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Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v. 13, n. 2, p. 64-70, maio/ago. 2002. 64 LOUCURA NA SOCIEDADE DOGON - REPÚBLICA DO MALI * MENTALLY IN THE DOGON SOCIETY - MALI REPUBLIC Denise Dias Barros (1) BARROS, D.D. Loucura na sociedade dogon - República do Mali. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v. 13, n. 2, p. 64-70, maio/ago. 2002. RESUMO: Com base em pesquisa de campo realizada entre 1994 e 1996 nas terras dogon, Sociedade Negro-africana da República do Mali (África do Oeste), observa-se que sociedade dogon possui um léxico significativo vinculado à designação e à compreensão da loucura. Possui, por outro lado, um conjunto de saberes organizados, exercido sobretudo por homens, que se transmite de uma geração a outra dentro da linhagem paterna ou que se adquire, principalmente, por revelação. Estes saberes referem-se ao uso de plantas, de minerais, de processos rituais e de encantações que se articulam segundo as proposições e práticas históricas Dogon num processo constante de formação da pessoa-dogon e da sociedade. A pessoa considerada louca poderá conhecer destinos diferenciados: será acolhida, tratada e reinserida nas esferas das relações sociais, ou será tratada sem conseguir uma reinserção total, permanecendo aos cuidados de um parente ou amigo. Ela poderá, ainda, ser aprisionada em sua casa ou ser deixada errante, sendo nestes casos encontrada nos mercados, nos povoados e nas estradas. DESCRITORES: Etinopsicologia. Transtornos mentais. Saúde mental. Cultura. Terapia ocupacional/tendências. * As pesquisas de campo que formam a base empírica deste artigo foram financiadas pelo CNPq (1994-96) e pela FAPESP (2000- 2001). (1) Doutora em Sociologia pela FFLCH-USP. Professora do Centro de Docência e Pesquisa em Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina – USP. Endereço para correspondência: Rua Cipotânea, 51. Cidade Universitária. São Paulo, SP. CEP: 05360-160. Nas trilhas da pesquisa E stivemos pela primeira vez no Mali em 1993, durante a realização de um Seminário sobre Medicina Tradicional no qual se reuniram notáveis da medicina originária de várias regiões do país. O trabalho de campo que viríamos a desenvolver - entre setembro de 1994 a agosto de 1996 - pode então ser acordado com a Divisão Nacional de Medicina Tradicional. No final das águas de 1994 iniciamos nossas atividades a partir da vila de Bandiagara. Depois de

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  • Rev. Ter. Ocup. Univ. So Paulo, v. 13, n. 2, p. 64-70, maio/ago. 2002.

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    LOUCURA NA SOCIEDADE DOGON -REPBLICA DO MALI*

    MENTALLY IN THE DOGON SOCIETY - MALI REPUBLIC

    Denise Dias Barros(1)

    BARROS, D.D. Loucura na sociedade dogon - Repblica do Mali. Rev. Ter. Ocup. Univ. SoPaulo, v. 13, n. 2, p. 64-70, maio/ago. 2002.

    RESUMO: Com base em pesquisa de campo realizada entre 1994 e 1996 nas terras dogon,Sociedade Negro-africana da Repblica do Mali (frica do Oeste), observa-se que sociedadedogon possui um lxico significativo vinculado designao e compreenso da loucura. Possui,por outro lado, um conjunto de saberes organizados, exercido sobretudo por homens, que setransmite de uma gerao a outra dentro da linhagem paterna ou que se adquire, principalmente,por revelao. Estes saberes referem-se ao uso de plantas, de minerais, de processos rituais e deencantaes que se articulam segundo as proposies e prticas histricas Dogon num processoconstante de formao da pessoa-dogon e da sociedade. A pessoa considerada louca poderconhecer destinos diferenciados: ser acolhida, tratada e reinserida nas esferas das relaes sociais,ou ser tratada sem conseguir uma reinsero total, permanecendo aos cuidados de um parenteou amigo. Ela poder, ainda, ser aprisionada em sua casa ou ser deixada errante, sendo nestescasos encontrada nos mercados, nos povoados e nas estradas.

    DESCRITORES: Etinopsicologia. Transtornos mentais. Sade mental. Cultura. Terapiaocupacional/tendncias.

    * As pesquisas de campo que formam a base emprica deste artigo foram financiadas pelo CNPq (1994-96) e pela FAPESP (2000-2001).

    (1) Doutora em Sociologia pela FFLCH-USP. Professora do Centro de Docncia e Pesquisa em Terapia Ocupacional do Departamentode Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina USP.

    Endereo para correspondncia: Rua Cipotnea, 51. Cidade Universitria. So Paulo, SP. CEP: 05360-160.

    Nas trilhas da pesquisa

    Estivemos pela primeira vez no Mali em1993, durante a realizao de umSeminrio sobre Medicina Tradicional noqual se reuniram notveis da medicina originria de

    vrias regies do pas. O trabalho de campo queviramos a desenvolver - entre setembro de 1994 aagosto de 1996 - pode ento ser acordado com a DivisoNacional de Medicina Tradicional.

    No final das guas de 1994 iniciamos nossasatividades a partir da vila de Bandiagara. Depois de

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    algumas visitas (que duravam, s vezes, dias) e combase na leitura dos trabalhos de Piero Coppo e de suaequipe, pudemos elaborar roteiros de entrevistas nointuito de apreender as idias e maneiras de conceber aloucura. Sem a possibilidade de compreender a lngua,a proposta de uma observao, compreenso eparticipao nas conversas do dia-a-dia ficavaprejudicada. Os limites faziam-se impiedosamentepresentes a cada momento. Aprendemos a aguar ossentidos: gestos, olhares, tom de voz, tudo era precisoestar atento a tudo para garantir alguma comunicao.Com o tempo as saudaes dirias e palavras chavesforam sendo incorporadas mas a barreira lingsticapermaneceu uma importante limitao deste estudo.Optamos por registrar as conversaes, transcrev-lase traduzi-las. O registro das informaes foi negociadocom cada uma das pessoas que reagiam diversamente proposio. Algumas pessoas demoraram vriosencontros at sua permisso para gravar conversaes,fotografar ou filmar.

    Trabalhar em equipe foi fundamental pois nosconstringiu a confrontao da observao e aexplicitao de objetivos e mtodos, facilitando, ainda,uma percepo mais abrangente. Assim, as informaese as interpretaes so frutos de redes de interaesmultiformes.

    Seguindo a orientao de Hampt B queenfatiza a necessidade de que a cultura seja apreendidapela experincia, precisvamos ir alm da busca deinformaes (enquanto dados objetivados); erafundamental aprender as regras de comportamento queguiam as relaes e o dia-a-dia das pessoas.

    Para Hampt B, no mundo africano, ointermedirio, isto , a mediao indispensvel. Entreo criador e a humanidade existem intermedirios. Oafricano passa sempre por um intermedirio, o irmomais novo para se dirigir a seu pai, solicitar amediao de seu irmo mais velho, de sua me ou,ainda de sua tia. Se uma pessoa for a uma reunio,dever encontrar algum que exponha, em seu nome, omotivo de sua presena. A palavra o melhor dosintermedirios mas a palavra no aceita trs coisas:ela no aceita ser pronunciada antes do tempo, elano aceita no ser pronunciada quando chega omomento e ela no aceita ser pronunciada aps omomento. Assim, diz-se que o tempo est dentro dosegredo de trs. Esse pensamento tridico, avesso s

    binaridades e s linearidades constitui, em nossa viso,a base do pensamento dogon (e talvez negro-africano);suas conseqncias so apreendidas com grandedificuldade, permanecendo fugazes e escorregadias paraa racionalidade ocidental.

    O que significa wede-wede na sociedade dogon*?Loucura? O que ocorre com a pessoa que, rompendo abarreira do mal-estar em sua civilizao passa a no tersuas atitudes, gestos, palavras toleradas pelos seus?Foram estas algumas das questes e inquietaes queconduziram nossa busca da palavra dos diferentes atoresque contracenam, na vida cotidiana na sociedade dogon(Repblica do Mali).

    A loucura vista, aqui, como uma manifestaodas possibilidades do humano, sendo ao mesmo temposingular por se constituir em acontecimento particularna vida de uma pessoa e coletiva por exigir sentidoscompartilhados. No se trata de discutir o que ela ,mas como compreendida e vivida.

    Universo teraputico dogon

    Sow (1977, p. 86) distingue trs dimensesconstitutivas da pessoa. A primeira a articulao dapessoa com o ancestral fundador que confere a ela suadimenso fundamental (p. 87). A segunda, a articulaoda pessoa na comunidade cultural atual que configurao lugar de cada um, as relaes das pessoas entre si, asregras, as instituies, as prticas sociais, alm darelao dos homens com a natureza. Uma terceiradimenso dada pela existncia da linhagem, queconfere pessoa o sentimento de existir dentro dasegurana da famlia e, ao mesmo tempo, propicia umpertencimento em que as implicaes relacionais somximas (p. 88-9). Neste sentido, dentro e fora dafrica o Negro coloca o problema da identidadecoletiva, qualquer que seja o interesse cientfico quese lhe conceda, como importncia vital. Est no cernedos debates neste terreno de sua prpria existnciacomo homem particularizado e concreto (COELHOapud MOURO, 1995/96, p. 9).

    A noo de sade entendida com parte doprocesso de formao e de socializao da pessoa;processo este que se realiza na interseco entre apessoa e seus ancestrais, entre a pessoa e acomunidade, desenvolvendo-se a partir de um processoexistencial constitudo por meio de percursos e

    *Nome pelo qual ficou conhecido o complexo cultural negro-africano que ocupa a regio noroeste da Repblica do Mali, frica do oeste

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    elaboraes que lhes so singulares.A criana nasce com tudo o que compe o

    humano, mas inicia um processo que ir fazer delapessoa. A ao constante da sociedade na construoda pessoa conhece momentos de sntese. Esse processocumpre-se por meio de rituais individuais e coletivos.A pessoa dever crescer, adquirir fora e saber numprocesso que no concebe rupturas, e exigeconfirmaes constantes entre os percursos pessoais ea dinmica social. Eventos especficos podem interferircolocando em risco a integridade e portanto a sade:acidentes, doenas, enganos, transgresses e influnciade outros seres. O princpio de interferncias entre osseres uma caracterstica importante da interpretaode mundo dogon. Trata-se de uma representao pluralcuja caracterstica principal ser essencialmente relativae relacional (AUG, 1994, p. 32).

    As pessoas so definidas num sistema de relaescujos parmetros mais significativos so a filiao e aaliana. Desde sua concepo, a criana permanece alvode inmeros perigos, sua sobrevivncia incerta.Sonhos ou acontecimentos inesperados so portadoresde mensagens a serem decifradas. A adivinhaopermite tecer interpretaes que apaziguam a dorprovocada pelo medo e pela angstia e facilita osprocessos de tratamento e a cura.

    No um, mas diversos adivinhos so procuradosa cada inquietao, desentendimento ou diante de umdesejo ou ambio. Em sua busca de sentido a pessoapermanece envolvida pela incerteza. Adivinhos,terapeutas especialistas no tratamento da loucura emarabus* acolhem todo tipo de ansiedade e vocontribuindo para sua elaborao. A doena percebidacomo perturbao do equilbrio que precisoreconstituir. Deve-se agir sobre diversos nveis pararecompor a ordem: a purificao do corpo do doente ea reparao da falta so condies necessrias para queum tratamento possa ser eficaz.

    Diante de uma experincia de crise, as primeirasreaes ocorrem, mais freqentemente, no seio dafamlia extensa ginna. a partir da ginna que nascema solidariedade e a ajuda, mas tambm, a rejeio e oabandono da pessoa que adoece pois quando uma criseindividual emerge, ela evoca a presena de conflitos

    nas relaes entre os mais prximos. Os recursos queso postos em ao pela famlia, amigos, adivinhos,marabus e terapeutas tornam possvel reconduzir apessoa a si mesma e sua coletividade. Se uma pessoasofre processos de rejeio pelo grupo domstico, elapode ser acolhida por membros da famlia extensa, poramigos ou pelo prprio terapeuta. Econtramos, tambm,pessoas abandonadas ou deixadas entregues errncianas estradas e nos mercados. O itinerrio de busca dacompreenso do mal e de sua reorientao no linear,mas, um processo dinmico que envolve dor e asambigidades prprias aos caminhos humanos. nestecontexto que a busca de sentido integra o processoteraputico e o diagnstico a terapia. A ordem da escolhados terapeutas (familiares e no) e dos adivinhos nodeve ser lida de forma esttica, mas, comopossibilidades que podem ser utilizadas de mltiplasmaneiras e em seqncia diversificadas.

    Terapeutas

    Diversos so os agentes socais que formam osistema teraputico dogon. Frente ao sofrimento, umprimeiro nvel de reaes ocorre no seio da famlia.

    Na sociedade dogon convivem diferentesmaneiras de ser terapeuta e as terapias so tambmdiversificadas. Existem interfaces importantes comvalores e prticas islmicas. Podemos distinguir osadivinhos (almaga **, kundu-n&), os terapeutas(j < n-j < #u-n&), os vendedores de plantas medicinaise objetos destinados aos tratamentos e rituaisteraputicos, os encarregados de cultos, os guardiesde objetos ou lugares-receptculos de foras. Nopodemos deixar de mencionar o marabu que tratautilizando o Coro.

    O terapeuta conhece, tambm, a farmacopiapertinente e a palavra que dinamiza sua ao teraputica.Ele reconhecido como aquele que tem o poder de curare recorre sua sensibilidade, podendo fazer uso dealguma tcnica de adivinhao ou de comunicao comos seres no visveis. O que caracteriza a ao doterapeuta dogon o conjunto de sua interveno: ritos,palavra, uso de vegetais, minerais e animais, aautoridade e a qualidade da prpria presena. Tudo isto

    * Aquele que, entre os muulmanos, dedica-se prtica e ao ensino da vida religiosa e leitura do Alcoro.** A etimologia da palavra proposta por Calame-Griaule que almaga, derivaria de lu mnga, literalmente petri lindecision ou seja acabar

    com a indeciso (1965, p. 430). Outra explicao nos foi dada: alu significaria aliana e manga, guardar nas mos, ou seja, dar forma, criar).

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    sem cindir as dimenses existenciais da pessoa, osvnculos que estabelecem seu pertencimento a umafamlia, aos ancestrais e, portanto, sociedade dogon.

    Noes ligadas loucura

    Wede-wede, loucura, classificada pelos dogoncomo uma doena (lul

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    agitao, insnia entre outros (COPPO, 1988, p. 63). preciso ressaltar, entretanto, que estes sinais deveroser confrontados por um lado, com a capacidade ouincapacidade da pessoa em manter suas atividadescotidianas e, por outro, com explicaes possveis,coerentes com a viso de mundo dogon. Assim, o fatoisolado de uma pessoa ver coisas que os outros novem ou no ouvem pode significar apenas que ela estem contato com os seres existentes mas no visveis maioria dos homens. Deste contato, ela pode obter tantouma experincia negativa como positiva. Se a pessoatem medo (n&) pode perder-se (seu kinde kindu escapa),deixando o caminho aberto para que a doena entre.Outro destino possvel se a pessoa consegue fazer desua experincia vivida um fator positivo, interpretandoo episdio dentro dos contornos que o universosimblico permite.

    Terapias

    Parece-nos difcil precisar os limites de umprocesso teraputico. Onde comea a terapia? No possvel desconsiderar os caminhos que levam buscade sentido e as interpretaes propostas por um familiar,adivinhos ou terapeutas. Os processos interpretativospertencem ao mundo do tratamento propriamente dito.

    A ao teraputica parece ser, ela mesma, viva eem movimento permanente. Para compreender osprocessos teraputicos preciso apreender aimportncia de determinados aparatos ativos que soconstitudos por um conjunto de objetos* fixados emlugares sacralizados. Eles so depositrios eacumuladores de potncias especficas e alvos de umconjunto de ritos que permitem sua continuidadehistrica. Ruptura, abandono, descuido, roubo ou outrotipo de desordem destes aparatos (provocada por aovoluntria ou no), podem desencadear diversos eventosque pem em risco a pessoa, a famlia e at mesmo asociedade.

    Aug (1988, p. 22) afirma que estes objetos-deuses que mantm uma relao de participaoontolgica com os homens, formam uma unidadedinmica e plural: eles tm necessidade uns do outros:os homens de sua indulgncia e os deuses das oferendase sacrifcios dos homens. Estes aparatos ativos podemser individuais, pertencer a um grupo de ancestralidade

    comum, a uma linhagem ou um segmento de linhagem.Podem ser, ainda, adquiridos em situaes especficaspor uma pessoa, mas ao passar de uma gerao outravo incorporando significados para a famlia, para alocalidade e para aqueles que adquirem sua participaoe pertencimento por meio das solicitaes, sacrifcios efavores recebidos. A maior parte desses aparatos paraproteo, mas eles podem ser utilizados tambm paraagredir. A tica de sua utilizao das pessoas e grupos,os objetos possuem em si a possibilidade da defesa oudo ataque. Diante de um objeto, diante do outro(seja esse outro Deus, animal, homem, rvore oupedra, fato natural ou fato social), no se coloca oalheamento, afirma Senghor (apud OLINTO, 2002).

    O objeto no se desgarra de quem o conhece.O sujeito toca o objeto, apalpa-o, sente-o, simpatizacom ele, conhece-o, ele. Acrescenta Senghor que onegro-africano no usaria a razo-olho da Europa, masa razo-toque, a razo-amplexo do pensamento africano.Os diferentes elementos que constituem os aparatosativos so, ao mesmo tempo, recursos (enquantodotados de valor ou propriedades teraputicasespecficas) e mediao (enquanto veiculadores decomunicao e fornecedores de significadosinteligveis). O uso dos vegetais e animais evidencia aqualidade da relao homem-natureza; da coleta ingesto dos medicamentos diversos cuidados e regrasdevem ser obedecidos para viabilizar a absoro dasforas dos elementos necessrios pessoa debilitada.O especialista que age, por sua vez, no interior deparmetros compartilhados pela sociedade.

    Um conjunto de rituais integra a terapia. De umlado, os rituais propiciatrios e de purificao e de outro,aqueles ligados aplicao dos medicamentos(fumigao, aspirao, ingesto).

    A palavra dotada de fora intrnseca. Ibu s < -a palavra que d a vida - carregada de qualidade deproteo e pode atuar em vrias situaes da vidacotidiana: para atrair a aceitao quando da chegadanuma localidade estrangeira, contra a ao dos seresno visveis, dos inimigos ou mau-olhados. O espaoteraputico recobre, alm dos rituais, o prprio cotidianoda pessoa em tratamento. Durante este perodo, a pessoapode passar a viver com a famlia do terapeuta oupermanecer em seu ambiente domstico. Aps a cura,uma srie de medidas tomada para que a doena novolte e para agradecer o restabelecimento: rituais de

    *Braceletes, cintos, pendentes, vestimentas, colares e objetos diversos fixados (plantados segundo o termo Dogon, pegu) ou no em espaosdomesticados no povoado ou na casa ou na mata. Cada gelu possui sua palavra contendo regras de conduta, alimentares, encantamentos e ritos.

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    fixao da doena e de agradecimento, definio deregras de conduta e alimentares. Em alguns casos, oagradecimento peridico obrigatrio, estabelecendouma comunidade de adeptos.

    Os ritos, juntamente com o local e os objetos queos integram, compem o processo de socializao, nelesa memria do grupo serve de base para a interpretaoda experincia individual. Alguns deles atuamdiretamente na formao da pessoa dogon, nummovimento permanente e dinmico que pode envolverdesordem ou harmonizao dos elementos que aconstituem. Um exemplo o jab& - quando nasce umdogon este ser seu primeiro locus, destinado a garantirsua proteo pessoal. Seu pai corta pedaos de unhadas mos e dos ps, clios e cabelos que se depositamnum ninho de passarinho. O ninho deve ser, ento,colocado sobre uma pedra e esta recoberta com argila(KERVRAN, 1993, p. 200). Em cada povoado, podemcoexistir aparatos diversos com variaes significativas, o caso pegu de fundao, do taba-amba (destinado proteo da comunidade) e do binu-amba que estligado identidade profunda de um grupo de mesmaancestralidade.

    Os ritos compem formas de ao do homemsobre a natureza e sobre as relaes dos homens entresi. Depositrios de desejos e angstias, eles oferecemproteo pessoal e social assim como permitem agirsobre os desequilbrios de diferentes tipos e origens.Podem ser fontes importantes para formao emanuteno da coeso e da solidariedade e, ao mesmotempo, armas contra inimigos. Alm disto, soassociados a doenas provocadas por transgresses ebruxaria. Assim o ritual africano, na medida em queconcerne a individualidade humana, esfora-se aomesmo tempo em identificar (e sempre em termos desituao, de posio, de relao), em fixar e estabelecercomo singularidade. Mas este ltimo empreendimento de longe o mais difcil (AUG, 1994, p. 35).

    Para Houseman e Severi (1994, p.205-6) aritualizao define-se, antes de tudo, pelas formasrelacionais que estabelece; esta rede de relaescomplexas que se materializam na ao ritual,alimentam a identificao dos implicados. Os autoresenfatizam que uma pluralidade de relaes quepermanece separada na vida cotidiana (mutuamenteexcludentes) condensada na ao ritual. No interiordestas redes de relaes tudo simblico. A ao ritual aprendida atravs de um modo particular de imitaoque comporta uma sistematizao da imagem do outro.O ritual pode alimentar-se de um simbolismo que semanifesta preferencialmente atravs de linguagens no-verbais, pois a linguagem verbal perde, no rito, o

    essencial de sua funo comunicativa. As aes so osuporte para a traduo ritual das representaes quecontm gestos, palavras, imagens, relaes, contexto,objetos. A prtica ritual estabelece relaes com arepresentao da experincia individual e da memriahistrica, ela veculo de simbolizao e instrumentode uma estratgia social (HOUSEMAN; SEVERI,1994, p. 195), alm de instrumento para a construoda memria social.

    A palavra que se encerra

    Para finalizar possvel retomar alguns pontosque sintetizam a compreenso do adoecimento. Asinterpretaes do mal aparecem atravs de duas gradeslinhas de interpretao. A primeira enfatiza a doenacomo manifestao da vontade de Amba e comodestino. Esta uma teoria de acobertamento e de buscade pacificao dos conflitos. A segunda, destaca ashipteses que ligam a doena ao nefasta de agentessociais, uma noo baseada numa teria que coloca osconflitos sociais e interpessoais em primeiro plano.Nestes casos so, sobretudo, os conflitos ligados srelaes matrimoniais e familiares e ao papel doshomens jovens na estrutura de poder que surgem comoproblemticas mais freqentemente referidas. Outrosprocessos podem redefinir os limites e o sentido dobem-estar e da sade. O medo (n&) repentino podelevar pessoa a se perder (seu kinde kindu escapa) outorn-la impura (contato com a morte), deixando ocaminho aberto para que a doena entre. Astransgresses e a quebra dos cdigos de condutaconfiguram-se, tambm, como desordem. Trata-se,principalmente do desrespeito aos cdigos de condutainterpessoais, da violao de um pacto ancestral, daviolao das regras de conduta dos homens nas suasrelaes com a natureza visvel e, tambm, com osseres no visveis com os quais se deve compartilharo espao terrestre.

    A loucura no apreendida como mal de umcorpo inerte a ser extirpado. As proposiesenunciadas pelos terapeutas, adivinhos e doentes queconhecemos informam um sistema de compreenso eequacionamentos da problemtica. Nelas os nexosentre manifestao da loucura e sociedade, entreprocessos teraputicos e prticas ancestrais, entre reale imaginrio, entre religiosidade e organizao socialno podem ser separados para serem conhecidos. Domesmo modo, passado e futuro apresentam-seinterpenetrados no presente, e a pessoa e o grupopermanecem indissociveis ainda que em relaes aomesmo tempo complementares, concorrentes eantagnicas.

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    ABSTRACT: The survey providing the data was performed from July,1994 throughAugust,1996, in the Bandiagara region, both the plateau and the cliff. The ways throughwhich the knowledge about wede-wede and its meanings are organized has beendiscussed hereby, as well as the treatment and non-treatment possibilities offered tothose considered mentally ill in the dogon society, Western Africa. The dogon societyhas got quite an extensive lexicon linked to the designation and understanding of themental illnesses. On the other hand, they own a set of organized knowledge which isassessed and exercized mainly by the men and passed on from generation to generationwithin the same family root or acquired by means of revelation. Anyone who isconsidered mentally ill may be faced with differing fates: one may be sheltered, treatedand reinserted into the society, or one may be treated and - once he/she cannot manageto find his/her position back in the social spheres - taken care of by some relative orfriend. One may also be imprisoned at home or abandoned to wander aimlessly. In thelatter case, the mentally ill are often to be found in markets, wandering along the roadsand in the country-side villages.

    KEYWORDS: Ethnopsychology. Mental disorders. Mental health. Culture.Occupational therapy/trends.

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    Recebido para publicao: 10/06/2002Aceito para publicao: 22/07/2002