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Henry Katina

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pASSAGEM pARA A LIBERDADE Relato de um sobrevivente do Holocausto

Copyright ©2001 by Henry KatinaA primeira edição deste livro, publicada em 2001,

levava o nome: De Halmeu a Belo Horizonte.2ª edição – novembro de 2009

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Editor e PublisherLuiz Fernando Emediato

Diretora EditorialFernanda Emediato

Edição e Preparação de TextoRaquel Yehezkel

Capa Alan Maia

Projeto GráficoGenildo Santana/ Lumiar Design

Revisão Josias A. Andrade

Libério NevesMaria de Lourdes Queiroz (Tucha)

DADOs InteRnAcIOnAIs De cAtALOGAçãO nA PuBLIcAçãO (cIP)(câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil)

Katina, HenryPassagem para a liberdade: relato de um sobrevivente do Holocausto / Henry Katina. -- São Paulo: Geração Editorial, 2009

ISBN: 978-85-61501-35-8

1. Guerra Mundial, 1939-1945 - Narrativas pessoais 2. Holocausto judeu (1939-1945) - Narrativas pessoais 3. Katina Henry 4. Memórias autobiográficas 5. Sobreviventes do Holocausto l. Título

09-07155 CDD-920.0092924

Índices para catálogo sistemático:

1. Judeus sobreviventes do Holocausto : Memórias autobiográficas 920.092924

GERAÇÃO EDITORIAL

AdministrAção e VendAsRua Pedra Bonita, 870

CEP: 30430-390 – Belo Horizonte – MGTelefax: (31) 3379-0620

Email: [email protected]

editoriAlRua Major Quedinho, 111 – 7º andar

CEP: 01050-030 – São Paulo – SPTel.: (11) 3256-4444 – Fax: (11) 3257-6373

Email: [email protected]

2009Impresso no Brasil

Printed in Brazil

À memória dos meus queridos pais Bernard (Baruch) e Helena (Hinda), como também dos meus irmãos Yankel,

Favel e David Eliyahu, que pereceram tão jovens na Alemanha durante o Holocausto, juntamente com milhões de inocentes homens, mulheres e crianças,

vítimas de barbaridades perpetradas contra o nosso povo e contra a humanidade.

Somente guardar- te a ti mesmo, e guarda bem a tua alma, que não esqueças as coisas que teus olhos viram. E que não saiam do teu coração, todos os dias da tua vida, e

as farás conhecer aos teus filhos, e aos filhos de teus filhos.

(Deuteronômio 4:9)

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Sumário

Passos entre escombros ......................................................... 9Prefácio ............................................................................... 11Algumas considerações ........................................................ 15

1 Primeiras lembranças ...................................................... 23Cotidiano religioso ......................................................... 27A escola .......................................................................... 31Meu pai .......................................................................... 35Minha mãe ..................................................................... 39Meus irmãos ................................................................... 43Fuga inútil ...................................................................... 48A despedida de nosso lar e a vida no gueto ..................... 51

2 A deportação da Hungria ............................................... 55Auschwitz ....................................................................... 60Contexto histórico de Auschwitz .................................... 66Ehrlenbusch, o campo de trabalho .................................. 68A marcha forçada ........................................................... 78Flossenburg..................................................................... 81Bergen-Belsen, o campo da morte ................................... 86Contexto histórico do campo de Bergen-Belsen .............. 94A libertação .................................................................... 99Suécia ........................................................................... 110Visita à Itália ................................................................ 120A caminho do Canadá .................................................. 127Toronto ........................................................................ 131Visita a Israel ................................................................ 139

3 A caminho do Brasil ..................................................... 150Nossa família ................................................................ 156

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Montes Claros .............................................................. 168Biobrás ......................................................................... 179Manaus......................................................................... 183

4 As viagens ..................................................................... 187Considerações fi nais...................................................... 193

Estudo LiterárioUm testemunho da Shoá no Brasil .................................... 198

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As memórias do senhor Henry Katina, com seu sofri-mento e seus sapatos de sola de madeira, iluminam a todos. Sua narrativa contundente atinge não somente

aqueles que tacitamente, na surdina, trabalham para o esque-cimento da Shoah, mas os que se ufanam de gritar em altos brados que a memória dos sobreviventes não é verdadeira, que seus passos não ressoam em nossa consciência.

Seu testemunho, em passos atormentados, ressoa também em nós, que caminhamos com ele entre escombros.

O esquecimento talvez seja uma bênção para os que sofrem, no entanto, para nós, que assistimos a uma campanha insensí-vel ao sofrimento dos sobreviventes, o esquecimento da Shoah é um crime contra a vítima, uma declaração de vitória do verdu-go e dos seus anônimos colaboradores. Esquecer, negar, ignorar a Shoah são crimes contra o que ainda resta de humano em nós.

Assistimos incrédulos, em nossos dias, a uma política de es-quecimento, de revisionismo e de negação da Shoah, porém, não testemunhamos tudo isso paralisados. Em tempos sombrios, as memórias de um sobrevivente tornam-se estrelas entre sombras. Por isso, lembrar é uma questão ética. A voz embargada pela

Passos entre escombros

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emoção do senhor Katina traduz-se num texto também embar-gado, cheio de idas e vindas, como os passos de um prisioneiro com sapatos de sola de madeira.

A narrativa do senhor Katina é entremeada de perdas: de palavras, de sons, de ares. A perda é testemunho inquestioná-vel daqueles que foram submetidos ao horror dos campos, aos açoites dos assassinos, aos crimes contra a existência. Nessas condições, a memória falha e a narrativa, como afirmou Walter Benjamin, acerca-se de nós com suas lacunas e dobras. O texto para. A frase seca. A palavra não vem. Restam-nos os vestí-gios desse testemunho, em meio à lembrança do opróbrio, que, como num milagre, chega até nós.

Os passos do senhor Katina não ressoam mais sobre os es-combros, os campos e as prisões nazistas. Eles ressoam nas escolas, nas universidades, nas reuniões de amigos e famílias, onde seu testemunho vibrante é imperiosamente requerido.

O auditório da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2008, abarrotado de alunos, professores, pesquisadores, em seu depoimento, silenciou. Caminhamos com ele por sobre o mapa da dor e da violência. Em silêncio, entre sombras, estivemos com ele até a narrativa da segurança, do seio da família e da vida em Belo Horizonte. Seus olhos fran-cos nos guiam, sua palavra embargada nos ensina.

Em silêncio lemos, também, suas memórias e aprendemos com ele que narrar não é uma escolha. É um imperativo.

Nosso destino de paz e de liberdade está, para sempre, liga-do aos passos dos sobreviventes. A eles devemos o que resta de nossa frágil humanidade.

Lyslei Nascimento - julho de 2009Coordenadora do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ)

e professora da Facudade de Letras da UFMG

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A segunda fase da vida de Henry Katina já conhecíamos bem. Sua chegada à Belo Horizonte em meados da dé-cada de 1950 ainda bastante jovem; o início de suas ati-

vidades como re presentante comercial, a seguir industrial, com a criação de sua fábrica de pastas; a idealização da Biobrás; a quase-im plantação de uma fábrica de papéis; enfim, seu sucesso como um autêntico self-made man – graças ao seu talen to, tra-balho, competência e arrojo; seu casamento com Bea triz – mi-nha amiga de infância do Dror; os filhos que vieram chegando, hoje todos formados e bem-sucedidos; a educa ção tradicional-religiosa que lhes deu, também disto tudo já sabia.

Pairava, no entanto, enquanto acompanhava a trajetória de sua vida, a natural curiosidade de saber sobre o passado dele, esse passado de que nos fala Hannah Arendt, como “aquela nu-vem espessa que cobre nossa vida”, mas nunca ousava indagá-lo.

Cúmplices de um respeito mútuo e recíproco, nada lhe per-guntava, e ele nada dizia, como, acho, não falava desse assunto com quase ninguém.

Eis, então, que um dia Henry com parece ao meu escritório e me pergunta se poderia prefaciar um livro que acabara de

Prefácio

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escrever sobre a vida dele, e, na certeza de que eu o faria, já me trazia os originais.

É desnecessário dizer da minha emoção ao aceitar essa hon-rosa incumbência, pois, embora redigir e falar sempre fi zessem parte de minha vida, jamais prefaciara um livro.

Apresentava-se-me, pois, de vez, a oportunidade de desven-dar-lhe a história, a História que Goethe chama de se creta ofici-na de Deus, e conhecer, então, o Henry que desconhecia.

Após a leitura dos originais, feita de um só lance, ávido que estava para conhecer a história de mais um amigo judeu a quem muito prezo, que sofreu os horrores da Segunda Guerra, pude, então, finalmente, conhecer a primeira fase da vida de Henry Katina e, em meio a elucubrações filosófico-re ligiosas, tirar minhas conclusões sobre a pessoa de quem a segunda par-te da vida eu conhecera.

Digo-lhes, caros leitores, que o livro me tocou pela cla reza e precisão com que o autor conseguiu descrever sua vida, a de seus pais e irmãos, e como a catástrofe da Segunda Guerra Mundial conseguiu mudá-la abrupta e violen tamente.

Stefan Zweig, em seu livro O mundo que eu vi, auto-biográfico, afirma que “o tempo fornece as imagens, eu ape nas acrescento as palavras, e na verdade não estarei contan do tanto meu destino quanto o de toda uma geração – a nossa geração daquele tempo, onerada como poucas com fatali dade no curso da história. Cada um de nós, mesmo o mais simples e insignifi-cante, teve revolvida a sua existência mais íntima pelos abalos vulcânicos quase incessantes de nossa terra europeia”.

Em William Schirer, que escreveu em quatro volumes a histó-ria da Segunda Guerra Mundial, no livro Ascensão e queda do III Reich, ou mesmo em Churchill, em suas Memórias sobre a 2a Guerra Mundial, em seis vo lumes condensados já em tradu-ção para o português em um único tomo de aproximadamente 1.200 páginas, vê-se o “pro cesso global da 2a Grande Guerra”,

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as explicações macro econômicas, políticas, sociais sobre esse in-fausto aconteci mento que maculou para todo o sempre a exis-tência do ser humano na Terra.

No livro de Henry Katina vê-se a Segunda Guerra sob o pon-to de vista pessoal, humano, ao narrar a vida tranqui la de uma família de oito filhos, unidos, comemorando juntos as festivi-dades religiosas, que, de repente, mais do que de repente, como num pesadelo, da noite para o dia, se vê na necessidade de se dispersar para fugir dos nazistas que se aproximavam, para nunca, nunca mais, voltar a se en contrar: os pais que morreram no campo de concentração, o irmão David; o caçula, a quem Henry sempre se refere num misto de extrema ternura e amor como “meu querido irmão zinho”; Yankel, primogênito, o lí-der, a quem ele devotava um misto de admiração e respeito; o menor morto em Aus chwitz e o maior, semanas após a liberta-ção, são referências pessoais, particulares de um menino como ele que viu tudo isto acontecer, abrupta e inexoravelmente, aos quatorze anos de idade.

Suas passagens por campos de concentração, a liberta ção, o sentir-se jovem menino sozinho no mundo, suas pri meiras via-gens em busca de uma terra e profissão fazem com que acom-panhemos cada um de seus passos sofrendo juntos, penando juntos, embora já soubéssemos que o autor viria a ser vitorioso e bem-sucedido em seu futuro.

Tal qual uma peça teatral de Ibsen à qual assisti cerca de dez anos passados, em que o autor inverte os atos apresentando o último em primeiro lugar e o primei ro em último, nós que conhecíamos a segunda fase da vida de Henry, coroada de rea-lizações e felicidade, contudo, sofre mos com sua desventura de, menino ainda, ver desabar sobre si o mundo e, a seguir, passado o pesadelo, com sua liberta ção, a luta para vencer sozinho to-dos os obstáculos que se lhe antepunham.

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E compreendemos, então, que o ser humano que passa ra por aquela tremenda catástrofe só poderia ter duas reações: ou se deixaria abater, perguntando por que eu?, por que meus pais?, por que meu povo?, por que tanto sofrimento comigo?, e se tor-naria um neurótico, um desanimado, um triste, um re voltado, ou, qual fênix que renasce das cinzas, lembrando-se de que o aço é forjado nas altas temperaturas, assim também o seu ca-ráter, moldado por tanto sofrimento, seria seu escudo, o elmo com o qual enfrentaria os desígnios da vida, e, então, resolveu que seria um vencedor – e foi.

Henry passou por esses momentos em que um povo, ensan-decido, liderado por um ditador louco, achou que po deria do-minar o mundo e varrer os judeus da face da Terra. E, como mi-lhares e milhões de outros judeus, teve sua família despedaçada, sua vida destroçada, virada ao avesso, pais e ir mãos mortos.

A tudo resistiu, também como outras vítimas do Holo causto; não se deixou abater, não se viu derrotado, muito me nos ani-quilado; não se curvou. Juntou os pedacinhos de vida que lhe restavam, compactou-os, ligou-os e com esse tênue fio de es-perança iniciou uma nova vida que, após a sua che gada a Belo Horizonte, já conhecíamos.

A ele, herói anônimo da Segunda Guerra Mun dial, e a todos os sobreviventes dos campos de concentração nazistas o meu mais profundo respeito, minha comovida ad miração pela ma-neira como reergueram a vida, minha homenagem por serem o que são hoje – exemplos vivos de que, apesar de todo sofri-mento, toda tragédia, toda desgraça, o ser humano é capaz de resistir e vencer.

Que Deus o abençoe e a todosos sobreviventes dos campos de extermínio.

Ary MargalithBelo Horizonte, junho de 2001.

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Faz tempo que eu vinha pensando em escrever minhas memórias. Sinto uma vontade enorme compelindo-me a relatar as minhas experiências aos meus filhos e netos, fu-

turas gerações, mesmo não me considerando preparado, dada a falta de conhecimento de uma língua que me fizesse sentir mais seguro. É verdade que já foram escritos muitos livros sobre o Holocausto, mas quis contar minhas experiências pessoais à minha família e a outros leitores também.

Hesitei por algum tempo se deveria escrever em inglês ou em português; contudo, morando no Brasil e querendo relatar sobre o meu passado, principalmente aos meus filhos e netos que residem neste país, resolvi redigi-las em português, apesar de não ser esta a minha língua materna.

Não foi fácil escrever em português, pois o idioma em que me criei inicialmente foi o iídiche, e na escola judaica a instru-ção também foi em iídiche (dialeto judaico baseado no alemão antigo, misturado com línguas locais e o hebraico). Ao entrar na escola pública, a língua necessária era o romeno e tive de aprendê-lo, pois na região onde nasci, na Transilvânia, a po-pulação só falava húngaro. Quando, em 1940, alcancei a idade

Algumas considerações

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de 9 anos e os húngaros ocuparam nossa região, a língua ensi-nada na escola era o húngaro. Tendo passado um ano e meio na Alemanha, falava em alemão, também. Mais tarde, quando cheguei à Suécia, foi preciso aprender sueco. Quando cheguei ao Canadá, apesar de saber um pouco de inglês, não foi o sufi-ciente para que eu mantivesse uma conversação fluente.

No Brasil, o português era a língua a ser aprendida. Refle-tindo, agora, talvez tenha sido um erro não me dedicar mais ao domínio da gramática brasileira, mas, como fui um empresário e sempre tive secretárias que sabiam bem a língua portuguesa, ao ditar as cartas, elas logo faziam as devidas correções, portan-to, não senti necessidade de dedicar mais tempo para aprender melhor a língua.

Exposto a tantos idiomas, acabei não dominando nenhum com perfeição, embora meu desejo fosse ter um bom conheci-mento de uma língua para que pudesse me expressar com mais confiança. Esse pensamento eu quis transmitir aos meus filhos: que conhecessem bem o idioma do lugar em que vivessem.

O fato de eu estar vivo, hoje, deve-se a um desconhecido judeu. Quando chegamos a Auschwitz, em maio de 1944, ao abrirem nosso vagão, esse jovem aconselhou-me a colocar um sobretudo grande e me apresentar perante o oficial alemão que fazia as seleções dizendo, em alemão, que eu tinha 18 anos, quando, na realidade, tinha 13. Meus colegas da mesma idade não sobreviveram e foram mortos nas câmaras de gás. Nunca descobri como a sorte havia me reservado o destino de sobre-viver e de hoje estar vivo.

Com o passar do tempo, considerei 15 de abril de 1945, o dia da nossa libertação do campo de concentração em Bergen-Belsen, como a nova data do meu nascimento. Após essa data, nunca consegui entender ou conciliar certos fatos: por que a grande tragédia tinha de ocorrer ao nosso povo? Será que todas as barbaridades e atrocidades cometidas em escala tão enorme,

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quando tantos milhões de pessoas foram massacrados, foram apenas para atender a um paranoico, a um maníaco que se alimentava de um ódio insaciável? Como podemos entender por que tantos milhões de alemães, um povo com alto grau de desenvolvimento cultural, pudessem aderir a tanta loucura e seguir um homem tão nefasto?

E o mundo assistiu a tudo isso sem ter levantado uma voz sequer. Estou convicto de que Churchill, primeiro-ministro da Inglaterra durante a Segunda Guerra e um dos mais destacados estadistas do século XX, assim como Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, e também Stalin, líder da União Soviética, ti-nham conhecimento do que estava acontecendo com os judeus na Europa e não reagiram absolutamente. No Museu do Ho-locausto de Washington há uma fotografia de Auschwitz tirada em 1943 pela força aérea norte-mericana com todos os detalhes do campo de extermínio. Hoje, considero esses estadistas coni-ventes com as atrocidades.

Franklin D. Roosevelt, defensor da democracia mundial, não sentia amor pelos judeus, pois durante a guerra, na Conferência de Casablanca, comentou sobre as reclamações “compreensí-veis” que os alemães apresentavam em relação aos judeus na Alemanha. Segundo o presidente norte-americano, isso se dava devido ao fato de que os judeus representavam uma parcela pequena da população e, no entanto, 50% dos advogados, mé-dicos, professores secundários e professores universitários na Alemanha seriam judeus. Evidentemente, Roosevelt mostrou-se mal informado, porque a verdadeira proporção era bem infe-rior àquela, constituindo-se em 16% de advogados, 10% de professores secundários, 10% de médicos e apenas 0,5% de professores universitários.

Tudo isso aconteceu em meados do século XX, quando a humanidade já deveria ter alcançado conceitos mais nobres em relação aos semelhantes.

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Nos campos de concentração onde nos encontrávamos pri-sioneiros, ficamos deprimidos e desiludidos, questionando-nos o motivo de estarmos merecendo uma situação como aquela. Alguns colegas concluíram que, apesar do alto grau de civiliza-ção que a humanidade conseguira alcançar após 5 mil anos de desenvolvimento, o homem continuava sendo um ser primitivo e egocêntrico por instinto.

Hitler e seus adeptos conseguiram extinguir uma sociedade sin-gular e uma forma de vida que os judeus da Europa Oriental cul-tivaram durante muitos séculos. Extinguiram, também, ao mesmo tempo, uma fonte de grandes talentos oriundos daquela região da Europa, matando judeus, na maioria pobres e religiosos, como registra o historiador Paul Johnson, em História dos Judeus.

Após os alemães terem invadido a Rússia em 1941, chega-ram grupos de extermínio, os Einsatzgruppen, para executar os judeus dos lugares conquistados, mesmo antes de terem di-zimado os remanescentes judeus na Alemanha. Esses grupos de extermínio entraram em centenas de vilarejos na Ucrânia, onde viviam judeus pobres e humildes, e, com a ajuda da po-pulação local, juntaram os judeus e os levaram para fora das aldeias, onde os obrigaram a cavar as próprias covas, fuzilan-do impiedosamente homens, mulheres e crianças. Isso ocorreu sistematicamente em centenas de vilarejos, em pequenas e, até mesmo, em grandes cidades. Um dos maiores massacres ocor-reu em Kiev, Ucrânia, quando em um tempo muito pequeno massacraram aproximadamente 100 mil judeus em um infame lugar chamado Babi Yar.

Tudo ocorreu porque, uma vez dadas as oportunidades aos judeus na Europa Oriental de frequentar escolas e universidades, começaram a despontar vários personagens, destacando-se com seus talentos. Será isso o que veio a preocupar os alemães? Eram esses judeus intelectuais que também contribuíram para derrubar

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a tirania dos czares (que eram veementes antissemitas, promoven-do contínuas perseguições aos judeus), livrando o país do reinado absolutista, da decadência e da ineficiência, motivo desse ódio? Infelizmente, a situação se inverteu mais tarde, com a ascensão da tirania stalinista, que se mostrou tão nociva quanto a antiga.

Os judeus da Europa Oriental que foram para os Estados Unidos logo demonstraram grande talento, principalmente na área de entretenimento; George Gershwin, Irving Berlin, Os-car Hammerstein são exemplos disso na música. Esses judeus contribuíram com a cultura norte-americana e também para o início do desenvolvimento da indústria cinematográfica de Hollywood, bem como em vários aspectos da ciência e do de-senvolvimento daquele país, o que, em parte, alterou também o modo como o homem se enxerga perante o mundo.

Até agora não se encontrou uma explicação adequada para a razão verdadeira de a maioria dos alemães querer tanto se vin-gar dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Em alguns casos, deram preferência ao extermínio de judeus, em vez de conduzirem a guerra. E, lamentavelmente, as execuções foram perpetradas não somente pelos nazistas radicais, mas também por muitos alemães que levavam uma vida comum.

É verdade que, inversamente proporcional ao seu pequeno número, os judeus da Alemanha tinham um destaque significa-tivo em todas as áreas da sociedade, como nas ciências, litera-tura, música, teatro e economia. Em 1933, o número de judeus na Alemanha era de aproximadamente 600 mil, um número pequeno em relação à população de toda a Alemanha, que era de 80 milhões.

Antes da Segunda Guerra, mesmo anteriormente à ascensão do nazismo, já havia muito antissemitismo na Europa. A difusão da ideia de que os judeus eram uma raça inferior e que só sabiam negociar em comércios ilícitos era corrente. No final do século

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XX e início do XXI, já se percebe que o conceito do judeu no mundo mudou, definitivamente após o estabelecimento do Estado de Israel. Isso se deve, em parte, à proliferação da de-mocracia e à humanização das sociedades que atingiram novo grau de compreensão de si mesmas e, naturalmente, ao fato de o Estado Judeu ter conseguido em poucos anos um excelente desempenho ao desenvolver-se como um país moderno e demo-crático nos últimos 60 anos.

O povo judeu teve sua origem há aproximadamente quatro mil anos e, de acordo com a lógica matemática, a população de-veria hoje ter alcançado quase um bilhão de pessoas; entretanto, a população judaica atualmente soma, aproximadamente, entre 14 e 15 milhões, espalhados nos quatro cantos do mundo. Os Estados Unidos contam com o maior número de judeus, em torno de seis milhões, mais que o Estado de Israel, com cinco milhões.

Como explicar a nossa sobrevivência de quase quatro mil anos expostos a tantas perseguições? Muitos foram os debates em torno disso, dentre eles o motivo mais significativo seria o de abraçar a filosofia do monoteísmo e a crença em um Deus universal. As observações e tradições praticadas no âmbito fa-miliar, nas festas religiosas e a ênfase na educação dos filhos também contribuíram muito para a nossa preservação.

Poucos são os povos que podem contar com uma história tão longa e de grande variedade como os judeus, que abrange uma gama de façanhas extraordinárias e realizações, influenciando as duas maiores religiões do mundo, e ao mesmo tempo expostos a tantas tragédias. Reflito continuamente sobre qual seria a moti-vação e a essência do judaísmo e sobre como tantos homens do nosso povo conseguiram se destacar nessa longa trajetória.

O poeta judeu e escritor Ahad Haam, século XIX, conta que durante o primeiro século d.C., época do Império Romano, quando muitas pessoas se convertiam ao judaísmo, muitos se