longobuco, niceia - “chegar a ser o que se é”- a dinâmica entre memoria e esquecimento em...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MEMRIA SOCIAL
NILCINIA NEVES LONGOBUCO
CHEGAR A SER O QUE SE : A DINMICA ENTRE
MEMRIA E ESQUECIMENTO NA PROPOSTA
EDUCATIVA DE NIETZSCHE
RIO DE JANEIRO
2013
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NILCINIA NEVES LONGOBUCO
CHEGAR A SER O QUE SE : A DINMICA ENTRE MEMRIA E
ESQUECIMENTO NA PROPOSTA EDUCATIVA DE NIETZSCHE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Memria Social da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial para a obteno do grau de
mestre em Memria Social. rea de
concentrao: Memria, subjetividade e criao.
Orientador: Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea
RIO DE JANEIRO
2013
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Longobuco, Nilcinia Neves.
L856 Chegar a ser o que se : a dinmica entre memria e esquecimento na
proposta educativa de Nietzsche / Nilcinia Neves Longobuco, 2013
102f. ; 30 cm
Orientador: Miguel Angel de Barrenechea.
Dissertao (Mestrado em Memria Social) Universidade Federal do Es-
tado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Memria (Filosofia). 3. Es-
quecimento. 4. Educao Filosofia. 5. Memria Aspectos sociais. I. Barrenechea, Miguel Angel de. II. Universidade Federal do Estado do Rio
do Rio de Janeiro. Centro Cincias Humanas e Sociais. Programa de Ps- Gra-
duao em Memria Social. III. Ttulo.
CDD 302
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NILCINIA NEVES LONGOBUCO
CHEGAR A SER O QUE SE : A DINMICA ENTRE MEMRIA E
ESQUECIMENTO NA PROPOSTA EDUCATIVA DE NIETZSCHE
Dissertao apresentada Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para a obteno do grau de Mestre em
Memria Social
Aprovada em: _____/_____/_____
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea Orientador
PPGMS/UNIRIO
________________________________________________________
Prof. Dr. Denise Maurano
PPGMS/UNIRIO
________________________________________________________
Prof. Dr. Rosa Maria Dias
PPGFIL/UERJ
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Para meus pais, Neuza e Paulo.
Para minhas filhas, Las e Lvia.
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AGRADECIMENTOS
A Miguel Angel de Barrenechea, meu orientador, pelo incentivo, pela parceria, por sua
dedicao na tarefa educativa e pela amizade, fatores importantssimos na construo
deste trabalho.
s professoras Rosa Maria Dias e Denise Maurano pela participao na banca e pelas
importantes contribuies na qualificao.
Ao Programa de Ps-Graduao em Memria Social, pela possibilidade de aprimorar
meus estudos.
A meus pais, Neuza e Paulo, por terem investido em minha educao e por acreditarem
em minha capacidade de buscar um caminho por mim mesma.
minha famlia, principalmente meus irmos, Ana Paula, Fernando e Carlos Roberto, e
minha prima Elisabete pelo apoio incondicional em todos os momentos.
s minhas filhas, Lvia e Las, que mesmo to pequenas, souberam respeitar meus
momentos de estudo.
A meu marido, Ronaldo, pela pacincia e carinho.
Aos amigos do grupo de estudos, Enock, Adriana, Lus, Nelson, Daniele, Daniel e
Mrio, pelas belas trocas.
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Para ousar ser um si mesmo, preciso antes de mais nada uma
tarefa educativa.
(Rosa Dias. Nietzsche, educador)
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RESUMO
Esta dissertao tem por objetivo investigar a relao entre memria e esquecimento na
proposta educativa de Friedrich Nietzsche. O filsofo alemo - ancorado no aforismo de
Pndaro - estabelece a mxima chegar a ser o que se , princpio primordial de sua
proposta educativa. Para Nietzsche, tornar-se quem se pressupe um processo
educativo: a educao de si; nesta proposta, o filsofo sugere que o homem eduque a si
mesmo, harmonizando e hierarquizando foras corporais, em meio das quais est a
memria e o esquecimento. Estas faculdades so entendidas como atividades do corpo,
ambas com a mesma importncia. Nesse sentido, o filsofo critica a tradio metafsico-
religiosa que despreza o corpo e coloca o esquecimento em segundo plano em
detrimento da memria. Assim como tambm investe contra a cultura moderna, que de
acordo com Nietzsche, vive uma doena, algo que afasta o homem moderno de
expressar sua singularidade. Segundo o filsofo alemo, a educao institucional
deveria estimular a educao de si, o cultivo da singularidade, porm o que se v, na
modernidade, o empenho em moldar comportamentos, tornar o homem cada vez mais
gregrio e passivo. Como forma de se contrapor essa tendncia e alertar para a
necessidade de se moderar o excesso de conhecimento histrico o que pressupe um
excesso de memorizao, to valorizado na educao e na cultura moderna -, Nietzsche
prope uma luta contra esses valores, defende que o homem busque a superao dos
valores decadentes de sua poca expressando a sua autenticidade. O caminho para
tornar-se quem se s pode ser trilhado por um processo educativo, no qual
Nietzsche enfatiza o esquecimento como uma fora plstica modeladora, capaz de
moderar o excesso de memria, dando abertura ao novo, num permanente processo de
criao: o homem memorioso d lugar ao homem criativo, numa constante dinmica
entre o lembrar e o esquecer.
PALAVRAS-CHAVE: Memria. Esquecimento. Educao de si. Nietzsche.
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ABSTRACT
This thesis aims to investigate the relationship between memory and forgetting in
educational proposal of Friedrich Nietzsche. The German philosopher - anchored in the
aphorism Pindar - sets the maximum "to become what one is" overriding principle of his
educational proposal. For Nietzsche, become who you are requires an educational
process: education itself; this proposal, the philosopher suggests that men educate
yourself, harmonizing body and forces a hierarchy, which is in the midst of memory and
forgetting. These colleges are understood as activities of the body, both with the same
importance. In this sense, the philosopher criticizes the metaphysical-religious tradition
who despises the body and puts the wayside in the background at the expense of
memory. As well as lunges modern culture, which according to Nietzsche, lives a
"disease", which removes the modern man to express your uniqueness. According to the
German philosopher, institutional education should foster education itself, the
cultivation of the singularity, but what you see in modernity's commitment to shaping
behaviors, making man increasingly gregarious and liabilities. In order to counter this
trend and alert to the need to moderate the excess of historical knowledge - which
implies an excess of memorization, so valued in education and modern culture -
Nietzsche proposes a struggle against these values, argues that the Man seeks to
overcome the declining values of their time expressing their authenticity. The way to
"become who you are" can only be followed by an educational process in which
Nietzsche emphasizes the wayside as a force shaping plastic, able to moderate the
excess memory, giving the new opening, in a permanent process of creating: memorious
man gives way to creative man, a constant dynamic between remembering and
forgetting.
KEYWORDS: Memory. Oblivion. Education itself. Nietzsche.
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SUMRIO
1 INTRODUO ..........................................................................................................3
2 NIETZSCHE E A MEMRIA SOCIAL ..................................................................8
2.1 UM FILSOFO INTEMPESTIVO ...........................................................................8
2.2 MEMRIA, INDIVDUO E SOCIEDADE: A CONSTRUO SOCIAL DA
MEMRIA .....................................................................................................................13
2.2.1 A memria mtica dos gregos ............................................................................14
2.2.2 O surgimento da memria na perspectiva nietzschiana .................................19
2.2.2.1 Conscincia, m conscincia e a vida gregria ..................................................22
2.2.2.2 Atividade e reatividade: a questo do ressentimento .........................................25
2.3 NIETZSCHE E UM NOVO OLHAR SOBRE O HOMEM ...................................28
2.3.1 A retomada de uma viso trgica e imanente...................................................32
3 EDUCAO E A CRTICA NIETZSCHIANA AO EXCESSO DE
CONHECIMENTO HISTRICO...............................................................................34
3.1 A RELAO MEMRIA-ESQUECIMENTO NA SEGUNDA CONSIDERAO
INTEMPESTIVA..............................................................................................................35
3.1.1 O passado como fonte do presente......................................................................38
3.1.2 A crtica ao historicismo.......................................................................................40
3.2 EDUCAO E MEMRIA.....................................................................................44
3.2.1 A educao na universidade alem do sculo XIX...........................................45
3.2.2 Expanso e reduo da cultura..........................................................................51
3.2.3 A formao do homem erudito...........................................................................57
4 OS DESAFIOS PARA CHEGAR AO QUE SE : A BUSCA PELA
SINGULARIDADE E DE UMA EDUCAO DA DIFERENA...........................61
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4.1 O MODELO SCHOPENHAUERIANO...................................................................61
4.1.1 Schopenhauer como filsofo-educador...............................................................61
4.1.2 O filsofo-educador como mdico da civilizao...............................................65
4.2 O CONHECIMENTO DE SI: COMO CHEGAR A SER O QUE SE
?...................................................................................................................................67
4.2.1 Como lutar contra o seu tempo?.........................................................................67
4.2.2 A luta contra si prprio e a busca pela singularidade.......................................70
4.3 AO, FORMAO E TRANSFORMAO E O AVANO DA
CULTURA......................................................................................................................72
4.3.1 A formao do homem superior: presente de ao e futuro de
transformao................................................................................................................73
4.4 ENTRE MEMRIA E ESQUECIMENTO: A IMITAO CRIATIVA E A
ABERTURA PARA O NOVO........................................................................................77
4.4.1 Memria, imitao e criao...............................................................................78
4.4.2 O esquecimento e a atividade criadora..............................................................81
5 CONSIDERAES FINAIS....................................................................................85
REFERNCIAS.............................................................................................................89
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1 INTRODUO
O objetivo dessa dissertao discutir a relao entre memria e esquecimento
na abordagem filosfica de Friedrich Nietzsche sobre a educao de si. Ao tratarmos a
questo de como o homem se torna o que se mxima primordial da concepo
educativa nietzschiana, ancorada no aforismo de Pndaro e ao analisarmos os
caminhos que ele necessita percorrer para desenvolver suas foras individuais, a sua
singularidade, veremos a presena da memria e do esquecimento imbricados nesse
processo. A realizao mais profunda do homem, na arte da auto-educao de chegar
a ser o que se necessria a dosagem entre memria e esquecimento. Assim, nessa
dissertao visamos esclarecer a importncia desse processo de lembrar-esquecer na arte
de chegar a ser o que se . Agora, no intuito de introduzirmos essa questo nodal da
nossa reflexo, vejamos o conceito de singularidade nietzschiano, relevante para a
compreenso do processo de auto-educao. Para Nietzsche cada homem nico e
autntico, como afirma numa passagem da Terceira Considerao Intempestiva:
No fundo, todo homem sabe muito bem que no se vive no mundo seno uma
vez, na condio de nico [als ein Unicum], e que nenhum acaso, por mais
estranho que seja, combinar pela segunda vez uma multiplicidade to
diversa neste todo nico que se (...).1
Ao buscar tornar-se ser aquilo que verdadeiramente , o homem abre a
possibilidade de romper com uma cultura decadente e infecunda, tornando-se, assim,
produtor de vida e cultura. A proposta da educao de si, desenvolvida pelo filsofo,
perpassa pela perspectiva da luta contra seu tempo e contra si mesmo, como forma de se
chegar realizao do que prprio de cada um. Veremos, em nossa anlise, como essa
proposta, de educar-se a si mesmo, se vincula questo da memria e do esquecimento.
Scarlett Marton2, assim como outros comentadores, divide a obra de Nietzsche
em trs fases: a primeira que vai de 1870 a 1876; a segunda, de 1876 a 1882 e a terceira,
de 1882 a 1888. A nossa anlise parte de um livro da terceira fase, A genealogia da
moral, um dos poucos textos sistemticos de Nietzsche, com o intuito de iniciarmos a
nossa discusso sobre a memria e o esquecimento. importante a utilizao desse
livro, j que nele se encontra desenvolvida, de forma mais sistemtica, a hiptese
1 NIETZSCHE. Schopenhauer como educador. In: ___. Escritos sobre educao. Rio de Janeiro: PUC-Rio; So Paulo: Ed. Loyola, 2009, p. 161.
2 Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das foras csmicas aos valores humanos. So Paulo: Brasiliense, 1990, introduo.
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nietzschiana do surgimento da memria, que para o filsofo, j nasceu imbricada no
seio de relaes sociais. Adotamos como foco principal de anlise, em nosso trabalho, a
Segunda e a Terceira considerao intempestiva - Da utilidade e desvantagem da
histria para a vida e Schopenhauer como educador - ambos os textos pertencem
primeira fase da obra nietzschiana, na qual, sob a influncia de Wagner e Schopenhauer,
se volta a questionar o destino da arte e da cultura no mundo moderno. Pautamos nossa
anlise privilegiando os textos dessa fase, etapa em que o filsofo outorga uma maior
importncia questo da educao. Nietzsche realizou uma obra basicamente
constituda de aforismos, poemas e fragmentos, por isso tambm utilizaremos outros
textos do autor que nos auxiliem no equacionamento da problemtica levantada nesta
dissertao, isto , que nos sirvam para o esclarecimento das ideias ou conceitos
principais do filsofo alemo articulados com as questes fulcrais que esto sendo
analisadas: memria, esquecimento, educao de si.
No primeiro captulo dessa dissertao, nos propomos analisar a relao entre
memria e esquecimento, refletindo sobre as implicaes desses dois conceitos no
campo discursivo da Memria Social, na qual Nietzsche se insere como um dos tericos
mais significativos. Inicialmente, abordamos como o autor marca sua poca com uma
filosofia de carter intempestivo, realizando uma profunda crtica da modernidade. Logo
aps, nossa anlise se volta para a interpretao mtica dos gregos sobre Mnemosyne, a
deusa da memria e do esquecimento, buscando esclarecer o percurso de construo da
memria desde os gregos arcaicos at Nietzsche. Para isso, abordamos a anlise de Jean
Pierre Vernant para refletirmos sobre o conceito de memria sustentado pelos gregos.
Posteriormente, centramos o nosso estudo na teoria de Nietzsche, refletindo sobre a
Genealogia da moral, especificamente a Segunda Dissertao Culpa, m
conscincia e coisas afins. Seguindo a tica do pensador alemo, iremos esclarecer a
gnese da memria e do esquecimento no bicho-homem.
Nietzsche interpreta o esquecimento como uma fora ativa em oposio ao
ressentimento, processo de carter reativo3. O ressentimento liga-se a um excesso de
memorizao, um constante re-sentir e, por isso, no moveria o homem ao, j que
promove a interiorizao e no a exteriorizao das suas foras existentes. Memria e
esquecimento, na viso do filsofo, no constituem conceitos opostos, nem h
3No primeiro captulo abordaremos essa questo mais detalhadamente.
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prevalncia de um sobre o outro, mas isso evidencia uma dinmica que nasce na relao
social: dinmica que oscila entre o lembrar e o esquecer. Nietzsche, ao discutir a relao
entre memria e esquecimento, na Genealogia da moral, utiliza o mtodo genealgico
para avanar nessa discusso, levantando uma hiptese ligada aos valores morais,
consolidados e cristalizados como verdades no meio social. Em sua anlise, o filsofo
desenvolve uma crtica a tais valores, questionando os ideais estabelecidos em sua
poca, portanto, faz-se necessrio, neste trabalho, evidenciar tal crtica e a viso
diferenciada do filsofo sobre a origem e vigncia desses valores. Desta forma,
abordamos a concepo de homem na interpretao de Nietzsche, assim como sua
perspectiva acerca de uma vida afirmativa em contraposio vida declinante que ele
denuncia como sintoma da poca moderna.
No segundo captulo, focalizamos a Segunda considerao intempestiva - Da
utilidade e desvantagem da histria para a vida para repensarmos as questes da
memria e do esquecimento. Nesse livro, Nietzsche faz um diagnstico da modernidade
e critica o excesso de conhecimento histrico imperante na educao e na cultura alem
do sculo XIX. Nesse captulo, a metodologia adotada aprofundar essa crtica,
discutindo como ela se desenvolve na anlise nietzschiana, tratando especificamente do
ensino na universidade alem daquela poca. No ensino universitrio h um apelo pela
memorizao, pelo excesso de saber, sem a preocupao de valorizar a vida do homem
e muito menos de promover o desenvolvimento de suas capacidades singulares. Essa
tendncia leva os indivduos ao simples acmulo de conhecimentos, num visvel
movimento de busca pela quantidade de conhecimentos e no pela qualidade dos
mesmos, afastando-os, assim, do desenvolvimento de suas potencialidades. Trata-se de
uma perspectiva que sustenta que tudo vale a pena ser conhecido, mesmo sem contribuir
para a vida de forma efetiva. Essa tendncia que valoriza o acmulo irrestrito de
conhecimentos, de acordo com o filsofo, reflete a lgica da cultura moderna em que
prima uma erudio pedante, abstrata e desvinculada da existncia do homem.
Para Nietzsche, os excessos (excesso de histria, de cincia, de erudio, de
dependncia do lucro etc.) praticados pela modernidade esto voltados para interesses
de um mercado4 e distanciam cada vez mais o homem da vida. O homem moderno,
4 No segundo captulo abordaremos mais detalhadamente esta questo, porm destacamos, nesse momento, uma passagem de Nietzsche, educador, de Rosa Dias, que traduz a lgica desse mercado: Eis o seu raciocnio: quanto mais cultura, maior consumo e, portanto, mais produo, mais lucro e mais felicidade. Os adeptos dessa frmula definem a cultura como instrumento que permite aos homens acompanhar e satisfazer as necessidades de sua poca e um meio para torn-los aptos a
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preso a uma cultura5, que o autor considera decadente, para libertar-se do peso dessa
tendncia declinante, precisaria lutar contra o seu tempo: contra a exagerada valorizao
da cincia, dos interesses econmicos e contra a desvalorizao do humano.
No terceiro captulo, a questo tematizada engloba a reflexo sobre a
possibilidade do surgimento de modelos de mestres que sirvam de exemplos a serem
seguidos, e que permitam os discentes avanarem no auto-conhecimento e na realizao
de si. Esses homens deveriam ser capazes de se libertarem do peso de sua poca, da
erudio enfatizada na educao desses dias, colocando em evidncia suas capacidades
individuais, suas foras interiores, tornando-se agentes que promovam transformaes
em seu meio social, impulsionando, assim, o avano da cultura. Nietzsche ressalta que,
para que o homem consiga chegar verdadeiramente a ser o que ele , seria necessria a
presena de um mestre6, um educador, que o conduza a encontrar o seu prprio
caminho.
Na Terceira considerao intempestiva - Schopenhauer como educador -
encontramos subsdios para embasarmos as questes fulcrais a serem tematizadas nesse
captulo. Nesse livro, Nietzsche considera Arthur Schopenhauer como filsofo-
educador, como docente-filsofo, outorgando-lhe o elevado sitial de modelo de mestre.
Veremos, nesse captulo, como este filsofo inspira Nietzsche e leva-o a consider-lo
um exemplo a ser seguido pelo homem que busca chegar a ser o que se .
Investigamos a importncia desse modelo no processo que levar o homem
singularidade e os caminhos que lhe permitiro atingir aquilo que lhe mais prprio.
Nesse processo de chegar a ser o que se poderemos constatar que no implica em
alcanar um ponto final do autoconhecimento, j que, para Nietzsche, a vida um
constante devir, e no possvel chegar a um resultado final, mas s podemos estar em
trnsito, em perptuo caminho de autognose. Assim, aliada a essa questo, abordamos,
ganhar muito dinheiro. Assim, os estabelecimentos de ensino devem ser criados para reproduzir o modelo comum e formar tanto quanto possvel homens que circulem mais ou menos como moeda corrente. Com a ajuda de uma formao geral no muito demorada, pois a rapidez a alma do negcio, eles devem ser educados de modo a saber exatamente o que exigir da vida e aprender a ter um preo como qualquer outra mercadoria. Assim, para que os homens tenham uma parcela de felicidade na Terra, no se deve permitir que possuam mais cultura do que a necessria ao interesse geral e ao comrcio mundial. (DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, educador. So Paulo: Scipione, 2003, p. 82).
5 O conceito de cultura fundamental na anlise nietzschiana da Modernidade e alude ao conjunto de manifestaes artsticas de um povo. Aqui s introduzimos a noo que ser aprofundada no primeiro captulo dessa dissertao.
6 No terceiro captulo desenvolveremos a noo de mestre abordada pelo autor.
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na parte final do captulo, a possibilidade da criao do novo, dos caminhos que nos
aproximam afirmao da nossa singularidade. Esse caminho ser desvendado com a
colaborao do modelo, com o subsdio do mestre-filsofo. Alis, no processo de
autognose e de auto-realizao, em que somos guiados pelo mestre, ser importante
considerar a dinmica existente entre o lembrar e o esquecer, j que o esquecimento
(que implica e no se ope necessariamente ao lembrar) pode abrir as portas para essa
criao, para inaugurar novas possibilidades de vida e de uma cultura autntica.
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2 NIETZSCHE E A MEMRIA SOCIAL
Nietzsche um autor que discute a memria, destacando, em sua anlise, a
procedncia social desta faculdade. Ele desenvolve uma hiptese sobre o surgimento
dessa faculdade diferente das desenvolvidas por outros tericos que abordam a
problemtica da Memria Social. Neste captulo, a proposta refletir sobre a
emergncia social da memria, partindo de uma discusso em torno do campo terico
da Memria Social e de como o filsofo se insere nela. Teceremos, tambm, algumas
consideraes sobre a interpretao da memria nos gregos arcaicos, para pensarmos,
na sequncia, como entendida nas perspectivas mtica e metafsica helnicas.
Posteriormente, nos deteremos na anlise da segunda dissertao da Genealogia da
moral para discutirmos, conforme a concepo nietzschiana, como a memria foi
forjada na sociedade. A anlise dos textos utilizados, nesta seo, nos permitir refletir
sobre a memria entendida como fenmeno social e no simplesmente como um
processo psicolgico individual. Indivduo e coletividade constituem categorias
importantes a serem levadas em conta nessa discusso, uma vez que a integrao e
inter-relao do indivduo com seu grupo, num tempo e num espao determinado, o
que promove transformaes no mbito da memria. Abordamos, na sequncia, a
questo do indivduo, dedicando uma seo para tratarmos o problema da subjetividade
na tica de Nietzsche, uma vez que o filsofo apresenta uma perspectiva singular sobre
a situao do homem na sua articulao com a memria e com todas as suas foras
vitais.
2.1 UM FILSOFO INTEMPESTIVO
O valor de um pensamento no est no conhecimento que pode fornecer, mas
no modo de vida ou de existncia que pode sugerir.7
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Roecken, na Saxnia, em 15 de outubro
de 1844. Primeiro filho de um pastor luterano, esse filsofo alemo estudou teologia e
filologia, porm, em 1865, abandona a teologia e se transfere da Universidade de Bonn
para a Universidade de Leipzig. Em 1869, comea a lecionar filologia clssica na
7FREZZATTI JR, Wilson Antnio. Educao e cultura em Nietzsche: O duro caminho para tornar-se o que se . In: AZEREDO, Vnia Dutra de (Org.). Nietzsche: filosofia e educao. Iju: Ed. Uniju, 2008, p. 42.
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Universidade da Basileia, na Sua, da qual pede demisso em 1879 e inicia uma vida
errante pela Europa.
Nietzsche sempre se preocupou com a educao e com a cultura. Nos anos em
que foi professor no Pdagogium e na Universidade da Basileia, se deparou com
problemas concretos sobre esses temas, reconhecendo no ensino secundrio e superior
um sistema educacional que valoriza a formao cientificista e que deixa de lado a
formao humanista8. O filsofo se preocupa com tais questes e denuncia os mtodos
antinaturais adotados no ensino daquela poca e as tendncias que minavam a
educao e a cultura. Para ele, no existe cultura sem um projeto educativo, nem
educao sem uma cultura que a apie9, por isso, em sua tica, cultura e educao so
inseparveis. importante aludir ao conceito nietzschiano de cultura, j que ela est no
centro de suas reflexes sobre educao e tambm sobre memria. Para o filsofo, a
cultura a unidade de estilo artstico em todas as manifestaes de um povo10 e
nessas manifestaes esto includas a educao e a memria.
Em 1871, Nietzsche publica o seu primeiro livro, O nascimento da tragdia no
esprito da msica, dedicado a Wagner, o qual no foi bem recebido no meio
acadmico. A obra criticada como excessivamente imaginativa e no cientfica, ela lhe
custou a perda da estima do mundo acadmico e de sua reputao como filsofo. Ele,
que at ento, era recebido com entusiasmo pelos estudantes, viu, a partir da, sua sala
de aula quase vazia. Apesar disso, Nietzsche continua a sua tarefa de professor, mesmo
insatisfeito com os mtodos pedaggicos adotados em sua poca.
No incio de 1872, na Basileia, o filsofo pronuncia cinco conferncias - Sobre o
futuro de nossos estabelecimentos de ensino - e, nos ltimos meses do mesmo ano,
escreve A filosofia na poca trgica dos gregos, no qual realiza um estudo sobre
filsofos pr-platnicos11. Nietzsche encontra nos gregos pr-platnicos o ideal de
educao, uma educao pautada nas experincias da vida de cada indivduo, nela
8 Como destaca Rosa Dias, a educao moderna, totalmente voltada para o mercado e a produo, implica numa conseqente vulgarizao do ensino [que] tinha por objetivo formar homens tanto quanto possvel teis e rentveis, e no personalidades harmoniosamente amadurecidas e desenvolvidas. (DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, educador. So Paulo: Scipione, 2003, p. 16).
9 Ibidem, p. 17.
10NIETZSCHE, F. David Strauss: el confesional y el escritor. In: Consideraciones Intempestivas. Madri:
Aguilar, 1932, p. 6. 11
Nesse livro exalta o pensamento dos primeiros filsofos gregos: Tales, Anaximandro, Herclito, Parmnides e Anaxgoras.
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pensamento e vida se entrelaam, diferentemente do que ocorre na cultura moderna - na
qual esses aspectos aparecem dissociados.
De 1873 a 1875, o filsofo se dedica a escrever quatro textos polmicos: As
Consideraes intempestivas (ou extemporneas). Nelas, Nietzsche questiona
severamente a cultura da poca, classificando-a como decadente, realizando um
diagnstico dos seus males e indica um possvel remdio12
: uma educao para a cultura
e para o surgimento de indivduos singulares. Na Primeira considerao intempestiva -
David Strauss, o devoto e o escritor, Nietzsche ataca Strauss, que, na poca, era
considerado o pensador alemo por excelncia, mas, na verdade, visa criticar a cultura
alem como um todo. J na Segunda Intempestiva - Da utilidade e desvantagem da
histria para a vida - o filsofo denuncia o enfraquecimento da cultura causado pela
excessiva valorizao da cincia histrica13. Diferentemente do que ocorrera com a
Primeira intempestiva, a Segunda considerao no foi bem recebida pela comunidade
acadmica e no houve comentrios sobre ela na imprensa, a obra no obteve sucesso,
sendo totalmente ignorada. Na Terceira considerao intempestiva, Schopenhauer
como educador14, Schopenhauer visto, pelo autor, como modelo de filsofo. Nesse
livro, Nietzsche critica os filsofos universitrios15
, os eruditos que empanturrados de
saber se apresentam como homens ressentidos e destaca ainda a importncia da
filosofia e de seu papel transformador. Na Quarta considerao intempestiva, Richard
Wagner em Bayreuth, Nietzsche critica os mercenrios da arte que a transformaram em
mercadoria de luxo. O filsofo revela, impiedosamente, a hipocrisia e o artificialismo
que caracterizam a moderna cultura europeia, em todas as suas esferas. Sobre esse
ponto, em Ecce Homo, quando trata das Consideraes intempestivas, ele lembra que:
As quatro consideraes extemporneas so absolutamente guerreiras. Elas
provam que eu no fui nenhum Joo Sonhador, que tenho prazer em desembainhar a espada (...). O primeiro ataque (1873) foi contra a formao
alem, para a qual eu descia um olhar de desprezo implacvel j naquela
poca. Sem sentido, sem substncia, sem objetivo: apenas opinio pblica. (...) A segunda extempornea (1874) traz luz o aspecto perigoso, que corri
e envenena a vida enferma por causa dessas roldanas e mecanismos
12
O termo remdio utilizado como metfora de uma possvel superao do estado de doena que Nietzsche enxerga na modernidade -, atravs do qual o homem pode tornar-se saudvel, afastando-se dos valores decadentes. Sobre esta questo da sade e da doena trataremos no terceiro captulo.
13No segundo captulo, abordaremos mais detalhadamente a crtica nietzschiana ao historicismo praticado na cultura moderna.
14No terceiro captulo, utilizaremos esse livro como base de nossa anlise e veremos que fatores levaram Nietzsche a ver em Schopenhauer um iniciador da educao de si.
15 Considerados por Nietzsche apenas como professores de filosofia e no verdadeiros filsofos, como veremos em sees posteriores.
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desumanizados, por causa da impessoalidade do trabalhador, por causa da falsa economia da diviso do trabalho. A finalidade se perde, a cultura o meio, a operao moderna da cincia, se barbariza... Nesse ensaio o sentido histrico, pelo qual esse sculo se orgulha, foi reconhecido pela primeira vez como uma doena, como um sinal tpico do ocaso... Na terceira e na
quarta extemporneas so erigidas duas imagens do mais duro egosmo, da
mais dura autodisciplina em oposio a isso, na condio de sinal para um
conceito mais alto de cultura, para a restaurao do conceito cultura; essas imagens so tipos extemporneos, cheios de desprezo soberano contra tudo o
que em volta deles se chame imprio, formao, cristianismo, Bismarck, sucesso Schopenhauer e Wagner ou, em uma palavra,
Nietzsche...16
A intempestividade caracterstica destacada na trajetria filosfica de
Nietzsche. Podemos dizer que o carter intempestivo do pensamento nietzschiano marca
uma distino entre sua reflexo e a tradio filosfica ocidental. no efetivo
exerccio de contraposio ao tempo presente que se pode expressar a dimenso
inovadora da filosofia e do olhar para uma cultura17.
Como sustenta Foucault, Nietzsche, ao lado de Freud e Marx, um dos pontos
de referncia e parmetro da reflexo filosfica na modernidade18
.
Para Nietzsche, criar uma filosofia autntica pressupe pensar contra seu tempo,
contra a corrente que aprisiona seus contemporneos e sua poca a uma cultura
infecunda, artificial. Calomeni, ao discutir o sentido da intempestividade e do trgico
em Nietzsche, assinala:
Inatual e intempestivo, Nietzsche se apresenta de diversas formas: ora
psiclogo um psiclogo sem igual (...), como ele prprio afirma, 1888 de uma cultura medocre e hipcrita, insciente de seus interesses mais fundos;
ora o genealogista que problematiza o valor da verdade e, de modo mais
amplo, se interroga acerca da origem e do valor dos valores historicamente
dominantes no ocidente; ora o mdico de uma cultura doente e
enfraquecida, marcada por foras e valores decadentes; ora o discpulo do
deus ou do filsofo Dioniso que, ciente do carter contraditrio e ambguo da
existncia e em contraposio s amarras da concepo metafsica de ser,
quer proclamar a inocncia do devir para livrar a cultura da escravido a determinadas iluses que devem ser desmascaradas a duros golpes de martelo; ora o filsofo trgico apto a favorecer a reconciliao entre o homem e a existncia, anunciando o eterno retorno de todas as coisas e
convidando o homem ao amor fati, a mxima aceitao da vida no que ela
tem de precrio e infame; enfim, o crtico da cultura que, em favor de si
mesma, deve tentar se desfazer de seus modelos e de suas fantasmagorias e
superar-se a si prpria, atravs da transvalorao de todos os seus valores e
da observao dos ensinamentos da arte.19
16
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente . Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 89-90.
17CALOMENI, Tereza Cristina B. Intempestividade e trgico em Nietzsche. In: Revista O percevejo online, vol. 3, n 2, 2011, p. 4.
18 Cf. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx: Theatrum Philosoficum. So Paulo: Princpio, 1997.
19CALOMENI, op. cit., p. 4.
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Com essas palavras, a comentarista nos apresenta algumas questes acerca do
pensamento desse filsofo que une pensamento e vida, que sustenta um modo prprio
de filosofar, muito diverso da tradio racionalista e idealista ocidental. O filsofo
alemo, conforme o comentrio de Dias, celebra o devir e a fugacidade da existncia, a
alegria na busca e na transitoriedade, e que, por isso, no teme ver de diferentes pontos
de vista os contrastes que a vida lhe oferece20.
Intempestivo e extemporneo, Nietzsche, com a sua filosofia crtica, imoralista e
iconoclasta, apresenta-se em sociedade atravs de um duelo, como ele prprio afirma
em Ecce Homo: No fundo eu sempre pratiquei a mxima de Stendhal: ele aconselha a
todo mundo fazer sua entrada na sociedade atravs de um duelo. E como eu escolhi meu
inimigo! O primeiro livre-pensador alemo!21.
A sua crtica severa e radical, se pe em contradio com a poca, com seus
contemporneos e com os valores estabelecidos. A partir dessa crtica, Nietzsche cogita
a possibilidade da irrupo de uma nova cultura, na qual o homem idealista e decadente,
preso s amarras da metafsica e da moral, d lugar a um tipo de homem afirmativo:
A intempestividade a chave privilegiada para a abertura de uma
compreenso mais pertinente e mais fecunda do que se expe sob o signo da
atualidade e, mais do que isto, pressuposto da possibilidade de inveno de
novas formas de filosofia e de cultura.22
O pensamento nietzschiano se distancia de seu tempo para compreender melhor
o que se passa entre os modernos e, assim, propor uma nova forma de pensar e avaliar, o
que no significa estar alheio ao tempo presente. A intempestividade e o
distanciamento de sua poca no implicam em inrcia ou pessimismo, pois, para
Nietzsche, a vida um constante devir, um criar e destruir, um processo de demolio e
construo. A crtica da filosofia ocidental aponta para um outro tipo de reflexo, que
no est pautado em verdades eternas, mas que afirma a vida em sua totalidade, no que
ela tem de belo e tambm de terrvel.
Nietzsche no fora compreendido por seus contemporneos. O pensamento do
filsofo destoa das ideias vigentes na modernidade, anda contracorrente de seu tempo.
Como afirma Deleuze, no texto Pensamento nmade, ele a aurora de uma
20
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, educador. So Paulo: Scipione, 2003, p. 16. 21
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente . Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 89-92.
22CALOMENI, Tereza Cristina B. Intempestividade e trgico em Nietzsche. In: Revista O percevejo online, vol. 3, n 2, 2011, p. 5.
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contracultura23, isto , ele pensa para alm da cultura de sua poca, antevendo a
necessidade de mudanas radicais. Nietzsche repudia o pensamento dos filisteus da
cultura24, que, presos valorizao da educao como erudio, cincia como
explicao da realidade, ao excesso de sentido histrico e memria como forma de
preservao, no figuram como criadores de vida. Eles so meros repetidores, mantm o
hbito de pensar segundo a tica dos valores da moral, da metafsica e da religio
judaico-crist.
Nietzsche questiona a cultura moderna - exaltadora da utilidade e do esprito
pragmtico - ao valorizar a criao e a afirmao da vida como aes essenciais para o
homem. Esse filsofo, incompreendido e que, por isso, tornou-se solitrio, traz uma
perspectiva diferenciada, singular sobre educao, memria e cultura.
2.2 MEMRIA, INDIVDUO E SOCIEDADE: A CONSTRUO SOCIAL DA
MEMRIA
Agora importante, antes de analisar a perspectiva de Nietzsche, apresentar
outros tericos que refletiram sobre a Memria Social para situarmos o pensador alemo
no seio das concepes de memria, mostrando posteriormente sua interpretao
diferenciada. Inicialmente, ento, devemos aludir a Maurice Halbwachs que inaugura,
no sculo XX, as discusses sobre a memria individual e a memria coletiva25
,
entendendo que a memria surge no seio das relaes sociais, algo que se constri na
relao com outros indivduos. A discusso sobre a interao entre o individual e o
coletivo ganha espao nesse sculo e o desenvolvimento da noo de Memria Social
23
DELEUZE, Gilles. Pensamento nmade. In: MARTON, Scarlett. Nietzsche hoje? So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 57.
24Scarlett Marton define assim os filisteus da cultura (bildungsphilister), em seu livro Nietzsche: alm de no serem cultos, tm a iluso de s-lo. Incapazes de criar, limitam-se a imitar ou consumir. Alis, a imitao apenas outra forma de consumo. Fizeram da cultura algo venal, puseram-na venda, submeteram-na s leis que regem as relaes comerciais (MARTON, S. Nietzsche. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 32). Posteriormente voltaremos a falar desse conceito, utilizado por Nietzsche para denominar os eruditos de sua poca.
25Essa discusso inaugurada por Maurice Halbwachs, sobre memria individual e memria coletiva, est presente em seu livro A memria coletiva. Discpulo do socilogo Durkheim, Halbwachs, conforme comenta Santos: no considerou a memria nem como um atributo da condio humana, nem a partir de seu vnculo com o passado, mas sim como resultado de representaes coletivas construdas no presente, que tinham como funo manter a sociedade coerente e unida (SANTOS, Myriam Seplveda dos. Memria coletiva e teoria social. So Paulo: Annablume, 2003, p. 21).
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propicia a discusso da dicotomia indivduo/sociedade, o que permitiu consolidar a
memria como campo discursivo autnomo. Nietzsche, no sculo XIX, antecipa essa
discusso: a interpretao da memria como processo social, viso que s tomaria fora
no sculo posterior.
H uma grande distncia entre a memria como entendida nos dias de hoje e a
maneira como era vista pelos gregos arcaicos. Entre os helenos, a difuso da escrita
constitui, sem dvidas, um divisor de guas na histria da memria. Na passagem da
tradio oral dos antigos gregos escrita, a forma de conceber o mundo se transforma
completamente. O tempo cclico dos gregos arcaicos, no qual presente e passado
coexistem no mesmo mundo, d lugar ao tempo linear ou histrico, que se caracteriza
pela ideia de comeo (gnese) e fim (apocalipse) dos tempos.
Nesta seo visamos esclarecer o percurso de construo da memria no campo
discursivo da Memria Social. Inicialmente, analisaremos a memria conforme a viso
mtica e religiosa dos gregos arcaicos, passando pelos rficos e pitagricos at
abordarmos a teoria de Plato. Logo depois, estudaremos a singular perspectiva de
desenvolvimento da memria na tica nietzschiana. Refletiremos tambm sobre o
esquecimento, tanto na viso dos gregos como na de Nietzsche. Finalmente,
apresentaremos a peculiar abordagem nietzschiana sobre a subjetividade e a sua
compreenso do homem singular que, dotado de uma fora criativa, se faz afirmador da
vida em todas as suas instncias.
2.2.1 A memria mtica dos gregos
Mnemosyne, a deusa da memria e do esquecimento, na mitologia grega
representa uma atividade psicolgica: a memria. Jean-Pierre Vernant destaca que
Mnemosyne, inicialmente, se difere dos outros deuses, pois a memria uma funo
muito elaborada que atinge grandes categorias psicolgicas, como o tempo e o eu. Ela
pe em jogo um conjunto de operaes mentais complexas, e o seu domnio sobre elas
pressupe esforo, treinamento e exerccio26. Vernant destaca que os documentos que
servem de base aos seus estudos sobre a histria da memria27 consistem em
26
VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos mticos da memria e do tempo. In: Mito e pensamento entre os gregos. So Paulo: EDUSP, 1973, p. 72.
27Ibidem, p.71.
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representaes religiosas, que divinizam a memria, manifestando uma ampla mitologia
da reminiscncia na Grcia Arcaica. Nessa civilizao de tradio oral (entre os sculos
XII e VIII a.C.), a memria ganha lugar de destaque numa poca em que a escrita ainda
no havia sido difundida.
Mnemosyne, a me das Musas, inspira o poeta28
, que ao ser possudo por suas
filhas, torna-se seu intrprete. Mnemosyne confere ao poeta uma sabedoria que lhe
permite desenvolver a oniscincia divinatria, pois ela sabe e canta tudo o que foi, tudo
o que , tudo o que ser29. O aedo30, atravs dessa inspirao, transporta-se para pocas
passadas, vivencia o passado, mesmo estando no presente. Atravs da rememorao,
promovida pelo aedo, possvel entrar em contato com outro tempo, um tempo original,
que no s coexiste com o presente, mas tambm o fundamenta:
O passado revelado deste modo muito mais que o antecedente do presente: a sua fonte. Ascendendo at ele, a rememorao no procura situar os
acontecimentos em um quadro temporal, mas atingir o fundo do ser,
descobrir o original, a realidade primordial da qual saiu o cosmo e que
permite compreender o devir em seu conjunto.31
Na tradio potica, conservada de gerao em gerao, dava-se muita
importncia aos exerccios mnemotcnicos, ao treinamento da memria, como se
observa no exemplo do catlogo32. Os catlogos possibilitavam a fixao e transmisso
de um conjunto de conhecimentos sobre o passado de determinado grupo social. O
poeta, possudo pelas Musas, torna-se capaz de vivenciar o passado herico de uma
sociedade, entra em contato com um tempo original. Assim, canta a memria da
coletividade e no sua prpria, como bem exemplifica o catlogo. Ao listar dados
sociais, que constituem a matria das narrativas mticas, os catlogos promovem a
ordenao desse mundo mtico, no qual a busca pelas origens torna o passado fonte do
28
Os poetas da Grcia antiga percorriam o pas contando lendas e tradies populares, cantavam epopias inspirados pela deusa da memria. 29
VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos mticos da memria e do tempo. In: Mito e pensamento entre os gregos. So Paulo: EDUSP, 1973, p. 73. 30
O aedo sinnimo de poeta na Grcia antiga. 31
Ibidem, p. 141. 32
Enumerao de nomes (de homens, de regies, de povos). Le Goff destaca um exemplo desse tipo de catlogo existente no canto II da Ilada: (...) acham-se, sucessivamente o catlogo dos navios, depois o catlogo dos melhores guerreiros e dos melhores cavalos aqueus e, logo em seguida, o catlogo do exrcito troiano. O conjunto forma aproximadamente metade do canto II, cerca de quatrocentos versos compostos quase exclusivamente por uma sucesso de nomes prprios, o que supe um verdadeiro exerccio de memria (...) (LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 432).
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presente e no simplesmente seu tempo antecedente. Trata-se de um passado
genealgico e no cronolgico:
Esta gnese do mundo, cujo decurso narram as Musas, comporta o que vem antes e depois, mas no estende por uma durao homognea, por um tempo
nico. Ritmando este passado, no h uma cronologia, mas genealogias. O
tempo est como que includo nas relaes de filiao. Cada gerao, cada
raa, , tem o seu prprio tempo, a sua idade, cuja durao, fluxo e mesmo a orientao podem diferir totalmente. O passado estratifica-se em
uma sucesso de raas. Estas raas formam o tempo antigo (...). (...) Em nenhum momento, a volta ao longo tempo nos faz omitir as
realidades atuais. somente em relao ao mundo visvel que, ao nos
afastarmos do presente, distanciamo-nos; samos do nosso universo humano,
para descobrir, por trs dele, outras regies do ser, outros nveis csmicos,
normalmente inacessveis (...). O passado parte integrante do cosmo; explor-lo descobrir o que se dissimula nas profundezas do ser. A Histria
que canta Mnemosyne um deciframento do invisvel, uma geografia do
sobrenatural.33
Nessa interpretao de Vernant, a funo da memria, para os gregos, no
reconstruir o passado, mas sim criar uma ponte entre dois mundos: o mundo humano e o
mundo imortal, entre o passado imemorial e o presente. Em contrapartida
rememorao do passado, encontramos o esquecimento (Lethe)34. Nesse sentido,
Mnemosyne aquela que faz lembrar e tambm esquecer:
Esquecimento pois uma gua de morte. Ningum pode abordar o reino das
sombras, sem ter bebido nesta fonte, isto , sem ter perdido a lembrana e a
conscincia. Ao contrrio, Memria aparece como uma fonte de
imortalidade.35
O aedo, alm do dom concedido por Mnemosyne, tambm precisa do
esquecimento para entrar no mundo do alm. S esquecendo o presente ele pode visitar
o passado. Ao entrar em contato com um outro tempo, o aedo levado a beber de duas
fontes: a primeira, Lethe, faz com que ele se esquea da vida humana, livrando-o das
angstias e dos sofrimentos da sua existncia na terra e a segunda, Mnemosyne, que
permitir que ele retenha na memria tudo o que ver no mundo do alm.
33
VERNANT, Jean-Pierre. Aspetos mticos da memria e do tempo. In: Mito e pensamento entre os gregos. So Paulo: EDUSP, 1973, p. 77-78.
34Na mitologia grega havia duas fontes chamadas Lethe e Mnemosyne: Ao beber da primeira, esquecia-se tudo da vida humana e, como um morto, entrava no domnio da Noite. Pela gua da segunda, (...) devia guardar a memria de tudo o que havia visto e ouvido no outro mundo. (...) no se limitava mais ao conhecimento do momento presente; o contato com o alm lhe havia trazido a revelao do passado e do futuro (Ibidem, p. 79). Portanto, uma fonte que ativava a lembrana e a outra, o esquecimento.
35Ibidem.
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Com a transposio de Mnemosyne do plano cosmolgico ao plano
escatolgico36, h uma transformao no par mtico Memria-Esquecimento. O
esquecimento deixa de ser smbolo de morte e passa a significar retorno vida,
enquanto a Memria deixa de cantar as origens para se ligar histria mtica dos
indivduos, aos avatares das suas encarnaes sucessivas37. Assim, o tempo cclico vai
dando lugar a um tempo linear ou histrico.
Aps o auge da concepo olmpica, surgem as interpretaes mticas dos
rficos e dos pitagricos38. Para eles, a memria primordial para o aperfeioamento
humano, assim, o exame de conscincia dirio, praticado de forma obsessiva,
minuciosa, permitir recordar todos os fatos e mudar os rumos da conduta39. Essas
seitas acreditavam na transmigrao das almas, elas sustentavam a ideia de que a vida se
renova ciclicamente aps a morte. O homem apenas um passageiro na terra, j que ele
passa por um percurso doloroso e sofrido pelo mundo para pagar sua dvida com os
deuses. Por isso, o objetivo da vida humana retornar, aps um longo processo de
purificao e de provaes, ao seu lar verdadeiro, o mundo do alm:
Nesse processo de transmigrao, ser preciso que o homem lembre dessa
culpa, desse pecado inicial, aos efeitos de pagar sua dvida com os deuses. O
esquecimento implicar em continuar no erro, na culpa, na existncia penal
vivida na terra. Lembrar, ao contrrio, aps um longo processo de purificao
permitir recordar aquilo que nos condenou a cair neste mundo. A lembrana
plena do passado permitir quebrar o ciclo de encarnaes e reencarnaes. A
recordao ser, assim, libertadora; a memria salvar da roda dos
36
Le Goff define o termo escatologia como doutrina dos fins ltimos do indivduo e da humanidade e afirma que a escatologia presente em todas as religies, das mais diversas formas, pensa o tempo como tendo um fim ou dividi-o em perodos que so outros tantos ciclos, cada um com o seu prprio fim. Este limite do tempo pode ser concebido como retorno s origens, primeira idade, que foi a da felicidade, ou, pelo contrrio, como um fim, seno do mundo, pelo menos do mundo tal como . Desta ltima maneira, o fim do tempo aparece na escatologia judaico-crist, no quadro da qual se desenvolvem as tendncias milenaristas, combatidas pela Igreja, como as formas de heresia. em alguns milenaristas que a ideia utpica se encontra, pela primeira vez, com a ideia de revoluo social. No mundo moderno existem diversas variantes de escatologia, quer religiosa quer laica; neste ltimo caso, a escatologia associa com freqncia a confiana num progresso da humanidade ideia de uma viragem da histria que por fim ao carter atual. (LE GOFF, Jacques. Escatologia. In: Histria e memria. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 323). Portanto, a passagem do plano cosmolgico ao escatolgico implica na passagem de um tempo cclico a um tempo linear ou histrico.
37VERNANT, Jean-Pierre. Aspetos mticos da memria e do tempo. In: Mito e pensamento entre os gregos. So Paulo: EDUSP, 1973, p. 80.
38Os rficos constituam uma seita arcaica que sustentava a possibilidade do homem se libertar da condena do ciclo das encarnaes atravs de rituais purificatrios: dieta, higiene, ascetismo etc. J os pitagricos, surgidos no sc. VI a.C. em Siclia, valorizavam tanto os rituais ascticos como o cultivo de conhecimentos iniciticos que levassem a lembrar do mundo inteligvel, anterior vida na Terra. (BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a genealogia da memria social. In: GONDAR, J e DODEBEI, Vera. O que memria social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, nota 4, p. 57).
39 Ibidem, nota 5.
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18
sofrimentos, da priso do mundo terrestre que nos fez esquecer a nossa
origem divina.40
A memria, a rememorao, aparece aqui a servio da salvao, preciso
lembrar o que fizemos em outras vidas para pagar as nossas dvidas, para redimir nossas
culpas. Nessa viso escatolgica, Lethe representa o esquecimento do mundo e do cu
dos que retornam terra pela reencarnao: a gua do esquecimento no mais
smbolo de morte, mas de retorno vida, existncia do tempo41.
J em Plato, Mnemosyne interiorizou-se para tornar-se no homem a prpria
faculdade de conhecer42, ela que estabelece a comunicao entre o mundo das ideias
e o mundo terrestre. Plato retoma algumas teses msticas dos rficos e pitagricos, sob
uma nova roupagem conceitual. Ele retoma e reelabora a teoria da transmigrao das
almas, valorizando a memria como meio fundamental para o conhecimento. O
conhecimento compreendido como reminiscncia, recordao, desvelamento (retira os
vus que nos cegam), a-letheia, no esquecimento das verdades originrias que
enxergamos no mundo do alm.
O mito de Er, narrado no captulo X de A Repblica, mostra como a atividade
filosfica por excelncia consiste na tentativa de relembrar, de alcanar a reminiscncia
de um mundo ideal. Nesse relato, Plato mostra como as almas antes de encarnarem e
virem terra, tendo a possibilidade de escolher um tipo de vida que habitaro no
mundo, so obrigadas a beber do rio Ameles, do esquecimento, apagando-se toda a
memria e somente aps beber dessas guas, aps esquecimento total do mundo ideal,
podem nascer. A misso fundamental das almas, ao chegarem na terra, ser lembrar as
ideias do outro mundo. O esquecimento as condenaria a repetir o ciclo das encarnaes,
voltando a nascer e a sofrer novamente, por isso deveriam lutar contra ele, deveriam
exercitar a sua memria. Ao lembrarem das ideias do outro mundo, por meio da prtica
da filosofia, estariam purificadas, salvas do ciclo de reencarnaes. Assim, para Plato,
a memria do alm-mundo liberta a alma das vicissitudes do corpo e da terra.
A perspectiva platnica sobre a memria teve grande importncia na cultura
ocidental, pois determinou uma exagerada valorizao da memria. O esquecimento era
40
BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a genealogia da memria social. In: GONDAR, J e DODEBEI, Vera. O que memria social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p.57-58.
41VERNANT, Jean-Pierre. Aspetos mticos da memria e do tempo. In: Mito e pensamento entre os gregos. So Paulo: EDUSP, 1973, p. 147.
42DUARTE, Lus Fernando Dias. A construo social da memria moderna. In: Boletim do Museu
Nacional, n. 48. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983, p. 93.
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considerado uma falha, uma impossibilidade de revisitar o mundo essencial das ideias,
que nos impediria o acesso verdade e, por conseguinte, a libertao da nossa alma.
Para Plato, como afirma Barrenechea, a lembrana tem um extraordinrio valor
cognoscitivo e vital: promove a restituio da verdade, liberta o homem de seus erros,
possibilita recuperar uma perdida perfeio43.
Nessas consideraes sobre a constituio da memria entre os gregos possvel
observar que eles pensam o mundo atravs da mitologia e a sua concepo de memria,
conforme essa tica, estava ligada, portanto, ao aspecto mtico-religioso, ao sagrado.
2.2.2 O surgimento da memria na perspectiva nietzschiana
(...) por que motivos surgiu a memria, justamente, uma faculdade de
antecipao, que prev, rumina e fica tensa na recordao daquilo que j foi?
(...). S as presses do mundo externo, os perigos, e a violncia levaram
gerao de uma faculdade atenta s experincias vividas, aos efeitos de
prever o que poderia acontecer posteriormente. Surge, ento, um rgo que
antecipa esses perigos, que se acautela diante da violncia; a memria (...).44
Na Genealogia da moral, Nietzsche discute as complexas circunstncias e a
situao paradoxal do surgimento da memria. No primeiro pargrafo da Segunda
Dissertao Culpa, m-conscincia e coisas afins , o filsofo j assinala a
condio singular do homem que o diferencia dos outros animais e a relao de fatores
violentos, sanguinrios com essa condio. Tenta esclarecer como, em meio a animais
que agem de forma instintiva e automtica, surge um animal consciente, capaz de
refletir, de fazer promessas, de planejar seus atos, de se comprometer com o futuro,
enfim, tenta determinar como surge um animal memorioso: Criar um animal que pode
fazer promessas no esta a tarefa paradoxal que a natureza se imps, com relao ao
homem? No este o verdadeiro problema do homem?45.
J Gondar destaca que Nietzsche, assim como Bergson e Freud, um dos
autores que enfatizam a dimenso processual da memria. Esses autores interpretam o
processo de construo da memria sem valorizar tanto os pontos de partida e de
chegada da mesma, concedendo nfase ao durante, ao processo do devir-memria:
43
Cf. BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a genealogia da memria social. In: GONDAR, J e DODEBEI, Vera. O que memria social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 59.
44BARRENECHEA, Miguel Angel. Nietzsche e o corpo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 104.
45NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. de Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 1, p. 43.
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no durante que se do os confrontos e as lutas, mas tambm a criao46. J Nietzsche,
ao investigar a irrupo da memria atravs do mtodo genealgico, no est
preocupado em encontrar uma origem essencial para a emergncia da memria, mas
mostrar o devir histrico que propiciou o seu surgimento, se afastando de qualquer
pretenso metafsica de desvendar uma origem, um incio fora do tempo. Para o
genealogista, todas as coisas surgem por acaso, no constante jogo do devir, no h uma
origem essencial nem fins preestabelecidos na natureza. Num universo em devir, no h
momento inaugural ou uma origem essencial em que as coisas poderiam ter sido
forjadas, uma espcie de aurora das auroras, comeo dos comeos. Por isso, o filsofo
alemo questiona a teleologia presente na metafsica e na religio, que acredita ver fins,
objetivos ltimos na natureza. Como aponta Foucault, em Nietzsche, a genealogia e a
histria, no existe um momento primordial em que as coisas teriam surgido:
O que se encontra no comeo histrico das coisas no a identidade ainda
preservada da sua origem a discrdia entre as coisas, o disparate. (...) Gosta-se de acreditar que coisas em seu incio se encontravam em estado de
perfeio; que elas saram brilhantes das mos do criador, ou da luz sem
sombra da primeira manh. A origem est sempre antes da queda, antes do
corpo, antes do mundo e do tempo: est ao lado dos deuses, e para narr-la se
canta sempre uma teogonia (...). Fazer a genealogia dos valores, da moral, do
ascetismo, do conhecimento no ser, portanto, partir em busca de sua
origem (...); ser, ao contrrio, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos comeos. (...) O genealogista necessita da histria para conjurar a
quimera da origem (...).47
Nietzsche, ao adotar o mtodo genealgico como mtodo de investigao, nos
apresenta, na Genealogia da moral, uma crtica aos valores morais, questionando o
valor desses valores, refletindo sobre as circunstncias histricas em que emergiram
essas avaliaes:
(...) uma nova exigncia se faz ouvir. Enunciemo-la, esta nova exigncia:
necessitamos de uma crtica dos valores morais, o prprio valor desses
valores dever ser colocado em questo para isto necessrio um conhecimento das condies e circunstncias nas quais nasceram, sob as
quais se desenvolveram e se modificaram (moral como conseqncia, como
sintoma, mscara, tartufice, doena, mal-entendido; mas tambm moral como
causa, medicamento, estimulante, inibio, veneno), um conhecimento tal
como hoje nunca existiu nem foi desejado.48
46
GONDAR, J. Quatro posies sobre memria social. In: GONDAR, J e DODEBEI, Vera. O que memria social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 21.
47FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a histria. In: ______. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996, p. 18-19.
48NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, prlogo, 6, p. 11-12.
-
21
O filsofo, ao se dedicar a desvendar as condies de apario da memria, se
afasta da tradio idealista, ele considera as interpretaes metafsicas e religiosas
hipteses que decorrem das fantasias humanas, que tm o objetivo de esconder a
situao limitada, finita, do homem. Nessas interpretaes, o fato de o homem ser um
animal consciente, capaz de memorizar, determinaria uma pretensa condio
privilegiada do homem, evidenciando a superioridade humana na natureza.
A hiptese de surgimento da memria apresentada por Nietzsche,
principalmente na Segunda Dissertao da Genealogia da moral, diferentemente da
abordagem mtico-religiosa sustentada pelos gregos arcaicos, aponta para o fato de que
esta faculdade j surge no seio das relaes sociais. Em Genealogia da moral, o filsofo
esboa uma teoria sobre a irrupo da cultura49, levantando hipteses sobre diversos
conceitos, oriundos da tradio metafsico-religiosa, que aludem a uma suposta
superioridade do homem diante dos outros animais. Nesse livro, as faculdades e os
atributos denominados interiores do homem so analisados e questionados pelo
filsofo. No mesmo intuito, ele questiona e tenta esclarecer uma srie de conceitos
morais e jurdicos. Uma hiptese relevante, apresentada na Segunda Dissertao, a de
que o homem teria desenvolvido os denominados atributos espirituais ou
conscientes - se diferenciando dos outros animais - por meio de mtodos bestiais,
violentos. Nessa hiptese descarta-se qualquer origem transcendente dessas atividades
internas, elas so apenas produto da violncia, do irracional: Ah, a razo, a
seriedade, o domnio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexo,
todos esses privilgios e adereos do homem: como foi alto o seu preo! Quanto sangue
e quanto horror h no fundo de todas as coisas boas!50.
O mtodo genealgico, como afirma Foucault ao comentar a interpretao
nietzschiana, exige um trabalho minucioso e paciente51, pois trabalha com hipteses
cinzas52, meticulosas, documentais. Visa refletir sobre situaes concretas, tentando
49
Cf. Barrenechea, M. Angel de. Nietzsche: a memria, o esquecimento e a alegria da superfcie. In: FEITOSA, Charles, BARRENECHEA, M. Angel de, PINHEIRO, Paulo. Nietzsche e os gregos: arte, memria e educao. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj: Unirio, Braslia, DF: Capes, 2006, p. 27.
50NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 3, p. 47.
51Cf. FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia, a histria. In: ____. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996, p. 15.
52As hipteses cinzas, que abordam condies histricas e sociais sobre a emergncia dos diversos valores, se opem s hipteses azuis, ligadas interpretaes metafsico-religiosas, a crena num mundo celestial, ao alm-mundo: Meu desejo, em todo o caso, era dar a um olhar to agudo e imparcial uma direo melhor, a direo da efetiva histria da moral, prevenindo-o a tempo contra essas hipteses inglesas que se perdem no azul. Pois bvio que uma outra cor deve ser mais
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determinar a singularidade dos acontecimentos, e no assinala, portanto, nenhuma
finalidade ou origem privilegiada que determine a gerao de uma faculdade. Para
Nietzsche, o surgimento de um animal consciente e memorioso no se configura como
uma necessidade, surge apenas do acaso, do complexo jogo de foras53
, de um
permanente processo de avanos e retrocessos.
A interpretao nietzschiana sobre a memria demonstra que ela aparece como
uma atividade oriunda da coero social, que visa tornar o homem regular, controlvel e
previsvel. Para o filsofo, portanto, no h hiato entre memria individual e memria
coletiva. Toda memria surge numa complexa rede de relaes sociais. Assim, foi
gravada no bicho-homem, nesse homem naturalmente esquecido, uma memria,
forjada pela dor, pela tortura, por uma necessidade humana de auto-preservao do
grupo, de conservao gregria. Nesse sentido, Nietzsche indaga:
(...) Como fazer no bicho-homem uma memria? Como gravar algo indelvel nessa inteligncia voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa
encarnao do esquecimento? (...) talvez nada exista de mais terrvel e
inquietante na pr-histria do homem do que a sua mnemotcnica.54
O corpo castigado para se fazer gravar, no homem, uma memria. Nessa tarefa
paradoxal, o homem retirado do seu esquecimento pela tortura efetuada no corpo. O
instinto gregrio promove a crueldade como meio de preservao da espcie humana,
criando, assim, regras sociais que precisam ser lembradas constantemente, o homem
deve prometer e no esquecer do cumprimento de sua promessa:
Para dispor de tal modo do futuro, o quanto no precisou o homem aprender
a distinguir o acontecimento casual do necessrio, a pensar de maneira
causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer
com segurana o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar para isso, quanto no precisou antes tornar-se ele prprio confivel, constante,
necessrio, tambm para si, na sua prpria representao, para poder enfim,
como faz quem promete, responder por si como porvir!55
2.2.2.1 Conscincia, m conscincia e a vida gregria
importante para o genealogista da moral: o cinza, isto , a coisa documentada, o efetivamente constatvel, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrvel escrita hieroglfica do passado moral humano! (NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, prlogo, 7, p. 12).
53Para Nietzsche a vida um complexo jogo de foras, na qual as foras lutam sempre por mais potncia. Assim, podemos depreender que tanto a memria quanto o esquecimento so foras e que esto em constante embate, ora uma prevalece, ora outra. Essa uma dinmica existente entre elas e que prpria da vida, segundo a perspectiva nietzschiana.
54 Ibidem, II, 3, p. 46.
55 Ibidem, II, 1, p. 44.
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Para Nietzsche, no h nada nas condies iniciais do homem que necessite ser
guardado, registrado na memria, j que o bicho-homem por natureza um animal
que esquece. A memria criada nesse homem por presses sociais, pela necessidade
gregria de torn-lo previsvel, controlvel e responsvel pelas suas aes. Trabalhando
com hipteses provisrias56 - o mtodo genealgico recusa as origens ou causas-primas
-, o filsofo considera que as hordas humanas tiveram que lembrar consignas coletivas
para agir com rapidez diante de perigos iminentes. Assim todos os integrantes das
hordas teriam que recordar as aes comuns como forma de se preservarem, se
defenderem, de graves situaes, de grandes ameaas para o grupo. Possivelmente,
alguns integrantes mais fortes e violentos tenham assumido a liderana das hordas. Tais
chefes57 determinaram as diretrizes de ao para o grupo e controlaram os outros
homens, tornando-os previsveis e responsveis, lembrando-os de seus deveres para
com a comunidade. Numerosas torturas foram implementadas para ativar a lembrana
nesse bicho homem que era esquecido, a fim de domestic-lo. Quanto mais esquecido
era o homem, mais intensos eram os castigos impingidos nele. A memria surge, ento,
em meio a srias presses coletivas, diante de grandes ameaas para a vida do grupo.
Esse homem, de um tempo longnquo58, ao se tornar responsvel, capaz de
prometer, assume um carter de uniformidade torna-se previsvel - com os seus iguais.
Guiado pela moralidade do costume e preso camisa de fora social59, o homem
torna-se confivel. Assim, desenvolve uma memria, que seria a atividade que garante a
possibilidade de transformar aquilo que deseja, que quer, a sua vontade, em ato,
assumindo uma compromisso pelo futuro, ou seja, age em prol de algo prometido, pr-
56
Neste ponto j no posso me furtar a oferecer uma primeira, provisria expresso da minha hiptese sobre a origem da m-conscincia: no fcil apresent-la, e ela necessita ser longamente pensada, pesada, ponderada. (NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 16, p. 67).
57Nietzsche, na Genealogia da moral, se refere a esses chefes como as bestas louras: (...) algum bando de bestas louras, uma raa de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com fora para organizar, sem hesitao lana suas garras terrveis sobre uma populao talvez imensamente superior em nmero, mas ainda informe e nmade. (...) Sua obra consiste em instintivamente criar formas, eles so os mais involuntrios e inconsistente artistas (...). Eles no sabem o que culpa, responsabilidade, considerao (...). Neles no nasceu a m conscincia (...) mas sem eles ela no teria nascido, essa planta hedionda, ela no existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violncia de artistas, um enorme quantum de liberdade no tivesse sido eliminado do mundo (...). (Ibidem, II, 17, p. 69-70)
58Nietzsche, na Genealogia da moral, fala de um tempo remoto, longnquo, mas sem determinar precisamente a poca.
59Cf. Genealogia da Moral, II, 2, p. 44.
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determinado, estabelecido na relao com o seu grupo60
. Vejamos como Nietzsche
sustenta essa emergncia da memria estabelecendo relaes semelhantes s existentes
entre credor-devedor. Que garantia tem o credor que a promessa ser cumprida? Se a
vida um constante devir, como prometer o que no se tem certeza de que ir
acontecer? Lutando contra o destino? No! A tortura adotada como meio de exigir do
devedor que a promessa seja cumprida, utiliza-se o artifcio da mnemotcnica: Grava-
se algo a fogo, para que fique na memria: apenas o que no cessa de causar dor fica na
memria61.
Ao prometer e assumir essa responsabilidade com aquele que atua como credor,
a fim de viver os benefcios da sociedade62, o homem torna-se memorioso, pois
precisa lembrar continuamente da promessa para empenhar-se em cumpri-la. Ao fazer
promessas, esse bicho-homem, coloca em segundo plano o esquecimento, que se
caracteriza como fora inibidora, como assimilao psquica63
, ou seja, conforme
Nietzsche, uma espcie de digesto do aparelho consciente:
Esquecer no uma simples vis inertiae [fora inercial], como crem os
superficiais, mas uma fora inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido,
graas qual o que por ns experimentado, vivenciado, em ns acolhido,
no penetra mais em nossa conscincia, no estado de digesto (ao qual
poderamos chamar assimilao psquica).64
A promessa se desenvolve, assim, a partir do modelo da relao credor-devedor,
na qual o devedor precisa gravar na memria o cumprimento do que prometeu e, desta
forma, surge a conscincia de culpa ou a m conscincia, como define Nietzsche. Para
ele, a ideia de equivalncia entre o dano causado por algum e o castigo imposto a ele
surge calcada no modelo da relao contratual entre credor e devedor. O castigo
dispensado ao devedor deveria ser to grande quanto o dano causado. A constante
lembrana desse dano, o re-sentir, move o sentimento de vingana e, para Nietzsche, a
origem da justia estaria nesse ressentimento, j no ato de julgar estabelecida uma
punio para quem cometeu um erro ou atentado contra sua comunidade. O devedor
60
o que Nietzsche chama de memria da vontade (Cf. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 1, p. 44). Sobre a memria da vontade ou memria de futuro consultar: BARRENECHEA, Miguel Angel. Nietzsche: o eterno retorno e a memria de futuro. In: ______. As dobras da memria. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
61NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 3, p. 46.
62Cf. Ibidem, II, 3, p. 47.
63 Voltaremos a tratar da assimilao psquica no terceiro captulo.
64Ibidem, II, 1, p. 43.
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deve lembrar da sua dvida ou ser punido com um castigo equivalente ao dano
causado:
(...) quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memria; os mais horrendos sacrifcios e penhores (entre eles o sacrifcio dos
primognitos), as mais repugnantes mutilaes (as castraes, por exemplo),
os mais cruis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religies so, no
seu nvel mais profundo, sistemas de crueldade) tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da
mnemnica.65
Barrenechea destaca que, ao se sentir acuado diante das mais diversas situaes
de violncia e perigo, o homem, segundo a perspectiva nietzschiana, desenvolve a
faculdade da conscincia, intimamente atrelada memria, e, assim, ela teria sido um
instrumento para reagir diante de presses extremamente ameaadoras66. Para o
comentador:
o predomnio da preveno, da astcia, da represso das foras espontneas, a
no manifestao dos impulsos, o freio dos instintos, leva ao surgimento da
conscincia. Trata-se de uma atividade reativa, os instintos no podem
efetivar-se, no agem, enquanto a conscincia calcula, mede, reage.67
A conscincia surge, ento, contemporaneamente memria, como gregria,
vinculando o homem sua comunidade, tornando-o dependente das coordenadas, das
diretrizes do grupo, que devem ser acatadas sem hesitaes. Paralelamente ao
surgimento da conscincia, surge tambm a linguagem, como mecanismo de
comunicao do grupo, o que facilitava a transmisso das decises e aes. A
linguagem, assim como a conscincia ou a memria, tambm colabora para a integrao
do homem coletividade.
2.2.2.2 Atividade e a reatividade68
: a questo do ressentimento
A culpa - ou a m conscincia - e o dever, como afirma Nietzsche, tornam o
homem reativo. Ela entrava sua ao espontnea, uma vez que esse homem encontra-se
preso a obrigaes sociais. Essa reatividade, causada pela no exteriorizao das foras,
pela impossibilidade de agir espontaneamente, acaba por inibir a fora ativa desse
65
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 3, p. 46.
66BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e o corpo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 100.
67Ibidem, p. 108.
68Para Nietzsche, a fora ativa uma forma de afirmar a vida, enquanto a fora reativa transforma o homem num negador da vida. Como destaca Deleuze, ao e reao exprimem foras existentes no homem: Afirmar e negar, apreciar e depreciar exprimem a vontade de potncia assim como agir e reagir exprime a fora.(DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia; traduo de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 44).
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homem, fazendo surgir o ressentimento. O homem se interioriza, os instintos so
inibidos, censurados, direcionados contra o prprio homem: todo o mundo interior,
originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se
estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi
inibido em sua descarga para fora69. Assim, os instintos que no tm como serem
descarregados para fora, voltam-se para dentro, num processo que Nietzsche denomina
interiorizao do homem70. Esse processo, conforme interpretao nietzschiana, foi uma
grande violao das condies iniciais de vida do homem, totalmente contrrio s suas
manifestaes espontneas e impulsivas:
Para as funes mais simples sentiam-se canhestros, nesse novo mundo no
mais possuam os velhos guias, os impulsos reguladores e inconscientemente
certeiros estavam reduzidos, os infelizes, a pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos sua conscincia, ao seu rgo mais frgil e mais falvel! Creio que jamais houve na terra um tal sentimento de
desgraa, um mal-estar to plmbeo.71
O filsofo nos mostra, na Genealogia da moral, que a gerao dos atributos
denominados espirituais, gerados pelas ideias metafsico-religiosas, como apontamos
acima, decorrem de mtodos brbaros. S por meio de inmeras brutalidades a
humanidade poderia se espiritualizar, se interiorizar, criar a memria e gerar a
conscincia.
Esse homem interiorizado, ressentido, acaba por re-sentir a sua dor e reavivar o
sentimento de culpa incessantemente, perdendo a sua capacidade ativa. Ele vive preso
ao passado e isso o impede de agir no presente, no lhe permite a abertura para que
novas vivncias e novos sentimentos possam surgir. O homem que inicialmente era
espontneo, instintivo, esquecido, torna-se um homem memorioso, calculista e
previsvel: O ressentimento uma forma de ativar continuamente a memria72. Em
contrapartida, o esquecimento, segundo Nietzsche, promove a digesto psquica. O
filsofo usa a expresso digesto psquica para aludir relao entre a memria e o
esquecimento, pois, analogamente, essa relao funciona como o aparelho digestivo do
corpo, capaz de eliminar tudo aquilo que desnecessrio, tudo que causa incmodo,
livrando o homem de todo o peso inconveniente. O esquecimento promove a
69
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 16, p. 67.
70Cf. Ibidem.
71 Ibidem.
72BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a genealogia da memria social. In: GONDAR, J e DODEBEI, Vera. O que memria social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p.67.
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eliminao do peso, do excesso de lembranas, porm, como no processo de digesto,
nem tudo eliminado, o corpo absorve apenas o que necessrio para a manuteno de
seu funcionamento, assim, tambm algo fica na memria.
O homem que nada consegue digerir pode ser comparado a um dispptico73,
como ressalta Nietzsche:
O homem no qual o aparelho inibidor danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e no s comparado) a um dispptico de nada consegue dar conta... Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer uma fora, uma forma de sade forte, desenvolveu em si uma
faculdade oposta, uma memria (...).74
Como um dispptico, que nada digere, o ressentido vive da constante ruminao
do passado, no permite que o presente possa fluir, no dando, assim, abertura para um
futuro de novas possibilidades. Algemado pelo passado, esse homem ressentido, no
capaz de promover mudanas, de criar o novo.
O esquecimento , segundo Nietzsche, um mecanismo que funciona como um
zelador da ordem psquica, estabelece um equilbrio, uma harmonia e retira todo o peso
do passado quando constantemente lembrado:
(...) eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espcie de guardio da porta, de zelador da ordem psquica, da paz, da etiqueta: com o que logo
se v que no poderia haver felicidade, jovialidade, esperana, orgulho
presente, sem o esquecimento.75
Nietzsche articula os conceitos de conscincia, memria e m conscincia;
conforme explicita na Genealogia da moral, todos esses atributos surgem
contemporaneamente. Assim, o filsofo, ao apresentar a hiptese sobre a origem da m
conscincia, destaca que v a m conscincia como uma profunda doena que o
homem teve de contrair sob a presso da mais radical das mudanas que viveu.76
Nietzsche compara tais mudanas com as que sofreram os animais aquticos ao serem
obrigados a se tornarem animais terrestres. A m conscincia impede que os instintos se
aflorem. Como destaca o filsofo, a m conscincia promove o sofrimento do homem
com ele mesmo:
Com ela, porm, foi introduzida a maior e mais sinistra doena, da qual at hoje no se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem,
consigo: como resultado de uma violenta separao do seu passado animal,
como que um salto e uma queda em novas situaes e condies de
73
Nietzsche utiliza a metfora do dispptico para representar o homem ressentido, aquele que perdeu a capacidade ativa do esquecimento, que no realiza a digesto psquica, o esvaziamento da memria.
74NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 1, p. 43.
75 Ibidem.
76 Ibidem, II, 16, p. 67.
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existncia, resultado de uma declarao de guerra aos velhos instintos nos
quais at ento se baseava sua fora, seu prazer e o temor que inspirava.77
Vimos, na anlise realizada at o momento, que Nietzsche, atravs da discusso
do surgimento dos valores morais, assim como da conscincia, da m conscincia e de
outros aspectos considerados espirituais ou interiores, coloca no centro de suas
reflexes a questo que envolve memria e esquecimento. Os valores e os aspectos ditos
espirituais decorrem contemporaneamente ao surgimento da memria que nasce em
meio a presses sociais. Essa memria, quando ativada exageradamente gera
ressentimento, tornando-se uma atividade reativa em contraposio ao esquecimento, de
carter ativo - um reparador e harmonizador do equilbrio psquico. O esquecimento ,
nesta perspectiva, uma faculdade espontnea do homem e no uma falha da memria. A
memria surge, ento, posteriormente ao esquecimento, por meio de uma longa srie de
condicionamentos sociais, marcados pela violncia, pela tortura.
Nietzsche, na Genealogia da moral, faz crtica ao excesso de memria e ressalta
a fora ativa do esquecimento, mas no estabelece a prevalncia do esquecimento sobre
a memria78
. O que, na verdade, quer destacar a dinmica e a harmonizao que deve
existir entre a memria e o esquecimento, mostrando que ambos so necessrios ao
homem. Contudo, necessrio dosar lembranas e esquecimentos, pois uma memria
excessiva acaba por deteriorar a harmonia e o bom funcionamento psquico do ser
humano. importante para o homem que deseja chegar a ser o que se encontrar a
medida certa entre o lembrar e o esquecer, isto , a medida que potencializa a vida.
2.3 NIETZSCHE E UM NOVO OLHAR SOBRE O HOMEM
Eu sou todo corpo e nada alm disso; e a alma somente uma palavra para alguma coisa do corpo.
79
A viso dualista sustentada na tradio do pensamento ocidental desde Plato at
os modernos cinde o homem em corpo e alma. Esta tradio privilegia uma pretensa
substncia subjetiva - eu, sujeito, conscincia, razo etc - e desvaloriza o corpo. A alma
77
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, II, 16, p. 68.
78Tambm na Segunda Considerao Intempestiva, Nietzsche aborda esta relao entre a memria e o esquecimento, como veremos no captulo seguinte.
79Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ningum. Traduo, notas e posfcio de
Paulo Csar de Souza, So Paulo: Companhia das Letras, 2011, primeira parte, dos desprezadores do corpo, 5.
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entendida como o aspecto essencial do homem e o corpo colocado em segundo
plano, nessa viso idealista. Nietzsche faz uma crtica contundente a essa tradio
metafsico-religiosa que considera a alma como a essncia humana, principalmente a
doutrina platnica que divide o mundo em sensvel e suprassensvel (o alm). Para
Plato, a alma uma substncia relacionada ao mundo ideal. Na perspectiva
nietzschiana, ao contrrio, o corpo valorizado e tomado como fio condutor para a
interpretao da subjetividade. Esse corpo deve ser colocado no seu devido lugar,
subvertendo a concepo tradicional do homem e contestando a existncia do alm ou
de qualquer substncia dita espiritual, considerada de origem transcendente.
Para Nietzsche, as foras vitais, afetivas e instintivas constituem o essencial do
ser humano: O corpo um fenmeno mais rico que autoriza observaes mais claras. A
crena no corpo bem melhor estabelecida do que a crena no esprito80. O filsofo
sustenta que todos os fenmenos psquicos surgem exclusivamente da atividade
orgnica e que aqueles processos considerados espirituais ou racionais tm sua