livros sobre viagens

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1 Livros sobre VIAGENS Obras lidas Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (análise histórico-moral do reverso dos Descobrimentos) Portugal de Miguel Torga (análise geomorfológica e moral da natureza de cada província) Cadernos italianos de Eduardo Pitta (descrição “burguesa” de Veneza?) Portugal de Miguel Torga Robinson Crusoe de Daniel Defoe O afinador de pianos de Daniel Mason (apelo aos sentidos, protagonista é um amante do som e da Natureza e é através da música que tenta estabelecer a paz com os colonizados) O canto nómada de Bruce Chatwin (viagem à Austrália e vive com os aborígenes, tentando compreender o seu canto. Fala sobre paleontologia, teoria da evolução, etc. Fascinante do início ao fim pela erudição e diversidade de temas abordados pelo narrador) O Sul de Miguel Sousa Tavares (não gostou da parte do deserto, pois achou q não tinha nada para descrever, mas a exploração histórica da viagem é muito interessante) Livro usado de Jacinto Lucas Pires (tom poético, descrição de todos os sítios por onde passou) – Dina Peres O coração das trevas de Joseph Conrad – Esmeralda Lopes Contos capitais de autores vários– Esmeralda Lopes Viagem a Pascoais de António Cândido Franco – Esmeralda Lopes O canto nómada de Bruce Chatwin – Esmeralda Lopes A arte de viajar de Alain de Botton (riquíssimo na análise dos destinos que cada um elege pela sua própria natureza, mas também pelas motivações do viajante) Dentro do segredo de José Luís Peixoto – Lúcia Mendonça Guia de Portugal de José Saramago - Lúcia Mendonça O papalagui – turma de adultos do curso EFA do Ensino Secundário da professora Alice Uma viagem espiritual de Nicholas Sparks, Billy Mills (excertos das págs. 48, 49, 62. É a hist. de um menino que perde a sua irmã adorada que morre e é sobre como ultrapassar a morte) ATHOS Viagem dentro de um peregrino de Helder Palhas Um Km de cada vez de Gonçalo Cadilhe Nos passos dos outros de Raquel Ochoa Contos Capitais de autores vários Canto Nómada de Bruce Chatwin O coração das trevas de Joseph Conrad

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Livros sobre VIAGENS

Obras lidas

Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (análise histórico-moral do reverso dos Descobrimentos)

Portugal de Miguel Torga (análise geomorfológica e moral da natureza de cada província)

Cadernos italianos de Eduardo Pitta (descrição “burguesa” de Veneza?)

Portugal de Miguel Torga

Robinson Crusoe de Daniel Defoe

O afinador de pianos de Daniel Mason (apelo aos sentidos, protagonista é um amante do som e da Natureza e é através da música que tenta estabelecer a paz com os colonizados)

O canto nómada de Bruce Chatwin (viagem à Austrália e vive com os aborígenes, tentando compreender o seu canto. Fala sobre paleontologia, teoria da evolução, etc. Fascinante do início ao fim pela erudição e diversidade de temas abordados pelo narrador)

O Sul de Miguel Sousa Tavares (não gostou da parte do deserto, pois achou q não tinha nada para descrever, mas a exploração histórica da viagem é muito interessante)

Livro usado de Jacinto Lucas Pires (tom poético, descrição de todos os sítios por onde passou) – Dina Peres

O coração das trevas de Joseph Conrad – Esmeralda Lopes

Contos capitais de autores vários– Esmeralda Lopes

Viagem a Pascoais de António Cândido Franco – Esmeralda Lopes

O canto nómada de Bruce Chatwin – Esmeralda Lopes

A arte de viajar de Alain de Botton (riquíssimo na análise dos destinos que cada um elege pela sua própria natureza, mas também pelas motivações do viajante)

Dentro do segredo de José Luís Peixoto – Lúcia Mendonça

Guia de Portugal de José Saramago - Lúcia Mendonça

O papalagui – turma de adultos do curso EFA do Ensino Secundário da professora Alice

Uma viagem espiritual de Nicholas Sparks, Billy Mills (excertos das págs. 48, 49, 62. É a hist. de um menino que perde a sua irmã adorada que morre e é sobre como ultrapassar a morte)

ATHOS Viagem dentro de um peregrino de Helder Palhas

Um Km de cada vez de Gonçalo Cadilhe

Nos passos dos outros de Raquel Ochoa

Contos Capitais de autores vários

Canto Nómada de Bruce Chatwin

O coração das trevas de Joseph Conrad

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Para além da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, enquanto narrativa de viagens, eu não tinha grandes recordações de uma obra que me tivesse marcado. Não sei se devo isso à minha fraca memória se a esta tendência para o sedentarismo… Mas isso não interessa agora. Sem saber por onde começar, decidi olhar para as estantes e dei com (1) ATHOS Viagem dentro de um peregrino de Helder Palhas, um livro que eu comprara em Março, impelida pelo título. Este descreve uma viagem à Grécia, mas de um ponto de vista muito geográfico. É uma verdadeira biografia de um jovem que, sem saber “patavina” da língua helénica, decide ir sozinho em busca do Mosteiro de Athos, onde apenas se aceitam turistas do sexo masculino. Adivinha-se um estilo de viajante ainda imberbe. Diria que não teve tempo para se deslumbrar. Ficou pelo registo de caráter geográfico, talvez um Diário, mas pouco intimista. "O mesmo monge, com quem já me cruzei várias vezes, aparece na sala onde me encontro. Tem na mão uma vareta com uma pena de ave na ponta. Faz uso da mesma para, com uma sacudidela energética e seca, apagar algumas lamparinas no tecto. Terá acabado? Não passou assim tanto tempo. Ninguém sai do lugar, apesar de continuarem a haver movimentações e trocas de cadeiras. Isto mais parece o Governo, ninguém percebe o que fazem ou como o fazem, o que aparece feito parece por milagre e a troca de cadeiras, saídas e entradas são frequentes." in "Athos - viagem dentro de um peregrino" Li 100 das suas 300 páginas e já não foi mau. Posso dizer que prefiro Miguel Cadilhe… “Um Km de cada vez”, é mais solto… mais temperado pelo sol.

Voltei à estaca zero. Ainda trouxe da Biblioteca Planisfério de Gonçalo Cadilhe e Nos passos dos outros de Raquel Ochoa. Mas não me senti atraída por esses trilhos. Eis se não quando a Sónia se oferece para me comprar na Bertrand (2) Contos Capitais. Mas aproveita também para me sugerir o (3) Canto Nómada de Bruce Chatwin. Não havia nas redondezas, mas uma amiga logo se prontificou para me oferecer. Aceitei, mas enquanto esperava pelos livros, pensei. Não fico a olhar para o vazio. Passei pela Biblioteca da minha escola e procurei O coração das trevas de Joseph Conrad. Livro pequenino de escritor de renome, ora vamos lá ver. Li-o em duas tardes. Para me ter prendido, pensei, deve haver aqui muito de experiência… e realmente Conrad construiu uma narrativa simbólica com uma história dentro da própria história na qual, o seu narrador Marlow conta a um grupo de amigos, a bordo de um navio ancorado no estuário do Tamisa, desde o anoitecer até de madrugada, a sua aventura por terras do Congo belga. A passagem do tempo e o céu cinzento num pôr-do-sol londrino,

enquadram a atmosfera densa e pesada da história dentro da história. “Desembarca num pantanal, marcha através da floresta e, em algum lugar no interior, sente que a selvageria, a mais extrema selvageria, o cercou – toda aquela vida misteriosa que se agita no ermo das florestas, nas matas, no coração dos selvagens. Não há iniciação em tais mistérios, também. Ele tem de viver em meio ao incompreensível, que é igualmente detestável. E há, ainda, um fascínio que opera sobre ele. O fascínio do abominável – os senhores sabem -, imaginem os crescentes arrependimentos, o

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anseio de fugir, o desgosto impotente, a capitulação, o ódio “O livro tem um caráter crítico e psicológico e, apesar de seu tamanho pequeno e fácil leitura em relação ao vocabulário, exige uma alta concentração do leitor por constituir uma narrativa simbólica e de rápidas conexões, o que não me facilitou a leitura. Em conversa com uma colega, fiquei a saber que este livro inspirou o filme Apocalypse Now de Francis Ford Coppola. Marlow expôs neste livro toda a degradação humana presenciada pela sua experiência, não apenas pelo modo como descreve a crueldade com que os nativos eram tratados, mas também pela corrupção dos europeus diante da ganância pelo marfim, cujo maior representante dessa degradação é o Sr. Kurtz, um homem com elevados ideais que, ao chegar ao Congo, se vê engolido pela mesma ambição face à qual já outros haviam sucumbido; de forma angustiante. É uma narrativa introspetiva, mas o livro é curto, tem apenas 117 páginas e ainda não sei bem qual será a ideia de Joseph Conrad, também ele um homem do mar, que desde cedo vagueou pelo mundo. Há, inclusive, uma introdução muito interessante sobre a vida do autor onde se destaca que ele, de facto, fez uma viagem ao Congo, da qual resultou este livro, e esta foi a experiência mais marcante e difícil de sua vida: a única viagem que ele não gostou e não repetiria. Talvez tenha sido essa a razão para que eu tenha ficado com esta sensação de estranhamento. Talvez a minha confusão, a minha perplexidade como leitora seja nada mais do que uma consequência do relato da própria perplexidade do narrador e, ainda, porque me falta ser uma viajante…

Mas a minha viagem ainda não terminou, já sabia que teria os Contos Capitais na biblioteca à minha espera lá para terça feira. Pois, mas e o que ler durante o fim de semana?

Mais uma peregrinação pelas minhas estantes e… saiu-me à cena a (4) Viagem a Pascoais de António Cândido Franco. Já o havia lido há uns anos, quando foi publicado, mas também me faltaria, ao tempo, aquela maturidade interior para estas peregrinações… Só que agora, não vos digo nada. Comecei e tive de o acabar. Esta viagem em tom de romance leva o leitor até Pascoaes, lugar na freguesia de São João de Gatão, em Amarante. António Cândido Franco tinha 20 anos de idade quando visitou Amarante pela primeira vez, em busca das raízes da obra do poeta português Teixeira de Pascoaes. Desde então, estudou a cartografia pessoal de Pascoaes, a família do poeta e todos os locais onde estiveram e habitaram,

apercebendo-se, em cada visita, de novos pormenores sobre eles. Descobriu laços, memórias, histórias e gentes que documenta nesta obra. Este livro é um memorial dos lugares e das pessoas de Pascoaes. Que livro é este? É um livro que o próprio escritor diz dele : "Regresso de novo a Teixeira de Pascoaes. Desta vez, não através de estudos ou de sonhos, mas de fragmentos da minha memória e notas escritas ao longo dos anos em torno dos lugares em que o poeta viveu e das pessoas que se ligam a esses lugares. (...) O lugar é o noroeste galaico da Península Ibérica, na ponta da Europa, não longe do campo das estrelas de Compostela ou do mar infinito e a gente é sempre a mesma, eterna, ontem, hoje e amanhã, e esse é o seu milagre. A gente que povoa os lugares de Pascoaes não morre, porque ao lado da uva cultivou a saudade." É um livro que dialoga com um outro (5) Duplo passeio de Teixeira de Pascoaes. E aí é que foram elas, pois a 1ª vez que o li não achei necessário esta leitura. Porém desta vez, ouve uma voz que

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me sussurrou. Encontra esse fantástico livro onde Pascoaes relata a sua viagem dupla. Mas onde encontrar esse livro? A Sónia foi quem me conduziu até ele. Havia na biblioteca e pronto, foi a minha leitura de fim de semana. Desta vez fiz então uma dupla leitura (ou duplo passeio, no dizer de Pascoais!) porque ela se faz a dois tempos: Por um lado de Amarante a Travassos, por outro, o passeio interior, “Deitei-me na cama, tão impressionado com o passeio que me custou a adormecer” e, a partir daqui, o abstrato e o concreto, o sonho e a realidade, a sanidade e a loucura, o sono e a vigília, a exaltação e o silêncio e, deitado na cama, retoma a sua viagem, agora em segundo plano, em retrospetiva, de Travassos a Amarante. Em 1942 Pascoais ofereceu-nos este duplo passeio, quadro que um surrealista desejaria ter pintado. Em 1995, António Cândido

Franco dialoga com Teixeira de Pascoais, com esse seu Duplo Passeio (título tão simples e tão completo!) diria mesmo que dois filósofos andaram em busca de um Portugal adormecido, interior, representado pelas fragas do Marão, debaixo de um sol escaldante que endurece os que estão e os que chegam, num traço tão fechado, mas que deu aos dois poetas a possibilidade de se refletirem, enquanto andarilhos do pensamento. Lá, onde a paisagem acaba por fecundar a alma dos poetas. Ambos trilham o mesmo registo de encanto e deslumbre perante a forte presença transmontana, um que o é e o outro o que o anseia conhecer integralmente, até nos pormenores, quando encontra alguém que conviveu com o ancestral poeta quer pormenores. Retrata-nos, igualmente o perfil dos viajantes, até na estranheza que causam aos da terra. Muito mais poderia ser dito, muitas são as referências intertextuais, muitas a tentativas de descobrir Mas é uma verdadeira peregrinação, no sentido em que um

olhar terno e poético capta e expõe sentimentos e emoções como uma objetiva capta as cercanias ventosas de Minho a Trás-os-Montes. Acabei por misturar os dois, por eles acabam por ser, hoje, à distância geográfica em que me encontro, eles próprios um Duplo de um passeio, ou melhor de uma digressão ou deambulação.

Rapidamente vou agora visitar as trinta capitais escolhidas pelos escritores que abraçaram a proposta da editora Parsifal. Estou a falar de Contos Capitais. Estamos perante uma linguagem frenética como este século. O viajante é sempre alguém com pressa, que quer ver, fotografar, retirar impressões, deixar marcas para o leitor se orientar se alguma vez tiver esse desejo, a partir destes relatos. Alguns retratam vidas de jovens, exibindo a sua liberdade transfronteiriça, outros entram no mundo cibernético para conquistarem corações. Muitos protagonistas destes contos são jovens donos de uma mochila e sem pressa de regressar. Nem todos são assim, alguns são donos de uma generosidade ímpar, outros relatam-nos uma viagem inesquecível em Praga, outros, ainda, recordam encontros com escritores, enfim… histórias passadas em diferentes capitas.

E pronto, cheguei ao fim! E não é que me esquecia do último livro? Sim, daquele Canto Nómada. Confesso que ainda não terminei, mas já falta pouco.

Neste momento pareço um viajante sem destino... Ofereceram-me "Canto Nómada" de BRUCE CHATWIN... E agora, não consigo largar o livro... e a propósito fui parar a um blogue de onde retirei esta homenagem a esse canto:

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Regresso da Filosofia aos Jardins Uma árvore senta-se em postura pensante à sombra de um homem a tarde tomba, a noite tomba sobre a tarde o regresso é breve, a cena passa não é possível entrar duas vezes iguais numa ideia gasta. bruno sousa villar 14/05/2013

É daqueles livro que dá vontade de responder ao “narrador”. Então, amigo, já não chega tanta viagem? Até eu estou exausta, mas feliz. Este livro tem tudo: é uma viagem ao centro de um país, a Austrália, são pequenas viagens através de florestas quase virgens, a lugares que eu apenas posso imaginar, onde o canto, ainda não foi roubado aos aborígenes! Dois viajantes, melhor; um narrador Bruce (nitidamente Bruce Chatwin) que munido de umas folhas especiais compradas em Paris, pretende aí registar os suspiros da terra. Mas é pela mão de Arkady, descendente de cossacos ucranianos, que o leitor entrarás nos pulmões da Austrália. À medida que penetramos no interior das suas florestas, Bruce aproveita para recordar outras tantas viagens, desde a vizinha Índia ao Deserto, à Grécia. Contudo, espiar os Sonhos dos aborígenes é o seu maior propósito. Arky tem amigos em todos cantos da Austrália, onde se escondem eremitas, outrora grandes viajantes e homens irrequietos que se recolheram a esta terra e com ela partilhar os seus sonhos. E confesso que são 257 páginas, sendo que de capitulo a capitulo (e são 39) entram sempre novas personagens, têm sempre um ar devorador, na ânsia da “carne” que não chega em boas condições ao interior… mas não há só isso. Os dez últimos capítulos precisam de mais calma, pois enveredam por áreas mais pesadas… ou então, eu estou um pouco cansada!

Esmeralda Lopes

O afinador de pianos de Daniel Mason

A Insuficiência das Palavras, ou De como se pode Terminar a Leitura de um Livro Apaixonada por ele por Lúcia Cabrita

“Minha querida, isto aqui é muito belo. As chuvas chegaram cedo este ano e a floresta sofreu uma mudança absolutamente incrível. No espaço de poucos dias, a savana seca transformou-se em explosões de cor. Quando viaj...ei no vapor de Rangum para Mandalay, conheci jovens soldados que me contaram histórias de Mae Lwin e, na altura, não consegui acreditar que aquilo que diziam fosse verdade, mas agora sei que era. Do rio chegam-nos brisas frescas. O ar está impregnado do aroma do néctar, do perfume das especiarias a serem cozinhadas e de sons – inacreditáveis sons! Estou neste momento sentado debaixo de um salgueiro e, como os ramos pendem baixos, pouco consigo ver do rio. Mas ouço risos. Ah, quem me dera ser capaz de captar o riso das crianças nas vibrações das cordas e exprimi-lo por palavras. Mas estas são insuficientes. Penso na linguagem que usamos para descrever a música e em como estamos mal preparados para a infinidade dos tons. Mas, apesar de tudo, dispomos de processos para registá-la; na música as nossas inépcias confinam-se unicamente às palavras porque podemos sempre recorrer a claves e a escalas. E, no entanto, ainda não descobrimos palavras para todos os outros sons, nem conseguimos registá-los por meio de claves e da escrita. Como posso descrever-te o que quero dizer? À minha esquerda, três rapazes jogam à bola nos baixios e esta está constantemente a escapar-se para águas mais fundas, e uma jovem mulher shan, que está a lavar roupa – talvez seja a mãe deles ou talvez a irmã -, repreende-os quando eles nadam para ir buscá-la e, entre a perda da bola e o seu resgate,

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há um riso especial como nenhum outro que alguma vez tenha ouvido. São sons proibidos a um piano, aos compassos e às notações. Katherine, quem me dera que pudesses também ouvi-lo, não, quem me dera poder levá-lo comigo para casa, recordá-lo integralmente. Enquanto escrevo, sinto uma medonha tristeza e uma alegria, um desejo, um agigantar dentro de mim, uma sensação extática. Escolho as palavras com cuidado; é sinceramente o que sinto porque se avoluma dentro do meu peito, como água a subir de um poço, e eu engulo e os meus olhos marejam-se de lágrimas, como se eu próprio transbordasse. Não sei o que é, nem de onde veio, nem quando começou. Nunca imaginei que viesse a descobrir tanto na queda da água ou nos sons das crianças a brincar.” A Beleza de Certos Momentos ou O Castigo da Minha Amiga Sónia Pereira, por não me ter Deixado Ler Este Excerto até ao Fim “Ela premiu a tecla. A nota ressoou na sala e o eco foi-lhes devolvido. - Está a ver? – disse Edgar. – Agora já tocou Bach. Khin Myo não se afastou do piano. Ele viu-a franzir o canto do olho, a... sombra de um sorriso. – O som é tão diferente, enquanto aqui sentada. - Pois é. Não há nada igual. Por favor, talvez eu possa ensinar-lhe um pouco mais da obra. - Oh, não quero dar-lhe maçada. Acho que tem razão: talvez seja tarde. Não queria interromper o seu trabalho. - Disparate. Agora está aqui. - Mas não sei tocar. - Insisto. É um tema curto, mas de significado profundo. Por favor, agora que começámos, não posso deixá-la ir embora. A nota seguinte é essa, toque essa com o dedo indicador. Ela voltou-se para ele. - Vá lá, toque – disse ele, apontando para a tecla. Ela tocou-a. No interior do piano, o martelo saltou ao encontro da respectiva corda. - Agora, a tecla seguinte à esquerda, agora a tecla em cima dessa. Agora novamente a primeira. Sim, essa, a primeira tecla que tocou. Agora novamente a segunda, essa. E em cima. Pronto, é isso. Agora toque outra vez, mais depressa agora. – Khin Myo executou a sequência a custo. - Não soa a grande coisa – observou. - Soa a muita coisa. Experimente outra vez. ¬- Não sei… Talvez seja melhor tocar o senhor. - Não, está a tocar lindamente. Será muito mais fácil se usar a mão esquerda para as notas mais graves. - Acho que não sou capaz. Pode mostrar-me? – Voltou-se com o rosto próximo do dele. O coração de Edgar começou a bater violentamente e, por um breve momento, receou que ela o ouvisse. Mas o som da música encorajou-o. Pôs-se de pé e posicionou-se atrás dela, baixando os braços sobre os seus. – Ponha as suas mãos em cima das minhas – pediu. Lentamente, ela levantou as mãos. Por um momento, esperaram, a flutuar, e depois ela deixou-as pousar suavemente. Nenhum deles se mexeu, ambos sentindo apenas as mãos do outro, o resto dos seus corpos não passando de contornos vagos. Ele via o reflexo dos dois no mogno lacado da placa do nome. Os dedos dela não mediam mais do que metade dos seus. A peça começou lentamente, a medo. A Fuga em Fá Menor do Livro 2 de O Cravo Bem Temperado lembrava-lhe sempre um desabrochar de flores, um encontro de apaixonados, um cântico aos princípios. Não a tinha tocado na noite da visita do sawbwa; é a trigésima oitava peça e ele tinha interrompido a actuação na vigésima quarta. Assim, de início, as suas mãos moveram-se devagar, inseguras, mas com o suave peso dos dedos dela, moveu-se através de cada compasso com segurança e, no interior do piano, os mecanismos subiam, deslizantes, ao toque das teclas,

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saltando dos dedos do escape e afastando-se, deixando as cordas a vibrar, filas e filas de minúsculas e complexas peças de metal, madeira e som. Sobre a caixa do piano, as velas bruxuleavam. Enquanto tocavam, uma madeixa do cabelo dela soltou-se de onde estava presa por baixo da flor. Roçou-lhe o lábio. Ele não a afastou, fechando antes os olhos e aproximando o rosto para que ela traçasse um rasto na sua face enquanto tocava, de novo sobre os seus lábios, agora sobre as pestanas dos seus olhos. A música elevou-se mais rápida, decresceu depois docemente, mais suave, e por fim terminou. As mãos de ambos ficaram juntas, pousadas sobre o piano. Ela voltou ligeiramente a cabeça, de olhos fechados. Pronunciou o seu nome, numa voz feita unicamente de sopro. Ele perguntou: - Foi por isto que veio aqui esta noite? Ao fim de um silêncio, ela respondeu: - Estive sempre aqui. E Edgar baixou os lábios até à sua pele, fresca e húmida da transpiração. Ficou suspenso a inalar o perfume do seu cabelo, a saborear o doce sal do seu pescoço. Lentamente, ela moveu as mãos e entrelaçou os dedos nos dedos dele. E, durante esse momento, tudo ficou suspenso. O calor dos seus dedos, a maciez da sua pele sobre os calos das mãos dele. A luz da vela a tremeluzir sobre a superfície suave do rosto dela, captando apenas as sombras da flor. Permaneceram assim durante segundos, ou mais, mas só os grilos assinalavam a passagem do tempo. Foi ela que quebrou o abraço, desprendendo suavemente as suas mãos das dele que continuavam pousadas no teclado. Passou os dedos ao longo do braço de Edgar. Tenho de me ir embora. E ele fechou novamente os olhos, inspirou uma última vez e deixou-a partir.”

Contos capitais de autores vários por Carlos Reis

Optei pelos ”Contos Capitais”, sugerido pela Sónia, e naturalmente não o li totalmente, pois tem mais de 400 páginas, mas nem é suposto que se leia dessa forma. Na realidade trata-se de um livros de contos, em que 30 escritores foram convidados a escrever um conto que se passa no todo ou em parte numa capital de um país, escolhida pelo escritor. Não se trata assim de um “livro de viagens” no sentido habitual, mas um “livro em viagem”, pois todas as cidades são boas como suporte de uma “estória”, e ao lermos esse texto, alguma coisa da cidade fica colada nesse texto. Para além do texto o livro apresenta algumas boas fotos alusivas ao conto ou à cidade onde este se passa. As histórias são surpreendentes (algumas delas), e não são “turisticas”. Por exemplo Bruxelas é brindada com um conto que nos relata um ladrão de carteiras que vai a Bruxelas para burlar uma senhora que conheceu na internet e acaba “burlado” e tem de se dedicar à sua “profissão” nas ruas de Bruxelas para sobreviver. Ou a história de um treinador conhecido que é convidado para treinar a seleção de futebol de Cuba, mas que não pode treinar, mas apenas dar a sua cara, que ilustra a cidade de Havana. As cidades também podem ser reais ou não, pois um dos escritores escolheu Ashitueba, capital inexistente de um país imaginário, outro escolheu Palenque, capital de império Maia no México. Muito interessante e um livro para ler devagar numa “viagem” da literatura pelas cidades.

SOBRE O AUTOR •

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Alain de Botton [1969 - ] . Sobre “A Arte de Viajar” de Alain de Botton Tal como o próprio título da obra indica, mais do que relatar episódios de uma viagem em particular, o livro deste filósofo conduz-nos a uma viagem dentro da própria viagem, explorando todos os aspectos que dela fazem parte e a influenciam, tornando-a inesquecível ou, pelo contrário, desinteressante ou uma desilusão. E fazemos a viagem acompanhados não só pelo autor, mas também por vários artistas (Gustave Flaubert, Edward Hopper, Baudelaire, Wordsworth ou Ruskin) que foram moldados por ela e nos guiam por espaços que imortalizaram (como é o caso de Van Gogh em relação a Provença) ou por hábitos (até inconscientes) que podem distrair ou potenciar o olhar do peregrino, percebendo melhor o que geralmente sentimos em determinados sítios (lugares do sublime, por exemplo) e por que experimentamos essas sensações. Além de estar notavelmente bem escrito e com uma atenção aos pequenos grandes pormenores que nos permitem ir mais fundo na nossa análise interior do exterior e frui-lo na sua plenitude, este livro celebra a viagem de uma forma também artística, uma vez que denota estudo e experiência, mas sobretudo porque a eleva à condição de prazer supremo e maior manifestação do que a vida deveria ser mais plenamente. “O antídoto perfeito para aqueles guias que nos dizem o que fazer quando lá chegarmos, a “A Arte de Viajar” tenta explicar porque é que escolhemos tal sítio em primeiro lugar – e sugere, modestamente, como podemos aprender a ser mais felizes nas nossas viagens.”

In “A Arte de Viajar”

Sónia Pereira Excertos interessantes de “A Arte de viajar” de Alain de Botton Por que nos desiludimos com as viagens? Pág. 20 “Nada era como eu imaginara – o que só parecerá surpreendente se se considerar aquilo que eu imaginara. Ao longo das semanas anteriores, os meus pensamentos sobre a ilha haviam girado exclusivamente em torno de três imagens mentais imóveis, forjadas durante a leitura de uma brochura e de um horário de voos. A primeira era uma praia com uma palmeira ao pôr-do-Sol. A segunda era a de um bungalow de hotel através de cuja segundea porta envidraçada se via o interior de um quarto com o soalho de madeira e roupa de cama branca. Por fim, a terceira era a de um céu azul. Instado a fazê-lo, eu teria naturalmente reconhecido que a ilha não poderia deixar de incluir outros aspectos, mas a verdade é que não sentira a menor necessidade de os considerar para formar a minha ideia dela. A minha atitude era semelhante à de alguém que, ao assistir a uma

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peça de teatro, se satisfaz com um simples ramo de carvalho ou com uma coluna dórica pintada no pano de fundo do cenário, para imaginar sem dificuldade que as acções se desenrolam no palco têm lugar na floresta de Sherwood ou na Roma Antiga.” Págs. 22 e 23 “Se tendemos a esquecer que há no mundo bem mais do que podemos antecipar, talvez possamos endereçar, então, às obras de arte uma ligeira repreensão a propósito, uma vez que encontramos nelas o mesmo processo de simplificação ou de selecção segundo o qual a imaginação opera. As representações artísticas comportam severas reduções daquilo que a realidade nos impõe. Um livro de viagens pode contar-nos, por exemplo, que o narrador viajou toda a tarde até chegar à cidade de X que ficava na colina e que, depois de passar a noite no seu convento medieval, viu que a manhã nascera enevoada. Mas a verdade é que nunca viajamos somente a tarde toda. Sentamo-nos num comboio. Sentimos o peso da digestão do almoço. (…) Continua a chover. O comboio finalmente arranca. Atravessa uma ponte de ferro, depois da qual para sem que se saiba porquê. Há uma mosca que aterra no vidro da janela. E entretanto pode ser que não tenha passado mais que o primeiro minuto que contemplaria uma plena descrição dos acontecimentos que a enganadora proposição «viajou toda a tarde» deixa por enumerar.(…) Tanto a imaginação expectante como a artística omitem e condensam, dispensam os períodos de estagnação e dirigem a nossa atenção para os momentos críticos e, sem que para isso tenham de incorrer em mentiras ou embelezamentos postiços, conferem à vida uma intensidade e uma coerência que muitas vezes primará pela ausência na vaga confusão do presente. (…)O presente pode comparar-se com um filme interminável do qual a memória e a antecipação seleccionam os fotogramas mais impressionantes. Das minhas nove horas e meia de viagem até à ilha, a memória activa não reteve mais que seis ou sete imagens estáticas. Hoje, só uma delas sobrevive: a bandeja da refeição servida a bordo”. Pág. 26 “Muitos anos antes da sua tentativa de viagem a Inglaterra, Des Esseintes desejara conhecer outro país: a Holanda. Imaginara que o país seria parecido com os quadros de Teniers e Jan Steen, Rembrandt e Ostade; antecipara-lhe uma simplicidade patriarcal e uma jovialidade turbulenta; pequenos pátios em tons de tijolo e raparigas pálidas que serviam leite. E assim viajara até Haarlem e Amesterdão – e sentira uma decepção profunda. Não era que os quadros mentissem. A simplicidade e jovialidade não faltavam, nem os agradáveis pátios de tijolo, nem algumas criadas que serviam leite, mas eram como jóias que se misturavam numa amálgama de imagens banais (restaurantes, escritórios, casas monotonamente uniformes e paisagens rurais insípidas), que os seus artistas holandeses nunca haviam pintado e que transformavam viajar pelo país numa experiência estranhamente diluída por comparação com uma tarde nas galerias holandesas do Louvre que condensava toda a beleza da Holanda, apenas numas quantas salas. Des Esseintes acabou por descobrir-se na situação paradoxal de se sentir mais na Holanda – quer dizer, mais intensamente em contacto com os elementos que na cultura holandesa mais amava – quando contemplava imagens escolhidas da Holanda num museu do que quando viajava com dezasseis volumes de bagagem e dois criados para visitar o país.” Págs. 29 e 31 “O meu corpo e o meu espírito revelavam-se companheiros um tanto caprichosos, agora que chegava o momento da avaliação do destino que eu escolhera. O corpo queixava-se de só a custo conseguir dormir, do calor, das moscas e da dificuldade com que digeria a alimentação servida no

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hotel. O espírito observava o pacto que firmara com a in quietação e o tédio, com uma espécie de tristeza flutuante e com as preocupações financeiras. Contrastando com a felicidade constante e duradoura que imaginariamente antecipamos, é como se sentirmo-nos felizes num lugar acabasse por revelar-se um fenómeno efémero, e, para a consciência, aparentemente fortuito: um intervalo durante o qual conseguimos alcançar um estado de receptividade perante o mundo que nos rodeia, em que ganham consistência as nossas representações positivas do passado e do futuro, enquanto a nossa ansiedade cede. Mas trata-se de uma condição que raramente se prolonga por mais de dez minutos. Segundo um processo inevitável, formam-se no horizonte da consciência novos motivos de ansiedade, do mesmo modo que, de tantos em tantos breves dias, o estado do tempo acusa a acumulação das massas climáticas que nos chegam das costas ocidentais da Irlanda. As vitórias de outrora perdem a sua força impressiva, o futuro adquire feições preocupantes e a beleza da vista que se nos oferece torna-se tão invisível como essas coisas que temos sempre à nossa volta. Esperava-me a descoberta de uma inesperada continuidade entre o eu melancólico que fora em casa e a pessoa que contava ser na ilha – uma continuidade que contrastava com a descontinuidade radical na paisagem e do clima, que fazia com que o próprio ar parecesse feito de uma substância diferente e mais doce. (…) Um outro paradoxo, que Des Esseintes teria apreciado, é o que faz com que pareçamos mais capazes de habitar este ou aquele lugar quando não nos vemos confrontados com a prova suplementar de termos de o fazer.” Págs. 33 e 34 “Mas a verdade é que a nossa capacidade de descobrirmos felicidade em bens estéticos ou materiais parece depender decisivamente da satisfação preliminar de um repertório de necessidades afectivas e psíquicas primeiras, entre as quais se incluem a necessidade de compreensão, de amor, de comunicação e de respeito. Não nos será dado gozar – não somos capazes de gozar – do esplendor de jardins tropicais nem do encanto de uma deliciosa construção de madeira na praia, quando, bruscamente, a incompreensão e o ressentimento devastam uma nossa relação íntima. Se nos surpreende que uma simples zanga tenha o poder de destruir os atractivos e contributos que um hotel inteiro nos proporciona, é porque não chegamos realmente a compreender aquilo que molda os nossos humores. (…) A intratabilidade desses nós do espírito leva-nos a evocarmos a sabedoria austera e tortuosa de certos filósofos da Antiguidade, que renunciavam à prosperidade e ao requinte, e que, do interior de um tonel ou de uma casa de terra, proclamavam que os verdadeiros ingredientes da felicidade não podiam ser materiais nem estéticos, mas sempre e pertinazmente psicológicos – lição que nunca terá parecido tão acertada como quando M e eu fizemos as pazes ao cair da tarde, à beira-mar e diante de uma grelha de churrasco, na praia cujo esplendor passara a não representar mais que um humilde segundo plano. Lugares de passagem Págs. 40 e 41 “«Creio que estaria sempre bem onde não estou, e esta ideia de mudança é uma das que discuto sem descanso com a minha alma». (…) O essencial não era o destino da viagem. O verdadeiro desejo era o de ir-se embora, como de resto Baudelaire concluía: «Qualquer sítio! Qualquer sítio! Contanto que seja fora deste mundo!» Baudelaire venerava os devaneios de viagem como um emblema de nobreza dos espíritos inquietos, que descrevia como «poetas» jamais satisfeitos com os horizontes familiares por mais que pudessem apreciar ao limites de outras terras, e cujo humor oscilava entre a esperança e o

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desespero, um idealismo infantil e o cinismo. À semelhança dos peregrinos cristãos, a sina dos poetas era viverem num mundo da queda, mas recusando-se a abandonarem a visão de um reino alternativo e menos constrangedor. Contra o fundo destas ideias, há, no entanto, um aspecto que sobressai na biografia de Baudelaire: sentiu-se, durante toda a sua vida, intensamente atraído pelos portos, docas, estações de comboios, navios e quartos de hotel, do mesmo modo que se sentia mais em sua casa em lugares de passagem e escalas de viagem que no seu próprio ambiente doméstico. (…) Num ensaio sobre o poeta, T.S. Eliot sugeria que Baudelaire foi o primeiro artista do século XIX que soube dar expressão à beleza dos lugares de passagem e dos meios de transporte: «Baudelaire … inventou uma nova espécie de nostalgia romântica», escreveu Eliot. (…) Baudelaire admirava não só os lugares de partida e chegada, mas também os motores de movimento, sobretudo os transatlânticos.” A descolagem Pág. 47 “Também o prazer psíquico intervém na descolagem, uma vez que a velocidade ascensional do aparelho é um símbolo paradigmático de mudança. Trata-se de uma demonstração de potência, de molde talvez a exortar-nos a que concebamos mudanças comparavelmente decisivas na nossa própria vida; e que imaginemos que, também nós, seremos um dia capazes de prevalecer sobre as muitas ameaças suspensas sore as nossas cabeças”. Pág. 54 “As nuvens trazem consigo sossego. Lá em baixo, estão os inimigos e os colegas, os lugares dos nossos terrores e dos nossos lutos; tudo isso, agora, infinitesimal, não mais que pequenos riscos que arranham a terra.” Restaurantes rápidos à beira da estrada Pág. 59 “Nos restaurantes rápidos à beira da estrada e nas cafetarias onde é noite e se faz tarde, nas salas de hotel e nos cafés das estações, é-nos dado diluir o nosso sentimento de isolamento na atmosfera solitária de um lugar público, redescobrindo assim uma característica impressão de comunicação. O ambiente que nada tem de doméstico, a claridade da iluminação e o recheio anónimo aliviam-nos do que poderia ser o falso reconforto da casa. Talvez seja mais fácil lidar com a tristeza aqui que numa sala-de-estar forrada de papel de parede e com fotografias emolduradas, cenário que evoca um refúgio que não nos dá abrigo. (…) O restaurante rápido que funciona vinte e quatro horas por dia, a sala de espera da estação ou o motel são santuários para aqueles que, por nobres razões, não conseguiram descobrir um lar no mundo habitual, santuários para aqueles que Baudelaire honraria com o nome de “poetas”. Os meios de transporte e o pensamento Pág. 62 “As viagens são as comadres do pensamento. Poucos lugares induzem mais intensamente à conversa interior que um avião, um barco ou um comboio em andamento. Entre aquilo que temos diante dos nossos olhos e os pensamentos que nos podem passar pela cabeça, estabelece-se uma relação peculiar, fazendo, por vezes, com que os grandes pensamentos reclamem grandes vistas, e os pensamentos novos, novos lugares. (…) De todos os meios de transporte, talvez seja o comboio o que melhor e mais auxilia o pensamento: a vista que se nos oferece é isenta dessa monotonia potencial que caracteriza as

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viagens de barco ou de avião; move-se com uma rapidez suficiente para a impedir de se tornar exasperante, mas também com uma lentidão suficiente para nos permitir que reconheçamos os seus objectivos. (…) Ao fim de umas quantas horas de devaneio ferroviário, experimentamos a impressão de termos regressado a nós próprios, ou seja, de termos retomado o contacto com os afectos e as ideias que fundamentalmente nos importam. Não tem de ser necessariamente em casa o lugar onde nos encontramos melhor a nós próprios. Os móveis reiteram a impossibilidade de mudarmos, uma vez que também eles não mudam; o quadro doméstico amarra-nos às pessoas que somos na vida quotidiana, mas que poderão muito bem não convir à essência do que somos.” Por que nos atrai o exótico? Pág. 82 “No sentido mais efémero e banal da palavra «exótico», o encanto de um lugar estranho decorre da simples ideia da novidade e da mudança: exótico é descobrir camelos onde na nossa terra haveria cavalos; descobrir um prédio de apartamentos despojado onde na nossa terra haveria colunas ornamentais. Mas ao prazer do exótico pode corresponder também algo mais profundo: valorizaremos então as coisas estrangeiras, não só por serem novas, mas por parecerem confirmar a nossa identidade e a nossa atitude perante a existência mais firmemente do que fosse o que fosse o poderia fazer na terra natal. Os meus entusiasmos em Amsterdão eram solidários dos meus motivos de insatisfação com o meu próprio país, com a sua falta de modernidade e de simplicidade estética, com a sua resistência à vida urbana e a sua obsessão pelas cortinas. Aquilo que nos parece exótico lá fora talvez seja por que ansiamos em casa. Para compreendermos por que razões achou Flaubert exótico o Egipto, talvez seja, portanto, útil examinarmos os seus sentimentos em relação a França. O que lhe pareceria exótico no Egipto – isto é, novo e precioso ao mesmo tempo – era, sob múltiplos aspectos, o avesso do que o enfurecia na pátria. Tratava-se, para abreviar as coisas, das crenças e do comportamento da burguesia francesa que, desde a queda de Napoleão, se tornara a força dominante na sociedade, determinando o teor da imprensa, da política, das maneiras e da vida pública. Para Flaubert, a burguesia francesa era um repositório da hipocrisia, do pretensiosismo, da afectação, do racismo e da pomposidade mais extremos.” Pág. 90 “III. O exotismo dos camelos «Uma das mais belas coisas que existem é o camelo», escreveu Flaubert do Cairo. «Nunca me canso de contemplar este estranho animal que se move como um burro e ondula o pescoço como um cisne. (…) «Mas a minha verdadeira paixão é o camelo (não pense, por favor, que estou a brincar), nada tem uma graça mais singular que a deste melancólico animal. Devia vê-los no deserto quando avançam numa só fila sobre o fundo do horizonte, como solados; lançam os pescoços para a frente como as avestruzes, e continuam a andar, a andar…» Por que razão Flaubert admiraria tanto o camelo? Identificava-se com o seu estoicismo e a sua falta de jeito. Comovia-o a tristeza da sua expressão, e a figura tosca e a tenacidade fatalista que neles se combinavam: uma força silenciosa e uma humildade que contrastavam com a arrogância burguesa dos vizinhos normandos de Flaubert. Pág. 93 Por que nos apaixonamos por pessoas de outros países? “Ao efeito que uma pessoa atraente pode exercer sobre nós na pátria acrescenta-se, num país exótico, uma força de atracção derivada do lugar. Se é verdade que o amor é a busca noutros seres de qualidades que nos faltam, então no nosso amor por uma pessoa de outro país, talvez

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nos mova a ambição de penetrarmos mais intimamente nos valores que faltam na nossa própria cultura.” Pág. 100 Flaubert defendia outro critério para a atribuição da nacionalidade… “A ligação de toda a vida de Flaubert ao Egipto parece convidar-nos a aprofundar e a respeitar a atracção que podemos sentir por outros países.” (…) E, assim, chegaria a propor um novo processo de atribuição da nacionalidade: o critério não seria o do país onde se nascesse nem o do país a que se pertenceria por herança familiar, mas o dos lugares cuja atracção se experimentasse mais intensamente.” (…) A minha pátria é o país que amo, ou seja, o que me faz sonhar, o que me faz sentir-me bem.” Como ter prazer nas viagens quando os grandes exploradores já exploraram tudo? Pág. 113 “Qualquer coisa que eu pudesse aprender teria de se justificar não em função do interesse de terceiros, mas antes em termos de enriquecimento pessoal. As minhas descobertas destinar-se-iam a encorajar-me: deveriam ser, de uma maneira ou de outra, «estimulantes vitais». A expressão é de Nietzche. (…) Tendo dado ao seu ensaio o título de Sobre a Utilidade e os Prejuízos da História para a Vida, Nietzche começava pela afirmação extraordinária segundo a qual a recolecção de factos conduzida em termos quase-científicos era uma investigação estéril. O verdadeiro desafio era a utilização dos factos para estimular a «vida». Citava a propósito uma frase de Goethe: «Odeio tudo o que se limita a instruir-me, mas sem aumentar-me ou revigorar directamente a minha actividade». Pág. 114 “Que poderia significar o preceito de extrairmos das nossas viagens conhecimentos «para a vida»? Nietzche procedia a umas quantas sugestões. Imaginava uma pessoa que, deprimida com o estado da cultura alemã e de todas as medidas destinadas a melhorá-la, viajava até uma cidade italiana, como Siena ou Florença, onde descobria que o fenómeno amplamente conhecido a que se dá o nome de «Renascimento Italiano» fora obra apenas de um punhado de italianos que, com sorte, perseverança e o apoio de mecenas oportunos, tinham conseguido transformar o humor e os valores de uma sociedade inteira. O turista em causa aprenderia assim a buscar nas outras culturas «o que no passado foi capaz de expandir a ideia do “homem” e de a tornar mais bela». Uma e outra vez, há seres que despertam e que, alimentados pela reflexão sobre a grandeza passada, são inspirados pelo sentimento de que a vida do homem é uma coisa grandiosa.» Nietzche sugeria uma segunda variedade de turismo, que nos fizesse descobrir como as nossas sociedades e identidades foram formadas pelo passado, proporcionando-nos assim a aquisição de um sentido de continuidade e de pertença.” Pág. 115 “ Os exploradores do território que tinham chegado primeiro e descoberto factos, haviam estabelecido, ao mesmo tempo, as suas distinções relativas ao que era e ao que não era significativo, as quais, com o passar do tempo, acabariam por se petrificar em verdades quase imutáveis acerca do que valia ou não a pena em Madrid. A Plaza de la Villa tinha uma estrela, o Palacio Real duas estrelas, o Monasterio de las Descalzas Reales três estrelas, e a Plaza de Oriente – estrela nenhuma.

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As distinções estabelecidas não eram necessariamente falsas, mas exerciam efeitos perniciosos. Aclamando certos lugares, o texto dos guias intimavam o visitante a aderir ao seu próprio entusiasmo autorizado; omitindo outros, desencorajavam o prazer ou o interesse. (…) Humboldt Não sofreu intimidações incomparáveis. (…)Pôde definir asa suas próprias escalas de valor sem experimentar a necessidade de observar ou contestar deliberadamente as hierarquias estabelecidas por terceiros. Como é que nasce a curiosidade acerca dos lugares? Pág. 118 “Como é possível que alguém se interesse pela altitude precisa do lugar onde vê uma mosca? Como é possível que se lembre de se preocupar com o trecho de musgo que cresce numa crista vulcânica com dez polegadas de largo? Tratava-se de uma curiosidade que estava muito longe de ser espontânea; a preocupação de Humboldt tinha uma longa história. A mosca e o musgo atraíam a sua atenção porque se associavam a outros interesses anteriores, de maior envergadura, e mais acessíveis à compreensão do profano. (…) «Como é que funciona a natureza?» (…) Se as circunstâncias e a nossa maneira de ser o permitirem, continuaremos a trabalhar nestes problemas na idade adulta, e a nossa curiosidade referir-se-á a regiões cada vez mais extensas do mundo, até ao momento em que, passado certo ponto, deixa de haver coisas propriamente desinteressantes. As grandes interrogações globais expandem-se de modo a incluir outras mais pequenas e que aparentemente lhes são estranhas. Pág. 124 “Para Humboldt, a pergunta fora: «Porque existem as variações regionais que encontramos na natureza?» Para alguém que parasse diante da Igreja de San Francisco el Grande, deveria ser talvez: «Porque sentem as pessoas a necessidade de construir igrejas?», ou até mesmo: «Porque adoramos Deus?». Talvez este primeiro ponto de partida ingénuo seja de molde a introduzir motivos de curiosidade capazes de nos levarem a outras perguntas, do tipo: «Por que razão, em diferentes lugares, as igrejas são também diferentes?», «Que estilos principais podemos descobrir nas diferentes igrejas?», e «Quais foram os principais arquitectos das igrejas, e quais as razões do seu êxito?» Só por meio deste trajecto gradual de uma curiosidade em evolução poderá o viajante que olha o que tem á sua frente dar às informações que lhe dizem que a grande fachada neoclássica foi obra de Sabatini um sentido do qual extraia algo melhor que um sentimento de tédio ou desespero. Um dos perigos em que incorre quem viaja é o de ver as coisas antes de tempo, quer dizer antes de ter tido a possibilidade de lhes preparar uma recepção adequada, o que faz com que as novas informações que lhe são fornecidas sejam, do seu ponto de vista, tão inúteis e esquivas como as contas de um colar sem o fio que as encadeie.” Pág. 126 “Quem visita Madrid é assim intimado a interessar-se aqui pelo Palacio Real, edifício setecentista destinado à residência do monarca e da sua família, que é célebre pelos seus interiores rococó, desenhados pelo napolitano Gasparini e luxuosamente decorados de motivos de inspiração «chinesa», e a interessar-se ali, poucos instantes depois, pelo Centro de Arte Reina Sofia, uma galeria de paredes caiadas e consagrada à arte do século XX, cuja principal atracção é a Guernica de Picasso. Mas a verdade é que o itinerário natural para alguém que quisesse aprofundar a sua capacidade de apreciação da arquitectura real do século XVIII seria ignorar a referida galeria, visitando em vez dela os palácios de Praga e de Sampetersburgo.

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A viagem distorce a nossa curiosidade vinculando-a a uma lógica geográfica superficial, tão superficial como seria a de um programa de estudos universitário que fixasse as suas indicações bibliográficas considerando o volume de cada livro em vez do seu conteúdo.” A apologia do campo por Wordsworth Pág. 133 “Pois embora o esplendor outrora claro Hoje se esconda e fuja ao meu olhar, E nenhuma hora possa ser de novo Nem o esplendor na relva nem a glória em flor, Em vez de luto é força que nos dá A vida que deixámos para trás

Ode: Intimations of Immortality, X

Pág. 136 “À expressão da alegria subjaz, na poesia de Wordsworth, uma filosofia da natureza plenamente elaborada, que informa toda a sua obra e veicula uma teoria, original e cuja influência se faz sentir com força na história do pensamento ocidental, que reflecte tanto sobre as condições que a felicidade requer como sobre a génese da nossa infelicidade. O poeta considera que a natureza, que é constituída, entre outros elementos, pelas aves, os cursos de água, os narcisos, os rebanhos de ovelhas, representa um antídoto indispensável frente à intoxicação psicológica decorrente da vida na cidade. Pág. 140 “…[a Natureza] pode assim dar forma Ao nosso espírito íntimo, imprimir Em nós beleza e paz, levar tão alto O pensamento, que nem línguas más, Nem juízos vãos, nem esgares dos egoístas, Nem suas frias saudações, como nem todo O peado comércio do dia-a-dia, Contra nós poderão prevalecer, Ou contra a fé que temos nessa bênção A que em tudo nos fiamos.”

Wordsworth

Pág. 146 frente ao espírito embriagado Pelos objectos presentes, e a agitada Dança de quanto passa, a imagem sóbria Das coisas que perduram

Wordsworth

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“A natureza, segundo pensava [Wordsworth], infundia-nos a disposição de buscarmos na vida e uns nos outros «quanto há de bom e desejável». Era uma «imagem da recta razão», de molde a moderar os impulsos distorcidos da vida urbana. Malefícios da cidade segundo Wordsworth Pág. 138 “O poeta acusava as cidades de alimentarem toda uma prole de emoções devastadoras da vida: a incerteza ansiosa de cada um acerca da sua posição na hierarquia social, a inveja perante o sucesso alheio, a vaidade e o desejo de surpreender os olhos de terceiros e dos estranhos. Sustentava que os habitantes da cidade eram desprovidos de sentido da perspectiva, que se deixavam escravizar pelos comentários que se faziam ouvir na rua ou à volta da mesa da sala de jantar. Por mais abastados que fossem, eram presas de um desejo incessante de coisas novas, das quais não tinham realmente necessidade e que também nunca seriam capazes de os fazer felizes. E na agitada e apinhada esfera da cidade parecia mais difícil que numa casa rural isolada a instauração de relações autênticas como outrem. «Havia um pensamento que me confundia», escrevia Wordsworth ao reflectir sobre o tempo em que residira em Londres, «como era possível que os próprios vizinhos que moravam porta com porta fossem como estranhos uns para os outros, chegando ao ponto de ignorarem os nomes uns dos outros». A gramática da Natureza segundo Wordsworth Pág. 147 “os espectáculos da natureza possuem o poder de nos sugerir certos valores (dignidade, os carvalhos; os pinheiros, resolução; os lagos, serenidade), e, por conseguinte, uma força do mesmo modo susceptível de, sem no-la impor, nos inspirar discretamente na virtude. Numa carta do Verão de 1802, dirigida a um jovem estudante, enquanto discute a missão da poesia, Wordsworth caba por especificar certos valores que, aos seus olhos, a natureza encarna: «Um grande Poeta …deverá de certo modo rectificar os sentimentos dos homens…tornar os seus sentimentos mais sãos, puros e constantes, numa palavra, mais em conformidade com a Natureza.» Em qualquer paisagem natural, Wordsworth descobria testemunhos de saúde, de pureza e de constância semelhantes. Assim, as flores, por exemplo, eram modelos de humildade e mansidão. (…) Os animais convertiam-se em modelos de estoicismo. Pág. 149 “Uma das ambições poéticas de Wordsworth era levar-nos a ver a multiplicidade dos animais que vivem ao nosso lado, mas que significativamente nós ignoramos, limitando-nos a olhá-los distraidamente e de passagem: vagas presenças genéricas, uma ave no alto da torre da igreja, uma qualquer coisa que restolha no matagal. Convidava os seus leitores a abandonarem as suas perspectivas habituais e a considerarem por um momento o aspecto que teria o mundo segundo o olhar dos animais, operando um vaivém entre a sua perspectiva humana e a perspectiva natural. Por que razão poderemos achar isto interessante, ou, mais do que isso, inspirador? A resposta é que a nossa infelicidade talvez nasça da incapacidade que temos de assumir mais que uma perspectiva única. Reportando-se aos primeiros poemas de Wordsworth, Coleridge argumentava que o seu génio fora «dar o encanto da novidade às coisas de todos os dias, e excitar uma sensibilidade análoga ao sobrenatural, despertando a atenção do espírito da letargia do hábito, e orientando-a para a amabilidade e as maravilhas deo mundo que temos diante de nós; tesouro inesgotável, mas

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perante o qual, toldados pelo véu das aparências familiares e das preocupações egoístas, temos olhos que não vêem, ouvidos que não ouvem, e corações que não sentem nem compreendem.» Pág. 150 (…) Wordsworth sustentava que a «amabilidade» da natureza era de molde a incitar-nos à busca do bem dentro de nós. Dois seres humanos no topo de um rochedo que dá sobre uma ribeira e um nobre vale coberto de arvoredo não transformam apenas a relação que mantêm com a natureza, mas talvez transformem, significativamente, também a que os liga um ao outro. Há preocupações que se tornam obscenas na companhia de um rochedo; outras, às quais os rochedos oferecem uma confirmação natural, uma vez que a sua grandeza estimula no nosso íntimo a resolução e a generosidade, e as suas dimensões nos ensinam a respeitar de bom grado e com uma admiração humilde aquilo que nos ultrapassa. Evidentemente, continua a ser possível invejar-se um colega diante de uma grandiosa catarata. Mas, se dermos ouvidos à mensagem de Wordsworth, a inveja será, apesar de tudo, menos provável. O poeta afirmava que, ao longo de uma vida passada em contacto com a natureza, temperara o seu carácter com a força de resistir à competição, à inveja e à ansiedade (…)” Lugares do tempo segundo Wordsworth Pág. 152 “Décadas mais tarde, os Alpes continuavam a viver no íntimo de Wordsworth e exerciam sobre ele um efeito revigorante sempre que os evocava. A sua permanência interior levariam o poeta a sustentar que certos espectáculos que testemunhamos na natureza nos acompanharão ao longo de toda a vida e que, sempre que os trouxermos à consciência, serão apar nós uma força de combate e de alívio frente às dificuldades do presente. Foi a estas experiências que chamou «lugares do tempo». Há na nossa existência lugares do tempo, Que preservam em clara permanência Uma virtude que renova… Que nos penetra e faz subir mais alto Quando é alto que estamos, e caídos nos levanta.” Lugares do sublime Pág. 164 “O amanhecer no Sul do Sinai. Que sentimento é o que se experimenta, então? O sentimento que engendra um vale formado há quatrocentos milhões de anos, uma montanha de granito de dois mil e trezentos metros de altura e a erosão milenar que se inscreve nas paredes de uma série de ravinas escrapdas. Num ligar assim, o homem parece não ser mais que pó adiado: é o sublime como encontro que é fonte de prazer e embriaguez com a nossa fragilidade confrontada com o vigor, a idade e a dimensão do universo. (…) A sua [de Burke, na obra A Philosophical Enquiry into the Origino f Our Ideas of the Sublime and Beautiful] posição era categorical: o sublime associava-se a um sentiment de fraqueza. (…) «Confundem-se muitas vezes as ideias do belo e do sublime», queixava-se Burke. (…) Uma paisagem só pode suscitar a emoção do sublime quando sugere força, uma força maior que a dos humanos e que os ameaça. Os lugares sublimes encarnam um desafio à nossa vontade.”

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Pág. 165 “Mas, porquê o prazer? PorquÊ buscarmos o sentimento da nossa pequenez – comprazendo-nos nela? (…) PorquÊ contemplar com regozijo em vez de desespero leitos de granito e cascalho escaldante e a lava solidificada de montanhas que se desenrolam na distância até os seus cumes se dissolverem na linha dos contornos de um céu implacavelmente azul? Uma resposta pode ser que nem tudo o que é mais fortre do que nós nos é necessariamente odioso. O que desafia nossa vontade pode provocar ira e ressentimento; mas também admiração e respeito. (…)Sentimo-nos humilhados pelo que é poderoso e mesquinho, mas experimentamos admiração pelo que é poderoso e nobre.” Pág. 167 “Os lugares sublimes transpõem para um outro nível uma lição que a vida corrente ministra em termos peculiarmente viciosos: o universo é mais poderoso que nós; nós somos seres frágeis e efémeros e não temos outra alternativa que não seja aceitarmos limitar a nossa vontade; devemos inclinar-nos perante necessidades que nos ultrapassam. Tal é a lição escrita nas pedras do deserto e nos campos de gelo dos pólos. Escrita com tanta grandeza, todavia, que voltamos desses lugares, não esmagados, mas inspirados pelo que está para além de nós; como se fosse um privilégio descobrirmo-nos vinculados a necessidades tão soberanas. O sentimento do respeito que nos toma pode então chegar ao ponto de se combinar com um desejo de adoração. 6. Uma vez que aquilo que é mais poderoso do que o homem recebeu tradicionalmente o nome de Deus, não é surpreendente que, no Sinai, comecemos a pensar na divindade.” A revelação pela arte Pág. 186 O que distinguia, segundo Van Gogh, qualquer grande pintor era o modo como a sua pintura nos ensinava a ver mais claramente certos aspectos do mundo. Se Velásquez foi o seu guia na matéria dos cinzentos e dos toscos rostos das robustas cozinheiras, Monet foi-o no que se refere aos poentes, Remabrandt à luz matinal e Vermeer às adolescentes de Arles (…). O céu que cobria o Ródano depois de uma chuvada forte fazia-o pensar em Hokusai; as searas em Millet, e as raparigas das Saintes-Maries de la Mer, em Cimabue e em Giotto. Pág. 188 “Dois artistas realistas poderão ter diante de si o mesmo olival, tirando dele dois estudos divergentes. Toda a pintura realista se baseia na selecção de determinados caracteres da realidade, que define como prioritários, uma vez que, como mordazmente Nietzsche fazia notar, não há pintura que nos restitua a totalidade desses caracteres (…) Quanto a nós, o facto de a obra de certo pintor convir às nossas preferências, significará que aprovamos o critério segundo o qual seleccionou os traços que lhe pareceram essenciais da paisagem considerada. Há selecções tão penetrantes que acabam por redefinir o lugar que representam, a tal ponto que o viajante não pode visitá-lo sem ter na memória o que nele viu um grande artista.”

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Pág. 191 “Alguns anos depois da estadia de Van Gogh na Provença, Oscar Wilde afirmava que o fog de Londres não existia antes de Whistler o ter pintado. Decerto, os ciprestes da Provença seriam poucos, antes de Van Gogh os ter pintado.” O peso da História e do marketing artístico na valorização de certas regiões Pág. 206 “Os historiadores sustentam que boa parte dos campos de Inglaterra, da Escócia e do País de Gales era tendencialmente ignorada em termos de gosto antes do século XVIII. Regiões que seriam mais tarde exaltadas pela sua inquestionável beleza natural – o Vale de Wye, as Highlands da Escócia, a Região dos Lagos – tinham sido, ao longo dos séculos, realidades indiferentes, senão desprezadas. Ao visitar a Região dos Lagos por volta de 1720, Daniel Defoe descrevê-la-ia como «estéril e assustadora». Na sua Viagem às Ilhas Ocidentais da Escócia, o doutor Johnson escreveu que as Highlands eram «rudes», desgraçadamente desprovidas dos «adornos da vegetação» e formavam «uma vasta extensão de esterilidade sem remédio». Pág. 207 “Os que tinham posses que lhes permitissem viajar procuravam o estrangeiro. (…) Infelizmente para as obras da natureza britânica, durante um período muito prolongado, poucas foram as obras de arte a parecerem-se minimamente com elas. E contudo, ao longo do século XVIII, essa escassez foi sendo ultrapassada pouco a pouco, do mesmo modo que, numa misteriosa simultaneidade, se modificava também a hostilidade que os britânicos opunham à ideia de viajarem pelas suas ilhas.” Pág. 208 “Os pintores começavam também a interessar-se pelo país. Lord Shelburne encomendou a Thomas Gainsborough e a George Barrett uma série de composições paisagísticas para Bowood, a sua casa de Wiltshire, declarando o seu intuito de «lançar as primeiras pedras de uma escola da paisagem britânica». Richard Wilson pintaria o Tamisa nos arredores de Twickenham; Thomas Hearne, Goodrich Castle, Philip James de Louthenbourg, a Abadia de Tintern, e Thomas Smith, Derwentwater e Windermere. Ao mesmo tempo que este processo conhecia o seu início, verificava-se também uma explosão do número dos que começavam a viajar nas ilhas britânicas. Pela primeira vez, o Vale do Wye era copiosamente percorrido por turistas, e o mesmo se poderia dizer das montanhas do Norte de Gales, da Região dos Lagos e das Highlands escocesas – episódio que parece confirmar plenamente a tese segundo a qual tendemos a procurar nas nossas viagens essas parcelas do mundo previamente escolhidas pelos artistas como temas dos seus quadros ou dos seus livros. Pode haver, decerto, uma elevada dose de exagero na teoria, como talvez seja sensivelmente exagerado afirmar que ninguém se dava conta do fog londrino antes de Whistler ou dos ciprestes provençais antes de Van Gogh. A arte não pode, por si só, criar o entusiasmo, e a verdade é que também não irrompe de sentimentos que sejam estranhos aos que não são artistas; limita-se a contribuir para esse entusiasmo e ajuda-nos a tomarmos uma consciência mais plena de impressões que talvez já tivéssemos experimentado antes, mas num registo sumário ou apressado. Em todo o caso – como o posto de turismo de Arles parecia ter compreendido -, pode constituir um factor cuja influência se fará sentir quando escolhermos o destino da nossa viagem do ano que vem.”

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A beleza nas viagens … Pág. 214 “Um dos impulsos que nos dominam quando encontramos a beleza é o desejo de a prendermos: de a possuir e de lhe dar um lugar maior nas nossas vidas. É como se nos premisse a vontade de dizermos: «Estive aqui, vi-a e isso foi fundamental”. A posse da beleza através da fotografia Pág. 215 “Mas a beleza é fugidia, descobrimo-la por vezes em lugares aos quais nunca voltaremos, ou então como resultado de uma rara combinação entre coisas como a estação do ano, a luz e as condições meteorológicas. Como será, então, possível possuí-la (…)? (…) A máquina fotográfica é uma opção possível. Tirando fotografias podemos aliviar o desejo de posse que a beleza de um lugar suscita em nós; a nossa ansiedade talvez acalme um pouco no momento em que carregamos no botão. Pág. 220 “A técnica pode ter tornado a beleza mais acessível, mas não simplificou o processo de nos apropriarem dela ou de aprendermos a apreciá-la.” Págs. 221 e 222 “Contudo, o entusiasmo de Ruskin diminuiu à medida que foi podendo aperceber-se do problema infernal que a fotografia representava para a grande maioria dos seus cultores. Em vez de se servirem da fotografia como um suplemento da visão activa e consciente, utilizavam-na como uma alternativa em relação a esta última, prestando menos atenção que antes ao mundo, abandonando-se à convicção de que a fotografia lhes assegurava de modo automático a posse do mundo. (…) A máquina fotográfica esbate a distinção entre olhar e apreender, entre ver e possuir; pode proporcionar-nos a alternativa de um conhecimento autêntico, mas pode também fazer com que involuntariamente dispensemos por supérfluo o esforço necessário à sua aquisição. Sugere que todo o trabalho está feito quando tirámos uma fotografia, quando a incorporação efectiva de um lugar, de uma floresta por exemplo, implica que nos ponhamos uma série de questões do tipo: «Como é que os troncos se ligam às raízes?», «De onde vem o nevoeiro?», «Porque é que vemos uma árvore mais escura que outra?» - questões que o processo de esboçar um desenho levanta implicitamente, e às quais também implicitamente responde. A posse da beleza através do desenho Págs. 223, 224 “O desenho revela-nos brutalmente a nossa anterior cegueira perante a verdadeira aparência das coisas.” (…) Outro benefício que podemos obter do desenho é uma compreensão consciente das razões que presidem à atracção que experimentamos por certas paisagens e construções. Descobrimos motivos que explicam os nossos gostos, definimos uma «estética», e a capacidade de formular juízos sobre a beleza e a fealdade. Determinarmos mais precisamente o que falha num edifício que nos desagrada, e o que contribui para a beleza de um outro que nos agrada. Tornamo-nos mais ágeis quando se trata de analisarmos um espectáculo que nos impressiona e de descobrirmos qual a origem da sua força. (…) Passamos de um desajeitado «gosto» ao «gosto porque…», e, em seguida, a uma generalização sobre o que é «gostar». (…) E na base desta atenção consciente, a memória torna-se mais segura.”

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Pág. 226 “Uma das características dos lugares que nos atraem é a de nos fazerem tomar consciência da nossa inépcia verbal.” (…) Ruskin teria responsabilizado pela miséria desta prosa mais a preguiça que a incapacidade. Sustentava que todos somos capazes de uma prática adequada do pintar com as palavras. Os nossos fracassos na matéria eram simplesmente consequência de não nos pormos suficientes perguntas, da nossa imprecisão quando se trata de analisar o que vimos e sentimos. (…) Pode ser que o produto final a que cheguemos não seja uma obra de génio, mas terá sido pelo menos causado pela busca de uma representação autêntica da experiência.” Pág. 229 “Ruskin reconhecia que são muitos os lugares que achamos belos, não em função de critérios estéticos (a combinação das cores, a simetria, a proporção), mas através do recurso a critérios psicológicos, quer dizer, pelo facto, de encarnarem certo valor ou humor que nos importam. O poder de influência da altura do dia em que vemos as coisas… Pág. 232 “ À luz do Sol, aquelas instalações pareceriam sem dúvida banais, repelindo as perguntas possíveis, com a mesma eficácia com que as suas janelas repeliam os olhares. Mas a noite subvertia a sua proclamação de normalidade; permitia-nos ver o interior dos escritórios e que nos surpreendêssemos com o cenário insólito, assustador e admirável que constituíam. Os escritores encarnavam uma imagem de ordem e cooperação entre milhares de pessoas e, ao mesmo tempo, um regime disciplinar e pesado de tédio. A respeitabilidade da visão burocrática das coisas via-se minada ou, pelo menos, posta em questão pela noite. Pág. 233 “No escuro, perguntávamo-nos para que serviam tantas pastas de documentos e computadores: não era que fossem necessariamente supérfluos, mas tornavam-se mais insólitos e expostos à dúvida do que à luz do dia podiam parecer. (…) A verdade é que, pelo menos, tentara seguir uma via daquilo que Ruskin considerava ser o duplo propósito da arte: dar sentido à dor e tornar-nos acessíveis as fontes da beleza.” A grande fonte de prazer das viagens que fazemos… Pág. 242 “…o prazer que extraímos das viagens talvez dependa mais do estado de espírito com que as empreendemos do que do destino que lhes fixamos. (…) O que vem, então, a ser um estado de espírito de viajante? Podemos dizer que a receptividade é a sua característica fundamental. Aproximamo-nos de cada lugar humildemente, sem ideias preconcebidas sobre o que possam ter de interessante. Irritamos os habitantes locais quando nos detemos nas zonas pedonais e nas ruas estreitas, admirando o que eles consideram insignificantes pormenores com uma atenção que consideram extravagante. Corremos o risco de ser atropelados por estarmos a olhar para o telhado de um edifício governamental ou uma inscrição mural. Descobrimos um supermercado ou um salão de cabeleireiro insolitamente fascinantes. Estudamos com todo o vagar a apresentação de uma ementa ou a maneira como estão os apresentadores do telejornal da noite. A reinvenção do olhar como fonte de prazer Pág. 243 (…) Em contrapartida, na nossa terra, as nossas expectativas limitam-nos. Acreditamos firmemente ter já descoberto tudo o que há-de interessante no bairro, o que acontece sobretudo

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pelo facto de já aí morarmos desde há muito tempo. Parece-nos inconcebível a possibilidade de termos ainda alguma coisa a descobrir num lugar onde vivemos há dez anos ou mais. Estamos habituados a isso e, por isso, cegos.” O prazer de viajar sozinho Pág. 248 “Parecia-me que viajar sozinho tinha as suas vantagens. A maneira que temos de responder ao mundo é fortemente inflectida pela presença daqueles que nos acompanham: gerimos a nossa curiosidade em vista de nos ajustarmos às expectativas alheias. A imagem particular que os outros formam acerca daquilo que somos recalca, por vezes, certos aspectos da nossa personalidade. «Nunca pensei que te interessasses tanto por viadutos», ouviremos, por exemplo, dizer-nos uma voz, cujo som nos intimida. A observação atenta por parte de alguém que nos acompanha poderá inibir também a nossa própria observação dos outros, fazem com que nos limitemos à tarefa de respondermos às suas perguntas e opiniões e, em suma, nos comportemos assim mais normalmente do que conviria à nossa curiosidade.” O prazer dependente do viajante Pág. 249 “…Nietzche, que lera e admirara De Maistre (e passara muito tempo no seu próprio quarto), reiterou a mesma ideia: Quando observamos como certas pessoas sabem tratar as suas experiências – as suas experiências insignificantes, as suas experiências quotidianas – de maneira a torna-las um solo arável que dá fruto três vezes por ano, enquanto outras – e são tantas! – são arrastadas pelas vagas revoltas do destino, pela extrema multiplicidade das correntes dos tempos e das nações e, no entanto, conseguem manter-se sempre á tona, flutuando como uma cortiça, acabamos por nos sentir tentados a dividir a humanidade entre uma minoria (uma minimalidade), constituída por aqueles que do pouco sabem fazer muito, e uma maioria, a daqueles que do muito sabem fazer pouco. Conhecemos pessoas que atravessaram desertos, cruzaram calotes glaciares e abriram caminho nas selvas – e seria, contudo, em vão que buscaríamos no seu espírito sinais daquilo que viram. Com os seus pijamas rosa e azul, satisfeito no interior das fronteiras do seu próprio quarto, Xavier de Maistre convida-nos amavelmente a que tentemos, antes de soltarmos amarras rumo a hemisférios distantes, prestar atenção ao que já vimos.”

Sónia Pereira