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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 —JOSÉ JANSEN ........................................ A máscara no culto, no teatro e na tradição

2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON ......................................... José Lins do Rego

3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores

4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE ..................................................... Viola de Bolso 5 — Lúcio COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira 0 — Lúcio COSTA ....................................... Considerações sobre a Arte Contem

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado

9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes 10 — ANTÔNIO CÂNDIDO .............................. Monte Cristo, ou do Vingança 1) — Luís COSME ......................................... Música e Tempo 12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... Miro 13 — OTÁVIO DE FARIA ................................. Significação do Far-West

14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte

15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro. Realidade Mágica 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantes

17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto

18 — GILBERTO FHETRE .............................. José de Alencar 19 — CLARISSE LISPECTOR ........................ Alguns Contos

20 — MÁRIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna

21 — ROSÁRIO FUSCO ................................. Introdução a Experiência Estética 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................... Realidade e Ficção

23 — DANTE COSTA .................................... O Sensualismo Alimentar

24 __ LEDO Ivo ........................................... Lição de Mário de Andrade 25 — EUGÊNIO GOMES .................................. O Romancista e o Ventríloquo 26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens. Seres e Coisas 27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ...................... Cinqüenta Anos de Literatura

29 _ ALEXANDRE PASSOS .............................. A Imprensa no Período Colonial 30 — MANOEL DIÉGUES JÚNIOR _______ Etnias e Culturas no Brasil 31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo

Continua na 3a página.)

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ROBERTO ALVIM CORRÊA

HEBE

OU DA EDUCAÇÃO

(Fragmentos de um diário)

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

S E R V I Ç O DE DOCUMENTAÇÃO

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A Brito Broca

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"Je veux accomplir mon destin qui est de dire ce qui est en moi". . . "Tout ce que j'écris procède en droite ligne de mon enfan-ce"... (1)

Julien Green

Não se trata nas notas e citações que se seguem nem mesmo de um esboço de estudo pedagógico ou didático, mas de fragmentos mal ordenados de um diário que escrevi pensando em jovens e também em mais velhos. Em companhia de Hebe, deusa da juventude, apenas registrei durante umas semanas, um pouco do que tive ensejo de observar, nos outros e em mim.

( 1 ) Só vêm logo reproduzidas em portugués as citações cuja tradução não parecia alterar nem o tom nem o ritmo originais. Encontra-se a tradução das outras no fim destas páginas.

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que entendo eu de educação? Pouco. Tão pouco quanto entendo a mim mesmo.

Então ? Mas esse pouco importa e me faz crer que o assunto permanece inseparável daquilo que sabemos e conseguimos de nós mesmos. Assim, sei que na minha vida, que vejo como se fosse uma árvore, já alta no tempo que me fôr concedido, tentei cortar galhos, consolidar outros, orientar o conjunto, e até deixá-lo simplesmente crescer. Essas atitudes correspondiam a ritmos diferentes de uma educação particular : educando a mim mesmo eu aprendia a viver e vivendo educava-me. O que digo a fim de que as linhas que se seguem sejam consideradas apenas como observações pessoais, e algumas talvez demasiadamente, que só empenham quem as fêz e nem sempre se relacionam bastante, aparentemente pelo menos, com educação.

DUCAR : fornecer ao próximo meios de "governar a vida". Esta arte de viver supõe a procura da felicidade (palavra ambígua mas não encontro outra). Existem figuras exemplares, os santos — Paulo, Agostinho, Francisco de Assis. Será que mergulharam mais fundo em nós do que homens quais Epicuro (segundo parece), Montaigne, Goethe? Não. Mas, para o santo,

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o problema difere. O ponto de partida è um ato de fé (que implica amor e esperança) na palavra do Cristo, numa mensagem divina. O santo desiste do que chamamos a personalidade para se submeter em tudo e por tudo a uma ordem de vida considerada integral, infalível, libertadora.

RATEMOS de desenvolver, antes de tudo, na criança,

valores morais (cs sentimentos da justiça, da solidariedade, o gosto da verdade, a consciência da responsabilidade) . Nada mais urge do que formar o caráter, e aliás, não só o caráter, mas também a inteligência, ambos simultaneamente.

LAÜDE Edmonde Magny observa judiciosamente : '0 melhor pai não é aquele que quer seus filhos em tudo parecidos com êle".

PROBLEMA social da educação não deixa de ser também eminentemente, um problema pessoal que nunca para de colocar o educador diante da sua consciência e da consciência alheia. Uma criança de dez anos precisa entender por que procedem com ela de certa maneira. Tem, o sentimento da justiça e da cooperação. Já não obedece apenas passivamente.

DUCAR os filhos dos outros é uma coisa, outra, educar os nossos.

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ossos filhos custam a entender que poderiam nos ajudar em ajudá-los. Mas será que temos sempre razão contra eles?

EDUCAÇÃO coletiva (internatos, casas de correção, etc.) é indispensável e até salutar em muitos casos, mas também lastimável em muitos outros por favorecer na? crianças a hipocrisia, a delação, a covardia, as humilhações e quase todas as misérias. E sem ir tão longe, lembro-me: no colégio, as observações de certos professores tinham o dom de gerar veneno em alguns de nós.

Á tendo ouvido naquele dia muitas repreensões merecidas, meu caçula observou: "Mas, papai, porque você me fêz assim ?"

NSINAM coisa aos escolares, menos a observarem a realidade visível, o que lhes desenvolveria a faculdade de perceber e raciocinar — a sensibilidade e a inteligência.

A sala de espera do Ministério da Educação, várias pessoas sentadas (padres, religiosas e, suponho eu, professores) esperam sua vez de serem chamadas. Mas ninguém, nem um segundo sequer, manifesta o mínimo interesse pelo monumental mural de Portinari. E' exatamente como se este não existisse. Nem sei como conseguem não vê-lo. Mas a verdade é que não vêm nem o mural de Portinari, nem lá no fundo da

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sala, a estátua do profeta Isaias, do Aleijadinho, nem o rico tapete em forrna de palhête, sinuosamente repartido em diferente cores, azul, cinzento, marron, verde, O mundo exterior não parece existir para esses educadores .

ESDE menino, logo ao entrar num quarto desconhecido, c que faço primeiro é abrir a janela e olhar para fora. O prazer da descoberta e não sei bem que instinto de defesa talvez expliquem, em parte, meu gesto. E' por vezes útil tentar, interpretar nossos gestos, até aqueles que parecem os mais insignificantes.

Ão parou de chover estes últimos dias. A chuva quando discreta, exerce um efeito libertador. Modifica o ritmo da existência exterior que passa, assim, para o seu plano verdadeiro que é o segundo. A chuva intensifica a vida do espírito, da arte, dos sentidos. Nunca leio melhor, olho mais espontaneamente para um quadro, e percebo o que êle me traz de mais durável, do que quando chove suavemente lá fora. A chuva é minha melhor introdução a mim mesmo, como a noite a um tempo, minha perigosa e fecunda amiga.

HEGA o dia em que os pais têm juizes nos filhos — e está certo.

UANDO os pais prestam, os filhos também os educam. Obrigam os pais a terem virtudes que talvez começassem apenas por fingir. Mas os filhos denun-

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ciam cedo as verdadeiras tendências paternas, repentinamente surpreendidas num gesto, num olhar, num silêncio, numa entonação. Antes que o percebam os adultos, chega a idade em que falta pouco para quo os filhos saibam muita coisa dos pais, aos quais só resta amar deveras as virtudes que eles nem sempre amaram por inclinação espontânea.

ossos filhos nos educam. E nós queremos, por vezes, educar nossos velhos pais.

GALO de Esculápio, símbolo de incessante vigilância, poderia ser o de Minerva educadora, na ocorrência impiedosamente conscia do culto a que tem direito.

S cue pouco aprenderam da vida, também pouco aprenderam de si mesmos.

s crianças não opõem resistência nem às heredita-riedades que elas carregam, nem às influências da hora. O passado ancestral atua nelas tanto quanto o momento presente, e desse amálgama resulta uma química tanto mais incontrolável que, durante a infância, cada instante parece apagar aquele que o precedeu, como se a criança fosse apenas o espelho do minuto que passa. Aos poucos, porém, vem se compondo a figura para a qual nem sempre o que chamamos a educação terá a eficácia por nós desejada, E, no fundo, convém que assim seja, nesse sentido que é bom que exista uma

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margem em todo ser humano que escape à educação, boa ou má. E como, em geral, a educação não é boa, essa margem recalcitrante e misteriosa — o que temos de mais pessoal — constitui o elemento de uma salvação possível. O que seria das inúmeras crianças — a maioria — mal educadas, ou sem educação alguma, não existisse essa margem donde resulta o pior mas também o melhor, essa fonte da pessoa em que vivem a inteligência, a sensibilidade e tudo quanto faz que essas crianças mais tarde, homens e mulheres, terão que responder por seus atos ?

UCEDE que um filho de avarento seja generoso e um enjeitado um grande homem como, por exemplo uma das mais nobres figuras da história nacional, o padre Feijó, filho de pais incógnitos.

S linhas minúsculas des anúncios nos grandes jornais seguem-se mas não se parecem. Silenciosamente, a verdadeira eloqüência dos anunciantes, hoje, por motivos econômicos e outros, tornou-se mais ainda do que pascaliana: não comenta. Preste atenção, entenda, medite quem quizer. Que sacrifícios e misérias não escondem ou não revelam essas linhas perdidas nos jornais como crianças numa cidade? Que tragédia ou feliz mudança de destinos não são capazes de suscitar? Que mistérios e quantas vidas não empenham? E de que modo? Que arte supera a do acaso em contrastes, em antíteses? Exemplo: entre um anúncio que esqueci e outro, exatamente este: "Marmita. Fornece-se cozi-

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nha farta, sadia e variada", leio o seguinte, no Correio da Manhã: "A um casai sem filhos, ou a uma família rica, oferece-se uma menina clara e bonitinha, com 2 meses, com a condição que seja adotada como filha, tratar à rua da Matriz. 90, Botafogo".

DIREÇÃO da vida de um adolescente e até de um adulto pode depender de uma simples frase, por eles ouvida ou lida — frase que, nesse caso. nascera para ouvir ou lei .

ELO menos no plano considerado natural é justa a observação — quantas vezes milenar ? — modernizada por Cocteau, nos Entretiens autour du cinema, que leio hoje : "Trop nettoyer risquerait de tuer les microbes et les pourritures qui composent la vie. On a connu de ces Américaines qui mouraient à force de se purifier les organes. Elles expulsent d'elles le principe même de la vie qui relève de la vermine, quelquer désobligeante qu'en soit la constatation". E mesmo na vida moral — independentemente das origens — é verdade que também existe o "etiam pecata" agostiniano, o mal utilizado pelo bem, — e não há nada que nos dê maior idéia de Deus.

NAS crianças quase sem salvação possível? Deve-se tentar explicar-lhes que os próprios pais herdaram a ignorância e a miséria, males de todos, porém menos virulentos em uns do que em outros. E' preci-

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so que saibam o que pode ser um homem. Requerem essas crianças, por parte de quem a elas se dedicam sempre mais amor e competência. São vítimas, como o foram os genitores. Vamos ver que a linguagem destes por vezes é clara e, sem dúvida, em certos casos, excepcional, mas sem deixar por isso de ser significativa. Leio o seguinte no Correio da Manhã de 17 de abril de 1952 : "Temos, diz o padre Pedron, diretor do Serviço de Assistência ao Menor, de ir às vezes as raízes do mal, a fim de apurar as verdadeiras causas do desajustamento do menor. Tais causas são mais de educação moral, podendo-se destacar entre elas: a) os filhos de mães solteiras; b) as madrastas; c) os filhos adotivos; d) a falta de repressão na rua; e) o desequilíbrio na família; f) as desavenças entre os pais.

Justificando suas considerações o padre Pedron citou o caso de um cidadão que se estava desquitan-do, o qual ao ser interrogado sobre se podia aguardar um pouco mais a internação dos filhos que se achavam em sua companhia, declarara : "Esperar posso. mas estou separado da minha mulher e quero me ver livre das crianças. . .". Entre outros casos citou ainda o padre Pedron o de um menor que veio de Minas a pé, completamente abandonado. Respondendo a interrogatório que lhe foi feito, limitou-se a declarar que o pai se achava no Norte e a mãe no Rio Grande do Sul, acrescentando que sempre tivera mais confiança no seu cachorro e companheiro do que em qualquer outra pessoa.

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NSISTE, ignoro por que, uma pessoa amiga em me repetir que não lhe interessam as exceções (como se ela própria, com sua forte personalidade, não fosse excepcional). Mas ela devia saber que todos os casos excepcionais são interessantes e fazem entender melhor os casos considerados comuns. Além do mais, na escala ascendente dos valores, o mundo depende tanto dos seres excepcionais quanto dos outros — mais até que dos outros. Não se trata de negar a sempre necessária educação do maior número. Os problemas do povo são os mais urgentes, sem que nos impeçam perguntarmos se o plural importa sempre mais que o singular. Milhares de homens não substituiriam un: Moisés, um Platão ou um Bach na elaboração das leis que presidem ao mundo da moral, das idéias e da música. Aliás, plural e singular são solidários, embora comecem por se opor. Implica no plural o singular que não exclui o trabalho frutuoso, particularmente nas ciências, de equipes e que, superior, adquire um valor representativo, por exemplo, através de uma elite à qual pode estar eficientemente entregue o destino da humanidade.

PACIÊNCIA dos filhos para com os pais é angélica. Sucedem-se os: "Não faça isto... Donde vem?... Com quem andou ?. . . Porque ?. . . Tanto tempo?.. . Será possível que não possa fazer isso para sua mãe ?. . . Para seu pai ?. . . Ajude em vez de atrapalhar. . . Menino desajeitado. . . Responda!. . . Náo responda!... Me traga isso... não, aquilo... Já lhe disse mil vezes. . não, assim... Só pensa em brin-

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car... Só aparece na hora das refeições. . ." E mais tarde: "Preguiçoso... egoísta". Mais tarde ainda: "Ingrato". E até quase o fim haverá queixas. Paciência filial : a de quem sabe ser esse o preço, apesar de tudo módico, do amor demasiadamente atento, assim mesmo insubstituível, dos pais e sobretudo da mãe.

ABENDO que o filho o faria passar pela vergonha de não atendê-lo, o pai doente desse marmanjo desistiu de lhe pedir diante de nós, de levar creio que uma trouxa que não podia ficar onde estava. Quem, silencioso, carregou o embrulho foi o velho — resultado de lamentável fraqueza, sem dúvida. Mas qual de nós nunca poupou o filho para não expô-lo à censura pública?

NTEM estive na A.B.I. Crianças tocavam piano no auditório. Algumas delas, felizmente, tocavam mal. Deliciosamente mal e, per conseguinte, como convi-nha. Resistiam sem o saber aos conselhos professorais. Surpreendia-se nelas o instinto de querer tocar como crianças que eram. Elas é que tinham razão. As crianças não devem tocar, nem pensar, sentir, falar, se comportar como adultos. E nós devemos respeitar a sua condição de crianças, em vez de procurar matá-la. Em mais de um adulto há uma criança morta que. todavia, tinha algo a revelar.

OMOVE-ME tudo quanto, mesmo errado, faz viver em profundidade uma criatura.

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INFÂNCIA levou séculos para pertencer à literatura. Mas hoje. pertence-lhe para sempre e duplamente. Primeiro, como fonte de inspiração. O que v. literatura deve à infância e à adolescência é imenso. Em segundo lugar, existem livros admiráveis especialmente escritos para crianças.

OSTRAM-ME mais uma vez desenhos de crianças. Para elas, desenhar é brincar, tudo, aliás, se transforma no ato de brincar. Sentir, pensar, comer, dormir, existe em função de uma realidade que é brincar. Têm razão os pedagogos que baseiam no jogo a vida infantil, mesmo espiritual. Têm razão porque para as crianças náo podem ser coisas reais o que chamamos geografia, aritmética, zoologia ou física. São palavras abstratas que pertencem a um mundo tão distante de meninos de oito anos quanto a via láctea. Reais são uma fruta que se come, o gelo que derrete, uma montanha, um cachorro.

ARA a criança existe também o que pode ser imaginado. Imaginado, brincando. Imediatamente a gata se transformará em princesa, ou em onça, conformo o temperamento.

CRIANÇA desenha menos o que vè que aquilo que imagina. Assim mesmo precisa de um ponto de partida, como quando brinca. Para quem tem menos de dez anos brincar é o meio de participar de uma realidade que desenvolve as possibilidades do ser. Pro-

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curemos entender os jogos das crianças esperando que, por sua própria vontade, por seu próprio sentimento ou pressentimento, elas nos confiram a autoridade que há de fazer com que sejam ouvidos nossos conselhos.

UDO quanto se afasta por demais de princípios segundo os quais as crianças adquirem a consciência das suas responsabilidades para com seus mestres é processo de carcereiros com prisioneiros.

MUNDO é imagens" disse o poeta que naquele dia não se esqueceu de todo da infância, daquele tempo em que a imagem era mais verdadeira do que o pretexto que a provocara.

EM mesmo para uma criança é sempre fácil desenhar. E é bom que não o seja. O fácil não deve interessar nem a criança nem o adulto, e toda a questão, justamente, está no fato de que os educadores não devem deixar as crianças confundirem o di-fícil com o fastidioso.

TRAÇO infantil começa por ser uma linguagem quase cifrada. A imaginação acende-se logo : um círculo, e nesse círculo a criança vê um rosto, o sol, uma ilha. Vive ela numa intensidade que costumamos ignorar. Se um dia o mundo esgotar as suas possibilidades lineares, talvez a salvação nesse domínio venha

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da observação de desenhos de crianças. Com alguns traços felizes elas nos farão participar de uma emoção suscetível de acordar novamente nossa alma.

ESCA a infância, desde os cursos primários, seria bom prever uma iniciação lírica (não seria difícil sendo natural, nas crianças, o estado poético) por meio de uma educação da sensibilidade e da imaginação que permitissi; a essas faculdades ser o que devem : criadoras.

CABO de explicar por que me parece certo, certíssimo, o fato de instruir divertindo, como o preconizava Rousseau. Em compensação, não salientei o que nunca há de ser demasiadamente lembrado : a necessidade, bastante cedo, da intervenção da vontade, da disciplina, consideradas não apenas como armas sem es quais ninguém consegue nada, mas como meios de exigirmos sempre um pouco mais de nós mesmos.

ouço adianta ensinar à criança a não mentir, se perceber nossas mentiras e, quando lhe falamos nossas inúteis mentiras. Concordo com Gustavo Cor-ção quando, no seu livro Lições de Abismo, escreva com acerto e amor (o amor sempre acerta): "Por que se riem das crianças ? E sobretudo por que mentem ? Eu gostaria que alguém me explicasse esse tenebroso mistério. Mas agora é tarde, e eu morrerei sem saber por que é que não podemos ver

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criança sem que lego nos venha à boca uma mentira". Mas o remédio para a lealdade infantil consiste, não só em não mentirmos, mas em colocarmos a criança em condições em que não precise mentir. O que cia deve não é recear dizer a verdade, mas, pelo contrário, ter bastante confiança para confessá-la. O sentimento de ser irremediavelmente o mais fraco é que provoca a mentira, essa defesa humilhante mas, às vezes, a única, a última do mais fraco perante o mais forte — o qual, em certos casos, terá de responder pelas mentiras de suas vítimas.

ULTIVAR nas crianças o "espírito de família". Mas elas o têm naturalmente. Os que o perdem e se "livram" da família (em geral para criar outra) são os adultos. E em que consiste esse espírito ? Qual o espetáculo oferecido pela família em toda sua extensão: pais, filhos, irmãos, cunhados, sogros, tios, primos, padrastos, madrastas, enteados, meio irmãos, sem falar nos casamentos errados, nos desquites, etc? Um espetáculo que, no conjunto, nos faz pensar fosse mais fácil educar um regimento. A família é um laboratório das reações e experiências mais diversas, nem todas portanto edificantes (ó intrigas, inveja, e esse odioso "egoísmo familiar" denunciado por Gide!). Mas entre essas reações e experiências, muitas tam-bém estimulam sentimentos de dedicação e solidariedade, bem como a consciência das obrigações e da responsabilidade — e para cada um de nós, durante a infância, a família foi nosso universo na espera de tornar a sê-lo na última etapa da viagem.

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EiO nas Nouvelles Littéraires essa observação que dizem ser de Alphonse Daudet: "La vanité se porte EU dehors, encombrante comme un sac d'écus, l'orgueil se porte au dedans et reste invisible". Na verdade, forma ridícula e barata do orgulho, mais do que isso, proliferação devastadora, a vaidade obriga muitos a se comportarem de um modo que, se neles ainda existisse o orgulho, o golpearia intoleràvelmente.

OMO despertar nos jovens o sentimento da honra e, ao mesmo tempo procurar matar neles o orgulho? A honra pessoal ou coletiva (familial, nacional, social) sem orgulho é frágil. A palavra honra, aliás, perdeu o prestígio e anda substituída pelo substantivo dignidade. Falam muito, hoje, na "dignidade humana", assim mesmo mais do que nunca humilhada.

Á fora, hoje de manhã, abriu-se de repente o céu vivo, luminoso, marinho — e em mim uma janela sobre um mundo imenso, figurado por esse oceano azul com suas nuvens geográficas navegando.

s crianças não fogem à realidade; somos nós, adultos que a limitamos ao esquecer que tudo quanto nos faz viver ou morrer é suscetível de se tornar, um dia, realidade.

ECERI hoje uma carta do Carlos Alberto e outra do Walmyr. Nesses jovens como em outros que me escrevem ou me procuram, dominam a solidão, a angústia,

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o desejo de entenderem a si mesmos e ao mundo, de serem lúcidos, sinceros, se expressarem, saberem quem são.

IERRE de Borsdeffre tem ra2ão quando escreve no segundo volume de Métamorphoses de Ia Httérature: "L'adolescence est l'àge tragique par excellence. . . Rien n'est donné, tout est à conquérir, et chaque conquête s'accompagne d'un déchirement: il faut choisir, se choisir, se laisser mutiler, élire sans plaisir, repousser avec désespoir. L'adolescent a peur de vivre, il se heurte aux choses comme un grand animal maladroit, à 1'étroit dans des vêtements étriqués".

M que condições terão de viver esses jovens ? Num mundo em que nossos atuais filósofos pretendem não existirem mais leis morais válidas para todos e, por isso mesmo já não ter sentido a expressão "a natureza humana"; num mundo a um tempo feroz e frágil, num mundo desnorteado, O que ensinar aos nossos filhos ? Por exemplo, a redescobrirem em pro-fundidade o fenômeno cristão (ainda tão pouco estudado na realidade de cada um), a procurarem viver o que reivindicam, entre os escritores, homens como Dostoiewski, Bloy, Péguy, Claudel, Bernanos, Simone Weil. Escreve o sr. R. M. Albérès que entramos "na zona de tempestades e ciclones onde não adianta mais termos bússola". Alcançamos, sim, a zona pró-xima do tufão. Mas a verdade é que depois do cata-clismo, mais do que nunca nossos filhos precisarão

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de bússola, pois apesar do que pensa o sr. R. M. Albérès, a humanidade não pode "aprender a viver e e governar sem bússola".

EXATO que temos sempre de verificar de novo a autenticidade dessa bússola, relativamente ao que ela pretende indicar. O que seriam as palavras do Cristo se deixassem de ser sempre, novamente, experimentadas como verdadeiras ?

IVRE, o santo, pelo amor, rompe a solidão do homem . Ninguém mais do que êle tem o sentimento da solidariedade e da responsabilidade humana. Um cristão só se liberta e se salva procurando salvar os outros.

s adolescentes receiam os interrogatórios, direta ou indiretamente, indiscretos daqueles que, animados das melhores intenções, gostariam tudo saber deles. Mas querer esvasiar uma criatura dos seus mistérios e segredos, não necessariamente censuráveis, que lhe compõem a personalidade prejudicaria essa criatura, sobretudo na primeira fase da mocidade, durante a formação laboriosa do organismo, na zona noturna e fecunda do ser.

ARA a maioria, a questão do instinto sexual consiste apenas em satisfazê-lo. Para outros, a descoberta das suas exigências será a mais decisiva da vida. Procuremos então evitar que esse instinto se torne pérfido. Recalcado, é capaz de se transformar em

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veneno. Sucede também que, aparentemente domado, disfarça-se, anda fantasiado de virtudes que o escondem, aliás mal.

Ê-SE no Soulier de Satin, de Claudel : Dona Prouhèje — Eh quoi! Ainsi c'était permis? cet

amour des créatures l'une pour l'autre, il est donc vrai que Dieu n'en est pas jaloux? l'homme entre les bras de la femme. . .

L'ange gardien — Comment serait-il jaloux de ce qu'il a fait ? et comme aurait-Il rien fait qui ne lui serve ?

Dona Prouhèje — L'homme entre les bras de la femme oublie Dieu.

L'ange gardien — Est-ce l'oublier que d'être avec Lui ? est-ce ailleurs qu'avec Lui d'être associé au mystère de Sa création...?"*

RANDEZA e misèria da vida sexual.

NDE começa e acaba a vida sexual ?

Ais do que em qualquer outro domínio o que aqui salva um mata o vizinho.

OMO observa Colette : "Ces plaisirs qu'on nommer à la légère, physiques".

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ONVENCER, se possível, os moços que o instinto sexual poupado pode se tornar um reservatório de força, alegria, criação.

UNCA humilhar aqueles que têm dificuldades ou fraquejam. O desejo pode se confundir com o que temos de melhor em nós.

ONTHERLANT faz dizer a um padre educador: 'li n'y a qu'une chose qui compte en ce monde: l'affection qu'on a pour un être; pas celle qu'il vous porte, celle qu'on a. Avoir une affection, c'est cela qui donne le plus l'idée de ce que doit être le ciel".

ENDO a inteligência, a sensibilidade e a imaginação tributárias do instinto sexual, e vice-versa, acontece que este empenha todo o ser.

PUREZA (aquela que é amor, aliás não há outra) é chama: rói o que nos diminui, rói o que nos engana, escraviza, e ela entretem o que nos deixa inconscientemente crescer, nos faz conhecer a verdade, nos liberta.

QUELE que ousaria se considerar mais puro que os outros, não o seria. A pureza só pode ser inconsciente.

A pureza há sempre uma ferida e uma aventura : uma ferida no coração aberta, é a mais louca, mais intensa, mais nobre das aventuras.

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STAMOS de acordo e já o disse, especificando por que : a vontade é a "mola", a 'peça" humana essencial. Sem vontade, nem grandeza, nem obra, nem vida pessoal, familiar, social. Sem vontade nada é possível. Mas a utilização da vontade requer prudência. Terrível o homem que pensa : "Je suis maitre de moi comme de 1'univers." Nada mais funesto para os outros e para nós mesmos do que nossa vontade em estado de tensão excessiva, ou mal dirigida.

EIO no Paris-Match uma das últimas frases pronunciadas por Gide ainda lúcido: "Sempre a luta entre o razoável e aquilo que não o é". Luta imprescindível e fecunda. O menos razoável, porém, é que me parece o mais significativo, fora ou dentro do cris-tianismo, nos outros e em mim.

EU filho mais velho, 17 anos, falando de um com-panheiro da mesma idade :

"— V. sabe papai, o R. não costuma comer carne nas sextas-feiras.

— Gosto de católico assim. — Mas êle não acredita em nada. E' porque mora com

os pais, católicos fervorosos, então..." O' exemplo!

QUE é que afasta tantos jovens da religião? Nem sempre motivos baixos mas — quem sabe ? — o que fizemos do cristianismo, nós que pertencemos a uma

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época em que a maior parte da humanidade proclamou a morte de Deus.

Ão é paradoxo : tudo quanto é puro me perturba (o olhar de uma criança, a santidade, um diamante, um dia sem nuvens, etc.) — e a esse estado, quando dele tenho consciência, devo o pouco que sei de mim e dos outros.

NTRE os adolescentes educados na fé, muitos não a conservam. Os motivos que invocam em geral decepcionam. Na verdade não se lembram onde deixaram Deus, contudo ainda manifestamente perto deles.

ERÁ em mim ou a razão, ou um instinto, ou a lassidão, ou o eterno, ou ainda de um modo que pode parecer contraditório, isso tudo junto, que me faz aderir tão profundamente (como se eu não me cansasse de vivê-la com inesgotável avidez) à observação de Santo Agostinho reproduzida no romance Já citado de Gustavo Corção: "A Razão pergunta: "o que queres tu saber afinal?" e Agostinho responde: "conhecer Deus e minha alma, eis tudo o que quero saber".

HÁBITO é uma segunda natureza". Certíssimo. Tratemos de incutir bons hábitos aos nossos semelhantes, sobretudo se esses hábitos forem nossos (só o exemplo impressiona, segundo dizem). Acontece porém, que há criaturas que pensam mudar de natureza

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mudando de hábitos. Enganam-se: é mudando de hábitos que hão de ter maior consciência do que, irremediavelmente, elas são.

s pedagogos deveriam estudar a necessidade e os diferentes sentidos da evasão. A parábola do filho pródigo deixa entrever solicitações até certo ponto legítimas na mocidade. E' o que salientou Gide no seu livro A volta do filho pródigo. Sublinha em que consiste a tentação justificada e deixa no segundo plano o fim da parábola como o quis o Cristo — fim que ultrapassa a razão e coincide com a misteriosa e incompa-rável palavra do Evangelho: "Eu vô-lo digo haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos". Aliás, "Na casa do meu pai há muitas moradas".

STRÊLAS : folhas ou flores claras da arvore noturna, pálida e leve renda do infinito, companheiras e imagens do quase informulado em mim, porém, do mais vital.

TEMPO, a memória, a sensibilidade, o azul profundo e vasto (em que fogem as nuvens em debandada), o mar, poucos objetos trazidos da infância, a fé, o amor, a necessidade de me expressar, estabelecem a ligação entre aquele que fui e aquele que sou.

SSE rumor em mim sem o qual não vivo realmente e nada escrevo: rumor por assim dizer silencioso como o das estrelas, rumor da alma.

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Há no vento forte algo feroz, voluptuoso, cego, triste que me faz viver.

ERÁ poesia ? Nasce do mais profundo do ser, não se sabe quando, no bonde, na rua, de dia, de noite, quando estamos brigando ao telefone, pagando impostos ou namorando. De repente, aquele mal estar, provocado por uma requisição íntima, uma descoberta que ainda não se moldou numa imagem ou num ritmo que tenha em nós o caráter de uma revelação. Nossa dociüdade é súbita a essa ordem imperiosa que suprime o tempo e faz com que, por exemplo, a avenida Rio Branco ou o Café Vermelhinho (onde escrevo estas linhas) se tornem milagrosamente um mar de silêncio. No momento essa ordem desperta em mim um princípio de canto ainda indeciso, e percorro bastidores de teatros desconhecidos, assisto a espetáculos que nunca foram dados, vejo quadros, estátuas, monumentos imaginários, rostos que nem sei se já foram sonhos; e dramas shakespereanos rastejam em mim, e carrego um universo de mentira mas que é o que possuo de mais verdadeiro e que está compondo aquele que sou. Isso dito, ainda que sujeito a estados parecidos com aquele que acabo de evocar, inspirado (no sentido usual da palavra) não me lembro o ter sido. Retribuo as visitas que me faz a sorte. Mais do que isso, preciso buscar, cavar, e com infinita paciência, o que encontro. E' meu modo, e não só quando escrevo, de ser quem sou e, com força, de me sentir livre. Livre. Muito embora eu navegue no escuro, certas palavras e atos, alheios ou meus, são como estrelas que, na

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minha noite, me indicam o caminho, aquele que liberta. E como diria Mauriac, esse é afinal o problema: a consciência de nossa responsabilidade perante nosso destino, como se tivéssemos que aprender a tecê-lo.

NSiNAMOs inconscientemente aos nossos filhos coisas que preferíamos não lhes ensinar.

OBRE as condições capazes de prolongar, tornar fecundos, humanizar os estudos, nunca li nada mais justo e comovente do que estas linhas de Simone Weil. Em nenhum país, porém, que eu saiba, os programas oferecem a essas condições possibilidades de existência. A execução desses programas sobrecarregados supõe até a supressão pura e simples do espí-rito de vida que animaria os estudos como os prevê a autora da Attente de Dieu:

"Bien qu'aujourdhui on semble l'ignorer, la formation de la faculté d'attention est le but véritable et presque l'unique intérêt des études. . . S'il y a vraiment désir, si l'objet du désir est vraiment la lumière, le désir de lumière produit la lumière. Il y a vraiment désir quand il y a effort d'attention. C'est vraiment la lumière qui est désirée si tout autre mobile est absent. Quand même les efforts d'attention

en apparence stériles pendant des années, un jour une lumière exactement proportionnelle à ces efforts inondera l'âme. Chaque effort ajoute un peu d'or à un trésor que rien au monde ne peut ravir.

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Les efforts inutiles accomplis par le Curé d'Ars, pendant de longues et douloureuses années, pour apprendre le latin, ont porté tout leur fruit dans le discernement merveilleux par lequel il apercevait l'âme même des pénitents derrière leurs paroles et même derrière leur silence. . . L'intelligence ne peut être menée que par le désir. Pour qu'il y ait désir, il faut qu'il y ait plaisir et joie. L'intelligence ne grandit et ne porte de fruits que dans la joie. La joie d'apprendre est aussi indispensable aux études que la respirations aux coureurs"... *

ITES de chegar ao Ministério da Educação paro diante do Monumento à mocidade brasileira, de Bruno Giorgi. Essa escultura representa dois jovens, ela e êle, que mal saem da infância e caminham desarmados e confiantes. Tudo neles vibra e canta. Abeiram ainda despreocupados do mundo sempre mais ameaçador que aos nossos filhos legamos.

QUE teriam sido as obras de homens como Pascal, Byron, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Dostoiewski, Proust (para só falar em escritores) sem as taras fisiológicas e sem os imponderáveis espiritualmente mórbidos que traziam em si? E' claro, diferentes, porém maiores

SSE menino, apático, tímido e que só fala com infinita dificuldade, acaba, por medo e em estado de choque, de se defender com eloqüência em voz forte e clara.

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CRIANÇA e o adolescente estão mais perto de tudo quanto importa — a procura da verdade, de Deus, do sentido do que chamamos o bem e o mal, do essencial — do que o adulto. Em geral éste é realista — é assim que dizem — e falta-lhe tempo para ser inutilmente incomodado. A vocação do filho o inte-ressa, lucrativa; raramente no que faria dele um homem. A não ser exceções, nem os pais nem a escola formam os jovens, eles os deformam. Impressionam-me estas linhas de Julien Green : "Je demandais l'autre jour à l'un d'eux (un philosophe), qui est fort eminent, si les questions que se pose l'enfance ne sont pas, très souvent, celles-là qui préoccupent les grands penseurs de l'humanité (j'avais en tête Descartes et Kirkegaard) et sur ce point il était d'accord avec moi, mais comment les intuitions géniales de l'enfant se perdent-elles si souvent? N'est-ce pas l'éducation qui en est responsable ?"

STOU relendo clássicos franceses. Quase todos, aliáa, mesmo quando escrevem comédias e fábulas, pensamentos ou sermões, são críticos, nesse sentido que não aceitam logo o que sentem e pensam. Resistem. E até em amor, muito embora acabem, naturalmente, cedendo. Vejam as comédias de Molière. Tanto Arnolfo como Alceste não aceitam facilmente sua condição de homens apaixonados por uma mulher. Sofrem de mais e, outro motivo, permanecem lúcidos. A lucidez nasce da resistência ao convencionalismo social ou particular, bem como da insatisfação, da in-

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quietação. Os clássicos franceses são clarividentes e, ao contrário do que muitos pensam, inquietos. Até parecem necessitar, em pleno século XVII, ser inquietos para ser representativos. E não só escritores como Pascal, La Rochefoucauld ou Racine, mas até como La Fontaine e Molière, bastando talvez aqui relembrar que La Fontaine é o autor de Adonis e até de fábulas como Les deux pigeons e outras, e de cartas a Boileau; e Molière, o autor de Dorj Juan, de 1'École des femmes e, embora no plano da farça, do Malade jtneginaire. Os clássicos franceses em 1830 teriam sido quase tão atormentados quanto os românticos. A serenidade, na literatura francesa, constitui exceções, como antigamente, Montaigne e, hoje, Valery, serenos (relativamente) sem deixarem por isso de resistir, e até de um modo para sempre instrutivo, a tudo quanto é fácil. Esses escritores e tantos outros que não citei são representativos do povo francês — um povo que resistiu às tentações necessárias à formação de uma grande nação.

OMOS em parte o que queremos ser, pois trai uma disposição íntima aquilo que tomamos por nossa vontade.

S adultos só excepcionalmente entendem as crianças e as criaturas que, por exemplo, como os doentes ou os animais, deles diferem. Será por incapacidade ou por outro motivo? Como observa Julien Green:

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"Savoir parler à un enfant est le don rarissime entre tous. Ce qu'on fait quelquefois "pour leurs bien" est tout simplement atroce. On leur poignarde l'âme avec d'autant plus de zèle que cette espèce d'assassinat se commet au nom de la vertu".

Ão são poucos os adolescentes cuja alma prevalece sobre o corpo e favorece o excesso do sentimento, que neles então adquire a perigosa e intensa pureza da chama.

UANTo a Julien Green sua opinião é clara : "La fureur du plaisir n'a tout son sens et ne peut être absolument comprise si l'on ne reconnaît pas qu'il s'y mêle du divin, la nostalgie du divin".

MAR é desejar. E o desejo pode resultar do casamento da matéria com o espírito, fascinado por essa obra prima de Deus, o corpo humano.

Ão é fácil especificar em que consiste a repercussão em nós, aliás tão variável e diversa, do instinto sexual. E, todavia, de nosso modo de reagir às solicitações carnais depende nossa vida moral, afetiva, intelectual, — nosso destino.

IM, o desejo pode ser demasiadamente exigente, e humilhar. Costumamos ignorar o sentido e as conseqüências nos outros dessas humilhações; nem sempre

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porém. Baudelaire, esse cristão, escreveu "Minhas hu-milhações foram graças de Deus".

AS, assim mesmo, porque, em alguns, esse ódio constante do instinto sexual, todavia inseparável do que intensifica nossa vida nas suas mais altas, autênticas e fecundas reivindicações ? Sem esse instinto o que seria a arte, a religião, o amor ?

s verdadeiros mestres: essas experiências quase sempre decorrentes da humilhação, do desejo, do medo, e que deveriam ficar gravadas em nós como tatuagens.

VIDA, essa grande mestra, especialmente quando nos deixa amar quem conosco não liga. Educador inexorável: o amor não retribuído.

E o sal perder a sua força, com que outra coisa se há de salgar?"

(S. Mateus, cap. v. Vol. 13).

APiTAL a observação que encontrei há dias em Claudel : "On ne prouverait quelque chose contre l'Église que si on prouvait qu'il y a quoi que ce soit dans son enseignement et dans ses pratiques qui aillent contre l'amour du Christ".

QUELES que disseram ter produzido uma fatalidade cega todos os efeitos que vemos neste mundo disseram um grande absurdo pois será que existe maior

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absurdo do que uma fatalidade cega que teria produzido seres inteligentes?" Quem escreveu isso? Montesquieu, no Espírito das Leis (I, 1).

GRANDEZA da Igreja consiste em pedir-nos legitimamente tudo. Insaciável mas inautêntico, o cristianismo infernaria a vida como, em política, todo regime totalitário. O cristianismo gerou a maior das revoluções alvejando o coração. Este é que está em jogo e escapa a qualquer espécie de conformismo, precisamente graças ao Evangelho que repele o homem como o mundo o reduziu.

ARA certas criaturas tudo é luminoso. Para mim, quase nada o é. Cega-me o que consideram luz. Lembro-me que, em outros tempos, sucedia-me passar da luz estonteante de uma tarde de verão para uma daquelas igrejinhas medievais que tanto me confortavam. Ao penetrar no santuário todo mergulhado na penumbra, na verdade, eu quase nada distinguia. Mas aos poucos, como no ácido a chapa fotográfica, ia-se revelando uma vida intensa, presente num crucifixo, numa estátua ou num ramo de flores, e ainda em linhas, formas e, graças aos vitrais, em cores que acabavam por sugerir-me um mundo de coisas e me permitiam medir em profundidade a nossa realidade humana.

QUE é a morte ? Para os ateus nada mais do que aquilo que podem saber ao examinarem o corpo de um homem ou de um animal morto. E para nós?

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O que nos ensina nossa fé, ou seja que a morte não é a morte. E essa interpretação, não o negamos, só é indiscutível para os fieis. Confesso que para mim falar da morte foi sempre viver mais, aprofundar e enriquecer o domínio da vida. E creio que também o pode ser para figuras aparentemente pouco ortodoxas como Cocteau de quem vi ontem o filme Orfeu, o qual, aliás, está motivando as presentes observações. A arte de Cocteau consiste em nos fazer penetrar numa zona entre a vida e a morte, em impor-nos a realidade de um mundo feito de forças e leis desconhecidas e em virtude de que, no caso particular de Orfeu, por exemplo, os espelhos se assemelham a túneis que estabelecem a ligação entre uma fronteira e a outra, entre a vida e a morte. E nesse mundo não é de se estranhar se ouça esse fragmento de diálogo entre Orfeu e a Princesa :

Orphée Tu es toute puissante.

La princesse À vos yeux. Chez nous il y a des figures innom-brables de Ia mort. Des jeunes, des vieilles, qui reçoivent des ordres.

Orphée Et si tu désobéissais à ces ordres ? Ils ne peuvent pas te

tuer. Cest toi qui tue.

La princesse Ce qu'ils peuvent est pire.

Orphée D'oü viennent ces ordres ?

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La princesse Tant de sentinelles se les transmettent que c'est le tam-tam de vos tribus d'Afrique, l'écho de vos montagnes, le vent des feuilles de vos forêts.

Orphée J'irai jusqu'à celui qui donne ces ordres.

La princesse Mon pauvre amour. . . il n'habite nulle part. Les uns croient qu'il pense à nous, d'autres qu'il nous pense. D'autres qu'il dort et que nous sommes son rêve. . . son mauvais rêve.

-Mais uma vez o verificamos: a morte, interpretada na linguagem dos homens une-se ao mistério da vida, essa chama só aos poucos roída, a menos que, de repente, a apague, desta feita numa linguagem que não é a nossa, o vento que leva tudo.

HARLEs Du Bos possuia a arte de citar. Citava e comentava, muito e admiràvelmente. Creio que as citações que fazemos dos outros são significativas do que somos. Citamos para provar, aprovar, desaprovar, manifestar nossas opiniões, as quais refletem um pouco nossos sentimentos. Pessoalmente cito para repartir meu prazer em 1er textos que vêm acrescentando alguma coisa ao que penso e sinto. Assim há de parecer, presumo, um pouco menos arbitrário o que eu então disser, pois apóia-se numa autoridade. Além do mais, uma citação varia o tom e o ar. Entra por essa janela um demônio (sobretudo no sentido em que se diz entregar-se um escritor ao demônio interior) ou

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um anjo, inesperado. Bem escolhida, no devido lugar, unia citação é coisa sugestiva e assimilável. Desde cedo o verifiquei. Não devo pouco às citações. Para mim. citar é pagar um pouco meu tributo a Cesar.

MENSAGEM de um poeta tem o caráter de uma reivindicação em cujo contacto o que mal existia em nós se anima c se expressa, e, por vezes, desde cedo. Bem moço. li pela primeira vez o célebre título de uma peça de Calderón, A vida é um conho. Confirmava o que antes eu experimentara, já tendo tido a impressão, ao sair de um sonho, de deixar mesmo a realidade para entrar no estranho nevoeiro da vida. Agora falava uma grande poeta graças a quem, era-me dado saber que a vida é sonho, e que a poesia talvez seja a realidade desse sonho — hipótese para mim decisiva.

Abril — junho 1952.

TEXTOS TRADUZIDOS

Quero cumprir meu destino que é dizer o que esto em mim. Tudo quanto escrevo procede cm linha reta da minha infância.

Muito limpar arriscaria matar os micróbios o as podrídões que compõem a vida. Conheceram-se americanas que morriam de tanto purificar os órgãos. Expulsavam de si o próprio princípio da vida que permanece tributária da vermina, embora seja desagradável verificá-lo.

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A vaidade externa-se pesada como um saco de moedas. O orgulho manifesta-se por dentro, e permanece invisível.

A adolescência é a idade trágica por excelência. Nada é gratuito, tudo tem que ser conquistado e cada conquista se acompanha de uma dilaceração: é preciso escolher, escolher-se, deixar-se mutilar, eleger sem prazer, repelir com desespero. O adolescente tem medo de viver, fere-se nas coisas, qual um bicho desalentado, castigado nas suas roupas acanhadas.

DONA PROUHÈJE — O que' Então era permitido ? O amor das criaturas umas pelas outras, será realmente verdade que Deus não tem ciúmes ? O homem nos braços da mulher. . .

O ANJO DA GUARDA — Como teria ciúmes do que íèz e o que teria feito que não o sirva ?

DONA PROUHÈJE — O homem nos braços da mulher esquece Deus. O ANJO DA GUARDA — Será esquecê-lo estar com éle? Será que não está

com êle quem participa do mistério da sua criação ?

"Estes prazeres que chamamos levianamente físicos".

Uma só coisa importa neste mundo — o amor que temos por alguém — não o amor que inspiramos, mas aquele que temos. E' amando que melhor temos a idéia do que pode ser o céu.

"Sou dono de mim como do universo".

Embora hoje pareçam ignorá-lo, a formação da faculdade de atenção é o fim verdadeiro e quase o único interesse dos estudos... Se existe verdadeiramente o desejo, se o objeto do desejo é verdadeiramente a luz, o desejo da luz produz a luz. Há verdadeiramente desejo quando há esforço da

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atenção. E' realmente a luz que é desejada, mesmo se não houver outra finalidade. Mesmo se os esforços de atenção ficassem aparentemente estéreis durante anos, um dia, uma luz exatamente proporcional a este esforço há de invadir a alma. Cada esforço acrescenta um pouco de ouro a um tesouro que nada deste mundo poderá arrebatar. Os esforços inúteis do Cura de Ars durante longos e dolorosos anos, para aprender o latim, frutificaram no seu maravilhoso discernimento em perceber a alma dos penitentes por eles disfarçada atrás do aue diziam e até silenciavam. . . A inteligência só pode ser levada pelo desejo. Para que haja desejo é preciso que haja prazer e alegria. A inteligência só medra e consegue frutos na alegria. A alegria de aprender é tão indispensável aos estudos quanto a respiração aos atletas.

Eu indagava o outro dia a um deles (um filósofo) muito eminente, se as perguntas feitas pelas crianças, não são muitas vezes as mesmas que preocupam os maiores pensadores da humanidade (tinha em mente Descartes e Kirkegaard), e neste ponto concordava comigo, mas como as intuições geniais das crianças se perdem tão a miúdo ? Não terá responsabilidade nisso a educação ?

Saber falar às crianças é dom raríssimo. O que se faz as vezes "por elas" é simplesmente atroz. Não seríamos capais de ferir-lhes com uma faca a perna ou o braço, mas apunhalamo- lhes a alma com tanto mais zelo que esta espécie de assassíno se comete em nome da virtude".

O furor do prazer só adquire todo sentido e poderá ser integralmente compreendido se reconhecermos nè!e algo de divino, a nostalgia do divino.

Só se provaria alguma coisa contra a Igreja, provando que existe no seu ensinamento e nas suas práticas algo que seja contra o amor do Cristo.

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ORFEU — Você é toda poderosa. A PRINCESA — A seus olhos. Para nós, inúmeros são os

aspectos da morte. Há velhas e jovens que recebem ordens. ORFEU — E você desobedece a essas ordens ? Não podem

matá-la, é você quem mata. A PRINCESA — O que podem c pior. ORFEU — Donde vêm essas ordens ? A PRINCESA — Tantas sentinelas as transmitem que elas são

o tambor de vossas tribus da África, o éco de vossas montanhas, o vento nas folhas de vossas florestas.

ORFEU — Falarei com aquele que dá essas ordens. A PRINCESA — Meu amor. . . não mora em parte alguma. Talvez pense

em nós, ou nos pense. Talvez ainda durma e sejamos seu sonho, seu péssimo sonho.

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal 1 — JOSÉ JANSEN ....................................... A máscara no culto, no teatro e na

tradição 2 — ÁLVARO LINS, CARPEAÜX e

THOMPSON .......................................... José Lins do Rego 3 — PAULO RONAI ..................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE .................................................... Viola de Bolso 5 — LÚCIO COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira 6 — LÚCIO COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado

9—H. VON KLEIST ..................................... Teatro de Marionetes 10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................. Monte Cristo, ou da Vingança 11 — Luís COSME ........................................ Música e Tempo

12 — JOÃO CABRAL DE MELO ...................... Miró

13 — OTÁVIO DE FARIA .................................. Significação do Far-West 14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte

15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro. Realidade Mágica

16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantcs 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto

18 — GILBERTO FRETBE .............................. José de Alencar

19 — CLARISSE LISPECTOR ......................... Alguns Contos 20 — MÀrio PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna

21 — ROSÁRIO Fusco ................................. Introdução á Experiência Estética

22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................... Realidade e Ficção 23 —DANTE COSTA ..................................... O Sensualismo Alimentar

24 — LEDO Ivo ........................................... LiçAo de Mário de Andrade

25 — Eugênio GOMES .................................. O Romancista e o Ventríloquo 26 —JOSÉ LINS DO REGO ............................. Homens. Seres e Coisas

27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias

28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura 29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Colonial

3O — MANOEL DIÊGUES JÚNIOR _______ Etnias e Culturas no Brasil 31 — CYRO DOS ANJOS ............................... Explorações no Tempo

[Continua na 3° pág..)

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LUIZ COSME

HORIZONTES DE MÚSICA

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇAO E CULTURA

S E R V I Ç O DE DOCUMENTAÇÃO

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Para Augusto Meyer

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ALLEGRO CON BRIO

DA ESCOLA. DURAÇÃO BERGSONIANA. DOS ELEMENTOS SONOROS

OMPREENDE-SE como Escola musical uma determi-nada comunidade em procura de estilos de com posição, que individualiza e define um grupo de músicos. Cada um preserva, dentro dessa Escola, as suas características peculiares, porém, essas mesmas características sujeitam-se a certos princípios: resultado de uma preparação histórica.

No ciclo Renascentista, Ockeghem, Obrecht, Josquin e Isaac têm, cada um, qualidades próprias e muito marcadas em suas obras, sem o que seria dificílimo diferençá-las. Há contudo, nessas obras, qualidades comuns, que são exatamente as qualidades da Escola. Além do mais, uma Escola evolue de acordo com uma norma própria, esta norma particulariza, em sentido uniforme, a expressão coletiva, que pertence ao tempo e à história.

O critério originado pelo vínculo de tempo e espaço, sob a mesma forma, é notório — o de Bergson, por exemplo, o qual denomina duração ao tempo

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psicológico, e que seria, também, uma forma de nossa maneira de sentir.

Duração bergsoniana "O filósofo tem a psicologia como a base da filosofia. Sem dúvida, como em geral acontece com os filósofos espiritualistas, foi a psicologia que conduziu à metafísica, partindo da duração. Em carta a Hoffding, insiste em atribuir à duração, e não à intuição, o ponto de partida de sua doutrina. Daí muitos chamarem de preferência ao bergsonismo "filosofia da duração".

"O conceito de duração (continuidade), oposto ao ponto temporal (instante que passa), é antigo na história da filosofia. A novidade de Bergson está em ter tornado claro, dentro do sentido de seu sistema, o caráter do tempo como duração meramente espacial a de que o homem e a ciência se utilizam ; e, principalmente, a novidade bergsoniana afirma-se em julgar que, acima de semelhante duração ou temporalidade, existe a duração pura, a duração concreta, que é uma evolução de momentos. Na duração pura ou concreta cada um dos momentos contém o precedente e anuncia o que vai seguir. Trata-se de um devir orgânico, estranho ao espaço e refratário ao número, "heterogeneidade pura".

"No bergsonismo, poder-se-á distinguir mais de um tipo de intuição, sem que um anule o outro. A intuição do super instinto, a que estabelece contato com o absoluto, é espécie de instrumento do conhecimento; a intuição da duração "é o próprio espírito e, em certo sentido, a própria vida". A intuição como

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"espécie de simpatia intelectual, pela qual a pessoa se transporta ao interior de um objeto para coincidir com o que êle tem de único e, conseqüentemente, de inex-primível*', parece expressar o sentido do papel da intuição da duração, como sendo o próprio espíri-to". (1)

O campo pesquisado por Gisèle Brelet em sua obra : Le Temps Musica], Essai d'une csíhóíique nowelle de Ia Musique — como tive ocasião de observar em Música c Tempo (1952) — é vastíssimo. As antigas noções de espaço e tempo; os grupos evidentemente definidos — mas muito arbitrários — já foram estudados por filósofos de todas as disciplinas porém, a ciência moderna fêz suprir premissas mais complexas.

"Pour Bergson comme pour Schopenhauer, Ia musique est le témoin et le symbole le plus adéquat de 1'absolue réalité; et le philosophe de Ia durée purê fait volontiers appel au temps musical pour nous faire comprendre 1'essence de Ia durée ou plutôt pour nous en communiquer 1'intuition". (2)

"Pour Bergson, 1'idée d'un certain ordre de sueces-sion implique Ia spatialité. Entre Ia continuité purê de Ia durée et le discontinu de 1'espace, entre Ia sucession de Pune et Ia simultanéité de 1'au're, il n'y-a pas de moyen terme. Percevoir dans Ia mélodie un

(1) OREIS SOARES — Dicionário de Filosofia. Instituto Nacional do Livro, Rio, 1952, pg. 163.

(2) GISÈLE BRELET — Le Temps musica!, Alcan, Paris, 1949, pg. 46.

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ordre entre sons distincts., c'est faire violence à la durée pure qui est en elle, c'est quitter le temps où les sons se succèdent pour un espace où on les juxtapose, transformer le sucessif en simultané, étaler "l'un à côté de l'autre'' ce qui était "l'un dans l'autre". Mais, comme nous le verrons mieux plus tard, l'ordre temporel ne manifeste nullement l'intrusion de l'espace dans le temps: l'ordre bien au contraire est une notion essentiellement temporelle, et l'on peut dire que tout ordre vient du temps. De plus en face de l'ordre statique de l'espace, il est un ordre spécifique de la durée, — le rythme, ordre dynamique qui l'affirme, loin de la contredire et de l'anéantir". (3)

.. ."Per il Bergson la durata si oppone al tempo in quanto la prima è il carattere stesso della successione, quale è immediattamente appressa che noi se ne facciamo per ragionare e comunicare coi nostri simili, traducendola in imagini spaziali; quindi la durata è per lui il tempo concreto il tempo reale, costituito da una pura sucessione di cangiamenti qualitativi senza alcuna tendenza ad esteriorizzarsi gli rispetto agli altri, senza alcuna parentela col numero, l'hétérogénéité pure sans aucune parenté avec le nombre". (4)

"Si notre existence se composait d'états séparés dont un "moi" impassible eût à faire la synthèse, il n'y aurait pas pour nous de durée. Car un moi qui ne

(3) Id., Ibid., pg. 48. (4) G. RANZOLI — Dizionario di Scienza lilojoíiche,

Hoelpi, Milão. 1926,, 3.a ed., pg. 332.

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change pas ne dure pas, et un état psychologique qui reste identique à lui-même tant qu'il n'est pas remplacé par l'état suivant ne dure pas davantage. On aura beau, dès lors, aligner ces états les uns à côté des autres sur le "moi" qui le soutient, jamais ces solides enfilés sur du solide ne feront de la durée qui coule. La vérité est qu'on obtient ainsi une imitation artificielle de la vie intérieure, un équivalent statique se prêtera mieux aux exigences de la logique et du langage, précisément parce qu'on en aura éliminé le temps réel." (5)

A mùsica dirige-se a princípio, ao nascer de uma Escola, no sentido de fixação. Fase de metamorfose que procura, no estado da realidade subjetiva, os elementos sonoros de expressão. Essa fase evolutiva é em geral longa e complexa. O empenho coletivo, dos grandes músicos, se encaminha, agora, ao exame da realidade objetiva, a fim de separarem os elementos sonoros e os amoldarem à forma de expressão.

Ainda é o ciclo Renascentista um exemplo característico, período que, por interferência das escolas : Borgonhesa, Flamenga e Veneziana, pode ser dividido em três etapas: a) Pré-Renascentista; b) Renascença; c) Renascença e Reforma, perpassando, dessa maneira, por longas fases analíticas. Esse espaço de tempo, aos poucos, demarca os princípios sonoros, distinguindo, assim, o processo evolutivo escolástico.

(5) HENRI BERGSON — L'Évolution Créatrico, Alean, Paris, 77.a ed., 1948, pg. 4.

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O andamento histórico da música possue vários elementos para determinar um argumento ou basear rio ambiente da observação, que nos fornece a experiência histórica, os assuntos para apontamentos aos horizontes de música.

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TEMPO MODERATO, QUASI ADAGIO ARS

ANTIQUA

MÚSICA na Idade Média era geralmente baseada no conceito da notação modal ou seja no canto gregoriano. de onde sobrevêm os modos gregorianos, com os quais se designavam as escalas que lhes serviam de base. A heterofonia medieval era rigorosamente linear e de livre invenção, apoiando-se. mais tarde, no princípio da imitação e na independência da permuta ritmo-melódica.

Em seu livro '"História Popular da Música" Luiz de Freitas Branco diz o seguinte, com relação à Escola de Notre Dame: ". . .No início do século XII tinha-se atingido na igreja de Nossa Senhora de Paris, que não era a atual, embora se erguesse no mesmo lugar, uma grande perfeição no contraponto organai, tanto para vozes como para órgão. A escola de Notre Dame é cronològicamente a primeira importante que se conhece na histeria da polifonia. Os seus vultos principais são os magistri (mestres) Léonin e Pérotin".

"Pérotin, que foi o sucessor de Léonin como mestre de capela de Notre Dame, excedeu-o no gênio e na

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perfeição técnica, a ponto de merecer o cognome de "grande" (Pérotin le grand, Perotinus magnus). Este grande músico medieval estava em plena atividade cerca do ano de 1220".

"Da escola de Notre Dame foram-nos conservadas numerosas composições, tanto vocais como instrumentais, sobre cantos firmes, e vários conducti sobre poesias latinas rimadas em estilo lírico. Os compassos em valores ternários reinavam exclusivamente na escola de Notre Dame". (6)

Na música para vozes se observa que, no canto melismático. a palavra desdobra-se e possue maior valor em sonoridade como unidade vocal. Não obstante perder o sentido de texto, a musicalidade aumenta à proporção que desaparece a acepção lingüística; pelo desdobramento da palavra em canto silábico, consideradas unidades sonoras: elementos aproveitados como integrantes à heterofonia.

O Organum era um tipo de composição decorativa, para embelezar certas cerimônias religiosas, executada vocal ou instrumental mente em intervalos de quartas, quintas e oitavas paralelas, sobre uma melodia dada ou Cantus firmus (canto firme), no qual se baseava o trecho. A palavra organum. ou veio dos textos litúr-gicos que mandam louvar a Deus in oréanis, isto é, no órgão, ou, o que é mais provável, teve a sua origem no fato de ser próprio da música primitiva do órgão.

Em La Cathédrale Engloutie, de Claude Debussy os métodos impressionistas se assemelham aos proces-

(6) Luiz DE FREITAS BRANCO — História Popular da Música, Lisboa, pg. 53, 1947.

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sos tradicionais da voz de "tenor"' no organum. A palavra "tenor", aqui, não significa a voz masculina, a que hoje se dá esse nome, mas por ser o cantus firmus, ou canto principal,, palavra que significa em latim: tenere, que quer dizer: segurar; sustentar. Pode-se considerar La Cathédrale engloutie um organum do século XX, ou uma irrupção vulcânica depois de mil anos de inatividade.

O conjunto instrumental, usado na Idade Média e no Pré-Renascimento, era composto de Vièles; Alaú-des e Recorders, a este último os italianos denominavam de Flauto dolce; os franceses de Flúte à bec. Este instrumento era muito usado na época Tudor e nas peças de Shakespeare e possue a sonoridade semelhante à ccarina.

Outro tipo de composição do período medieval era o Conductus, que representara um grande passo no desenvolvimento da polifonia livre, sendo que a sua característica era a ausência do cantus iirmus e o contraponto das diversas vozes juntas, quase sílaba a sílaba. O conductus, ao contrário do organum, não era baseado em cantos litúrgicos e sim em melodias de livre invenção.

No fim do período da ars antiqua floresce o mo-tete, que devia suplantar as outras formas mais importantes de então: o organum e o conductus. O motete era, afora a fixação de uma voz. o nome dado a fragmentos de música para diversas vozes que divergiam especialmente na execução e na acentuação. Pode-se dizer que o Motete significa um trecho polifônico

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vocal, cem ou sem acompanhamento de instrumento, religioso ou profano, mas de caráter lírico. O primeiro tipo do motete, o tipo medieval, era comumente a três vozes, diferençando-se dos organa a três partes, pela liberdade das duas vozes acima do "tenor".

O Motete, o Conductus e o Rondeau são as primitivas formas da composição polifônica, vindas da Escola de Paris (século XIII). Formas que apresentam a base estética da polifonia. O Rondeau como o princípio da imitação das partes (Cânone e Fuga); o Motete como a liberdade de movimento, de ritmo e de texto e o Conductus como invenção1 livre. Segundo Alfred Lorenz a forma medieval da polifonia coral e o princípio de seccionamento temático seriam os elementos básicos da música instrumental do século XVIII.

Do mesmo modo, a heterofonia medieval, rigorosamente linear e de livre invenção, demonstra grande tendência combinatória com as manifestações polifó-nicas da arte musical de hoje.

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EXPRESSÕES FORMAIS DA MÚSICA

E ACORDO com a "Gestalttheorie" são as formas ou estruturas da música que nos dão um cabal aspecto do panorama histórico, e não apenas os sistemas de Notação Alfabética, Neumática, Coral Alemã, Mensuralista ou simplesmente as reações emocionais--estéticas. Vários são os aspectos pelos quais as expressões formais da música se podem manifestar ao conhecimento. Havendo evidências na duração sonora das categorias seculares, a forrna musical vem a ser uma condição do tempo. Estas formas encerram siste-matizações que se lhes sucedem historicamente, por exemplo: a suite é um acontecimento para a Sinfonia; o Poema sinfônico uma conseqüência natural desta. Não se concebe facilmente o aparecimento destas formas musicais sem a existência de uma precedente.

A primeira manifestação da Fuga instrumental se deu na Itália, como peças polifónicas em estilo de Cânone, derivadas dos antigos Ricercare, forma usada nos séculos XVI e XVII. A Fuga consiste, esquemáticamente, na apresentação de um tema, por uma voz isolada, depois outra emite a resposta, continuando a primeira elaborando um contraponto. Uma série destas

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apresentações e respostas alternadas — segundo leis tonais rigorosas, em várias vozes — constitue a exposição da Fuga.

Em meados do século XV se tem notícia de pequenos agrupamentos instrumentais, destinados à execução de suites. Com Morley na Inglaterra, Dalza na Itália, Schein na Alemanha e Arbeau na França, a forma da sufre esboça-se com a execução das danças: Alemandas, Branles, Correntes, Pavanas, Galhardas, Passacalhas, Gigas e Saltarelos. Foram os Cravistas do século XVII que desenvolveram a forma de suite, mas, Johann Sebastian Bach é quem dá a musicalidade suprema para a suite germânica, que é uma série de danças com ritmos determinados.

A palavra Sonata, vinda do verbo tocar (suonare) nasceu na península itálica, e designava apenas uma peça instrumental. Sua característica era a seriação de andamentos diferentes, entretanto, a Sonata clássica consiste em três tempos, distintos no andamento e condicionados uns aos outros pela tonalização modulatória .

Foi Johann Kuhnau, antecessor de Bach, o autor das primeiras Sonatas para piano, que eram antes peças descritivas do que pròpriamente Sonatas. Num depoimento de Hans Rosenwald as Sonatas bíblicas de Kuhnau são importantes documentos da música de programa.

E' ainda Johann Sebastian Bach quem fixa as formas vocais e instrumentais mais importantes da música pura, como sejam a Ária e a Sonata, todavia.

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seu filho Philipp Emanuel — possuidor de excepcional invenção rítmica — foi o criador das Sonatas para cravo em vários andamentos, dentro de um novo estilo. Philipp Emanuel adaptou a técnica ou os moldes antigos às exigências de suas tendências estilísticas; fêz mudanças radicais na forma horizontal para a forma vertical, e definiu as linhas estruturais da forma Sonata como sua característica.

Não será demais citar a opinião de Serguei Pro-cofiev, quando diz : "Não quero nada melhor, nada mais flexível ou mais completo que a forma da Sonata, que contém tudo que é necessário ao meu propósito estrutural".

Na Itália aparecia a forma da Toccata, genuinamente italiana, do mesmo modo que a suite era alemã. Os germânicos estavam, desde então, demonstrando ' sua tendência metódica que criaria as grandes formas da arquitetura sonora, com a Fuga, a Sonata e a Sinfonia. Os processos formais de escrever para orquestra se desenvolveram na Alemanha, sob a influência da Escola de Mannheim, porque foram fixados os métodos de tratar sinfônicamente a orquestra, pela tematização curta, pelo seccionamento dos elementos melódicos e pelos naipes orquestrais, assim como a constituição da forma da sinfonia.

A Fuga, a variação, a sonata e o concerto — grosso — este último forma primitiva do Concerto — são as formas da música instrumental pura que despontaram no século XV e culminaram nos fins do século XVI e princípios do XVII.

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A existência de um único solista, na forma do concerto, foi concebida pelo veneziano Antônio Vivaldi, que também criou o esquema de três movimentos: AHegro — Adagio — Allegro. E' também à Itália que se deve o desenvolvimento de instrumentos solistas, porém, os processos formais da Sonata ou do Concerto desenvolveram-se sob o impulso, ainda, da Escola de Mannheim, um dos primeiros centros da arte instrumental, do qual cumpre salientar a família Stamitz, entre eles citaremos Johann, Karl e Anton. Este último foi mestre do célebre Rodolfo Kreutzer.

Essencialmente de estilo concertante é a música das épocas setecentista e oitocentista, período no qual se realizaram as grandes promessas do Renascimento.

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CLÁSSICOS VIENENSES E ROMANTISMO MUSICAL

O ANO de 1781 encontraram-se pela primeira vez os dois expoentes da música clássica do século XVIII: Haydn e Mozart. Encontro que marcou o princípio de sólida amizade e admiração entre ambos. Cada um deles procurava novas formas de manifestar suas idéias musicais. Não obstante sofrer a influência um do outro, manifestavam, claramente em suas obras instrumentais, o contraste fundamental de suas persona-lidades artísticas.

Haydn e Mozart viveram e escreveram numa época de absoluto academicismo e formalismo intelectual, por isso, produziram verdadeiras obras primas de música acadêmica.

Enquanto que Haydn dirigia seus estudos para as criações formais da Escola de Mannheim, Mozart dominava, com seu extraordinário talento inventivo, a composição de quartetos, chegando mesmo a fazer mudanças nos moldes iniciados por Haydn.

Mozart dedicou vários de seus quartetos de corda a Haydn, talvez em reconhecimento pelo muito que dele aproveitou, entretanto, esse oferecimento repre-

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senta a maior admiração e estima, pois, naquela época quase todas as músicas, dos dois mestres, foram escritas por encomenda de nobres, para os quais eles trabalhavam (Prematuro exemplo da ''Gebrauschsmusik" de hoje, movimento introduzido por Hindemith e outros em 1923).

A música de Mozart representa a sujeição do sentimento à forma.

Haydn com seu espírito criador reformou e deu os definitivos retoques nas criações formais da Escola de Mannheim, ocupando-se com o desenvolvimento temático do primeiro andamento da Sonata, cuja função primordial é o afastamento da reexposição dos dois temas.

Não só o primeiro andamento da Sonata — o Allegro — estava sendo impulsionado interiormente pelas idéias renovadoras de Kaydn; também os outros tempos que a constituem sofreram sua influência. Infiltra-se o princípio duotemático na parte Lenta, derivada da canção unitemática, se expandindo com maior liberdade a inspiração do compositor. O Rondo (derivado das antigas formas de dança) teve seus elementos ampliados, sofrendo alterações e acréscimos de movimentos desconhecidos das danças da Suite. O Minueto, incorporado à estrutura da Sonata, como andamento moderado, completou-a de maneira admirável, tornando-a, desse modo, mais fecunda que qualquer outra forma musical.

Bach anunciando o novo sentido das transformações musicais, manifestadas na Fuga, representa o

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ponto culminante das formas polifônicas., enquanto que Beethoven, nas suas últimas obras, marca o apogeu das formas harmônicas reveladas na Sonata, e com o en-grandecimento e enriquecimento da idéia musical anuncia as futuras direções da Sonata, pelo vigor e plasticidade dos temas, pelas modulações audaciosas. pela precisão contrapontística, se revelando um digno sucessor de Bach.

E' interessante se observar que os quartetos desses três clássicos vienenses soam muito mais modernos e atuais do que seus trabalhos orquestrais. Isso, entretanto, é um reflexo de, acharem-se, naquele tempo, os instrumentos de corda totalmente desenvolvidos, enquanto que a orquestra apenas começava a adotar caráter de música em conjunto que hoje conhecemos.

Na história da música Haydn é considerado o criador da música instrumental moderna; Mozart tem a reputação de leveza e gracilidade e Beethoven o precursor do Romantismo.

Diferentes fatores exteriores à música contribuíram para a formação da mentalidade romântica. Nesse gênero musical as variações temáticas e interpretativas não tinham como no classicismo: frisar as intenções musicais e sim caracterizar e apresentar os diferentes estados psicológicos.

A música torna-se, então., instrumento da literatura, com a finalidade de descrever e transmitir emoções, porém, a estética formal novecentista atingiu o limite das suas possibilidades nos Poemas sinfônicos

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de Richard Strauss, ande as preocupações literárias e descritivas são levadas até aos extremos realistas.

Desde os períodos trovadorescos até aos nossos dias o romantismo tem sido manifestado na sua forma característica e emocional, mas, foi no século XIX, depois da Revolução Francesa, que êle atingiu o seu apogeu.

Na Renascença ou no período imitativo a capeíla, aperfeiçoou-se de maneira tão concreta a forma severa da missa, que de um modo geral,, se pode qualificar de românticas as formas menos rigorosas do motete, do madrigal e da canção.

Em Schubert se vê nitidamente a tendência harmônica dos românticos, podendo-se dizer que ela se encontra nele muito marcada. Considera-se esse genial criador um clássico dentro do romantismo, pela facilidade e largueza com que tratou as grandes formas da música pura, a verdade, porém, é não ter sido a perfeição formal sua principal condição.

E' na sua música instrumental de câmara que vamos encontrar algumas das mais belas obras da música de todos os tempos, como os quartetos de corda e os dois quintetos, muito embora as melodias para canto e piano constituam a parte mais importante e característica do gênio de Schubert.

Ao ouvirmos a música de Schubert verificamos que, para êle, as emoções são o próprio tema, o que nos faz lembrar o conceito romântico do século XIX, isto é, que a completa personalidade de um compositor se pode refletir através de suas composições. Liszt

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se refere a Schubert como "le musicien Ie plus poete que fut jamais", porque a sua música transmite a qualidade subjetiva e introspectiva que se encontra na poesia lírica.

E' inegável que o fenômeno harmônico-melódico seja observado não somente nos seus "lieder" como também abundantemente em suas obras instrumentais, como meio de construção, acusando os temas a personalidade do compositor, com a revelação imediata de sua maneira característica. Embora a sua melhor e mais completa música seja a que se encontra em seus "lieder", nas sinfonias ou quintetos as melodias cantam como se fossem canções.

Não obstante ter Robert Schumann escrito que havia tentado se fortalecer e se requintar através da música de Bach, e embora reflita sua obra um tanto da harmonia polifônica desse mestre, ainda assim, dentro do temperamento romântico que o caracterizava, foi éle.. na essência, a verdadeira antítese do grande músico. A obra de Bach reflete ordem e precisão; em Schumann se encontra a liberdade com que se deliciavam os românticos. Foi o período byroniano em que o artista primava por "épater les bourgeois" ao mesmo tempo que escrevia para essa classe. Foi o período artístico em que a forma se sujeitava ao sentimento ou expressão e em que a nota lírica predominava em todas as manifestações de arte.

Assim, enquanto que o classicislmo revela a intensidade da música pura, o romantismo é precisamente o alargamento das condições emocionais.

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POCO VIVACE (SCHERZO)

"O RABELAIS DA MÙSICA MODERNA"

s MANIFESTAÇÕES formais, nascidas pela justeza de fases históricas, na realidade, não podem representar o espírito contemporâneo, entretanto se os compositores de hoje designam formas renovadas, ou anteriores à expressão formal que tiveram no classicismo, é porque esses meios correspondem a uma real necessidade de exprimir os seus sentimentos musicais.

Heitor Villa-Lobos — cognominado por Irving Schwerke "O Rabelais da música moderna" — é, sem dúvida, o representante mais categorizado no panorama da música brasileira contemporânea.

Percebe-se na maioria das obras de Villa-Lobos o processo de interpenetração dos elementos musicais provenientes do folclore brasileiro e o conteúdo enérgico, por vezes áspero, adquirido pelo progresso do idioma musical em sua órbita de desenvolvimento.

Não obstante grande parte das obras desse compositor estar situada na fase nacionalista de aspecto folclórico — marcando assim o ciclo mais original e

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mais fortemente consciente da história musical do Brasil contemporâneo — revela ainda a sua universalidade artística pelas criações e descobertas dos elementos formais plásticos em que tece os motivos sugeridos.

Villa-Lobos conquistou com a série das Bachianas Brasileiras uma verdadeira assimilação do vigor da obra de Johann Sebastian Bach.

O crítico de arte Boris de Schloezer assim se manifestou em relação à volta a Bach: "Nós bem sabemos que há em Bach coisa muito diversa, que Bach é um poeta, um cristão, um místico. Geração virá que se voltará um dia para esse Bach; era, porém, do Bach dos Allegros de que tinham necessidade os músicos do após-guerra; e o que os atraía, o que em verdade os fascinava nesses "allegros", nessas fugas, era o seu movimento contínuo, o seu impecável desenvolvimento que parece interdizer aos elementos psicológicos toda a intrusão nessa trama sonora na qual em vão se procuraria o menor interstício". (7)

Villa-Lobos, em suas Bachianas Brasileiras, não estiliza e sim desfigura com indescritível liberdade certos processos contrapontísticos aplicados ao folclore brasileiro.

A série das nove Bachianas, de Heitor Villa-Lobos, está distribuída para os seguintes conjuntos instrumentais: Bachiana n.° 1, para orquestra de cellos; Bachiana, n.° 2, para orquestra de câmara; Bachiana n.° 3,

(7) ANDRÉ COEUROY — Panorama da Música Contemporânea, Cultura Brasileira, São Paulo, s/d, pg. 134.

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para piano e orquestra; Bachiana n.° 4, para grande orquestra; Bachiana n.° 5. para canto e orquestra; Bachiana n.° 6, para flauta e fagote; Bachianas ns. 7 e 8 para orquestra e Bachiana n.° 9 para orquestra e vozes.

Uma das características da forma clássica da toccata se percebe na Bachiana n.° 7 na qual Villa-Lobos introduz, entre o piston e o trombone e entre os violinos e violoncelos, desafios nordestinos. Pelos meios da técnica empregada na tocata, desenvolvimentos à maneira de Bach são bem visíveis. Também dilatou, na sua Bachiana n.° 9 a arte de combinar a orquestra com a voz humana, obtendo, dessa forma, excelentes efeitos vocais.

Na Missa a São Sebastião escrita em 1937, para três vozes a seco, Villa-Lobos emprega o caráter da música coral do século XVI, segue, no entanto, a estrutura formal de Bach, omitindo apenas as aberturas tradicionais dos versículos GLÓRIA e CREDO, respectivamente: "Gloria in Excelsis Deo" e "Credo in unum Deum".

Outros compositores deste século, como Stravins-qui com sua Missa, e Kodály com seu Pange Lingua, não foram tão grandiloqüentes quanto alguns compositores do primeiro barroco. Por exemplo: Orazio Benevoli (1602-72) com a Missa Solene a 32 e 48 partes vocais, destinada à inauguração da catedral de Salzburgo. Essa partitura de Benevoli foi composta para dois corpos corais, acompanhados por colossal massa instrumental, indicada por baixo curado, na

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qual se combinam : contra-baixos, violoncelos, fagotes, alaúdes graves (chitarrones), dois órgãos, cravos, harpas, etc.

Das possibilidades vocais é bem reflexo a missa do compositor brasileiro, em que se processa mais a estrutura litúrgica do que mesmo o estilo Villalo- beano.

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COERÊNCIA ARTÍSTICA

ONSTITUIRIA, sem dúvida, observação atraente pes-quizar até onde os compositores contemporâneos se cor-respondem nos processos de coerência artística.

A pureza incondicional, ideal, ninguém atinge. Ela forma um marco para as nossas capacidades e para as nossas aspirações. Se a exatidão artística ideal é inabalável, não o são os modos de expressão do pensamento e dos conceitos musicais.

A fim de pesquisar os processos dos compositores contemporâneos para atingirem a uma real coerência artística, nada melhor do que ouvi-los. Paul Hindemith, um dos mais categorizados compositores contemporâneos, diz :

"A base de toda a composição de valor deve ser, por certo, a inspiração e idéias musicais boas; depois disso vem a técnica. E' idéia geral de que hoje existe técnica demais, porém, a minha impressão é de que ainda não há técnica bastante. Não se pode chegar a ser um compositor, no sentido moderno, com alguns anos de harmonia, contraponto e teoria num Conservatório, e sim com anos de intimidade diária com a música de toda espécie. Não somente com processo de

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tocá-la ou ouvi-la, mas com o de investigar e estudar essa música como um grande fenômeno natural.

Quando um compositor escreve, êle deve ser capaz de fazê-lo sem nenhuma consciência de técnica. Um grande novelista ou dramaturgo certamente nunca pensa na gramática, sintaxe ou retórica. E' lamentável que tantos compositores esperem se inspirar num teclado. Teclas de marfim ou de ébano e cordas de violino são pobres fontes de originalidade. No meu caso, estou quase sempre em viagens e se tivesse que esperar por um teclado ou um instrumento, nada pode-ria compor. Para mim, o compositor deve ser inteiramente independente de quaisquer artifícios mecânicos.

Provavelmente a música mais iconoclasta, a mais radical, a mais revolucionária, já foi escrita durante os últimos vinte e cinco anos. Todos os extremos já foram aparentemente atingidos. Isto não significa que todas as combinações rítmicas ou harmônicas já foram realizadas, que o compositor de amanhã não poderá encontrar novo e convidativo campo para penetrar, mas significa que os meios fundamentais já foram estabelecidos.

Algumas novas cores tonais podem ser adicionadas à paleta do compositor, porém elas não podem fazer mudanças concretas na base estrutural da música. Instrumentos elétricos fornecem um campo interessante para especulação. Estive por anos, muito interessado neles, mas ainda é muito cedo para profetizar o que pode ser feito, desenvolvendo-se um novo "modus operandi". Certamente, nada pode tomar o lugar dos exe-

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cutantes, quer eles toquem individualmente ou em grupos". (8)

Béla Bartók manifesta sua opinião da maneira seguinte :

"Estritamente falando, o período de 1910 em diante não foi nada revolucionário. Em arte existem progressões lentas ou rápidas. Existe essencialmente evolução, não revolução.

Eu próprio, acredito, tenho progredido de um modo consistente e numa direção, exceto talvez de 1926 era diante, quando minha obra tornou-se mais contrapontística e também mais simples no seu todo. Uma maior importância dada à tonalidade é também característica dessa época. Antes disso, cerca de 1918 a 1924, minha obra foi mais radical e mais homofônica.

Com a maturidade, parece-me, vem o desejo de economizar — de ser mais simples. Sim, isto poder-se-ia referir a tendências semelhantes na música de outros compositores da minha geração. A maturidade é o período em que se encontra a medida justa, o caminho que melhor expressa a própria personalidade musical. O compositor novo é inclinado a dar tudo de uma vez. Se eu pudesse escrever meu primeiro Quarteto novamente, por certo não escreveria do mesmo modo. Hoje vejo nele algum material supérfluo e alguma semelhança com Wagner. Meu Quinto Quarteto é uma obra individual. Quanto ao estilo do compo-

(8) DAVID EWEN — The Book oi Modern Composers, Knopf. 1945, pg. 303.

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sitor não há outra explicação senão de que deve partir do próprio compositor". (9)

Já Serguei Procófiev diz :

"Luto pela maior simplicidade e por mais melodia. Tenho por minha vez usado também a dissonância, mas em geral esta tem sido utilizada demais. Bach empregava-a em sua música assim como se emprega sal na comida. Outros aplicavam-na como pimenta, temperando os pratos mais e mais fortemente. Creio que disto a sociedade tem tido bastante. Queremos um estilo de musica mais simples e mais melódico, uma atmosfera emocional menos complicada, e a dissonâri'-" cia relegada ao seu lugar próprio, como um elemento da música, aparecendo principalmente no encontro de linhas melódicas. Stravinsqui disse-me, certa vez, que sonhava com um estilo tão simples e puro que deveria consistir somente de duas melodias.

Poder-se-á dizer o que bem entender do ouvido humano e da sua capacidade de se adaptar à música mais e mais complicada, porém, não creio que essa capacidade de adaptação cresça tanto e tão rapidamente. Três melodias é o máximo que o ouvido normal pode perceber e seguir ao mesmo tempo. Isto pode acontecer quando as melodias são claramente tocadas e contrastadas em timbres e côr. Por um curto tempo o ouvido pode perceber e assinalar o efeito de quatro partes diferentes, porém, isto não continuará, se as quatro partes ou melodias forem de igual importância.

(9) Id., Ibid., pg. 216.

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Ouvindo uma fuga a quatro, cinco ou mesmo seis partes, o ouvido é, possivelmente, conscio da presença de todos os sons, porém, somente percebe e segue com precisão a melodia mais importante. As outras partes enchem enriquecem o fundo musical e a harmonia, mas vão se tornando traços apagados na imaginação do ouvinte. Não ficam claramente registradas como distintas linhas melódicas na construção tonai.. Isto sendo verdade leva o compositor a descobrir que na construção polifônica. assim como na estrutural, deve-se guardar certos li-mites". (10)

Esses três mestres enriquecem com elementos estilísticos as suas obras, perfazendo uma conexão formal com os princípios históricos da música.

O conceito rítmico-melódico, na obra desses com-positores, estabelece uma expressiva prova dos processos de composição, em que se verifica a mudança orgânica de uma nova expressão sonora, pelo vínculo de períodos históricos, ao mesmo tempo contrários e correspondentes.

Avaliar ou indagar qual desses compositores seja o melhor me parece insensato, pois, cada um deles possue suas virtudes próprias e seus méritos pessoais.

(10) Id., Ibid., pg. 141.

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ALLEGRO ENERGICO E PASSIONATO (FINALE)

EUTERPE E TERPSÍCORE

MÙSICA desempenha uma substancial função na dança, uma função de tal maneira inequívoca que, excluindo-a, a arte de Terpsícore cairia em pura mímica, ou na categoria da dança introvertida. De acordo com Curt Sachs: "El cultor de Buda olvida el mundo con su sonido peculiar su OM!, y el danzarín samoano sentado con su MM! El derviche profiere un sonido UU! el antiguo sacerdote de Cibeles y el danzarín hipnotizado de Bali su HUU! y el indio del noroeste del Brasil, PUU! Tal vez las danzas de zumbido de los maidus meridionales de California pertenezcan también a esta categoria". (11)

A identidade entre a poesia cantada, dança e mùsica, já se encontra no Velho Testamento da Bíblia Sagrada: Primeiro livro de Samuel, Cap. XVIII. v. 6: "Succedeu porem que, vindo elles, quando David voltava de ierir os philisteos, as mulheres de todas as

(11) CURT SACHS — Historia Universal de Ia Danza, Centurión, Buenos Aires, pg. 189.

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cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando, e em danças com adufes, com alegria e com instrumentos de musica".

Também nas obras da escultura primitiva de Sakkâra (cidade do Egito), cerca de 1500 anos a.C, foram descobertos vários relevos que deixam bem claro figuras que tocavam instrumentos em sincronis-mo rítmico, o qual se unia ao gesto articulado da dança. Tal harmonia se verificava através da imitação, isto é, através da mímica.

Os poetas gregos — na opinião de Jules Com-barieu — usavam artifícios tais como a repetição de certas palavras para contrabalançar o paralelismo rígido das frases, completando um ângulo de consonâncias, as quais denominavam de rimas líricas. Deste modo, as acentuações da poesia, oriundas da simples repetição, constituem as formas elementares do equilíbrio entre a dança, poesia e, naturalmente., a música.

Desde a heterofonia gregoriana às magistrais construções polifônicas de Machault, Dufay, Palestrina, De Lasso ou aos mestres de "ballet" de Luiz XIV. o conteúdo substancial da música é sempre o mesmo, apenas as expressões formais se desarticulam e se alargam, abandonando a noção clássica da sua arquitetura interior. O bailado puro não deixou de ser cultivado, mantendo, entretanto, um caráter inteiramente à parte. O Ballet de cour, bailada palaciano, pantomina dançada e cantada, teve o seu começo em 1653 com o Ballet de Ia Nuit.

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Com Marius Petipa prepondera a expressão dinâmica, combinada com outros elementos : o bailado é, por assim dizer, uma síntese de gestos. A regularidade rítmica dos movimentos se fixa a relações definidas da obra coreográfica. Às correlações do port de bras e grand battement sucedem-se os passos simplificados de rond de jambe à terre, assemblé, ballonné e changement do ALLEGRO. Assim, o significado da dança clàssica estabelece um nexo determinado nos sete movimentos básicos, que são: — plié; tendu; relevé glissé; sauté; élancé e tournant. Os battement tendu, quatrième devant e petit jeté do ALLEGRO, aparecem, também, em função dos elementos fundamentais. Esses elementos, que em conjunto formam o alfabeto da coreografia, equilibram-se sempre dentro da obra, mas geralmente esta se apoia num ou noutro desses elementos e adquire a sua supremacia. Note-se que, em todas as danças de cunho clássico, os bailarinos têm uma função mais ou menos estável.

Somente no princípio do século XX, sob a influência dos célebres "Ballets Russes", o bailado alcançou uma excelente reputação artística na preferência das multidões.

Nos trabalhos de Nijinsqui, como nos de Foquine, o elemento coreográfico predomina, num contrabalanço de linhas e de saltos representados no espaço. Uma sólida construção domina a dança. Em Massine, o caráter coreográfico e o musical igualam-se, como em Balanchine. Já em Serguei Lifar, e de uma maneira geral nos impressionistas, a expressão musical da obra

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bailada domina quase exclusivamente, não obstante a tentativa de volta ao bailado puro, com o seu ÍCARO.

Quanto ao levantamento do padrão estético do "ballet" deve-se a um processo mais sério no seu tratamento, a uma grande compreensão dramática da pan-tomima e a uma nova construção, conferindo-lhes, ao mesmo tempo, o aspecto de sinfonias coreográficas, onde se une o canto solístico ou coral, como em : Les Noces de Stravinsqui; El Amor Brujo de Falia e .Aeneas de Roussel.

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DO ESTILO

DE autoria do eminente ensaista e crítico Eduard Hsnslick a seguinte observação: "...Quisiéramos que se considerara el estilo en Ia musica desde el ângulo de sus propiedades musicales, como la tècnica perfecta, tal como aparece a modo de hábito en la expression de la idea creadora. El maestro acredita "estilo" cuando al realizar la idea claramente concebi-da, suprime todo lo mezquino, inconveniente, trivial, conservando así uniformemente en cada pormenor técnico la actitud artística del conjunto. Emplearíamos el término de "estilo", como Vischer (Aesthetik, inc. 527) también en el tocante a la musica, de un modo absoluto para decir, con abstracción de las divisiones históricas o individuales: este compositor tiene estilo, en el sentido en que se dice de alguien que tiene carácter".

"El aspecto arquitetônico de lo musicalmente bello ocupa en la cuestión del estilo, visiblemente,, um primer plano. Siendo un imperativo superior al de la mera proporción, el estilo de una composición se malogra con un sólo compás que, siendo intachable de por sino armonice con la expresión del conjunto. Igual que

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a un arabesco inadecuado en un edificio, llamamos falta de estilo a una cadencia o una modulación, que se aparta como inconsecuencia del desarrollo uniforme de la idea básica.

Esa uniformidad, por supuesto,, debe entenderse en un sentido superior y más amplio, de modo que eventualmente comprenda el contraste, el episodio y no pocas libertades". (12)

O ponto de vista estilístico foi introduzido na música por escritores do século XVII, os quais inventaram uma sèrie de vocábulos para determinar as várias expressões da mùsica: Stile antico (obligato, grave, osservato, romano), estilo antigo, do periodo "Palestrina", de contraponto rigoroso; Siile concertante (moderno), é um estilo tipico da mùsica Barroca; Stile conciato, estilo do gesto e da expressão dramática (Monteverdi). "Il Combattimento di Tancredi e Clorinda"; Stile nuovo (espressivo, rappresentativo, recitativo), estilo em que se pretende encontrar um símbolo de lirismo monódico expressivo; Stile galante ou Stile sueto, estilo do século XVIII, período Rococó (Haydn, Mozart).

Cada época divisa na história da música seus problemas e seus_ horizontes, por isso, a música barroca, do período de sua plenitude, bem vista hoje, mostra o seu ritmo e sua móvil plasticidade, assim a Inglaterra vinha, desde o começo da polifonia, enriquecendo a arte dos sons de processos e formas com uma plêiade de compositores polifónicos e instrumentais, entre os

(12) EDUARD HANSLICK — De to Bello en Ia Musica, Buenos Aires, 1947, págs. 85-86.

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quais se nos apresenta Henry Purcell, um dos compositores mais famosos da melodia acompanhada.

O barroco é anterior ao século XVII, isto é, se define claramente na música desde o fim do século XVI. E' um estilo ornamental, que se pode manifestar, e se manifesta em todos os campos da atividade humana, por exemplo: o barroco, empregado à literatura. não envolve unicamente a poesia transcendental, envolve também formas diferentes que enobrecem a literatura de então. Como aditamento citarei um trecho de "Aspectos da Literatura Barroca", de Afrânio Coutinho : "Mostra Roy Daniels as diferenças do barroco inglês e do barroco continental, diferenças devidas a seu ver, a condições diversas; a posição geográfica, a concomitância do movimento renascentista e da reforma protestante, a monarquia tudor e a igreja anglicana como influências moderadoras, a ausência do papado vitorioso e de movimentos jesuísticos triunfantes, a persistência de elementos medievais, "góticos", a dentro do Renascimento, o hábito inglês do acordo e da conciliação, tudo fazendo com que o barraco na Inglaterra se apresentasse distinto. Em todo o caso, como sinal de que também lá surgiu uma expressão dessa sensibilidade artística peculiar, aponta o sentimento de triunfo e esplendor, um esforço árduo para unificar tendências paradoxais, um afã exagerado de virtuosismo técnico". (13)

A música barroca inglesa teve o seu apogeu em Haendel (1685-1759) com a criação da "Academia

(13) AFRÂNIO COUTINHO — Aspectos da literatura barroca, A Noite, Rio, 1950, pg. 97.

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Real de Música", semelhante a que Lully criara em Paris, sob o patrocínio de Luiz XIV, sendo que os principais teóricos do estilo barroco são: o francês Marino Mersenne, amigo de Descartes, autor da Har-monie universelle (1636); o alemão Kircher, autor da Musurgia universalis (1650) e da Phonurgia nova (1673) e o inglês Tomas Mace, autor do Music's monument (1676).

Todavia, a música inglesa desapareceu com seu interesse histórico universal.

No campo da música instrumental, em contraposição ao dualismo enternecedor da sonata do século XIX, a toccata, a ária e a variação — bases técnicas da música barroca, três conjuntos de formas da arte musical — são os modelos preferidos pelos compositores ingleses contemporâneos.

A origem remota da ópera se encontra na tragédia grega e. portanto, no ano 534 A.C., data em que Téspis teria feito representar a primeira tragédia entretanto, a ópera florentina teve origem, indiretamente. nos espetáculos das festas suntuárias barrocas e, diretamente, pela necessidade de encontrar um tipo de lirismo monodico expressivo, no qual o sentido harmônico provêm de um novo elemento: a harmonia instrumental como fonte de expressão dramática, ambiente poético e colorido.

Na técnica de Benjamin Britten, particularmente nos recitativos, e na estrutura dos coros e da instrumentação, sente-se o estilo da ópera barroca. Em sua obra Peter Grimes, na qual êle incorpora a técnica

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clássica barroca, me parece, sob o ponto de vista musical e dramático, tão atraente quanto The Rape of Lucretia, onde se encontram, também, bafejos dos métodos barrocos, tanto no estilo musical como no teatral.

Outros compositores ingleses contemporâneos : Michael Tippet, William Walton e Alan Rawstborne surgem, nestes últimos anos, numa perfeita compreensão dos conceitos tradicionais da música barroca e dos conceitos renovadores radicais da música atual, retomando a música inglesa, dessa forma, sua eficiência musical histórica.

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MUSICA ANTIGA E MÙSICA ATUAL

M 1180, confrontando o monumento polifonico mais avançado que se conhece : Magnus Liber Organi "de gradali" et "de, antifonario", o mestre Léonin (com quem começou a celebridade da escola de Notre Dame em 1150) emprega, constantemente, agudas dissonâncias como uma engenhosa estrutura polifònica, que vem emprestar uma rara analogia com a música atual do compositor Arnold Schoenberg. Esta dissonância está, pois, manifesta, isto é, se desenvolve num espaço de tempo que só o processo evolutivo permite oferecer, e ela é a expressão, em suma, de um e/an contínuo para um limite sem fim.

A Escola Expressionista de Arnold Schoenberg caminha necessariamente no sentido de fixação. (Considerando os termos "expressivo" e "expressionista" na mesma relação que "emoção" está para "complexo psicológico" se verifica que a designação de música expressionista é, talvez, menos expressiva do que a música impressionista ou romântica). Essa fixação não é uma finalidade estética, mas uma etapa transitória para o desenvolvimento do período de transformação. Quando os elementos sonoros atingirem o grau de amadure-

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cimento e de flexibilidade — suficientes para se adaptarem à finalidade estética — começam a se afastar da objetividade que caracteriza a fase de fixação, e o conceito de Escola se define, verificando-se, assim, a evolução do sentimento harmônico, que encerra em si a complexidade estrutural, através de um fluxo, cuja qualidade principal, no caso, é a dissonância.

Augusto Meyer, em seu ensaio O Valor da Incom-preensão, define muito bem, do ponto de vista literário. o processo evolutivo: "...Na história da literatura, — diz êle — impõe-se igualmente outra face positiva desse valor, que decorre da própria fatalidade da incompreensão. Com a distância no tempo, de geração a geração, acentua-se o conjunto de circunstâncias que tende a retocar, modificar e às vezes deformar o sentido original das grandes obras, a pureza genuína das intenções que animavam o autor, ou dos sentimentos de afinidade que o ligavam ao leitor contemporâneo, numa espécie de harmonia pré-estabelecida. Com a mudança inevitável, e apesar de todas as tentativas de reconstituição crítica, nunca podemos afirmar com certeza que o compreendemos como êle desejou ser compreendido, e é quase certo que jamais o interpretamos como o interpretaram a seu tempo os contemporâneos.

Mas é justamente essa forma dialética da incompreensão, necessária, cambiante, imperceptível na sua marcha miúda, o principal fator de enriquecimento progressivo no conteúdo das grandes obras, e na sua cumplicidade com o tempo que passa, nós sentimos, por força de uma intuição contraditória mais viva, o seu

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valor mais concludente — o verdadeiro valor da in-compreensão". (14)

Era opinião de Arnold Schoenberg não existir distinção entre música antiga e moderna, somente boa e ruim. Toda a música, como resultado da imaginação realmente criadora, é nova. Bach, segundo Schoenberg, é tão novo atualmente como sempre o foi — uma contínua revelação.

Ao terminar este escorço de música confirmo, uma vez mais, a minha opinião, dizendo: E' certo que se não surgissem personalidades excessivamente independentes, no campo da sensibilidade musical, a arte dos sons cairia numa eterna substância sem desenvolvi-mento. A influência histórica dos conceitos clássicos musicais, sem passar por períodos sucessivos de crescente aperfeiçoamento, geraria um dogmatismo e, posto em contradição com épocas de crescentes conclusões, criaria um academicismo monótono ou uma escolástica asfixiante, tenderia a impedir e condenar a transformação histórica normal.

(14) AUGUSTO MEYER — À Sombra da Estante, José Olympio, Rio, 1947, pgs. 112-113.

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INDICE

Paga.

ALLEGRO CON BRIO

Da Escola. Duração Bergsoniana. Dos elementos sonoros ................................................................................ 3

TEMPO MODERATO, QUASI ADAGIO

Ars antiqua ............................................................................. 9 Expressões formais da mùsica ............................................. 13 Clássicos vienenses e Romantismo musical ...................... 17

FOCO VIVACE (Scherzo)

O Rabelais da Mùsica moderna .............................................. 22 Coerência artística .................................................................... 26

ALLEGRO ENERGICO E PASSIONATO (Finale)

Euterpe e Terpsicore ............................................................... 31 Do estilo .................................................................................. 35 Mùsica antiga e música atual ............................................. 40

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de Jose Simeão Leal

1 — JOSÉ JANSEN ...................................... A máscara no culto, no teatro e na tradição

2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON .......................................... José Lins do Rego

3 — PAULO RONAI ..................................... Escola de Tradutores

4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE ................................................... Viola de BOLSO 5 — LÚCIO COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira

6 — Lúcio COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto

8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado

9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................. Monte Cristo, ou da Vingnnça

11 — Luís COSME ........................................ Música e Tempo

12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... Miro 13 — OTÁVIO DE FARIA ................................ Significação do Far-West

14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte

15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Teatro de Cervantes

17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto

18 — GILBERTO FRETBE .............................. José de Alencar 19 — CLARISSE LlSPECTOR ...................... Alguns Contos

20 — MÁRIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna

21 — ROSÁRIO Fusco ................................. Introdução á Experiência Estética 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................... Realidade e Ficçao

23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar

24 — LEDO IVO ........................................... Liçáo de Mário de Andrade 25 — EUGÊNIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventríloco

26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens, Seres e Coisas

27 — OTÁVIO TABQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Lite

29 — ALEXANDRE PASSOS ........................... A Imprensa no Período

30 — MANOEL DIÉGUES JÚNIOR ________ Etnias e Culturas no Brasil.. 31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo

( C o n t i n u a na .3° pág.)

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CELSO KELLY

TRÊS GÊNIOS REBELDES

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃC

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GOYA

A UNIVERSALIDADE DE GOYA

OR que Goya, neste tempo e neste meridiano ? Nos dois séculos que decorreram de seu nascimento (1) aos nossos dias, a crônica inscreveu tantos nomes, festejados na época, registrados com entusiasmo e perdidos, de fato, na posteridade. Todavia, o filho do lugarejo modesto (Fuendetodos), de família simples, de origem humilde, torna-se uma das expressões da Espanha e, mais que isso, um dos autênticos "artistas universais", dessa galeria privilegiada dos que falam uma linguagem de todos, em qualquer século ou sítio do mundo. O artista universal é o que viveu e produziu fora das receitas e das limitações convencionais da sua época, afirmação própria de uma personalidade, confissão de uma vocação ardente e de um talento criador. Desapegado de "escolas", longe dos preconceitos, da expansão à sua sensibilidade, no traço original, sem as transigencias da moda. Daí, a "universalidade" de Goya, que reagiu contra a pintura barroca em que se iniciou, e deixou, em toda a sua obra, lições que perdurarão, emoções que não se apagarão, pelos tempos afora, questões que continuam no debate e na curiosidade dos

(1) Em 1746.

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estudiosos. Espirito impulsivo e rebelde, temperamento complexo, censor impiedoso, tem em si, ao lado do gênio, que deslumbra, a controvérsia que seduz. Goya figura entre os artistas da "nossa permanente indagação".

A PINTURA OU A GRAVURA ?

Por isso, deve-se formular, desde logo, essa questão: pintor de telas famosas, desenhista de séries memo ráveis de gravuras, em qual das duas artes — a gravura ou a pintura — Goya terá encontrado o clima natural e espontâneo para a expansão do seu talento criador, dentro das condições difíceis de seu temperamento? Aqui, há que consignar, antes de iríais nada, as contingências do pintor. Estreitamente ligado às figuras dominantes da época, o artista busca o desenvolvimento gradual de suas relações, o prestígio mundano, a ascensão oficial. Goya, malgrado a bravura de seu temperamento, percorreu todos os degraus dessa escalada penosa. Se, realmente, aquela tímida Josefa tanto o impressionou, por ocasião do primeiro encontro, nos salões aristocráticos da senhora Isabel Montes, desposou-a Goya, por afeto, mas também por ser ela irmã de Bayeu. pintor real, que facilitaria ao cunhado o acesso fácil e seguro à Corte e à família reinante. Os anseios, legitimados pelo mérito real, confirmaram-se. Goya tornou-se pintor oficial e pintor mundano, requisitado para fazer retratos, recebendo as mais significativas encomendas. Sua bela obra de pintura encerra alguns dos melhores retratos de todos os tempos, composições de

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assunto religioso e quadros de gênero. Todavia, os que conhecem a surda luta que qualquer artista empreende para alcançar a simpatia e o favor dos contemporâneos, "possíveis consumidores'' de sua produção, não ignoram as pequenas, e por vezes grandes concessões do criador a essas criaturas. O implacável Goya, severo nos seus julgamentos, irredutível a ponto de sua sogra (2), ante um dos momentos de recolhimento e tristeza do artista, haver exclamado à filha: — "Sofre porque não pode perdoar ao mundo" — teria transigido diante das contingências, ou ter-se-ia mantido fiel às suas impressões espontâneas? Em algumas telas, inclusive no retrato da família real, sente-se, por detrás dos personagens, na imponência majestática das situações, a irreverência, o estigma da crítica e da verdade, a inevitável confissão do juízo nada lisonjeiro que lhe fazia o artista. Na maior parte dos seus trabalhos pintados, não há louvor a cometer fora dos esplendores singulares de sua técnica.

A GRAVURA E O TEMPERAMENTO DO ARTISTA

O temperamento de Goya está muito mais vivo na gravura. E' aqui que o psicólogo descobre o "humano" e o analista social disseca os "fatos" e a sociedade. Na série "Caprichos". Bersier (3) lhe aponía o "único

desejo de chicotear um estado social abominável": sátiras políticas, cenas de costumes, visões monstruosas, (

(2) Max White, "En la luz deslumbrante", pg. 172. (3) Bersier, "La gravure", pg. 208.

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caricaturas da idade do vício ou do defeito; "despedida violenta e amarga do século XVIII", na expressão de Enrique Laíuente Ferrari (4). Nos '"Desastres da Guerra", o artista consegue fixar as mais alucinantes cenas de horror, de impiedade, de destruição, os sentimentos de maldade e de dor, a ronda sinistra da marte, das mutilações. De suas pranchas, não avulta nenhum herói. Não há vencedores nem vencidos. Não há qualquer parcela de nobreza ou simpatia, em meio à luta; somente o quadro penoso da guerra, que é a sua própria condenação. Um dos comentadores dos "Desastres da Guerra" afirmou ter Goya deixado, nessa série, o seu "testamento", isto é, a mensagem às gerações posteriores, alertando-as contra as misérias das lutas internas e dos conflitos armados. Don Antônio de Trueda, que fixou vários aspectos da Espanha, colheu, da visita que fizera à Quinta do Surdo, o diálogo que lhe fora referido ainda pelo jardineiro de Goya: — Senhor, para que pinta essas barbaridades dos homens?

— Para poder dizer eternamente aos homens que não sejam bárbaros. (5)

Na "Tauromaquia", o tema é o assunto favorito do seu povo. Num bando de toureiros, havia viajado, no começo da sua carreira artística, para alcançar Roma. (6). Em torno dele, as corridas de touros se sucediam na vída normal da Espanha. Essa série, embora caracterizada pelo movimento impressionante das cenas, cons-

(4) E. L. Ferrari, "Catalogo", pg. 11. (5) E L. Ferrari, "El dos de Mayo", pg. 17. (6) Franc. Esteve Botey — "História del Grabado", Pg.

317.

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titui um "remanso" (7) na motivação atroz das outras coleções. Nos "Disparates", de novo a loucura humana se desenvolve, com violência e brutalidade, com delicadeza e finura. De qualquer modo, em todas essas séries, palpita a "vida" no comentário mais quente e incisivo, da forma mais apaixonada e veemente. Ali há mais do que a guerra, dos que os vícios, do que os touros: há a dramaticidade interior de Goya. E' essa dra-maticiclade pessoal (que teria faltado a Rembrandt) o fator característico de sua gravura, permitindo ver o que escapara aos outros, e fixar o que fugia à sensibilidade do comum. Mas, nessa arte de Goya, a afirmação técnica é extraordinária: na composição e no claro-escuro, na distribuição das manchas negras e luminosas, na energia de certos desenhos, na poesia de determinadas composições. A gravura, porém, lhe foi o campo aberto às criações geniais. Nelas, Goya, pintou e escreveu, conciliou a arte e o pensamento, a técnica e a filosofia, os sentimentos estéticos e o ardor crítico. Poderia ter essa desenvoltura nas telas? A pintura cerceia aos mais audaciosos. Há limitações, por vezes insuperáveis. A gravura recolheu, muito melhor, o turbilhão de emoções que Goya sentia necessidade de traduzir.

A DIFERENÇA DE LINGUAGEM

Os trabalhos de Goya, distribuídos entre a pintura e a gravura, documentam, de maneira soberba, as propriedades e peculiaridades de cada uma dessas artes.

(7) E. L. Ferrari, "Catalogo", pg. 11 e 12,

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Refiro-me à pintura na sua expressão natural, desde as telas de museu até os grandes murais. E, quanto à gravura não considero o processo de simples reprodução de obras pintadas, mas a gravura autônoma, a que é, em si mesmo criação. Então se desenha o contraste das aparências numa e noutra arte, a diferença de linguagens; a diversidade de efeitos sobre o espectador.

Enquanto as telas, na amplidão de sua superfície, no vigor de seu colorido, no brilho de sua matéria, no esplendor de sua composição, deslumbram os que as vêem, já de longe, como se falassem a grupos ou, talvez, a multidões, no simples relancear dos olhos, curiosos e atraídos, pela magia da técnica pictórica, — as gravuras escondem-se numa humildade discreta. En-quanto as telas, destinadas a palácios e templos, convidam cortesãos e fiéis ao culto dos poderosos ou das crenças, conclamando, pelo efeito das vastas superfícies pintadas, à contemplação, paradoxalmente imediata e ilimitada — as gravuras não desfrutam desse poder de sedução, decorrente, naquelas, da festa das cores aos olhos do público. Enquanto as telas, dominadas pelo sentimento de beleza, procuram corresponder aos temas nobres da mitologia, da religião, da história, da aristocracia, do poder, ou aos motivos estáticos da figura, da paisagem ou das flores, com que buscam deslumbrar o espectador e conquistar o favor fácil dos amadores de arte — as gravuras se permitem os mais diversos registros, na efetiva modéstia de seus processos. Sim, a gravura é bem diferente! Intima, reservada, reduzida a pranchas pequenas, permite toda sorte de aproveitamento. Não oferece obstáculos materiais: a placa

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está diante do artista, para que ele faça o que quiser. Desenvolve-se o traço com liberdade. Não se sujeita às limitações fundamentais da composição pictórica. Admite a sátira, o humorismo, o pitoresco, sem quebra de sua dignidade; até com proveito do interesse que desperta. A pintura proclama um tema. A gravura sussurra os seus assuntos, confidencia, fala baixo, conversa com o apreciador, dialoga com ele, transmitindo-lhe, não só o efeito estético de uma solução, mas muito mais: uma anedota da vida, com o vigor, a controvérsia, a inquietação das cenas e dos fatos. Contemplamos a pintura, isto é, nós a "vemos". Mas, com relação à gravura, a atitude é outra: é a de quem perquire, indaga, "lê" nos traços o episódio, "descrito" admiravelmente através dos deliciosos acidentes de uma água-forte. . . A gravura não convoca multidões: fala de um a um. Não podemos alcançá-la à distância, nem dela ter im-pressões súbitas e fugazes: ao contrário, somente bem perto dela, debruçado sobre ela ou frente a ela, é que travamos conhecimento. E esse conhecimento nada vale, até que não se torne "conhecimento íntimo". A gravura possibilita uma palpitarão subjetiva intensa em seu bojo modesto. De par com o mais precioso, sob o ponto de vista da arte e da técnica, encerra um conteúdo espiritual profundo. Pelas gravuras, Goya transborda todo o seu complexo temperamento. São, muitas vezes, obras-primas na composição, no jogo do ctaro--escuro, na vibração do traço; mas são sempre mais do que isso, na linguagem que não cessam de falar, no diálogo que mantém, desde o homem do século XVIII fcté as gerações futuras dos dois mil. . .

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A ATUALIDADE DE GOYA

A obra de Goya permanece, no grande acervo da pintura universal, como urna nota de vivo interèsse, despertando paixões, polemizando. Ninguém a transfere para os domínios do que "passou em julgado". Permanece fresca e viva, como foco perene de inspiração aos próprios artistas, como motivo de indagação para os críticos, como surpresa para o público. Esti-mando realçar a expressão característica dos quadros de Goya, Henrique Lafuente Ferrari propõe-se assinalar a impressão de um visitante normal, diante das obras fundamentais do famoso Museu dei Prado, a passear através de suas ricas e variadas galerias: o ingênuo e delicado mundo dos primitivos, a dignidade e nobreza de Rafael, o espírito analítico de Durer, a opulencia coloristica de Ticiano, os mestres do barroco com a excessiva humanidade de Rubens, a elegância de Van Dycik, a altivez e a individualidade de Velasquez e, enfim, a frágil delicadeza dos pintores do século XVIII, inclusive o próprio Goya, em suas obras de juventude e madureza. Satisfeito do gozo alcançado nesse percurso de suaves transições, o visitante perturba-se subitamente diante dos dois grandes quadros de guerra de Goya. Terá explodido uma tempestade? Terá dobrado o Cabo das Tormentas na história da arte? Uma tremenda dissonância com a evolução histórica da pintura ! Um grito de desespero, desgarrado, naquele concerto de vozes! Algo de grave e importante terá ocorrido na maneira de enfrentar-se o homem com o mundo. A arte é profética. OS dois quadros "representam, pela pri-

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meira vez no Museu, o que chamamos de arte moderna, palavra explosiva e concreta, que, então, o homem começa a aplicar-se a si mesmo" (8).

Desde os cartões feitos para a Real Fábrica de Tapetes, entre 1776 e 1791, Goya alternou os "assuntos festivos" e as "cenas obreiras e populares", com a "graça juvenil e campestre" (9) que muitas vezes lhe imprimiu. O afastamento dos temas convencionais acentuava-se, sempre que as circunstâncias o permitiam. Se era menos freqüente na pintura, era comum na gravura. A natureza, o nu, o motivo alegórico — pouco pesaram em sua obra. Êle buscava emancipar-se dos "temas habituais" para ganhar plena "liberdade de motivação". E, com essa, a "liberdade de interpretação" e de "execução". Isso se verifica, plenamente amadurecido, nos dois quadros históricos referidos acima: "El dos de Mayo" e "Los fusilamientos", frutos de urna violenta comoção interior — a de testemunha real das sangrentas ocorrências daquela data e dos dias seguintes (10). Aqui são íntimas as afinidades de Goya com o realismo francês. Aqui sua obra seria, por igual, n precursora do "impressionismo", quando, segundo a observação de Malraux, salvo o significado das respectivas telas, a "Execução de Maximiliano" de Manet é o "Três de Mayo" de Goya, e "Olimpia" é a "Maja desnuda", e o "Balcão" as "Majas no balcão". O grande crítico francês afirma: "Goya pressente a arte moderna".

(8) "El dos de Mayo", pgs. 5 e 6. (9) Bersier — "La Gravure", pg. 207. (10) "...toda a

crueldade e o horror, cuja 'embrança Goia conserva" (Bersier, pg. 208).

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E, depois explica: "o que é moderno nele é a liberdade de sua arte" (11).

Duas tendências, rigorosamente contemporâneas — o expressionismo e o surrealismo — encontramo-las pre-cursoramente em Goya. As gravuras — domínio natural de Goya — dão uma lição, alternada, de surrealismo e de expressionismo. Deste, em várias peças das quatro coleções fundamentais (12), Daquele, muito especialmente na coleção intitulada "Os disparates", expressos em "esquemas a que chamaríamos hoje surrealistas", segundo Lafuente (13).

Todavia, as duas grandes conquistas renovadoras de Goya estão na pintura histórica e na evolução da própria gravura. Goya rompeu com a tradição da pintura histórica, caracterizada pela dignidade e pelo heroísmo. Os antecedentes da arte comemorativa, desde os romanos, foram sempre a glorificação dos conquistadores e guerreiros. A pintura do renascimento e a do barroco não fogem às alegorias, que são, no fundo, "aclama-ções". O artista espanhol substitui aquelas duas constantes da arte histórica ou comemorativa — a vaidade dos homens e o orgulho nacional — pelo trágico intrínseco das guerras e lutas entre irmãos. Assim nas gravuras — "Desastres de guerra", assim nas telas de Maio. Rompendo esses limites, violou frenèticamente "as fronteiras adiante das quais se encontra o moderno" (14).

(11) "Les Voix du Silenc*", pg. 97. (12) F. E. Botey — "História dei Grebado", pg. 313. (13) Lafuente, "Catalogo" pg. 12. (14) Lafuente, "El dos de Mayo", pg. 7.

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O GRAVADOR PANFLETÁRIO

A gravura vinha sendo, salvo raras exceções, inclusive a de Rembrandt, a "reprodução"' de quadros célebres e de monumentos. Não era arte "criadora". Melhor poderíamos considerá-la "documentária". Em período em que ainda não existiam os recursos admiráveis da fotografia e suas aplicações mais ou menos mecânicas, a habilidade do gravador passava a ser solicitada para a missão de divulgar e difundir. "Com "os Caprichos", Goya inaugura a gravura de "modo completo", não apenas para êle, mas para todos os gravadores do mundo" (15). Em verdade, uma arte só se torna verdadeiramente arte quando atinge a sua autonomia. Quando se revela "criadora" em si mesma. E' Goya, em toda a vasta galeria dos gravadores, quem mais fèz da gravura arte própria, autônoma, independente, com todas as sutilezas e mistérios da técnica, ao mesmo tempo que com expressão e destinação específica. As gravuras de Goya assemelham-se às memórias. Talvez a crônica mais viva e inquieta do tempo. Possivelmente seu criador se poderia comparar a um panfletário incendiado, vendo e registrando, à maneira de um repórter, o turbilhão dos acontecimentos (16). "O gênio de Goya — assinala com realismo André Malraux — quer arrancar ao mundo sua máscara de hipocrisia" (17). Essa é a tarefa dos jornalistas impenitentes e sinceros. Fazendo

(15) Bersier — "La Gravure*', pg. 207. (16) Escreveu, embaixo de uma de suas pranchas: "Eu vi

isso!" (17) André Malraux — "Les Voix du Silence".

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da gravura esse instrumento poderoso, abriu novas perspectivas à arte. Numa como noutra, o ímpeto criador não encontrou limites. Os impulsos interiores e o gênio construtivo fizeram de Goya o artista inédito. O tempo corre e Goya continua a merecer de cada geração a maior curiosidade e o mais franco debate. Haverá melhor prova de vitalidade e de atualidade?

SEUS MESTRES

Tem-se repetido, nos estudos sobre Goya, que o artista costumava eleger, dentre os seus mestres, a natureza, Velasquez e Rembrandt — a natureza, que, num sentido muito largo, é a mestra de todos; Velasquez, cuja obra ocupa na pintura universal e, especialmente na Espanha, uma dessas culminâncias, que sempre se projetam sobre os artistas; e Rembrandt, que terá exercido a mais forte influência na evolução da gravura moderna, sem esquecer a posição admirável do pintor. Se é certo que qualquer dos três elementos indicados representou muito na obra de Goya, todavia não podemos considerar a trindade como característica de sua vasta produção. A Juan de la Encina (18), parece injusto que Goya haja omitido Tiépolo (19), e se tenha esquecido das afinidades que existem entre os seus retratos e os retratistas ingleses do século XVIII. Em Goya, cujo talento buscava "recursos livres" de exteriorização,

(18) "La pintura espafíola". pg. 203. (19) Tiepolo e Gallot também tiveram os seus "Caprichos".

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não seriam estranhos os pintores de gênio, que formam a grande galeria da arte. Nenhuma influência causariam os artistas sem personalidade, os seguidores de escolas fracassados, os que se confinavam às possibilidades restritas de um país, de uma época ou de uma escola. Reagiu contra as tendências afrancesadas que, no momento, tinham curso na península, por sua fragilidade. Retomou o "sentido espanhol", não por que existissem condições específicas a justificar essa expressão ("sentido espanhol"), mas porque, sendo liberto de preceitos e preconceitos e tocado de gênio, se encaminhou para a plenitude da expressão, sem modelos, cânones ou receitas. Nisso coincide com El Greco e Velasquez, com eles formando os três grandes de Espanha. mas deles se distancia substancialmente em espírito e em técnica. "Não há ponto mais rico nem mais delicado na pintura espanhola; mas. também, não há mais rude e, até mesmo, grosseiro".

Por seu turno, Jean E. Bersier. depois de recordar que "comparou a liberdade de sua técnica, a espontaneidade de seu traço e o seu senso do drama aos de Rembrandt", afirma categòricamente: "nada mais falso". E justifica-se: "entre os holandeses, o traço febril, tenro e poderoso não cessa de buscar, na forma, a alma e o coração humano; uma adoração constante o força a perseguir, pela técnica mais sóbria e mais complexa, o lugar desta alma, um rosto, uma mão, um céu, uma árvore. A vida fremente é freqüentemente o resultado de pacientes e longas repetições, e nunca deformará, a seu serviço, o menor gesto humano. Sua violência, ela

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própria, terá sido respeitosa". Agora, a oposição: "Em Goya, tudo ocorre de outra forma; o drama está nele, sem que ele sonhe, um instante, em edificá-lo. Nenhum desejo de amor, nem piedade; a indignação veemente será a da inteligência diante da estupidez; êle se servirá da injustiça para profligar a injustiça; do ódio para aplacar seus defeitos; da volúpia para condenar a luxúria; da crueldade para descrever o massacre". E conclui: "As armas de que ele se serviu são opostas às de Rembrandt. A espécie humana aparece quase sem rosto, seus membros freqüentemente atrofiados, desde que o essencial do gesto se tenha encontrado; Goya não parece reservar nenhum cuidado senão às formas que o colocam pessoalmente em cena, êle ou o objeto de seus desejos" (20).

A SOCIEDADE, SIM

A natureza, compreendida como o mundo físico, está muito pouco presente na obra de Goya. Até mesmo a disciplina, decorrente da "realidade" do meio, êle desprezou mais do que buscou. Mais que essa disciplina, que se traduz em cânones, Goya insistiu em atingir a "expressão" mais subjetiva que objetiva, e essa não estava no mundo exterior, mas no seu espírito e sensibilidade. Foi um tremendo fixador, não de figu-ras, porém de tipos; não de físicos, porém de caracteres; não de indivíduos, porém de personagens. E,

(20) "La Gravure", pg. 208.

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acima deles, palpitavam as cenas e os latos, com todas as circunstâncias atraentes e os efeitos deduzíveis. A natureza lhe fugiu à observação aguda e à preferencia reiterada. O "humano" e o "social" dominam sua obra. A "sociedade" (21), e não a natureza, deveria figurar como uma de suas mestras, pelo que proporcionou às suas criações — como estímulo, como tema, como mensagem, enchendo-as de um conteúdo palpitante que atravessa os séculos, e que permite — quando, hoje, nos perdemos, sem saber explicar o mistério da cabeça de Goya, arrancada do corpo e per-(dida — dizer, apentando-lhe a obra: — "se não sabemos da cabeça, pelo menos o espírito está aí!"

(21) "A sociedade espanhola do seu tempo está agudamente retratada em sua obra, desde o Rei até corte, aristocracia, burguesia, povo" — Juan de la Encina. "La Pintura Española", pg. 202.

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O ALEIJADINHO

A CIDADE BARROCA OURO Preto, a cidade tradicional do Brasil, encerrando em sua estranha paisagem tantas evocações históricas e tesouros artísticos, está zelosamente guardada, pelas montanhas que a envolvem (1), como o fruto raro da civilização do século XVIII, transformado em jóia de arte, lavrada ao calor da imaginação ardente dos homens que sonharam com as maravilhas das pedras e metais preciosos. Em sua opulência senhoria!, ainda se sente o delírio do ouro, imprimindo ao ambiente o preciosismo dos adornos. o exagero das soluções arquitetônicas. No período feliz das descobertas, a riqueza natural parecia interminável, capaz de justificar todas as ambições e gerar todos os gastos, nutrindo de desmedido luxo aquela comunidade, perdida nas terras a dentro do país. Do colo das mulheres até o recinto sagrado dos templos. as jóias se espalhavam como índices de uma riqueza súbita, que estonteou o homem de então. O ouro pródigo dera, até para compor almôndegas nos banquetes e fabricar ferraduras para o cavalo dos bem sucedidos

(1) "... como se a natureza desejasse esconder do resto do mundo, avaramente. Vila Rica" — Fern. Jorge — "Notas sobre a obra de Aleijadinho", pág. 16.

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exploradores da época. Rompendo as ladeiras da região, as igrejas e as casas iam-se incrustando em meio àquela estranha natureza, como peças de fino lavor que o homem plantava, reveladoras da mentalidade dominante, misto de fausto e fé, afirmação da capacidade criadora nas paragens remotas das Minas Gerais. A cidade, com o número elevado das edificações que se concentraram, em área relativamente pequena, culmi-nando nos templos; com a topografia acidentada das ladeiras, em estilo de presepe; com a variedade de côr das fachadas, seguidas umas as outras, em colares poli-crômicos; com os rendilhados da pedra-sabão lavrada; com os desenhos escultóricos de certos frontespícios e do interior fecundíssimo das naves católicas; com as festas de impressionante esplendor; com os banquetes que denunciavam, a propósito de tudo, a presença do ouro; com a soberba e famosa festa do Triunfo Euca-rístico, qualquer coisa de inédito na suntuosidade do cortejo e da decoração, a mais alegórica e rutilante parada artística e religiosa dcs tempos; com toda essa riqueza de conteúdo e de forma, a cidade é mais uma escultura gigantesca do que arquitetura; é, na sua totalidade, das igrejas de exuberante decoração aos hábitos de assinalado fausto, a grande demonstração plástica da imaginação barroca. Impossível viver mais barroca-mente do que naquele cenário e naquela época. O barroco encontrou o clima adequado: de um lado, o ouro fácil, a brotar da terra e a possibilitar as fantasias mais delirantes; de outro lado. a natureza luxuriante.. acidentada, de morros redondos, e movimentos sinuosos de rios serpenteados e macios; e de permeio, a aven-

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tura da epopéia dos bandeirantes, mesclando sonho, ambição e misticismo. Desenhava-se, sobre essas circunstâncias capitais, o barroco, na sinuosidade de suas linhas, no movimento de sua composição, na riqueza espetacular des elementos que o integram. Ouro Preto resulta de tais circunstâncias. Nasceu e cresceu subitamente. Parou como um flagrante do tempo. E' a *mais rica expressão barroca do Brasil, com sabor próprio. Não se trata da transplantação artificial de um estilo. Em verdade o meio encontrou no estilo a sua satisfação natural. Não se limitou a copiá-lo: reinventou-o entre nós de uma maneira peculiar. Os desvelos da cultura, precurando as raízes da imaginação criadora da nova nacionalidade, transformaram Vila Rica, já de si monumento escultórico, de proporções gigantescas, em autêntico monumento nacional.

PRENUNCIO DE NACIONALIDADE

Ouro Preto prenunciou a nacionalidade. A idéia da independência política decorre de tantos fatores, especialmente a consciência econômica e a formulação própria de conceitos e símbolos. A comunidade pensava e sentia dentro de ritmos comuns, justificando, pois, anseios maiores. Os eruditos, cem Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, teciam as razões em acontecimentos históricos e de natureza jurídica. Outros, menos graduados, comungavam na aspiração comum, levados pelos impulsos irresistíveis da emancipação. No episódio da Inconfidência, está,

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dentre éstes: o herói máximo, Tiradentes. Fora das lutas políticas, outra figura humilde afirma que o Brasil am.Mciurecera: é o Aleijadinho (2), Antônio Francisco Lisboa, filho de escrava negra e de pai português, presença viva das duas raças que se amalgamariam em procura de um denominador comum. O pai o libertou na pia, mediante declaração expressa no assento imediato do batismo (3). Cresceu com as características da mestiçagem.: pernosticidade, revolta, arrogância, convencimento. Teria que vencer o pigmento da pele, graças ao talento. Fora um emancipado da escravidão. Seria um emancipado da arte? Qualquer idéia de dominação encontra em seu sangue repulsa imediata. Pertence a uma classe não definida: num extremo, colocavam-se os fidalgos, proprietários de minas, juizes, poetas, homens cultos; noutros, os escravos destituídos de tudo. A classe intermediária congregava os egressos da servidão, os mestiços sem situação própria. Aleijadinho viveu a liberdade de direito, dentro das contingências desses preconceitos. Seu talento criador responderia aos vestígios dessas limitações e comprovaria que acima das circunstâncias de colônia um homem novo começava a afirmar-se no Brasil e na

(2) "Esse diminutivo de "O Aleijadinho*' explica-se pela gentileza e pela doçura brasileira. Mas o homem não tinha nada de pequeno, nem nada de fraco. Era prodigioso até na sua deformidade. Nem seu físico nem sua moral, nem sua arte revelam qualquer fraqueza sentimental. Toda sua obra de arquiteto e de escultor exprime saúde, robustez, dignidade, que jamais atingiu qualquer outro de nossos artistas plásticos" — Manuel Bandeira, "Guia de Ouro Preto", página 54.

(3) Dasílio Magalhães, Conferência no Instituto Histórico, 1930.

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América: o emancipado que conquista posição por si mesmo. Náo é a sorte que o empurra: é êle que salta sobre os obstáculos. Urna nova e rutilante mentalidade se anuncia. Só mais tarde, com o recuo dos séculos foi possível sentir esse clarão.

DUAS ATITUDES DE UMA EXISTÊNCIA

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, assume duas atitudes sucessivas diante da vida. Esse contraste resulta da precária condição de saúde, a partir dos quarenta. Na sua mocidade, é alegre, jubiloso do destino, praticamente da liberdade, que alcançou ao nascer, expansivo, aproveitando todas as oportunidades do meio em que vivia. Dança, saboreia vinhos e pratos, ama com efusão. A arte está em meio a tudo isso como o imperativo normal da sua sensibilidade. A imaginação criadora já denuncia o seu poder espressio-nal. Contudo, mestre Aleijadinho não conhece, ainda, as razões da amargura. Plenamente extrovertido, mais ou menos normal nas suas exteriorizações, experimenta apenas os limites dos recursos possibilitados pelo desenvolvimento da técnica. Falta alguma coisa para despertá-lo.

Na curva da madureza, o temperamento muda. Torna-se taciturno, retirado do bulício mundano, reservado, desconfiado, progressivamente introvertido. Após os 47 anos, quando a doença começa a desferir sobre êle os penosos efeitos da deformação, recolhe-se a um isolamento desesperador. Esquiva-se ao encontro dos

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amigos. A introversão passa a alimentar um mundo interior, cada vez mais rico de sombras e imagens, de-senvôlto nos desdobramentos das concepções estranhas. O sofrimento faz com que abandone os aspectos amáveis e superficiais da existência, em busca de realidades mais profundas. Essa "dimensão interior" se revela em sua obra, amadurecida sob o ponto de vista artístico, portadora de um conteúdo espiritual e de uma potencialidade emotiva, que só então se afirmam em sua plenitude. O introvertido se compensa no deli rio do "expressionismo", com que se antecipa genialmente à concretização desse movimento na arte moderna .

Qual a causa de tamanhas mudanças? A enfermidade. A enfermidade explica melhor esse mundo atormentado do Aleijadinho do que a afirmação lírica da (influência da mal definida condição social. O mestiço não havia, até então, renunciado à vida. Antes, ao contrário, vivera intensamente. O fato novo é a presença da dor. E' o contraste. E' a precariedade do físico e da locomoção. E' a reclusão forçada pelas circunstâncias. Um de seus analistas teria afirmado: — "Sofreu, na reclusão de sua enfermidade, de uma forma que supera, em espanto, a qualquer tragédia" (4). Trabalha às escondidas. Sai e volta a horas em que o sol está recolhido, quando a escuridão impede que êle seja visto pelos olhos profanos de sua gente. Usa de uma indumentária que o envolve todo, desde o chapéu desabado, unido à gola da capa, até os ex-

(4) Newton Freitas, "El Aleijadinho", pg. 12.

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tremos desta, tocando os pés. Ao trabalhar, isolava-se atrás de uma tenda, afastando qualquer possibilidade de ser visto. Por fim, mandava que lhe amarrassem o macete nas mãos imperfeitas, e produzia com a bravura de um estóico.

Foi-se, aos poucos, mutilando. Que importa, nos dias de hoje, perquirir qual a sua doença? Três ou quatro hipóteses tentam explicá-la. Importam os efeitos. Importa a relação com as artes. Perdeu dedos do pé e da mão. Andou de joelheiras, galgando andaimes para trabalhar. Sentiu-se mutilado, grotesco, desagradável. Experimentou, pois, as mais cruciantes dores físicas e morais. E, apesar disso, esculpia. E esculpia admiravelmente!

Longe de abater-lhe o ânimo, a enfermidade — observa Manuel Bandeira — foi uma espécie de estímulo para sua formidável capacidade de trabalho. Vida amarga, sem outro refúgio que a arte. Todas as energias, de um espírito insaciável, só tinham, daí por diante, um campo de aplicação: a escultura. O cotidiano estava praticamente fechado para êle: só o plano superior da arte lhe permitia possibilidades e perspectivas ilimitadas. Fêz da arte a linguagem de seu mundo interior. Não poderia deixar de ser, no campo puro da forma, um "expressionista". Os loucos, os emancipados, os sofredores constróem abstraindo o mundo objetivo real. E' uma atitude, consciente ou inconsciente, de represália contra o insucesso ou o desajustamento. Planam acima do banal e do efêmero. Buscam no sobrenatural o reajustamento de sua condição humana. Daí. a nota de modernidade latente, palpi-

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tante, que há na obra de Aleijadinho. Não teve mestres de seu porte Não deixou discípulos da sua fibra (5). Catalizou a força criadora que despontava no povo em formação; quebrou os preconceitos; afirmou vitalidade do nativo, acima das razões raciais; demonstrou que a terra passava a ter sua linguagem; bebeu no meio envolvente a riqueza da natureza e dos recursos econômicos; soube transformar essa sociedade, ávida de ouro, que passa, em pretexto e clima de uma grande e bela obra de arte; convergiu em si a exuberância do meio, e proclamou, sem o saber, a existência de um homem novo, que não era nem o colonizador português, nem o sofredor africano, nem o caçador de minas, mas o intérprete soberbo de uma comunidade telúrica, estonteante de forças interiores, buscando forma — a forma que êle soube dar, como poeta e criador de beleza, matizado do sabor do solo, com o estranho gosto metálico do ambiente, em cambiantes magnificas de opulencia, candura, ingenuidade e malícia.

FORMAÇÁO E AFIRMAÇÃO

Nada assimila mais e melhor do que uma inteligencia plenamente despertada. A de mestre Aleijadinho esteve sempre aberta a toda sorte de curiosidade. Se não mereceu as vantagens de um aproveitamento regular através de cursos, (que não existiam na terra nova, capazes de corresponder aos seus reclamos),

(5) "Nenhum antes dele; nenhum depois! Extinguiu-se como havia surgido, quase urns aberração em seu meio" — Newton Freitas, obs. cit.; pg. 9.

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conquistou o justo louvor que se há de dispensar no seu extraordinário autodidatismo. Buscou, por quaisquer meios, na limitação da comunidade em que vivia, todos os elementos que permitissem o pleno florescimento de sua sensibilidade e o desdobramento fecundo de sua imaginação. A curiosidade intelectual supriu a escola. Teve mestres? Apontam-lhe alguns: seu pai Manuel Francisco, carpinteiro, construtor, arquiteto improvisado, embora de algum merecimento, (6), João Gomes Batista (7), gravador, educado na Europa; Francisco Xavier de Brito, ornamentista. Algumas pre-sunções fazem supor a filiação espiritual de Aleüadinho a esses três artistas .Certos fatos destroem as hipóteses. A verdade é que nenhum deles chegou à culminância de Antônio Francisco. O mestiço os supera; deixando-os em plano secundário; traz uma mensagem, não é um subproduto; é uma afirmação estranha de vitalidade própria.

Mas onde estão seus mestres? Diluídos, imponderáveis, através de impressos, através de terceiros. São as estampas, os missais, as miniaturas, os livros religiosos, fornecidos pelas írmandades a que pertencia. "Por intermédio das gravuras bíblicas, góticas e bizantinas, Antônio Lisboa se informa para o tratamento das cenas dos púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto, da matriz de Sabará, das figuras dos pro-

(6) Sobre Manuel Francisco Lisboa, consultar os sub sídios para sua biografia, no vol. 4 da Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1940, pg. 121 e seguintes, colaboração de Judite Martins.

(7) "João Gomes Batista", por Luís C. Oliveira Neto, em "Revista do S. P. H. A. N.", v. 4, pg. 83 e segs.

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fetas e dos personagens da via crucis de Congonhas (José Mariano Filho) . Ajuda-o, entusiasma-o, estimu-la-o o depoimento precioso e piedoso dos jesuítas, beneditinos e franciscanos com que mantinha íntimas relações. Os povoados das Minas Gerais "enchiamrse'', segundo Augusto de Lima Júnior, "de frades das diversas ordens e conventos do Brasil, de Portugal e da [tália", que traziam consigo o gosto pelas artes e pelas pompas do culto. Colhendo relatos e descrições, ana-lisando estampas e gravuras, lendo o texto e encantándole com as iluminuras do exemplar da Bíblia que o acompanhava por toda a vida, o Aleijadinho viu chegar até êle, na insulada Ouro Preto, o Velho Mundo, a caótica riqueza gótica, o preciosismo bizantino, a dignidade da renascença, sem a rigidez dos cânones, que isolam e cerceiam, mas de uma maneira tênue, sugestões ligeiras batidas de leve na sua sensibilidade, exci-tando a imaginação, sem, contudo, limitá-la à fatalidade de certas escolas e tendências estratificadas. Por sobre tudo isso, uma influência mais forte: o deslumbramento da terra! Outro fator poderoso: o seu drama interior, variável na caracterização, semelhante, entretanto, com o drama de quantos procuravam o seu lugar firme na nova nacionalidade. Ao Aleijadinho, faltou uma formação escolar, mas não faltou a afirmação artística, conseqüente de tão variadas e venturosas circunstâncias.

Críticos tentam agora descobrir na obra do Aleijadinho correlações que revelem os veios da criação. Pretendem estabelecer relações entre a sua obra e as gravuras de Diogo Borazzio, hoje descobertas em Minas

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Gerais; ou querem assemelhar os seus profetas aos de Dijon, na Borgonha; de Klaus Sluter, da escola flamenga da Idade Média. Pretendem outros que êle houvesse trabalhado com equipe de artistas. Nenhuma dessas conjecturas assume importância maior. Para que tais indagações? Sabemos que nunca saiu das cidades mineiras onde trabalhou e reconhecemos em sua obra indiscutível originalidade. E' um fenômeno singular: ter produzido tanto e de tão superior qualidade no meio em que viveu e com as limitações de sua saúde. Antônio Francisco deu ao Brasil um barroco típico. Esse barroco, prenuncio do expressionismo contemporâneo, coincide com muitas aspirações dos movimentos modernistas. Dele cuida presentemente um dos mais autorizados pesquisadores de arte, Germain Bazin, conservador do Louvre. Veio ao Brasil, em 46, e voltou impressionado com o fenômeno do mestiço genial. Considera os seus profetas, pela força de expressão e intensidade dramática, do nível dos profetas de Sluter, e de Donatelo; ou do quilate de Sibilas de Giovani Pisarro. Luca delia Robia, Houdon e outros mestres. Inconvencional e criador, o destino colocou Antônio Francisco na galeria dos grandes realizadores da escultura. E o Brasil, antes de ser nação, já tinha os seus "nacionais", e, com o Aleijadinho, entra atualmente nas histórias universais de arte, desde os capítulos do século dezoito (8).

(8) Para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa, consultar os apontamentos da Revista do S. P. H. A. N., vol. 3.°, 1939, pg. ISO e segs.

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COMPREENSÃO E INCOMPREENSÃO

Tem-se estranhado que o nome de Antônio Francisco Lisboa não figurasse, ou figurasse superficial e pejorativamente, na crônica que viajantes ilustres escreveram sobre o Brasil colonial. Nem fòsse referido e citado pelos eruditos da época. Traduzirão essas circunstâncias incompreensão ou negação do seu mérito? Os viajantes ilustres eram, na sua totalidade, naturalistas, em missão científica, mantendo apenas relações com as artes documentárias, empenhados, pois, na precisão, — precisão de que tanto se afastava o Aleijadinho. nos seus impulsos expressionistas. Os eruditos da época estavam apegados às convenções da cultura que haviam logrado em escolas daquém e dalém-mar, cultura baseada, como de comum, no endeusamento dos cânones e na consagração dos preconceitos (9).

O Aleijadinho fora, porém, compreendido pelo povo, tocado da mística do ouro, que também sentia barrocamente; que buscava o estilo festivo dos templos coloniais; que estimava a sátira plástica de Antônio Francisco; que via na deformação, não o erro ou a insuficiência, mas a expressão intensa, a sugestão de uma forma ou de um sentimento, a nota crítica, a fertilidade criadora. Era nas igrejas sob o deslumbramento dos adornos e diante das imagens espontâneas, por vezes de cândido primitivismo, que o povo encontrava os melhores motives de admiração. A fé se confundia

(9) Ler, a propósito, "o primeiro depoimento estranjeiro sobre o Aleijadinho", de Afonso Arinos de Melo Franco, in Revista do S. P. H. A. N. v. 3, pg. 173.

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com o sentimento estético. Este se educa no fulgor excepcional da liturgia. "Na casa do Senhor, resplandecia também o museu do povo": eis como Ronald de Carvalho associa as duas funções — a artística e a religiosa (10).

O caricatural — tão ao sabor irreverente do povo — alternava com as melhores afirmações de pureza e construtividade plásticas. Na expressão irreverente ou na suntuosidade de certas composições, os fiéis encontravam mais alguma coisa que a adoração.

Compreendido das gentes daquela época, o Alei-jadinho veio a ser compreendido de novo, hoje, quando se aceitam como legítimas as liberdades do expres-sionismo. Quando se procura recolocar a escultura nas idéias fundamentais do ritmo e da composição. Quando atendidas essas idéias fundamentais, assegurada a construtividade, a liberdade retoma o mais vasto mundo subjetivo. Quando, cessados os artifícios de um divórcio impossível, se tenta repor a escultura no conjunto arquitetônico. Aleijadinho respondeu, por antecipação, às inquietações e anseios da atualidade.

EXPANSÃO E EXTENSÃO

Nada mais atesta eloqüentemente a compreensão do Aleijadinho pelos seus contemporâneos, particularmente a igreia e o povo, do que a impressionante ex-

(10) "Arte brasileira", in "Teira de Sol", 1924, obs., Pg. 17.

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pansão de sua obra. Vila Rica, o ouro e Antonio Francisco experimentaram a mesma incontida irradiação. Iam ao sítio maravilhoso levas e levas de pessoas, que, depois, caminhavam, de retorno, com a mística ouro-pretense, em vários sentidos, pelas terras do Brasil. O ouro atraía e o ouro transbordava além dos limites da cidade. "Frades de diversas ordens vinham esmolar nas Minas; arrecadavam elevadíssimas quantidades de ouro em pó, origem da suntuosidade de conventos da Bahia e do Rio de Janeiro" (11). Dali, também o espírito barroco irradiou pela Capitania e por terras vizinhas. O fenômeno econômico correu paralelo ao fenômeno artístico. E, com o barroco, andou igualmente pelas Minas Gerais o nome de Antônio Francisco — ouro puro maciço, da escultura brasileira (12).

Filho de Ouro Preto, (13), da localidade chamada Bom Sucesso (vaticinio do êxito que alcançaria), o Aleijadinho recebe as solicitações de outras localidades: Congonhas do Campo, Sabara, Mariana. A arte do mestiço de gênio, se não contava com os alaridos da celebridade, era sussurrada, de uns para outros, como a expressão exuberante, de que careciam aquelas comunidades, sob o impacto de riquezas súbitas e tocadas do sentimento da gratidão. Casas do Senhor, casas do

(11) Heitor Pedrosa, "O Aleijadinho", pg. 21. (12) De Jules Supervielle. "Carnet de voyage", 1930: '•Comme

Rothemborg en Allemagne et .Tolete en Espagne, Ouro-Prêto ne semble pas gouverné par ses habitants actuels, mais par de belles et puissantes Abstractions, des personnages morts dans les siècles passés et surtout par un grand sculpteur et architecte, gloire de l'art barroque, Aleijadinho".

(13) 1730. Falecido em 1814. 84 anos de existência.

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povo. As encomendas choveram de toda a parte. Há quem indague: — Por que todo trabalho bom lhe é atribuído? Há quem queira ver, em torno dele, uma legião de artífices de valor. As investigações, porém, afirmam e confirmam, com aquela capacidade excepcional, apenas a existência do Aleijadinho. Mas do que isso; a sua inconfundível superioridade. Figura dominante, foi êle próprio que construiu seus cânones e seu estilo. Perderam-se dentro de suas formas os auxi-liares prestimosos. Sua obra exerceu naquele tempo uma poderosa influência. Só isso explica o ser requisitado para tantas igrejas. Uma expansão inccn-teste (14).

Se a geografia lhe abriu territórios, o talento lhe assegurou cs mais diversos domínios dentro da arte: púlpitos, frontispícios, lavabos, altares, estátuas. Estendeu-se a sua escultura, desde o motivo central e dominante, até o sistema de adornos que o enquadrava. No conjunto, não foi um imaginoso, que prosseguisse, ao capricho da criação fácil, "adicionando" pelo gosto de fazer mais: tudo nele obedeceu a um sentimento superior de "composição" (15). Há um

(14) Sobre a controvérsia relativa à tendência de lhe serem atribuídas todas as boas esculturas mineiras, ler, em abono de nossa conclusão, o capítulo "As obras do Aleijadinho na igreja do Carmo do Sabará". "Em torno da história do Sabará", de Zoroastro Viana Passes. 1940, pg. 133 e segs .

(15) "O adro da igreja ._ refere-se ao Santuário do Bem Jesus de Matozinho, em Congonhas — não se apresenta apenas como uma construção ornada e enriquecida por doze esculturas de pedra. Entre estátuas e muros existe clara interdependência de formas e contornos, unindo, como partes do

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enlaçamento, estreito e perfeito, entre todas as partes. Não se trata de "adição", mas de visão globalizada. O frontispício de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, e o átrio do Santuário de Bom Jesus de Matozinho, em Congonhas, denunciam alguma coisa mais que o escultor. "Não foi jamais arquiteto", afirma José Mariano (16). "Só foi escultor e santeiro", adverte Heitor Pedrosa (17). Não. Foi além. Foi o artista plástico mais completo de seu tempo. No estilo barroco, confundem-se os limites entre a escultura e a arquitetura. Por sua formação autodidata, pela força de seu gênio, pela "confusão rica" da época, chegou a ser, à semelhança de Miguel Ângelo, o tipo enciclopédico de artista. Do ornato atingiu aos "riscos". Planejando adornos, previu a arquitetura em si mesma. A escul-tura inspira a composição geral. A arquitetura comanda as composições escultóricas. Numa e noutra, o Aleijadinho requinta-se de sentimento e de expressão. Desdobra-se no espaço: as cidades mineiras. Desdobra-se no plano artístico :todos os domínios plásticos. Foi o regente incomparável da grande sinfonia de pedra que o homem novo, então nascente no Brasil, levantou, na fase colonial, como prenuncio de si, da nacionalidade e da cultura, aclimatados, de maneira própria, naquelas estranhas e incontidas paragens.

um mesmo todo, os elementos de uma só criação plástica". José de Sousa Reis, "O adro do Santuário de Congonhas", in Revista do S. P. H. A. N., pg. 207.

(16) ''Estudos brasileiros", ano II, vol. IV. (17) Heitor Pedrosa, obc. cit., pg. 24.

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VAN GOGH

A ASSIMILAÇÃO DE UM EXPRESSIONISTA

TEMPO não tardou muito em fazer-lhe justiça. Van Gogh, cujo centenário de nascimento o mundo artístico está celebrando esta ano, não teve em vida a satisfação de ver reconhecidos os seus altos méritos, e curtiu a ansiedade dos insatisfeitos, buscando em suas reservas interiores as forças com que enfrentou dissabores e decepções. Sua curta existência, de 37 anos, de 1853 a 1890, e sua carreira de artista, que foi pouco além de um fecundíssimo trienio, não conheceram o aplauso, o louvor, a consagração. Nos últimos meses de vida, em janeiro do ano fatídico do suicídio, é que aparece, no "Mercure de France", o primeiro artigo sobre sua obra, de Albert Aurier, tocado do mais sincero entusiasmo. Também neste ano derradeiro, teria sido adquirido, segundo Maurice Raynal (1), na Exposição dos XX, em Bruxelas, o único quadro que lograra vender, "La Vigne Rouge", o qual lhe valeu quatrocentos francos. Sheldon Cheney, todavia, eleva para quatro o total dos quadros que lhe foram comprados em vida. Um ou quatro, para quem produziu várias centenas. . . e a preços insignificantes. Só a

(1) "De Baudelaire à Bonnard", pg. 14.

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partir de 1910, conta com o favor declarado do público. Em 1920, a critica lhe dá a posição que desfrutaria daí por diante, no cenário da arte moderna. Ern 1936, seu nome está no auge do prestígio. O Museu de Aite Moderna, de Nova York, atrai, para urna exposição retrospectiva sua, 123.000 pessoas, empenhadas em conhecer-lhe os quadros (2). A multidão, mènes de meio século depois, vingara a incompreensão e o desprestígio, registrados em seu período áureo de produção. E, desde 20, a cotação de suas telas sobe a cifra astronômica, disputadas pelos principais museus da Europa e da América.

"A ação de Van Gogh é comparável, em importância, à de Cézanne e a de Gauguin", assim o situa, no panorama contemporâneo Pierre Lavedan (3). E um dos três grandes do modernismo, na força criadora, na contribuição pessoal, no conteúdo técnico e emotivo. "A despeito de sua filiação impressionista, ocupa um lugar junto a Cézanne na solidez e no caráter renovador Se sua obra", eis a opinião do crítico norte-americano E. H. Swift (4) e "a diferença está em que suas formas são mais fluídas e emotivas, as de Cezanne mais geométricas e estáticas".

Que lhe assegurou essa posição excepcional, de "mestre criador"? William Boitho, em um estudo sobre sua pintura, dá a amarga e impiedosa resposta: "somente a loucura escapa completamente do lugar

(2) "Hist, da Arte", trad. de S. Milliat, vol. II, página 375. (3) "Histoire de l'Art", v. II., pg. 527. (4) "Arte e Civilização", pg. 265.

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comum". Sim, o seu temperamento, que, desde a juventude, revelou o "inconformado" — vítima suces-liva de tentativas e malogros, inquieto por encontrar na vida o caminho e na arte a expressão — afastou do pintor de Breda a tendência "continuista" ou seja a contaminação fácil e definitiva com as "maneiras" em voga. Recusando estilos, padrões, cânones, manteve-se um "inconvencional". Só os que fogem às con-venções encontram o caminho generoso da criação e da originalidade. São condenados, de início. Atravessam um largo período sob o fogo impiedoso dos ataques ou no frio desanimador da indiferença. Van Gogh "foi o mais brilhantemente "inconvencional" e o mais apaixonadamente subjetivo dos predecessores dos modernos" (5). Êle pinta com espontaneidade, tocado de uma irreverência sadia, iluminado de uma luz interior, sob o impulso de forças arrebatadoras, ingênuo, sem petas, nem limitações, como se estivessem em estado de pureza, a desdobrar-se segundo o conduziam os seus sentidos exasperados e potentes. As impressões visuais, que constituíram a delícia de Manet e seus seguidores não bastavam como recurso ou linguagem para o temperamento perscrutador de Van Gogh, que não via paisagem comum, mas a da sua fixação interior. Com êle "a pintura se prepara a fim de passar da sensação impressionista para o pensamento ex-pressionista", na aguda interpretação de Maurice Ray-nal: "abandonará o lirismo da técnica pura para a expressão do que chamarão de caráter" (6).

(5) Sheldon Chene), obs. cit. pg. 372. (6) Obs. cit. pg- 63.

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O expressionismo encontrou em Van Gogh um dos seus melhores realizadores. Até então sob o império do motivo, a arte dera várias modalidades de realismo, cuja base estaria sempre na afinidade de forma com o objeto. Essa forma decorria da sensação — desde a simples sensação comum até a sensação privilegiada de certos artistas. A luz deslumbrou os impressionistas, mas não os afastou do jogo elementar da sensação: apenas exigiu maiores sutilezas para o seu exercício. O expressionismo é bem diverso. O objeto não existe no objeto, no seu formalismo aparente: existe no artista, na maneira por que êle o sente. na sua "encarnação" pessoal. Do objeto poderão ficar diversas imagens. O artista a exteriorizará intuitivamente, poeticamente, apaixonadamente. O que resulta é a sua "criação sensível". Van Gogh tinha muita coisa dentro de si para transmitir através de sua arte: era menos o que via, era mais o que sentia, menos o que estava em torno de si, mais o que estava dentro de si. E' a isso que historiadores da arte chamam expressionismo subjetivo, a que filiam "as produções de Van Gogh e Kokoschka, com a deformação deliberada, ou não da visão fotográfica" (7). Dentro dessa concepção, o expressionismo teve sérios adeptos na Alemanha.

A lição que decorre de Van Gogh consiste, pois, em primeiro lugar nesta reivindicação: a arte pode ser uma expressão individual, isto é, a maneira própria de ver. de sentir, e de exteriorizar; mas consiste ainda,

(7) S. Cheney, pg. 357.

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em aplicar essa verdade, não com a precariedade de "meios" ou com soluções insubsistentes na sua fraqueza e inconsistência; porém com os recursos admiráveis da sensibilidade e da imaginação, associadas febrilmente em artistas como Van Gogh de que emana a linguagem forte, quente, atrevida, audaciosa de seus quadros. Os gênios têm direito de ser "inconformados". Os pesquisadores devem cumprir a tarefa da "procura" como que enriquecem a técnica. Mas, para criar, é necessário que a pesquisa seja fecunda ou que o gênio ilumine a obra. Em Van Gogh, sente-se que a sua arte, de vigor manifesto, ainda não correspondia à imaginação ardente e à sensibilidade sem limites que constituiam a personalidade invulgar do artista: esta, que tanto deu, exigia mais. A morte procurada foi o último quadro de sua galeria trágica.

TORTURA DA EXPRESSÃO

Van Gogh é um torturado da expressão. Antes de tudo, porém, é um torturado da vida. E' êle quem, em carta a seu irmão, pergunta: "terei alguma utilidade no mundo, poderei servir a algum propósito ou produzir algum benefício?" Sofre — confessa-o — por se sentir "aos olhos da maioria uma nulidade ou um homem excêntrico e desagradável". Esclarece, todavia: "há em mim uma harmonia e uma música calma e pura". Que harmonia seria essa em oposição ao seu temperamento vulcânico e desesperado? Dentro dele, a forrna vivia latente, buscando realizar as grandes sinfonias de côr que depois se revelam. "Êle sincera e

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loucamente quis um meio de expressão espiritual e. ao mesmo tempo, um meio de dedicação desinteressada à "humanidade" (8). Sempre à procura da expressão. Sempre a tentar "destinos" e "criações". Foi instável na "vida"; foi instável na "pintura". "Sua carreira de pintor só durou seis anos, ao longo dos quais sua arte, submetida ao perpétuo frêmito de uma sensibilidade super-aguçada, não cessou de se "transformar". Apaixonado, de início, pelo apostolado "moral" e "social", êle emprega, depois, até o extremo limite, forças e razão na persecução da "luz" e da "cor" (9). A aspereza sombria dos primeiros tempos, segue-se, com a influência impressionista, a pintura clara, envolve-se nos efeitos do japonismo, inflama-se ao sol mediterrâneo, arde de luz e de fantasia, delira de côr. Essa inquietação, refletida nas suas telas, — de que resulta uma das mais belas contribuições à pintura, de todos os tempos — tem causa, não apenas no virtuo-sismo pictorico que o anima e empolga, mas igualmente nos seus sofrimentos. Angustiado, decepcionado, infeliz, sublima-se na arte, o único domínio, ao seu alcance. que êle subjuga. "Sua vida é um calvário", observa Gustave Coquiot, "nasce, pinta, morre só, terrivelmente só" (10). "Talvez a figura mais trágica na arte moderna" (11). "E' todo nervos, suscetibilidade, exaltação", afirma Maurice Raynal (12), objetivando: "os

(8) S. Chenel, obs. cit. vol. II, pg. 376. (9) Lavedan. vol. II, pg. 527.

(10) "Les independants'', pg. 74. (11) Swift, pg. 265. (12) "De Baudelaire à Bonnard", pg.63.

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mínimos acontecimentos assumem nele proporções excessivas, fora da medida humana" (13). Daí, a "deformação" quando bem entende ; a "violência" em quase todas as telas; a "ânsia" de penetração e profundidade; o apelo ao "fantástico" para atingir ao "real". Mas que realidade é essa? A "sua" realidade interior, a que nutriu uma das mais ricas produções "expressionistas" do século passado. Com a pintura, só com ela e por ela, respondia ao sofrimento e à derrota humana no cenário da vida. O gênio fulgurava para aniquilar a mesquinhez do cotidiano. "A pintura será para êle uma espécie de tratamento médico do mal profundo que o mina; poderá aliviá-lo algum tempo, mas náo lhe poupará uma crise de angústia desesperada" (13a).

O COMPLEXO GERA UM GIGANTE

O complexo de inferioridade acabou por fazer de Van Gogh um dos gigantes da arte contemporânea. Várias vezes, sentiu e confessou essa inferioridade: intimamente, lutou, como um leão, para superá-la. Onde as determinantes desse complexo? Na série de "tentativas" frustradas.

Tentou constituir família. Em 1874, pede em casamento a filha de sua senhoria, Ursula Loyer, tocado de uma paixão violenta. Fácil é de avaliar a violência da decepção, ao ser friamente repelido. Dez anos depois, tece um curto e delicioso idilio com Margot.

(13) obs. cit. pg. 64. (13 a) Idem.

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sua vizinha, mas esta quase se suicida. Pouco antes, em Etten, fora vítima de outro drama emocional: sua prima recusara, peremptòriamente, a paixão que êle lhe devotara.

Não é menos infeliz no amor boêmio. Cristina, que pousa, na sua vida, durante vinte meses, decorre de uma noite vadia (1882), aventura banal de mulher ébria, que se propõe servir de modelo; Segattori, outro modelo que se transforma em paixão, para "terminar uma noite, não sem violência" (14).

A procura da profissão proporcionou outros episódios negativos.

Tentou o "comércio". "Iniciou-se como vendedor numa loja de quadros (1869). Não teve absolutamente êxito: cada vez que um cliente se propunha a adquirir uma tela má, Van Qogh lhe fazia grandes discursos para dissuadi-lo" (15). Tentou o "magistério". Atraído por anúncio, rumou para a Inglaterra, como mestre-escola auxiliar, em Ramsgate, depois em Isieworth (1876). Nenhum êxito. Tentou a vocação de seu pai : seria pastor, como o velho e austero Theodorus. Segue para Amsterdam, a fim de preparar-se e ser admitido ao seminário de teologia da Universidade (1877). "Quero consolar os humildes. Penso que o ofício de pintor ou de artista é belo, porém, creio. que o oficio de meu pai é mais sagrado. Estimaria ser como êle" (16). Esse propósito vem confirmado nou-

(14) "Lettres", Charles Terasse, pg. 13. (15) V-M. HiUyer e E-G. Ilvey. 'Petite Histoire de

rArf, "La Peint", pg. 157. (16) De suas cartas.

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tra de suas missivas: "Não estou só, porque Deus está comigo. Quero ser pastor. Pastor como meu pai". Os estudos seriam demorados; não se ajustam ao temperamento de Van Gogh. Troca o ideal de "pastor" pelo de "missionário". Em vez da Universidade de Amsterdam, bastariam os três meses da escola preparatória evangelista de Bruxelas. Em 1879, consegue uma missão temporária em Wasmes. Foi missionário junto dos mineiros daquela região belga. "A vida dessa pobre gente era tão miserável que distribuía entre ela tudo que possuia: só faltava morrer de fome êle próprio" (17). Desses infelizes fêz esboços vigorosos. O desenho acode em sinal de protesto. Como os mineiros, olhou profundamente para dentro da terra. A terra, com seus veios de riqueza e seus vermes de destruição, passa a ser uma realidade nova. A missão cessa ao fim de seis meses. Estava, contudo, aberto o "caminho definitivo da pintura". Ela responderia aos insucessos. Seria mais forte que a miséria e o fracasso. Charles Terrasse, o analista de suas "Lettres", recompõe o período que sucede ao malogro da Missão e que indica a alvorada da Arte: "Começa, então, a mais sombria época de sua vida. Êle vai daqui para aí, Ventos de outono, ventos de inverno. . . Deita, ao acaso dos caminhos, pelos celeiros, debaixo dos carros. Que tem para subsistir? O dinheiro ralo que lhe envia Theo. Theo encontra meio de se juntar a êle, de dizer-lhe algumas palavras amigas, de encorajá-lo, enfim, na sua vocação de pintor. Vincent caminha oito dias

(17) V-M. Hillyer, obs. cit., pg. 158. s

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para ir a Courrières, a fim de ver Jules Breton; a fachada imponente da casa o intimida, a ponto de êle não ousar tocar-lhe a campainha, e volta a Cuesmes. Depois, toma o rumo do Norte, na primavera, e volta a Etten. . . Algumas semanas mais tarde, está de novo em Borinage. Que angústias! Que lutas! Descobriu. enfim, seu caminho. Será pintor, nada além de pintor" (18). Ao lado de Vincent, define-se, daí por diante. outra figura histórica: a de Theo, seu irmão, o único amparo do irmão, em quem acredita, passando por todos os insucessos; "Fé em Vincent! Admirável fé! E' graças a ela que o gênio de Vincent vai agigantar-se!". Apreciando a um e a outro, traçou-lhes F. Fels, nestas palavras, o paralelo: "O gênio é Vincent, mas o herói é Theo, e nada teria sido criado sem êle".

A obra que realiza, fulminantemente, em tão poucos anos, responderá à pergunta que o artista formulava: "Há alguma coisa dentro de mim, que é que é"? Não é o mundo lá de fora; é o expressionismo interior, subjetivo. "A pintura não será para êle senão outro meio, o último meio, de viver, de dizer ao mundo seu amor e sua piedade, de testemunhar-se a Deus" (19).

INTENSIDADE VITAL

Considerado um dos três grandes precursores do modernismo, Van Gogh deixou, entre oscilações, uma pintura; contudo, é característica, peculiar, típica. Nela

(18) "Lettres", C. Terrasse, pg. 12. (19) Jean Leymarie, '"Van Gogh", pg. 12.

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sentimos várias influencias mas nenhuma delas limitativa ou restritiva. Dfeslumbra-se ali a presença do impressionismo e do japonismo mas um e outro superados pelo artista. Marca a presença dessa ou daquela corrente a sua assimilação pela sensibilidade do pintor; nunca, a imitação apenas. Van Gogh incorpora conquistas técnicas; não fica, porém, confinado aos seus recursos.

A condição primordial de expressionista e incon-vencional o distancia de regras acadêmicas, afasta-o do realismo objetivo, transplanta-o para o subjetivismo exteriorizado. Se êle tem raízes remotas em Rubens, a quem tanto admirou em certa fase da vida, não foram estranhos à sua formação Rembrandt, Delacroix, Millet, Daumier e outros. Os mestres de sua época, como Lautrec, Degas, Seurat, Signac, Gauguin, sobretudo Gauguin, não se transferiram em Van Gogh mas o excitaram no caminho da pesquisa e da originalidade. O artista holandês experimentou a intensa elaboração pictórica de Paris. "Seguir" este ou aquele — não se ajustava ao seu temperamento. Dentro dele, vivia um mundo, empenhado em exteriorizar-se.

Conta-se que, desde criança, fora um observador atento da natureza. O sofrimento o levou a ver as coisas e os homens, não apenas pela amável face das aparências, mas no agudo realismo de suas condições intrínsecas. Êle, que desejou espalhar o bem entre os homens, fêz do semeador um dos tipos constantes de sua obra. Porque tivesse volvido os olhos para as entranhas do solo, pressentiu, a bem dizer, a anatomia da terra, traçando, em seus quadros, os movimentos da

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forma corno se fossem músculos da natureza, no anseio de afirmar a sua vitalidade, através da consciência dos contornos.

Vê, em bloco. O efêmero, o acidental, o secundário, êle os baniu da paisagem ou da figura. A visão global conduz à construtividade. Van Gogh, em meio às suas alucinações, tem o instinto da organização dos volumes e dos espaços; os planos se colocam facilmente; uma estrutura bem urdida rege o quadro. Por isso, em tudo mais, êle se permite as maiores liberdades: despreza o acabamento, deforma as figuras, incen-deia o ambiente. A deformação náo enfraquece, nem desfigura, porque o quadro, além do mais, está composto .

A matéria, a côr e a luz desempenham, em sua técnica, o mais relevante papel: êle persegue a matéria, orientando as pinceladas segundo a direção essencial. Que será a direção essencial? O sentido de profundidade. E' um novo valor tátil na pintura. Talvez mais forte e realista que a falsa e positiva perspectiva. A pasta tem um vigor excepcional. "Carregando o pincel aplica-o em traços nervosos e vibrantes, espessos e graciosos, de modo que cada mancha do pigmento ressalta em relevo sobre a superfície da tela" (Swift). Procura atender a um dos objetivos primordiais da pintura moderna, "tirar do próprio instrumento e do próprio material uma valorização específica, uma intensidade peculiar de efeito" (20). Os sentidos contra-ditórios das pinceladas, em obediência à anatomia da

(20) S. Cheney, v. II, pg. 353.

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natureza, por êle criada, enchem de movimento a paisagem: são forças diferentes, disputando a visão do espectador. Essa disputa dá, no fundo, a nota trágica (de luta) que as paisagens vangoguescas encerram.

Lavedan realça a proeminência da côr na obra de Van Gogh: "desprovido de intenções literárias, é um pintor puro e, até na pintura, os valores não o interessam; somente a côr" (21). O desenho, simplifica-se ao extremo. "Eu não procuro atingir senão o essencial" (22). A côr tem, para éle, sentido novo e peculiar: passa a ser "um elemento regulador de sua vida afe-tiva", "remédio para seu mal", "o álcool em que acreditava achar um derivativo" (23). O mestre proclama: "A côr, por si mesma, exprime alguma coisa". Precursor do fauvismo. Os sentimentos dispõem de correspondentes em sua paleta. O amarelo representa a amizade e o amor. "Como é belo o amarelo!" O vermelho e o verde traduzem as terríveis paixões humanas. A paixão da côr envolve a da luz. Êle busca a luz, na natureza ("E' no meio-dia que se deve instalar o atelier do futuro", de Lautrec a Van Gogh), e na própria cor, tirando de certas flores o ouro ardente do sol que êle tanto amou e quase deificou".

Daí, resulta a intensidade vital de sua arte: matéria, movimento (as estrias), côr, luz, volume, organização. Junte-se a essa vitalidade técnica a qualidade individual de sua visão ou seja sua visão peculiar e potente. Essa visão, que é estranha, dispõe dos melho-

(21) Lavedan, vol. II, pg. 528. (22) Cartas. (23) M. RaynaJ, ''De Baudelaire à Bonnard'', pg. 65.

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res recursos. Conseqüência: o inesperado de sua exposição. A expressão, pessoal e subjetiva, é, ao mesmo tempo, ardente e clara. Há brilho e há frescura em suas telas. Há alucinação e há ordem. Há drama, vida, mensagem.

SINGULARIDADE

O sol de Aries — aquele meio dia que Van Gogh tanto estimava interpretar e captar — realizou sobre o artista a complementação de seu crescente processo de exaltação. Sol ardente, que excita os nervos ultras-sensíveis do pintor. A loucura progride. Aries, Auvers, as últimas etapas da vida infeliz. O episódio da orelha que êle corta em si mesmo e envia, embrulhada, como presente, a uma criatura; o incidente com o amicissimo Gauguin, lançando-lhe ao rosto um copo; finalmente, o suicídio (24) — são as manifestações culminantes da loucura. Alternam momentos de lucidez, mas, mesmo em plena alucinação, "nunca pintou melhor, com mais sensibilidade e potência".

Suas cartas constituem a prova cabal da exuberância de seu cérebro: "revelam um homem que pensa e coloca a vida mais alto que a própria pintura" (25).

São objeto de uma edição monumental : "o sobrinho do pintor, portador de seu nome, que devota a seu culto todo o generoso fervor herdado de Theo, preparou para a data centenária de 1953, uma reedição

(24) 1890. (25) F. Fels, "Vida de Van Gogh", pg. 28.

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monumental da correspondência, aumentada de numerosos inéditos e de todas as recordações e de depoimentos diretos recolhidos sobre Vincent" (26). A confissão das cartas, a confissão da pintura extrovertem o mundo misterioso e angustiado de Van Gogh. O destino o tornou louco, para que o seu gênio pudesse caminhar sem as limitações convencionais da cultura. E sua posição assume, com o tempo, a singularidade de um artista. sem antecedentes e sem conseqüentes. Nada de semelhante antes; nada de semelhante após (27). O crítico francês desdobra o conceito: "Tal como Artur Rimbaud, nas letras francesas, que é um poeta, acima e fora da literatura, Vincent Van Gogh é, na pintura francesa (não encontrou êle sua originalidade absoluta em Arlês-en Provence e em Auvers-sur-Vise?), um gênio singular. fora e acima, êle também, de toda pintura".

Os Van Gogh — Vicent e Theo, o gênio iluminado e o coração exemplar — jazem um ao lado do outro em Auvers. O irmão sobreviveu apenas alguns meses ao trágico desaparecimento de Vincent. O destino, que os uniu tão estreitamente em vida, avizinhou-os na morada derradeira. Charles Terrasse os irmana pela posteridade afora: "na admiração universal, seus dois nomes não fazem senão um".

A pintura vangoguesca traduz um dos temperamentos mais estranhos da humanidade. Foi a mais bela e edificante reação de espirito criador contra as

(26) Jean Leymarie, "Van Gogh", pg. 5. (27) Gustave Coquiot, "Les Indeps", pg. 74.

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amarguras de uma existência. Mais que a técnica, ful-gura a vitalidade excepcional de uma alma. Recorda Maurice Raynal a sentença, lacônica e justa, de Cézanne sobre Monet, o mágico colorista do impressionismo: "Não é senão um olho, mas que olho!". E acrescenta, com relação ao holandês: "Não é senão uma alma, mas que alma!" (28).

28) M. Raynal, ob. cit., pg. 63.

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Í N D I C E

GOYA ...................... • • ........................................................... 3 O ALEIJADINHO ................................................................ 18 VAN GOGH ........................................................................... 34

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Departamento de Imprensa Nacional Rio de Janeiro — Brasil — 1953

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão LCÜI

1 —JOSÉ JANSEN ....................................... A máscara no culto, no teatro e na tradlçao

2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON ......................................... José Lins c!o Rego

3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE ................................................... Viola de Bolso 5 —Lúcio COSTA ...................................... Arr-ultetura Brasileira 6 — Lúcio COSTA ..................................... Conílderações sobre a Arts Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS .................. Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES .............................. Formação profissional do Advogado

9 — H. VON KLEIST ................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNio CÂNDIDO .......................... Monte Cristo, ou da Vingança 11 — Luis COSME ........................................ Músico e Tempo

12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... Miro

13 — OTÁVIO DE FARIA ............................... significação do Far-West 14 — SANTA ROSA ..................................... Roteiro de Arte

15 — SANTA ROSA ..................................... Teatro. Realidade Mágica

16 —JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Teatro de Cervantes I" — JOSÉ CARLOS LISBOA ......................... Isabel a do Bom Gò?»o 18 — GÍLBERTO FREYHE ............................. José de Alencar

19 - CLAriSSE LisPECTCR .......................... Algun.' C

2J — MARIO PEEROSA ............................... Panorama da Pintura Moderna 21 —ROSÁRIO FUSCO ................................. Introdução à . Esteuca

22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................ Realidade e Ficção 23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar

24 — LEDO Ivo ......................................... Lição de Mario de Andrade

25 - Eugênio GOMES ......................... o Romancista e o Ventriloquo 26 - José LINS DO REGO ................................ Homens Seres e Coisas

27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. DE VÁRIAS Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura 29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Colonial 30 — MANOEL DIÊGUES JÚNÍOR ... Etnias e Cuturas no Brasil 31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no tempo

(Continua na 3° pág.)

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RUBEM BB \(. \

TRÊS PRIMITIVOS

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E SAÚDE

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO

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NOTA

PENAS três "primitivos" brasileiros estão reunidos aqui : o velho Cardosinho, de um gosto "suburbano", pequeno burguês salvo por uni curioso surrealismo, que vem ùnicamente da composição, o sambista negro Heitor dos Prazeres, pintor desse mundo de operários e malandros onde nasce o samba do Rio, e o caipira paulista José Antônio da Silva, intérprete de temas exclusivamente rurais.

Seria possível ter acrescentado outros, como o So-i-za, de Itanhaém, e o velho Luís Soares, do Recite, em sua última fase, e mais alguns. Há, ainda, artistas que oscilam em zona intermédia e evoluem em uma direção ou outra — quando não involuem. As limitações naturais de um tal trabalho reduziram nossa escolha. De cada um fizemos uma sucinta biografia, baseada em informações 6 no conhecimento pessoal que, em grau menor ou maior, temos ou tivemos dos três.

Deixamos de lado qualquer exame técnico da obra desses três homens, o que estaria, de resto, fora de nosso campo. Apenas procuramos dar aos seus quadros, aqui reproduzidos, o fundo de uma vida e ambiente que são, afinal, zonas legítimas da realidade e do sentimento

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brasileiros. E ficamos humildes perante esses artistas humildes que talvez possam, em sua ingenuidade, dar lições úteis a todos. Falta-lhes a sabedoria sem a qual não se faz grande arte. Mas eles nos emocionam e nos ensinam a ver com olhos mais puros este mundo de Deus, tão belo e tão triste.

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O VELHO CARDOSO

BRASIL tem muitos pintores, mas, pelo menos até há pouco, o único representado na Galeria Tate, de Londres, não chegava a ser um pintor : era um fazedor de quadros. Um compositor, se assim preferirem.

Não vai nisso nenhum desprezo pela arte de José Bernardo Cardoso Júnior, o velho Cardosinho. Sua arte de jogar com as tintas é primária; seu desenho é o de um escolar que não tem pendor para o desenho. E mais: êle raramente busca seus motivos na natureza. Prefere chegar a e!a indiretamente. Serve-se de fotografias ou gravuras que recorta em velhas revistas e álbuns. A velha fotografia de uma artista de cinema o interessa mais que a jovem que passa sob a sua janela. Tem um gato em casa; mas prefere copiar o desenho de um gato que viu em um anúncio de fios de lã. Quis fazer um auto-retrato diante do espelho, e não fêz. Pegou uma fotografia velha de si mesmo e fêz assim o esplêndido auto-retrato vinte anos mais moço. Não tem qutetlquer imaginação plástica, e a despreza.

Apesar de tudo isso, Cardoso fêz quadros que ninguém sonharia — e que fazem sonhar. Vamos ver um

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desses quadros. Chama-se "Vai haver barulho" — e logo vos direi porque tem esse nome. E' a moça que pensa isso, olhando o gato que ameaça brigar com o cachorro. Essa moça, por menos que o pareça, foi tirada da fotografia de uma artista de cinema americana que êle viu numa revista e achou bonita. Os dois gatos e o cachorro foram inspirados diretamente em gravurinhas que êle recortou de revistas velhas. Para pintar a Baía de Guanabara, que aparece ao fundo, Cardoso não se deu ao trabalho de pegar um bonde e ir à Avenida Beira Mar : copiou de uma fotografia. Quanto às borboletas, êle não copiou de livro nenhum. Comprou as borboletas, espetou as na parede e pintou-as. A maior custou-lhe 3 mil réis — é o que me informou.

A mesa, a coluna — e com esses elementos o velho Cardoso, aos 82 anos, criava um mundo novo. E' um mundo de sonho de infância, cheio de pureza e de luz.

Pintou, dos 70 aos 86 anos, cerca de 600 quadros, dos quais a grande maioria sem o menor interèsse e alguns de um emocionante lirismo plástico. Declarou uma vez que a arte é uma cópia da natureza. A gente copia a natureza "mas bota nela uma coisinha'\ Essa "coisinha" fêz do velho Cardoso um inocente surrealista lírico.

José Bernardo Cardoso Júnior (1861-1947) nasceu em Coimbra, Portugal, de pai brasileiro e mãe portuguesa — o Dr. José Bernardo Cardoso e Dona Matilde Augusta Estrada da Silva Cardoso. Veio para o Brasil

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aos 3 anos de idade, e foi morar em Valença. Passou depois para Rio Bonito, onde esteve na escola durante dois anos. Aos 9, 10 anos, mudou-se para Cabo Frio.

Em 11 de agosto de 1873 o patacho Feliz União foi abalroado pelo paquete francês Bourgogne. Nesse naufrágio morreu uma senhora que vinha de Cabo Frio para o Rio de Janeiro com três filhos e uma filha. Das crianças só se salvou uma — um garoto de 12 anos — que conseguiu ficar agarrado a uma tábua das 8 da noite até a 1 da madrugada. Cardoso me contou que um jornal da época publicou a notícia com os títulos: "Naufrágio de um navio — A coragem de uma criança". E acrescentou: "a criança era eu. . . ." Também disse, talvez com certa satisfação, que o navio francês que pôs a fundo o patacho acabou naufragando anos depois . . .

Cardoso estudou no Seminário São José, do Rio Comprido, durante três anos. Em 1877 foi para Roma, ende se matriculou na Universidade de Pontificia Gregoriana. Já era bacharel em Filosofia quando "perdeu a vocação". O motivo imediato disso foi uma jovem romana morena, vizinha do internato. Cardoso não lhe sabe o nome, e ela nunca soube do caso. De sua janela êle nem sequer tentou se corresponder por sinais com n morena que via à distância Mas a visão da moça o roía por dentro, e êle acabou dizendo ao seu confessor "que achava que daria era um bom pai de família".

Voltando para o Brasil, foi professor de latim e francés no Ateneu Mineiro de Juiz de Fora, e professor primário no Colégio Amorim Carvalho, no Rio.

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Casou-se em Paraíba do Sul, aos 27 anos de idade, com Dona Felisbela Peixoto. Vieram os dois morar no Rio, e ambos se formaram na Escola Normal de Niterói. Êle foi inspetor escolar em Campos, e professor do Colégio Batista, do Rio.

Chefe de uma família feliz, formou um filho em Medicina e três filhas na Escola Normal.

Aos 70 anos, aposentado, começou a fazer uns quadrinhos para matar o tempo. Dois pintores o animaram : Portinari e Fujita. Este trocou um de seus gatos por um quadro do Cardosinho.

"— È!e gcostou tanto do quadro que eu dei para êle. Depois fiz um outro igualzinho, e vendi. Já fiz mais dois iguais".

Isso o velho me contou quando passei uma tarde visitando-o. junto com Augusto Rodrigues, na garage de sua casa, que éle transformou em "atelier", em 1947. O quadro representa um assassinato em uma canoa, no rio Araguaia. As cores são do Cardosinho; o desenho, êle me mostrou, foi copiado de um jornal velho, um jornal de 20 de março de 1927, El Telégrafo, de Buenos Aires. Ilustra a notícia de um ''crime dos asseclas de Borges de Madeiros, o bárbaro assassinato de Pedro Arão". Cardoso acrescentou uma lua — e uma cabeça decepada. . . Para copiar. o desenho, qua-driculou-o.

Cardoso deixou inéditos um livro de poesia, onde há poemas dedicados ao marechal Floriano Peixoto

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e a Bidu Sayão, e um romance. Não creio que tenham qualquer importância. Os quadros que, sem saber desenhar nem pintar, esse homem suave e bom compôs na velhice é que são, às vezes, tocados de uma graça inefável.

Como se um anjo guiasse sua mão trêmula. . .

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HEITOR DOS PRAZERES

EiTOR DOS PRAZERES (com esse belo nome, comparável ao de um outro negro carioca, Domingos da Guia), nasceu em 1898 na Cidade Nova, filho de Dona Celestina Gonçalves Martins e Eduardo Alexandre dos Prazeres.

O pai era marceneiro e tocava clarinete e caixa na banda da Polícia Militar; o filho herdou o ofício e o ouvido do pai. Aprendeu o ofício de marceneiro e carpinteiro, mas se especializou como polidor de madeira — "enversizador técnico", para usar uma expressão sua. Apesar de trabalhar desde os 7 anos foi, devido a más companhias, preso aos 13 anos como vadio e passou dois meses na Colônia Correcional da Ilha Grande.

Cresceu entre a Praça Onze e o Mangue, que naquele tempo "era simplezinho" e onde "choromingavam os primeiros choros dos carnavais cariocas" e os "sambas da ti Ciata". Se o poeta Manuel Bandeira andou em 1910 ouvindo os sambas da Tia Ciata é capaz de se lembrar de um negrinho magro, muito limpo e muito bem vestido, com uma cabeça curiosamente talhada,

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as orelhas muito miúdas e presas ao crâneo; numa delas pendia o cigarro aceso enquanto tocava cavaquinho, ou na hora de esticar o braço para aceitar uma dose de cachaça.

Mais para o Norte tudo era considerado roça ("Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do que todas as Meritis da Baixada"), quase ninguém morava nos morros, o Mangue era família, e Heitor saía com seu cavaquinho num choro para fazer serenatas. Ia inventando músicas e letras que às vezes outros repetiam e cantavam. Surgiam os ranchos, a princípio simples, com suas fantasias feitas às escondidas nas casas das famílias, cada um inventando sua roupagem de príncipe, com veludo, e brocados de ouro, sapatos de entrada baixa, depois enormes, caros, necessitando livros de ouro, com enredos de histórias bíblicas e medievais, rainhas de Sabá, reis de França e Cupidos.

Sinhó era pianista ("pianeiro") no "Congresso" da Praça Onze, a Polícia ainda perseguia os violeiros, a gente que vinha do Norte começou a morar nos morros para onde fugiam os perseguidos, os ritmos da roça se misturavam com os sagrados e profanos das cidades, e na festa da Penha eram lançadas as músicas que depois dominariam o Carnaval.

Quando começaram a ser gravados discos, Heitor dos Prazeres ouviu, um tanto alteradas, duas músicas suas gravadas como o nome de Sinhô. Procurou-o para brigar, mas o outro disse: — "Heitor, eu não sabia, que isso era seu ou de quem, eu peguei isso no ar como um passarinho" e se ofereceu para pagar a êle. Um dos sambas era "Ora vejam só" em que êle se queixa da

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'mulher que eu arranjei" e que "me faz carinho até demais", samba composto quando voltou a casa em que vivia com sua amiga depois de sumir uma semana em farras e serenatas. O outro era "Gosto que me enrosco" em que nos previne que "não se deve amar sem ser amado, é melhor morrer crucificado. . ."

Assim de cavaquinho em punho, Heitor atravessou toda a fase heróica do Carnaval, depois quando ficava sem dinheiro arrumava um samba e ia vender para o generoso velho Figner na "Casa Edison", Rio de Janeiro", como diziam os gramofones, e como o gerente reclamava que êle fazia sambas demais, dava os sambas para outros irem vender como se fossem seus. ficava lá fora esperando para dividir o dinheiro.

Êle ajudou a fundar as primeiras escolas, na Portela e na Estação Primeira da Mangueira, compôs a "Canção do Jornaleiro" lembrando os tempos de moleque em que, às vezes, pegava uns jornais para vender, e que depois veio ser inspiração musical do movimento de proteção aos jornaleiros. Uma vez se encontrou com Noel Rosa, e Noel perguntou o que êle tinha para o Carnaval. Batendo na caixa de fósforos dentro do bolso começou a resmungar uma marchinha que tinha na cabeça: "Um pierrot apaixonado. . . que vivia só cantando..."

Os dois ajeitaram a segunda parte, e a música de parceria atravessou vários Carnavais. Compôs "Mu'her de malandro", "Deixaste meu lar", "Progresso" (por ocasião da revolução de 30). "Lá em Mangueira", "Tristeza", "Nossa Separação", "Desperta Dodô". . .

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Depois de muitos amores casou, teve seis filhos, (fora uns dez que teve antes e depois, pois hoje em dia é até vovô), levou o samba a Montevidéu e jamais pensava em pintura. Foi em 1937 que começou a fazer uns quadrinhos "para enfeitar a parede". O jornalista e desenhista Carlos Cavalcanti o estimulou, disse que êle tinha jeito; suas primeiras aquarelas ficaram com Vicente Leite. Começou a fazer uns óleos muito escuros.

Hoje é funcionário do Ministério da Educação, onde um arquiteto inteligente, Jorge Ferreira, lhe deixa tempo para pintar, e é ritmista da Rádio Nacional. Ganha pouco, tem mulher e uma filharada, mas sempre bem vestido, com os paletós desenhados por êle mesmo, bolces nos bolsos, invariavelmente limpo e correto, como um "gentleman negro" que tivesse, como tem, um "Método de Cavaquinho".

Em uma das suas letras de samba Heitor diz à amada : "meu amor por ti são flores, tudo flores naturais". Sua pintura é uma flor natural de seu samba e de sua vida, de seu meio e de suas mulatas de quem êle desenha com amor todos os dentinhos brancos. Se às vezes exprime algum drama social, como "Os refugiados" em que aparece a gente pobre carregando seus trastes, expulsa do barraco de uma favela qualquer, ou uma reivindicação racial, como naquela sala de jantar em que uma família preta é servida por uma copeira branca, quase sempre reflete momentos amenos da vida da gente do samba, não bem a de hoje, mas os do tempo já antigo, em que para além de São Cristóvão o Rio de Janeiro era muito rural.

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Esse homem que começou a pintar quarentão conta em suas telas, muitas vezes, recordações da vida, e me disse que o quadro que fêz da Praça Onze no Carnaval, e que vi na casa de Carlos Drummond de Andrade, já fêz depois que a Praça Onze não era mais assim. Como em tanta música urbana (vide Catuío), há em sua pintura, às vezes, uma ressonância da roça em que êle nüfcca viveu, luares de sertão e frisos de cana de açúcar, caboclas do mato; assim é mais fiel à sua cidade, cujo sentimento rurai os pobres que vêm vindo renovam sem cessar, e mesmo um homem nascido na Cidade Nova ainda é no Brasil, como somos todos, uns vagos exilados do país "essencialmente agrícola".

Se há um homem que não precisava ser pintor era esse, cuja vida e amores já conta de maneira tão boa em outra arte, mas sua imensa riqueza interna veio ganhar na pintura uma expressão irmã do samba, e seria fácil reconhecer o ritmista na composição dos quadros, o "envernizador técnico" no seu acabamento caprichado, o boêmio nos motivos malandros que o inspiram. Êle não faz pintura "do Partido Alto", para deleite dos ricos, nem trás para a tela as cenas das macumbas e candomblés que freqüentou, apenas conta essa vida solta e heróica de cavaquinho na mão e cachaça e mulata, sua vida de seresteiro e trovador de muitas conquistas "não pela cara que tenho, mas pela conversa que eu sei fazer".

Sua arte é, porisso, como êle mesmo, uma expressão legítima de um Rio de Janeiro atrapalhado e saboroso a que a miséria nunca pôde tirar o gosto intensissimo da vida.

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O PINTOR SILVA

M Sales de Oliveira, na zona da Mogiana, no interior de São Paulo, o dia 12 de março de 1909 amanheceu com pássaros gorgeando e galos cantando, a saudar o sol daquela bonita manhã — a acreditarmos no depoimento de uma testemunha, que entretanto náo estava em boas condições para perceber as coisas.

Quem nos descreve essa manhã é a pessoa que leva "belíssimo nome" (conforme êle mesmo diz) de José Antônio da Silva, que no livro "Romance de minha vida", editado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, conta assim o seu nascimento.

Sua mãs era Dona Brasilina Custódio da Silva; o pai, Isaac Antônio da Silva, era carreiro de profissão, trabalhador "nos serviços mais pesados da vida e mais perigosos"; o menino, naturalmente, logo que teve algum entendimento foi ser "candieiro", puxando seis juntas de bois, que eram (êle ainda se lembra, 30 anos depois) Manijo e Prateado, Pacote e Balão, Negrinho e Rolinha, Bordado e Invejoso, Despacho e Dobrado, Violento e Moreno.

Tombos de cavalo, mordida de cobra, judiação com bichos, reinações de toda ordem êle sofreu e fêz na

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infancia na roça. A primeira viagem de trem, em que teve medo do chefe que cobrava as passagens, porque estava vestido de caqui e portanto parecia um soldado da polícia; médo da velivi doida e do bandido Jacó Bravo que fazia tiroteios. O pai mudava de fazenda, o menino ia debaixo do sol quente levar comida para êle na roça, a família inteira pegou amarelão. Depois, emburra fazenda saía às 5 da manhã, com um carrinho de leite, distribuía o leite na cidade, depois amarrava o animal na sombra de uma mangueira e ia para a escola. Depois voltava sozinho as três léguas levando os oitenta litros vazios, a noite ia escurecendo, êle tinha medo da estrada deserta.

Dtpois o pai, em outra fazenda, tirou o menino da escola porque o serviço era muito e lhe pôs uma enxada na mão. O irmãozinho morto e incendiado pela vela que tombou. O pai devendo à fazenda no fim do ano de trabalho duro, nova mudança, mais três meses de escola, depois outra vez o trabalho na roça, levantando às quatro da manhã, indo para o serviço tiritando de frio. descalco e em mangas de camisa, outras crises de impaludismo, e pelos 16 anos as longas caminhadas para ir a um baile no povoado. Então o menino se separa do pai, vai trabalhar sozinho em outra fazenda e começa sua peregrinação que é a de todo trabalhador rural brasileiro, de fazenda em fazenda, de miséria em miséria.

Aqui está êle derriçando café a oitenta réis o pé, dormindo sobre sacos de estopa, ameaçado de morte pelo fazendeiro cuja filha começou a namorar; aqui está

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cavocando terra com enxadão, pegando em dormentes e trilhos na construção de uma estrada de ferro, ganhando 7 mil réis a seco, das seis da manhã às seis da tarde, com quarenta minutos de intervalo para o almoço e trinta minutos às duas horas da tarde. Aqui passa fome e dorme entre imigrantes lituanos. Aqui vende sua conta no armazém da Estrada pela metade do dinheiro. Aqui está de terno de roupa branca, gra-vatinha borboleta e sapato de bico fino "'sistema almofadinha" em uma festa da cidade; aqui trabalha no balcão da vendinha de "seu" Andreucci, aqui tem sua grande paixão por Lica Castabalate, aqui joga futebol, aqui derruba mato e faz queimada, aqui se encontra com uni lobisomem na estrada à meia noite, aqui se junta com uma moça e tem uma filhinha que morre com trinta dias de nascida, e trabalha numa turma de camaradas a 5 mil réis a seco, e se separa da mulher, e foge com outra moça, depois se casa com ela e começa a ter filhos, e começam a trabalhar em outra roça, e depois carrega cana na moenda, num engenho tocado a vapor, cs ombros inchados, recebendo em lugar de dinheiro um papel branco chamado "ordem", depois passa a ser meladeiro, depois trabalha na evaporadeira, depois como ajudante de alambiqueiro, depois de bagaceiro, depois foguista de vapor. depois nas Jorras, tudo trabalho de engenho de açúcar.

Em 1934 é nomeado meseiro de eleição, depois, como o patrão ganhou a eleição, arranjou um emprego na Prefeitura, depois o patrão o chama outra vez para c engenho, tem uma encrenca em que fere um homem, é preso e processado, o patrão consegue tirá-lo, depois

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quer que êle volte para trabalhar nas dornas, depois fica na cidade sem emprego uns seis meses, vai para uma fazenda, depois para uma chácara trabalhar num brejo, depois para outra chácara, depois para outra fazenda, depois para outra, onde ganha seis mil réis por dia, e carpe café com mato da altura de um homem a 20 mil réis por mil pés, e ainda vai trabalhar em mais duas fazendas, junto com a mulher, depois vai ser ajudante de campeiro, depois trabalha na máquina de beneficiar café, depois vai ser carroceiro. . . E já cheio de filhos e cansado de andar de fazenda em fazenda fica uns tempos na cidade do Rio Preto, está doente do coração e é porteiro da noite em um hotel, vê um vitral numa igreja e tem vontade de pintar, pega um pedaço de flamela, compra umas tintas e faz uns quadros.

O leitor deve estar cansado nessa enumeração, aliás muito incompleta, dos empregos de José Antônio da Silva, que até angariador de auxílio para um Centro Espírita êle foi. Assim, entretanto, compreenderá melhor o caso que lhe sucedeu quando tinha 37 anos de idade, ganhava 235 cruzeiros por mês e pagava 150 de aluguel por uma casinha em que morava com a mulher e cinco filhos : com os dois metros de flanela que comprou fêz três quadros e sabendo que ia haver em Rio Preto uma exposição de pintura a que todo mundo podia concorrer mandou esses quadros.

Do júri faziam parte dois críticos de arte de São Paulo, Lourival Gomes Machado e Paulo Mendes de Almeida. Não conseguiram fazer com que o primeiro lugar coubesse ao Silva, mas o animaram e tempos depois êle fazia, na Galeria Domus, de Fióca, em São

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Paulo, uma exposição em que vendeu todos os quadros e ganhou vinte contos. Desde então vive principalmente de pintura, foi a São Paulo, viu o mar em Santos, fêz exposição no Rio de Janeiro, no Ministério da Educação.

Pela primeira vez no Brasil um traba'hador rural conta sua história em um livro e em pintura. Aí começa o grande valor desse caipira paulista muito branco, de cabelos castanhos e olhos castanhos, quieto e des-cunfiadíssimo. Seu desenho é ingênuo, êle não conhece perspectiva, mas descobre os milagres simples da composição e tem um senso de cores notável. Se um excessivo êxito levou alguns críticos do Rio a tratar o Silva com severidade, como se êle fosse um artista erudito, ninguém pode negar suas qualidades plásticas a serviço de uma sensibilidade perfeitamente caipira.

Trechos de uma carta sua: "Volto para meu can-tinho. . . pintarei muito devagar e com muita atenção. . . pintarei sempre o que eu gostar e achar que para mim esteja certo. . . porque eu pinto para me agradar, e me curar de mágoas passadas. . . eu pinto por distraimento e por umas recordações do meu tempo de criança. . . não tenho vaidade pelo dinheiro porque já estou acostumado a viver sem êle..."

Nem todos os pintores de escola poderiam — hélas! — dizer essas mesmas coisas que saem da alma do caipira Silva.

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REPRODUÇÕES

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CIRANDA — Heitor dos Prazeres

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VASO DE FLORES — José Bernardo Cardoso Junior

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PÃO DE AÇÚCAR — José Bernardo Cardoso Junior

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ENSAIO — Heitor dos Prazeres

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SAMBA DISCRETO — Heitor dos Prazeres

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Morro - Heitor dos Prazeres

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O HOMEM DO BURRO - Heitor dos Prazeres

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SAMBA NOTURNO — Heitor dos Prazeres

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CHOPANA — Heitor dos Prazeres

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A MULHER DO POÇO - Heitor dos Prazeres

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FAZENDA MODERNA — José Antonia da Silva

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CAVALO NO CERCADO - José Antonio da Silva

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PEÃO REZANDO PARA NÃO CAIR — José Antonio da Silva

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CARNEIRINHOS EM BAIXO DA CHUVA — José Antonio da Silva

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CENTRO ESPIRITA - Jose Antonio da Silva

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 — JOSÉ JANSEN ...................................... A máscara no culto, no teatro e na tradição

2 — ALVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON ......................................... José Lins do Rego

3 — PAULO RONAI ..................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE .................................................... Viola de Bolso 5 — Lúcio COSTA ..................................... Arquitetura Brasileira 6 — Lucio COSTA ..................................... Considerações sobre a Arte Contem-

poranea 7 — PAULO MENDES CAMPOS .................. Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES ............................... Formaçáo profissional do Advogado 9 —H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................ Monte Cristo, ou da Vingança 11 — Luis COSME ........................................ Música e Tempo 12 — JOÃO CABRAL DE MELO ...................... Miró 13 — OTÁVIO DE FARIA ............................... Siguificação do Far-West 14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte 15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... Teatro de Cervantes 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... Isabel a do Bom Gosto 18 — GILBERTO FREYRE ............................. José de Alencar 19 — CLARISSE LISPECTOR ......................... Alguns Contos 20 — MARIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna 21 — ROSARIO FUSCO ................................ Introdução à Experiência Estética 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................. Realidade e Ficçáo 23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar 24 — Lino Ivo ........................................... Liçáo de Mário de Andrade 25 — EUGENIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventriloquo 26 — JOSÉ LINS DO RECO ............................ Homens, Seres e Coisas 27 — OTÁVIO TAHQUINTO DE SOUSA .. De várias Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura 29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Colonial 30 — MANOEL DIECUES JÚNIOR .... Etnias e Culturas no Brasil 31 — CYRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo 32 — OSWALDINO MARQUES ....................... O poliedro e a rosa 33 — FERNANDO SABINO ............................ Lugares comuns 34 — PERICLES MADUREIRA DE PINHO Notas à margem do problema agrário 35 — VITORINO NEMESIO ............................. Portugal e o Brasil na História 36 — WILLY LEWIN .................................. Ensaios de Circunstâncias

(Continua na 3a pág.)

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ADONIAS F I L H O

JORNAL DE UM ESCRITOR

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

S E R V I Ç O D E DOCUMENTAÇÃO

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Retira o A., do "Jornal" que vem escrevendo há muitos anos, estes fragmentos. Intencionalmente, e por razões que não deseja discutir, divulga apontamentos críticos relacionados com livros e escritores estrangeiros.

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1943, janeiro, 5 — Relendo "Don Quixote de la Mancha", nãc como um leitor em disponibilidade, mas como um aluno interessado em aprender, com Cervantes, o mecanismo da aplicação da aventura. Detenho-me, sem pressa, sobre os episódios. E, à proporção em que os examino, convenço-me da observação de Menéndez y Pelayo : "Cervantes fué hombre de mucha lecturas". Vejo-o lendo a "História dei invencível cavallero don Polindo" ou "La Crônica de los nobles cavalleros Ta-blante de Ricamonte e de Joíre" — vejo-o sobretudo inspirando-se em si mesmo, em sua vida agitada transfigurando o próprio destino. Guerreiro, escravo, poeta, Cervantes não deixa dúvida quanto a Don Quixote.

1943, janeiro, 10 — Curioso como um dos lados mais obscuros da estante obriga-me a reexaminar os livros, uns sobre os outros, desarrumados. Sim, são os livros de Marcel Jouhandeau. E' um romancista, o meu grande romancista Jouhandeau. Nenhum outro conheço tão insensível como a própria morte. Homem rude e trágico, de frieza de gelo, que inunda porém o seu drama com um sopro que se diria de febre. Inson dável e distante, quase sem nervos e sepulto de alma. esse Jouhandeau — perdido no inferno e nas fantásticas trevas — talvez silencie agora definitivamente.

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Contenham-se, neste instante, quando a noite começa a crescer, as suas insatisfações. Imobilize as mãos cansadas de procurar, sobre as criaturas, o limite e a medida da eternidade e da vida. De resto, nele as mãos se tornam inúteis. Tateiam no vazio como se as coisas do mundo escapassem e fugissem. Em verdade; a predição metafísica dos castigos e das penas, a aflição que parece aguardar enquanto rolam os minutos de cada dia, êle como que as sente sobre a carne viva e o coração que lateja. E' possível que isso o aterrorize. Amedronte-o como a violência amedronta os tímidos. E também é possível que nasça desse temor, dessa força que no fim é uma recusa à própria timidez, a fria indiferença que o reveste com uma insensibilidade de rocha. Surge, então, o místico. Já não é mais o homem, o cego porém que perdeu a luz porque desejou ver em excesso. Condenado que transpôs as fronteiras proibidas. Deus é a sua obcessão.

O conflito não é com o irmão, o amigo, ou a humanidade de todos os semelhantes. Êle mesmo escreverá: o conflito é este entre Dieu et moi. E se faz um perverso, um bruto de maldade, um possesso que escreve livros onde só há poeira e sombra. Livros sem claras nuvens e sem sol, onde o vento passa como uma música capaz de enlouquecer e matar. Julga-se quase um senhor dos homens e das mulheres. Alguém capaz de deformar as crianças. Sim, Marcel Jouhandeau desejaria ser Deus — ser Deus por um momento para nos recusar a vida ou nos entregá-la de um modo ainda mais incompreensível e trágico. Mas, como não o consegue,

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à semelhança de um demônio batido, foge da própria carne e se exila no sonho e na loucura, e não teme confessar que prefere o fantasma ao homem, o duende ao sangue.

Agita-se em ânsia, como Dostoievski, tentando com-preender o extraordinário tema da liberdade. O seu "Monsieur Godeau intime" caminha nesta direção. Não sabe, entretanto, o que seja recuar. Enfrenta os perigos, desconhecendo o tempo e a memória, as fraquezas e os tumultos das paixões, dando-nos essa impressão de liberdade que os pequenos peixes devem sentir entre os vidros de um aquário. A liberdade completa — dir-nos-á nos contos de "Astaroth" — só se consegue através da fuga. A grande fuga dos suicidas, das mulheres envergonhadas que procuram conservar no vício as últimas alegrias.

Detenho-mt, as mãos sobre os livros empoeirados. Entre eles — percebo agora — está a "Introduction a une mystique de Venier", de Claude Mauriac. Lembro-me que nos fala de Rimbaud como o maior predecessor do romancista. Procura irmaná-lo a Gide. Também a Nietzsche. Mas, dentre todos, apenas Berdiaeff não receou chamá-lo gênio.

Afasto-me, a cabeça descida, e a mim mesmo digo que Marcel Jouhandeau é um homem sozinho, insensível como o deserto, sobre o qual podemos arremessar os nossos grites e bater com os punhos fechados. Não recuará um passo e nem os lábios moverá numa palavra. O mármore talvez seja mais vivo —- e apenes a morte, em verdade, poderá ser tão insensível como êle.

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1943, Janeiro, 28 — Charles Dickens sabe que a criança jamais perece dentro de nós. E tenho a confirmação nesse "A Christmas Carol" ("A Ghost Story oi Christmas") que leio como um prolongamento do Natal que acaba de passar. A conversão de Scrooge é uma extraordinária lição. Mais uma vez, como diria Chesterton, estamos em face da "natural human dignity of the poor". Franciscano sem hábito, certo do êxito da sua peregrinação e convicto da irmandade da justiça e das lágrimas. Dickens não compreende a bondade sem o pranto, sabe que a humildade é mais forte que a força, não esquece que nem todas as velas se apagam ao primeiro sopro. Outro qualquer não distinguiria, corn sua espontaneidade, a invencível presença da criança no fundo da nossa tragédia comum. O fantasma de Marley leva-me aos vivos : Copperfield Twist, Peg-gotty, o bom Micawber.

1943, fevereiro, 3 — Novamente sobre a mesa o problema da poesia. Inutilizei, sem que ao menos soubesse porque, todas as anotações feitas nos últimos dias. Mas o problema se impõe, inflexível. E volto a pensar em um lógico por vocação que me interrogasse :

— Para que a poesia ?

A pergunta encerra toda a condenação ao ilogismo. Repressando os termos compreensivos, dispensando a impressão objetiva, eliminando a significação na linguagem, desprezando a relação inteligível, sacrificando o conceito e a imagem — destruindo, em resumo, a lógica

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formal —, os poetas modernos, em um grupo reduzido, outra coisa não feriram senão a poesia em sua própria constituição. O acontecimento, em parte decorrente do abstracionismo plástico, a êle não se identifica em virtude de sua natureza verbal. Ao contrário do pintor e do escultor que visualizam a forma e dispõem naturalmente da côr e do relevo, o poeta conta apenas com um veículo de expressão que é a linguagem. O instru-mento lírico é a palavra em seu esforço de representação.

Deformando esse instrumento, impedindo-o de organizar em conceitos as noções abstratas, creio ser impossível discutir a conseqüência : anulou-se a poesia como valor racional, "un ordre logique". Extinguiam-se simultaneamente o pensamento e a imagem. Perdida a ideação, abrindo nova freqüência em um mecanismo antipsicológico e meramente auditivo (como era meramente visual uma parcela do abstracionismo plástico). o que se tornou inevitável foi a poesia despir-se também da reação afetiva e, efeito imediato, da própria sensibilidade. Intelectualizou-se, sem a menor dúvida, em função do vazio. E o mais impressionante, nesse divertimento inteligente, é a sua dinâmica.

Movendo a máquina de hermetismos, trabalhando matéria impermeável à análise — a estrutura verbal nua de logicidade — começa por negar o conhecimento instintivo (Dwelshauvers) e fugir à intuição bergsoniana. Afastado esse ponto convergente indispensável a qualquer artista, sobretudo um poeta, termina por esterilizar-se numa espécie de composição sem nexo. Isolando o poeta, sua audiência começando e termi-

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nando em si mesmo, elimina por outro lado a comunicação. A poesia é bem uma onda insintonizável, à margem da linguagem convencional, sem a menor possibilidade de repercussão. O "puzzle".

Essa dinâmica, a meu ver, produz um estado anti-poético porque se traduz numa manifestação ilógica. Não rjá o encadeiamento que concretiza a figuração mental. Ausentam-se os elementos de fixação. E, o que é mais grave, falta ao verso o lastro perceptivo — a linguagem poética, simbólica ou não, escapando à sistematização que resulta inevitavelmente da "lógica social". O ato poético, em conseqüência, será factual. Estão sepultas as bases residuais que robustecem os dados lógicos e conceituais.

1943, fevereiro, 10 — A determinação foi tomada há muito tempo: leitura obstinada, regular, diária, dos modernos romancistas dos EE. UU. Cumprindo-a. posso dizer agora que conheço Theodore Dreiser na inti-timidade. Jamais será um reformador, não será também um professor de moral pública. Homem feito pela vida, lutando desde criança, não conseguiria apreender as coisas do mundo senão através dos próprios olhos. E é bem esse encontro, quase um choque com a realidade, que afasta dos seus romances o caráter de absoluta ficção. Estranha a sua lealdade para com os sentidos. Rigorosa valorização de todos os caminhos que nascem dos instintos. Um "finalista" — na classificação psicológica de Mc Dougall.

Homem que não se exalta, bem um romancista do nosso tempo não faz do romance um refúgio. Mas

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o utiliza de modo quase hostil e— embora não seja um reformador ou um professor de moral pública — utiliza-o como um instrumento de luta. Não que escreva um protesto, ou um libelo, ou levante simplesmente uma crítica. O que vem à tona, porém, é um senso de condenação quase velado, acima das dis-cussões, a vida imprimindo em si mesma os próprios movimentos. Não há uma moldura exterior que embeleze, não há também qualquer interesse em fundamentar uma concepção filosófica. O que ressalta em verdade, são as histórias comuns de algumas crianças. alguns homens e algumas mulheres.

No entanto, para chegar aí — entrosar essas criaturas em imensa atmosfera social — não precisa valer-se da técnica de esquartejamento tão sensível, por exemplo, em alguns romancistas modernos. Foge ainda aos detalhes psicológicos, afasta-se dessa ânsia de intro-versão que caracteriza a obra inteira de Mauriac. O que permanece, a matéria que deixa ficar, é bem o indispensável. A intensidade no retrato de Glyde Griffiths, em "An American Tragedy".

Algumas vezes, como em "Sister Carrie", podará haver a divagação, o debate restritamente intelectual. Dir-se-ia mesmo a linha de ensaio na estrutura do romance. Problemas que se erguem com grande impulso, presença de medidas que correm num plano lógico. Mas o que se enxerga, fora de qualquer dúvida. é o romance em sua unidade, o perfeito acabamento que se diria corporal em livro como "Jennie Gerhardi".

Em "Jennie Gerhardt" sempre acho que encontro o mais humano de todos os Dreiser. Esse romance,

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como observou Frabrégues, poderá iludir e provar falsas perspectivas. Assemelhando-se ao "Tesa d'Urbervilte". de Thomas Hardy (ambos constituindo uma reação ao puritanismo) parece-me que sua força vem da resignação. O terrível drama de consolar na aridez do coração a insatisfação do nosso maior desejo. A fixação da vida que nasceu irremediavelmente perdida. O grito do senador Brander: "Por que morrer insatisfeito?" E a vida apanhada como um peixe, em plena agitação, palpitante, movimentos caindo até a morte.

Afinal, verdade que em plano inferior ao extraordinário romance de Malégue, mas ainda é aqui que sentimos bem alto a humildade. Criaturas que possuem olhos de cão e desconhecem a salvação ante a insensibilidade de tudo. Tão humildes que não sabem sonhar. E ignoram ser a esperança o que nos salva em face da pobreza do mundo. Não, esses romances de Theodore Dreiser não passam como passa a água de um rio. Ficam, e ficam como no corpo as cicatrizes das grandes feridas.

1943, fevereiro, 22 — Não fosse um tímido, e Kafka seria um homem crucificado pelo orgulho. Seria talvez o mais violento de todos, o mais bruto, o que melhor soubesse viver o ódio e a cólera. Seu pensamento não seria móvel, indo e vindo como uma bola de tênis, mas seria inflexível, de dureza extrema, com resistência de ferro. Nasceu tímido, porém. Dir-se-á da sua timidez ser uma espécie de verniz que reveste com dificuldade o orgulho sensível, oculta com esforço a excitação, o protesto quase inumano contra a presença de tudo.

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O íntimo desejo, que ferve e queima nas profundezas do seu sangue, é bem esse de criar um universo próprio — um universo que fosse um trabalho seu, inferno movente que o ajudasse a vencer a danação.

E' a exigência da "metamorfose". E' o ódio dissimulado. E' a fraqueza reconhecida provocando esse temperamento que Wladimir Weidlé chamou de gênio noturno. A miserável grandeza de alguém que chora o próprio sofrimento, lamenta a própria condição. E, como uma resposta ao tormento de todos os dias, ao açoite que bate a consciência já ferida e quase em estado de loucura, a paixão pelo abstrato, o estranho amor por Kierkegaard. Leu Kierkegaard como um alucinado, procurou completá-lo, superá-lo, vencê-lo.

Mas Kierkegaard, que não temeu acusar Deus — e

bem o disse Gustave Thibon — como um ser decaído entre a imutabilidade e o amor, não foi totalmente um cego. E, o que é verdadeiramente muito mais grave, não foi um romancista. Na verdade, apenas um romancista, e um romancista assim como Kafka, poderia chegar ao fundo invisível que chegou, tornar-se uma espécie de sombra de outra sombra. Em qualquer dos seus livros — "O Processo", "O Castelo", "América", "A Metamorfose" —, livros escritos sob o domínio da mesma angústia que coagira Kierkegaard, o que mais se sente não é a atmosfera melancólica, a vida fictícia, mas e sobretudo isso que Max Brod disse ser a insigni-ficância da conclusão material. O oposto, digamos em uma tentativa de exemplo, precisamente o oposto do Faulkner de "Men Working".

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E, como conseqüência, a fragmentação de tôdas as realidades, o ritmo desconexo, essa indisciplinada pulsação que faz lembrar a música de Debussy. A existência acima do solo, a incompreensão para com os mais simples atos humanos, a negação de todos os estados psicológicos, o ¡material se valorizando como se Kafka nada soubesse das coisas do mundo e dos elementos da Vida.

Um morto que viesse do mais longínquo passado e renascesse sùbitamente entre nós com os olhos abertos de medo, não se sentiria tão afastado como Kafka. Sentir-se-ia bem mais próximo, de certo. Kafka, porém, será um homem distante em qualquer época, estranho que perdeu o caminho e sente a obscuridade crescer em cada minuto que passa. Não distingue as formas com segurança, as linhas dançam, o mundo se apresenta como um disfarce. Dir-se-á que tateia como o Joergensen das primeiras novelas. Perde a noção do exterior e do espaço, salta sobre a própria consciência, e permanece no derradeiro e definitivo limite. Então, por todos os lados, é o perigo que o cerca. Já não pode recuar como Charles Huysmans. Debate-se, tentando esclarecer, e cada vez mais submerge. E' um afogado na própria angústia, é o orgulho o que ainda o sustenta — mas, já agora, compreende ser inútil recompor os dados e reiniciar outra análise.

Nesse instante, agarra-se à morte, faz da morte o seu tema, ama-a e odeia-a ao mesmo tempo, resigna-se e protesta. E é dentro da morte, em paixão de insano, que busca a força capaz de conservá-lo vivo dentro da vida.

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Como esse homem esteve perto da crucificação!

1943, junho, 8 — Se falo de magia a propósito da Jacob Wassermann é porque a magia, afinal, não é o sortilégio. Ao lado da alegria e do medo pode tornar-se uma virtude: aproximar ainda mais o homem de si mesmo despertando no coração a idéia da origem e do fim. Pode, desse modo, colocar-se entre os únicos e verdadeiros abismos que nos encerram a nós dentro da vida e do tempo. E constituir, por assim dizer, um espaço capaz de abrigar os sonhos e as esperanças, as alucinações e os grandes pressentimentos.

Senti-la, como visão nos olhos ou simplesmente como um corpo pesando entre os dedos, não será difícil a alguém que se contemple e tente rasgar a obscuridade que envolve todos os nossos destinos. Virá menos como uma angústia, mas virá dolorosamente como sendo o reflexo dessa loucura e dessa cólera que em nós se ocultam com as paixões e o próprio sangue. Surgir. porém, e distender-se abaixo do sol — isso não é o bastante.

Talvez que exija o máximo. E a experiência desse mundo que é o máximo, seu retrato bruto animado pela lentidão dos próprios movimentos, nós o encontramos — verdade que de um modo patético e terrível — mas sempre o encontramos em Jacob Wassermann. Antes de ser o adversário da injustiça (e como será possível esquecer O Processo Maurizius?), o inimigo quase apocalíptico da crueldade humana, o desesperado criador de uma outra ontologia, êle é o romancista da fascinação, dos dramas ocultos, de um encantamento místico que se prolonga em crispação e fúria muito fora da terra.

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Sua obra de romancista, por isso, é um imenso delírio. Desde o início, quando esboçara em Os Judeus de Zirndorf a estranha atmosfera que apenas sugeria os livros do futuro, já o podíamos aceitar como um apaixonado da transfiguração e um poeta. O esclarecimento viria depois. Chegaria com os três romances do ciclo para. apontá-lo, apesar de toda a desordem e todo o tumulto, como um apóstolo de fé que apregoa e crê na restauração da criatura humana. O universo de piedade e ódio, renúncia e desespero, abnegação e sofrimento, tristeza e amor, aquela força das paixões que oscilam como ondas — tudo isso, fechando-se em um bloco único, revelaria o tema decisivo de Jacob Wassermann .

Seu tema, como se pode julgar, está relacionado com a magia. Adere aos extremos que cercam o homem dentro da existência e do tempo. E' o tema da restauração do homem. Não uma restauração meramente contingente, ao modo do que acontece com os agonizantes que se tornam convalescentes, mas restauração que deve começar nos ossos e prosseguir até o infinito. Como conseqüência dessa mística singular, a tremenda inquietude que o obriga abrir os braços entre as suas próprias figuras. Entre elas, algumas como evadidas do inferno, Jacob Wassermann não permanece impassível. Também êle tem seus momentos de alegria, sonho e medo. Conhece na própria carne a agonia de Gaspar Hauser, ao órfão se dirige como um irmão de igual miséria e mesmo destino. Aceita seus sofrimentos, não como o espelho a uma imagem, mas como um olhar humano cheio de ternura e compaixão.

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E' possível que esta solidariedade pela humanidade nascida de si mesmo explique, em parte, a tortura que nos vem dos seus livros. Lê-los, não será apenas rir e chorar. E não será ainda a necessidade tantas vezes sentida de ocultar o rosto forçado pelo pudor da nossa condição. Será compreender, antes de mais nada, que o homem só não é totalmente miserável porque sonha, sonha e enlouquece, durante alguns momentos da vida.

1943, junho, 16 — Inicio a tradução da novela Golovin, de Jacob Wassermann. O melhor do seu gênio aí está. Breve, embebida naquele sentimento de tortura que faz lembrar Strindberg, rasgando-se como uma cortina entre duas consciências que são duas concepções de vida, a si mesmo ultrapassa na apresentação de um dos maiores personagens da novelística moderna: Maria de Krüdener. O tema, aparentemente entregue à história de uma família aristocrática que foge dos bolche-vistas, amparado no cenário da revolução soviética, se revela no diálogo que fecha o livro. O duelo verbal entre Maria e Golovin — que lemos tão ansiosamente como se fôssemos um ou outra das personagens — reflete uma estranha força que, vencendo nossa própria maldade, consegue negar, pelo entendimento, a mais primitiva coação dos instintos.

As palavras, escapando ao papel, chegam aos ouvidos. Sentimos sua presença como a uma voz poderosa, soprada ao mesmo tempo com nobreza e aflição. A confirmação, sem dúvida, da existência daquela alma que já se apontara em Schaefer, e que também se apontaria em Jacob Wassermann: simultaneamente paga e mística, lírica e contemplativa.

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1943, outubro, 19 — O que se faz preciso é transigir com o próprio destino. Aceitá-lo como aceitamos a fome e a tristeza, saber que incarna uma realidade de maior valor porque também mais lírica. Seu universo, em constante clima de inverno, poderá encher-se de sombras e cores. Poderá ser ainda a própria realidade absorvida. Ou apenas uma cavidade deserta. Sim, as faces do destino são muitas. Transfigurando-se em afli-ção, pode nascer como sendo crime e remorso, simples inquietude ou um outro inferno mais trágico. Pode ser também o vazio. Mas, ainda que venha tão vivo e decisivo como a forma de um corpo, jamais estancará dentro de si o sofrimento transformando-o, desse modo, em zona de mansidão e paz.

A criatura que delira é a criatura que sofre. Engano pensar seja o delírio um corte na dor. E' excessivamente estranho e desconhecido para não deixar uma marca, forçar o calor no sangue e o peso dos pés no chão.

Quem quer que o tenha conhecido, em estado de ira como Strindberg ou no afastamento quase monstruoso de Kafka, por certo não o sentiu assim como esse singular Hermann Hesse. Acurvando-se sobre si mesmo como uma serpente, perdido nas voltas do desvario que frenèticamente criara, tentando reprimir com as mãos as paixões que se extravazam como lava, Hermann Hesse só possui olhos para alcançar e ver "o lobo da estepe". O lobo da estepe não é Harry, também não será Paulo, nem Armanda — mas será Armanda, Paulo e Harry ao mesmo tempo porque o lobo da estepe somos bem todos nós que vivemos e amamos. Nós, criaturas que estamos

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acima das árvores e das pedras porque, afinal, possui-mos o delírio.

O delírio, que encontra a sua plenitude no "teatro mágico", é a fronteira que distingue. Não é a morte, nem a conformação tão humana do próprio corpo — e parece que escuto Hermann Hesse gritar do fundo da sua cólera — o que nos distingue da areia do mar ou das estrelas do céu. E' o delírio, a imaginação se movendo no espaço, rodando e dançando como uni acrobata no circo.

Hermann Hesse, porém, não fundamenta o delírio em raízes objetivas como Julien Green, certamente, o faria. Começando embora pela poesia, da poesia agora escapa para tombar, como um fugitivo, entre os pesadelos de um refúgio cada vez mais obscuro e quimérico. Abrigado nessas sombras que são o seu mundo, não lhe assiste um cenário amplo, um imenso cenário que nos fizesse lembrar, por exemplo, as montanhas. As paredes são lisas, o céu que enxerga é tão áspero como o próprio coração, a mão com que escreve é ríspida como o frio olhar de uma testemunha. O sopro poético, que suaviza as novelas de Gerard de Nerval, as histórias de Hoffmann, mesmo a violência dos romances das irmãs Brontè, não conseguem subsistir no seu delírio sinistro.

Resta apenas a descaracterização. O desconhecimento da norma, a sensível ignorância de tudo isso que eu chamaria os limites. E, como conseqüência, o que nasce é uma beleza quase inimaginável, mas tão forte que arrebata e aprisiona. Vem para ferir a realidade, marcá-la com dureza, afirmar que o homem pode vencer a própria vida porque traz dentro de si o mundo do delírio.

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O delírio é a salvação, o triunfo sobre "o lobo da estepe". Esta, em verdade, a indicação que Hermann Hesse põe no seu livro. Mas, embora o fechemos em sua última página, e dele escapemos como do fundo de uma pesada cerração, sentimos bem sobre a face que o sortilégio permanecerá ainda por muito tempo. Talvez por muitos anos.

Acabei de ler agora O lobo da Estepe. Hoje, certamente, o sol nascerá ao meio-dia.

1943, novembro, 9 — Não sei se André Gide conheceu Rozanov. Difícil mesmo saber se, estudando Dostoievski, em Rozanov não pensara ao escrever que "il n'y a pas d'oeuvre d'art sans participation démonia-que". E isso porque o refugiado do mosteiro da Trindade, sem dúvida um artista tão alto quanto Nietzsche, nasceu com o sangue do demônio dentro das veias. Em verdade, que se saiba, ninguém sentiu o demônio come êle. A mensagem de Santa Catarina — sangue e fogo — já não existe em face desse visionário que percebia, com os olhos do rosto, a trágica imagem da própria consciência em pânico. Amigo da morte, querendo organizar religiosamente a vida erótica, paradoxalmente entre a prece e a blasfêmia, talvez ignorasse o que realmente pudesse ser. Aparece-me como um homem que acendeu o incêndio no abismo do coração, no fundo de todos os ensinamentos do mundo, e ficou a gritar como o suicida que já não pode chorar.

E' o selvagem — e como ousar defini-lo, a êle, Rozanov, a não ser em um diário íntimo? — que não consegue torcer a cólera, que a si mesmo se aceita em plena misericórdia. Um condenado voluntário. O es-

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tranho humilde que avisa sempre: o homem, qualquer homem, só é digno de piedade.

Não compreende, como aquele Verkhovenski, de Dostoievski, a vergonha de uma opinião própria. O que tem a dizer, êle o diz com violência, brutalmente, a linguagem quase primitiva. Mas, como observa Schloezer, êle o diz com ritmo, o estilo aberto através da sonoridade musical. Chamaram-no, por isso, de poeta. Acusaram-no de possuir um espírito infantil. E' provável que esses intérpretes tenham razão. Rozanov, porém, que começara estudando pedagogia, e fizera depois seus tra-balhos nos jornais, não, não pode aceitar qualquer clas-sificação! Um poeta não escreveria Os Homens da Luz Lunar, não escreveria um livro como o Apocalipse do Nosso Tempo e não deformaria, como êle, a eterna fisionomia do cristianismo.

Rozanov, que todos precisam conhecer como uma vítima de si mesmo, que a vida inteira lutou para des truir o veneno do próprio sangue, acabou tranqüilo como poucos acabam. "A morte não é triste" — dissera no seu Apocalipse. E quando a alcançou, perseguido pelos bolchevistas, em um dos mosteiros da santa Rússia, nos arredores de Moscou, já não podia falar. Morreu em 1918, sem medo, de inanição, pensando talvez no destino do seu povo. As mãos, finalmente, submersas no corpo da Igreja.

1943, dezembro, 2 — E' possível que Wladimir Weidlé tenha razão. Muito provável que a criação imaginária esteja fugindo do romance, e o interesse do depoimento, o retrato bruto, a substituam, assim valorizando a realidade como o grande tema. No entanto,

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apesar da força do seu livro, continuo acreditando ex cessivamente no homem, e no destino da sua inteligência, para aceitar a realidade como o sangue do romance moderno. Em si mesma, nos seus detalhes infinitos, a íealidade é muito mais que um universo insondáve*. Quase desconhecida, transfigura-se — e é uma para cada homem, e é outra para cada época, e ainda outra para cada novo conhecimento que adquirimos. Alguma coisa, como se vê, a supera. E o que a sacrifica é bem isso que em nós é a nossa afirmação universal, o equilíbrio da nossa palavra, o impulso da criação, essa centelha ignorada que fazia Schiller cantar o mar sem que o mar houvesse visto uma única vez (lendo o "Essai sur le Destin actuel des Lettres e des Arts", de Wladimir Weidlé).

1943, dezembro, 7 — O que melhor êle escrevera em prosa, seus grandes poemas místicos, não, não darão uma idéia do verdadeiro Charles Peguy. Não que se imponha a dificuldade tão conhecida do seu estilo, menos ainda o corpo fracionado de idéias. Mas, essencialmente, porque Charles Peguy sempre esteve, na maior parte de sua presença, distante e muito distante dcs seus próprios livros. Não o encontraremos, como a Léon Bloy, na expressão solidamente fundida à própria vida. A história do seu pensamento, o ideal franciscano de bondade, o interesse em consolar todos os corações, iremos encontrar no mundo que se move em sua volta, nos amigos que freqüentam sua livraria.

Êle, esse Peguy insubstituível aos olhos dos amigos. o Notre cher Peguy de Jean e Jerome Tharaud, a ser descoberto numa visão perfeita, só poderá ser encon-

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irado nos depoimentos desses mesmos amigos, Hu milde, somente ao morrer naquele setembro de 14, e que começará a crescer. Avançará sobre si mesmo. sobre as obstinadas páginas dos Cahiers de Ia Quinzaine, sobre os dois poemas de Jeanne d'Arc, sobre sua própria morte na frente de batalha, para então distender-se sobre os amigos. Desse dia em diante, nós o encontraremos em todos os caminhos, sentiremos bem perto o movimento dos seus lábios ditando as grandes verdades. Charles Peguy, desse minuto para toda a eternidade, começará a viver.

E' de sua presença que sairá Maritain. Um lógico como André Suarés, seu amigo de antigas conversas, nele se inspirará para escrever os ensaios críticos sobre Dostoievski e Ibsen. Em outra fonte Romain Rolland, também colaborador dos Cahiers, não buscaria seu ideal de humanidade. E o nosso extraordinário Stanilas Fumet, o maior intérprete moderno do sentido metafísico da arte, distribuiria entre êle e Léon Bloy alguns dos seus livros que um dia serão apontados como os mais definitivos do seu tempo. Esses, para não falar mos dos mais afastados, não falarmos, por exemplo, de Daniel Rops que, dentre todos os seus livros, o mais humano será mesmo o que se chama Charles Peguy.

Charles Peguy, porém, aquele que lutara para "rendrai mon sang pur comme je l'ai reçu", que associava simpatia de homens tão distantes como André Gide e Maurice Barres, não será aceito com facilidade. Sua aceitação, que exigirá confiança e um total abandono. virá lentamente como uma criação e lentamente se expandirá sobre muitos. Exatamente em Le Mystére de

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la Charité de Jeanne d'Arc, dirá Charles Péguy: "Il faut des créatures de toute sorte pour faire une création".

1943, dezembro, 20 — Anotação para um pequeno estudo sobre Stanislas Fumet: Sem dúvida, é o man li umano e o mais compreensivo de todos os seus companheiros de geração. Mais ainda que o próprio Charles Du Bos. Não que seja um ensaísta de estilo fácil como Denis de Rougemont, ou um pouco ingênuo como Daniel Rops, mas alguém que se habituou excessivamente às interrogações eternas para não saber medir as palavras e normalizar os próprios movimentos. E o grande exemplo que poderíamos citar seria Le Procès de l'Art.

Nessa época não escrevera ainda Mission de Leon Bloy, ainda não condensara toda a sua energia intelectual no estudo simplesmente extraordinário que é L'Amour. Era o autor que oscilava em dois livros: um, sobre Notre Baudelaire; outro, sobre Sainte Jeanne d'Arc. O livro básico — para somente depois nos de-termos em face do Ernest Hello — deverá ser o ensaio sobre a arte.

Mas a arte, para Stanislas Fumet, não é um tema restrito de estética. Não é um tema filosófico. Ou apenas um tema. A arte é, como queria Ernest Hello, a plenitude patética. Deve ser grave como a sabedoria, uma amplidão assim como o milagre que começa no âmago do bem e da verdade e vai acabar no insondável abismo de Deus.

A sua catoiicidade, nesse ponto, é indiscutível. Tão indiscutível como a catolicidade que estudou na

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poesia de Baudelaire e na vida de Léon Bloy. No entanto, se para com Léon Bloy revela ainda a gratidão de amigo e discípulo, já no Ernest Hello é o mesmo liomem de atitudes recolhidas e determinadas. Nesse livro, que não é bem um estudo crítico, nem a comum exibição de um drama, sentimos perfeitamente a agu-deza de meditação e a obediência à norma clássica que caracterizam os intérpretes e os mestres.

1944, janeiro, 2 — Ainda mais que Henri Delacroix, Georges Dvvelshauvers viria mostrar a associação inevitável entre a psicologia e a crítica literária. Crítico êle próprio, sobretudo na última fase, sua crítica se transformaria numa espécie de modelo para a crítica de análise, de penetração tão profunda que venceria mesmo elementos aparentemente imperceptíveis. Não se contenta, pelo menos no ensaio sobre Rousseau e Tolstoi, com a intimidade dos problemas no revestimento meramente estético ou social. A crítica precisa descer. E descer muito, descer sempre, até a sondagem de-finitiva.

1944, janeiro, 8 — Admira-me que os historiadores, ainda mais que os sacerdotes, sempre acreditem no homem. Vendo-o no seu passado, nesse passado cheio de traições — como diria Dreed, uma personagem de H. G. Wells — de heroísmos inúteis e muito sangue, não esmorecem um só dia, sempre esperançados, como se fossem médicos lutando para regenerarem os velhos tecidos de um corpo decrépito. Deveriam ser céticos. Mas, estejam nos caminhos mais opostos — tão afastados como Coulanges de Spengler —, o que sempre de-

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rnonstram é uma crença infalível, mesmo total, na capacidade de aperfeiçoamento e equilíbrio do homem na eterna agitação do seu meio social. Nesse ponto, e não há para onde fugir, todos os historiadores se assemelham a Bossuet.

1944, fevereiro, 10 — Agitada, participante como nenhuma outra de uma época de mudança, de discussão agressiva e violenta das idéias, a inteligência pensou encontrar na crítica o seu caráter mais forte, o instrumento mais apropriado à sua expressão e ao seu trabalho. A imagem ainda tão presente da guerra, que agravou universalmente o desejo de reforma, a transposição do ideal de vida, deviam aperfeiçoar sua vocação de exame e ampliar seu interesse pelo julgamento. Perturbavam-na, sobretudo em face do mundo artístico, as experiências fracassadas, as tentativas empobrecidas, quase em branco o espaço destinado às realizações verdadeiras. Não reconhecia, porém, a falência das fórmulas, das especializações, do pensamento secularizado nos processos clássicos de criação. E, como uma compensação, talvez como último obstáculo ao ceticismo, a ilimitada confiança na crítica que é, fora de qualquer dúvida, o grande tema contemporâneo.

■' A crítica, historicamente variável em sua essência, sempre condicionando sua significação a um estado estético momentâneo, tornou-se, como os sistemas filosóficos e as doutrinas políticas, uma espécie de lógica rígida — de método que sacrifica a compreensão livre em favor do esquema quase matemático. Criticar já não é sentir, a virtude de aceitar ou não uma paixão humana ou uma atitude de beleza, mas simplesmente

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uma mecânica. Instrumento que mata na criação a presença e a responsabilidade do espírito tão indispensáveis à dignidade da própria arte.

Alargaram, no fundo do seu universo, que é inspirado como o da poesia e da ficção, o valor da técnica — substituindo, como observaria Jacques Maritain, o "ato de agir" pelo "ato de fazer". Mensurável, talvez para atender às imposições do racionalismo moderno, a crítica poderá ter se tornado mais fácil. Acessível ao exercício de todos, a ninguém dificultando o seu caminho outrora extensivo e profundo. Mas, sob esse deslocamento, o que dramaticamente se percebe é a controvérsia: de um lado, a confiança ilimitada que em si a inteligência deposita; e, do outro lado, a pobreza de meios impedindo possa corresponder àquela confiança.

Deseja-se a crítica, espera-se de sua interferência uma solução e de sua atuação um esclarecimento — mas, empobrecida quando os problemas crescem e se avolumam, tenta encontrar uma porta de saída na uniformização, no processo endurecido e invariável. Restringe-se a sua ação. E se restringe de tal modo, de tal maneira a asfixia numa acomodação medíocre que, por incapacidade, deixa ficar à margem as teses e as situações que estruturam o pensamento e a arte do tempo. Em face de um período de sensibilidade anormal, de constante preocupação revolucionária, de alarmante nevrose política, a crítica já não constitui um equilíbrio na ortodoxia dos seus princípios. Entrega-se, indo a reboque, sem perceber que a própria arte reage, sobretudo a arte literária e, nesta, principalmente a poesia e o romance.

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1944, maio, 9 — Custava-me compreender a distância em que colocávamos Ibsen, o desinteresse revelado pelos seus dramas, sua influência quase não contando entre nós. Difícil explicar sua ausência, a preferência se inclinando para alguns dos seus discípulos, êle próprio surgindo raramente em uma ou outra referência crítica. O exílio que impúnhamos, como volun-tariamente se impusera o exílio de sua própria pátria, não poderia perdurar muito tempo. Não devíamos exigir, porém, para êle que sempre foi um homem sozinho, uma compreensão imediata. Conhecem-se a complexidade do seu universo, a injustiça que sofreu quase até à morte, a preferência que se demonstrara pelo rival Bjoernsson, a tragédia que inunda a alma das suas figuras, para que nem todos o aceitem na força de um primeiro impulso. Incapaz de trair, revelaria por isso mesmo os sentimentos humanos sem ocultar o fundo de miséria, aquele abismo de degradação que Hovstad encarnou para todos os tempos.

Mas, em Ibsen, no seu teatro, o que primeiro se deve observar — como anotaria André Suarés no seu admirável Portrait d'Ibsen — é precisamente o registo das revoltas morais. Não importa que a análise supere a açáo. O que importa é o movimento das idéias, a agonia interior que sabia apanhar sem piedade, o diálogo exteriorizando, no plano da operação mental, os conflitos mais violentos da consciência e do coração. As conseqüências, dessa quase hipnose pelos combates íntimos da criatura humana, explicam o universalismo da sua obra e a peregrinação da sua vida.

Os caminhos das suas viagens — Skien, Grimsad, Cristiània, Roma, Nápoles, Dresden, Munique — não

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refletem outra preocupação. Possível que a mistura de sangue, a que se refere seu amigo o conde Prezor, antes mesmo da primeira viagem, já trabalhasse para a for rnação daquele universalismo que permitiria o comparassem a Nietzsche e a Tolstoi. De qualquer modo, esse universalismo, que faria correr sua influência sobro o melhor teatro europeu, constituiria na realidade o centro da sua obra. E' a êle que devemos a decomposição, na maioria das vezes lúcida e penetrante, de todos os elementos que formam as idéias e as imagens e as relações entre as idéias e outras imagens.

A ação interior é captada em um espantoso movimento de unidade. Exteriorizada, essa ação não convence apenas em virtude da clareza e da estrutura sintética, mas, e sobretudo, pela articulação que executa entre o ritmo da frase c a organização do pensamento. E* desse modo que devemos explicar o grande êxito de Ibsen, a simpatia que sempre acabava conquistando, mesmo quando o drama foi Os Espectros e a primeira manifestação veio em forma de indignação popular. Mas Henrik Ibsen confirmou principalmente que se não pode reduzir o teatro tão somente à comédia. Torna-se indispensável o alargamento do espaço da cena. Como Racine e Corneille, demonstrou que o teatro sempre pediu — e continua a pedir a sombra de alta poesia.

1944, agosto, 13 — O injusto será classificar. Descobrir um espaço para situar. Determinar uma posição, um grupo, uma origem, uma tendência. Escrever como, por exemplo, Sampson: "Shaw é um discípulo de Ibsen. não um imitador". Ou, como o mesmo crítico, afirmar ter sido Shelley sua primeira influência. A verdade,

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pore in, é que Bernard Shaw, como todo homem que se perde na criação de muitos mundos, não tem precisamente uma origem. Podemos encontrá-lo sempre igual em todos os momentos. Seu trabalho literário, que corre dos fins do século passado até os nossos dias, não desce em curvas, não se prolonga em extensão que vá acima de si mesmo. Dir-se-ia um plano horizontal, de nível batido, que não oscila. Uma planície.

No entanto, esse equilíbrio não se presta apenas ao novelista, ao ensaísta, ao crítico de música, ao crítico — mas, e sobretudo, ao homem de teatro, ao autor de Arms and the Man. O teatro seria seu verdadeiro clima, estrada que lhe permitiria alcançar todos os rumos, ferir todas as teses, atingir os altos problemas humanos. Como John Galsworthy, e bem observou E. R. Church, Shaw possuiria o destino não de renovar, mas de fazer ressurgir o velho teatro inglês. Abrir urna outra perspectiva ao lado de Spender e Sherriíf. Argumentos que se sucedem, temas que se cruzam em grandes voltas, a criação tanto mais poderosa porque não sofreada, e é uma forma de liberdade que transforma o diálogo em um movimento que logo identificamos com a vida. Não há um instante irregular, a eclosão patética, como em Eugene O'Neill. Os efeitos não são premeditados, seu enorme espetáculo não conhece prudência .

Bernard Shaw, porém, não é um revolucionário. Sua técnica é antiga, o jogo de combinações, a sátira montada em base tradicional. Qualquer francês moderno, Giraudoux ou Cocteau, é mais revolucionário do que êle. No entanto, apesar da ausência de força levo-lucionária, não perdendo as raízes clássicas, força neces-

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sàr laments um clima próprio. Em certos limites, é um autor de transição. Alguém que tudo enxerga: os problemas da vida moderna, sociais ou religiosos, com suas paixões e seus ódios, suas grandezas e seus ridículos. E recua também, como no caso de Cesar and Cleopatra, peça que flutua num extraordinário fundo de emoções e debates. Ou se detém então no leito psicológico. E' Pygmalion. A penetração no mundo interior, livre de qualquer preocupação crítica, o problema da lingua-gem explicado como uma tese, a experiência individual se transfigurando em face da experiência social.

A análise seria infindável, teria que crescer tão am-plamente quanto o universo do seu teatro. Quando leio Shaw — e eu o venho fazendo nestes últimos dias — parece-me que os olhos sacrificam a minha compreensão em favor dos sentidos.

1944, setembro, 2 — O Papa do Cketto, de Gertrud von Le Fort, levantando a vida do antipapa Anacle-to II, fugindo a qualquer plano literário estabelecido, movendo-se em estranho clima poético, é na verdade um livro sem família. Escrito há quatorze anos, desde então traduzido da língua original alemã para inúmeras outras línguas, não o entenderemos assim no primeiro exame. Torna-se necessária certa intimidade, uma es-pécie de aceitação sem censura. Impressionante, ao leitor desprevenido, a rutura que abre em sua rotina comum de vida. Literaràriamente, é uma inovação que se agarra à fidelidade histórica, verdadeiro drama que evolui conservando, em equilíbrio, duas atitudes. De um lado, a face da Igreja, imutável e eterna, distendida sobre três gerações. De outro lado, a contribuição lite-

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rária, seu extraordinário esforço em corresponder, sobretudo pela poesia, à elevação do tema e do livro. Melhor que ninguém, a romancista — que dispõe de excelente formação clássica — sentiu a exigência da nivelação.

E não temeu realizá-la. Para isso, suavizando a tragédia com o gênio lírico, modelou aquela espécie de crénica que já asseguraram ser nova no romance universal. Em verdade, estamos em presença de uma arte física, que se materializa em volume e pesa como um corpo. A utilização de um aparente surrealismo que se manifesta no corte rápido das imagens é batido pela necessidade da expressão adequada à moldura ex-terior. O romance, porém, não se reduz tão somente a essa organização técnica. Mas exerce a penetração na própria vida íntima da Igreja, a queda dos olhos em um espaço que se situa entre o homem e o tempo, entre as paixões que correm do ódio para o amor e do amor para esse sofrimento que estará eternamente simbolizado no canto de Miriam.

Naturalmente, aí penetrando, Gertrud von Le Fort visava a sondagem, com segurança e frieza, da consciência de um homem. A história de Pier Leone, do nascimento até o instante do grande cisma de Roma, em todos os minutos, é a história de uma consciência. Os acontecimentos que se combinam, as sombras vagas que er-ram longinquamente, a transformação de certos períodos em estranha linguagem musical, tudo se concentra em torno daquela consciência. Seu desenvolvimento é descrito em todos os detalhes, fixadas todas as reações, apa-nhadas as intenções mais ocultas.

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1944, novembro, 11 — Tarde esplêndida, lendo as Memoires, de Saint-Simon. Antes que fale no livro, penso no destino do autor. Homem metódico, escritor medíocre, entrará na corte de Luiz XIV pela mão do pai, feito duque por Luiz XIII. E a história daquela Corte, a narração "écrit jour aprés jour", no tempo largo que corre de 1691 a 1723, constitui o livro — as Memoires. Vivendo uma existência vazia de aventu-ras, a não ser quando fêz a guerra e pediu a mão da filha do rei da Espanha para Luiz XV, o mundo que aproveita para inundar de tinta as páginas do seu livro vale naturalmente pelo rigor das observações e sua natureza histórica.

Sem dúvida alguma, trata-se de um notável depoimento. Não psicológico, como o de Amiel, mas de fundo sobretudo político e social. Revisto no castelo de La Ferté-Vidame, é provável que Saint Simon tenha pressentido o destino que aguardava essas Memoires. Não, a publicação não seria fácil. Não o publicando em vida, pois Deus o levava em 1755, Choiseul o confiscaria como papéis do Estado. Sete anos depois, em 1762, é entregue ao público, em forma de fragmentos porque censurado. O primeiro resumo, em três volumes, é publicado vinte e seis anos decorridos. Mas. completo, só seria publicado em 1829, em vinte e um volumes, numa iniciativa do marquês de Saint-Simon.

Foi então que o mundo o leu — e pôde conhecer. em todo seu desregramento, o melhor, o mais rude, o mais objetivo retrato de Luiz XIV. O estilo é árido, sem qualquer preocupação literária. Terrível inquiridor, porém, amando as minúcias, não oculta o extraordinário realismo, o conhecimento da miséria da cria-

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tura humana. Êle mesmo dirá: "Chaque visage vous rappelle les soins, les intrigues, les rueurs employes à l'avancement des fortunes..." Cortesão, levando Luiz XIII ao elogio que se confunde com a idolatria, Saint-Simon não pouparia Luiz XIV. Não sendo injusta, sua pintura não perdoa. Ao rei que é "un fort gros homme, blond et court, l'air grossier et paysan", representaria com toda crueldade. Alain, no estudo que sobre êle escreveu, dirá: "Saint-Simon a represente cruelement ce roi".

A representação desse rei e de sua Corte, no livro desse homem que viu o rei e viveu na Corte, provará ainda uma vez ser muito difícil a morte de um passado. E — Deus louvado — como os homens são iguais!

1944, novembro, 22 — Não sei bem onde buscar as raízes da aventura no romance católico. E ignoro mesmo ser possível falar, exatamente, de um romance católico. Mas o que se percebe, no plano católico, é a contemplação sobrenatural da própria vida, uma sombra descendo sobre a grande excitação dos sentidos. Talvez seja difícil alcançar a sua natureza essencial. No entanto, sei que sua presença não se pode caracterizar através de um destino problemático. Hoje mais do que ontem, seu destino é coisa tão certa quanto sua penetração na alma e no coração da criatura (após a leitura de Job, íe Predestine, de Baumann).

1944, dezembro, 15 — Hawthorne e Poe (nota a ser aproveitada no ensaio Ficcionistas da América): No ano em que Edgar Allan Poe morreu, exatamente

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em 1849, Hawthorne concluía The Scarlet Letter. A meu ver, embora os críticos aceitem uma atitude menos ampla, embora o autor de Fanshawe contasse com melhores recursos técnicos, The Scarlet Letter afirmaria, na ficção americana, quando não toda a obra, pelo menos a impressão universal que se começara a sentir em Nar rative of Arthur Gordon Pym. Hawthorne, no meado do século passado, como Faulkner nos nossos dias, ao lado das grandes reservas extraídas da própria vocação. auxiliaria melhor conhecimento do gênio de Poe. Ambos estão debruçados sobre a mesma fonte.

1944, dezembro, 20 — Todos nós, que lemos e rp lemos seu romance, que primeiro alcançamos sua poesia no drama quase inumano de Wuthering Heights, não devemos pensar, como o biógrafo da sua família Robert de Traz, em influências literárias. Não será justo pronunciar o nome de Byron. Muito menos lembrar a presença de alguns românticos alemães. Seu sonho, que poderá ser de silêncio como nos poemas, ou de pesadelo como na angústia de Heathcliff, será tão somente seu.

Ela apenas — essa enigmática Emily Bronte — o sentiria, com violência, desde a infância tão triste até a morte que a venceu aos vinte e nove anos de idade. Encerrar-se-ia nele como em uma habitação inacessível à realidade. Dir-se-ia o único abrigo possível à tragédia imposta pelo destino, o espetáculo cotidiano de um irmão louco, o pai rude e quase cego, a tuberculose herdada da mãe espreitando os seus e os passos da delicada Anne. Haworth, os túmulos que cercavam sua casa mesmo a charneca, não violariam o asilo interior que

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erguera numa série de imagens ainda hoje vibrante como o ritmo dos seus poemas.

Esses poemas, menos que o romance, serviriam sempre para explicar — como Virgínia Moore tentaria fazer em um ensaio desgraçadamente mediocre e desonesto — uma parte, qualquer parte, a menor parte daquele infinito sonho. As portas e as janelas fechadas'seriam entreabertas. Sentir-se-ia neles, e de um modo que nos faz lembrar as lições paternas, a profunda consciência em Deus. Abaixo porém dessa impressão teândrica, que exclui a possibilidade de uma aproximação com William Blake (como Swinburne jamais pensara), reside por certo o outro polo essencial da sua poesia. Não perceberemos, como em Blake, a menor preocupação filosófica ou mística. Descobriremos o nascimento das emoções em pleno clima original, as imagens conservando isso que só poderemos chamar a experiência da introspecção.

Nenhum conceito a ser transmitido. Nenhuma expressão simbólica. Nada de uma predisposição intelectual ou crítica que facilmente degenera no artifício da poesia de escola. O que existe, sobretudo em Remembrance, é o sentimento aparentemente confessado. O abandono da forma convencional e, em resposta, a estrutura composta como as linhas de um delí-rio. Não espanta, pois, o entusiasmo com que Charles Morgan acolheu a poesia de Emily Bronte. O que espanta. no flagrante de uma injustiça, é o paralelo já feito entre a sua e a poesia de Christine Rossetti.

Seu maior privilégio, entretanto, será outro. A de-terminação de uma origem que não poderá ser herdada,

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que nenhum outro poeta conseguirá prolongar. Nascendo do sonho que foi a evasão de uma vida, subsistindo como em estado de vigília, não, não alcançaria a realidade por nenhum caminho. Aviso poderoso de que sempre esteve fora do tempo.

1945, janeiro, 3 — Em resposta à desordem moderna, aos intelectuais que sacrificam a verdade crítica numa atitude de passividade ideológica, aos tolos que não querem admitir a inteligência como submissa a um pastado histórico de cultura, eu gostaria de aconselhar a leitura dessas lições pronunciadas por Igor Strawinski na Universidade de Harvard. Aos que se intitulam revolucionários, e que são na verdade autênticos cria-dores de implacável tirania estética, Strawinski aparecerá, não como o admirável humanista que ocupava a cadeira de poética Charles Eliot Norton, mas como o reacionário que se apegava tragicamente à aventura da restauração.

A verdade, porém, é que a voz de Strawinski, em Poéíique Musicale (Harvard University Press), não corre como moeda falsa. Articulada no fundo de um estilo espontâneo, imprime-se com extraordinária consciência. Ao mesmo tempo, investigação e procura de solução lógica para todos os problemas — sobretudo para o problema da arte. Particularmente, o que me surpreendeu foi a identidade de compreensão com Stanislas Fumet. Estou para escrever — e provavelmente o direi, também, em artigo — que Poétique Musicale completa, não se contando o clima metafísico, Le Procés d'Art. Completa ainda, numa ligação certamente mais profunda, o conceito de Ernest Hello. A arte, para

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Hello, Fumet e Strawinski é organicamente anti-revolucionária .

Não, a arte náo justificará — e Strawinski insiste no seu ponto de vista — qualquer atmosfera revolucionária. Escreve: "L'art est constructif par essence. La révolution implique une rupture d'équilibre. Qui dit révolution dit chaos provisoire. Or, l'art est le contraire du chaos". E adiante: "J'avoue donc que je suis complètement insensible au prestige de la révolution". Melhor que ninguém, criador êle próprio no sentido mais puro, Strawinski sabe que a revolução corta a continuidade, elimina a ordem estabelecida, impiantii o barbarismo na mudança arbitrária e violenta.

Este, em verdade, o livro que gostaria fòsse lido por todos esses que, de um ou de outro modo, concorrem para a desordem moderna. Os que não refletem sobre o drama da inteligência, na traição que realizam quando a exilam de suas raizes históricas. E se apegam a isso que é o pensamento em sua representação imediata, matando o grande universo que Strawinski afirma ser aun élément de communion avec le prochain — et avec 1'Ètre".

1945, março, 14 — Apontamentos para o capítulo "Renovação do Espírito da Tragédia" (do ensaio "São João da Cruz e o Mundo Inocente"): a) Difícil precisar com firmeza onde começa a renovação do espírito da tragédia. Morta por assim dizer a medida clássica, o equilíbrio das formas, aquela permanência da língua numa tradição quase estratificada de cultura, o que se sentiu foi um estado ainda desconhecido na expressão literária e filosófica. Fugindo-se à hierarquia imposta

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pela antigüidade helênica, conservada de algum modo na disciplina medieval, assistia-se pela primeira vez a um acontecimento que influiria decisivamente na história intelectual do Ocidente.

Não, como queria Nietzsche, o desprezo à ilusão das artes. Nem tampouco um corte no refinamento grego que ainda hoje sentimos (em um dos melhores trechos de Homero, nas lágrimas de Ulysses ao ser reconhecido pelo cão ausente há vinte anos). Mas, e tão somente, na desfiguração da palavra realizada por Pe-trarca. A palavra, sugestivo reflexo da linguagem viva, seria ferida em suas raízes. Cantando Laura, ela o inspirando na criação do seu novo humanismo, Pe-trarca — que se diria viesse de Tito Livio —, como muito bem observa Denis de Rougemont, reformava totalmente o latim.

Não se pode afirmar, com justiça, tenha sido êle o responsável pelo perecimento da medida clássica. Concorria, porém, anatematizando o espírito metafísico da escolástica, concorria para favorecer, muito depois, a onda cartesiana. Facilitava a vinda de um círculo filosófico que se apoiava na determinação geométrica. A inspiração lírica, de aventura tão espantosa na epopéia, que avançava sobre a realidade batida como em Sófocles, já reduzida em Eurípedes, não mais reafirmaria sua posição de domínio.

O essencial, entretanto, na mudança radical que se processava, concentrava-se, como vimos, na desfiguração da palavra. Petrarca, associando a vida contemplativa à natureza, concedendo à língua um valor formal secundário, reduzindo a palavra a um movimento flu-

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tuante, impunha a desordem. Não pressentia talvez o que iniciava. Sua visão, tão arrebatada na arte de poematizar o amor, não alcançava as conseqüências. b) À noite. Na verdade, o germe mais antigo da negação do clássico — e, em conseqüência, da própria tragédia — se encontrava nas profundezas da alma grega. Nietzsche não o esqueceu. Mostrava-se palpitante na paixão lógica do raciocínio, naquela obstinada atividade mental subordinada à razão. E' o racionalis-mo socrático concedendo ao homem de pensamento o direito de influir no valor absoluto da palavra, deformá-la cem vezes na simultânea criação de cem novos sentidos. Nesse ponto, Petrarca torna-se um discípulo de Sócrates e socráticos seriam os seus coníinuadores, isto é, todos os modernos, esses que, partindo da Renascença, chegariam até nós, até este momento em que cê processa a renovação do espírito da tragédia. Sua força poética, despojada de qualquer depuração de estilo, seria o sinal bem aberto da involução que a linguagem adotava. Digo linguagem, não digo uma língua. Mas linguagem nesse conceito atual, criado por Humboldt, de paralelismo estabelecido entre o pensamento e a língU3, entre a língua e os próprios estados afetivos. Não uma conseqüência social, na tese de Dwelshauvers, uma longa conseqüência da evolução coletiva. Nem tampouco uma subordinação, como queria Karl Vossler, ao fenômeno estético puro.

1945, junho, 8 — Quase um mendigo, aquele vagabundo que Henri Clouard aproxima de Villon, Gerard de Nerval é alguém que já não distingue o sonho da vida. Inúmeros os pesadelos. Singulares, os pressenti-

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inentos. Na verdade, o trágico alucinado que deforma os autênticos elementos do mundo, vítima de espantosa dominação imaginária. Impossível calcular a extensão áo seu sofrimento. De um visionário sem salvação, a sua experiência. Que encontro extraordinário o da sua vida com a sua obra! Órfão ainda criança, jamais conseguiu disciplinar as paixões. Leitor de Klopstock, de Schiller, também de Goethe. Publica, aos vinte anos — já então colaborando no "Mercure de Franco'' —, uma tradução do Fausto, de Goethe, ainda hoje não superada. Ama Jenny Colon, pobre e medíocre atriz que. em conseqüência do seu instinto poético, se transfiguraria na eterna Adrienne. E viaja. Enorme o itinerário. Alemanha, Áustria, o Egito, Constantinopla, a Ásia. E' a saúde que falta. São os livros compostos nos intervalos da febre e da fome. Sente as primeiras alucina-ções. E' um homem sem domicílio. Escreve nos cafés. Abriga-se, nos dias de maior miséria, na casa de Ale-xandre Dumas. Refugia-se na residência do seu antigo colega de colégio, Théophile Gautier. Finalmente, o suicídio.

E pergunto-me, como se estivesse a ver o corpo de Gerard de Nerval na rua Vieille-Lanterne: houvesse sido um banqueiro, Gérard de Nerval seria assim tão digno da admiração do mundo e dos homens?

1945, junho, 9 — Não sei se o estilo é uma invenção — como Brunetiére atribuiu a Rabelais — ou se nasce com o escritor como qualquer dos seus órgãos

1945, junho, 11 — E' realmente surpreendente como o tema da morte se restringe na inspiração dos

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poetas. Ern nossa época — esse periodo sanguinario, violento, anti-evangélico —, a última e insuperável devoção da morte foi exercida por Rainer Maria Rilke. Em uma das Elegías de Duino, servindo-se daquela paixão transfiguradora que anima as variações da sua poesia, Rilke revela a morte. Mas não encontro na transformação definitiva, que o poeta empresta à morte, o alimento que a mantém como uma visão extraordiná-ria. A morte me parece mais simples, menos apocalí-tica, um bem de Deus tão pobre e comum quanto meu corpo e minha própria vida. Eu a sinto, em caso extremo, no monólogo do Hamlet.

1945, agosto, 26 — A crítica francesa já observara de maneira quase unânime que The Fountain é, sem a menor dúvida, o melhor dos livros de Charles Morgan. Relendo-o, verifico que se liga ao resto da obra do romancista inglês pela mesma expressão poética, aos outros romances se associando pelo retorno ao ideal estético platônico. Ao contrário dos outros, porém, consegue vencer a fase meramente literária. E' o começo de uma penetração. O debate de todos os problemas, estéticos ou metafísicos, que os neo-naturalistas vêm desprezando. A indicação finalmente, de não ser possível ao romance subsistir sem um grande esforço de criação nascendo de um grande esforço de cultura.

1945, setembro, 4 — Se R. me perguntar porque voltei a 1er, quase de um fôlego, Adolphe, por certo não saberei responder. Simples curiosidade, talvez, de leitor viciado. Mas a história de Adolphe, que já se provou recolhida da experiência sentimental do próprio

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Benjamim Constant, e que impressionaria Byron, adquiria como caminho mais direto a tragédia do coração. Pouco importa — sei bem agora — o espaço de agonia que a abriga. Também importaria menos surgisse em forma de confissão, episódios lembrando o tímido e incompreendido Amiel. Nela, na narração que se realiza através da força de um só impulso, o que se guardaria seria naturalmente a fidelidade em trazer para o sol uma zona humana complexa em sua distância e difícil em sua obscuridade. Examinando-a, um crítico como Sainte-Beuve — que também tentara, com Volupté, o romance de igual densidade psicológica — não temeu escrever: "il trouvait moyen d'atteindre et de fixer les impressions intérieures les plus fugitives et les plus contradictoires". E não exagerava. Os elementos, aparentemente erguidos na disciplina que o estilo impõe, realmente nascem de uma inquirição que se extrema nos menores detalhes. Uma penetração que disseca, feita com sutileza, mas bastante poderosa para não permitir que a vida dos sentimentos se ocultasse.

1945, outubro, 12 — Embora ficcionista (como já demonstrara em Barometer Rising, seu livro de estréia) e ficcionista capaz de atingir plenamente o universo /da poesia, da aventura e da grande imaginação, Hugh Mac Lennan não pode fugir ao apelo do Canadá. A solicitação vem da história e da terra, poderosa em demasia a presença do meio físico e humano. E outro não é o motivo porque Tuo Solitudes, antes de ser rigorosamente um romance, é o melhor retrato, em beleza e vida, dos últimos anos do Canadá. Lendo-o, sentia não ter sido

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traído na impressão que me deixara o lapis de Frank Hennessey.

1945, outubro, 14 — Na verdade, não se pode permitir citar Là-Bas como sendo o romance normal de Huysmans. Èsse, como se sabe, publicado em 1891, é o último livro da fase materialista. Ern 1892, conver-tia-sei E, já em 1895, narrava a conversão nesse livro extraordinário da literatura católica contemporânea: £n Route. O autêntico Huysmans é o segundo.

1945, outubro, 20 — Lettres à Véronique numa leitura que poderia ter sido calma, não fosse Leon Bloy gritar nos meus ouvidos, incapaz de confessar-me vencido. Levantei-me inúmeras vezes, o livro na mão. E Leon Bloy, que logo depois ensinaria a Maritain o caminho da Igreja; Leon Bloy tão nobre, tão digno, tão humano no seu destino; Léon Bloy que tudo arriscou contra a ignorância e a crueldade do mundo; Leon Bloy faminto e amargurado; esse Leon Bloy que teve mais que nós outros o Cristo na sua loucura — o Leon Bloy que proclama ter sido apenas um mendigo. Recusaram tudo, emprego, audiência, a própria esmola. Mas não venceram a sua coragem, seu direito à verdade, sua voz que compensava a miséria denunciando os poderosos.

1945, outubro, 20 (um pouco mais tarde) — Lettres ù Véronique novamente na estante. E volto a escrever este diário, humilde, como se Leon Bloy estivesse perto. Adianta, adiantará alguma coisa a enorme ambição que se divide entre o poder e a glória? O egoísmo dos que.* não se envergonham com a miséria da própria condição?

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Adianta, se as ofertas do mundo são pobres e tão raras? Cada um responde a seu modo, depõe com o seu destino, testemunha com a sua própria existência. Na base, o que assim deforma monstruosamente a criatura humana é a incapacidade de sentir o tempo, de conhecer a debilidade do corpo, de calcular o espaço que ocupa no universo. Mas — perversa e inconcebível determinação —, sempre cego e rude, o homem se ilude para subsistir. Sua alegria é dramática. Dolorosa, a sua esperança. Triste, o seu amor. Fosse possível olhar-se, medir sua loucura, e não perdoaria a si mesmo o pavor que encontraria na descoberta de si próprio.

1945, novembro, 5 — Muitas vezes, nestes últimos dias de inquietação política, intolerância intelectual, tanta covardia e má-fé, tenho pensado inexplicavelmente em Cézanne. Expulsaram-no de Paris — os senhores da pintura, os críticos eruditos, os donos das galerias. Refugiou-se, para não morrer de fome, em sua aldeia de Aix. Mas, fiel à sua vocação, não abandonou um só dia o pincel. Pintava para si próprio, para satisfazer a exigência que vinha do fundo do sangue, abandonando as telas no campo, sobre os cavaletes, sem saber talvez que rudes e analfabetos camponeses as recolhiam, co-movidos, guardando-as. Hoje, cinqüenta anos depois, os sábios que o repeliram não podem ser confrontados com os camponeses. . . Em que Cézanne me faz pensar — êle, tão só, em um mundo assim hostil — é precisamente na fragilidade dos julgamentos, na melancólica estupidez das "autoridades". . . Consagraram-no, afinal, quando já tinha os pés na sepultura. Melhor sorte,

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porém, que Van Gogh, somente aceito depois que paralisou o coração com uma bala.

1945, novembro, 18 — Moderno, no sentido eni que a palavra possa indicar atualidade, Daniel de Foe criou um processo objetivo e humano de ensino. Disciplinando a imaginação — que o arrastava à ficção romanesca, aos livros como Moll Flanders e A Journal of the Plague Year — seria èle próprio que o traria até nós. Desde que Selkirk lhe narrou a história do marinheiro náufrago, e essa história entregou às crianças do mundo, que Daniel de Foe é moderno. Publicado no século XVII, Rousseau, no século seguinte, aconselhava ao Emílio a leitura do Robinson. Baden Powell, nos dias de hoje, incluiu-o como indispensável na bibliografia dos escoteiros. Seu autor vem sendo assim um contemporâneo de três séculos.

Se esses séculos o aceitaram, e o transfiguraram numa tradição, foi porque lógica era a sua lição. Montaigne, como éle, desejou fosse o mundo o único livro do seu discípulo. A criança, como o marinheiro da sua história, conceberia, prepararia e executaria sua própria ação. Alcançou, assim, os mais recentes sistemas científicos de educação. Vendo-o, poderemos situá-lo entre Maria Montessori e Helena Parkhurst. Colocá-lo mesmo ao lado de Dewey. No entanto, quero dizer apenas ter sido Daniel de Foe muito mais que um simples precursor de sistemas.

Em educação, foi um humanista e um idealista. Peter Petersen assim o definiria porque, afinal, êle fêz da educação um problema autônomo de ser humano. Associou, talvez sem o pressentir, o ato de educar-se à

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experiência da criação independente, identificando-se com a mais atual psicologia genética. Mas, escrevendo talvez para todos os tempos, Daniel de Foe o fazia porque conseguira aliar qualidades literárias — a poesia das idéias e da aventura — à realidade psicológica. Antes da própria história que ouvira, não se esquecera de colocar o mundo da criança. E, trabalhando como em função de um princípio didático, como antevendo a significação pedagógica da literatura, marcou o livro infantil como um veículo decisivo de influência e educação.

1945, novembro, 22 — Alguém cita Faulkner a propósito de Agnes Smedley. A romancista de Daughter of Earth poderá ter revelado um trecho brutal da América. Traga-se o nome de Michael Gold, de Caldwell, bem. Mas Faulkner, não. Como seu antecessor Sherwood Anderson — um dos maiores contistas do nosso tempo (Winesburg, Ohio, Horses and Men e Death in the Woods), retratando a personagem em um traço, dispondo de capacidade emotiva excepcional, superando definitivamente companheiros de geração como Dreiser e Sinclair Lewis — William Faulkner é um fic-cionista que utiliza o social apenas como um meio, a chave que abre a porta a esse mundo oculto que é o conflito interior dos homens. Leia-se, por exemplo, Aa I Lay Dying. Veja-se, por exemplo, o raciocínio de Vardaman, o amor (que Agnes Smedley ignora) de Cash pelas ferramentas. A humanização com que impregna os corpos materiais, canoa ou caixão, mesmo uma corda. Em Faulkner, no respeito selvagem que demonstra pela vida, aceita-se uma inocência quase ir-

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reconhecível. Sempre a violação do nosso grande inferno. Um homem que sente o abismo como Dostoievsky Jacob Wassermann e, em outra latitude, André Gide.

1945, dezembro, 4 — Guy de Maupassant, que começou a escrever sob os olhos de Flaubert, transformaria o conto, caracterizando-o. Em suas mãos, o conto adquiria uma estrutura revolucionária, a plasticidade sem excesso, a expansão contida naquele equilíbrio que representa um limite literário justo. Dar-se-ia a morte do conceito sintético, a compreensão que o asfixiava numa espécie de romance sem espaço. Mas, o que é verdadeiramente singular, foi encontrar-se Maupassant com o naturalismo. E o naturalismo francês. Tchekov, por exemplo, mais moço do que êle apenas dez anos. realizando em outro plano um trabalho quase idêntico ao seu, não encontraria assim tão vivo um ambiente literário. Maupassant não podia evitar o contato* a presença do naturalismo impondo uma reação inevitável. Seu anticlericalismo é um sintoma expressivo.

1946, abril, 2 — Escrito durante a guerra, o pequeno livro de Jacques Maritain — Christianisme et Démocratie — é um dos primeiros sintomas àa preocupação universal, talvez a primeira palavra ferindo o mundo de idéias que animará a discussão entre os homens. O filósofo francês, responsável em parte pela existência do melhor pensamento moderno, entregava-nos, dentro mesmo da violência do século, uma espécie de manifesto, vontade de esclarecer, quando nada uma plataforma que, julgando, procurava reconstruir. Co-

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meça, com esse livro, a discussão rigorosamente especulativa sobre os maiores problemas sociais do mundo.

Sente-se, antes de tudo, em conseqüência da extensão e profundidade dos assuntos — o destino da democracia ao lado de uma idade que se esgota, o problema comunista atualizado em oposição aos interesses das novas elites —, já não ser possível admitir o julgamento dos fatos no círculo da reportagem. Ao trabalho de jornalismo devia suceder a análise desinteressada, o exame sem ortodoxia condicionado à pes-quisa legítima, todo o pensamento teórico fundamentado na objetividade e na consciência da verdade. A amplitude das considerações invalida ensaios como o Lost Continent?, de Noel Busch; House of Europe, de Paul Mowrer; ou planos como aquele de Morgenthau Júnior em German is Our Problem.

Nesse ponto, Christianisme et Democratic abre uma zona digna no pensamento moderno e, na bibliografia do autor de Le Docteur Angélique, é o livro capaz de completar Le Crépuscule de la Civilisation, publicado em 1939. No ano mesmo em que se dava a explosão da guerra, o filósofo do Antimoderne, que castigava a pedagogia dos partidos e criticava a divinização do chefe, não esquecia a censura ao comunismo existencialmente ligado ao ateísmo. Pedia uma ressurreição espiritual e social. Clamava pela renovação profunda das energias interiores do ser humano.

Entre as tendências contraditórias, Maritain, como os escritores do grupo Esprit, colocava-se numa posição que agora, com Cliristianisme et Démocratie, se esclarece de modo inequívoco. Mostra claramente que velhos perigos de antes da guerra fazem, de repente, vir

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à tona tremendas possibilidades. E, afirmando que assistimos à liquidação do mundo moderno, detendo-se sobre a tragédia das democracias modernas, conclui pela necessidade em descobrir-se a organicidade da democracia — encontrá-la, como queria Bergson, na inspiração evangélica. Já que as classes dirigentes faliram moralmente, o que resta é apelar para as reservas morais do povo, encontrar "homens", as "novas elites dirigentes".

Opor-se sobretudo — e como são justas as palavras de Maritain! — ao comunismo que, sendo uma filosofia de vida, é uma doutrina irreformável e logicamente dominada pelo ateísmo. Catástrofe "totalitária e ateísta". o comunismo não pode participar da "democracia renovada". E, preocupado com o regime que não ofenda a lei natural e a lei de Deus, Maritain exige das democracias o esforço "para reintegrar o povo russo na comunidade ocidental". Esta será a grande prova da generosidade dos outros povos e dos cristãos do mundo.

Na austeridade dos problemas abordados, o livro de Maritain recomeça o ciclo dos grandes estudos interrompidos pela guerra. Antes de ser uma exposição de idéias extraída das próprias condições sociais universais, é na verdade uma apresentação de problemas. Maritain, nesse pequeno livro, entrega-os à compreensão e à inteligência dos homens.

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeâo Leal

1 —José JANSEN ....................................... A mascai a no culto, no teatro « na tradição

2 — ALVABO LINS, CARPEAUX a THOMPSON ......................................... José Lins do Rego

3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS BRUMMOND DE AN-

DRADE ................................................... Viola de Bolso 5 — Lúcio COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira 6 — Lúcio COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES ................................ Formação profissional do Advogado 9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ............................ Monte Cristo, ou da Vingança 11 —Luis COSME ......................................... Música e Tempo 12 — JOÃO CABRAL DE MELO ...................... Miro 13 — OTÁVIO^ DE FARIA ............................... Significação do Far-West 14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte 15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica 16 — José CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantes 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto 18 — GILBERTO FREYBE ............................. José de Alencar 19 — CLARISSE LISPECTOR .......................... Alguns Contos 20 — MARIO PEDROSA .............................. Panorama da Pintura Moderna 21 — ROSAHIO FUSCO ................................ Introdução à Experiência Esteilca 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................... Realidade e Ficção 23 — DANTE COSTA .................................... O Sensualismo Alimentar 24 —LEDO IVO ............................................ Lição de Mário de Andrade 25 — EUGÊNIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventriloquo 26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens, Seres e Coisas 27 — OTAVIO TABQUINIO DE SOUSA.. De várias Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ..................... Cinqüenta Anos de Literatura 29 — ALEXANDRE PABSOS ........................... A Imprensa no Período Colonial 30 — MANOEL DIÈGUES JÚNIOR ... Etnias e Culturas no Brasil 31 —CYHO DOS ANJOS .............................. Expio: ações no Tempo 32 — OSWALDINO MASQUES ....................... O poliedro e a rosa 33 — FERNANDO SABINO ............................. Lugares comuns 34 — PÉHiCLEs MADUBEIRA DE PINHO ... Notas á margem do problema agrário 35 — VitoRiNO NEMÉSIO ............................ Portugal e o Brasil na Historia 36 —Willy LEWIN ------------ ........... ... Ensaios de Circunstâncias

{Continua na 3° pág.)

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JOSÉ FERNANDO CARNEIRO

APRESENTAÇÃO

DE

JORGE DE LIMA

MINiSTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO

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Esta "Apresentação" me fora encomendada por Simeão Leal quando Jorge de Lima ainda vivia, embora acometido de terrível enfermidade e aguardando a morte com a tranqüilidade de um verdadeiro cristão.

Estava tudo em fase de impressão quando ocorreu o falecimento do poeta. O número de depoimentos e estudos que a respeito de Jorge foram publicados nestas poucas semanas que se seguiram à sua morte mostra abundantemente que êle não precisa de "Apresentação". Sob esse nome convencional o que se procura é oferecer uma pequena antologia de seus versos precedida de uma introdução na qual se estudam alguns aspectos de sua obra.

Presidiu à escolha dos versos um critério de gosto pessoal e assim é possível, provável até que nem sempre minhas escolhas hajam sido as mais acertadas. Mas confesso que tanto a introdução como a antologia foram feitas com entusiasmo e amor. E não podia ser de outro modo, pois quem conheceu de perto Jorge de Lima não podia deixar de amá-lo.

Êle foi, em nosso meio, a encarnação da bondade. Outros serão ou terão sido maiores do que êle em erudição, cultura ou até importância literária. Ninguém poderá disputar-lhe a primazia em matéria de generosi-

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dade d'alma, lhaneza no trato, simplicidade nas atitudes. Tudo em Jorge de Lima estava envolto num halo de bondade, até a sua tristeza, até as suas fraquezas. Convivi com é/e mais de 20 anos nesta metrópole, em contado ao mesmo tempo com outras figuras do nosso mundo literário, científico e político, figuras, algumas delas, qpe despertaram e ainda hoje despertam a minha admiração. Mas ninguém encontrei tão bom quanto Jorge de Lima, tão constante na sua bondade. Sempra deu mais do que recebeu. Como isso era possível, não sei. Deve necessariamente haver um equilíbrio nas nossas trocas, uma correlação entre o que se recebe de uns e o que se gasta com outros. Mas a bondade de Jorge de Lima realizou esse milagre quotidiano de ter sempre o que dar ,a todos os que dele se acercaram, recebendo embora tão pouco.

Nunca tive com Jorge de Lima um só conflito, um só mal-entendido, um momento sequer de mal-estar.

Bom, simples e sem orgulho. Era preciso uma ausência total de orgulho para ter começado a pintar quando ele começou e como ele começou. Desejou entrar para a Academia de Letras. Mais de uma vez foi derrotado, mas voltava a bater às portas da Academia sem dar às derrotas mais importância do que elas realmente tinham, mas também sem arrogância e sobretudo sem ressentimento. Porque um homem tão simples, tão inteligente, tão bom quanto Jorge queria vestir o íardão acadêmico, foi coisa que Bernanos nunca entendeu. Talvez para ser fiel a algum sonho de infância, a algum desejo de mocidade que nele seria bem mais atuante

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que a consciência que a idade madura lhe terá dado, sem dúvida, sobre o PGUCO valor das arcádias. José Lins do Rego que tão bem o conheceu e tanto o amou, explicava que Jorge queria entrar na Academia com o mesmo entusiasmo e a mesma simplicidade d'alma de seus conterrâneos menos letrados que, ao chegar ao Rio, desejam entrar no Batalhão Naval.

Um aspecto de Jorge de Lima que não posso esquecer era a graça com que sabia contar histórias, fossem histórias de gente ou de bicho. Contou-me mil histórias, algumas que êle lera, outras ouvidas, outras imaginadas. Cada qual a melhor. Sen mundo de seres imaginados era imenso e só relativamente poucos de entre eles foram chamados à vida romanesca.

Do bem que êle queria à humanidade, di-lo seu 'Poema do Cristão".

A saudade que êle nos deixa é enorme. Sua presença nos fazia acreditar em Deus porque era possível, no seu caso, ver como o homem realmente foi feito à imagem e semelhança de Deus. Um pecador feito à imagem e semelhança de Deus! De todos os seus pecados, aliás, êle se humilhou em "Invenção de Orfeu", poema que é o resumo de sua vida e de sua obra. O talento de Jorge de Lima era grande, era mesmo sur-preendente, mas os homens maus também têm talento algumas vezes, e ninguém dirá que Satanás não seja talentoso. Não era por causa dos seus talentos variados que Jorge de Lima nos fazia acreditar em Deus. Era pela existência neste pecador de uma qualidade ausente nos anjos maus: a bondade, o amor. Sem essa

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qualidade os seres se tornam opacos e não é mais possível ver neles a marca da sua origem divina.

Jorge agora está no céu. Foi diretamente para lá. Seu purgatório Deus lhe deu aqui mesmo, na terra, e foi a doença final, a miséria orgânica, sua angústia infinita, tudo aliás previsto em "Invenção de Orfeu".

Jorge de Lima, que estais no céu, rogai pot nós e pelo Brasil.

JOSÉ FERNANDO CARNFIRO

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MA análise da poesia de Jorge de Lima não é tarefa simples. Segundo Murilo Mendes só a exegese de Invenção de Orfeu exigirá o trabalho, feito com amor, ciência e intuição de uma equipe de críticos. Se isso é verdade do seu ùltimo livro, que dizer de uma análise que visasse o conjunto de sua obra poética ? E de outra que visasse não apenas o poeta mas o romancista, o crítico, o ensaísta, o tradutor, o pintor, o médico e ainda o político que chegou a ser deputado em sua terra e ve-reador e presidente da Câmara Municipal aqui no Distrito ?

Que homem variado ! Raimundo Magalhães Júnior escreveu que não se espantaria se algum dia ouvisse alguém anunciar: ^Meus amigos, agora vamos apresentar Jorge de Lima como comedor de fogo e engulidor de espadas". E como tinha tempo para tudo isso ! Creio que foi José Lins do Rego quem certa vez disse que os dias de Jorge de Lima pareciam ter 48 horas e as horas 120 minutos.

Mas na sua atividade tão vária Jorge de Lima foi acima de tudo um poeta e dizer isso é dizer bastante, pois estamos a falar nada menos que do romancista de Calunga, do ensaísta de Proust, do historiador de An-

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8 —

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Por isso mesmo sempre preferi a poesia negra de Jorge de Lima àquela de Castro Alves. Embora devoto, um humilde devoto do baiano que morreu com 24 anos mas deixou versos danunzianos (danunzianos antes de D'Annunzio, no dizer de Agripino), como sua boca era um "pássaro escarlate" e shakespearianos como aquelas duas linhas referentes à Inglaterra — compreendo que, a rigor, Castro Alves jamais fêz poesia negra.

Disse-o muito bem Roger Bastide no seu livro Poetas do Brasil: "o que interessa a Castro Alves não é o africano, é o escravo. Não é tanto uma raça, é o fato social. O que há de original e quiçá de novidade poética no âmago de um coração africano, Castro Alves não viu. Suas negras, por exemplo, no fundo têm a alma de "Mi-dinette" ou lembram as mulheres perdidas tão caras aos românticos, que têm alma de santas".

Castro Alves não foi apenas um grande poeta, senão uma grande figura humana e política. Em 1863, com 16 anos de idade apenas, começou a sua pregação em prol da Liberdade, um precursor, portanto, das grandes figuras que vieram depois. Colocou seu estro a serviço dos escravos que, no Brasil, acontecia serem pretos. Nesse sentido social, unicamente, é que esteve identificado com os pretos. Sua poética é antinegra. Em seus poemas acerca da escravidão fala em etrusca pira, em barretes frígios, em harpas, em Medina e conseqüentemente em bizantina, em Himeto, em Eumênides, em Lucano, em Corinto, em Fórum, em Haidéia e em Coliseu. Esse o seu mundo poético, de onde êle via o

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Brasil e via os negros. Generosamente, bravamente, defendeu os negros, protestando contra o fato de a bandeira do Brasil servir para proteger navios negreiros:

"Meu Deus! Meu Deus mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia ? Silêncio, Musa. . . chora e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto !. . . Auriverde pendão de minha terra Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança. . . Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha !. . . Que servires a um povo de mortalha!. . ."

Combatendo o bom combate e ao lado de versos geniais, Castro Alves outras vezes fêz versos bastante inferiores, cheios de "Salve ! Salve ! Salve !" ou "cala a boca furacão!" em estilo de "meeting", rimando fra-guedos com silvedos, livores com estridores, tombadilho com brilho e baunilha com granadilha.

"E as trancas mulheris da granadilha !. . . E os braços fogosos da baunilha !. . ."

Ou então:

"Tu choras porque um ramo de baunilha Não pudeste colher. Ou pela

flor gentil da granadilha ?"

E, por sinal, o que é granadilha ?

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Enfim, na poesia de Castro Alves há por vezes a presença lamentável da eloqüência, tal como existiu aliás na obra de um Vítor Hugo ou de um Guerra Junqueiro.

Em Jorge de Lima, no também jovem poeta Jorge de Lima, porque neste tópico só nos serviremos dos seus poemas anteriores a 1930, nada disso. Poeta moderno, dos grandes, dos genuínos, êle, como Carlos Drummond de Andrade, "não rimará a palavra sono com a incorrespondente palavra outono". E fará versos não sobre a condição social dos negros, mas sobre os negros, a alma dos negros, as superstições dos negros. tornando-se então o poeta humano dos negros. Por isso, porque os pôde amar assim como eles são, Jorge de Lima os apresentará como eles são, de cabelo pixaim e não de cabelos anelados como Castro Alves quando falava da sua Lúcia.

Jorge de Lima percebe tudo quanto a economia brasileira ficou a dever ao negro e por isso diz:

"Pai João remou nas canoas, cavou a terra, íêz brotar do chão a

esmeralda das lôlhas: — café, cana, algodão. Pai João cavou mais

esmeraldas que Pais Leme."

Mas não é por essa razão econômica ou social que Jorge canta o preto. Êle sentiu o preto e através do preto chegou até aos aspectos sociais do trabalho es-

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cravo. Castro Alves olhou a condição social do preto e mais ou menos se deteve por aí, não foi adiante, não tocou na alma do preto, não se pôs em contacto com esse subsolo riquíssimo da poesia e da sensibilidade africanas.

Jorge sabe que exploravam o africano, sua mulher e sua filha e nos conta tudo isso desse Pai João negro velho seco "como um pau sem raiz":

"A filha de Pai João tinha um peito de vaca para os filhos de ioiô mamar. Quando o peito secou a filha de Pai João também secou agarrada num ferro de engomar A pele de Pai João ficou na ponta dos chicotes. A força de Pai João ficou no cabo da enxada e da foice. Pai João foi cavalo para os filhos de ioiô montar: Pai João sabia histórias tão bonitas que davam vontade de chorar. Pai João vai morrer Há uma noite lá fora como a pele de Pai João, Nem uma estrela no céu. Parece até mandinga de Pai João."

Como isso é belo! Como a gente fica querendo bem a Pai João e a todos os pretos velhos que nos contarem histórias, daqui por diante. A pele de Pai João ficou na ponta dos chicotes. E Jorge de Lima não esbravejou contra esses chicotes. Não fêz "meeting" contra esse chicote que bateu tantas vezes na pele de Pai João. Com que cólera, Castro Alves, a cabeleira ao vento, anatematizaria esse chicote!

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Vejamos alguns temas equivalentes tratados pelos dois grandes poetas, o baiano Castro Alves e o alagoano Jorge de Lima. Primeiro Castro Alves, com a sua Manuela:

"Provocante, mas esquiva Viva Como um doudo

beija-ílor. . Manuela — a moreninha

Tinha Em cada peito um amor.. .

Manuela, Manuela Bela Como tu ninguém

luziu... Minha travessa morena, Pena Pena tem de quem

te viu.'. . .

Manuela. . . Eu não per juro ! Juro Pela luz dos olhos

teus.. . Morrer por ti, Manuela, Bela Se esqueces os

sonhos meus.

Vamos pois. .. ó moreninha Minha. .. Minha esposa

ali serás. . . Ao vale a relva tapisa Pisa. . . Serão teus Paços

— reais!

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Por padre uma árvore vasta Basta!... Por igreja o

azul do céu. . . Serão as brancas estrelas

— Velas Acesas pra o himeneu.

Companheiros! se inda agora Chora Minha viola a gemer, É porque um dia. . . Escutai-me

Dai-me Sim ! Dai-me antes que beber !. . .

Ê que um dia. . . mas bebamos Vamos. . . No copo afogue-

se a dor !. . . Manuela, Manuela Bela, Fêz-se amante do senhor!.

. ."

A Negra Fuló também se íêz amante do senhor. E não era apenas moreninha, essa negra Fulô, que chegou, isso já faz muito tempo, no bangüê dum nosso avô e que forrava a cama da Sinhá, ajudava a Sinhá a tirar a roupa, a pentear os cabelos, a pôr os meninos para dormir, e que quando alguma coisa na casa desaparecia, levava uma surra do feitor:

"O Sinhô foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa O Senhor disse: Fulô ! (A vista se escureceu que nem a negra Fulô)

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

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Ó Fulò? Ó Fulô? Cadê meu lenço de rendas, Cadê meu cinto, meu broche, Cadê meu terço de ouro Que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou. Ah ! ioi você que roubou.

Essa negra Fulò!

O Sinhô foi açoitar sozinho a negra Fulô. A negra tirou a saia e tirou o cabeção, de dentro dele pulou nuínha a negra Fulô.

Essa negra Fulô í Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô? Cadê, cadê teu Sinhô Que nosso Sinhô me mandou ? Ah! Foi você que roubou ioi você, negra Fulô!

Essa negra Fulô!"

Leia-se também "Saudação a Palmares" de Castro Alves e compare-se isso com a "Serra da Barriga", belo poema que certamente por descuido não aparece na coletânea de Poemas Negros de Jorge de Lima, organizado pela "Revista Acadêmica". Comenta Roger Bas-tide. no livro já citado:

"Castro Alves transforma o quilombo dos negros fugitivos em um navio imóvel; é a seqüência e a con-

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tinuação do navio negreiro, mas libertado de seus maus senhores:

"Palmares1 a ti msu grito ! A ti, barca do granito, Que no scçôbro infinito Abriste a vela ao trovão. . ."

Mas para Jorge de Lima, a "Serra da Barriga"

"... bojuda, redonda

do jeito de mama, de anca, de ventre de negra"

que ele vê

"bulindo, mexendo, gozando Zumbi",

não é mais o navio que traz a África, e sim um ventre de mulher que concebe, na dor e ao mesmo tempo na alegria, algo de novo. Castro Alves voltou-se para o Paraíso Perdido; Palmares é um retorno à vida tribal. Jorge de Lima olha para o futuro; a Serra da Barriga é a mulher grávida de afro-brasilianismo".

Nessa rápida série de contrastes entre Castro Alves e Jorge de Lima poderíamos lembrar o poema "Adormecida" do primeiro e "Madorna de Iaiá" do segundo:

"Uma noite, eu mo lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente. . . Quaae aberto o roupão. .. solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina.. . ao longe num pedaço do horizonte, ria-se a noite plácida e divina.

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De um jastnineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras, Iam na lace trêmulos — beijá-la."

E em mais três estrofes corre o poema, esplêndido aliás no seu lirismo. A madorna de Iaiá é também numa rede, mas é diferente, sem cheiro do jasmim. Vem o cheiro de mel da casa das caldeiras:

"Iaiá está na rede de tucum. A mucama de Iaiá tange os piuns, balança a rede, canta um lundum, tão bambo, tão molengo, tão dengoso, que Iaiá tem vontade de dormir. Com quem?

Que preguiça, que calor ! Iaiá tira a camisa, toma alua, prende o cocô, limpa o suor, pula pra rede, mas que cheiro gostoso tem Iaiá! Que vontade doida de dormir. . . Com quem ? Cheiro de mel da casa das caldeiras! O sagüim de Iaiá dorme num coco. Iaiá ferra no sono pende a cabeça abre-se a rede como uma ingá. Pára a mucama de cantar, tange os piuns, abre a janela, olha o curral, — um bruto sossego no curral!

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Muito longe um peitica íaz si-dó. . -si-dó. . . si-dó. . . si-dó... Antes que Iaiá corte a madorna, a moleca de Iaiá balança a rede, tange os piuns, canta um Iundum, tão bambo, tão dengoso que Iaiá sem se acordar, se coca se estira e se abre toda, na rede de tucum. Sonha

com quem ?"

Julgo que o exame desses poemas nos quais Castro Alves e Jorge de Lima tratam de temas análogos, serve para mostrar a superioridade da boa poesia moderna brasileira sobre a poesia que nos antecedeu. Há um progresso, sem dúvida, não no sentido de que Jorge de Lima seja superior a Castro Alves, mas no sentido de que a posição na qual Jorge de Lima se colocou para apreciar por exemplo o preto brasileiro é, no ponto de vista poético, menos artificial, mais genuína.

Quanto à estatura poética e humana de Castro Alves, não pretendo, de forma alguma, desconhecê-la. Mas exatamente num homem desses, de lirismo tão puro, simples, cristalino, tão liberto de qualquer influência pedante ou gongórica, tão longe do chamado "estilo da época" (sirva de exemplo a "Canção do Violeiro", e tantos outros de seus poemas), num homem desses se pode ver como a mania de invocação e da apóstrofe, a serviço de uma causa política — embora da

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mais nobre das causas — pode levar a linguagem do poeta a aproximar-se perigosamente do discurso de propaganda, senão do bestialógico.

* * *

A poesia regional e ainda a poesia negra de Jorge de Lima terminaram, por assim dizer, com a mocidade do autor. Veio depois sua poesia de madureza da qual o monumento mais expressivo é Túnica Inconsútil. O poeta saiu do mundo natural em que vivia e ingressou num mundo preternatural, povoado de seres fantásticos. Esses seres o mais importante é Mira Celi. Eles apareciam no decorrer de um poema e pegavam a mão do poeta:

"Alta noite, quando escreveia um poema qualquer sem sentirdes que o escreveis, olhai vossa mão — que vossa mão não voa pertence mais; olhai como parece uma asa que viesse de longe. Olhai a luz que de momento a momento sai entre os seus dedos recurvos. Olhai a Grande Mão que sobre ela se abate e a íaz deslizar sobre o papel estreito, como o clamor silencioso da sabedoria, com a suavidade do Céu eu com a dureza do Inferno! Se não credes, tocai com a outra mão inativa as chagas da Mão que escreve."

Estes seres passaram depois a viver, a existir no mundo de Jorge de Lima e não mais se afastaram de

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sua vida. Passaram a ser reais e se não partiram sua personalidade em heterônimos, fizeram-no sofrer muitas vezes, foram os causadores da tristeza e da angústia dos seus últimos anos.

Era à noite sobretudo que o poeta os via e sentia:

♦" "Acontece que uma face alta noite vem juntar-se à minha lace. Magia: ela penetra em meus lábios, em minha fronte, em meus olhos, e eu não sei se é a minha face ou se é a íace do meu sono ou da morte. Ou quem diria ? — se de alguma criatura composta apenas de face incorpórea como o sono, face de Lenora obscura que penetra em minha sala e do outro mundo me espia."

Há nessa Túnica Inconsútil alguns poemas admiráveis e que jamais serão esquecidos, entre outros "A Ave", "O nome da Musa" e a "Morte da Louca". Cito esses três por uma questão puramente pessoal de gosto, embora outros tenham até feito maior sucesso e merecido tradução em várias línguas.

Se Túnica Inconsútil é sua obra de madureza, Invenção de Orleu é seu livro de despedida. Já aí o poeta, ainda com a recordação dos mundos em que andou, aproxima-se do sobrenatural, da vida eterna. Sobretudo no canto "Missão e Promissão" há diversas formas de

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um ser humano que se aproxima do Cristo através da poesia. E o Cristo invade o poema e o purifica:

"Èle-o-sem-mêdo quer meu próprio medo Êle-a-poesia quer o meu delírio Éle-a-verdade quer minhas mentiras."

A presença da Trindade, do Cristo, de Nossa Senhora não estão todavia explicitadas no livro. São presenças intensas mas discretas, fortes mas quase invisíveis .

Invenção de Orfeu é sem dúvida um livro bastante obscuro. Se dele se pode retirar por vezes uma poesia lógica, tão clara quanto a de Racine, o poema outras vezes adquire involuntariamente uma forma hermética, o que nos leva a uma indagação de natureza mais geral sobre a linguagem poética e de modo particular sobre o problema da obscuridade em poesia.

Não se trata evidentemente, no caso de Jorge de Lima, de obscuridade procurada, desejada, tal como se usa para disfarçar, tornar aceitáveis velhos temas poéticos de conhecimento geral. Não se podendo ser original quanto à mensagem procura-se quanto ao estilo. Representa esse linguajar abstruso, elaboradamente obscuro de certa poesia uma forma moderna de parnasianismo, se considerarmos que o defeito capital do parnasianismo consistia numa desproporção entre matéria e forma, dando-se a essas expressões, caso me seja permitido o seu uso nesse domínio da arte, valor apenas análogo ao que possuem na filosofia tradicional.

Parecerá talvez estranhável que se fale em desproporção a propósito dos poetas parnasianos, quando se

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medita no extremo apuro, no pulimento de forma que caracterizou aquele movimento surgido como reação contra os exageros e os desmandos do romantismo. Mas era exatamente nessa confiança excessiva na excelência do estilo que residia a desproporção referida. No fundo, esse formalismo literário era um artifício, uma defesa, uma fuga e também uma forrna de pedantismo, hoje superaãa, na qual todavia as palavras conservavam seu sentido. Fugindo ao desagradável mundo do século XIX alguns poetas se refugiaram num monte simbólico, habitado por musas; agora, no século XX, outros se refugiam numa mata meio agreste, confiando mais na astucia das camuflagens e nas guerrilhas de despistamento do que na proteção das velhas armaduras clássicas.

Mas Jorge de Lima nunca teve tempo a perder com essa mistificação vocabular comum quer nos parnasianos quer nalguns modernos.

Êle sentia, aliás, muito vivamente, que a manipulação do poema faz perder muita poesia. E quer o Livro de Sonetos quer Invenção de Orfeu foram escritos ao correr da pena, de um jato, por incrível que pareça. Ká no livro versos de vários autores, versos de Camões, de Dante, de Murilo Mendes e essa autoria nem sempre é devidamente assinalada. Há por exemplo à página 390 três versos de Barbieri, aliás banalíssimos e que Jorge de Lima só depois, relendo o livro, assinalou. São versos que aparentemente não têm poesia, encerram somente ruído e que numa próxima edição deverão sair entre aspas conforme desejo expresso de Jorge de Lima. Recordo-me da sua confissão: "Ri-

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mado ou não rimado, tudo saiu espontaneamente de dentro de mim, embora o que estivesse dentro de mim nem sempre me pertencesse."

No caso vertente pois, o que há de plágio no livro demonstra a espontaneidade, a sinceridade desse poema, que saiu como uma lava da alma do poeta.

Deixemos também de lado a obscuridade que traduz simples imaturidade de forma, incapacidade de traduzir bem o assunto, o conteúdo. Esse, muito menos, é o caso de Jorge de Lima.

Mas há a obscuridade que deriva da tentativa de exprimir coisas que estão no limite da nossa percepção, da tentativa de dizer o indizível. A obscuridade aqui é inerente ao mistério. Mesmo o artista mais bem aparelhado sente que a matéria excede a forma, que o objeto excede o vocabulário, que a mensagem como que ultrapassa sua vivência profunda. No seu esforço de captar uma realidade cujo centro escapa a todos os instrumentos disponíveis, o artista às vezes passa a usá-los em vão, numa insistência, que é um exorcismo, de quem procura trazer à aurora da poesia um horizonte apenas entrevisto, por um instante, na noite transluminosa.

Nesse uso insistente da linguagem poética à procura de sua matéria corre-se o risco de cair no nefeli-batismo, num simples palavreado sem sentido. Em vez de pernosticismo há logorréia. Porque a palavra, como os outros instrumentos da arte, nunca valeu por si só. Um encontro de palavras como um encontro de cores e de sons, só tem valor quando determina um encontro de idéias e de sentimentos. E de novo se faz

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sentir, em toda sua força, a exigência de um equilíbrio entre matéria e forma.

A obscuridade que se nota na poesia de Jorge de Lima resulta sem dúvida de sua tentativa de alcançar terras não ocupadas, de encontrar a ilha que ninguém achou, de "reivindicar um mar para essa ilha que possui "cabos-não" a ser dobrados". A bordo de sua ébria embarcação, de seu veleiro sem velas, o poeta sabe contudo que

"Mesmo nesse íim de mar qualquer ilha se encontrava mesmo sem mar e sem íim mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos, mesmo sem vagas e areias, há sem pro um copo de mar para um homem navegar."

Os defeitos de sua poesia são os defeitos próprios de quem chegou "nesse fim de mar" e se Jorge jamais cai no pernosticismo, tende algumas vezes a cair nas associações de palavras puramente foneticas, na logorréia, traindo através desse cacoete, que reponta de raro em raro, a direção dos seus esforços.

Mas o que êle procura é:

"Não a vaga palavra, corrutela vã, corrompida íôlha degradada, de raiz deformada, abaixo dela, e de vermes, além, sobre a ramada;

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mas a que é a própria ilor arrebatada pela fúria dos ventos: mas aquela cujo pólen procura a chama iriada, — flor de fogo a queimar-se como vela :

mas aquela dos sopros afligida, mas ardente, mas larva, mas inferno, mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,

esta é que é a tier das flores mais ardida, esta veio do inicio para o eterno, para a árvore da vida que há em mim."

Quando, recuando um pouco em sua pesquisa, Jorge de Lima pisa terra mais firme ou navega águas mais conhecidas, quando de um primitivo da nova poesia volta a ser um clássico da velha poesia, produz então poemas admiráveis que poderiam servir como exemplos de adequação entre matéria e forma. Veja-se por exemplo o soneto XXVI de Invenção de Orfeu, que aparece na presente antologia.

Ou então esse outro, inspirado pela recordação de um efebo de beleza indeterminada, e que veio a morrer afogado:

"Vinha boiando o corpo adolescente belo pastor e sonho perturbado. Deus abaixou-lhe os cílios alongados para que é/e dormindo flutuasse.

Ressuscita-o Senhor, essa medusa de sangue juvenil em rosto impúbere, desterrado da vida, flor perdida, irmão gêmeo de Apoio trimagista.

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Seca-lhe a espuma que lhe inunda o peito e as convulsões mortais que o imolaram às sodomas ardidas em seu leito.

Anjo adoecido, alheio dançarino que dançaste em Gomorras incendiadas, estás cansado; deita-te, menino!"

■ Já que assinalei esses dois sonetos quero também recordar

aquele da página 177. Não tentarei analisá-lo, transcrevo sem discuti-lo, como um presente a mim mesmo, pois êle constitui, tanto quanto eu possa julgar e sentir, uma das coisas mais belas, mais estranhas e misteriosas que jamais li:

"A tristeza era tanta, tanta a mágua que seu anjo da guarda resolvera lutar cem êle, lutar para lutar, que o interesse da vida perecera.

Ave e serpente, círculo e pirámide, os olhos em fuzil e os doces olhos, os laços, os vôos livres e as escamas.

Que doida simetria nesses ódios ! Que forças transcendentes aros e ángulos alguém quis que lutassem nesse dia!

Ave e serpente, círculo e piràmide:

Que divina constante simetria nessa luta soturna, nessa liça em que Deus reconstrói o eterno cisne!"

Vê-se por essas amostras a maturidade de sua forrna, a excelência de linguagem desse poeta que é a um tempo

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um clássico e um primitivo. Aliás Jorge de Lima cria, nesses dois livros, novos tipos de soneto, seja o soneto inconsútil, do qual se encontram bons exemplos à página 92 de Invenção de Oríeu e à página 609 de Obra Poética, seja o soneto que João Gaspar Simões denomina jorgeano, tais os das páginas 26 e 179 de Invenção de Orfeu ou o da página 583 de Obra Poética.

Os três sonetos acima transcritos, os dois primeiros pelo menos, constituem sem dúvida exemplos de claridade. Voltando porém à questão da obscuridade e procurando compreendê-la melhor, direi que cumpre distinguir a poesia dos estados conscientes e a poesia dos estados de sonho.

Na poesia dos estados conscientes, para que haja adequação entre matéria e forma, mensagem e estilo, exige-se que esse último seja compreensível e através da razão fale às nossas emoções.

Mas há a poesia dos estados crepusculares que possui símbolos e leis próprias e usa necessariamente uma linguagem de qualidade diferente.

Entretanto, quer a linguagem do homem acordado quer a do homem que sonha, têm valor universal. Em todas as latitudes os outros homens compreendem a linguagem diurna e sentem a linguagem obscura da noite. O que é falso é o emprego da linguagem noturna para exprimir os pensamentos e os desejos do homem acordado. Isso cria uma falsa obscuridade. Por isso certos versos obscuros, que pretendem transmitir pesadelos, mas que foram pacientemente fabricados ao meio-dia, não convencem .

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Temos em Jorge de Lima um bom exemplo, creio mesmo que o nosso melhor exemplo de autêntica poesia noturna, na qual o autor apenas se limitou, humildemente, a escrever aquilo que sua memória ainda guardava dos sonhos de véspera, coibindo-se de qualquer colaboração posterior. A forrna metrificada e rimada na qual as imagens guardadas pela memória estão colocadas, não custou esforço ao poeta e por isso não representa uma elaboração maior dos restos noturnos do que se tivessem sido colocadas em prosa.

A esse respeito é curioso relatar que os 77 sonetos que formam o livro Sonetos e que figuram na Obra Poética e mais 25 outros não publicados, ao todo mais de 100, foram escritos em estado de hipnagose, no espaço de 10 dias apenas, Jorge de Lima levantando-se às vezes de madrugada e compondo de uma vez dois a três sonetos. Não sei se seria do gosto do poeta a narrativa das circunstâncias que cercaram a produção desses sonetos. Li-mitar-me-ei a referir que foram escritos em momento de grande angústia quando seu autor começou a sonhar acordado e a ver, diante de si, entre outras coisas, o galo da igreja do Rosário em Maceió, um galo de orientação dos ventos, que Jorge de Lima achava belíssimo e que muito ocupou sua imaginação de criança. Tinha 7 anos e, segundo me disse, ia dormir com aquele galo na memória. De dedo em riste um vereador petebista ameaçava seu adversário udenista: "Sr. Presidente, todos nesta casa são testemunhas. . .". Mas o presidente da Câmara, involuntariamente alheio àquela algazarra, via apenas, diante de si, girando, o galo da igreja do Rosário.

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E Celidônia. E Elisa. Também a draga da praia de Pa-jussara. Na praia de Pajussara defronte de sua casa, havia uma

draga, que lhe parecia fantástica e em redor da qual os meninos brincavam. Um dia Elisa, mais afoita, entrou na draga e não pôde sair senão depois de muitas horas. Jorge tinha 8 anos e sentiu o pavor da cena.

Celidônia era uma pretinha muito bonita que morreu afogada no rio Mandaú e que Jorge nunca esqueceu. Foi a primeira tristeza forte de sua vida.

No momento de angústia a que me referi, há 4 anos atrás, Celidônia, Elisa, a draga, o galo da igreja e muitas coisas mais começaram a aparecer em frente de Jorge de Lima e êle teve medo. Era sua infância que vinha em seu socorro, mas no primeiro momento, êle não compreendeu. Sonhando acordado, angustiado, amedrontado mesmo, fêz os sonetos e ao cabo de 10 dias a crise havia passado. Sua infância se interpusera entre êle e o presente e a angústia se desvanecera.

Não tenho todavia o direito de contar mais do que aí está, o que aliás estou fazendo por conta própria. Mas basta o que foi dito para deixar assinalado o caráter onírico dos seus Sonetos, nos quais os mesmos temas se repetem e o mesmo sonho é sonhado duas ou três vezes, com pequenas variações. Muitas imagens desses sonhos são de novo relembradas em Invenção de Orfeu.

Aquelas moças bonitas, de cabelos longos, que o menino Jorge pensava que iam ser raptadas, aparecem debruçadas nas janelas em muitos versos, quer em Sonetos (ver Obra Poética, páginas 590 e 596) quer em Inven-

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ção de Orieu (páginas 34 e 344). O poeta sabe que elas o acompanharão até o fim, êle as verá ainda no dia do Juízo Final, mas, ao afirmar isso, nada pretende acrescentar às profecias, nada, pois conhece e teme a advertência do Apocalipse.

O cavalo todo feito em chamas, recoberto de brasas e de espinhos, aparece outras tantas vezes (Invenção de Orieu, páginas 156 e 157, Obra Poética, página 614). tantas vezes pelo menos quanto o galo.

Este galo que havia na igreja do Rosário, aquela draga encalhada na praia de Pajussara, os cavalos rodando em torno de sua vida parada, as meninas ainda debruçadas nas janelas, a tristeza pela morte de Celi-dônia, estas e outras reminiscências constituem a armadura poderosa que defende o poeta nesse mundo de adultos, nesse mundo que só é possível habitar porque nele ainda vivem os ecos de sua infância. E basta a Jorge de Lima querer escutá-los, registrá-los de novo, uma, inúmeras vezes, para reencontrar a paz, a graça, o minuto de eternidade no tempo.

Com essa certeza de encontrar a paz, Jorge de Lima lançava-se em suas aventuras poéticas. Sempre encontrava a paz mesmo quando não encontrava a ilha.

Em seu inconsciente sua infância estava costurada à infância do Brasil, à aventura portuguesa nos mares do sul. Certamente a história do Brasil, tal como era contada pelos homens da geração de Capistrano, encantou a infância de Jorge. Inseridas na raiz mesmo de sua sensibilidade estavam as imagens do descobrimento, da conquista, da evangelização.

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E Jorge de Lima se sentia português, no fundo, na essência, "Barão ébrio, mas barão". No início êle não tinha talvez essa consciência, mas sua lírica e sua religiosidade já estavam impregnadas de uma ternura tipicamente lusitana. Por exemplo, sua maneira carinhosa de conversar com o Menino Jesus (ver adiante, nesta antologia, o "Poema de Natal") é bem brasileira, mas é, igualmente, bem portuguesa. E bem antiespanhola.

O Cristo espanhol, sempre em seu papel trágico, não permitiria tais intimidades aos seus poetas.

O pecado não conseguiu destruir a infância, a pátria, a fé em Deus. Sua fé era penhor de salvação, embora Satanás, como seria de esperar, não estivesse indiferente:

"Ouço o meu nome. Volto-me. Chemarsm-me. A cara viperína é tão visível que lhe falo da porta devagar: Lúcido ser, agudo ser terrível e sempre antecedente Sagitário, por que vens visitar o meu poema ? De que círculo de horror ou de que treva trazes a inquietação ao meu silêncio?

A que eu amo não mora nesses dramas, e em meio às potestades preexistiu; nada podes dizer-me de seus hortos; que pretendes demônio, serpe ou nada ?

Ouço o meu ncme. Volto-me. Chamaram-me, ou me chamei ou o tempo me chamou ? ou abriram a porta devagar? Visitante noturno onde te ocultas,

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em que obscura vertente te assinalas? Ó dorme antigo ser permanecido, lúcido ser, agudo ser terrível, ó sempre antecedente Sagitário.

Regresso ao meu zodíaco de espelhos contemplo a noite vasta e simultânea à solidão me entrego, sacra névoa, *■ respiro os horizontes superados, sossego a ventania despertada, e eis que escuto o meu nome; certo é o nome de alguém perdido em mim, algum lamento, algum adeus que de outro lado vem.

Loucura efêmera antes não viesses reintegrar-me no senso verdadeiro. Quero voltar a ti, a calma branca sem apelos a mim, de mim, de quem ? Amo-vos virgens campos da poesia com os tules das mensagens pressentida. Reacendo esta Lâmpada. E Esta. E Esta. Sabeis quais são as Três. Laudamus te."

* *

Esta posição religiosa de Jorge de Lima assinala sua profunda diferença com outro grande poeta da língua portuguesa. Creio até que encontraremos aqui um exemplo muito sugestivo das diferenças conseqüentes à posição religiosa em dois poetas que, de outra maneira, muito se pareciam.

A formação filosófica não altera a trajetória dos homens medíocres. Parece que, quaisquer que sejam as crenças dos homens medíocres, farão ao cabo as mesmas

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coisas. Mas não é impunemente que o artista adere a tal ou qual filosofia.

Assim temos que enquanto em Jorge de Lima a poesia é, do ponto de vista do afeto, um termo e não uma procura, ou, se dissermos em outras palavras, uma procura na qual já existe plenitude, uma procura na qual o poeta já encontra sua recompensa, em Fernando Pessoa a poesia, toda ela é uma ascese, uma "noite escura", mas uma noite além da qual nada espera encontrar, além da qual êle nada pode vislumbrar. Uma procura sem a virtude teologal da Esperança. Por isso mesmo "no seu céu interior nunca houve uma única estrela".

Fernando Pessoa procurou sentir o absoluto nas coisas transitórias, pois essa sede estava nele presente e queimou sua alma e partiu sua personalidade em diferentes heterônimos. Mas por um segredo que escapa ao nosso conhecimento nunca recebeu indicação alguma do lugar onde poderia finalmente saciar a ardente sede. O resultado dessa procura vã foi o cansaço:

"O que há em mim é sobretudo cansaço Não disto nem daquilo, Nem sequer do tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, êle mesmo cansaço.

Há sem dúvida quem ame o iníinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível Há sem dúvida quem não queira nada Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêlea : Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível.

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E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para êles o sonho sonhado ou vivido, Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto. . . Para mim só um grande, um profundo E, ah com quo felicidade infecundo cansaço Um supremíssimo cansaço, íssimo, íssimo, íssimo, ♦ cansaço."

Um homem tão lúcido e um poeta tão grande — desprovido de Fé — teria que em face da vida dilacerar-se. E foi o que aconteceu. Êle era grande demais para contentar-se com sucedâneos. Lúcido demais para encontrar na descrença um motivo de júbilo, à semelhança, para citar um exemplo qualquer, do brilhante autor de Le Neveu de Rameau ou de algumas outras figuras que o século dezoito particularmente nos oferece. Foi um personagem múltiplo, o que sem dúvida indica riqueza mas representa um empobrecimento. Os hete-rônimos, no caso de Fernando Pessoa, não valem como pilhéria literária ou como indicação do poder e da versatilidade de sua inteligência, mas significam uma tragédia espiritual. Essa tragédia Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos a enunciam numa linguagem limpa de atavios. O estilo deles é sempre claro, transparente. Transparência de palavras como talvez conviesse melhor à indagação filosófica.

Como já o notou Ra'issa Maritain, as palavras para o poeta têm côr, têm certo brilho, daí resultando que não podem ser substituídas impunemente por sinônimos e daí também a dificuldade que existe nas traduções.

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Na filosofia a palavra é transparente à significação do objeto. Não há obscuridade alguma no estilo dos filósofos. Bastam as dificuldades próprias da indagação metafísica. Por isso, quem, a essa obscuridade acrescenía à do seu próprio estilo, não pode ser considerado um filósofo e deve ser eliminado sem piedade.

A poesia de Fernando Pessoa era também uma procura filosófica desesperada e daí a deflação, o desnudamento. E sobretudo porque é um agnóstico, seu idioma poético é conceituai. Recordo-me de Caeiro insistindo em que

... "o único sentido oculto das coisas ê elas não terem sentido oculto nenhum."

Ou então:

"As coisas não tem signifícação; têm existência."

Ria-se muito dos poetas místicos:

"Os poetas místicos são filózofos doentes, e os filósofos são homens doidos."

Sua poesia adquire freqüentemente aspectos críticos, outras vezes de revolta. Tenho em mente aquele magnífico poema de Álvaro de Campos dizendo que não quer nada e que não lhe venham com conclusões. Ou então aquele outro, quando êle nos conta como deu generosamente todo o dinheiro que havia na algibeira onde éle guardava pouco dinheiro.

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Senão a alegria, pelo menos uma certa tranqüilidade na descrença, bem que o poeta a desejou:

"Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me, Aqui estou !

"Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deus quis que o não conhecêssemos, Por isso se nos não mostrou. . .

"Sejamos simples e calmos Como os regatos e as árvores, E Deus amar-nos-á fazendo de nós Belos como as árvores e os regatos E dar-nos-á verdor na sua primavera E um rio onde ir ter quando acabemos.'..."

Mas nesse mesmo poema, apenas linhas adiante, Alberto Caeiro irrompe em insultos ao Espírito Santo e à Nossa Senhora que, do ponto de vista de sua gravidade teológica, de muito ultrapassam os insultos de um Car-ducci, de um Leconte de Lisle, de um Louis Menard ou, para citar um exemplo português, de um Guerra Jun-queiro, ao Cristianismo, à Igreja Católica e a Nosso Senhor Jesus Cristo. Insultos, a gente bem o percebe, que não são proferidos "Pour épater" ou pelo desejo de polemizar mas que têm o valor espiritual de uma blasfêmia autêntica.

Nos grandes momentos de Fernando Pessoa há contudo a aceitação, literária embora, do mistério. Assim, diante da aventura e da glória lusitana o poeta recupe-

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rava sua unidade, voltava a usar seu nome de batismo, tornava-se mais humilde em face do universo. Então êle compreendia que "as nações todas são mistérios" e que "todo começo é involuntário; Deus é o agente" e compreendia ainda como nasce a obra:

"Deus quere, o homem sonha, a obra nasce".

E houve um minuto, um instante em sua vida em que Fernando Pessoa sentiu não apenas o vazio das coisas possíveis que êle amava impossivelmente mas qualquer coisa mais:

"Quando é que passará esta noite inteira, o universo, E eu, a minha alma, terei o meu dia? Quando é que despertarei de estar acordado ? Não sei. O sol brilha alto, Impossível de fitar. As estrelas pestanejam frio, Impossíveis de contar. O coração pulsa alheio, Impossível de escutar. Quando é que passará este drama sem teatro, Ou este teatro sem drama, E recolherei à casa? Onde ? Como ? Quando ? Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo9

É esse ! É esse ! Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei; E então será dia. Sorri, dormindo, minha alma! Sorri, minha alma, será dia.'"

A poesia de Jorge de Lima nunca é polêmica. Sequer social. Sua poesia é um transbordamento. O próprio autor não sabia realmente, algumas vezes, o que queria

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dizer. Ressonâncias de palavras, de imagens, de formas, êle humildemente as deixava passar, fluir, delir. Não dominava a poesia como Fernando Pessoa. Contentava-se Jorge freqüentemente com frases que não tinham sentido lógico, mas apenas qualidade musical ou força de mistério. Na sua simplicidade, isso lhe bastava.

Também nunca Jorge de Lima fêz poesia religiosu, é preciso que se assinale. A fé é subjacente, a esperança é imanente no seu poema, mas nem os motives religiosos nem os sociais constituem o objeto formal de sua poesia. Podem quando muito constituir, aqui e acolá, pretextos. motivos para a poesia.

Tudo aliás serve de motivo para sua poesia. Seu apetite poético era universal e quando um cacto se mostrava muito duro, o poeta, mesmo assim, o cobria de ternura:

"Mandacarus, mandacarus, que técnica vos fêz tão torres nesse verde marfim de caule que não dá lenho para quem deseje um poema, um navio manso, mas encarnais ossuárioa com tutanos de seiva oculta manancialmente para bois."

No seu livro Jorge canta também o reino mineral e indaga:

"Quem te fêz assim soturno quieto reino mineral, escondido chão noturno?

Que bico rói o teu mal ? Quem antes dos sete dias Te argamassou em seu gral?"

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Mas se Jorge não foi um polemista, nem um filósofo, nem pretendeu nos oferecer mais do que poesia, poesia diurna e noturna, ora em sonetos de perfeição clássica ora em poemas de sabor nascente, seus dois últimos livros nos levam a estudar certos problemas, quais entre outros, o da obscuridade na poesia e o da significação da posição filosófica e religiosa do seu autor. Os críticos encontrarão realmente material para exame nesse livro inesperado e generoso que é Invenção de Orfeu, o qual vem tornar definitivamente inaceitável entre' nós essa poesia, como dizia Bernanos, "aux petits cubes, aux petits poèmes ironiques, aux petits bonbons lyriques".

J. F. C.

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ANTOLOGIA

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BONECA DE PANO

Boneca de pano dos olhos de conta, vestido de chita, cabelo de fita, cheínha de lã.

De dia, de noite, os olhos abertos, olhando os bonecos que sabem marchar, calungas de mola que sabem pular. Boneca de pano que cai: não se quebra, que custa um tostão. Boneca de pano das meninas infelizes que são guias de aleijados, que apanham pontas de cigarro, que mendigam nas esquinas, coitadas ! Boneca de pano de rosto parado como essas meninas. Boneca sujinha, cheínha de lã. — Os olhos de conta caíram. Ceguinha rolou na sargeta. O homem do lixo a levou, coberta de lama, nuínha, como quis Nosso Senhor.

(Dos "Poemas")

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PAI JOÃO

Pai João secou como um pau sem raiz. — Pai João vai morrer. Pai

João remou nas canoas. — Cavou a terra. Fêz brotar do chão a esmeralda Das folhas — café, cana, algodão. Pai

João cavou mais esmeraldas Que Pais Leme.

A filha de Pai João tinha um peito de Turina para os filhos de ioiô mamar: Quando o peito secou a filha de Pai João Também secou agarrada num Ferro de engomar. A pele de Pai João ficou na ponta Dos chicotes. A força de Pai João ficou no cabo Da enxada e da foice. A mulher de Pai João o branco A roubou para fazer mucamas. O sangue de Pai

João se sumiu no sangue bom Como um torrão de açúcar bruto.

(Dos "Poemas")

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ESSA NEGRA FULÔ

Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no bangüê dum meu avô uma negra bonitinha chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) — Vai forrar a minha cama pentear os meus cabelos vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô! ficou logo pra mucama para vigiar a Sinhá pra engomar pro Sinhô!

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Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o mau corpo que eu estou suada, Fulô ! vem cocar minha coceira, vem me catar caíuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma hiatóría, que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possuía um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinhô me mandou que vos contasse mais cinco."

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

t Ó Fulô ? Ó Fulô ? Vai botar para dormir esses meninos, Fulô !

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"Minha mãe me penteou minha madrasta me enterrou pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou."

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Fulo? Ó Fulô? (Era a fala da Sinhá chamando a negra Fulô). Cadê meu frasco de cheiro que teu Sinhô me mandou?

Ah! Foi você que roubou! Ah ! Foi você que roubou !

O Sinhô foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa. O Sinhô disse : Fulô ! (A vista se escureceu que nem a negra Fulô)

Ensa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô ? Ó Fulô ? Cadê meu lenço de rendas,

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cadê meu cinto, meu broche, cadê meu terço de ouro que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou. Ah! foi você que roubou.

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar sozinho a negra Fulô. A negra tirou a saia e tirou o cabeção. De dentro dele pulou nuínha a nogra Fulô.

Essa negra Fulô ! Essa negra Fulô !

Ó Fulô ? Ó Fulô ? Cadê, cadê teu Sinhô ! que nosso Senhor me mandou ? Ah! Foi você que roubou, foi você, negra Fulô?

Essa negra Fulô !

(Dos "Novos Poemas")

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INVERNO

Zeía, chegou o inverno! Formigas de asas e tanajuras! Chegou o inverno ! Lama e mais lama, chuva e mais chuva, Zela! Vai nascer tudo, Zeía! Vai haver verde, verde do bom, verde nos galhos, verde na terra, verde em ti, Zeía, que eu quero bem ! Formigas de asas e tanajuras! O rio cheio, barrigas cheias, mulheres cheias, Zeía ! Águas nas locas, pitus gostosos, carás, cabojes, e chuva e mais chuva ! Vai nascer tudo: milho, feijão, até de novo

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teu coração, Zeial Formigas de asas e tanajuras! Chegou o inverno! Chuva e mais chuva! Vai casar tudo, moça e viúva ! Chegou o inverno! Covas bem íundas pra enterrar cana; cana caiana e flor de Cuba! Terra tão mole que as enxadas nela se afundam com olho e tudo! Leite e mais leite pra requeijões! Cargas de imbu! Em junho o milho, milho e canjica

pra São João ! E tudo isto, Zefa. . . E mais gostoso que isso tudo: noites de frio, lá fora o escuro, lá fora a chuva, trovão, corisco, terras caídas, corgos gemendo os caborés gemendo, os caborés piando, Zefa !

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Os cururus cantando, Zefa ! Dentro da nossa casa de palha: carne de sol chia nas brazas, farinha d'água, café, cigarro, cachaça, Zefa. . . . . . rede gemendo . . .

Tempo gostoso! Vai nascer tudo ! Lá fora chuva, chuva e mais chuva, trovão, corisco, terras caídas e vento e chuva, chuva e mais chuva! Mas tudo isso, Zefa, vamos dizer, só com os poderes de Jesus Cristo!

(Dos "Novos Poemas")

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MADORNA DE IAIÁ

Iaiá está na rede de tucum. A mucama de Iaiá tange os piuns, balança a rede, canta um lundum tão bambo, tão molengo, tão dengoso, que iaiá tem vontade de dormir.

Com quem ?

Ram-rem.

Que preguiça, que calor ! Iaiá tira a camisa, toma alua, prende o cocô, limpa o suor, pula pra rede.

Mas que cheiro gostoso tem Iaiá ! Que vontade doida de dormir. ..

Com quem ?

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Cheiro de mel da casa das caldeiras! O

sagüim de laia dorme num coco.

laia ferra no sono,

prende a cabeça, abre-

se a rede, como uma

ingá.

Pára a mucama de cantar, tange os piuns, cala o ram-rem, abre a janela, olha o curral: — um bruto sossego no curral!

Muito longe uma peitica faz si-dó. . . si-dó. .

. si-dó. . . si-dó. . .

Antes que laia corte a madorna, a moleca

de laia balança a rede tange os piuns,

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canta um lundum tão bambo, tão molengo, tão dengoso, que laiá sem se acordar, se coca, se estira e se abre toda na rede de tucum.

Sonha com quem ?

(Dos "Novos Poemas")

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JOAQUINA MALUCA

Joaquina Maluca, você ficou lesa não sei porque foi! Você tem um resto de graça menina, na boca, nos peitos, onde sei onde é. . .

Joaquina Maluca, você ficou lesa, não é? Talvez pra não ver o que o mundo lhe faz. Você ficou lesa, não foi ? Talvez pra não ver o que o mundo lhe fêz. Joaquina Maluca, você foi bonita, não foi? Você tem um resto de éraça menina não sei onde é. . .

Tão suja de vício, nem sabe o que foi. Tão lesa, tão pura, tão limpa de culpa, nem sabe o que é!

(Dos "Novos Poemas")

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POEMA DE DUAS MÃOZINHAS

E aquelas mãozinhas, tão leves, tão brancas, riscavam as paredes, quebravam os bonecos, armavam castelos de areia na praia, viviam as duas qual João mais Maria.

À boca da noite o Cata-piolhos rezava baixinho : "Pelo sinal da Santa-Cruz livre-nos Deus Nosso-Senhor".

E aquelas mãozinhas dormiam unidinhas qual João mais Maria.

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"Dedo-mindinho, Sêo vizinho, o Pai-de-todos, Sêo-fura-bolos, Cata-piolhos, quede o toicinho? — o gato comeu."

Nas noites de lua cheinhas de estrelas, Sêo Fura-bolos contava as estrelas. . . O Pai-de-todos cuidava dos outros: nasciam berrugas no Cata-piolhos.

E aquelas mãozinhas viviam sujinhas qual João mais Maria. ..

Um dia (que dia!) o Dedo-mindinho ieriu-se num espinho. . . E à boca da noite o Cata-piolhos deixou de rezar;

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e João mais Maria, juntinhos, ligados, pararam em cruz cobertos de fitas que nem dois bonecos sem molas, quebrados. . .

Quem compra um boneco da loja de Deus ?

(Dos "Novos Poemas")

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MEUS OLHOS

Nossa Senhora, minima madrinha, tu vês as coisas verdes, não ê? Meus olhos pretos, coitados deles! Teus olhos verdes, íelizes deles, minha madrinha, Nossa Senhora da Conceição!

Nossa Senhora, dá-me teus olhos para eu ver com eles meus pobres olhos. Coitados deles, minha madrinha, só vêem 33 coisas como elas são.

Nossa Senhora, minha madrinha, pinta meus olhos, que eu quero ver verdes os dias que inda virão. Nossa Senliora, minha madrinha, tu vês as coisas verdes, não é?

Teus olhos verdes, felizes deles! Meus olhos pretos, cor de carvão! Nossa Senhora, minha madrinha, tu vês meus olhos como eles são ?

(Dos <¿Novos Poemas")

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CANTIGAS

As cantigas lavam a roupa das lavadeiras. As cantigas são tão bonitas, que as lavadeiras ticam tão tristes, tão pensativas!

As cantigas tangem os bois dos boiadeiros ! — Os bois são morosos, a carga é tão grande! O caminho é tão comprido que não tem fim. As cantigas são leves. . . E as cantigas levam os bois, batem a roupa das lavadeiras.

As almas negras pesam tanto, são tão sujas como a roupa, tão pesadas como os bois. . . As cantigas são tão boas. .. Lavam as almas dos pecadores! Levam as almas dos pecadores!

(Dos "Novos Poemas")

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POEMA DE NATAL

Ó meu Jesus, quando você ficar assim maiorzinho venha para darmos um passeio que eu também gosto das crianças.

Iremos ver as feras mansas que há no jardim zoológico. E em qualquer dia feriado iremos, então, por exemplo, ver Cristo Rei do Corcovado.

E quem passar vendo o menino há de dizer: ali vai o filho de Nossa-Senhora da Conceição 1

— Aquele menino que vai ali (diversos homens logo dirão) sabe mais coisas que todos nós!

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— Bom dia, Jesus ! — dirá uma voz.

E outras vozes cochicharão: — É o belo menino que está no livro da minlxa primeira comunhão!

— Como está forte! — Nada mudou! — Que boa saúde! Que boas cores! (Dirão adiante outros senhores).

Mas outra gente de aspecto vário há de dizer ao ver você :

— É o menino do carpinteiro! E vendo esses modos de operário que sai aos Domingos pra passear, nos convidarão para irmos juntos os camaradas visitar.

E quando voltarmos pra casa, à noite, e forem pra o vício os pecadores, eles sem dúvida me convidarão.

Eu hei de inventar pretextos sutis pra você me deixar sozinho ir. Menino Jesus, miserere nobis, segure com força a minha mão.

(Dos "Poemas Escolhidos")

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POEMA DO CRISTÃO

Porque o sangue de Cristo jorrou sobre os meus olhos, a minha visão é universal e tem dimensões que ninguém sabe. Os milênios passados e os futuros não me aturdem porque nasço e nascerei, porque sou uno com todas as criaturas, com todos os seres, com todas as coisas que eu decomponho e absorvo com os sentidos e compreendo com a inteligência transfigurada em Cristo. Tenho os movimentos alargados. Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria; sou velhíssimo e apenas nasci ontem, estou molhado dos limos primitivos, e ao mesmo tempo resôo as trombetas finais, compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os

[signos, tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas. Posso enxugar com um simples aceno c choro de todos os irmãos distantes. Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime

[e estrelado.

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Chamo todos os mendigos para comer comigo, e ando sobre as águas como os profetas bíblicos. Não há escuridão mais para mim. Opero transfusões de luz nos seres opacos, posso mutilar-me e reproduzir meus membros como os

[estrelas do mar, porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo, e creio na vida eterna, amém. E tendo a vida eterna posso transgredir leis naturais : a minha passagem é esperada nas estradas, venho e irei como uma profecia, sou espontâneo como a intuição e a Fé. Sou rápido como a resposta do Mestre, sou inconsútil como a sua túnica, sou numeroso como a sua Igreja, tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada

[e refeita todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos

[cardeais; e sobre os ombros A conduzo através de toda a escuridão do mundo, porque tenho

[a luz eterna nos olhos, E tendo a luz eterna nos olhos sou o maior mágico : ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e [omega,

peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou

derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púr-[pura e de estamenha, sou burríssimo como São [Cristóvão e sapientissimo como Santo Tomás. E [sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre. [para todos os séculos, louco de Deus, amém.

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E sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a [ordem e a medida, sou

a balança, a criação, a obediência, sou o arrependimento, sou a humildade sou o autor da paixão e morte de Jesus, sou a culpa de tudo, Nada sou. Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordtam

[tuam!

(Da "Túnica Inconsútil")

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A AVE

Para J. Fernando Carneiro

Ninguém sabia donde viera a estranha ave. Talvez o último ciclone a arrebatasse de incógnita Ulta ou de algum golfo, ou nascesse das algas gigantescas do mar; ou caísse de uma outra atmosfera, ou de outro mundo ou de outro mistério. Velhos homens do mar nunca a haviam visto nos gelos nem nenhum andarilho a encontrara jamais : era antropomorfa como um anjo e silenciosa como qualquer poeta. Primeiro pairou na grande cùpola do templo mas o pontífice tangeu-a de lá como se tange um demônio

[doente. E na mesma noite pousou no cimo do farol; e o farofeiro tangeu-a : ela podia atrapalhar as naus. Ninguém lhe ofereceu um pedaço de pão ou um gesto suave onde se dependurasse. E alguém disse: "essa ave é uma ave má das que devoram

[o gado". E outro : "essa ave deve ser um demônio faminto". E quando as suas asas pairavam espalmadas dando

[sombra às crianças cansadas,

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até as mães jogavam pedras na misteriosa ave perseguida y [e inquieta.

Talvez houvesse fugido de qualquer pico silencioso entre [as nuvens

ou perdesse a companheira abatida de seta. A ave era antropomorta como um anjo e solitária como qualquer poeta. E parecia querer o convívio dos homens que a enxotavam como se enxota um demônio doente. Quando a enchente periódica afogou os trigais, alguém

[disse: — "A ave trouxe a enchente". Quando a seca anual assolou os rebanhos, alguém disse: — "A ave comeu os cordeiros". E todas as fontes lhe negando água, a ave desabou sobre o mundo como um Sansão sem vida. Então um simples pescador apanhou o cadáver macio e

[falou: — "Achei o corpo de uma grande ave mansa". E alguém recordou que a ave levava ovos aos anacoretas. Um mendigo falou que a ave o abrigara muitas vezes

[do frio. E um nu: a ave cedeu as penas para mau gibão. E o chefe do povo: "era o rei das aves, que desconhe-

[cemos". E o filho mais moço do chefe que era sozinho e manso : dá-me as penas para eu escrever a minha vida tão igual à da ave em que me vejo mais do que me vejo em ti, meu pai.

(Da "Túnica Inconsútil")

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O NOME DA MUSA

Para Adalgisa Nery

Não te chamo Eva, não te dou nenhum nome de mulher nascida, nem de fada, nem de deusa, nem de musa, nem de sibila,

[nem de terras, nem de astros, nem de fíôres. Mas te chamo a que desceu do luar para causar as nutres e iníluir nas coisas oscilantes. Quando vejo os enormes campos de verbena agitando

[as corolas, sei que não é o vento que bole mas tu que passas com

[os cabelos soltos. Amo contemplar-te nos cardumes das medusas que vêo

[para os mares boreais, ou no bando das gaivotas e dos pássaros dos polos re-[voando sobre as terras geladas. Não te chamo Eva, não te dou nenhum nome de mulher nascida. O teu nonne deve estar nos lábios dos meninos que

[nasceram mudos, nos areiais movediças e silenciosos que já foram o fundo

[do mar, no ar lavado que sucede as grandes borrascas, na palavra dos anacoretas que te viram sonhando

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v e morreram quando despertaram, no traço que os raios descrevem e que ninguém jamais

[leu. Em todos esses movimentos há apenas sílabas do teu

[nome secular que coisas primitivas escutaram e não transmitiram às

[gerações. Esperemos, amigo, que searas gratuitas nasçam de novo, e os animais da criação se reconciliem sob o mesmo

[arco-íris : então ouvireis o nome da que não chamo Eva nem lhe dou nenhum nome de mulher nascida.

(Da "Túnica Inconsútir')

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A MORTE DA LOUCA

Para María Helena Nelson Pinto

Onde andarás, louca, dentro da tempestade ? És tu que ris, louca? Ou será a ventania ou algum estranho pássaro desco-

[nhecido ? Boiar ás em algum rio, nua, coroada de flores? Ou no mar as medusas e as estrelas palparão os teus

[seios e tuas coxas? Louca, tu que fôste possuída pelos vagabundos sob as

[pontes dos rios, estarás sendo esboieteada pelas grandes forças naturais ? Algum cão lamberá os teus olhos que ninguém se lem-

[brou de beijar? Ou conversaras com a ventania como se conversasses

[com tua irmã mais velha ? Ou te ris do mar como de um companheiro de presídio ? Onde andarás, louca, dentro da tempestade?

(Da "Túnica Inconsútil")

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DUAS MENINAS DE TRANCAS PRETAS

Eram duas menit\as de trancas pretas. Veio uma febre levou as duas. Foram as duas para o cemitério: ambas ficaram na mesma cova. Por sobre as pedras da sepultura brotou bonina, brotou bonina, nasceram plantas, nasceram mais plantas, flores do mato, canas da várzea : a sepultura virou canteiro. Aves vieram cantar nas plantas, levaram sementes por sobre o mar. Os peixes levaram estas sementes até as Ilhas de Karakantá. Ali brotaram flores estranhas. Donde vieram flores tão raras ? Ah! só o poeta saberá. Pois nesse mundo desconhecido há casos desses que ninguém vê : vieram insetos beijar as flores, e um belo dia veio um poeta pegar insetos para sua amada. A borboleta mais rara que há naquelas ilhas de Karakantá é cor de amaranto com olhos azuis.

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Mas heis de saber que a tal borboleta contém veneno dentro dos olhos; aí o poeta beijando tais olhos ficou dormindo como um cadáver. E então sonhou com as duas meninas: que ambas dormiam na mesma cova, que flores nasceram na sepultura, que a sepultura virou canteiro, que peixes levaram sementes das flores para aquelas ilhas de Karakantá. O sonho do poeta o vento levou, levou para um astro desconhecido. E aí chegando tornou-se um mar : a água do mar virou arco-íris. Então uma deusa pegou o arco-íris e fez um pente para se pentear. E tanto se penteou a deusa do astro que deu a luz a duas meninas. Sabeis quem são as duas meninas? As duas meninas mais belas que há ? Ah ! só o poeta saberá.

(Da "Túnica Inconsútil")

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A case esíá em sombras imergida. Na sala de visitas os retratos pendem. Pendem as flores ressequidas. A luz morreu. O ambiente é timorato.

Na alcova em que viveu a bem-querida se esvaem gestos, há signos abstratos errando na penumbra; há outras vidas pressentidas no fúnebre aparato.

A aparência das coisas coagulou-se em desesperado hiato. Não há passos, nem mãos, nem seu olhar, seu olhar doce,

nem nada; nem o som de sua tala nem a lembrança vaga de seus traços nem Tua Voz, meu Deus, para acordá-la.

(Do "Livro de Sonetos")

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Nas noites enluaradas cabeleiras das moças debruçadas, dos sobrados desciam como gatas borralheiras por sobre os nossos lábios descuidados.

Beijávamos os cachos; das olheiras delas caíam prantos obstinados. Calmávamos com eles as fogueiras dos nossos próprios olhos assustados.

Românticos demais. Nós os meninos urdíamos as trancas, e em seus braços ouvíamos suspiros desolados.

Elas tinham soluços repentinos e nos acalentavam nos regaços. Ó meninos, ó noites, ó sobrados!

(Do "Livro de

Sonetos") 74 —

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Nas noites enluaradas as olheiras das donzelas suicidas dos sobrados iluminavam aves agoureiras e cães vadios tísicos e odiados.

E também vinham claunes embriagados e sonámbulas gatas borralheiras, sombras errantes, sombras forasteiras, rostos em cal e cinza transformados.

Nós éramos meninos evadidos nas insônias das febres e das asmas, os olhos pelas noites acordados.

Musas de infância ungiam meus sentidos. Eram musas infantes ou fantasmas? Õ meninos, ó noites, ó sobrados!

(Do "Livro de Sonetos")

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Essa pavana é para uma defunta infanta, bem-amada, ungida e santa, e que foi encerrada num profundo sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca ser retirada desse leito estranho em que repousa ouvindo essa pavana recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos, dos reveses e obstáculos da vida, das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama que anima esta defunta infanta ungida e bem-amada e para sempre santa.

(Do "Livro de Sonetos")

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Devolve-me tea hálito, delunta companheira tombada nos joelhos do Senhor, companheira de mãos juntas e enfaixados os ombros e os artelhos.

Um arcanjo augural teus lábios unta de bem-ungidos bálsamos vermelhos, mas não falas, não choras, não perguntas, não te miras nas fontes, nos espelhos,

Presença angelical, formosa esquiva, fonte da eterna vida, origem e causa, rosa que desfolhada se reaviva.

Nestes ermos, sem ti, 6 rosa airosa é-me consolo te chamar sem pausa: ó lâmpada marinha, ó oculta rosa.

(Do ""Livro de Sonetos")

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I

Um barão assinalado sem brasão, sem ¿ume e íama cumpre apenas o seu fado : amar, louvar sua dama, dia e noite navegar, que ê de aquém e de além-mar a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memórias, vai lembrado de seus dias, dias que são as histórias, histórias que são porfías de passados e futuros, naufrágios e outros apuros, descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas ou mesmo achadas, lá vão a todas as naus alertas de vária mastreacão, mastros que apontam caminho* a países de outros vinhos. Esta é a ébria embarcação.

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Barão ébrio, mas barêo, de manchas condecorado; entre o mar, o céu e o chão fala sem ser escutado a peixes, homens e aves, bocas e bicos, com chaves, e ê/e sem chaves na mão.

(De "Invenção de Orfeu")

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II

A ilha ninguém achou porque todos a sabíamos. Mesmo nos olhos havia Uma clafa geografia.

Mesmo nesse fim de mar qualquer ilha se encontrava, mesmo sem mar e sem fim, mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos, mesmo sem vagas e areias, há sempre um copo de mar para um homem navegar.

Nem achada e nem não vista nem descrita nem viagem; há aventuras de partidas porém nunca acontecidas.

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Chegados nunca chegamos eu e a ilha movediça. Móvel terra, céu incerto, mundo jamais descoberto.

Indícios de canibais, sinais de céu e sargaços, aqui um mundo escondido geme num búzio perdido.

Rosa de ventos na testa, maré rasa, aljôfre, pérolas, domingos de pascoelas. E esse veleiro sem velas!

Afinal: ilha de praias. Quereis outros achamentos além dessas ventanias tão tristes, tão alegrias ?

(De "Invenção de Orfeu")

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XV

 garupa da vaca era palustre e bela, urna penugem havia em seu queixo formoso: e na Ironie lunada onda ardia unia estrela pairava um pensamento em constante repouso.

Esta a imagem da vaca, a mam pura e singela que do fundo do sonho eu às vezes esposo e conlunde-se à noite à outra imagem daquela que ama me amamentou e jaz no último pouso.

Escuto-lhe o mugido — era o meu acalanto, e seu olhar tão doce inda sinto no meu : o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.

Contundo-os nessa ganga iníorme que é meu canto : temblante e leite, a vaca e a mulher que me deu o leite e a suavidade a manar de dois seios.

(De "Invenção de Orfeu")

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XVIII

Éguas vieram, à tarde, perseguidas. depositaram bostas sob as vides. Logo após borboletas vespertinas, gordas e veludosas como ortigas

sugar vieram c estéreo íumegante. Se as vísssis, vós dineis que o composto das asas e dos restos eram flores. Porque parecem sevos; nesse instante,

os nsjis belos centauros do alto empíreo, pelas pétalas desceram atraídos, e agora debruçados formam círculos; depois as beijam como beijam lírios.

(De "Invenção de Orfeu")

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XXVI

Qualquer que seja a chuva desses campos devemos esperar pelos estios; e ao chegar os serões e os fiéis enganos amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos e os ninhos imortais forem vazios, há de haver pelo menos por ali os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde e julga tê-los em seus próprios bicos, e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas, possa mirar-se as asas depenadas e contentar-se com as secretas penas.

(De "Invenção de Orfeu")

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Ill

Vinha boiando o corpo adolescente, belo pastor e sonho perturbado. Deus abaixou-lhe os cílios alongados para que ê/e dormindo flutuasse.

Ressuscita-o Senlior, essa medusa de sangue juvenil em rosto impúbere, desterrado da vida, flor perdida, irmão gêmeo de Apoio trimagista.

Seca-lhe a espuma que lhe inunda o peito e as convulsões mortais que o imolaram às sodomas ardidas em seu leito.

Anjo adoecido, alheio dançarino que dançaste em Gomorras incendiadas. estás cansado; deita-te, menino!

(De "Invenção de Orfeu")

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XV

Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia e a comida que acaso desejares, e algum poema que ilumine os ares menos que a luz malsá riessa candeia.

Aqui teres o peixe desses mares e o mais gostoso mel de toda a aideia. De onde vens? De que cimos? De que altares? Que luz angelical te agita a veia ?

Como te chamas vida da outra vida, espelho noutro espelho transmudado, lume na minlia luz anoitecida?

Serás o dia à noite do outro i ado de meu ser que nas trevas se apagou? Ou serás qualquer lume que não sou?

(De "Invenção de Orfeu")

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I

Um monstro tlui neste poema íeito de úmido sal-gema.

A abóbada estreita mona a loucura cotidiana.

Pra me salvar da loucura como sal-gema. Eis a cura.

O ar imenso amadurece, a água nasce, a pedra cresce.

Mas desde quando esse rio corre no leito vazio ?

Vede que arrasta cabeças, frontes sumidas, espessas.

E são minhas as medusas, cabeças de estranhas musas.

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Mas nem tristeza e alegria cindem a noite, do dia.

Se vós não tendes sal-gema, não entreis nesse poema.

(De "Invenção de Orfeu")

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XIII

A tristeza era tanta, tanta a mágoa que seu anjo da guarda resolvera lutar com êle, lutar para lutar, que o interesse da vida perecera.

Ave e serpente, círculo e pirâmide, os olhos em fuzil e os doces olhos, os laços, os vôos livres e as escamas.

Que doida simetria nesses ódios! Que forças transcendentes aros e ângulos

alguém quis que lutassem nesse dia!

Ave e serpente, círculo e piràmide :

Que divina constante simetria nessa luta soturna, nessa liça em que Deus reconstrói o eterno cisne!

(De "Invenção de Orfeu")

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XIV e XV

Nasce do suor da febre urna alimaña que a horas certas volta pressurosa. Crio no jarro sempre alguma rosa. A besta rói a flor imaginária.

Depois descreve em torno ao leito uma área do picadeiro em que galopa. Encare-a o meu espanto, vem a besta irosa e desbasta-me o juízo em sua ¿rosa.

Depois repousa as patas em meu peito e me oprime com fé obsidional. Torno-me exangue e mártir no meu leito,

repito-lhe o que sou, que sou mortal. E ela me diz que invento èsse delirio : e planta-se no jarro e nasce em lírio.

(De 'Invenção de Orfeu")

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XVI

Se essa tabula continua matem antes seu cavalo, não só o cavalo mas sua presença, ausência e intervalo; não faz mal que eu me desmonte e me vá só e esquecido, quero apenas que me conte alguém tè-lo acometido, que o arrancou de seus cascos, que o derrubou de seus topes, que lhe assacou feios ascos, privando-o de seus galopes; e que depois o atingiu com lança baixa no peito que dentro dele a imergiu com ial fereza e tal jeito, que relinchos e nobrezas sob os pauis se esconderam e em dormentes correntezas para sempre se perderam*.

Praticai esse jocundo íeito, ó amigo, sem olhá-lo : Não hâ olhos nesse mundo mais tristes que os do cavalo

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Nem eleveis enternecer-vos para mais fundo extingui-lo em seu sangue, carne e nervos, cauda, crina e gorgomilo e seu peito espostejado desprovido de medalhas, o chão da casa salgado, as asas duas cangalhas, sua carreira um despojo podrido de seus orgulhos. Se houver além das crinas coisas ainda a matar jogai-as sobre as ravinas que se despenham no mar. Cumpre de novo afogá-lo com destino mais preciso, e seu cavaleiro acordá-lo no último dia de Juízo.

(De "Invenção de Orfeu")

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Era uma vez um povo de marujos que quis passar às índias impossíveis, dobrando cabos, moçambiques, bacos, nadando em Áfricas desertas e armadilhas. Ó herança em meu sangue, devastada! Ó piloto afogado, ó rei sem nau!

Mas é preciso vento, não torpores, caravelas mais bêbadas no mar. Ó manjares de Goa, ó iel de mouros! Ó melindanos, ó grandezas minhas ! Ô naufrágios finais com os vastos sons da tuba dos avós descobridores!

Amo-vos sons e formas de aventuras, heróis de mares, terras de mourama, silvos de ventos, vagas fugidias, paz de combates, chinas inventadas, ocidentes, orientes, suis sem água, e nortes, nortes nunca conquistados.

Amo-te "idioma-vasco", sempre ouvido no clima dessas quiloas afogadas, esses mares antigos navegados, escorbutos comendo a língua viva, sebastianismos vendo irreais reinos, essa linguagem toda, minha fala.

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lingua remota, língua de presenças, de suscitadas ressonâncias, amo-a, que me deu a experiência dos abismos e também das realidades inefáveis e também da saudade amarga e doce, e também das verdades mais ardentes.

Em suas ressonâncias ouvi esses países que ficaram no subsolo enoitados, sonhados, pressupostos, dentro em mim, encrustados, refrangidos, contrapostos, aliás inquisidores, aliás, à outra língua, doce língua.

(De "Invenção de Orfeu")

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