do mundo. De maneira similar,

quando os Wari' usam a roupa e adotam a comida dos brancos, não estão, necessariamente,

operando um corte radical. Ao invés disso, Vilaça (2000) sugere tratar-se da expressão de um

modo indígena de “ser Branco” já que, para relacionar-se com eles, é preciso ter “corpo de

branco” – assim como o xamã, ao se relacionar com o jaguar, veste uma roupa-jaguar.

Outra perspectiva para o mesmo problema foi desenvolvida por uma antropologia

centrada em questões de autenticidade e política de identidade. Conklin (1997), assim como

Vilaça (2000), não vê na adoção de vestimenta ocidental um problema de aculturação ou

15 De acordo com o autor, “a metamorfose corporal é a contrapartida ameríndia do tema europeu da

conversão espiritual”, de forma que a experiência indígena da “aculturação” parece relacionar-se mais a “uma

incorporação e encorporação das práticas corporais ocidentais (alimentação e vestimenta, acima de tudo) que à

assimilação espiritual” (Viveiros de Castro 1996: 139). 16 Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979: 22) chamaram atenção para esse ponto ao propor que “a

sócio-lógica indígena se apóia em uma fisio-lógica”; a sociologia indígena seria antes de tudo uma fisiologia

(Vilaça 2000).

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perda de integridade cultural. Para Conklin, que também estudou os Wari', o uso de roupas ou

o abandono de ornamentos nativos deve ser compreendido como uma “adaptação estratégica”,

uma maneira de lidar com as adversidades do contato. “Ao invés de acelerar a destruição da

autonomia cultural indígena, a vestimenta não-nativa pode auxiliar a preservá-la” (Conklin

1997: 717). Apesar de adotarem o uso de roupas em praticamente todas as ocasiões, incluindo

os rituais, os Wari' mantêm alto grau de coesão social e integridade cultural, não possuindo

nenhuma dúvida ou confusão quanto a sua identidade indígena, comenta Conklin (1997).

Uma preocupação semelhante, mas inversa, diz respeito à adoção de roupa

“tradicional” e outras imagens corporais (cocares, colares, pinturas, etc.) como marcadores de

indianidade. Como sugere Conklin (1997), a crescente inserção dos indígenas em um cenário

político, nacional e internacional, torna-os mais vulneráveis às idéias de autenticidade cultural

impostas de fora. É comum, por exemplo, encontrar líderes indígenas que se apresentam (e

representam) usando adornos nativos, cocares e plumárias, para agradar a um público

ocidental. Conscientes dos efeitos de sua aparência frente a um público global, líderes

indígenas passaram a evitar aparecer em público com vestimenta ocidental ou outros

elementos que façam com que sejam vistos como inautênticos. No entanto, Conklin adverte

que a concepção de uma imagem de indianidade que tenha na estética seu marcador de

autenticidade pode acabar revertendo contra a própria causa indígena. Por conta disso, a

autora não se concentra nos significados que as imagens corporais assumem para os índios,

mas nas consequências políticas que podem advir do fato de determinado visual ser adotado

para se conformar à expectativa de “pessoas de fora” (outsiders como Ongs, políticos,

organizações multilaterais, opinião pública, etc.).17

Jackson (1995a) expressa uma preocupação semelhante ao analisar o processo pelo

qual os Tukano, no Noroeste Amazônico, constroem uma imagem sobre “ser índio”, baseada

17 Ver Conklin (2002), sobre as tensões e contradições associadas à internacionalização dos movimentos

indígenas no Brasil; e ver também Jackson (1995b), sobre o esforço de revitalização cultural empreendido por

um grupo de professores Tukano, influenciados por um movimento pan-indígena internacional.

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em critérios provenientes de não-índios. A autora identifica um movimento em que noções

próprias de história e cultura são modificadas para corresponder a uma imagem específica de

indianidade e alcançar maior aceitação por parte dos órgãos governamentais e de outras

instituições. Dessa forma, agentes não-indígenas seriam poderosos catalisadores de mudança,

mas estas não devem ser vistas em termos de autenticidade ou não. Uma cultura não é um

sistema monolítico de pressupostos que são reproduzidos e transmitidos, mas sim um sistema

dinâmico onde as pessoas agem e interagem para se adaptarem à realidade em que vivem.18

Segundo Santos-Granero (2009), tais abordagens (conhecidas sob o rótulo de

“políticas da identidade”) teriam o mérito de reconhecer a agência dos povos nativos nos

processos de mudança. No entanto, o foco nas implicações políticas e no impacto que noções

de indianidade (e autenticidade) fabricadas pelos brancos teriam nas populações indígenas

acabou negligenciando um entendimento de como concepções nativas operam na promoção

das transformações. Compõem-se uma imagem de que os índios agem sempre em resposta a

uma demanda dos brancos, calculando o efeito que determinados comportamentos possam ter

e buscando adaptá-los para satisfazer a uma expectativa externa.

Esforçando-se por escapar dessa abordagem, Santos-Granero (2009) observa que a

adoção de roupas e adornos corporais entre os Yanesha, no Peru, não seria um indicativo de

tradicionalização ou modernização, mas sim um marcador de transformações no “modo de

ser”. A própria idéia de um vestuário “tradicional” esconde uma longa história de interação

com outros grupos. A adoção, ou a rejeição, de uma estética “dos brancos” seria a

manifestação de um princípio híbrido que se encontra, de forma mais ampla, no modo

Yanesha de incorporar elementos externos para se constituir como tal. Dessa maneira, o autor

18 A autora propõe enxergamos a cultura como algo dinâmico, que as pessoas usam para se adaptar às

mudanças. “Pode ser útil olhar para a cultura menos como a pele de um animal e mais como um repertório de um

músico de jazz: as peças individuais são extraídas da tradição, mas sempre ocorre uma improvisação. As

escolhas do músico em uma performance particular levam em consideração as propriedades acústicas do salão,

as qualidades do(s) instrumento(s) tocado, e as (deduzidas) inclinações de outros músicos e do público” (Jackson

1995a: 18).

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reivindica uma imagem dos ameríndios que, ao invés de empobrecidos ou decepcionantes

(pelo fato de terem perdido sua “tradição”), os vê como agentes socialmente ativos, que

utilizam as ferramentas à disposição para manter sua identidade étnica e sua autonomia

política.19

Em uma coletânea organizada por Albert & Ramos (2002), diversos americanistas

também buscaram, a partir de casos específicos, analisar a criatividade simbólica e política

presente em “situações de contato”. Na introdução do volume, Albert (2002: 10) nota que,

“além de reavaliar a diversidade interna das interpretações dos brancos e de seus feitos pelas

sociedades indígenas” é preciso construir um quadro coerente que integre “as dimensões

histórica (processo colonial), política (estratégias de reprodução social) e simbólica (teorias da

alteridade), embutidas tanto nas ações quanto nas interpretações do contato”.

No entanto, os “caminhos” pelo qual uma pacificação às avessas é empreendida

podem variar. Em alguns casos, esta se exprime por meio de uma apropriação dos objetos dos

brancos, que são recontextualizados através de trocas e usos ritualizados (ver especialmente

Howard 2002 e Van Velthem 2002). Em outros, esta é expressa nos discursos políticos e na

construção de imagens de auto-representação (ver, por exemplo, Erickson 2002, Gallois 2002

e Albert 2002). De modo geral, trata-se de apreender o fenômeno da “canibalização do

encontro colonial” para além da noção de resistência – já que esta acaba supondo a existência

de algo como uma “submissão cultural”.

Conforme Albert (2002: 17-18) nos mostra, dentre as principais lições extraídas da

19 Ao analisar a intensificação do contato dos Kayapó com a sociedade nacional e com o capitalismo,

Turner (1993) também enfatiza a capacidade agentiva dos indígenas, mostrando que esta vem acompanhada da

tomada de uma autoconsciência étnica e cultural. Segundo o autor, o desenvolvimento das relações com a

sociedade brasileira trouxe consigo uma nova consciência social – os kayapó passaram a se conceber como

agentes de sua própria história e “a perceber a „cultura kayapó‟ como algo essencial para sua existência como

uma sociedade, como algo que eles devem lutar para defender contras as pressões assimiladoras da cultura

brasileira” (Turner 1993: 62). Uma “nova visão de mundo” que não pode ser vista como simples

“transformação” da cosmologia tradicional, pois, segundo o autor, “isto tende a obscurecer as mudanças

ocorridas na natureza desta consciência social, e em particular a transformação no nível de percepção histórica e

política que acompanhou as mudanças estruturais” (Turner 1993: 63).

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coletânea está a possibilidade de refletir sobre as situações sócio-históricas de contato a partir

das concepções indígenas de tempo, alteridade e mudança, bem como a constatação de que o

campo etnográfico da “indigenização da modernidade” (Sahlins 1997) tem se tornado cada

vez mais abrangente. Este pode abarcar desde a apropriação dos recursos e discursos do

mercado e das instituições de desenvolvimento até os próprios conceitos antropológicos e

escritos etnográficos.

O desafio da indigenização da modernidade

Vimos como as abordagens para entender a relação entre índios e brancos podem

variar conforme as escolhas teóricas, epistemológicas e políticas de cada pesquisador. Sem

pretensão de esgotar todas as possibilidades, busquei apresentar um panorama que oferecesse

diferentes visões sobre um mesmo problema, dando ênfase a autores e leituras com as quais

me identifico. Um dos pontos centrais é a recusa em olhar para a “situação de contato”

enquanto absorção passiva de uma cultura dominante, além de chamar atenção para uma

necessidade de se investigar “as variantes indígenas da digestão do mundo não indígena”

(Fausto 2006: 28).

A idéia de sociedades isoladas, que por muito tempo vigorou no imaginário

antropológico, caiu por terra com o desenvolvimento dos estudos sobre contato entre

sociedades nativas e deixou claro “que o imperialismo não está lidando com amadores nesse

negócio de construção de alteridades ou de produção de identidades” (Sahlins 1997: 133). Ao

abranger diversos registros (sociológicos, cosmológicos, corporais, narrativas míticas, rituais,

entre outros) é possível apreender o processo de transformação como algo endógeno a tais

sociedades, em operação desde antes da chegada dos brancos. A mudança, social ou cultural,

não pode ser atribuída exclusivamente ao contato. Sendo constante, também não deve ser

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entendida como transposição de um estado a outro (“puro” e “aculturado”, por exemplo), mas

sim como um processo de renovação e inovação pelo qual essas sociedades se tornam o que

são.

Contudo, não se trata de ignorar os efeitos e as consequências que a chegada dos

brancos (com seu “mundo” a tiracolo) acarretou na vida dessas sociedades. Trata-se, na

verdade, do oposto: buscar compreender como diferentes formas de se relacionar com a

alteridade contribuíram para a (re)invenção de novos modos de vida. Ou, como bem colocou

Sahlins, perceber que a mudança cultural pode ocorrer “induzida por forças externas, mas

orquestrada de modo nativo” (2003[1987]: 9). Nesse sentido, busca-se ler as transformações

pelas quais esses povos vem passando como parte de seu funcionamento dinâmico, onde as

mudanças se dão – em certa medida pelo menos – em continuidade com um modo de ser e

estar no mundo.

Cabe ainda lembrar que, ao reconhecer essa “autonomia nativa” não devemos

imaginar que os grupos indígenas vão (ou deveriam) manter sua especificidade cultural por

meio de um retorno à condição prévia ao contato com o ocidente e com o capitalismo. Deve-

se notar, por exemplo, que além do desejo pelas mercadorias (como motores de popa, carro,

geradores, eletrodomésticos, roupas, alimentos, etc.), existe um desejo de utilizá-las conforme

sua própria vontade e para atingir seus próprios objetivos (na maior parte das vezes, diversos

daqueles que lhe atribuímos, a priori).20

No entanto, perceber como estes povos encontram diferentes maneiras de lidar com as

forças “globais” não implica ignorar que estas existam. Opressão, violência e preconceitos – e

inúmeras outras infelicidades – compõem um idioma e uma faceta presentes, em algumas

situações de forma mais brutal que outras, nos cenários de interação interétnica. Todavia, no

20 Ao lidar com a incorporação de mercadorias em cenários muitas vezes degradantes (como o uso de

embalagens de pão e armações de guarda-chuva feito pelos Mendi [Lederman apud Sahlins 1997]), cabe ao

antropólogo colocar seus conceitos em jogo, ou seja, estar atento para o fato de que objetos que lhe são

demasiado familiares podem não ter o mesmo significado quando inseridos em outros sistemas.

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âmbito deste trabalho, esses não são os aspectos a ser destacados – apesar de implicitamente

presentes). Como bem colocou Sahlins:

A tarefa da antropologia agora é a indigenização da modernidade. (...) O que

se segue, portanto, não deve ser tomado como um otimismo sentimental, que

ignoraria a agonia de povos inteiros, causada pela doença, violência, escravidão, expulsão do território tradicional e outras misérias que a

“civilização” ocidental disseminou pelo planeta. Trata-se aqui, ao contrário,

de uma reflexão sobre a complexidade desses sofrimentos, sobretudo no caso

daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas presentes condições de existência (Sahlins 1997: 53, grifo meu)

No entanto, há que se questionar os limites deste modelo. Como conceitualizar

situações de rupturas radicais, ou o encontro entre sociedades com estruturas diferentes?

Como não cair na armadilha de, ao buscar valorizar as populações estudadas, dotando-as de

agência, consciência histórica, dinamismo ou outro tema atual, repetir o antigo procedimento

de projetar em outros povos nossas próprias noções culturais (Fausto & Heckenberger 2007)?

Conforme Gordon (2006) demonstrou em sua análise sobre o “consumismo xikrin”, o fato de

haver uma continuidade no funcionamento de um sistema social – a incorporação de dinheiro

e mercadorias como transformação de princípios que regem relações mais amplas no universo

social mebêngôkre, por exemplo – não elimina os efeitos inquietantes dessas mudanças.

Utilizando a metáfora culinária, onde as mercadorias desempenhariam uma função comida

(ao contribuírem para a constituição de uma identidade xikrin), Gordon (2006) aponta a

existência de um “risco do canibalismo” – ou seja, quando a incorporação de um alimento,

não mais dessubjetivado, implica ficar demasiado parecido com o que se come (“o mundo dos

brancos”), corre-se o risco de não reconhecer os parentes e não mais saber viver junto com

eles.

Desta maneira, a busca pelos modos indígenas de produzir transformação escapa da

perspectiva de contaminação ou de perda cultural – a qual atribui a estes povos uma posição

passiva, de vítima –, mas corre o risco de cair num pólo oposto, considerando-os como uma

“máquina lógica capaz de digestão infinita do sistema não indígena” (Fausto 2006). Ao

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comentar a pesquisa de Gordon sobre os Xikrin, Fausto marca a relevância dessa questão,

afinal, “como bem sabem os índios, aquilo que você come acaba por transformá-lo –

transformá-lo em parente, em membro de um determinado coletivo humano, mas também

transformá-lo em espírito, em porcos, em inimigo, em jaguar” (2006: 30).

Em suma, este é, a meu ver, um dos maiores desafios para análises que buscam

entender transformações contemporâneas, como o fenômeno do “virar branco”, sob uma

possível perspectiva indígena (ver Kelly 2005, 2009). Seriam esses sistemas capazes de se

transformar continuamente, canibalizar o outro (mundo) infinitamente, sem nunca tornar-se

parte dele? Sem ambição de esgotar a complexidade do problema, retomarei essa questão no

último capítulo, ao analisar o “caso Munduruku”.

.

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Capítulo 2

Imagens na história

É a tribu mais numerosa, mais guerreira e que melhor trabalha em ornatos

de penas (...) Torna-se ainda notável pela tatuagem bárbara que usa, apesar

de ser a que mais se enfeita nos seus dias festivos

- João Barbosa Rodrigues -

As primeiras informações sobre a presença dos brancos na região dos rios Tapajós e

Madeira datam do início do século XVII. Tratam-se das viagens de reconhecimento, as quais

tinham como objetivo abrir caminhos para a expansão colonial e aprisionar índios para serem

utilizados como mão-de-obra escrava. Consta também que, na segunda metade do século

XVII, os jesuítas instalaram suas primeiras missões na região. No entanto, a exploração

restringiu-se aos cursos inferiores destes rios e as informações que temos sobre o período são

escassas. Somente nas primeiras décadas do século XVIII o rio Tapajós passou a ser

desbravado. Houve uma maior penetração na região interiorana e nas cabeceiras do rio – um

processo que se intensificou no decorrer do século XIX. Dessa época, temos os registros feitos

por missionários, agentes do governo e expedições científicas.

As crônicas e os relatos de viajantes deste período, somadas às pesquisas de caráter

histórico realizadas recentemente, permitem-me apresentar, em linhas gerais, uma história do

contato entre os Munduruku e os brancos. Buscarei mostrar como uma representação dos

Munduruku foi sendo construída, e modificada, conforme o período histórico e as

informações coletadas. Devo advertir, entretanto, que essa história de contato não se estende

até os dias atuais. Existe uma lacuna de informações a partir da segunda metade do século

XX. Mesmo as investigações mais atuais, como Arnaud (1989), Colevatti (2006) ou Ramos

(2000), restringem suas análises até meados da década de 60.

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Primeiros contatos

Nos relatos de viajantes e exploradores dos séculos XVII, XVIII e XIX, encontramos

o registro de inúmeros grupos indígenas na região dos rios Tapajós e Madeira, demonstrando

um amplo povoamento e intenso contato intertribal. Dentre aqueles que se destacam na

literatura temos os Kawahiwa, Apiaká, Mawé e Munduruku, todos pertencendo ao tronco

linguístico Tupi e ainda presentes nos dias atuais (Menéndez 1981/82). A predominância dos

Munduruku na região levou Aires de Casal (1976 [1817]) a designar como Mundurucânia o

território confinado entre os rios Juruena, Amazonas, Madeira e Tapajós. De fato, boa parte do

rio Tapajós e interflúvios entre este e o rio Madeira estava povoada por esses índios, que por

conta da ocupação progressiva dos brancos acabaram se refugiando na região do alto Tapajós,

onde permanecem majoritariamente até os dias atuais (Menéndez 1981/82).

A primeira menção que temos dos Munduruku data de 1768, feita pelo então vigário

geral do Rio Negro, José Monteiro de Noronha, que registrou a existência dos “Muturucu” na

região intermediária entre o rio Tapajós e o rio Madeira (Horton 1948). Passados dois anos,

Ribeiro Sampaio assinalou a presença destes nas proximidades do Tapajós, e em seguida

Ricardo de Almeida Serra (1797) registrou-os como a “nação Mondruci, uma das mais

valorosas e atrevidas de todo o sertão do Amazonas” (apud Menéndez 1981/82: 332). De fato,

os primeiros viajantes parecem ter se impressionado com o tamanho e com a aparência da

guerreira “nação Munduruku”. Conforme relatou Tocantins (1877: 81), a pintura corporal

conferia-lhes efeito de verdadeiros guerreiros vestidos em rigorosos uniformes. De acordo

com o engenheiro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

É notável o pronunciado espírito de sociabilidade, ou antes de nacionalidade,

que, ligando fortemente entre si os indivíduos e as aldêas d‟esta tribu, tem

conservado n‟aqueles desertos fora do contacto e da influencia de nossa civilização, ousarei dizer, a autonomia da republica Mundurucu (Tocantins

1877: 111).21

21 Poderíamos entender a atribuição de um “espírito de nacionalidade” como mero fruto de uma visão

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Esses temidos guerreiros travaram guerra com inúmeros povos vizinhos.

Exterminaram os Jumas e os Jacarés, influenciaram no deslocamento dos Parintintin e dos

Kawahiwa em direção aos rios Juruena e Teles Pires, perseguiram incansavelmente os Mura,

além dos conflitos registrados com os Maués, Arara e Apiaká (Bates 1944 [1852]; Coudreau

1997 [1897]; Hartt 1895; Leopoldi 1979; Murphy 1957; Nimuendajú 1948; Spix & Martius

1976 [1817/1820]; Tocantins 1877). Menéndez (1981/82: 368) aponta para o fato de que

muitos grupos da região se encontravam numa “rede de relações em que comércio, alianças,

situações de denominação-subordinação, guerra e expansão territorial constituíam uma

constante”, e que, portanto, é dentro deste contexto de intensas relações interétnicas e de

mobilidade territorial que se deve considerar a entrada dos brancos na região.

Almeida Serra mencionou que, em 1797, os Munduruku já eram “amigos” dos

portugueses. No entanto, antes de se estabelecer tal “amizade”, houve inúmeras reações à

penetração dos colonizadores. Consta que os Munduruku empreenderam uma série de ataques,

como a investida de 1793 a diversos estabelecimentos coloniais, cobrindo uma área que ia

desde os rios Xingu e Tocantins até os cursos dos rios Madeira e Tapajós (Murphy 1957;

Leopoldi 1979). De acordo com Spix e Martius,

os mundurucus, mundrucus (muturicus), antes do ano de 1770, mal eram

conhecidos no Brasil pelo nome; mas, daí em diante, irromperam em numerosas hordas, ao longo do Rio Tapajós, destruíram as colônias e

tornaram-se tão temíveis que foi necessário mandar contra eles tropas, às

quais se opuseram com grande audácia (1976 [1817/1820]: 263)

Conforme o relato de Leopoldi (1979), em 1795 o então Governador da Capitania do

Rio Negro, Manoel da Gama Lobo d'Almada, conseguiu por um fim às hostilidades e

estabelecer relações pacíficas com os Munduruku. Conta-se que, sem homens suficientes para

etnocêntrica, vinculada às categorias do Estado-Nação, mas esta também nos permite perceber que, mesmo

diante da alta mobilidade e do tamanho da população, existia uma organização social “forte” o suficiente para

garantir uma unidade. Tal fato contraria uma constatação que vigorou durante décadas, a respeito de uma

“fragilidade Tupi” frente ao impacto do contato (Viveiros de Castro 1984/85). Podemos inclusive especular que

foram tais características (uma suposta “nacionalidade” e um hipotético “imperialismo”) que possibilitaram a

perpetuação do grupo, quando muitos de seus vizinhos foram extintos.

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encarar os temidos indígenas, o Governador enviou um grupo de soldados que capturaram

dois índios e os mantiveram por quatro meses presos na fortaleza da Barra do Rio Negro,

atual cidade de Manaus. Ali eles foram muito bem tratados e receberam inúmeros presentes.

Reconhecendo a boa vontade dos captores, os dois índios teriam se comprometido a retornar

e avisar aos outros que os brancos não eram seus inimigos.

As notícias rapidamente se espalharam entre os Mundurucu, de forma que

estes começaram a se aproximar pacificamente (...). Centenas de índios

foram visitar o Governador Almada, sendo que alguns deixavam seus filhos e voltavam, de tempos em tempos, para visitá-los (Leopoldi 1979: 100). LEOPOLD

O interesse em reproduzir este relato não se deve unicamente ao fato de ser uma

“versão oficial” sobre como os Munduruku foram pacificados. Passados quase dois séculos,

encontramos em Murphy (1978 [1960]) a seguinte narrativa:

Nos tempos antigos nossos avôs eram bravos e lutavam contra os brancos.

Estes costumavam subir nossos rios em suas canoas, mas nós sempre os

combatíamos. Um dia, em uma dessas brigas, nossos homens foram embora, mas deixaram para trás dois jovens que haviam sido feridos. Eles foram

capturados e levados para longe. Na próxima vez em que os brancos vieram,

nós estávamos prontos para atacar quando os dois homens capturados levantaram-se da canoa e nos disseram para não fazer nada contra eles,

pois eram nossos amigos. Eles então se aproximaram e nos mostraram

roupas, facas, machados e muitas outras coisas boas que os brancos haviam lhes dado. Os dois índios disseram que se nós déssemos borracha e farinha

para os brancos, também receberíamos todas essas coisas boas. Os mais

velhos decidiram fazer isso e desde então nos tornamos amigos (Murphy

1978 [1960]: 27, grifo meu).

A partir de então, os conflitos teriam cessado e os Munduruku tornaram-se aliados dos

brancos, passando inclusive a operar como força militar para contatar e pacificar outros

grupos indígenas – situação que nos remete ao fenômeno conhecido na literatura como ethnic

soldiering (Ferguson & Whitehead 1999).22

O estabelecimento desta aliança atraiu muitos

22 Ferguson e Whitehead (1999) notam que a intrusão dos estados nacionais nas “zonas tribais”

influenciou na condução das guerras indígenas – tanto intra- quanto inter- étnicas. Os autores não assumem que

tais conflitos não existissem antes do contato com o “ocidente”, tampouco sugerem que este seja “culpado” pela

eclosão das guerras tribais. Ao invés disso, Ferguson e Whitehead (1999) buscam reconhecer que estes conflitos

foram transformados e, frequentemente, incitados e intensificados pelo contato. Neste contexto, ethnic soldiering

seria o uso da força guerreira indígena para atingir interesses geo-políticos coloniais, situação que muitas vezes

teria vindo ao encontro dos interesses nativos.

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índios e possibilitou a construção de vilas e missões.23

Os Munduruku ainda participaram

como colaboradores do governo na Cabanagem (1835-1840) – revolta na qual índios, negros

e mestiços se insurgiram contra a elite política que comandava a cidade de Belém e a

província do Grão-Pará (Hartt 1885; Leopoldi 1979; Menéndez 1992). Como conseqüência

dessa aliança houve uma intensificação nas relações de trocas comerciais, mas apenas com o

boom da borracha, na segunda metade do século XIX (que teve seu auge entre 1879 e 1912),

o processo de ocupação do alto Tapajós acelerou-se e a presença dos brancos se fez definitiva.

É preciso enfatizar que essa aliança não foi sempre recebida de forma pacífica. Se por

um lado ela contribuiu para a expansão do grupo e o denso povoamento na região do Tapajós,

por outro lado, em diversas ocasiões foi conduzida à revelia dos próprios índios que, frente à

ameaça de serem recrutados para trabalhos forçados, refugiavam-se no interior das matas

(Spix & Martius 1976 [1817/1820]: 248).

Os caçadores de cabeça

Como já mencionado, todo o curso do rio Tapajós encontrava-se densamente povoado

pelos Munduruku. Nos relatos dos cientistas alemães, Spix e Martius (1976 [1817/1820]),

encontramos descrições sobre a pintura corporal, a qualidade do trabalho plumário,24

os

modos de guerra e o preparo da cabeça-troféu – além de uma estimativa da população como

23 Segundo Menéndez (1981/82: 361), “a aliança que os Mundurukú realizaram com o branco, a partir

de 1795, fez com que se produzisse uma re-orientação no seu processo de expansão e, a partir daquela data, muitos dos deslocamentos e confrontos levados a cabo foram a soldo de seus aliados portugueses, passando

assim a ser a „vanguarda‟ para a ocupação de todo o setor norte da área Tapajós-Madeira”. 24 A qualidade do trabalho plumário dos Munduruku seria tamanha que, ao lado dos maués, figurariam

como “os mais perfeitos artistas no trabalho de penas” (Spix & Martius 1976 [1817/1820]: 250). Muitos destes

objetos foram adquiridos por viajantes e cientistas e encontram-se atualmente espalhados em museus ao redor do

mundo. O Setor de Etnologia do Museu Nacional, Rio de Janeiro, possui uma ampla coleção de objetos

Munduruku. O acervo dispõe de cerca de 250 peças coletadas em épocas e circunstâncias distintas, sendo a

maior parte proveniente da expedição Langsdorff em 1829 (Nascimento 2009). Para o leitor interessado no

assunto, remeto à tese de Fátima Regina Nascimento (2009), intitulada a “A formação da coleção de indústria

humana no Museu Nacional, século XIX”. Neste trabalho, a autora analisa a formação da coleção etnográfica do

Museu Nacional, integrando-a ao meio social no qual foi coletada, preservada e divulgada.

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algo entre 18.000 e 40.000 índios. Nessa época, encontrava-se em funcionamento uma missão

carmelita, fundada em 1811, que atendia cerca de 1.000 índios Munduruku.25

Segundo os

autores, desde o ano de 1803 “toda a tribo firmou a paz com os brasileiros; várias de suas

grandes aldeias se transformaram em missões e exploram o comércio com os brancos” (1976

[1817/1820]: 264). Na Corografia Brasílica do Pe. Manuel Aires de Casal (1977 [1817]),

encontramos a seguinte descrição:

Os Mundrucus, que costumam tingir o corpo de negro com tinta de

genipapo, são numerosos, apessoados, guerreiros, e temidos de todas as

outras nações, que lhes dão o apelido de Paiquicé, que significaria corta-cabeça; porque costumam cortá-la a todo o inimigo que lhes caiu em poder;

e sabem embalsamá-los de sorte, que se conservam largos anos com o

mesmo aspecto do momento em que foram cortadas. Ornam as suas toscas, e

mesquinhas cabanas com estes horrendos troféus. Aquele que mostra dez, está habilitado para poder ser eleito chefe da horda (Aaires de Casal 1977

[1817]: 325)

Um dos traços que parece mais ter chamado a atenção dos cronistas no século XIX é a

elaborada ornamentação corporal dos Munduruku. Hartt (1885) relata que homens e mulheres

tinham o corpo inteiro tatuado em linhas finas, com a presença de figuras romboidais na parte

superior do peito, além de pintarem (nesse caso apenas os homens) o rosto todo de negro, com

jenipapo [figuras 1 e 2]. A tatuagem era realizada periodicamente ao longo de mais de uma

década (Agassiz & Agassiz 2000 [1865-1866]). Tinha início por volta dos seis anos e sua

conclusão era um indício de que a pessoa estava na idade de casar (Hartt 1885). “Causa

admiração a minúcia com que o doloroso embelezamento é praticado da cabeça aos pés”,

comenta von Martius (Spix & Martius 1976 [1817/1820]: 249). Nos relatos da expedição

Langsdorff (1821-1828) encontra-se referência a uma série de adornos de dança que foram

retratados minuciosamente por Hércules Florence: gorro de plumas, bandoleira, cinto,

25 Presentes na região desde a metade do século XVII, os jesuítas foram expulsos na segunda metade do

século XVIII, após a criação do Diretório dos Índios, lei colonial que regulamentava os aldeamentos indígenas

da província do Grão-Pará. Segundo Almeida (1997), o Diretório foi simultaneamente um plano de civilização

dos índios e um programa de colonização, que tinha um propósito evangelizador. Dentre os objetivos do

Diretório estava a substituição dos missionários por funcionários civis e militares, a criação de escolas para

ensino da língua portuguesa e a transformação dos índios em trabalhadores nacionais.

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braceletes e um bastão de pluma usado pelo chefe [figura 3] (Manizer 1967).

O engenheiro, naturalista e botânico, João Barbosa Rodrigues, também deu destaque à

plumária, tatuagem corporal, trajes rituais, além de uma breve descrição das chamadas “festas

de guerra” (Barbosa Rodrigues 1882: 45). Uma delas seria o pariau-á, cerimônia em honra

aos guerreiros que trouxessem a cabeça de um inimigo. A outra, chamada de pariuate-ran, era

realizada algum tempo depois, quando um cinto confeccionado com os dentes do inimigo

seria entregue, segundo o autor, aos feridos em guerra ou às viúvas dos mortos em combate.26

A terminologia expressa por Barbosa Rodrigues (pariuate = inimigo, ran = cabeça do

inimigo) desperta interesse. Sabemos que pariwat significa inimigo (Murphy 1957; Gomes

2006), além de ser o termo utilizado para designar “estrangeiro”, “não-munduruku” e brancos

(Murphy 1978), enquanto 'a quer dizer cabeça (Crofts 1985; Gomes 2006). Sendo assim,

podemos sugerir que a festa de pariua-á seja uma possível inscrição de pariwat'a, ou seja,

“cabeça do inimigo”. Bates (1944 [1852]) também menciona que os Munduruku se

mostravam temerosos de ataques dos parauatés, que o naturalista entendeu como sendo “uma

tribu de selvagens com quem sempre os Mundurucús estiveram em guerra”. No entanto, a

semelhança que esta denominação guarda com pariwat nos remete à idéia de que não se

tratava necessariamente de uma tribo específica, mas sim de um inimigo genérico.

O ataque aos inimigos tinha um duplo objetivo: capturar suas cabeças e trazer cativos.

Mulheres e crianças de tribos inimigas eram tratadas como Munduruku natos – pintados “à

moda da casa”, as mulheres recebiam maridos e as crianças pais adotivos (Aires de Casal

1976 [1817]; Horton 1948). Tocantins (1877) menciona que, ao sair para o combate, os

guerreiros declaravam a necessidade de capturar uma mulher para se casar, ou trazer um filho

para a irmã, mãe ou esposa. No entanto, era em torno da cabeça-troféu que se desenrolava o

extenso ciclo ritual. No decorrer do ataque os habilidosos guerreiros cortavam a cabeça do

26 Os dados relacionados ao destino do cinto contrastam com aqueles fornecidos por Murphy (1958), no

qual consta que este permanecia guardado na casa do guerreiro que o havia confeccionado.

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inimigo com uma faca de bambu e seu preparo começava ainda no campo de batalha.

Retiravam-lhe o cérebro e as partes moles, deixavam de molho em óleo de andiroba e, por

fim, colocavam-na para secar durante vários dias, ao sol ou exposta à fumaça (Bates 1944;

Tocantins 1877). Elaborada cuidadosamente, o guerreiro carregava-a sempre consigo presa no

topo de um cajado do qual não se desvinculava nem para dormir (Hartt 1885). Era enfeitada,

recebia pintura facial e ornamentos de penas [figuras 4 e 5]; os dentes eram retirados e com

eles se confeccionava um cinto. Ao “conquistar” uma cabeça, o matador e sua esposa eram

obrigados a seguir procedimentos rituais rigorosos e manter uma série de abstinências

(Murphy 1957).

Menget (1993) comenta que essas restrições configuram o ritual como uma “super-

couvade” – além da abstinência sexual, o guerreiro, Dajeboiši (“mãe do queixada”), não podia

caçar, nem sua esposa podia cozinhar. O aspecto curioso é que não havia, aparentemente,

nenhuma criança envolvida, fato que permitiu ao antropólogo tecer uma interessante análise

sobre a associação entre o troféu e a reprodução do grupo.

A cabeça decorada acompanhava a captura de crianças que eram adotadas,

mas também transferia a potência fecundante do matador para o grupo, da

mesma maneira que favorecia a reprodução da caça (agradando à 'Mãe dos espíritos de caça') (Menget 1993: 316).

Através de uma ligação entre cabeças dos inimigos, espíritos e animais de caça, os

homens se tornariam “mães” – num contexto ritual cuidavam de seus troféus como se fossem

filhos e, dessa maneira, asseguravam o sucesso na caça de seus companheiros. “A relação de

geração espiritual (mãe/filho) atravessa todo o campo das representações mundurucu. Existem

assim Mães dos animais (de caça): Mães da anta, Mães do queixada, Mães do veado, Mães do

macaco, Mães do peixe” (Menget 1993: 318).

A importância da cabeça-troféu, bem como o tratamento especial que recebia, é

marcada no relato de Tocantins (1877). Em 1875 o engenheiro partiu de Belém e,

atravessando Santarém e Itaituba, adentrou na região do Alto Tapajós. Acompanhado por

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alguns índios Maués, outrora inimigos dos Munduruku, o engenheiro seguiu até o rio Cadiriri.

Ali, deixaram as canoas e seguiram por terra até uma das aldeias localizadas no interior,

considerado na época como habitat tradicional dos Munduruku.

Ao chegar à aldeia Necodemos, Gonçalves Tocantins conta que foi recepcionado por

cerca de oitenta guerreiros, todos bastante curiosos e receptivos.27

A aldeia, localizada no alto

de uma colina, na região de campina, contava com uma casa dos homens no centro (eksa),

onde o engenheiro foi acomodado, e cinco casas ao redor, onde habitavam as mulheres e as

crianças. Ali, Tocantins recebeu de presente, em troca de uma espingarda e outros utensílios, a

cabeça mumificada de uma mulher Parintintin – tidos como os inimigos “preferenciais” dos

Munduruku.28

Este presente não lhe foi entregue sem remorso, pois conforme relata, seu dono

estava como louco pela cabeça Parintintin. Não a deixava um só momento.

Quando chegou a occasião de eu retirar-me de Necodemos, como adiante

direi, elle, bem como doze outros índios, acompanhou-me durante oito dias de viagem, através das matas, até as cabeceiras do Caderery. Durante este

trajecto, quando se approximava a noite e tinhamos de pousar, o índio

fincava em terra, junto á sua rede, uma haste que trazia expressamente para

isto, e sobre ella suspendia a cabeça, como em um cabide, cobrindo-a cuidadosamente com uma toalha que eu lhe havia dado. Ao amanhecer, seu

primeiro olhar era para ella: punha-a sobre o collo, penteava-lhe com os

dedos os longos cabellos e acariciava-a, como se fosse uma filha querida. É singular, porém, a extrema ternura com que o bárbaro tratava a cabeça de sua

inimiga (Tocantins 1877: 84-85)

27 A imagem de selvagens vivendo isolados num “estado de natureza” era amplamente difundida entre

os pesquisadores do século XIX. Podemos ver a expressão desse tipo de convicção quando Tocantins comenta,

ao visitar a aldeia Necodemos, que “realizava, enfim, um dos maiores desejos que sempre tive, isto é, vêr uma

tribu selvagem em seu estado primitivo, exactamente como devêra estar antes da descoberta do Brasil, vivendo a

lei da natureza, sem contacto algum de idéia com outros povos, que lhe alterasse as crenças e tradições” (1877:

81). Necodemos seria, de acordo com Coudreau (1997 [1897]), a aldeia Decodemos, considerada na cosmologia

como o primeiro local criado pelo herói mítico, Karusakaibö. 28 A cabeça recebida por Tocantins (1877: 84) tinha cabelo comprido, a fronte raspada até a metade

superior do crânio, e uma mexa circular no meio [figura 10]. No entanto, o autor registra que não havia o costume de se cortar as cabeças das mulheres, sendo que esta havia sido pega por engano. Este dado não confere

com aquele fornecido por Murphy (1957: 1023), no qual consta que cortavam as cabeças dos inimigos, fossem

eles homens ou mulheres. Ao analisar questões relacionadas à caça de cabeças na mitologia Munduruku, Menget

(1993: 314) percebeu que, nas narrativas, as vítimas mais freqüentes são mulheres que recusam uma proposta

sexual. Contudo, na prática, os guerreiros Munduruku teriam preferência pela cabeça dos homens, deixando as

mulheres e as crianças para serem levadas como cativos. Outro aspecto interessante analisado pelo autor diz

respeito à socialização da cabeça enquanto Munduruku e enquanto homem, ou seja, apesar de ser propriedade do

matador, a cabeça era coletivizada e recebia um padrão de pintura facial e um corte de cabelo tipicamente

masculinos (Menget 1993: 315). Lucia Van Velthem analisou a procedência de uma série de troféus Munduruku

em coleções francesas e brasileiras e concluiu que estas pertenciam especialmente aos Parintintin, Apiacá e

Maué, não havendo nenhum registro de caça às cabeças dos brancos (ver Menget 1993: 314).

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Ainda no momento da partida, e buscando retribuir a hospitalidade recebida, o

engenheiro convidou alguns índios a acompanharem-no, ou ao menos enviar seus filhos para

que fossem educados junto aos brancos. Eles não aceitaram. Ao invés disto, contaram-lhe a

história de Teiu Burubê, um índio Munduruku que, após ter vivido entre os brancos, retornou

à aldeia natal, mas acabou morrendo – demonstrando a existência de uma ligação entre

feitiçaria, enfermidade e o mundo dos brancos.29

Teiu Burubê era um Mundurucú que desapparecêra das aldêas ha muitos

annos, e apos longa ausencia regressára. Apresentou-se na maloca de Cabroá

elegantemente vestido à nossa moda. Os parentes o receberam com extrema satisfação. Então contou que se baptizára no Rio de Janeiro, que se ficára

chamando Martinho de Alcantara, e que S. M. o Imperador lhe servira de

padrinho e de protector. Encontrou na maloca de Cabroá parentes, e

particularmente uma irmã, que o tratou com extrema dedicação. Quando deixou a aldêa natal, ainda muito moço, fôra acompanhado por um irmão, e

ambos desceram pelo rio Canumá. Este Mundurucú descrevia com vivas

côres as vantagens da vida civilisada, sem comtudo mover os seus parentes a abandonarem a vida selvagem. Por fim estranhou a mudança de regimen e

cahiu doente de violentas febres. Dizendo-se na maloca que estava

enfeitiçado por causa dos elegantes vestidos que possuia, a irmã, indignada, reuniu-os no terreiro e lançou-lhes fogo. Convalescendo, ainda em maiores

privações se achou, pois estava nú. Por fim falleceu; a irmã, que não o

abandonára um só momento, enterrou-o embaixo de sua propria rede

(Tocantins 1877: 99, grifo meu).

Em sua expedição, Tocantins (1877: 135-145) conta que passou pela Missão Bacabal,

estabelecimento fundado em 1872, mas extinto poucos anos depois. A razão para seu rápido

declínio foi o conflito estabelecido com os comerciantes do município de Itaituba. Estes

reclamavam que o missionário responsável pela Missão, Fr. Pelino Castrovalva, explorava o

trabalho indígena e se ocupava mais com o comércio do que com a catequese dos índios. O

missionário, por sua vez, se queixava de abusos cometidos pelos regatões. Ainda assim, em

1876, Fr. Pelino Castrovalva foi destituído do posto e a Missão teve suas atividades

encerradas. No entanto, veremos que o conflito em torno das trocas econômicas com os índios

29 No caso Yanomam descrito por Albert (1992), podemos ver a associação entre xamanismo, contato

interétnico e doenças. O autor explora como a identificação dos brancos e dos objetos manufaturados a poderes

patogênicos configurou uma concepção etiológica do contato, reelaborada de acordo com a intensidade das

relações com o mundo dos brancos. Desde os primeiros contatos, os brancos foram identificados com as

epidemias que assolaram o território e as comunidades Yanomam, e associados a espíritos maléficos que

atacavam enviando uma fumaça-patogênica (“epidemia-fumaça”).

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viria a se perpetuar até pelo menos a segunda metade do século XX.

Intensificando relações

Mesmo com as viagens mencionadas acima, por muitas décadas a região do Alto

Tapajós permaneceu relativamente preservada e seus habitantes praticamente isolados. As

cachoeiras que ali se encontram dificultavam a navegação de forma que, apenas

esporadicamente, os índios recebiam a visita de regatões que subiam o rio carregados com

mercadorias. Estas eram trocadas por borracha e outros produtos silvestres, mas os indígenas

eram mantidos sob o jugo de uma eterna dívida: por mais que pagassem, nunca conseguiam

quitá-la (Tocantins 1877: 149).30

É notável o fato de que boa parte dos relatos de cronistas e

viajantes da época menciona o desenvolvimento das trocas comerciais na região e um

progressivo envolvimento dos índios nessas negociações. Como veremos, o encanto pelas

mercadorias foi a principal explicação para a atração que o “mundo dos brancos” exerceu

sobre os Munduruku.

Leopoldi (1979) menciona que, no início do século XX (pouco mais de um século

após os primeiros contatos), os Munduruku se encontravam diferenciados em três grupos.

Havia aqueles que, vivendo no curso do rio Madeira e no baixo Tapajós, mantinham relações

mais intensas com a população regional e tiveram boa parte dos hábitos “tradicionais”

modificados. Já os que permaneceram na região do alto Tapajós diferenciavam-se em dois

“grupos”: havia aqueles que se mudaram para a beira dos rios (para ter acesso mais frequente

aos brancos e suas mercadorias), e aqueles que ficaram na região dos campos, onde puderam

30 Ao descrever o sistema de habilitación no Peru (o equivalente ao sistema de aviamento, no Brasil),

Gow (1991) chama atenção para o fato de que a dívida interminável opera com o estabelecimento de um vínculo

entre patrão e empregado, constituindo um sistema de dependência mútua. “O sistema de habilitación foi

frequentemente representado sob uma ótica da exploração, o que de fato é. No entanto, seria um erro imaginar

que os nativos (native people) do Baixo Urubamba são vítimas passivas de um sistema sob o qual não tem

nenhum controle” (Gow 1991: 107). Segundo o autor, os Piro estão cientes de que os patrões são enganadores e

mentirosos, mas também estão cientes de que os patrões precisam do trabalho deles da mesma forma como eles

precisam do dinheiro e das mercadorias.

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preservar suas práticas culturais e organização social.

Como veremos no capítulo seguinte, na década de 50 havia uma divisão bastante

marcada entre os habitantes da savana e os habitantes das margens do rio Cururu, um dos

afluentes do Tapajós (Murphy 1978 [1960]). De acordo com o censo realizado por Murphy

(1978 [1960]), a população Munduruku nos anos de 1952/53 atingia um total de 1.250

pessoas, das quais 360 viviam na savana, 700 nas margens do Cururu e outros 200 no rio

Tapajós e seus afluentes.31

Segundo o autor, aqueles que viviam às margens do Tapajós já haviam abandonado

diversos elementos da cultura tradicional e residiam em agrupamentos pequenos, com uma ou

duas famílias apenas. Já no rio Cururu, a manutenção da vida em comunidade (através da

reunião de diversos núcleos familiares) e o relativo isolamento geográfico (o acesso ao rio

Cururu exige atravessar um trecho encachoeirado do rio Tapajós) colaboraram para a

preservação da cultura munduruku, apesar das modificações drásticas na organização e na

estrutura social. Em contrapartida, os que ficaram na savana se mantiveram relativamente

autônomos e menos influenciados pelas mudanças derivadas do contato, o que não significa

dizer que permaneceram inalterados.

No decorrer do século XX, as transformações pelas quais os Munduruku vinham

passando em função do contato com os brancos intensificaram-se. A guerra com intuito de

caçar cabeças, apesar de já ter diminuído com o avanço das frentes de contato, só chegou ao

fim por volta de 1912-1914 (Murphy 1957, 1978 [1960]).32

A população que habitava a

31 As estimativas de Tocantins (1877) para o ano de 1875 eram de aproximadamente 18.910 Munduruku

na região do alto Tapajós. Este número, conforme sugere Coudreau (1997 [1897]), parece ter sido

superdimensionado ou sofrido uma drástica diminuição, pois duas décadas depois o autor registrou algo em

torno de 1.429 pessoas. 32 “Em 1912-1914, a diminuição da população, as demandas da economia da borracha, o declínio das

tribos inimigas na região e a influência dos missionários contribuíram para o fim da guerra. Este foi um grave

golpe para a cultura nativa, que viu desaparecer um de seus elementos centrais. Um dos principais valores

atribuídos a um homem Mundurucu era a aquisição de troféus e a captura de cativos, sendo que as maiores

cerimônias tribais se desenrolavam em torno das cabeças dos inimigos. Esta perda é sentida nos dias atuais pelos

mais velhos, os quais olham ceticamente para o futuro e nostalgicamente para o passado” (Murphy 1978 [1960]:

44).

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região interiorana se viu drasticamente reduzida, tanto por conta dos efeitos desastrosos

provenientes da disseminação de doenças (sarampo, gripe, infecções respiratórias), como pelo

abandono das malocas tradicionais e a crescente migração para as margens dos rios. Como

veremos a seguir, o fim da guerra coincidiu com o declínio da exploração da borracha (devido

à queda de preços no mercado internacional) e com o estabelecimento de uma missão nas

margens do rio Cururu.33

Missão São Francisco do Cururu

No ano de 1908, os padres alemães Hugo Mense, Luís Wand e Crisóstomos Adams

iniciaram a exploração do rio Tapajós com o intuito de fazer contato com os índios da região

e escolher um local adequado para estabelecer uma missão entre eles (Colevatti 2006).34

Em

1910, frei Hugo alcançou o rio Cururu e conheceu João Wako'po, chefe da aldeia Capikpik.

Esta era uma residência temporária para a época de seca (conhecida como verão na

Amazônia), pois permitia melhor acesso aos seringais e facilitava manter contato com os

regatões. Ali o frei encontrara o lugar ideal para estabelecer a primeira sede da missão

franciscana no alto Tapajós. Para auxiliar na catequização, a Ordem das Irmãs Missionárias

da Imaculada Conceição enviou três freiras que seriam responsáveis pela educação das

meninas. Em 1917, frei Plácido Toelle foi designado para substituir frei Luíz Wand, que havia

se retirado por motivos de doença.

33 Conferir Rubenstein (2007) para uma análise interessante da circulação das tsantsas (cabeças-troféus reduzidas pelos Shuar, popularmente conhecidos como Jivaro), uma vez inseridas num contexto de troca com os

brancos. Ver também Steel (1999) com relação às mudanças históricas na “guerra Jivaro”, em decorrência da

introdução de bens manufaturados, como machados e espingardas. Ambos os autores registram um aumento na

caça de cabeças em função do envolvimento com o governo colonial e da aquisição de armas de fogo. As

tsantsas tornaram-se progressivamente objetos valiosos também no mundo não-indígena e passaram a ser

procuradas especialmente por colecionadores de museus europeus – onde muitas se encontram atualmente. 34 Para aquele interessado especificamente na atuação dos missionários franciscanos entre os

Munduruku, remeto à dissertação de Jayne Colevatti (2006), Ide, pois e fazeis discípulos: estudo sobre a Missão

São Francisco do Rio Cururu, na qual somos apresentados a uma rica documentação histórica abrangendo a

chegada dos primeiros padres e a maneira como uma imagem da população Munduruku foi sendo construída

através de crônicas e investigações missionárias.

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Desde o início, as relações foram pacíficas. Os missionários dedicaram-se a aprender a

língua nativa para que pudessem exercer mais efetivamente seu trabalho de conversão.

Contudo, a localização e o isolamento no qual se encontravam levou-os a desenvolver

também outras atividades, com objetivo de tornar a missão um empreendimento auto-

sustentável. Uma das alternativas encontradas foi a venda de serviços religiosos (como

batizados, crismas, casamentos e primeira comunhão) à população local (Colevatti 2006: 41-

42). Estes eram oferecidos durante as chamadas viagens de desobriga, as quais tinham como

intuito atender os caboclos e os seringueiros de comunidades próximas, além dos Munduruku

que se encontravam em outras aldeias – nos campos ou ao longo do Cururu.35

Outra iniciativa

que os padres tiveram foi iniciar a criação de gado, um empreendimento que custou a morte

de vários animais antes de começar a dar bons resultados.

No entanto, esse primeiro estabelecimento (atualmente conhecido como Missão

Velha) apresentava algumas dificuldades. Apesar de próximo a um pequeno igarapé,

encontrava-se distante cerca de 3 a 4 km da margem do Cururu. Durante a estação das

chuvas, o caminho ficava alagado e tornava difícil a locomoção dos padres, o transporte de

mantimentos e as idas ao rio para pescar (Colevatti 2006: 43). Tendo em vista essa situação,

frei Hugo iniciou uma campanha junto à Prelazia de Santarém com o objetivo de arrecadar

dinheiro para construir uma nova sede para a missão. Em 1923, com a ajuda de frei Plácido,

conseguiram transferi-la para um novo local: na margem oposta à antiga localização e mais

próximo ao Tapajós (Colevatti 2006: 47-48).

A influência missionária foi tornando-se mais efetiva na medida em que cresceram as

relações de troca com os indígenas (Murphy 1978 [1960]). Antes da chegada dos padres, o

comércio era dominado por regatões que subiam o rio esporadicamente e pelos patrões que

monopolizavam o trabalho de extração da borracha. Com a aproximação dos missionários, os

35 Colevatti (2006: 65) sugere que as viagens de desobriga permitiram aos missionários estabelecer uma

esfera de influência bastante abrangente, constituindo uma territorialidade que extrapolava os limites da missão.

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índios perceberam que podiam receber mais em troca de seus produtos. Os vínculos com eles

foram se estreitando de forma que, na década de 50, era comum que índios de diferentes

aldeias fizessem visitas nos finais de semana, quando aproveitavam para assistir à missa

(Murphy 1958: 8).

Colevatti (2006), através da análise da ideologia franciscana, sugere uma outra

interpretação para a atuação da missão e o envolvimento no comércio com os índios. Em

primeiro lugar, a atividade dos padres e freiras abrangia outras esferas da vida indígena que

não somente as trocas comerciais. A agricultura tinha um papel central no trabalho

missionário, pois permitia a auto-subsistência e a sedentarização dos índios. Além do cultivo

das roças, a criação de escolas indígenas e o investimento na educação de meninos e meninas

(tanto aprender a ler e escrever, como o ensino de ofícios técnicos como carpintaria,

marcenaria, costura, bordados, culinária, etc.) foram fundamentais para levar adiante a tarefa

de conversão. Direcionada especialmente às crianças, a escola funcionava como uma ponte

entre os missionários e os adultos da aldeia (pais dos alunos), conseguindo ampliar a esfera de

influência e atraindo estes para participar das outras atividades religiosas. As festas do

calendário religioso, como Natal e Páscoa, congregavam inúmeros índios na Missão. Murphy

(1958: 9) sugeriu que estas ocasiões funcionavam como equivalentes das extintas cerimônias

coletivas feitas em honra aos espíritos mães da caça.

Os padres consideravam-se os únicos capazes de conduzir os Munduruku na transição

de um estado primitivo para a civilização, o que na concepção missionária era sinônimo de

“bom cristão” (Colevatti 2006: 121). Dessa maneira, os missionários buscavam administrar o

contato protegendo os índios dos males da civilização, como a exploração econômica, o

egoísmo, o comportamento sexual imoral, o consumo de cachaça, etc. A atuação dos

franciscanos teria, por um lado, a intenção de preservar traços da cultura Munduruku,

valorizando instituições e crenças nativas que fossem compatíveis com o ideal cristão. Por

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outro, pregava a necessidade de eliminar os traços que consideravam reprováveis, como a

guerra, o nomadismo, os conflitos internos ou qualquer outra manifestação de “selvageria”

(Colevatti 2006: 100). O problema era que os índios pareciam aderir a tudo que lhes era

ofertado, e de forma nada seletiva.

(A)deria-se às festas de santo, mas também aos bailes, à cachaça e às

mercadorias que lhes eram oferecidas em troca de suas mulheres, de modo

que o interesse dos índios não estava somente na cristandade, mas também naquilo que lhes era oferecido pelos brancos (Colevatti 2006: 75).

36

A década de 40 trouxe dificuldades para a Missão por conta da construção de um

Posto Indígena nas margens do Cururu, pouco abaixo de onde esta se localizava. O

relacionamento entre os padres e o inspetor responsável foi marcado por conflitos,

especialmente no que diz respeito às trocas econômicas realizadas com os índios. No entanto,

a década de 50 viria se mostrar menos problemática. Um acordo firmado com a Força Aérea

Brasileira (FAB) passou a garantir a reposição de mantimentos e mercadorias, o envio da

borracha coletada pelos índios e o transporte dos padres até Santarém. A pista de pouso que

foi construída na Missão São Francisco era estratégica para o exército brasileiro, pois se

encontrava em região intermediária entre a cidade de Jacareacanga e a Serra do Cachimbo,

locais onde se encontravam duas bases de monitoramento militar.37

36 Analisando as narrativas dos primeiros jesuítas no Brasil, Viveiros de Castro (2002b) identifica um tema recorrente: a dificuldade em converter os nativos. Os índios aceitavam a mensagem cristã e a atuação dos

missionários sem, contudo, abrir mão de suas práticas, vistas pelos padres como “degeneradas” – canibalismo,

nudez, guerra de vingança, bebedeiras, etc. Viveiros de Castro (2002b: 183-190) sugere que a instabilidade no

comportamento ameríndio se deve ao modo como essas sociedades se relacionam com a alteridade e, dessa

forma, constituem a si próprias. Na analogia utilizada pelo autor, o comportamento dos indígenas se assemelha

às estátuas de murta, as quais necessitam ser constantemente remodeladas, e não às estátuas de mármore que, uma vez esculpidas, conservam-se sempre iguais a si mesmas. Segundo o autor, “o problema, portanto, é

determinar o sentido desse misto de volubilidade e obstinação, docilidade e recalcitrância, entusiasmo e

indiferença com que os Tupinambá receberam a boa nova. É saber o que eram essa 'fraca memória' e essa

'deficiência da vontade' dos índios, esse crer sem fé; é compreender, enfim, o objeto desse obscuro desejo de ser

outro mas, este o mistério, segundo os próprios termos” (Viveiros de Castro 2002b: 195) 37 No final do ano de 2008, em uma conversa com Sr. Inocêncio Akay, residente da Missão e um dos

professores Munduruku mais antigos, ouvi suas recordações dos tempos da FAB como uma época melhor. Nesse

tempo, um avião fazia visita semanal, toda quinta-feira, e trazia muita mercadoria (açúcar, sal, café, facão, anzol,

linha, chumbo, roupas) encomendada pelos padres e comercializada na cantina que eles administravam. Os

produtos eram pagos com a borracha que os índios coletavam e, segundo me disse, era uma época na qual as

pessoas tinham dinheiro para comprar as coisas, além da facilidade de transporte, pois frequentemente pegavam

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A chegada do SPI

No ano de 1941, a 2ª Inspetoria Regional do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) no

Pará fundou, nas proximidades do rio Teles Pires, o Posto Indígena Alto Tapajós – posto de

atração para índios arredios, Apiaká e Kayabi, que perambulavam pelos arredores. No ano

seguinte, 1942, um novo posto foi construído nas proximidades, adentrando o rio Cururu, um

dos afluentes do rio Tapajós. O local escolhido foi a então aldeia Apompê, que atualmente se

chama Waro Apompo, mas é popularmente conhecida como Posto Munduruku. Este ficou sob

administração do inspetor João Batista Chuvas, figura que se tornou lendária na região.

Condizente com as primeiras décadas de atuação do SPI, marcadas por uma orientação de

assistência e proteção, o Posto Indígena Munduruku buscava auxiliar no processo de

assimilação dos índios à sociedade brasileira. Considerava que estes viveriam um “estado

transitório” e, devidamente tutelados, tornar-se-iam aptos a serem, futuramente, incorporados

ao contingente de trabalhadores nacionais (Ramos 2000: 131-134).38

Além de incentivar (e

controlar) a participação dos Munduruku na economia local, o posto contou com a instalação

de uma escola que tinha como objetivo ensinar o português em detrimento da língua indígena,

além de disseminar o sentimento de nacionalidade através de símbolos patrióticos.39

Dessa

forma, junto com o ensino da língua nacional, a “Escola Infantil Apompê” fornecia uma

carona nos aviões. Hoje em dia tudo é mais difícil, contou, pois quem não tem um emprego (como agente de

saúde, professor ou aposentado) fica sem fonte de renda e não pode comprar o que precisa. Sr. Inocêncio também

comentou que depois da borracha muitos se envolveram no garimpo, mas não foi tão bom quanto nos “tempos

da borracha”. Dessa forma, o professor nos apresenta uma visão alternativa ao período da borracha como uma

época de exploração e demonstra que, de uma perspectiva indígena, este foi um período de fartura e fácil acesso aos bens necessários. 38 Segundo Colevatti, “nesse ponto que podemos observar a diferença nos projetos de inserção dos

missionários e do SPI: ao passo que os primeiros constituíram-se como uma instância final de contato entre os

índios e o mundo dos brancos, o posto, por outro lado, apoiou-se em um modelo de atuação no qual exercia o

papel de agente de mediação e controle da mão de obra e da produção indígena” (2006: 131) 39 Em um de seus relatórios, o inspetor registra que “os mundurucús são nacionais, porque nasceram no

Brasil, mas não que tenham os sentimentos de brasilidade que deviam ter. Quando junto dos missionários da

Missão Católica aleman, não falam portuguez, sempre de preferência tratam de seus negócios, falando na gíria,

isto porque os padres assim preferem. E quando em contato com os negociantes, estes também falam a gíria,

fazendo contudo que falem alguma coisa em portuguez, motivo por que alguns deles falam algumas palavras na

nossa língua” (J. B. Chuvas apud Ramos 2000: 143).

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educação militar baseada em modos de disciplina e hierarquia da qual as mulheres (tanto

professoras como alunas) estavam excluídas (Ramos 2000: 143).

Uma das preocupações de Chuvas era monitorar o comércio da região, especialmente

no que dizia respeito à Missão São Francisco e à empresa seringalista José Antunes & Cia.

Rapidamente o posto adquiriu funções comerciais e engajou-se na comercialização da

borracha. Sua atuação equiparava-se a dos patrões locais e suas atividades não se restringiam

aos índios, estendendo-se aos habitantes regionais (Arnaud 1989: 239). Durante a Segunda

Guerra Mundial houve um novo boom da borracha e, vendida a altas cifras no mercado

internacional, os índios se envolveram ainda mais no trabalho de extração e comercialização

do látex.

Desde a instalação do posto, a relação travada entre o inspetor e os missionários foi

conflituosa, especialmente por ocasião da Segunda Guerra Mundial, tendo em vista a

nacionalidade alemã dos padres.40

A presença estável de uma missão religiosa incomodava o

administrador do posto e opunha-se à proposta do órgão indigenista, que era de integrar os

índios ao Estado Nacional (Ramos 2000: 133). Além dos franciscanos, Chuvas envolveu-se

em conflitos com os seringalistas locais. Em uma acusação enviada pela empresa Alto

Tapajós S.A. à 2ª Inspetoria Regional, registrava-se a queixa de que o posto estaria

negociando com seus fregueses e estabelecendo-se como concorrente comercial na região

(Arnaud 1989: 239-241).

Em 1956, o SPI passou por reestruturações internas, as quais acarretaram no

afastamento de Chuvas da administração do Posto Munduruku. Uma inspetoria para verificar

as condições do posto apontou-o como estando demasiado envolvido com a comercialização

40 Tanto a Missão quanto o Posto Indígena, enxergavam um ao outro como explorador comercial que

atuaria nos moldes dos seringalistas e regatões locais, enquanto concebiam a si próprios como os mais

qualificados para a proteção dos índios. Para uma visão de ambos enquanto empresas comerciais, remeto o leitor

à dissertação de André Ramos (2000), “Entre a cruz e a riscadeira: catequese e empresa extrativista entre os

Mundurukú (1910-1957)”. O autor também chama atenção para o fato de que, embora tivessem modelos de

atuação diferentes, ambas as instituições colocavam em prática seu projeto de civilização por meio da idéia de

trabalho.

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de borracha com os não-índios, ao invés de buscar estreitar as relações com os índios.

Aqueles que habitavam as regiões dos campos, por exemplo, não recebiam qualquer

atendimento. No entanto, os agentes que assumiram o lugar de Chuvas não conseguiram

manter o funcionamento do posto e este “entrou em rápida decadência, tanto no aspecto

comercial como assistencial” (Arnaud 1989: 247). Em 1962, Chuvas retornou ao Tapajós e

restabeleceu seu funcionamento também como estabelecimento comercial, mas após dois

anos se aposentou e afastou-se definitivamente do cargo.

Como vimos anteriormente, a disputa entre a Missão e o Posto Indígena,

especialmente no que diz respeito ao comércio com os índios, era acirrada. No entanto,

Ramos (2000: 182) chama atenção para o papel dos próprios Munduruku nesse fogo cruzado.

A partir de sua experiência enquanto chefe de posto na aldeia Waro Apompo, o autor sugere

que os pariwat ali presentes disputavam a condição de protetores, enquanto os índios

estabeleciam relações conforme seus próprios interesses, movendo-se frequentemente entre

os dois núcleos de civilização – a Missão e o Posto Indígena (Ramos 2000: 183).

Baseado em diversas entrevistas, Ramos (2000) apresenta uma “versão” Munduruku

para a mudança do campo para a beira dos rios. Enquanto os relatos que vimos até agora

atribuíram esse movimento migratório ao fascínio exercido pelas mercadorias, os

entrevistados do autor afirmaram que as novas aldeias foram criadas na medida em que os

chefes morriam. Na ausência de um “capitão forte” para continuar cuidando da comunidade,

era preciso encontrar outro lugar pra morar – foi assim, por exemplo, que surgiu a aldeia Sai

Cinza.41

Coincidência, ou não, Chuvas registrou que, por conta da epidemia de sarampo que

assolou a região no ano de 1942, quatro chefes de aldeias do campo morreram.

Vemos assim que a atração exercida pelo “mundo dos brancos” não residia apenas em

41 A aldeia Sai Cinza fica localizada no rio Tapajós, entre os rios Cadiriri e Cabitutu, na margem direita.

Ramos (2000) conta que havia ali um seringal controlado por um famoso patrão, Maneco Pereira. Quando este

faleceu, o local foi ocupado pelos índios, os quais formaram uma nova aldeia. Existe uma missão batista

instalada em Sai Cinza, mas não obtive dados sobre o trabalho desses missionários.

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um interesse pelas mercadorias. Biboy Kabá, por muitos anos capitão da aldeia Cabruá e atual

“cacique geral dos Munduruku”, conta que quando ainda garoto seus pais o levaram para

fazer uma visita à Missão São Francisco. Conforme o mesmo contou para Ramos (2000:

215), essa viagem fazia parte do seu processo de educação, sendo prática comum aos

Munduruku do campo viajar até a Missão com intuito de conhecer os pariwat.

Dessa forma, podemos perceber como a relação entre Munduruku e pariwat assumiu

diversas configurações ao longo dos séculos. Inicialmente inimigos, os brancos rapidamente

tornaram-se aliados dos Munduruku. No decorrer do século XIX a presença do branco na

região se intensificou. Diversas expedições científicas penetraram nas regiões interioranas e

no curso superior do rio Tapajós (Spix & Martius 1976 [1817/1820]; Bates 1944 [1852];

Tocantins 1877; Coudreau 1997 [1897]). Destaca-se também a presença dos missionários na

região e um aumento do comércio com os comerciantes locais. O boom da borracha, na

segunda metade do século, efetivou a presença do branco na região e engajou os índios

compulsoriamente num circuito de trocas comerciais local.

A imagem construída dos Munduruku nesse período é a de índios bravos, guerreiros,

tatuados e enfeitados com elaboradas plumárias. A caça de cabeças, sua “marca registrada”,

fez fama pela região. No entanto, a partir do século XX esta entrou em declínio. A penetração

cada vez maior de regatões e exploradores da borracha, aliada à instalação da Missão São

Francisco e, posteriormente, do Posto do SPI, incentivou um movimento migratório para a

beira dos rios. Se anteriormente estes haviam se refugiado no interior do território para fugir

dos brancos, como sugere Tocantins (1877: 155), no século seguinte o movimento se

inverteu. Muitas famílias se mudaram com objetivo de estarem mais próximas dos pariwat

que, progressivamente, adentravam na região. Neste processo, muitas práticas se perderam e

muitos costumes foram modificados. Veremos a seguir as principais alterações sofridas pelos

Munduruku do Alto Tapajós até por volta da metade do século XX.

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Capítulo 3

Robert Murphy: um etnógrafo entre os Munduruku

Mesmo os melhores textos etnográficos – ficções verdadeiras, sérias – são

sistemas, ou economias, de verdade. Poder e história atravessam-no de

maneira que o próprio autor não pode controlar. Assim, as verdades etnográficas são inerentemente parciais

- Clifford Geertz -

Apesar de estarem presentes nos relatos de cronistas e viajantes nos séculos XVIII e

XIX, e serem bastante conhecidos entre os antropólogos, existem poucos estudos detalhados

sobre os Munduruku. A fonte de dados etnográficos mais rica e extensa é a obra do

antropólogo norte-americano, Robert Murphy, que junto com sua esposa, Yolanda Murphy,

realizou uma pesquisa de campo no Alto Tapajós na década de 50. Na época, Murphy era

estudante de doutorado na Universidade de Chicago e sua tese, posteriormente publicada com

o título Headhunter's Heritage (Murphy 1978 [1960]), teve como objetivo analisar o processo

de mudança social e econômica entre os Munduruku.

Em seu trabalho podemos entrever a existência de duas influências principais: os

estudos de aculturação e a teoria da ecologia cultural. De acordo com Murphy (1976: 7-8), o

tema da mudança social e cultural dominou a antropologia norte-americana, especialmente

após a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se, segundo o autor, de uma imposição etnográfica e

não de uma escolha teórica, já que as populações que vinham sendo estudadas passavam

então por transformações profundas. Por outro lado, a abordagem da ecologia cultural, com

sua ênfase na relação entre meio-ambiente e sociedade, também foi bastante difundida nos

Estados Unidos, especialmente por intermédio dos trabalhos de Julian Steward (Murphy

1976: 10-11).

Para estudar o processo de mudança entre os Munduruku, Murphy (1978 [1960])

dividiu sua estadia em duas etapas: cinco meses em uma aldeia mais “conservadora” (Cabruá,

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localizada na savana)42

, e cinco meses em uma aldeia mais “modificada” (Missão Velha,

localizada nas margens do rio Cururu)43

. Essa decisão possibilitou-lhe observar diretamente

aspectos relacionados à mudança na organização social, pois considerava que o modo de vida

na savana seria o mesmo praticado, no passado, pelos habitantes do rio Cururu (Murphy 1978

[1960]: 26).

Essa marcada distinção entre aldeias da savana e aldeias da beira do rio permitiu a

Murphy (1978 [1960]) fazer o que chamou de uma “comparação controlada”. Tal abordagem

foi inspirada no texto de Fred Eggan, “Social Anthropology and the Method of Controlled

Comparison”, publicado na American Ethonologist, em 1954. Neste, Eggan defende o uso do

método comparativo de forma controlada e aplicado em pequena escala, oferecendo como

exemplo os Hopi, uma tribo norte-americana que então se encontrava dividida em inúmeras

comunidades, diferentes entre si quanto aos padrões sócio-culturais e o grau de contato

(Eggan 1954: 758). Para expor seu modelo, o autor apresenta duas linhas de

desenvolvimentos dentro da antropologia: os estudos com ênfase na história e no processo

cultural, característicos da antropologia norte-americana; e aqueles com ênfase nos conceitos

de estrutura e de função social, típicos da antropologia social britânica. Eggan (1954) busca

conciliar as duas tendências mostrando que a incorporação dos conceitos da antropologia

social britânica permitiria um avanço nos estudos dos processos de mudança sócio-cultural.

De forma semelhante, alguns anos depois, Murphy publicou um artigo intitulado

Cultural Change (1967), no qual chamaria atenção para a necessária conexão entre estudos de

estrutura e de mudança social. Na impossibilidade de fazer uma revisão de um campo tão

vasto como o dos estudos de mudança social, o autor buscou, no referido artigo, ilustrar as

preocupações e as diferentes abordagens do problema através de quatro livros considerados

42 Murphy chama as aldeias localizadas no interior do território Munduruku de “aldeias da savana”, mas

atualmente os Munduruku costumam referir-se a elas como “aldeias do campo”. Como estou apresentando os

dados oferecidos por Murphy, utilizarei a terminologia por ele proposta. 43 Missão Velha é a aldeia na qual os franciscanos estabeleceram sua primeira sede, por volta de 1910,

tendo transferido-se alguns anos depois para uma aldeia rio acima, a atual Missão São Francisco do Rio Cururu.

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por ele como exemplares.44

De acordo com Murphy (1967), a partir das críticas ao evolucionismo, muitos

antropólogos concentraram-se na análise de micro-mudanças como parte de um processo

histórico e não como evolução em uma escala única de desenvolvimento. Ao considerar que a

mudança poderia resultar de processos autônomos e ser produto de uma criatividade interna

ao sistema, esses estudos passaram também a recusar os postulados do difusionismo – os

quais explicavam as mudanças com base nos empréstimos e na irradiação de elementos de

uma cultura para outra.

A seguir veremos como, partindo de uma análise da estrutura social munduruku,

Murphy sugeriu que as aldeias da savana representariam um momento anterior no

desenvolvimento das aldeias do rio Cururu e, dessa maneira, construiu sua tese relacionada à

mudança social entre os Munduruku. De fato, a própria escolha do grupo deveu-se ao fato de

considerá-lo um caso privilegiado para realizar tais investigações. Na época, tinham

aproximadamente 150 anos de contato e enfrentavam mudanças importantes, derivadas

especialmente da transferência de habitat.

Savana versus rio Cururu

Desde o boom da borracha, na segunda metade do século XIX, era comum que os

habitantes da savana construíssem residências temporárias próximas aos rios. No entanto,

especialmente a partir de 1920, com o estabelecimento da Missão São Francisco (ver capítulo

2), esse processo de migração tornou-se definitivo. Tal movimento acarretou modificações

permanentes na organização social e no modo de vida: a pesca tornou-se a principal fonte de

subsistência, em detrimento da caça; a arquitetura das casas e a disposição espacial da aldeia

44 Os livros escolhidos foram: The American Indian: perspectives for the study of social change, de Fred

Eggan (1966); Tonalá: conservatism, responsibility and authority in a Mexican town, de Mary Diaz (1966);

Agricultural involution, de Clifford Geertz (1963); e The evolution of urban society, de Robert Adams (1966).

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foram alteradas; a casa dos homens (eksa) deixou de ser construída; os rituais coletivos foram

extintos.

Como vimos no capítulo anterior, uma das principais razões atribuída à mudança para

a beira dos rios foi a facilidade de acesso às mercadorias dos brancos. Murphy (1978 [1960])

corrobora essa interpretação ao constatar que o desejo pelos bens materiais impulsionou

muitas famílias a abandonar as aldeias da savana. Contudo, apesar do aumento progressivo no

fluxo migratório, muitos Munduruku permaneceram residindo nas regiões interioranas,

situação que criou uma dicotomia acentuada entre os habitantes da savana e do rio Cururu.

Segundo o autor, aqueles que moravam nas margens do rio menosprezavam os campineiros

(habitantes da savana) por não terem roupas, serem preguiçosos, deixarem a casa suja e

dormirem com fogo sob a rede à noite.45

Simultaneamente, os moradores do Cururu nutriam

uma atitude de respeito em relação àqueles da savana, pois consideravam que estes possuíam

maior conhecimento da cultura tradicional – além de serem temidos como poderosos

feiticeiros. Por sua vez, os habitantes da savana sentiam-se desapontados por serem tratados

com indiferença pelos moradores do Cururu e a estes se referiam como pariwat, por viverem

como a população local.

As aldeias da savana, descritas por Murphy como tradicionais, eram compostas por

uma casa dos homens localizada no pátio central e cerca de três a cinco habitações ao redor,

nas quais ficavam as mulheres e as crianças. A casa dos homens era um espaço masculino,

onde os meninos passavam a residir a partir dos 12 anos (Murphy 1978 [1960]: 119). Devido

ao regime matrilocal, os homens mudavam-se para a aldeia de suas esposas ao casar e

estabeleciam-se em sua respectiva eksa. Nas aldeias da savana, portanto, homens e mulheres

constituíam universos sociais separados (Murphy 1978 [1960]; Murphy & Murphy 1974).

Contudo, com a transferência para o rio Cururu a casa dos homens deixou de ser construída e

45 De acordo com Murphy (1978 [1960]), os missionários teriam influenciado a adoção de muitos desses

estereótipos e, com isso, persuadido os habitantes do Cururu a abandonar suas práticas “tradicionais”.

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as residências passaram a ser constituídas basicamente por famílias nucleares, as quais se

tornaram a base econômica em detrimento da família estendida da savana. Esta nova

disposição alterou profundamente a organização do trabalho na aldeia.

Com a extinção da eksa, os homens passaram a residir junto com suas esposas e

contribuir para a execução das tarefas domésticas, como a manufatura da farinha e a limpeza

da roça. Murphy e Murphy (1974: 138) relatam que tais mudanças foram muito bem

recebidas pelas mulheres, as quais consideravam a vida melhor às margens do Cururu.

Por mais triste que seja para o antropólogo, e por mais insatisfeitos que

fiquem os homens Mundurucú, as mulheres preferem a vida nas aldeias do

Cururu em detrimento daquela que levavam nas comunidades da savana (...) suas razões para essa preferência são simples e diretas: os homens na savana

são preguiçosos, não ajudam suas mulheres e nem compram coisas para elas

(Murphy & Murphy 1974: 187)

A perspectiva das mulheres quanto às mudanças sofridas toca num ponto importante:

enquanto os homens mais velhos mantinham uma atitude nostálgica frente às alterações,

lamentando que os jovens não demonstrassem interesse em perpetuar os ensinamentos e as

práticas tradicionais, nenhuma mulher manifestou queixa semelhante.

Os homens Mundurucú se alegravam ao lembrar-se do passado como um

tempo de valor e de força, onde a vida era mais abundante, onde os homens

se relacionavam com os espíritos protetores e estes influenciavam na vida da

comunidade. As mulheres, por outro lado, nunca tinham nada a dizer a respeito dos “bons e velhos tempos”; de fato, elas raramente falavam sobre o

passado. Eram os homens quem lamentavam o fim dos ciclos rituais, o

esquecimento dos mitos e das histórias, e a passagem para um futuro dominado por forças estrangeiras. Muitos aceitavam essa situação como

inevitável, poucos como desejável. As mulheres, ao contrário, nunca nos

exprimiram o menor ressentimento com relação à perda dos costumes

antigos (Murphy & Murphy 1974: 180-181)

Vemos que, além de não demonstrar a mesma inclinação conservadora dos homens, as

mulheres foram importantes agentes na promoção das mudanças (Murphy & Murphy 1974:

202).46

O contato com os brancos trouxera consigo o acesso a um mundo de mercadorias, que

46 No livro Women of the Forest (1974), Robert e Yolanda Murphy analisam o papel das mulheres na

sociedade Munduruku. O tema central é a disparidade entre uma ideologia masculina da dominação e a maneira

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parecia exercer fascínio ainda maior sobre as mulheres do que sobre os homens. Estas

passaram a estimular seus maridos a mudar para as margens dos rios, onde teriam acesso mais

fácil a esses bens, além de poderem se engajar efetivamente na coleta da borracha – na época,

a principal forma de obter os objetos que desejavam.

Contudo, a assunção de que as mudanças em andamento nas margens do Cururu

seriam o “futuro” das comunidades da savana é questionável. Na medida em que põe em jogo

uma noção de passado e futuro como duas etapas estabelecidas em um processo único e

determinado, o autor nos apresenta uma concepção linear da história e do processo de

transformação social. Murphy (1978 [1960]) argumenta não ter utilizado um método de

análise comum aos estudos de aculturação, ou seja, comparar o antes (prévio à chegada dos

brancos) e o depois (estado atual). No entanto, vemos que sua estratégia acabou substituindo

esse esquema comparativo diacrônico por uma análise comparativa sincrônica – aldeias da

savana versus aldeias do Cururu.

Ainda assim, detendo-nos na análise de Murphy, veremos que não se trata de um típico

estudo de aculturação. Influenciado pelo estrutural-funcionalismo por um lado, e pelo

marxismo, por outro, sua percepção era de que “a direção da mudança havia sido

profundamente influenciada pela estrutura da sociedade Mundurucú” (Murphy 1978 [1960]:

180). De acordo com o autor, o estabelecimento de relações com a sociedade envolvente

constituiu uma de suas principais fontes de mudança. No entanto, ao supor que estas seriam

fruto exclusivo do contato, a perspectiva aculturativa teria se limitado a relatar maneiras pelas

quais elementos culturais externos foram aceitos e incorporados por povos nativos (Murphy

como efetivamente se estrutura a relação entre homens e mulheres na vida diária. “A ideologia da dominação dos

homens sobre as mulheres perpassa os ritos e os mitos, mas não é evidente no cotidiano” (Murphy & Murphy

1974: 160). Segundo os autores, essa disparidade ocorreria por tratar-se de uma sociedade que valorizava as

habilidades masculinas, como a caça e a guerra, mas depositava nas mulheres o controle da vida familiar, a

distribuição da comida, o cuidado com as crianças, entre outros. “As mulheres vêem a si próprias como

separadas dos homens, e elas tem um forte senso de sua identidade enquanto mulher” (Murphy & Murphy 1974:

139). Dessa maneira, através do trabalho coletivo e dos laços de solidariedade (fortalecidos pelo regime de

matrilocalidade) os vínculos de cooperação estruturariam a vida das mulheres como um universo distinto do

masculino.

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1978 [1960]: 191).

Para o autor, não basta constatar que houve modificações. É preciso apreender o

processo, a dinâmica de mudança própria a cada sociedade, o que, por sua vez, exige

considerar a dimensão histórica e estrutural envolvida nesse movimento. Segundo Murphy, “o

sistema social Mundurucú passou por grandes transformações, e é impossível entendê-lo

completamente até que se tenha algum conhecimento do que foi no passado, ao menos no que

diz respeito às suas principais instituições” (1978 [1960]: 178). Dessa forma, o autor

estabelece a necessidade de conhecer o passado do grupo para explicar aspectos de sua

organização atual.

No entanto, para atingir tal objetivo, Murphy confere uma idéia de autenticidade ao

passado, como se este abrigasse a essência de um modo de ser Munduruku. Comentando

sobre aqueles que permaneceram residindo em aldeias na savana, o autor diz que “mantêm um

modo de vida que é distintivamente Mundurucú: uma cultura modificada, uma estrutura social

modificada, mas geneticamente enraizada no passado Mundurucú” (Murphy 1978 [1960]:

148). Dessa maneira, ao assumir que as aldeias da savana são tradicionais, pois permaneceram

relativamente inalteradas face ao contato, Murphy reitera a divisão entre tradicional e

aculturado.

Apesar de ser inegável que, na época em que Murphy esteve no Alto Tapajós, a

presença dos brancos era muito mais intensa do que nas décadas anteriores, parece que o autor

não atribuiu a devida importância ao fato de que os Munduruku já travavam relação com os

brancos desde o final do século XVIII. Como vimos, no século XIX essa relação intensificou-

se e, no século XX, a presença dos brancos na região tornou-se permanente. Se as mudanças

já estavam em curso há décadas, torna-se difícil pensar na existência de um habitat que pode

ser tido como “tradicional”.47

47

Em uma breve passagem, Murphy menciona que os Munduruku da savana não podem ser tidos como

representantes de uma “cultura aborígene”, pois estes também foram afetados pelo contato com os brancos. O

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Conforme mencionado no capítulo anterior, a concentração dos Munduruku na região

do Alto Tapajós é relativamente recente (séc. XIX) e fruto do avanço das frentes de expansão.

No mapa etno-histórico elaborado por Curt Nimuendajú (1944), notam-se diversos registros

dos Munduruku, feitos ao longo do século XIX e XX, espalhados por uma vasta região entre

os rios Madeira e Tapajós [anexo III]. As datas nas quais foram assinalados indicam um

deslocamento progressivo em direção às cabeceiras do rio Tapajós. No entanto, Murphy

sugere um movimento inverso:

os Mundurucú eram originalmente uma tribo autônoma que tinha pouca, ou

nenhuma, relação política com outros grupos nativos. No final do século

XVIII, quando foram primeiramente contatados pelos brancos, ocupavam o território a oeste do rio Tapajós [a região descrita como tradicional

atualmente]. A penetração no baixo curso dos rios Madeira e Tapajós foi

resultado de uma migração que ocorreu após o contato (1978 [1960]: 7).

A intensa mobilidade descrita pelos cronistas e viajantes também atesta a dificuldade

em delimitar um território tradicional que fosse habitado pelos Munduruku. Tocantins (1877),

por exemplo, nota que este correspondia à savana mas, por outro lado, registra que aqueles

que permaneciam vivendo nas aldeias do interior faziam-no para evitar contato com os

brancos. Uma informação que nos permite pensar que o confinamento nessa região, hoje

descrita como tradicional, é na verdade fruto de um processo histórico de deslocamento

territorial.

Esses dados são importantes, pois ressaltam as dificuldades envolvidas na afirmação

de que a organização das aldeias na savana seria tradicional, espelho de um passado

Munduruku. De fato, nessas aldeias Murphy encontrou características que remetem a um

modo de vida mais antigo. No entanto, isso não implica que esta tenha sido, desde sempre, a

organização de uma aldeia Munduruku. A existência de uma aldeia circular com casa dos

homens no centro, por exemplo, lança dúvida sobre a idéia de que essa seria uma

autor reitera que as aldeias na savana certamente não são as mesmas que há cento e cinquenta anos, mas ainda

assim estão mais próximas de uma identidade Mundurucú do que as aldeias do rio Cururu (Murphy 1978 [1960]:

11). Dessa forma, Murphy dá a entender que existiriam certos Munduruku mais autênticos que outros.

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característica imemorial do grupo, já que esse tipo de composição espacial não é comum entre

grupos Tupi.

Outra peculiaridade a ser mencionada é a existência do conjunto de flautas sagradas

(karökö) associada à casa dos homens. Segundo Chaumeil (2007), a área de distribuição

destes aerofones se concentra no noroeste da Amazônia (desde a região do Putumayo-Caquetá

até o alto Rio Negro), no médio Orinoco, e, distante dali, no Alto Xingu. O fato de existirem

flautas sagradas no seio da comunidade Munduruku, localizada no sudoeste do Pará, nos

permite questionar se itens tidos como tradicionais não seriam, na verdade, produto de uma

série de transformações e contatos inter-tribais que viriam ocorrendo desde antes da chegada

dos brancos.

Por fim, considero que a tese principal de Murphy (1978 [1960]), na qual consta que,

no passado, os Munduruku teriam sido patrilocais e patrilineares, constitui outro argumento

que contraria a idéia de que as aldeias da savana representariam a organização tradicional da

sociedade. A própria hipótese do autor aponta para um sistema em constante movimento e

transformação, inviabilizando cristalizar a essência da sociedade Munduruku em um passado

tradicional. Conforme sugere Fausto (2001: 175), uma forma social não é uma constante

estática, mas uma construção histórica particular. A seguir, veremos como Murphy construiu

seu argumento a respeito da mudança no regime de residência na sociedade munduruku.

Patri- versus Matri-

Uma das características que mais chamou a atenção de Murphy (1956, 1978 [1960])

foi a existência de um regime “cruzado” de descendência patrilinear com residência

predominantemente matrilocal.48

Segundo o autor, os Munduruku dividiam-se em 38 clãs

48 A única exceção ocorria na família do chefe, pois seus filhos, tanto homens quanto mulheres,

costumavam permanecer na aldeia após o casamento. Tal fato os colocava em uma posição diferenciada frente

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patrilineares, os quais se distribuíam em duas metades exogâmicas (os vermelhos e os

brancos).49

Os membros da metade oposta eram chamados de iboiwatitit, e com eles se

mantinha um comportamento especial, marcado pela jocosidade e por prerrogativas rituais.50

Murphy (1978 [1960]) também registrou que cada clã possuía um “espírito ancestral”

homônimo e referido como tübo.

O regime de residência matrilocal, por sua vez, acarretava uma dispersão dos homens

pelo território, o que teria impossibilitado a constituição dos clãs como unidades políticas

autônomas. Por outro lado, tal configuração contribuiu para um fortalecimento dos vínculos

intercomunitários (Murphy 1957, 1978 [1960]). Dito de outra forma, a convivência na casa

dos homens teria colaborado para manter a coesão social, reforçando a solidariedade

masculina, ao mesmo tempo em que teria inibido a manifestação de conflitos internos.

Segundo o autor,

os Mundurucú da savana não brigam entre si e mantêm a aparência externa

de solidariedade e cooperação. Mas sua sociedade é extremamente

vulnerável ao faccionalismo e à hostilidade; a coesão social é precária e aborrecimentos são motivos importantes para mudar-se da aldeia (Murphy

1978 [1960]: 131).

aos outros homens da aldeia, o que, por sua vez, propiciava o surgimento de rivalidades, e, em situações de

conflitos internos, era comum que a família do chefe fosse alvo de acusações de feitiçaria (Murphy 1956: 426). 49 Murphy (1956: 418) listou 38 clãs, sendo que 16 pertenciam à metade vermelha e 22 à metade branca.

Tratava-se de nomes epônimos de plantas, animais ou pássaros, com os quais não se mantinha nenhuma relação

especial. Já Barbosa Rodrigues (1882: 28) menciona a existência de três “divisões ou famílias” que se

distinguiam entre si pelas cores dos trajes. Estas seriam, segundo o autor, as famílias: Ipapacate (vermelha),

Aririchá (branca) e Iasumpaguate (preta). “Na primeira, nos seus enfeites, predomina a côr vermelha; na

segunda, a amarella, e na terceira, a azul, cores das pennas de varias espécies de araras, que para esse fim criam”

(Barbosa Rodrigues 1882: 28). Apesar de não haver menção a essa terceira divisão nos trabalhos de Murphy, o

dado parece relevante. Nas imagens dos objetos Munduruku armazenados na coleção etnográfica do Museu

Nacional [figuras 6, 7, 8, e 9] podemos perceber a utilização de plumária nas cores vermelha, amarela, preta e

azul, permitindo-nos questionar se, em um passado remoto, não teriam existido outras divisões significativas no seio da sociedade Munduruku (ver Nascimento 2009: 73). 50 Murphy & Murphy (1974: 138-139) mencionaram a existência de uma hostilidade entre os sexos, a

qual se tornava aparente nas relações jocosas estabelecidas em muitos rituais, como a prática de jogar água um

no outro durante a pesca com timbó ou a captura de um membro da metade oposta nas danças rituais. O

iboiwatitit também representava um papel importante nos rituais funerários. Quando um guerreiro era morto, por

exemplo, seu iboiwatitit tinha obrigação de enterrá-lo, mesmo que simbolicamente. Na impossibilidade de

resgatar o corpo, trazia-se de volta o úmero do morto. Já as mulheres, quando se tornavam viúvas, tinham os

cabelos cortados por um homem da metade oposta e observavam um luto que se estendia por vários meses

(Murphy 1958). Murphy aponta para a existência de um “antagonismo ritual entre metades” (1958: 53). No

entanto, tais exemplos mostram que os papéis representados pelas metades não eram simplesmente de rivalidade

e oposição, como sugere o autor, mas também de complementaridade.

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Para Murphy (1957), a ausência de mecanismos internos de liberação de tensão teria

contribuído para o desenvolvimento da guerra. Em suas palavras, a guerra funcionaria como

uma “válvula de escape”, um mecanismo de preservação e de fortalecimento da unidade tribal

(Murphy 1957: 1032). A conjunção de descendência patrilinear com residência matrilocal

seria a explicação para esse cenário.

Nem todos os grupos matrilocais reprimem a agressão na mesma medida em

que o fazem os Mundurucú; tampouco são igualmente guerreiros. A ênfase

na coesão social e o direcionamento externo da agressão provêm da persistência de clãs patrilineares em uma sociedade matrilocal. (...) A guerra,

podemos concluir, é um meio especialmente efetivo de promover coesão

social, pois se trata de uma ocasião na qual os membros de uma sociedade se

unem, apesar das diferenças faccionais, em função de um objetivo comum (Murphy 1957: 1034)

Contudo, para Murphy (1956, 1957, 1978 [1960]), essa combinação seria algo recente

na história do grupo, pois no passado os Munduruku teriam sido patrilineares e patrilocais.

Com esta hipótese em mente, o autor propôs que o engajamento progressivo nas trocas

comerciais com os brancos teria conduzido a uma reestruturação interna e alterado

profundamente os padrões de organização social. O consumo crescente de farinha por parte da

população local teria valorizado a mão de obra feminina e feito com que as famílias

mantivessem suas filhas em casa para fortalecer a unidade produtiva – situação que teria

terminado por conduzir à adoção da matrilocalidade (Murphy 1978 [1960]: 81). Vejamos seus

argumentos.

Em primeiro lugar, Murphy (1978 [1960]) constatou a existência de subdivisões

internas a cada clã, as quais chamou de subclãs. Segundo o autor, este dado indicaria que, no

passado, os Munduruku passaram por um processo de expansão populacional, o qual teria

acarretado uma segmentação interna. Esse processo, por sua vez, seria possível apenas em

sociedades nas quais houvesse clãs coesos e localizados geograficamente, o que se daria

apenas se os Munduruku fossem patrilocais. Além disto, Murphy (1978 [1960]: 74) alega que

o fato do termo para clã (diwat) ser traduzido como “habitantes do rio” indicaria que os clãs

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eram, originalmente, entidades situadas em um determinado local, ao invés de grupos

dispersos entre as aldeias.

Outro argumento fornecido pelo autor diz respeito às flautas sagradas karökö.

Composto por três flautas, cada conjunto abrigava as seguintes “classes de espíritos”: o tubö,

espírito ancestral do clã da pessoa que o fabricou, o ibiunbök, a alma,51

e os karökö ejewot,

um conjunto de espíritos companheiros das flautas (Murphy 1978 [1960]: 75). Esses espíritos

tinham que ser alimentados e os instrumentos deviam ser tocados com frequência,

especialmente ao cair da noite. Antigamente eram tocados diariamente, mas Murphy (1958)

conta que durante sua pesquisa esta era uma prática presente apenas nas aldeias da savana, e

mesmo ali o emprego dos karökö se dava cada vez com menos regularidade.52

Os instrumentos eram considerados posse do clã da pessoa que o fabricou, pois

abrigavam o mesmo tubö. No entanto, devido à estrutura dispersa dos clãs, acabavam sendo

propriedade da aldeia e podiam ser tocados por qualquer homem que assim o desejasse. “Essa

anomalia”, diz Murphy (1978 [1960]: 76) “só poderia ser resolvida caso o clã fosse uma

unidade localizada, ou tivesse um núcleo geográfico”. Segundo o autor, na época em que a

residência era patrilocal, clã e aldeia coincidiam em uma mesma unidade e ambos recebiam a

proteção do karökö. Com a mudança de regime, a proteção teria passado a se direcionar

unicamente para a aldeia, não mais para o clã ao qual o próprio instrumento pertenceria. Em

suma, para Murphy, “a indicação de posse do karökö por parte dos clãs e a localidade

implícita na palavra designada para clã sugerem que a regra de residência matrilocal não é tão

antiga e foi precedida pela patrilocalidade” (1978 [1960]: 76).

51 Segundo Murphy (1958), os Munduruku acreditavam que todos os humanos, animais, peixes e plantas

domesticadas possuíam uma alma – ibiunbök. Quando um animal morria, por exemplo, sua alma seguia para a

“terra da caça” onde se transformava e passava a viver como gente. Já os humanos possuíam dois tipos de

ibiunbök: uma “alma verdadeira” e uma que é a sombra ou o reflexo da pessoa (Murphy 1958: 12-28, 61-63). 52 Os instrumentos ficavam guardados em um compartimento especial na casa dos homens e não

podiam, em hipótese alguma, ser vistos pelas mulheres. No mito de origem, consta que foram descobertos pelas

mulheres, mas os homens os usurparam e desde então elas são proibidas de vê-los. De acordo com Murphy

(1958), no passado, realizava-se anualmente uma grande festa para os espíritos do karökö. Havia comida e

bebida em abundância e os instrumentos eram tocados durante toda a noite.

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Apesar das justificativas apresentadas, essa teoria mostrou-se frágil. Murphy não

possui nenhum relato de informante ou registro histórico que corrobore sua hipótese.

“Matrilocalidade era o único modo de residência que mesmo o Mundurucú mais velho podia

se lembrar, e não havia nenhuma memória tradicional de uma patrilocalidade prévia”

(Murphy 1978 [1960]: 80). Segundo suas estimativas, a mudança da patrilocalidade para a

matrilocalidade teria ocorrido na primeira metade do século XIX, e só poderia ser entendida

como um resultado das mudanças decorrentes do contato (Murphy 1956: 414; 1957: 1031;

1978 [1960]: 80).

A ousadia da interpretação suscitou polêmica na época (ver Brown 1957 e Wilson

1958). Anos mais tarde, Alcida Ramos (1978) retomou o trabalho de Murphy para

desconstruir seus argumentos. A combinação de patrilinearidade com matrilocalidade não

seria uma exclusividade dos Munduruku, alega Ramos. Esta mesma composição seria

encontrada, por exemplo, entre os Parintintin, Xavante, Tapirapé, ou Sanumá – estes últimos

estudados pela própria autora (Ramos 1978: 679). Além do mais, segundo Ramos (1978:

678), o fato do termo para clã (diwat) ser traduzido como “habitantes do rio” não implica que

estes tenham sido entidades localizadas geograficamente, como sugeriu Murphy. Ao invés

disto, este fato indicaria a condição dos Munduruku enquanto índios que habitam as margens

dos rios. Conforme Lévi-Strauss (apud Ramos 1978:678) já havia dito, sistemas de

nominação são códigos classificatórios e não representam, necessariamente, uma descrição da

realidade. Sendo assim, Ramos sugere que os nomes dos clãs estariam, provavelmente,

relacionados à mitologia do grupo e não à ocupação histórica de determinadas localidades.

Já a hipótese de que haveria subdivisões internas aos clãs é difícil de ser sustentada,

pois dentre os trinta e oito clãs, Murphy (1978 [1960]: 77) constata a existência de duas

seções em apenas quatro. Tampouco existiriam evidências concretas de que os direitos de

posse sobre o karökö pertenceriam ao clã e não à aldeia, pois o próprio autor afirma que “os

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instrumentos era tocados por homens, de qualquer clã ou metade, que vivessem na aldeia, ou

por qualquer homem Mundurucú que estivesse de passagem” (Murphy 1978[1960]: 75).

Dessa forma, Ramos (1978: 679) sugere que a informação relevante é o fato de que “as

flautas deveriam ser tocadas e alimentadas por homens (ao invés de mulheres)”. Contrariando

a interpretação de Murphy, a autora sugere que não há nenhuma anomalia no fato do karökö

abrigar os espíritos ancestrais de um determinado clã, mas ficar sob os cuidados de homens

de outros clãs. Trata-se “de uma possibilidade perfeitamente lógica e prática”, diz (Ramos

1978: 679).

A autora também refuta a interpretação de que vínculos de consangüinidade

facilitariam o trabalho cooperativo entre as mulheres e fortaleceriam a aldeia enquanto

unidade produtiva. Segundo ela,

o argumento de que a eficiência na produção econômica aumenta pelo fato

dos grupos de trabalho serem constituídos por indivíduos relacionados por

vínculos de consanguinidade é insuficiente porque o leitor não sabe muito sobre a natureza da relação entre consangüíneos e afins entre os Munduruku

(Ramos 1978: 679).

Por fim, tampouco haveria razões para supor que a harmonia encontrada nas aldeias

Munduruku seria função de um antagonismo reprimido. De fato, o próprio poder bélico dos

Munduruku parece derivar da combinação de residência matrilocal com descendência

patrilinear. Como vimos anteriormente, Murphy alega que a mudança para a matrilocalidade

teria atribuído uma nova função à guerra, a qual teria se tornado um importante mecanismo de

coesão social e contribuído para a sobrevivência do grupo mesmo após mais de um século de

contato (Murphy 1957: 1031-1032).

Perda e transformação

Até aqui, vimos como Murphy buscou compreender as mudanças relacionadas à

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organização social (a transferência de habitat e a hipótese da mudança no regime de

residência) em continuidade com a estrutura social Munduruku. Tais modificações foram lidas

como transformações de um sistema que opera em interação com o exterior e conforme uma

dinâmica interna própria. No entanto, os aspectos relacionados às práticas rituais tiveram um

tratamento diferente. Na análise de Murphy, estes foram descritos como uma esfera da vida

Munduruku que estaria se perdendo definitivamente, descartando possibilidades de criações

e/ou reinvenções. Ao conjecturar a respeito do futuro das aldeias do rio Cururu, Murphy

previu uma inevitável incorporação à sociedade envolvente. Segundo ele, nestas aldeias, “as

bases tradicionais de integração já se perderam e a mudança social não tem outra direção”

(Murphy 1978 [1960]: 177).

Dos inúmeros rituais praticados pelos Munduruku, boa parte havia sido abandonada na

época de Murphy. Contudo, apesar de se encontrarem há mais de quatro décadas em contato

com os missionários franciscanos, o autor sugere que as modificações observadas não eram

resultado dessa influência, mas sim reflexo de mudanças estruturais mais gerais – como a

substituição da caça pela pesca, o fim da guerra, a diminuição da população, o abandono das

aldeias na savana, a adoção de uma produção econômica individualizada, entre outras.

Ainda que os missionários tivessem enorme prestígio entre os índios, o esforço no

sentido de catequizá-los teria encontrado pouca acolhida. “Uma característica interessante dos

Mundurucú que habitam as aldeias no Cururu é a indiferença generalizada que manifestam

frente às crenças cristãs, apesar de não haver nenhum problema em aceitar a Missão como

instituição”, comenta Murphy (1958: 9).53

Dessa forma, deparamo-nos com uma situação na

qual crenças nativas e cristãs coexistem sem contradição. O xamanismo, ou as acusações de

feitiçaria, por exemplo, continuavam amplamente operantes mesmo no contexto de convívio

53 Os dados coletados por Murphy (1958) são ricos para pensar o tema da conversão indígena. Noções

como pecado original ou inferno, por exemplo, não eram consideradas válidas para um indivíduo Munduruku.

“Eles raramente duvidam do que os padres falam, já que estes são considerados homens sábios e sinceros. No

entanto, seus ensinamentos são dos brancos e, portanto, válidos apenas para estes” (Murphy 1958: 10).

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com os missionários. Além das curas xamânicas, Murphy (1958: 133-135) teve oportunidade

de presenciar as cerimônias das flautas sagradas e as cerimônias para recuperação das almas

roubadas.54

Os demais rituais foram reconstruídos a partir da memória dos informantes.

No entanto, da mesma forma pela qual Murphy buscou entender as mudanças na

organização social, a documentação dos rituais pode contribuir para pensar o “mundo vivido”

Munduruku como um sistema de transformações (ver Gow 2001). Se olharmos atentamente,

veremos que boa parte dos rituais envolvia um processo transformacional. Na cerimônia de

iniciação masculina (o Duparíp), por exemplo, jovens garotos eram enfeitados como jacamins

e levados para a casa dos homens, de onde só podiam sair após o encerramento do ciclo ritual.

Nestas ocasiões, xamãs poderosos transformavam pessoas em animais, como a anta ou o

veado. Aqueles que passavam pela temida experiência tornavam-se pessoas importantes

devido ao vínculo estabelecido com o reino dos animais (Murphy 1958: 52-53).

A transformação de homens em animais também ocorria durante o Dajearuparip,

ritual realizado com propósito de agradar os espíritos mãe da caça.55

Baseado nas informações

coletadas, Murphy (1958: 58-61) sugere que o Dajearuparip durava cerca de dez dias e teria

desaparecido por volta de 1945. Durante vários dias, um grupo de cinco homens, cobertos

com folhas de buriti, dançava e cantava ao redor da aldeia, enquanto o restante permanecia na

54 Segundo Murphy (1958), apesar do destino da alma após a morte ser considerado agradável, pois lá se

vivia como antigamente, antes da chegada dos brancos, os Munduruku não pareciam se importar com isso. A

verdadeira preocupação dizia respeito aos caminhos trilhados pela alma em vida, já que esta era bastante

vulnerável a ataques e raptos. Assim, conforme nos relata o autor, quando uma pessoa adoecia, corria o risco de

que sua alma deixasse o corpo e saísse vagando por aí, o que constituía fonte de ameaça para outras pessoas na

aldeia. Ou ainda, os espíritos mãe da caça poderiam roubá-la e a única forma de trazê-la de volta era através de

um ritual xamânico. Este era presidido por quatro xamãs e acompanhado por dois homens que tivessem recebido determinadas canções através de sonhos. A alma roubada passava de um animal para outro e apenas retornava ao

corpo da pessoa doente quando entoassem a canção específica para o animal que tivesse a posse da alma. Esse

processo poderia demorar muito tempo, já que nem o xamã nem os cantores sabiam qual animal estava com a

alma roubada. 55 Uma das principais relações com o “mundo dos animais” se dava com o putcha ši, espírito mãe da

caça. Boa parte dos rituais consistia em alimentar esses espíritos e, dessa forma, garantir o bem-estar da

comunidade com uma provisão adequada de animais de caça. Todos na aldeia deviam demonstrar respeito e

cuidar para não agredir esses espíritos, do contrário eles se vingariam enviando objetos malignos, causando

acidentes e roubando a alma dos humanos. Além do putcha ši, cada animal de caça possuía um espírito-mãe

próprio que deveria ser alimentado e respeitado: biú ši (mãe da anta), daje ši (mãe do pecari), rapsem ši (mãe do

veado) e taué ši (mãe do macaco-prego) (Murphy 1958: 14-17).

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casa dos homens, entoando canções relacionadas aos animais. O auge da cerimônia era a

convocação dos espíritos. Uma série de crânios de animais era disposta ordenadamente, em

uma fileira, dentro da casa dos homens. Em uma das pontas da fila ficava uma cabeça de anta

e, de frente para ela, duas cabeças de macaco-coatá. Um homem que conhecesse as canções

dedicadas a cada animal sentava-se diante dos crânios enfileirados. Quando os espíritos

chegavam, os xamãs sopravam fumaça de tabaco nos crânios dos animais e, inserindo um

tubo de bambu em cada um, retiravam as flechas que haviam sido alojadas por caçadores. Em

seguida, ofereciam uma bebida de mandioca aos espíritos que, apaziguados, partiam

devidamente alimentados.

Após a visita dos espíritos, os participantes permaneciam três ou quatro dias dançando

e conduzindo atividades para agradar aos animais de caça. Uma delas consistia em selecionar

dois homens que, besuntados com barro branco na testa, se comportavam como macacos

coatás. Outros homens esfregavam o barro nas bochechas e nas mãos e, dessa forma, viravam

pecaris. Eles então se organizavam em fila, estando os dois macacos na frente, e entravam na

aldeia, cada qual emitindo sons e adotando comportamentos característicos de sua espécie (os

macacos roubavam comida e faziam bagunça enquanto os pecaris grunhiam e batiam com a

“pata” no chão). Toda essa performance era acompanhada pelos cantos das mulheres que, no

final, atacavam e capturavam os homens-animais para queimá-los no fogo.

No último dia, um grupo de homens imitava a anta, pintavam-se com urucum e

jenipapo e, ao amanhecer, fugiam para a floresta. Durante todo o dia os membros do Biuši

(mães da anta), uma das sociedades masculinas munduruku, perseguiam seus iboiwatitit, os

quais, uma vez capturados, passavam a fazer parte desta sociedade. A atividade terminava ao

cair da noite, quando todos retornavam à aldeia. Nesse momento, as mulheres se escondiam e

evitavam vê-los, do contrário, seus filhos poderiam nascer com feição de anta. Na última

noite, antes dos convidados partirem, novos animais eram imitados, como a tartaruga

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terrestre, o gafanhoto e o tucano.

Do mesmo modo, ao analisar o extenso ciclo ritual em torno da cabeça-troféu,

veremos a transformação como elemento constitutivo (Murphy 1958: 53-58). O ritual

completo durava três estações chuvosas e desenrolava-se em torno da cabeça e de seu “dono”,

que recebia o título de Dajeboiši (mãe do pecari).56

Durante todo esse período, o Dajeboiši,

bem como sua mulher, tinha que observar uma série de restrições, alimentares e sexuais, e

evitar contato com outros membros do grupo. Recluso, ele passava boa parte do dia deitado

na rede e olhando para cima, para evitar cruzar seu olhar com os demais. Tornava-se uma

pessoa poderosa e, junto com seu troféu, era responsável por agradar os espíritos mãe da caça.

Tinha a função de ir, acompanhado da cabeça, até a entrada da floresta quando uma expedição

estivesse saindo para caçar. Ao fim do ciclo ritual, o Dajeboiši podia retomar sua vida normal,

a cabeça perdia sua “eficácia mágica”, mas o guerreiro, contudo, mantinha seu título

distintivo.

Vemos, assim, como a cabeça do inimigo se transformava em um objeto poderoso e

acarretava modificações no cotidiano da aldeia. De modo semelhante, ao analisar a mitologia,

também encontraremos uma série de “histórias” que falam de transformações de homens em

animais, e vice-versa.57

56 A preparação do troféu começava ainda no retorno para casa: retiravam o cérebro, as partes moles e os

dentes da cabeça; ferviam e deixavam secar ao fogo para conservar a pele; inseriam uma corda passando pela

boca e pelo nariz e preenchiam as cavidades oculares com cera de abelha [figuras 8, 9 e 10]. O ritual dividia-se

em três fases. A primeira, chamada de Inyenborotaptam (a decoração das orelhas), tinha início assim que a

expedição retornava à aldeia. Na próxima estação chuvosa, o Dajeboiši convidava as aldeias vizinhas para a

segunda fase do ritual, o Yašegon (retirada da pele da cabeça), na qual se removia a pele e deixava o crânio

pendurado num canto da casa dos homens. Na estação seguinte vinha a terceira e última fase, o Taimetoröm (pendurar os dentes), a mais elaborada e demorada de todas. Na terceira fase, os dentes que haviam sido

extraídos da cabeça eram costurados num cinto de algodão que ficava guardado cuidadosamente na casa do

guerreiro. Durante essa fase ocorria uma importante comemoração do Darekši (mães do arco), uma “associação

de homens” cujos membros se organizavam de acordo com seu status guerreiro. No dia da chegada dos

convidados, um membro da “sociedade Muchacha” (um grupo composto por antigos Dajeboiši) dava o sinal

para que os meninos, devidamente tonsurados e pintados, fugissem para a floresta. Em seguida, os membros do

Darekši saíam em sua captura, sendo que cada um deveria capturar um garoto da metade oposta, seu iboiwatitit.

Ao retornar à aldeia todos iam para a casa do Dajeboiši, onde lhes eram servidos bebida e comida à vontade.

Após terminarem, dirigiam-se à casa dos homens, onde celebravam os feitos de guerra até o amanhecer (Murphy

1958: 53-58). 57 No livro Munduruku Religion (1958), Murphy nos apresenta um conjunto de 58 mitos. Apesar de

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A mitologia está repleta de relatos de um tempo no qual os animais tinham

forma humana. A origem de muitas espécies é contada com base nesta

metamorfose. A situação reversa também pode ser vista, como no caso da conversão de pessoas em animais durante a cerimônia do Duparip (Murphy

1958: 133).

Segundo Murphy (1958), o cerne das crenças religiosas e dos rituais Munduruku

encontrava-se na relação dos humanos com os animais. Esta era evidenciada na importância

em alimentá-los e agradá-los, seja através da cabeça-troféu, das flautas sagradas ou das

cerimônias para recuperar almas roubadas. Os rituais eram responsáveis pela vitalidade da

cultura Munduruku e indispensáveis à integração de sua sociedade (Murphy 1958).

Existe uma consciência profunda e nostálgica entre os Mundurucú mais

velhos de que eles estão testemunhando o desaparecimento do seu modo de

vida. Todos sabem que a maior parte dos homens sábios e espertos da tribo estão mortos e os poucos que ainda persistem irão morrer em um futuro

próximo. (...) Pouco esforço tem sido feito para reinstalar aquilo que se

perdeu, pois eles vêem essa deterioração como progressiva e irreversível (Murphy 1958: 51)

De fato, as perdas foram irreparáveis. No entanto, é necessário buscar outras maneiras

de pensar a situação atual que não seja a nostalgia do passado. Conhecer costumes de um

tempo que passou é essencial, mas considerá-lo como reduto de um estado original e como

detentor de uma tradição genuína é arriscado. Conforme Fausto chamou atenção, é preciso

“pensar a transformação a partir dos próprios modos indígenas de produzir a transformação”

(2001: 29) – e os rituais praticados pelos Munduruku no passado parecem funcionar nesse

sentido.

Tendo em vista tais considerações, encerro este capítulo com alguns questionamentos.

É possível pensar o elemento transformacional, que ocupava um lugar central na vida ritual,

em outros aspectos da vida Munduruku? Como utilizar o conhecimento sobre o passado para

entender o presente? Ou ainda, o que permite, nesse processo de intenso contato com os

tratar-se de um rico material, optei por não incluí-lo neste trabalho, pois desde o início da pesquisa concentrei-

me em compreender o complexo ritual Munduruku. Espero, em ocasiões futuras, ter oportunidade de acrescentar

dados relativos à mitologia.

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brancos, permanecer sendo Munduruku? A seguir, proponho alguns elementos para pensar

essa situação sob uma ótica alternativa à da aculturação e à da perda de identidade.

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Capítulo 4

Virando branco ou... Devir-pariwat

Os Munduruku sentem que seu modo de vida só pode ser levado adiante

satisfatoriamente nas aldeias localizadas na savana. Abandonar essas

comunidades é tornar-se quase um estrangeiro

- Robert Murphy -

No presente capítulo, faço uma releitura do “caso Munduruku”, tendo como ponto de

partida a breve incursão a campo realizada no final do ano de 2008. Para tanto, irei apresentar,

em linhas gerais, elementos que me chamaram atenção durante a estadia de aproximadamente

dois meses em uma aldeia Munduruku. Foi essa experiência que despertou a curiosidade e o

desejo de estudar a relação com os brancos. Devo advertir, entretanto, que se trata antes de

uma narrativa pessoal do que uma descrição propriamente etnográfica. Em seguida, retomo a

discussão a cerca do contato entre índios e brancos sob uma ótica da transformação,

utilizando tanto o trabalho de Murphy sobre os Munduruku quanto teses de americanistas que,

de alguma forma, abordaram o mesmo tema. O objetivo é fornecer elementos para pensar uma

assertiva que, apesar de difundida na Amazônia, apenas recentemente alcançou o status de

“problema antropológico”, ou seja, a afirmativa de que “estamos virando branco”.

Impressões Etnográficas

A chegada: Jacareacanga

Quando cheguei a Jacareacanga, tinha em mãos uma autorização da FUNAI que

permitia meu ingresso na Terra Indígena Munduruku, porém, condicionada à aceitação dos

próprios índios. “Jacaré”, como é localmente conhecida, é a porta de entrada da

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Mundurucânia. Trata-se de um pequeno município localizado às margens da Transamazônica,

no sul do estado do Pará, a cerca de 400 km de Itaituba.58

Cheguei no início do mês de

outubro, logo após o resultado das eleições municipais de 2008. O agito das campanhas e a

movimentação política ainda ressoavam pela cidade.

A primeira providência foi contatar a Associação Pusuru, organização indígena

Munduruku, com sede em Jacareacanga, criada em 1991 com objetivo de fortalecer as

reivindicações pela demarcação da terra, além da defesa de outros interesses da população

(como educação, saúde e defesa do meio ambiente).59

Minha intenção inicial era ir para a

aldeia Cabruá, localizada na região de savana, onde o casal Murphy havia estado e que,

conforme fui informada, continuava sendo uma das aldeias mais “tradicionais” [anexo IV].

No entanto, após uma delicada situação na qual me vi frente a um grupo de líderes indígenas,

preocupados com as intenções do meu trabalho e apreensivos em permitir meu acesso ao

“conhecimento dos antigos”, o pedido foi negado. Tive que me contentar com a afirmação de

que não queriam nenhum pariwat em suas aldeias, muito menos “pesquisador”. Como

alternativa, pedi autorização para ir à Missão São Francisco, aldeia às margens do rio Cururu,

na qual o casal Murphy também havia estado. Nesse caso, o processo foi mais rápido e menos

conflituoso por conta do apoio que recebi de Ademir Kaba, o qual interveio junto a uma

importante liderança da Missão, seu tio Antonio Cosme.60

58 Nas últimas décadas, com o avanço das fronteiras econômicas, a região tem experimentado muitas

mudanças. Por volta dos anos 50, uma base militar foi instalada na localidade de Jacareacanga, na época um

pequeno vilarejo. No entanto, foi a partir da década de 70, com a abertura da Transamazônica, e mais

enfaticamente na década seguinte, com a “febre do ouro”, que a região passou a atrair grande número de imigrantes. A queda do preço da borracha no mercado internacional, a instalação de balsas e a abertura de

garimpos ao longo dos rios Tapajós, das Tropas, Cabitutu, Cadiriri e Teles Pires, levaram muitos indígenas a se

envolver na extração aurífera. Em toda a região do Alto Tapajós, parece que o único rio que permaneceu

inexplorado foi o Cururu. Em 1991, Jacareacanga foi promovida à categoria de Município, o que impulsionou

ainda mais o desenvolvimento na região e lhe conferiu autonomia política. 59 http://pib.socioambiental.org/pt/povo/munduruku/801 60 A ajuda que recebi de Ademir foi fundamental nessa fase inicial. Desde o início, quando decidi

estudar os Munduruku, mantivemos contato por meio eletrônico e tive a sorte de encontrá-lo assim que cheguei a

Jacareacanga. Fiquei bastante impressionada com sua trajetória de trânsito entre os universos pariwat e

Munduruku. Ademir nasceu na aldeia Santa Cruz, próxima à Missão, e em 1992, quando tinha 14 anos, foi morar

na casa de um tio em Belém, permanecendo mais de 15 anos por lá. Na capital, concluiu seus estudos, fez

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Durante os quinze dias que permaneci em Jacareacanga apreendi diferentes imagens

sobre os Munduruku veiculadas pela população local. Tive oportunidade de conversar com

diversas pessoas e cada um tinha uma opinião distinta a respeito dos índios que iam à cidade

com frequência. Muitos comentavam que o atual prefeito só havia sido eleito por conta da

intensa campanha feita em área indígena, demonstrando que a política local se encontra

fortemente vinculada à participação dos índios. Outros comentavam que os índios eram

bravos e se organizavam para reivindicar seus direitos, como aconteceu em ocasiões nas quais

a prefeitura atrasou os salários ou a Funasa não atendeu seus pedidos. Havia ainda aqueles

que reclamavam indignados pelo fato de os índios receberem assistência governamental,

como bolsa-escola, salário maternidade e aposentadoria, e gastarem com coisas que julgavam

não haver necessidade na aldeia – como eletrodomésticos, por exemplo.

Perdendo a cultura: as aldeias do Cururu

Cheguei à Missão São Francisco no dia 23 de outubro de 2008, pouco antes de uma

nuvem negra cobrir o céu e uma forte chuva contribuir para a elevação dos rios. Era o início

do chamado inverno na Amazônia; época de cheia, na qual os rios tornam-se facilmente

navegáveis, mas, em compensação, os peixes migram para os igarapés, causando dificuldades

alimentares para uma população que tem na pesca sua principal fonte de proteína. As crianças

que foram receber a voadeira no “porto” me conduziram à casa das Irmãs – uma construção

faculdade de Ciências Sociais e se formou antropólogo. Após mais de 10 anos sem ver sua família, Ademir

retornou para uma visita. A memória da vida na aldeia permanecia muito forte e ele me contou ter sentido

necessidade de “trabalhar pelo seu povo”. No início de 2008, Ademir voltou a viver com sua família e, desde

então, realiza uma pesquisa sobre mitos e cosmologia Munduruku. Sempre que possível, coleta as histórias dos

antigos, pois conforme afirmou, “não dá para conhecer os Munduruku sem conhecer os mitos; são eles que

dizem como se relacionar com a natureza e qual a origem das coisas”. Ademir foi o primeiro a me alertar para o

fato de que os Munduruku “mudaram muito nos últimos 10 anos, estão dependentes da civilização, só querem

saber de DVD, salgadinho e coca-cola”; dos costumes antigos preservam somente a língua, o parentesco e a

crença em feitiçaria, me contou. No entanto, nas conversas que tivemos, o que me intrigou foi perceber certa

angústia existencial, uma dificuldade em se situar – estava entre a vida na cidade e a vida na aldeia, o mundo dos

brancos e o mundo dos parentes.

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com traços de arquitetura alemã, erguida há quase um século pelos primeiros missionários que

ali se estabeleceram.

Trata-se de uma casa grande, com dois andares, na qual, além da residência das freiras,

encontra-se uma ampla cozinha, um refeitório, a farmácia da aldeia e um alojamento para

visitantes. Nesses, ficam hospedados os pariwat que estão de passagem pela Missão, bem

como enfermeiros e técnicos da Funasa. Além da Irmã Conceição (Irmã Conci), que mora na

aldeia desde 1975, e do frei Gilberto (o paim), que está ali há cerca de 20 anos, o

estabelecimento contava no ano de 2008 com mais duas freiras, Irmã Marta e Irmã Mirna,

ambas professoras na escola da aldeia. No entanto, o fluxo de padres e, principalmente,

freiras, é grande – alguns residem muitos anos enquanto outros permanecem apenas curtas

temporadas. Parte da formação missionária das Irmãs da Imaculada Conceição é fazer um

estágio de imersão, o que exige que vivam por dois anos no seio de uma cultura diferente,

podendo ser um país na África, como a Nigéria, ou um povo indígena (o único atendido no

Brasil é os Munduruku).

Uma das maneiras que utilizei para me aproximar das pessoas na aldeia foi carregar

comigo um álbum com gravuras retiradas de livros e imagens de objetos Munduruku que hoje

se encontram em museus, com destaque para a coleção etnológica do Museu Nacional, RJ

[figuras 6, 7, 8 e 9]. Quando questionada sobre o porquê de estar ali, contava-lhes que tinha

interesse em aprender sobre os Munduruku; queria saber como viviam nos dias de hoje, já que

havia conhecido um pouco sobre eles nos livros, mas tratava-se de informações muito antigas.

A resposta ao meu discurso bem-intencionado era sempre em tom de lamentação: “ah, hoje

em dia não se vive mais como os antigos”; “os Mundurukus estão mudando, querem usar

coisa de pariwat, colocar brinco e tatuagem”; “os Munduruku só querem saber de assistir

televisão e estão esquecendo os cantos e danças dos antigos”; “hoje em dia se usa muitas

palavras em português, os Munduruku estão esquecendo a própria língua”.

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Para Francisco de Assis Akay, professor de alfabetização na Missão, é muito

importante ensinar a língua munduruku na escola, pois muitos estão esquecendo os nomes das

plantas, das frutas e dos animais.61

O professor contou-me que, em outros lugares, como as

aldeias do rio Tapajós ou do Teles Pires, quase não se fala mais em munduruku. Segundo ele,

no rio Cabitutu já não existe peixe ou caça, e em Coatá-Laranjal (AM) já perderam tudo –

sobrenome, clã, língua... O Cururu seria o local onde ainda se preserva a língua e a cultura;

afirmação que parece interessante contrastada ao fato de que, na época em que Murphy fez

seu trabalho, as aldeias do Cururu protagonizavam a mudança de forma mais intensa.62

Por

fim, o professor ressentiu-se do fato de hoje em dia os Munduruku utilizarem muitas palavras

“emprestadas” do português, e arriscou uma ousada previsão de que, “no futuro, acho que em

2010, não vão nem ser mais índios, vai ser tudo pariwat”.

Tais constatações eram expressas em paralelo à afirmação sobre a importância de

conhecer a “tradição” e saber como viviam os antigos, preservar a língua, aprender sobre a

própria cultura e, sobretudo, estudar... para se relacionar com o pariwat sem ser enganado.

Assim, desde a primeira semana em que cheguei na Missão, chamou-me a atenção o processo

de transformação pelo qual os Munduruku vinham passando: estavam virando pariwat,

diziam... Mas, com o desenrolar dos dias, pude perceber não se tratar de um processo

61 Uma preocupação evidenciada no discurso de diversos Munduruku com quem conversei é a

incorporação de palavras “estrangeiras” no vocabulário indígena, ou seja, o uso corrente do português para se

referir a elementos tão diversos como: colher, garfo, banco, manga, melancia, escola, trabalho, associação, assembléia, capitão. Muitos alegam ter “esquecido” a pronúncia destas palavras na própria língua, o que faz com

que hoje, por falta de opção, tenham que recorrer à versão pariwat. A preocupação com a perda da língua é

interessante, pois, se por um lado incorporaram muitas palavras do português, por outro, comunicam-se entre si

majoritariamente na língua munduruku. A maioria dos homens consegue se comunicar em português, mas o

utiliza apenas para falar com pariwat, enquanto boa parte das mulheres entende o português, mas raramente o

fala.

62 Durante minha estadia na Missão São Francisco, Irmã Conceição contou-me que os padres sempre buscaram conscientizar os índios a respeito dos malefícios do garimpo, alertando-os para não permitir a entrada

das balsas de extração, pois estas iriam poluir as águas e contaminar os peixes. Parece que, realmente, as águas

do Cururu foram preservadas, a despeito do que ocorreu, por exemplo, com o rio das Tropas ou o rio Cabitutu,

os quais se encontram contaminados por mercúrio e possuem altos índices de malária – sem contar as

dificuldades alimentares por conta da escassez de peixe. Ramos (2000) também menciona que, desde o início do

século XX, pelo menos, os Munduruku dominavam o Cururu, impedindo que seringueiros não-índios

adentrassem o território e permitindo acesso apenas aos regatões com os quais tinham acordos prévios.

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homogêneo, pois uns pareciam ser mais pariwat que outros. Foi o que apreendi da fala de

Albino Saw, capitão e pajé da aldeia Boca da Estrada, ao mencionar que a Missão era uma

aldeia muito modificada, que ali o consumo de bebida alcoólica era frequente e que se vivia

como pariwat.63

Segundo ele, havia rumores de que em breve a Missão se tornaria município,

tão grande estava. Contou-me ainda que, na época do SPI, tentaram ensinar português aos

Munduruku. No entanto, ao invés de, com isso, serem integrados à sociedade brasileira, esses

se tornaram ainda mais guerreiros, pois passaram a entender melhor os pariwat.

O mesmo tema retornou em uma conversa com o capitão da Missão Velha, Venâncio

Puxo, na qual ele me contou a importância da escola para aprender o conhecimento dos

pariwat, de modo a não ser enganado. “Os pariwat são muitos espertos”, disse.64

Venâncio

estudou até a 4ª série na escola da Missão, quando então se casou e mudou de aldeia. Só mais

tarde, quando já estava com 40 anos, voltou a estudar. Fez curso com o CIMI, em Belém;

trabalhou com os missionários do SIL, em Porto Velho; e se formou na primeira turma

Munduruku de magistério indígena.

Foi nessa época que começou a pesquisar sobre a cultura dos antigos e estudou com o

velho Biboy (considerado o cacique geral dos Munduruku), o qual lhe ensinou muitos cantos.

Boa parte desses cantos tinha como objetivo atrair e garantir a existência dos animais, mas

havia também cantos de guerra e cantos para enfraquecer pariwat, os quais, segundo ele, são

utilizados apenas em ocasiões especiais, como a Assembléia Geral Munduruku. Preocupado

63 A aldeia Boca da Estrada fica localizada próxima à fronteira da T.I. Munduruku, na região da Serra do

Cachimbo. É uma aldeia que havia sido abandonada, mas que, recentemente, após o processo de demarcação das terras, foi reativada como medida de fiscalização. Nela reside Albino Saw e sua esposa, seus filhos e netos.

Próximo dali, na região de campos e no limite do território, está a aldeia Pista Velha, onde vive apenas um dos

filhos de Albino. Geograficamente é uma aldeia mais isolada, de acesso difícil. Em uma visita que acompanhei,

ouvi os moradores se queixarem de que não recebiam apoio da comunidade, da Funasa ou da Funai.

Reivindicaram estar ali para proteger o território, já que havia rumores de avanço de madeireiros e construção de

estrada, mas se diziam abandonados pelos próprios parentes. Alguns recebiam auxílio do governo, mas não

tinham como ir periodicamente à cidade receber e fazer compras. 64 Em uma ocasião, conversando com Venâncio, mostrei-lhe o livro que trazia comigo, Munduruku

Religion, e falei sobre os rituais dos antigos que eu conhecia, porque estavam escritos ali. Ele ficou

impressionado que eu soubesse o nome daquelas festas, mas também bastante desapontado, pois havia recebido

ordens por rádio para não falar comigo sobre o “conhecimento dos antigos”.

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com a transmissão desses cantos, Venâncio, que também é professor, os ensina na escola, para

que as crianças não se esqueçam dos antigos, pois do contrário, “os velhos morrem e tudo se

acaba, eles perdem a cultura”. A recorrência do paradigma da “perda cultural” na fala de

Venâncio é digna de nota. Segundo ele, os Munduruku já perderam a sua cultura e agora

vivem a cultura dos brancos.

Tal preocupação se expressa, por exemplo, no que diz respeito à relação entre os

clãs.65

“Antes só se casava com pessoas do outro clã, mas hoje em dia ninguém respeita mais,

e irmão casa com irmã”, disse ele. No entanto, quando o questionei sobre alguma união desse

tipo, pensou bastante e só mais tarde se lembrou que havia um casal de jovens, ali na aldeia

mesmo, ambos do “clã” vermelho, que moravam juntos. E acrescentou que “o filho deles,

coitado, vai ser assim, como pariwat”. Venâncio também me mostrou um desenho que fez do

primeiro pariwat que entrou nas terras dos munduruku, o qual identificou como sendo

Antonio Tocantins, e disse que “foi quando ele chegou que os Munduruku perderam a sua

cultura, ele deu cachaça e falou que a cultura do Munduruku não prestava, que a do pariwat

era melhor. Foi aí que a gente perdeu nossa cultura”.

Venâncio contou-me que, quando um Munduruku se casa com não-índio, é proibido

viverem juntos na aldeia “porque o pariwat é muito sabido para colocar as coisas na cabeça

dos outros, para dizer o que presta e o que não presta”. Esse comentário me deixou intrigada

com relação a um caso de pariwat que casou com uma índia Munduruku e foi plenamente

incorporado à comunidade, tendo inclusive um sobrenome bastante difundido entre a

população da Missão: Cosme. Estevão Cosme nasceu na Missão, em 1926, filho de um

paraibano. Seu pai mudou para lá na época da construção, pois como os índios “não sabiam

trabalhar”, os padres precisaram trazer muitos brancos para fazer os serviços especializados

(carpinteiro, pedreiro, marceneiro). Estevão foi criado na aldeia, a primeira língua que

65 Os clãs aos quais os Munduruku se referem são as metades exogâmicas, vermelho e branco.

Curiosamente, a palavra clã foi incorporada ao vocabulário cotidiano, mas ao fazê-lo, adquiriu novo significado.

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aprendeu foi munduruku, e desde pequeno estudou com as Irmãs residentes na Missão; casou-

se com Maria de Lourdes Akay, irmã do antigo chefe, Francisco Akay.

Estevão e Maria de Lourdes tiveram nove filhos. Dentre estes, destacam-se duas

figuras atuantes na Missão: Antonio Cosme, forte liderança, e Wenceslau Cosme, piloto da

Funasa. Um de seus netos, Carlos Cosme, é agente de saúde na Missão e foi quem, desde o

primeiro dia, ficou “responsável” por mim. Carlos me levou com sua família a todos os

lugares e, sempre disposto a ajudar, se mostrou um verdadeiro anfitrião. Antonio esteve

ausente parte do tempo em que permaneci na aldeia, mas quando presente sempre ia me

visitar, conversar e saber como “andavam as coisas”. Wenceslau é o piloto com quem cheguei

à Missão e sempre que tinha uma visita a fazer em aldeias vizinhas me convidava para

acompanhá-lo.

Dessa forma, os vínculos mais estreitos que desenvolvi em campo foram com os

membros da família Cosme, pois esses se mostraram mais abertos que o restante dos

moradores da aldeia, os quais pareciam bastante receosos em entreter longas conversas ou me

dar demasiada atenção. Além da família Cosme, outros pariwat parecem ter sido plenamente

incorporados, como os Paleci (Apiaká), Manhuari (peruanos), ou a família do professor

Rainério Ferreira, cujo avô foi contemporâneo do pai de Estevão.66

A presença constante e o relacionamento contínuo com os pariwat foram

progressivamente atraindo minha atenção. O fluxo de brancos que passa pela missão é

relativamente grande, especialmente se comparado às outras aldeias no Cururu. Além dos

residentes (como o frei e as Irmãs), passavam periodicamente por lá as técnicas de

enfermagem, enfermeiras, agentes de saneamento, agente de endemias, Careca (o regatão que

faz uma visita mensal à comunidade) e, ocasionalmente, técnicos da operadora telefônica,

engenheiro, pedreiros, linguísta, prefeito, funcionários da Funai, professores e... antropólogos.

66 Não consegui descobrir como, ou por que, mas recentemente Rainério mudou seu sobrenome para

Paygõ, sobrenome que é o mesmo da mãe de sua esposa.

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Por outro lado, o fluxo de indígenas para Jacareacanga também é elevado, seja para

receber o salário (agentes de saúde e professores), vender algum produto ou fazer compras

(além de namorar, beber e dançar, como fiquei sabendo na minha “despedida”). Boa parte dos

moradores com quem conversei demonstrava interesse em passear na cidade, o que fazia das

caronas algo disputado, afinal, poucos tinham as condições (barco, motor e combustível) de

fazê-lo. Nos dias que antecedem o pagamento dos salários, o movimento de pessoas de outras

aldeias também é grande. Muitas famílias, residentes em aldeias rio acima, param na Missão

para conversar com a Irmã Conci, tomar café com bolacha, dar algum presente e, às vezes,

pernoitar no barracão da comunidade.

A exceção parecem ser os aposentados, os quais abrangem parcela significativa da

população da Missão. Atualmente, o responsável por recolher a aposentadoria é Careca, o

regatão local, que trabalha no Cururu há mais de dezessete anos. Careca tem o cartão de todos

os aposentados, retira o dinheiro e leva no barco, junto com as mercadorias. Irmã Conceição é

responsável pela divisão, momento muito esperado pelos mais velhos, e que pude presenciar

logo no meu segundo dia na aldeia. Na véspera de chegada do “barco do Careca” todos se

mostram ansiosos e comentam a respeito; passam o dia monitorando, através das conversas de

rádio, a altura do rio em que ele está, onde pernoitou, a que horas partiu. O dia em que chega

é uma verdadeira festa. O porto se transforma em um grande mercado, com grupos de pessoas

dentro do barco e no entorno, garantindo o acesso aos bens de que necessitam.

Careca vende “de um tudo”, de mantimentos básicos (sal, sabão, açúcar, café) a

roupas, botijão de gás, óleo de motor, pulseira de relógio, chinelos e redes; aceita encomendas

e é enfático ao afirmar que “adora seu trabalho e se dá muito bem com os Munduruku”. Após

dois dias, Careca parte e leva consigo, além de um barco lotado de índios que vão passear na

cidade, boa parte do dinheiro que havia trazido para os aposentados, os quais, sem muitas

opções, fazem suas compras ali mesmo. Além do Careca, outras fontes para obter mercadorias

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dentro da aldeia são uma pequena venda instalada na casa de um morador e a visita mensal de

um funcionário da Funasa que, além de trazer encomendas, comercializa anzol, cartucho,

linha, chumbo, faca.

A escola na Missão

Como meu projeto inicial focaliza-se nos rituais, uma das primeiras coisas que

procurei saber foi a respeito das “festas”, porém, não demorei a comprovar que não havia

nada que se assemelhasse às descrições que havia lido nos livros. Por um lado, tratava-se de

algo esperado, afinal, havia passado cinquenta anos e, mesmo naquela ocasião, muitos rituais

já tinham caído em desuso. As comemorações nos dias de hoje, conforme pude observar,

estão vinculadas principalmente à escola e à igreja. A mais importante e mais “tradicional”,

pelo que me contaram, é a festa do Dia do Índio. Além desta, no calendário de festas da

Missão inclui-se a comemoração de Sete de Setembro e a formatura da oitava série, ambas

organizadas pela escola. No que diz respeito às festas religiosas, destacam-se a primeira

comunhão, as festas de santos, finados, Natal e ano-novo. Irmã Conceição relatou,

emocionada, que algumas semanas antes da minha chegada houve uma bonita festa de

primeira comunhão, na qual quarenta crianças receberam a eucaristia, vestidas com “roupa

tradicional” e carregando seus arcos e flechas.

No início do mês de dezembro tive a oportunidade de participar da comemoração de

formatura da oitava série, porém, antes de descrevê-la, gostaria de apresentar alguns dados

sobre a escola da Missão. A maior parte das aldeias Munduruku tem uma escola administrada

por professores indígenas e vinculada à Secretaria de Educação do município. Todas possuem

turmas até a quarta série, sendo que apenas as escolas da Missão, Posto Munduruku, Katõ, Sai

Cinza e Teles Pires oferecem ensino de quinta a oitava. É muito comum que pessoas de outras

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comunidades residam temporariamente nessas aldeias para prosseguir com os estudos, sendo

que boa parte daqueles que frequentam os níveis mais altos são adultos, em sua maior parte

casados e com filhos. A maioria dos estudantes de fora costuma morar na casa de parentes.

Ao menos no que diz respeito à escola da Missão, o calendário busca incluir atividades

que contemplem as necessidades da aldeia, como um período de “trabalho de campo” no qual

os estudantes se dedicam ao plantio e à limpeza da roça. No ano de 2008, o quadro de

funcionários da escola contava com treze professores indígenas (dentre os quais havia apenas

uma mulher), duas professoras pariwat (as Irmãs), um secretário Munduruku, quatro pessoas

para serviços gerais e dois vigilantes.67

Esse quadro muda a cada ano, e com ele altera-se o

fluxo de pariwat na aldeia.68

Diversos professores indígenas contaram-me que gostavam do

trabalho das Irmãs, mas não gostavam dos outros professores pariwat, os quais, segundo

disseram, não permanecem tempo prolongado na aldeia; “quando vão para Jacareacanga

receber o salário, demoram muitos dias para voltar”, reclamavam.

O ensino segue os moldes de uma educação diferenciada, o que permite um reajuste da

grade curricular conforme as necessidades da comunidade. Além de matérias como

matemática, português, ciências, geografia e história, os alunos tem aulas de língua

munduruku, cultura e identidade, artesanato e estudos amazônicos. Disciplinas como essas

são recentes (criadas no ano de 2005), e surgiram da iniciativa de professores que, tendo

concluído o ensino fundamental, sentiram necessidade de ensinar as pessoas a ler e a escrever

na própria língua, valorizar as histórias dos antigos e resgatar elementos da cultura que

estavam se perdendo. A escola conta também com um grupo de alfabetização para jovens e

adultos que contempla o ensino até a quarta série.

67 Lucimar Manhuari foi contratado em 2007 para monitorar a área da escola, pois as crianças andavam

fazendo muita bagunça e pintando as paredes, disseram. Luis Waro é um senhor aposentado, o único Munduruku

que encontrei que se apresentava como guerreiro, andava armado com seu arco e flecha e prestava serviço

voluntário à escola e à aldeia, fazendo rondas periódicas para assegurar que tudo estivesse em ordem. 68 Em 2009, por exemplo, uma das Irmãs já não estava mais lá, dois professores indígenas mudaram para

Jacareacanga, e duas professoras de Itaituba estavam residindo na Missão.

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Um evento que mobilizou boa parte dos moradores da aldeia durante o período que

estive por lá foi a realização de um dos módulos do “Projeto de Ensino Médio Integrado” que

deveria ocorrer na Missão, no mês de outubro, mas acabou sendo adiado para o final de

novembro, na aldeia Sai Cinza.69

Desde o dia em que cheguei na aldeia falava-se sobre o

curso, visto que na Missão há muitos estudantes que completaram o ensino fundamental e

estavam ansiosos por continuar os estudos e obter um diploma.70

Missa e festa de formatura

No dia sete de dezembro de 2008 foi comemorada a formatura da oitava série na

Missão São Francisco. Os preparativos começaram algumas semanas antes e todo o evento foi

capitaneado pelas Irmãs-professoras. A primeira providência foi organizar uma reunião com

os formandos e os pais, a fim de conversar sobre os preparativos para o dia da festa. Estive

presente na reunião e, apesar do esforço das Irmãs para que os participantes se manifestassem

dando suas opiniões, eles pareciam contentes em aceitar as propostas que elas faziam.

Decidiram que os formandos iriam se apresentar com a “roupa tradicional” e preparar a

69 O Projeto Ibaorebu tem como objetivo “implantar o ensino médio integrado à educação profissional

garantindo a educação básica, de acordo com as especificidades sócio-culturais, econômicas, históricas e

lingüísticas do povo munduruku, atendendo as necessidades diante do mundo do trabalho e suas relações

conforme o contexto da região em que se encontra esse povo” (informação disponível no site http://munduruku-

pusuru.blogspot.com). Outro evento bastante comentado no decorrer da minha estadia foi a realização da XX

Assembléia Geral Munduruku, que deveria ter ocorrido no mês de setembro, na Missão São Francisco. O atraso

nas negociações adiou a realização da Assembléia, que só veio a acontecer no final do mês de março, em 2009.

Numa conversa eletrônica com um funcionário da Funasa que esteve presente no encontro, fiquei sabendo que “a

reunião foi tensa”. Segundo ele: “branco não teve chance nessa Assembléia, os índios só falaram na língua deles

e não deixaram pariwat falar. Nem o prefeito teve voz. Os agentes da Funasa, que iam apresentar seus trabalhos sobre saneamento, foram vetados, chegando inclusive a se tornar reféns dos índios por algum tempo”. Quando

perguntei o porquê da “prisão” temporária ele respondeu-me que “foi para chamar atenção”. O funcionário, que

trabalha há muitos anos com os Munduruku, contou-me ter participado de outras assembléias, mas não tinha

presenciado uma que fosse tão “tensa e polêmica” como essa, pois “dessa vez eles não abriram espaço para os

brancos mesmo”, disse. 70 Dentre os professores da escola no ano de 2008, poucos concluíram o ensino médio, a maioria havia

estudado até a oitava série e feito um curso de magistério indígena. Apenas Mariza Kaba e Genildo Kaba

terminaram os estudos, mas ambos frequentaram escola de pariwat. Mariza morou desde os 12 anos no convento

das Irmãs, em Santarém, e Genildo, filho de um importante chefe que faleceu em 2003, estudou na cidade de

Itaituba.

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comida para servir no café da manhã. As Irmãs ficaram responsáveis por ensaiar os cantos e

organizar a missa. Na véspera da comemoração fizeram um mutirão na aldeia para capinar as

áreas centrais, limpar o barracão e enfeitá-lo.

No dia da festa o sino da Igreja soou no horário habitual, às 6 da manhã, mas, diferente

de outros domingos, neste a igreja estava lotada.71

Os formandos estavam sentados nos

bancos à frente, vestidos “à caráter”, trajando roupas de palha e pintados com jenipapo. A

missa foi animada, com muita música na língua munduruku e em português. Como nas outras

celebrações, frei Gilberto conduziu a missa, mas os Munduruku participaram em diversos

momentos, lendo trechos da Bíblia, normalmente na própria língua, tocando os instrumentos e

cantando. Nessa missa, o principal assunto foi a educação; um momento de celebrar a

conquista daqueles que tinham chegado até ali e simultaneamente incentivar aos demais para

continuar buscando o conhecimento. Os formandos levaram alguns objetos tradicionais (arco,

flecha, paneiro, colares, cocares, etc.) até o altar e, durante o sermão, frei Gilberto discorreu

sobre a importância de preservar e valorizar a cultura Munduruku.

Após a missa, serviram o café da manhã no barracão. As famílias dos formandos

haviam ficado responsáveis pela comida e prepararam muito beiju com castanha e garrafas de

café. Em seguida, teve início a cerimônia de entrega dos boletins. Organizaram uma mesa

com as “celebridades” locais: o frei, as Irmãs, enfermeira, professores, o guerreiro, o pajé

“forte” da aldeia vizinha, líderes e capitães da Missão e de outras aldeias. Após cada um fazer

um breve discurso, no qual invariavelmente mencionavam a importância da educação e a

alegria em ver mais uma turma completando o ensino fundamental, foram entregues os

71 Frequentei a missa todos os domingos em que estive na Missão e os únicos dias em que esteve

realmente lotada, com pessoas sentadas no chão e em pé, do lado de fora, foram a formatura e a missa de

finados. Nessas ocasiões todos se encontravam vestidos “para festa”, visivelmente ornados com suas melhores

roupas, de banho tomado e com enfeites nos cabelos. Nos outros domingos não havia muita novidade; a igreja

relativamente vazia contava com uma presença maior de mulheres do que de homens. Um aspecto interessante

na missa é a divisão de gênero que opera dentro do salão: a igreja é composta por quatro fileiras de bancos, de

um lado as mulheres e de outro os homens – e, em cada lado, os solteiros separados dos casados. Segundo a Irmã

Conceição, essa divisão ocorreu espontaneamente; fato que condiz com o comentário de Murphy a respeito de

homens e mulheres constituírem grupos sociais bem delimitados. “É comum entre os Munduruku relaxar na

companhia de membros do próprio sexo e sentar-se separado em reuniões coletivas” (Murphy 1978 [1960]: 109).

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diplomas. Ao final da cerimônia as pessoas foram pouco a pouco se dispersando, a tempo de

escapar de uma forte chuva que formou pequenos desaguadouros nas “ruas” da aldeia. À noite

voltei ao barracão para o famoso “xep-xep” – nome que dão às festas que fazem na aldeia,

onde tem música e dança. O estilo musical que faz sucesso é uma variação do “brega” local,

conhecido como “lambadão”. Homens e mulheres ficam de lados opostos e eles, de maneira

nem sempre gentil, puxam elas para dançar. Ao término da música cada um retorna para seu

canto. Disseram que, há algum tempo, todos os sábados tinha “xep-xep” no barracão, mas nos

últimos meses andavam desanimados – o que não foi o caso nesse dia, pois, quando me

retirei, o barracão continuava lotado e, pelo visto, a festa não iria parar tão cedo...

Virando branco ou... Devir-pariwat

A breve experiência de campo relatada acima – na qual os brancos, as mercadorias e as

visitas à cidade aparecem como elementos importantes na vida cotidiana dos Munduruku com

os quais convivi – despertou o interesse para a relação com os pariwat e levou-me a

questionar se haveria algo “a mais” na afirmação recorrente de que estavam virando branco. O

que poderiam os Munduruku estar dizendo ao me contar que as coisas estavam muito

mudadas, que agora se vivia “quase como pariwat”?72

Sem dúvida o impacto do convívio

com o “mundo dos brancos” é crescente, mas parece significativo que essa “mudança” seja

expressa justamente nos momentos em que eu demonstrava meu interesse em um “modo de

vida Munduruku”. Também considero significativo que, paralelo a tal afirmação, houvesse

uma inquietação com a “perda da cultura”, demonstrando preocupação quanto à preservação

de um “modo de ser” Munduruku.

72 Importante notar o uso do advérbio “quase”, pois este denota um processo que não se completa e

indica o “virar” como um movimento de aproximação que nunca é de fato consumado. Não é à toa que a

afirmação é expressa, na maior parte das vezes, no gerúndio: “estamos virando pariwat”.... dando a entender que

ainda não viraram definitivamente.

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Como comentou Viveiros de Castro (2006), a assertiva de que “estamos virando

branco”, aparentemente banal e comum entre vários grupos indígenas, esconde uma

complexidade que apenas há pouco tempo tornou-se objeto de reflexão. Levar a sério quando

os índios dizem que estão virando brancos implica questionar, a partir do universo ameríndio,

o que é “virar” e o que é “ser branco” (ou, “ser índio”).

A noção de “virar branco”, como se sabe, está presente em vários mundos

indígenas. Ela não quer dizer necessariamente o que nós achamos que quer dizer; ao contrário, o que ela quer dizer é justamente um dos problemas mais

complexos com que se defrontam os antropólogos. Há todo um complexo

sistema de pressuposições recíprocas em jogo, com pelo menos quatro posições ou orientações típicas: virar branco, virar índio, pacificar o branco,

pacificar o índio. Os brancos “pacificam” os índios, os “índios” pacificam os

brancos, os índios dizem que estão “virando branco”, há “muitos brancos” querendo virar índio. Uma situação muito interessante (Viveiros de Castro

2008: 157)

No entanto, a curta duração do trabalho de campo não me permite oferecer respostas

para essa questão, a partir de uma perspectiva indígena. Trata-se antes de delinear um

problema e, com base em outras pesquisas, sugerir uma linha de investigação a ser

aprofundada. Dessa forma, antes de partir para a análise da situação Munduruku, farei uma

breve incursão pelo trabalho de dois antropólogos que, trabalhando com povos em

localizações geográficas e com histórias de contato bastante diversas, se dedicaram a

compreender a complexidade por trás do “fenômeno” de “virar branco”.

Os Wari‟ e a experiência de outro ponto de vista

Em sua etnografia sobre os Wari', grupo indígena localizado no estado de Rondônia,

fronteira com a Bolívia, Vilaça (2006) aborda o encontro com os brancos à luz da teoria do

perspectivismo (Lima 1996; Viveiros de Castro 1996). Os Wari' tiveram seu primeiro contato

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pacífico com os brancos no final da década de 50, mas desde o início do século XX

mantinham relações ocasionais com os “inimigos de corpo branco” – relações marcadas

majoritariamente pelo idioma da guerra. Divididos em vários subgrupos e espalhados por

extenso território, a aproximação se deu gradativamente, com distintas etapas de contato.

De acordo com Vilaça (2006: 30), o modo como os Wari' se relacionam com a

diferença foi central neste processo. Segundo a autora, dentre as diferentes figuras de

alteridade que povoam esse universo estão os estrangeiros e os inimigos. Estrangeiros são

parentes distantes, que pertencem a outro subgrupo, mas que podem ser consanguinizados

com a proximidade física e o casamento. Inimigos (wijam) são aqueles que efetuaram um

deslocamento espacial e deixaram de estabelecer relações de troca ou convivialidade – comer

junto, partilhar festas e trocar mulheres. Os wijam foram originariamente Wari‟, que sofreram

um processo de “inimização” (Vilaça 2000: 64). Visto sob essa perspectiva, tais categorias

não denotam seres ontologicamente distintos e sim posições intercambiáveis, reversíveis, que

se alteram conforme o contexto relacional no qual estão inseridos.

O fato de que “o inimigo não é um estranho total, mas um estranho parcial; é aquele

que foi Wari' e que pode voltar a sê-lo” (Vilaça 2006: 424), foi determinante no contato com

os brancos. Os Wari‟ viram nos inimigos recém-chegados seres que, no fundo, eram como

eles. Esse ponto é importante para entender a aproximação dos Wari‟ com os brancos, um

movimento que foi, antes de tudo, “em direção à sociedade Wari', à vida social, que havia sido

desorganizada e mesmo interrompida com a invasão dos brancos” (Vilaça 2006: 484).

Os motivos que os levaram a viver ao lado desses inimigos são muitos. É evidente que os bens materiais os atraíam, ainda mais porque os brancos

mostravam-se excessivamente generosos como anfitriões: ofereciam comida,

davam muitos presentes. Talvez os Wari' também soubessem que, se não permanecessem aliados dos brancos, não poderiam levar adiante a vida

social que sentiam ser possível retomar. A guerra excessiva os estava

obrigando a fugir constantemente, a viver com medo. Se não haviam

interrompido as festas, elas provavelmente eram menos frequentes, mesmo porque durante o luto não há festas, e estavam perdendo seus parentes em

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quantidade. Sem querer minimizar as condições de ordem prática, não penso

que elas expliquem tudo. Teriam ficado dependentes do metal, do açúcar e

dos remédios, tendo então certeza de que nada mais voltaria a ser como antes? Estavam ainda desorganizados e apavorados com a morte de mais da

metade de sua gente? Isso é verdade. Mas por que se arriscaram mais a

morrer para chegar perto dos brancos, e por que dizem hoje que estão

virando brancos? (2006: 488-89)

Os brancos ainda são chamados pelos Wari' de wijam, no entanto hoje eles são

conterrâneos, vivem próximo e se visitam. A guerra também não é mais o modo de relação

dominante, apesar de uma guerra simbólica continuar sendo empreendida por meio da atuação

dos xamãs (Vilaça 2006: 496). Mas, como entender que, para além de viver com o inimigo, os

Wari' hoje vivem como os inimigos e afirmam que estão “virando brancos”? A solução

encontrada por Vilaça indica que os Wari' experimentam “no contato com os brancos, a

possibilidade de viver uma experiência análoga a de seus xamãs, aquela de um duplo ponto de

vista: são brancos e são Wari‟ simultaneamente” (Vilaça 2006: 503).

Do mesmo modo como os xamãs podem ser simultaneamente wari' e karawa (animal

de determinado tipo), os Wari‟ se dizem wari‟ e wijam (Vilaça 2006: 502). Em ambos os

casos, sugere a autora, a experiência se realiza em seus corpos, pois esse é o locus do ponto de

vista; “o modo de ser e de agir é definido pelo corpo” (Vilaça 2006: 504). Assim como o xamã

precisa passar por uma transformação corporal para se relacionar com seus afins animais, os

Wari' precisam usar roupas manufaturadas e saber manusear objetos para se relacionar com os

brancos. “(O)s Wari' dizem estar virando brancos, explicam que hoje comem arroz e

macarrão, usam shorts e se lavam com sabão, do mesmo modo que um xamã-onça se sabe

animal quando tem pêlos em seu corpo, come animais crus e anda em companhia de outras

onças” (Vilaça 2006: 506). Contudo, para além de um instrumento que permite a

comunicação, a roupa é parte de um conjunto de hábitos constitutivos. Para virar branco, não

basta usar roupa de branco, é preciso adotar certo tipo de comportamento.

No entanto, se os Wari' gostam tanto das “coisas de branco” (como machados,

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remédios, gravadores, teclados eletrônicos, jogos de futebol e “filmes de porrada”), por que

não se casam com eles e passam para o outro lado de vez, transformando-se definitivamente

em brancos?73

Uma resposta possível seria pensar que os Wari' querem viver com os brancos

e como os brancos, o que não significa que isso seja exatamente aquilo que nós imaginamos.

Segundo Vilaça (2006: 515), eles querem ser brancos sem deixar de ser Wari' – situação

possível em um mundo onde o interesse pela identidade (um “ser” idêntico a si próprio) é

eclipsado pela importância atribuída à diferença. Virar branco nessas circunstâncias

aproximar-se-ia antes a um modo Wari' de experimentar a transformação e a diferença do que

a um “ser” branco, análogo ao que somos nós.

Os Yanomami e o “tornar-se näpe”

Partindo de sua experiência junto aos Yanomami do Alto Orinoco, na Venezuela, Kelly

(2005, 2009) desenvolve um modelo para pensar o “fenômeno” do “virar branco” que escapa

das perspectivas de perda cultural ou contaminação. Segundo o autor, essa transformação

adquire sentido apenas quando referida ao universo social e simbólico habitado por um

determinado grupo, no caso, os Yanomami. Ao concentrar sua pesquisa na articulação do

sistema de saúde venezuelano com as comunidades yanomami, Kelly percebeu a existência de

um modo específico de se relacionar com os brancos que se manifestaria em outras esferas da

vida social. De uma perspectiva indígena, os médicos não eram apenas agentes de saúde, mas

eram napë (brancos), enquanto os índios, para além de pacientes, eram... Yanomami. Uma

constatação aparentemente simples, mas que permitiu ao autor perceber as nuances

envolvidas neste cenário. Entender a relação com os médicos exigiria inseri-la num contexto

mais amplo da socialidade Yanomami, percebendo como as articulações existentes em torno

73 Segundo Vilaça (2006: 501-03), os dois caminhos que efetuam uma transformação definitiva são: o

casamento e a predação, pois ambos exigem a apropriação de um lugar relacional específico e inviabilizam

adotar um “duplo ponto de vista”.

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de uma esfera sócio-política de relação com diferentes graus de alteridade. 74

Ao falar que estão “virando branco”, os Yanomami se referem, simultaneamente, a um

processo de transformação histórica e uma trajetória a se desenrolar no futuro; uma

metamorfose que utiliza elementos da cultura dos brancos para a reprodução da própria

sociedade. Com intuito de entender esse processo, Kelly (2009) articula dois “contextos”

diferentes, que identifica como sendo: um “espaço convencional Yanomami” e um “eixo

transformacional em napë”. O primeiro se refere a um movimento sociocêntrico Yanomami,

que funciona através do idioma do parentesco (consanguíneos/afins) e permite identificar co-

residentes, amigos/aliados e inimigos. O segundo diz respeito ao deslocamento ao longo de

uma linha imaginária que une dois pólos (Yanomami e napë), sob a qual os indígenas podem

transladar, se aproximar ou se distanciar, conforme o contexto relacional.75

Para desenvolver um modelo com base na articulação desses dois contextos, Kelly

(2009) partiu de um quadro teórico cujos principais componentes são: o modelo da afinidade

potencial de Viveiros de Castro (1993b, 2002b),76

a teoria do simbolismo de Roy Wagner

(1981), e a descrição do espaço sócio-político yanomam empreendida por Bruce Albert

(1992).

Segundo Roy Wagner, a sociedade se estrutura por meio da articulação entre um reino

74 Bruce Albert (1988) analisou de que forma a existência de uma esfera sócio-política com diferentes

graus de alteridade influenciou nas representações de contato formuladas pelos Yanomami. O aparecimento dos

brancos, a aquisição de mercadorias e as epidemias que os acompanharam foram percebidas de acordo com a

configuração de um espaço sócio-simbólico intercomunitário (indo do grupo local até os inimigos

desconhecidos). Neste, as representações do contato foram progressivamente reformuladas conforme o contexto

histórico e prático. Trata-se, segundo o autor, de “um sistema de transformações que explora sistematicamente as

configurações permitidas pela teoria etiológica yanomam” (1992: 161). 75 Residente na maior parte do tempo na comunidade de Ocamo, Kelly (2005: 204) teve oportunidade de

acompanhar os médicos em visitas a comunidades mais distantes. Nestas viagens, o autor observou a existência de diferentes graus de troca com o mundo dos brancos, além da atribuição de diferentes níveis de civilização –

quanto mais distante do vilarejo, maior o grau de “Yanomami-dade”. 76 Viveiros de Castro aponta que, na Amazônia indígena, a relação definidora do socius é a afinidade

potencial, “a alteridade ou exterioridade que é interna e instituinte” (2002b: 150). Segundo o autor, o afim

potencial é um elemento exterior ao socius (como os inimigos, as pessoas distantes, os não-humanos, por

exemplo) e representa a fonte primordial de recursos simbólicos que asseguram a reprodução de grupos e

pessoas. Nesse sentido, é possível associar afinidade e canibalismo, pois ambos se manifestam como relações de

predação, na qual a aquisição de uma potência externa é determinante na produção da dimensão interna do corpo

social (Viveiros de Castro 2002b: 164-168). Nessa economia simbólica da predação, conforme denominou o

autor, o Outro surge como elemento ambíguo – ao mesmo tempo poderoso e perigoso –, mas ainda assim,

necessário.

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da convenção (inato/dado) e um reino da inovação (agência humana/fabricado), sendo que

“todas as sociedades atribuem uma parte do todo fenomenológico ao reino do inato ou do

dado, e outra, necessariamente, ao que fica disponível à agência humana” (apud Kelly 2005:

207). Assim, cada sociedade demonstra, de um modo geral, uma tendência ora à

“convencionalização”, ora à “diferenciação”.

Essa configuração, articulada com o modelo da afinidade potencial de Viveiros de

Castro (1993b), compõem um “espaço (sociopolítico) convencional ameríndio” (Kelly 2005,

2009) onde a afinidade é dada (o outro é necessário) e a consanguinidade é construída. 77

Somando-se a esse quadro, temos o trabalho de Albert (1992), o qual situa historicamente os

brancos em diversas esferas sociopolíticas – de fantasmas e feiticeiros a inimigos ou aliados –

e mostra de que modo a caracterização como um “outro” específico está relacionada ao

processo histórico de contato e suas consequências. Na medida em que os brancos são

“domesticados”, a distância social se vê reduzida e estes passam a fazer parte do “reino da

humanidade”.

Concentrando-nos no “eixo de transformação em napë”, percebemos que as noções de

Yanomami e de branco são relacionais, variáveis de acordo com a intensidade das trocas

interétnicas. Conforme o autor coloca, “esse 'eixo' deve ser entendido como um contexto: um

conjunto de conceitos e práticas que constitui uma rede de relações convencionais, a qual

reúne ou separa, contextualmente, diferentes categorias de Yanomami e de brancos” (Kelly

2005: 209). Temos, então, a relação entre brancos e Yanomami como um processo

inerentemente transformacional, permitindo que o contato interétnico seja visto sob uma ótica

da metamorfose; uma transformação que não tem início ou fim, pois é sempre transformação

77 Na linguagem da convenção/inovação, os “povos tribais” considerariam a cultura (entendida como

conjunto de regras, moralidade, linguagem, convenções) enquanto parte do reino do inato/dado. No entanto,

existiria também uma tendência à diferenciação. No caso dos Yanomami, esta se manifesta por intermédio de

dois processos: “virar branco” e “domesticar o branco”. O primeiro diz respeito à transformação produzida sobre

uma condição inata (ser Yanomami é o que coletiviza e ao mesmo tempo diferencia dos brancos), enquanto o

segundo busca remover uma alteridade inata, neutralizar o aspecto inimigo e adquirir uma moralidade Yanomami

(Kelly 2005: 207-10).

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de outra transformação (ver Gow 2001). A respeito disto, Kelly comenta que “(d)iversos

antropólogos observaram que o mundo vivido ameríndio aponta para um constante „tornar-se‟

ao invés de uma estabilidade do „ser‟ (...) Quando diferenciação é o nome do jogo,

transformação é o que „acontece‟ ao longo do tempo” (2009: 156).

Dessa maneira, o autor identifica um ser dual que permite “tornarem-se civilizados” ao

mesmo tempo em que permanecem Yanomami, ou seja, uma dualidade que permite

incorporar o corpo/habitus e o conhecimento dos napë, sem abandonar a prática de uma

moralidade própria àquele que é humano.78

Essa dualidade, por sua vez, pode conduzir a um

entendimento da idéia de “virar branco” enquanto alienação, deterioração ou manipulação,

pois de acordo com as concepções de essência e de identidade próprias ao pensamento

ocidental, “ser ambos [índio e branco] é inautêntico, irresponsável ou simplesmente confuso”

(Kelly 2009: 245). Vemos assim que, para entender esse processo de transformação, é preciso

questionar noções como cultura e identidade. Segundo Kelly, existe “um ser dual

Yanomami/napë”‟, mas ele evitou chamá-la de “identidade dual” porque, “no contexto de

„transformação em napë‟, „Yanomami‟ e „napë‟ são posições significativas adotadas para

efetuar uma diferenciação dos outros, ao invés de uma correspondência a si mesmo” (2009:

147).

Sendo assim, os Yanomami buscam controlar esta ambiguidade sem, contudo, eliminá-

la. “Ao tornar-se napë, ou civilizado, os Yanomami não estão virando mestizos ou querendo

ser assimilados aos Brancos; ao contrário, a relação deve permanecer, pois as pessoas devem

ser capazes de alternar de uma posição significativa para outra” (Kelly 2009: 317). Donos e

78 Dito de outra forma, uma dualidade que permite usar roupas, comer comida de branco, adquirir

objetos, falar espanhol, mudar os padrões de habitação, ser contaminado por novas doenças, aprender a não ser

enganado ou explorado pelo branco, sem, contudo, deixar de falar yanomami, morar junto, compartilhar comida,

casar com afins, participar dos rituais funerários, ter parentes. Segundo Kelly, “napëprou [tornar-se napë] é

resultado tanto de um desejo Yanomami de tornar-se Outro (...) quanto da necessidade de extrair o máximo das

condições históricas nas quais se encontram (...). Se por um lado napëprou é subserviente a um desejo por

diferenciação, por outro é subserviente a um desejo de permanecer Yanomami, ou seja, permanecer humano e

criar comunidades de pessoas que vivam de acordo com a „moralidade de ser humano‟” (2009: 146).

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distribuidores de mercadorias, criadores e disseminadores de doença, exploradores, mas

também aliados (médicos e missionários), os napë precisam ser dominados, domesticados,

para que sua potência possa ser utilizada em prol da perpetuação dos Yanomami, e não de sua

destruição.

Segue-se que, quando os Yanomami falam em tornar-se napë, não se trata daquilo que

os brancos entendem como tal. Acompanhando a interação entre Yanomamis e médicos, Kelly

(2009: 280-318) constatou que o sistema de saúde está imerso em um processo histórico que

opera com a sobreposição de projetos diferentes. De maneira geral, o que une, e ao mesmo

tempo separa, esses projetos são as noções de “virar branco” e o “projeto de civilizar”. Kelly

sugere “que a junção desses projetos parcialmente sobrepostos envolve ao mesmo tempo um

interesse mútuo e um desentendimento entre Yanomami e Brancos”, e argumenta que está é,

de fato, a “característica central na relação entre Índios e Brancos em toda a Amazônia”

(2009: 155). Ao lidar com expectativas diversas, surgem equívocos, mal-entendidos e relações

conflituosas.

Os médicos querem ser apenas médicos, ao invés de provedores de objetos e

afins potenciais. Eles querem que as visitas rio acima sejam viagens com

finalidade unicamente médica, ao invés de motivadas também por questões políticas, econômicas e familiares. Eles querem controlar seus pacientes e a

comunidade, ao invés de serem objetos de controle. Eles querem agir

institucionalmente, ao invés de serem envolvidos na dinâmica de uma política interna Yanomami. Em suma, os médicos resistem aos significados

derivados de sua posição napë e à contribuição que prestam para o „tornar-se

napë‟ dos Yanomami (Kelly 2009: 204).

Os brancos buscam incessantemente “construir uma sociedade” onde acreditam haver

desordem e caos e com isso esbarram no projeto Yanomami de “tornar-se napë” – já que este

não implica em seguir regras, padrões e normas de funcionamento dos napë, trabalhar em

horários determinados ou respeitar vínculos institucionais em detrimento das relações de

parentesco. Enfim, tornar-se napë não significa “civilizar” nos mesmos termos que os brancos

esperam que seja. Ao colocar em interação diferentes sistemas de referência, a relação entre

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brancos e índios emerge como um cenário propício para o surgimento de equívocos e

confusões.

Munduruku: devir-pariwat

Há cinquenta anos, Robert Murphy registrou que os Munduruku passavam por

intensas mudanças em função do engajamento progressivo na indústria de extração da

borracha. No entanto, podemos conjecturar que essas mudanças, talvez menos intensamente,

vinham se desenrolando desde os primeiros contatos com os brancos. De fato, ao abandonar a

idéia de que existiria uma forma social estável, que se reproduz identicamente ao longo do

tempo, podemos sugerir que as mudanças sempre estiveram presentes no seio da sociedade

Munduruku. Como vimos anteriormente, alguns elementos reiteram esta hipótese – tais como

a existência de aldeias circulares com casa dos homens no centro ou a organização social

complexa, composta por metades exogâmicas e inúmeros clãs (ver capítulo 3).

Entretanto, no âmbito desse trabalho, destacamos o fato de que, já na época de

Murphy, os Munduruku reivindicavam estar virando pariwat. A constatação de que, cinco

décadas depois eles ainda não viraram brancos “de vez”, mas continuam “virando”, nos leva a

questionar esse processo. Trata-se de uma transformação imposta, frente a qual eles não tem

escolha e sobre a qual não tem controle? Onde se localiza o “desejo” de se aproximar do

mundo dos brancos? Existem outras formas de entender o “virar pariwat” que não seja a idéia

de “perda cultural”, como os próprios Munduruku mencionaram em nossas conversas? Ou

ainda, o que entender quando eles dizem estar “perdendo a cultura”? Trata-se de esquecer o

“conhecimento dos antigos” e/ou adotar novos hábitos de vida (comer outro tipo de comida,

trabalhar para ganhar dinheiro e poder comprar coisas, frequentar a escola, ter uma

profissão)? Ou a preocupação com “a cultura” seria mais um elemento proveniente do mundo

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dos brancos?79

Em suma, este conjunto de questões levou-me a pensar esse processo de

transformação em branco... pois não me pareceu que, ao virar pariwat, alguém ali estivesse

querendo deixar de ser Munduruku.

É possível então pensar um ser dual Munduruku/pariwat, como Kelly (2009)

identificou para os Yanomami? Ou virar pariwat seria uma possibilidade de experimentar

outro ponto de vista, outra perspectiva, à maneira dos xamãs Wari'? Inclino-me a pensar que

sim, que “virar pariwat” não implica deixar de ser Munduruku, contudo, tampouco implica

continuar sendo Munduruku “à moda dos antigos”. Ao considerar a diferença e a alteridade

como elementos centrais na constituição do pensamento ameríndio (Lévi-Strauss 1993

[1991]; Viveiros de Castro 1993b, 2002b), podemos apreender melhor o lugar dos brancos na

rede de relações que compõe o universo Munduruku... tudo se passa como se fosse preciso

existir pariwat para que continue existindo Munduruku. Sugiro que a história de relação com

os pariwat nos permite olhar nessa direção.

Sabemos que os pariwat com quem os Munduruku se relacionam hoje em dia são os

brancos, mas sabemos também que há muitos séculos eles se relacionam com pariwat, pois

era assim que chamavam os inimigos, aqueles de quem cortavam a cabeça. Segundo Murphy,

“os pariwat são inimigos e, em tempos idos, eram o objeto da guerra” (1978 [1960]: 127).

Não tenho intenção de supor que houve “substituição” de um pelo outro (de tribos inimigas

pelos brancos), mas que em algum plano existe uma continuidade que permite aos

Munduruku continuar se relacionando com pariwat. Conforme Murphy (1978 [1960]) já

79 Em seu excelente livro chamado Um copo de cultura, Ingrid Weber busca compreender o processo de

constituição e o significado da escola para os Kaxinawá (2006: 218). Trabalhando precisamente com os

moradores do rio Humaitá, Weber identifica uma preocupação crescente com a “cultura”. “Até meados da

década de 90, as escolas no Humaitá estavam voltadas, basicamente, para o ensino da matemática e do

português, pois tinham como propósito uma maior aproximação e adaptação ao mundo dos nawa (branco)”

(2006: 150). No entanto, recentemente tem havido um interesse maior pela “cultura”, refletido na preocupação

em dominar a língua indígena, realizar as brincadeiras, cantos e danças tradicionais, conhecer as músicas e as

histórias dos antigos. Os Kaxinawá estariam assim empenhados em “resgatar a cultura”, pois sem ela não são

“valorizados” como índio, pelos brancos, e não conseguem apoio, nem projetos. Dessa forma, Weber nota que,

“apesar de aparentemente contraditório, o discurso da „cultura‟, hoje, é também um meio de aproximação ao

mundo nawa” (2006: 153).

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havia alertado, é necessário apreender as dinâmicas de mudança para entender a constituição

da sociedade Munduruku.

Assim, é possível pensar que pariwat, para além de inimigo e/ou branco, seja uma

posição relacional que permite compor esse sistema em constante transformação. Como

vimos, o modo característico dos ameríndios se relacionarem com a alteridade (condensado na

célebre expressão Lévi-straussiana da “abertura ao outro”) envolve riscos constantes. O outro

(seja ele inimigo, jaguar ou branco) se apresenta como figura necessária e desejada, elemento

constituinte do cosmos, mas também ambíguo e ameaçador. Viver em um mundo onde a

alteridade possui tal estatuto é arriscado. Porém, mais arriscado seria um mundo onde ela não

existisse.

A “cabeça do pariwat”, por exemplo, era usada para construir objetos poderosos que

desempenhavam importante papel na reprodução da sociedade – seja como pivô dos rituais

que constituíam a vida coletiva, seja pela “fertilidade simbólica” tão bem analisada por

Menget (1993). Contudo, participar de expedições guerreiras e “caçar a cabeça dos inimigos”

era tarefa de guerreiros preparados, afinal, estes lidavam com o perigo permanente de

sucumbir no campo de batalha. Dotada de ambiguidade semelhante, a relação com os animais

ocupava lugar central nos ritos e mitos Munduruku. Na cerimônia do Duparip, por exemplo,

os xamãs transformavam pessoas em animais; uma experiência temida, após a qual aqueles

que tivessem se aventurado tornavam-se figuras importantes (ver capítulo 3). Da mesma

forma, a proximidade que os xamãs mantinham com o “mundo dos espíritos” e “o mundo dos

animais” tornava-os figuras ambivalentes frente ao resto da aldeia. A possibilidade de usar seu

poder tanto para curar quanto para causar danos indica uma instabilidade inerente à posição

xamânica.

Outro ponto a ser levantado é a centralidade histórica que a guerra possui entre os

Munduruku, pois por meio dela podemos entrever um modo próprio de se relacionar com a

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alteridade. Partimos das análises de Fausto (2001) sobre a guerra ameríndia enquanto

consumo produtivo, ou seja, uma relação de predação onde o gasto e a perda, a destruição de

corpos e subjetividades inimigas, são postos em função da construção da pessoa e da

fabricação de corpos. A guerra não seria assim uma forma de canalizar agressividade

reprimida, como colocou Murphy (1978 [1960]), mas um processo produtivo fundado na

aquisição e familiarização de princípios de subjetivação, uma predação familiarizante (Fausto

2001). Uma relação de predação que não é mera identificação, assimilação ou negação do

outro, mas sim um movimento que transforma e altera um sujeito através da experiência de

outro, ou com um outro. Este “modo da relação” indicaria uma tendência centrífuga (Viveiros

de Castro 1986; Fausto 2001) que acredito ainda hoje estar presente entre os Munduruku,

através do desejo pelo “mundo dos brancos” – seja pelas mercadorias, educação, visitas à

cidade ou relações de aliança com políticos locais. Um voltar-se para fora, uma necessidade

incessante de capturar elementos externos para a reprodução da sociedade.

No entanto, diferente dos Araweté ou Tupinambá – povos tupi-guarani cuja dinâmica

centrífuga foi analisada por Viveiros de Castro (1986) –, que tem como característica a

ausência de segmentações internas, os Munduruku possuem uma organização social dividida

em metades exogâmicas e múltiplos clãs. Esses, como vimos, estavam implicados nos rituais

relacionados à cabeça-troféu e às flautas sagradas karokö (ver capítulo 3). Tal fato nos permite

questionar se, conjugado a essa vertigem centrífuga, existiria uma tendência centrípeta de

acumulação e transmissão interna de bens e atributos que teria contribuído para a perpetuação

dos Munduruku enquanto unidade social coesa, mesmo após tanto tempo de contato.

Enquanto entre os Wari' e os Yanomami o estabelecimento de relações pacíficas com

os brancos é relativamente recente, com os Munduruku ela data de mais de dois séculos –

como vimos anteriormente, a aliança com os portugueses se estabeleceu no final do século

XVIII. A previsão de que a intensificação do contato conduziria os índios a serem

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progressivamente assimilados à sociedade envolvente não se concretizou entre os Munduruku

– ao menos não inteiramente, pois segundo fui informada, as aldeias Munduruku na região de

Itaituba (T.I. Praia do Índio) ou em Coatá-Laranjal (AM) se encontram em situação bastante

distinta dos Munduruku no Alto Tapajós (T.I. Munduruku).80

Podemos assim nos perguntar onde se localiza a capacidade de, mesmo após tanto

tempo de contato e tendo incorporado tantos elementos do “mundo dos brancos”, manter uma

unidade sociológica diferenciada? Que elementos mantêm a “coesão” e permitem a

perpetuação dos Munduruku? Como bem colocou Gordon a respeito dos Xikrin, é “preciso se

perguntar onde se enraíza um mesmo ponto de vista (ou uma perspectiva) coletivamente

compartilhado, de modo que os Piro, os Xikrin, uma aldeia, uma comunidade, um grupo

doméstico, possam se enunciar como um “nós” que muda e se transforma” (2006: 412).

Gordon sugere para os Xikrin, semelhante ao que Kelly (2009) propõe para os Yanomami,

que a continuidade talvez resida em uma moralidade que ateste o mútuo reconhecimento da

humanidade de pessoas que pretendem viver juntas.

No entanto, além de se perguntar onde se enraíza um ponto de vista coletivamente

compartilhado, precisamos também nos perguntar como garantir esse ponto de vista. Vimos

no caso dos Wari' que este é assegurado evitando o casamento com os brancos (Vilaça 2006),

enquanto no caso analisado por Peter Gow, é o casamento entre diferentes tipos de gente que

garante a constituição de pessoas de “sangue misturado”, de pessoas Piro (Gow 1991, 2001).

O casamento, logo, o idioma do parentesco, é um fator preponderante. Contudo, não haveria

outras maneiras de passar, permanentemente, para o “outro lado”? O consumo de mercadorias

e a necessidade crescente (e permanente) de elementos do “mundo dos brancos” não trariam

80

No que diz respeito à região do Alto Tapajós, verifica-se um crescimento demográfico significativo

nos últimos cinquenta anos. Enquanto Murphy (1978 [1960]) estimou uma população de 1.250 Mundurukus, o

censo da Funasa de 2009 indica algo em torno de 7.000 indígenas nas T.I. Munduruku e T.I. Sai Cinza [anexo I].

Esse crescimento se deve, em parte, à política nacional e internacional de reconhecimento e luta em defesa dos

direitos indígenas. Contudo, estas não são garantia contra violência, invasão de território, exploração de recursos

e mão-de-obra, preconceitos, e tantos outros males que ainda afligem as populações indígenas em todo o Brasil e

a população Munduruku, em particular.

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consigo a armadilha de se ver envolto num sistema, não mais canibalizável, mas

canibalizante? Afinal, o canibalismo, ao mesmo tempo em que representa uma fonte de

captação de recursos externos, materiais e simbólicos, envolve uma ameaça constante: tornar-

se demasiado parecido com aquilo/aquele que é ingerido. Como bem colocou Gordon, “esse

consumo traz consigo o risco do „canibalismo‟, isto é, de não conseguir o cozimento e a

dessubjetivação do que é incorporado e começar a virar branco” (2006: 403).

Haveria, dessa forma, certa ambigüidade nesse processo; virar branco é ao mesmo

tempo desejável e perigoso – pois já não se pode mais viver sem roupa, sal, gasolina, enfim,

dinheiro para comprar “coisas”, mas ao se aproximar demais do mundo dos brancos corre-se

o risco de esquecer a língua, os costumes e a “cultura”. Compartilho da inquietação de

Gordon (2006: 413): o que acontece quando, nesse processo, os parentes começam a se

estranhar, a não mais se reconhecer?

Diferente daqueles que afirmam estar virando branco, os Xikrin demonstram receio,

não querem virar branco, pois não querem ser esse “outro tipo de gente”. Por isso, é preciso

sempre reinstalar a distância entre os Mebêngôkre e os kubē, os brancos (Gordon 2006: 414).

Já os Yanomami, como demonstra Kelly (2009), querem virar brancos, adotam um

corpo/habitus e conhecimento de napë, mas rejeitam a socialidade, a moralidade dos brancos.

Aos olhos dos Yanomami, “os brancos são seres superculturais mas ao mesmo tempo

infrasociais (...): possuidores de poderes e objetos fabulosos, eles no entanto não sabem como

se comportar enquanto verdadeiros seres humanos” (Kelly 2009: 325).

E quanto aos Munduruku? Virar pariwat seria um modo de dizer que desejam

elementos do “mundo dos brancos”, mas não o desejam por inteiro, não querem ser brancos

“como nós”? Acredito que sim, mas não devemos supor que se resuma a isso. O que posso

afirmar é que a ausência de uma resposta levanta a possibilidade (e necessidade) de pensar a

relação entre os Munduruku e os brancos sob uma ótica que não seja da aculturação ou da

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deterioração. Conforme Vilaça indicou, interessa “a possibilidade das transformações radicais

poderem ser percebidas por seus agentes como positivas, embora, do nosso ponto de vista,

mais pareçam desastres culturais” (2006: 45). Ou ainda, nas palavras de Gow:

O presente estudo teria atingido muito pouco se tudo o que tivesse feito fosse sugerir que aquilo que os Piro fizeram foi reagir historicamente à expansão

colonial européia que os atingiu. Ao invés, é necessário demonstrar que as

formas específicas das sucessivas situações coloniais surgiram do modo como os Piro constituem a si mesmos. Isto não ocorre porque, na linguagem

das teorias da resistência, os Piro não são vítimas passivas da exploração,

brutalidade e injustiça, em situações onde não tinham nenhuma forma de se

expressar e poucos meios de resistir, e seria grotesco da minha parte pretender que as coisas foram diferentes. Ao contrário, a razão pela qual é

necessário demonstrar que as formas específicas das sucessivas situações

coloniais surgiram do modo pelo qual os Piro constituem a si mesmos é porque os Piro são feitos por outros Piro, e não têm nenhuma escolha que

não seja constituir o mundo ao seu redor de maneira que lhes seja

intrinsecamente significativa. E, por pior que seja reconhecer, isto é verdade

até mesmo com relação ao fato de que tiveram que viver como vítimas passivas da exploração, brutalidade e injustiça. Como disse Marx, „os

Homens fazem sua própria história, mas eles não a fazem da maneira como

desejam; eles a constroem sob circunstâncias que selecionam, mas circunstâncias que já existem, que são dadas e transmitidas do passado‟

(2001: 303).

Seguindo um caminho semelhante, Weber (2006) nota a recorrência de termos como

“perda” e “resgate” ao analisar o “discurso da cultura” entre os Kaxinawá. Se, do ponto de

vista da antropologia, esses não fazem muito sentido (pois a cultura não é vista como um

somatório de traços diacríticos), da perspectiva Kaxinawá, a perda e o resgate estão de fato

acontecendo. “No [rio] Humaitá, a língua kaxinawá tem cada vez um menor número de

falantes, enquanto os cantos rituais, que a maioria já havia esquecido, estão sendo

reaprendidos pelas crianças” (Weber 2006: 186). Sahlins (1997) defende que a cultura, tal

como conceitualizada pela antropologia, não deve ser vista como um “objeto em vias de

extinção” (ver capítulo 1). No entanto, Weber sugere que, se partimos da “cultura”, tal como

vem sendo concebida pelos Kaxinawá, perceberemos que determinados aspectos correm sério

risco de desaparecer: “uma língua morre junto com seu último falante – ela não se reinventa,

se recria ou se transforma (à la Sahlins)” (Weber 2006: 186). O “resgate”, por outro lado vem

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adquirindo novo sentido, “para além do desejo e necessidade de ajuste a uma demanda

externa” (Weber 2006: 187). As “brincadeiras da cultura” permitem aos índios marcar sua

diferença, são “índios Kaxinawá”, e tocam em um ponto importante.

Apesar de certamente recortados e quiçá folclorizados, esses fragmentos

rituais remetem a um passado que durante tantos anos foi motivo de

vergonha. Se hoje há espaço para se „praticar a cultura‟, ainda que em decorrência de uma demanda externa e em nome de uma idéia

„antropologicamente incorreta‟ de „resgate cultural‟, isto, me parece, tem

gerado efeitos (positivos) (Weber 2006: 187).

Trabalhando com os Kuikuro, no Alto Xingu, Fausto comenta que a particularidade do

“virar branco” é que não existe um contexto específico para ocorrer, “está-se virando branco o

tempo todo e em todo lugar” (2009: 18). Contudo, a diferença entre os processos

contemporâneos de mudança e aqueles do passado – os Kuikuro mantêm relações pacíficas

com a sociedade nacional há mais de 100 anos – seria a ausência de um frame ritual no qual a

transformação possa ocorrer. Segundo Fausto (2009: 16), a vida social xinguana gira em torno

dos rituais, pois é por meio desses que se opera uma mediação sociopolítica entre humanos e

uma mediação cosmopolítica entre humanos e não-humanos. A base desse sistema está em um

conhecimento musical cujo processo de transmissão tem enfrentado dificuldades e deixado os

mais velhos preocupados. Através dos rituais se manifesta o ügühütu

(costume/cultura/tradição) Kuikuro, e sem ele não é possível continuar sendo xinguano

(Fausto 2009: 15-16).

Os rituais são também o único lugar onde, atualmente, os índios não estão “virando

branco”, além de serem a garantia de que podem “virar índios” novamente. Conforme

demonstra Fausto (2009: 19), o “cheiro dos brancos” – metáfora evocada pelos Kuikuro para

indicar a ameaça oriunda da proximidade com o “mundo dos brancos” – provoca uma doença

crônica, para a qual o ritual emerge como terapia; uma atividade que permite,

simultaneamente, “virar índio” para os índios e para os brancos. O “cheiro dos brancos”

parece, assim, caracterizar os dilemas enfrentados atualmente por boa parte dos grupos

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indígenas, algo “que não pode ser pego mas os pega, que tem materialidade mas é intangível”

(Fausto 2009: 22). De forma parecida, Viveiros de Castro menciona que parece ser preciso

“continuar a ser índio para poder continuar a virar branco. E parece também que virar branco

à moda dos índios não é exatamente a mesma coisa que virar índio à moda dos brancos. Até

que se vire” (Viveiros de Castro 2008: 158). E, como dito alhures, “o problema é que jamais

se sabe de antemão quais os limites de uma transformação” (Fausto 2006: 30).

Seguindo essa vertente, me pergunto... se os Munduruku estão “virando branco”, mas

não o fazem de vez, seria porque existem situações (e/ou características) que permitem

continuar “virando índios”? Como vimos, mesmo diante de tantas alterações, existem certos

elementos distintivos que parecem permanecer, como a regra de casamento entre as metades

exogâmicas, o uso da língua munduruku ou a existência de xamãs e feiticeiros, por exemplo.

Vimos também que, no passado, os rituais ocuparam uma dimensão fundamental na vida

social Munduruku, reguladores de uma ordem sociocosmológica na qual os inimigos e os

animais apareciam como elementos centrais. Mas, e nos dias de hoje, existe alguma dimensão

da vida social que opera de maneira semelhante?

Penso que sim, e sugiro que uma análise do papel da escola nas aldeias Munduruku

nos permitiria olhar nessa direção.81

Através dela se absorve o conhecimento dos inimigos e

se aprende a maneira de se relacionar com eles. Mas é também por meio da escola que se

realizam boa parte das festas contemporâneas, como a formatura ou a comemoração de Sete

de Setembro. Dessa maneira, a escola emerge como um ambiente no qual se aprende,

simultaneamente, “a cultura dos brancos” – por meio de aulas como português, matemática,

81 Esse dado me parece ainda mais interessante se observarmos as narrativas sobre a “pacificação” (ver Leopoldi 1979: 100 e Murphy 1978 [1960]: 27) apresentadas no segundo capítulo. Nestas, vemos a importância

atribuída ao conhecimento e à educação (não restrita ao ensino formal). Não foi apenas através das mercadorias

que os Munduruku “se renderam”. Em ambas narrativas consta que houve o rapto de dois garotos, os quais

foram criados e educados pelos brancos. Algum tempo depois eles retornaram e compartilharam com os parentes

o conhecimento adquirido, mostrando que os pariwat não eram, necessariamente, inimigos.

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saúde ou agrofloresta; e a “cultura dos índios” – nas aulas de artesanato indígena, língua

munduruku, cultura e identidade, ou nos cursos de ensino médio que reúnem estudantes de

diversas aldeias e parecem funcionar, em parte, como as antigas cerimônias responsáveis pela

integração social do grupo.

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Considerações Finais

Cada um tem seu destino, e o da gente é diferente do destino dos pariwat. É

importante que a gente mantenha nossos valores frente ao mundo dos

brancos. É preciso continuar os estudos, é! Mas do jeito que a gente precisa, de acordo com nossas necessidades, nossos interesses. Ninguém precisa de

rapaz e moça que estuda na cidade e acaba não sabendo fazer nada na

aldeia

– Rafael Manuhari, professor indígena Munduruku –

82

As páginas que se seguem tem o objetivo de encerrar o presente trabalho. No entanto,

antes que conclusivas, tratam-se de reflexões suscitadas ao longo dessa pesquisa e que

gostaria de retomar – menos a título de fechamento e mais como abertura para investigações

futuras. Para tanto, irei retomar, em linhas gerais, a trajetória que me levou a escolher o

processo de “virar branco” como tema da dissertação e, em seguida, irei tecer alguns

comentários sobre o mesmo.

Quando fui a campo, estava familiarizada com a bibliografia disponível a respeito dos

Munduruku. Havia elaborado um projeto sobre rituais e organização social, e minhas

expectativas do que iria encontrar foram moldadas por essas informações. No entanto, não

demorei a constatar que as descrições que havia lido eram muito distantes da situação atual

dos Munduruku no Alto Tapajós. Constatação algo óbvia – afinal, o último trabalho escrito

sobre eles data de mais de cinqüenta anos –, mas fundamental para direcionar os rumos

posteriores da pesquisa.

Durante a estadia na aldeia Missão São Francisco, no rio Cururu, chamou-me atenção

a relação estabelecida entre os Munduruku e o mundo dos brancos. Com freqüência, as

pessoas com quem conversava afirmavam estar virando pariwat (branco). Essa afirmação, por

sua vez, suscitou duas perguntas que vieram a orientar este trabalho: o que poderiam os

82 Essa declaração foi extraída do blog que contêm informações sobre o Projeto Ibaorebu de Ensino

Médio Integrado do Povo Munduruku, publicado em 23 de dezembro de 2008, disponível em http://munduruku-

pusuru.blogspot.com.

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Munduruku estar dizendo ao falar que estavam virando pariwat? E, como é possível virar

pariwat sem, contudo, deixar de ser Munduruku?

Para iluminar essas indagações, utilizei um conjunto de autores cujos trabalhos,

desenvolvidos recentemente, nos permitem pensar as situações de contato interétnico sob uma

ótica alternativa à da aculturação. Dentre os temas relevantes nesses trabalhos está o

reconhecimento de diferentes historicidades e um modo próprio de se relacionar com a

alteridade (Albert 1992; Fausto 1999, 2001; Gow 1991; Lévi-Strauss 1993 [1991]; Sahlins

2003 [1987], 2008 [1981]; Taylor 1985; Viveiros de Castro 1986, 1993b, 1996; Vilaça 1992).

Trabalhando com temas “tradicionais”, como xamanismo, parentesco, mitologia e rituais, os

referidos autores imprimiram novas interpretações aos cenários de contato entre índios e

brancos. Inspirei-me especialmente em trabalhos etnográficos que buscaram analisar a

mudança cultural entre os povos indígenas na Amazônia a partir de uma perspectiva indígena

da transformação (Gow 1991, 2001; Kelly 2005, 2009; Vilaça 2000, 2006; Gordon 2006).

Dessa forma, tendo como foco os Munduruku que habitam a região do Alto Tapajós, o

objetivo específico foi compreender como é possível, para um determinado coletivo,

continuar existindo como unidade sociologicamente diferenciada, mesmo diante das

mudanças drásticas que vem enfrentando ao longo de tantos anos. No caso em questão, o

impacto do contato se faz sentir diretamente há pelo menos dois séculos. Nesse sentido, a

afirmação de estar “virando pariwat” pareceu-me, de certa forma, um caminho possível para

melhor compreender os próprios Munduruku.

Como Viveiros de Castro (2008) bem notou, a afirmação de que estão “virando

branco” parece trivial, mas esconde uma complexidade que apenas recentemente passou a ser

questionada. De fato, o “fenômeno” em si não é exclusivamente contemporâneo, mas apenas

nos últimos anos parece ter se tornado uma questão antropológica. Em um artigo intitulado

“Notas para uma teoria do „virar branco‟”, Kelly (2005) sugere que o “problema do virar

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branco” obrigou-nos a cruzar duas “teorias” que por muito tempo caminharam em separado:

por um lado, teríamos os estudos centrados em temas “clássicos”, como parentesco,

xamanismo e guerra; por outro, teríamos aqueles que privilegiaram o envolvimento de povos

indígenas com seus respectivos Estados nacionais. Para o autor, trata-se de uma oportunidade

de conferir aos “cenários modernos” (os quais envolvem um contato interétnico diversificado,

abrangendo missionários, políticos, sistemas educacional e de saúde, redes econômicas, etc.)

uma leitura que leve em consideração os “traços particularmente amazônicos das relações

mantidas ao longo das redes que incluem diferentes categorias de índios e brancos” (Kelly

2005: 202).

No que diz respeito à vida amazônica contemporânea, o autor nos convida a “pensar

não tanto em termos de mudança histórica, mas sobre o que permanece constante na medida

em que a história se desdobra” (2005: 218). Ao analisar as transformações pelas quais passam

os povos indígenas na região com base em temas clássicos da etnologia, torna-se possível

escapar das interpretações de perda cultural ou de contaminação, comumente empregadas

para contextos nos quais os próprios índios afirmam estar "virando branco". De modo

conciso, esse foi um dos objetivos desta dissertação.

Para atingir tal propósito, baseei-me especialmente no trabalho de Robert Murphy,

sobretudo por tratar-se de uma rica fonte de dados etnográficos. É preciso ainda notar que,

cinco décadas atrás, o autor já havia registrado que eles estavam “virando pariwat”. Como

vimos, em sua tese de doutorado Murphy (1978 [1960]) dedicou-se a entender o processo de

mudança social e econômica que os Munduruku vinham enfrentando naquele período. O autor

registrou a existência de uma forte dicotomia entre os habitantes da savana e os moradores do

rio Cururu – uma divisão sociológica que lhe permitiu construir sua tese sobre mudança

social.

Dessa forma, Murphy atribuiu aos moradores das regiões interioranas um status

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“tradicional”, enquanto aqueles que haviam migrado para as margens do rio estariam

“perdendo sua cultura”. De fato, a mudança da savana para o rio Cururu implicou alterações

profundas na organização social: as residências e a disposição espacial da aldeia foram

modificadas, a alimentação passou a depender da pesca (em detrimento da caça) e, com isso,

muitos costumes e práticas desapareceram – especialmente pelo fato de boa parte da vida

cerimonial Munduruku estar relacionada com o “mundo dos animais”.

De fato, as perdas ocorreram e foram muitas. Murphy (1958) nos deixou uma

excelente documentação a respeito da mitologia, práticas xamânicas e rituais – muitos dos

quais, já naquela época, não eram mais realizados. Não se trata, portanto, de ignorar as perdas

progressivas, pois elas são reais e irreparáveis. No entanto, se adotarmos uma perspectiva que

busque resgatar, nos processos de transformação contemporâneos, certas continuidades com

um modo específico de ser e estar no mundo, torna-se possível olhar para o presente sem a

nostalgia do passado. O conhecimento sobre os modos de vida e costumes passados é

fundamental, não por tratar-se da representação fiel de um estado “mais puro” ou “autêntico”

e sim porque, por meio dele podemos entender a complexidade da vida contemporânea.

Afinal, como Sahlins já nos havia alertado, “aqueles povos que sobreviveram fisicamente ao

assédio colonialista não estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que

lhes foi infligido”, mas, ao contrário, eles “vem tentando incorporar o sistema mundial a uma

ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo” (1997: 52).

Sabemos que o relacionamento com os pariwat não é algo recente. No segundo

capítulo, vimos que pariwat era o termo usado para designar os inimigos, aqueles de quem

cortavam a cabeça. Quando “surgiram”, os brancos foram designados pelo mesmo nome, o

qual se manteve após o estabelecimento de relações pacíficas, no final do século XVIII. Não

suponho com isso que exista uma “substituição” direta (das tribos inimigas pelos brancos),

mas chamo atenção para o fato de que os Munduruku se relacionam com os pariwat desde

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muito antes da chegada dos brancos. Vemos assim que se trata de uma relação que envolve

riscos constantes, pois seja com os inimigos com quem guerreavam, ou com os brancos com

os quais se relacionam atualmente, existe sempre o risco da perda... perda da cultura, da

língua, dos rituais, ou da própria vida – como no caso dos guerreiros que não retornavam das

expedições guerreiras. Esse estatuto da alteridade, figura ao mesmo tempo necessária e

desejada, ambígua e ameaçadora, condiz com o modo relacional característico dos povos

amazônicos, condensados no modelo da afinidade potencial de Viveiros de Castro (2002b).

Pelas descrições de Murphy (1958) a respeito dos rituais praticados no passado

sabemos também que “virar outro” era uma prática comum. Refiro-me especificamente às

transformações de homens em animais durante o Duparip (ritual de iniciação masculina) ou o

Dajearuparip (ritual realizado com propósito de agradar os espíritos mãe da caça). Como nos

lembra Murphy (1958: 53), essa era uma experiência temida e aqueles que por ela passavam

tornavam-se pessoas importantes. De modo semelhante, o autor destaca que na mitologia

encontramos relatos de um tempo no qual os animais tinham forma humana, sendo a origem

de muitas espécies contada com base nessa metamorfose (Murphy 1958: 133).

Tais constatações colocam-nos duas questões. Temos, por um lado, dois tipos de

transformação, “virar branco”, de uma forma geral, e “virar animal”, em um contexto ritual.

Certamente não se trata da mesma coisa, mas é interessante notar que ambos os processos são

expressos em um idioma da metamorfose, no qual está envolvida a idéia de tornar-se outro.

Por outro lado, vimos que “virar branco” não é um processo exclusivamente contemporâneo,

pois os Munduruku já o fazem há mais de cinquenta anos – o que nos leva a questionar quais

seriam as particularidades da situação encontrada nos dias de hoje. O fato de que, cinqüenta

anos depois eles não viraram brancos de vez, mas continuam “virando”, exige nossa atenção.

No entanto, ainda que tenha buscado entender as transformações contemporâneas em

continuidade com a sócio-cosmologia Munduruku, permanece uma incerteza com relação aos

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limites do sistema. Qual a especificidade envolta na relação com os brancos que faz com que

surja um incômodo, mesmo quando sabemos não se tratar de “mera” dominação, exploração

ou aculturação? Haverá um ponto a partir do qual a transformação se torna irreversível?

Gordon (2006: 411-12) questiona se, ao buscar enxergar um modo indígena de apropriação e

experiência da “modernidade” e do “capitalismo”, não acabaríamos ignorando que, do ponto

de vista indígena, “virar branco” possui efeitos problemáticos e potencialmente destrutivos,

não apenas criativos ou inventivos. Como o autor alerta, existe sempre um risco de que, ao

adotar um corpo/habitus de branco, os índios se tornem parecidos demais com eles. No

entanto, prossegue:

O que sabemos, eles e eu, é que para continuar virando e fazendo-se

Mebêngôkre precisam continuar virando brancos. Viver nesse mundo em que

se pode virar Outro o tempo todo, e que é preciso virar Outro para constituir-se, sempre foi perigoso. Se os limites nunca estão no mesmo lugar, os

desafios de continuar existindo, todavia, permanecem. E tudo que vira,

quiça, desvira (Gordon 2006: 415).

Saber em que medida é possível continuar virando pariwat sem deixar de ser

simultaneamente Munduruku é uma questão que, por hora, permanece sem resposta. Tudo o

que podemos afirmar no momento é a necessidade de continuar investigando os meios

encontrados por aqueles considerados “vítimas” do contato para “virar o jogo” – seja virando

jaguar, virando branco ou virando índio...

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ANEXOS

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Anexo I: Relação de Pólos Base com suas respectivas aldeias e população

Fonte: DESI Tapajós/Censo populacional (2009.01)

N.º P. Base Jacareacanga Res. Fam. Pop.

1 Nova Karapanatuba 46 77 351

2 Boca do Rio das Tropas 7 20 106

3 Jacaré Velho 10 16 84

4 Fazendinha Rio Tapajós 4 4 25

5 Jacarezinho 5 9 56

6 Prainha do Jacaré 6 6 48

7 Terra Preta RTP 6 10 43

8 Buritituba 3 4 22

9 Barro Branco 2 3 14

10 Fazenda Sai Cinza 3 4 17

11 Nova Vida 1 2 14

12 Waretobi 2 3 12

13 Mutum 1 1 9

14 Barro Vermelho Rio Tapajós 1 1 3

15 Muiçuzinho 4 4 25

16 Castanheira do Muiçuzão 7 7 45

Total 108 171 874

N.º P. Base Restinga Res. Fam. Pop.

1 Restinga 9 14 97

2 Samaúma 10 17 104

3 Patauazal 7 15 77

4 Prainha 7 9 60

5 Piquiarana do Rio Tapajós 4 4 41

6 Primavera 5 8 36

7 Pesqueirão 4 7 32

8 Santa Cruza 2 4 28

9 Laginha Rio Tapajós 4 5 24

10 Vista Alegre Rio Tapajós 2 4 26

11 Campinho Rio Cururu 3 4 18

12 Igarapé Preto 1 1 14

13 Escondido 1 1 8

14 Maracati 4 4 17

15 Boca do Anipiri 1 1 4

16 Pesqueirinha 1 2 6

17 Nova Tapajós 2 3 18

Total 67 103 610

N.º P. Base Sai Cinza Res. Fam. Pop.

1 Sai Cinza 65 148 813

2 Jardim Kaburuá 10 17 91

3 São Lourenço 8 14 71

4 Boca das Piranhas 6 9 53

5 Campinho do Igarapé Kadiriri 1 3 15

6 Ariramba 3 6 26

7 Monte Alegre 2 5 29

8 Banco 2 4 19

9 Mangueira 2 6 29

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10 Terra Preta Rio Tapajós 2 2 12

Total 101 214 1158

N.º P. Base Teles Pires Res. Fam. Pop.

1 Teles Pires 28 40 234

2 Bom Futuro 7 11 72

3 Papagaio 4 12 61

4 Posto Velho 3 3 20

5 Vista Alegre 3 3 20

6 Caroçal Teles Pires 1 1 9

Total 46 70 416

N.º Caroçal RTP Res. Fam. Pop.

1 Rio das Tropas 29 38 211

2 Aldeia P.V. 3 7 47

3 Bananal Rio das Tropas 5 9 45

4 Boca do Caroçal RTP 3 4 27

5 Boca do Igarapé Preto 3 5 32

6 Nova Esperança 5 6 38

7 Maloquinha Rio das Tropas 1 6 35

8 Laginha Rio das Tropas 1 4 13

9 Akuter 2 5 22

10 Castanheira 1 1 5

Total 53 85 475

N.º P. Base Kato Res. Fam. Pop.

1 Kato 33 78 413

2 Biriba 10 20 106

3 Kaburua 12 22 96

4 Porto 5 14 64

5 Taperebá 4 10 52

6 Fazendinha Rio Kabitutu 2 5 27

7 Aldeia Nova 6 9 48

8 Estirão das Cobras 4 8 43

9 Maloquinha Rio Kabitutu 7 8 40

10 Pedrão 2 5 31

11 Dhecojemo 1 3 16

12 Barro Vermelho Rio Kabitutu 2 4 23

13 Kabitutu 3 5 28

14 Cachoeirinha Rio Kabitutu 1 2 13

15 Fazendo Kaburua 1 3 16

16 Parawariti 2 3 14

17 Kintiliano 2 3 14

Total 97 202 1044

N.º P. Base Missão Cururu Res. Fam. Pop.

1 Missão São Francisco 82 132 645

2 Missão Velha 21 41 227

3 Pratati 8 17 66

4 Cajual 7 14 70

5 Anipiri Terra Preta 6 8 56

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6 Wareri 6 14 76

7 Pista Velha 3 9 51

8 Tamanqueira 1 4 25

9 Maloquinha Rio Cururu 1 1 10

10 Boca da Estrada da M. Cururu 3 3 22

11 Bom Jardim 1 3 10

12 Castanhal 1 1 6

Total 140 247 1264

N.º P. Base Waro Apompo Res. Fam. Pop.

1 Waro Apompo 27 46 228

2 Caroçal Rio Cururu 18 32 149

3 Morro do Careca 9 18 92

4 Morro do Kurap 8 13 91

5 Boca da Estrada 1 2 13

Total 63 111 573

N.º P. Base Santa Maria Res. Fam. Pop.

1 Santa Maria 20 38 187

2 Muiuçu 14 27 129

3 Aiperep 7 13 57

4 Bananal do Rio Cururu 5 13 68

5 Kreptcha 1 1 5

Total 47 92 446

N.º P. Base Itaituba Res. Fam. Pop.

1 Praia do Índio 14 24 114

2 Praia do Mangue 10 18 79

3 Laranjal 12 16 78

4 Sawre Km 43 3 8 35

5 Muybu 18 20 108

6 Tucunaré 1 1 6

Total 58 87 420

N.º Pessoas em trânsito Res. Fam. Pop.

1 em trânsito 24 24 89

N.º Novo Progresso (Kayapó) Res. Fam. Pop.

1 Baú 13 42 206

2 Kubenkoke 41 143 734

3 Pykany 20 51 235

Total 74 236 1175

População indígena 8544 7280

Total de Famílias 1642 1382

Total de Residências 878 804

Total de Aldeias 107 104

Total de Pólos Base 11 10

Etnias 4 Munduruku

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137

Anexo II: Região do rio Tapajós

Fonte: Munduruku Religion (Murphy 1958)

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138

Anexo III: Possíveis rotas de migração dos Munduruku – séc. XIX e XX Fonte: Mapa Etno-Histórico Curt Nimuendajú (1981)

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139

Anexo IV: Região do Alto Tapajós

Fonte: desenho próprio (dezembro 2008)

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140

LISTA DE ILUSTRAÇÕES:

FIGURAS

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141

Figura 1: Jovem Munduruku tatuado Aquarela pintada por Hercules Florence (1825 a 1829)

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142

Figura 2: Mulher e criança Munduruku

Aquarela pintada por Hercules Florence (1825 a 1829)

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143

Figura 3: Chefe Munduruku

Aquarela pintada por Hercules Florence (1825 a 1829)

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144

Figura 4: Cabeça-troféu Munduruku

Fonte: http://www.vanishingtattoo.com/tattooed_warriors_of_the_amazon_jungle.htm

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145

Figura 5: Cabeça-troféu Munduruku

Acervo do Museu Nacional (MN)

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146

Figura 6: Coifa com cobre-nuca Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE )

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147

Figura 7: Cinto Munduruku Acervo do Museu Nacional (MN)

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148

Figura 8: Bandoleiras Munduruku

Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE)

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149

Figura 9: Par de braçadeiras Munduruku Acervo do Museu Nacional (MN)

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES:

FOTOGRAFIAS

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Foto 1: Residência do Frei Gilberto e “porta de entrada” da Missão São Francisco

Xipat Eyju Dodom – Seja bem-vindo!

Foto 2: “Casa das Irmãs”

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Foto 3: Missão São Francisco I

Foto 4: Missão São Francisco II

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Foto 5: Barco do Careca, o regatão local

Foto 6: Distribuição da aposentadoria feita pela Irmã Conceição

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Foto 7: Luiz Waro, um guerreiro Munduruku

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Foto 8: Caminho para chegar à Missão Velha

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Foto 9: Venâncio Puxo, o capitão da Missão Velha

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Foto 10: O “porto” da Missão Velha

Foto 11: Meninas no igarapé

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Foto 12: Formandos da 8ª série em frente à Igreja

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Foto 13: Participação na missa de formatura

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Foto 14: Formandos da 8ª série no barracão da comunidade

Foto 15: Formandos da 8ª série

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Foto 15: Mulheres durante o café da manhã da formatura

Foto 16: as meninas...

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Foto 17: ... e os meninos

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