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Inventrio Nacional de Referncias Culturais
Vale doamanhecer
Sueritedci do Iphan o Distrito Federl
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Inventrio Nacional de Referncias Culturais
Vale doamanhecer
Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal
Braslia 2010
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Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva
Ministro da Cultura
Juca Ferreira
Presidente do IPHANLuiz Fernando de Almeida
Diretora de Planejamento e AdministraoMaria Emlia Nascimento Santos
Diretor de Patrimnio Material e FiscalizaoDalmo Vieira Filho
Diretora de Patrimnio ImaterialMarcia Sant Anna
Diretora de Articulao e FomentoMrcia Helena Gonalves Rollemberg
Superintendente do IPHAN no Distrito FederalAlfredo Gastal
Chee da Coordenao TcnicaTereza Lagioia
Chee da Coordenao AdministrativaGuilherme Cabral Junior
Coordenao da PublicaoRodrigo Martins RamassoteGiorge Bessoni
Superintendncia do IPHAN no Distrito FederalSBN Quadra 2 Ed. Engenheiro Paulo Maurcio 12 andarCep 70040-905 Braslia/DF
Telefone: (61) 2024-6464http://www.iphan.gov.br
Associao Positiva de Braslia (APB)Glucia Oliveira AbreuLcia Augusta de Vasconcelos
PesquisaDeis Siqueira (Coordenadora)Marcelo Reis (Supervisor de Campo)Jairo Zelaya LeiteLenio Matos GomesMrcio da Silva Santos
Tnia Quaresma
TextosDeis Siqueira
Jairo Zelaya LeiteMarcelo ReisRodrigo Martins Ramassote
Projeto Grfco e Tratamento de ImagensPaulo Roberto Pereira Pinto
Pesquisa iconogrfcaJairo Zelaya LeiteMarcelo ReisPaulo Roberto Pereira Pinto
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA ALOSIO MAGALHES
S959i Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal.Vale do Amanhecer: Inventrio Nacional de
Referncias Culturais / Deis Siqueira, Marcelo Reis,Jairo Zelaya Leite, Rodrigo M. Ramassote. Braslia, DF:Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal, 2010.
276 p. : il. color. ; 22 cm.
1. Vale do Amanhecer - DF. 2. Patrimnio CulturalImaterial. 3. Lugar Sagrado. I. Siqueira, Deis. II. Reis,Marcelo. III. Zelaya, Jairo. IV. Ramassote, Rodrigo M. IV.
Ttulo.CDD 299
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Sumrio
Apresentao
IntroduoCaptulo I
Braslia Mstica
Captulo IIVale do Amanhecer:
aspectos de sua dimenso cultural
Captulo IIITia Neiva:
traos de um itinerrio existencial
As palavras e as coisas:apontamentos sobre possveis aes de
salvaguarda no Vale do Amanhecer
Referncias
Glossrio
Termos prprios do Vale do Amanhecer
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33
85
163
233
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Apresentao
INRC DO VALE DO AMANHECER 5
A partir de 04 de agosto de 2000, por efeito
do Decreto 3551, que instituiu o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa
Nacional de Patrimnio Imaterial, o Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)vem realizando polticas pblicas voltadas para o
reconhecimento, a valorizao e o apoio sustentvel
aos chamados bens culturais de natureza imaterial.
Desde ento, ofcios e modos de fazer tradicionais,
formas de expresso (musicais, coreogrcas, cni-
cas, literrias e ldicas), lugares onde se concentram
ou se reproduzem prticas culturais e celebraescoletivas associadas, em especial, a minorias tnicas
e segmentos sociais marginalizados, passaram a ser,
de modo sistemtico, objeto de aes de invent-
rios, de proposies de registros e de projetos de
salvaguarda.
Nesse contexto, grande parte das unidades do
IPHAN, dispersas por todos os estados do pas, come-
ou a receber demandas ou ento denir potenciais
reas de atuao de inventrios e possveis registros.
Na Superintendncia do IPHAN do Distrito Federal, anfase analtica foi colocada na Braslia mstica, com
a realizao de pesquisas e inventrios voltados para
o conhecimento das principais caractersticas da
demanda religiosa local. Dentre eles, dois se desta-
caram: o Inventrio Nacional de Referncias Culturais
(INRC) dos Lugares de Culto de Matrizes Africanas e
Afro-Brasileiras e o Inventrio Nacional de RefernciasCulturais (INRC) do Vale do Amanhecer.
Sabe-se que a construo de Braslia, ocorrida
h cinqenta anos, est envolta numa narrativa len-
dria de cunhos modernizante e mstico , apoiada
em profecias, indcios e inferncias que evidenciam
Alfredo GastalSuperintendente do IPHAN no Distrito Federal
Rodrigo Martins RamassoteAntroplogo Superintendncia do IPHAN-DF
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APRESENTAO
INRC DO VALE DO AMANHECER6
certas predestinao mstica e vocao desen-
volvimentista da capital. Da tica modernizante,
constituem exemplares expressivos o planejamento
urbano e a arquitetura futurista do chamado Plano
Piloto. Os polticos, intelectuais, artistas e plane-
jadores que participaram da fundao de Braslia
sonhavam instaurar uma civitas no Brasil, inaugu-
rando assim um novo tempo, de desenvolvimento,
no qual Braslia seria a primeira prova da capacidade
de modernizao e progresso do povo brasileiro. A
nova capital do pas proporcionaria, assim, o surgi-mento de uma nova civilizao, no contexto de
uma urbe sustentada pela viso de igualdade e um
espao urbano que possibilitasse a diminuio de
diferenas econmicas e de status social. Do ngulo
mstico-religioso chamam a ateno as profecias do
padre catlico Dom Bosco, que, em 1882 ou 1883,
teria tido sonhos e vises que previam um futurograndioso para a Amrica do Sul, particularmente
para o Brasil, mais precisamente entre os paralelos
de 15 e 20, onde surgiria uma terra prometida, uma
grande civilizao de riqueza incomensurvel no
Planalto. Destaque-se que em 1956 foi inaugurada
a Ermida Dom Bosco, s margens do Lago Parano,
justamente na passagem do paralelo 15. A esta pro-
fecia do clrigo se somaram outras identicaes de
cunho mstico a Braslia: chakra cardaco do Planeta
Terra; centro irradiador de poder e energia; regio
onde se dar a prxima civilizao de Aquarius;
Nova Civilizao do Terceiro Milnio. Assim, o mito
foi-se tornando lenda e, gradativamente, foi-se plas-
mando no imaginrio social da populao local; est
formado um terreno propcio para as novas religiosi-
dades que foram surgindo juntamente com a nova
capital, como o caso da Cidade Ecltica, da Cidade
da Fraternidade, do Vale do Amanhecer.
Situado na Regio Administrativa de Planaltina
RA VII, onde vive uma populao superior a 25 mil
habitantes, entre mdiuns residentes e pessoas sem
liao com a doutrina, o Vale do Amanhecer o
nome pelo qual conhecida a comunidade religiosaocialmente denominada Obras Sociais da Ordem
Espiritualista Crist OSOEC. Historicamente, seu
percurso confunde-se com a vida da mdium Neiva
Chaves Zelaya, popularmente conhecida como Tia
Neiva. Em 1957, data em que as obras de Braslia
foram iniciadas, Tia Neiva que trabalha como cami-
nhoneira na construo dos prdios da capital acometida por conitos de denio e aceitao de
sua mediunidade; a sua superao ocorreu mediante
as conrmaes e a consolidao de suas vises. Sua
relao com o sagrado passa a se solidicar, e o reco-
nhecimento de sua mediunidade encontra parcerias
em outras pessoas.
A partir de ento, Tia Neiva comea a realizar
trabalhos de cunho espiritual ancorados em sua
mediunidade no Ncleo Bandeirante, onde residia.
Em 1959, juntamente com um tmido grupo de reli-
giosos, funda na regio da Serra do Ouro, no municpio
de Alexnia, Gois, a Unio Espiritualista Seta Branca
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APRESENTAO
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UESB. J instalada na Serra do Ouro, a pequena
comunidade no parava de receber novos adeptos.
Em fevereiro de 1964, Tia Neiva e seu grupo se
transferem para Taguatinga, mais precisamente para
a QNC 11, Lote 15. o m da UESB e o comeo da
OSOEC, fundada em 30 de junho do mesmo ano.
Esse acontecimento entendido por alguns adep-
tos como decisivo para a expanso da comunidade
religiosa. No entanto, Taguatinga ainda no seria o
ltimo local deste grupo.
Conforme os adeptos acreditam, orientados pelaEspiritualidade, o grupo foi guiado para os arredores
de Planaltina e, no ano de 1969, estabelece suas razes
e crenas no espao hoje conhecido como Vale do
Amanhecer. Da em diante muitas transformaes se
processaram. Num perodo que soma pouco mais de
meio sculo, um fenmeno religioso em que se identi-
ca a partilha de diversos bens simblicos e materiais,integrados num espao urbano criado para tal m,
e mantido, sobretudo, pela solidariedade social em
torno desse universo ritualstico-doutrinrio complexo,
composto de elementos religiosos de matrizes distin-
tas, mas integrados em um conjunto coeso e unicado
em torno da manuteno da assistncia espiritual,
ganhou relevo dentro do contexto territorial de Braslia.
A organizao espacial do territrio do Vale do
Amanhecer foi instituda a partir de coordenadas
espirituais acolhidas e retransmitidas por Tia Neiva,
traadas diretamente no cho, estabelecendo os limi-
tes e a localizao dos espaos sagrados e dos demais
edifcios. A arquitetura desses prdios e a congura-
o dos espaos pblicos se caracterizam por uma
expressiva carga simblica, apreensvel e decodic-
vel para os iniciados e praticantes, em que se observa
referncias arquitetnicas a mltiplas origens, histori-
camente reconhecveis (egpcia, pr-colombiana etc),
e a outras fontes diversas, articuladas livremente, com
destaque para o uso das cores e das formas.
Nesse sentido, a operao de apropriao no
erudita das referncias produz um resultado imag-
tico impactante, de expresso direta, viabilizando suaapreenso popular. Este procedimento equivale, no
limite, lgica de elaborao dapop art, sem preten-
der s-lo. E assim, ao fundir tantas referncias, apenas
guisa de categorizao, tal produo poderia ser
denominada, por um neologismo, de pop-sincrtico.
A concatenao da urbanizao e da arquitetura
com a cultura vigente neste lcus d-se de formaharmnica, integrando crenas espirituais com
matria e espao, num todo esttico que embora
possa se opor ao gosto burgus, ou ao dito rena-
mento letrado, adqua-se aos objetivos litrgicos e
sociais para os quais foi projetado.
Por seu carter estruturador e inclusivo, a catego-
ria de lugar tornou-se o o condutor adequado para
a apreenso dos principais elementos rituais e dou-
trinrios existentes no Vale do Amanhecer, expressos
em linguagens, performances e iconograas diversas.
Dentre os vrios espaos que compem o seu com-
plexo arquitetnico-paisagstico-ritual, deniram-se
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APRESENTAO
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dois lugares focais como particularmente signicati-
vos: rea do Templo (inclusos o Templo-Me, Turigano
e a Estrela de Nerhu, Casa Grande, Cabana do
Pequeno Paj, Estrela de Davi, Biblioteca do Jaguar,
Bonrio, Salo do Grupo Jovem, estacionamento,
hotel e blocos comerciais) e o Solar dos Mdiuns
(abrangendo a Estrela Candente, Cachoeira do
Jaguar, Cabala dos Delfos, Orculo de Koatay 108,
Quadrantes e Pirmide). Um e outro lugares acomo-
dam atividades ritualsticas cotidianas e eventuais,
concentrando o maior nmero de adeptos.Seguindo as diretrizes metodolgicas do INRC,
a Superintendncia do IPHAN no DF contratou uma
equipe de pesquisa etnogrca composta por estu-
diosos, adeptos e interessados para a realizao do
inventrio do Vale do Amanhecer. Entre ns de 2007
e maro de 2009, foram realizadas pesquisas de
campo, entrevistas, preenchimento de chas, levan-tamento documental e reunies com lideranas
do local com o intuito de aprofundar o conheci-
mento sobre a localidade. Ao longo do processo
de pesquisa, dividido em duas etapas (a saber:
Levantamento preliminar e Identicao), foram
identicadas 62 referncias culturais, 28 pessoas para
contato, 103 indicaes bibliogrcas e reunidos 79
registros audiovisuais.
Com esta publicao, realizada simultanea-
mente com a criao de um banco de imagens, a
Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal traz
a pblico os resultados alcanados nesses trs anos
de atividades, esperando com isso contribuir para o
melhor entendimento da dinmica cultural e religiosado Vale do Amanhecer, promover a implementao, de
fato, de direitos sancionados pela Constituio Federal,
bem como combater o preconceito, a intolerncia reli-
giosa e o etnocentrismo que, eventualmente, possam
permear a apreciao do local por parte da mdia, de
outros grupos religiosos e da sociedade. Espera-se ainda
contribuir para o avano do entendimento sobre estelugar diferenciado, apresentando material iconogrco
e uma descrio detalhada das lideranas que constru-
ram a sua trajetria de meio sculo de existncia.
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APRESENTAO
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Raul Oscar Zelaya ChavesPresidente da Ordem Espiritualista Crist Vale do Amanhecer
O Vale do Amanhecer uma doutrina espi-
ritualista crist fundada em 1959 pela mdium
clarividente Neiva Chaves Zelaya, mundialmente
conhecida como Tia Neiva, falecida em 1985.
Tia Neiva, sergipana de nascimento, parti-
cipou da construo de Braslia como motorista
prossional caminhoneira ento devidamente
contratada pela Novacap. Com a descoberta de sua
mediunidade, Tia Neiva, por orientao espiritual,
criou, em 1959, a UESB Unio Espiritualista Seta
Branca, primeira manifestao comunitria do Vale
do Amanhecer, em uma rea conhecida como Serra
do Ouro, no municpio de Alexnia, em Gois. Seusdons medinicos tornaram-se conhecidos na regio
e em Braslia.
Tambm por orientao dos espritos, Tia Neiva
mudou-se com seus lhos e seguidores, em 1964,
para Taguatinga. Em 1969, xou-se no local onde
existe, at hoje, o Vale do Amanhecer, prximo a
Planaltina.Atualmente, a Doutrina do Amanhecer tem
cerca de 800 mil mdiuns ativos no Templo-Me
e em mais de 600 templos localizados em todos
os estados da federao e em outros pases, como
Estados Unidos, Portugal, Espanha, Alemanha, Japo
e Bolvia.
Com indumentrias, rituais e ensinamentos
exclusivos de nossa doutrina, alm de elementos
sincreticamente conjugados de religies e doutrinas
antigas, como o Budismo, o Hindusmo, o Candombl
e o Catolicismo, o Vale do Amanhecer se tornou alvo
da curiosidade e do interesse da populao brasileira,
atraindo turistas, pesquisadores, religiosos, estudantes,
prossionais da imprensa brasileira e internacional,
assim como pessoas de todas as classes sociais. O
atendimento aos pacientes, como so chamados
os freqentadores no-adeptos de nossos trabalhos,funciona diariamente, das 10h00 s 21h00, em carter
ocial, e nas 24 horas do dia, em regime de planto.
A comunidade e o corpo medinico do Vale do
Amanhecer agradecem Superintendncia do IPHAN
no Distrito Federal pelo belssimo inventrio, apresen-
tado neste livro, assim como expressam o desejo de
verem reconhecidas a nossa cultura e as nossas tra-dies como um patrimnio do povo brasileiro. Este
reconhecimento seria uma grande homenagem aos
brasileiros que nela crem, que a ela estimam e que
por ela foram, so e sero beneciados.
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Introduo
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Impactam quantitativa e qualitativamente o
leigo as celebraes desenvolvidas pela comuni-
dade do Vale do Amanhecer. O calendrio, marcado
por ritos cotidianos (Retiro, Trabalho Ocial, Escalada,
Quadrante, Unicao), consagraes (Consagraode Enlevo, Consagrao de Falanges do Mestrado,
Consagrao de Falanges Missionrias, Consagrao
de Adjuntos, Consagrao do Dia do Doutrinador),
festividades (Troca de Rosas, Semana de Koatay
108, Festas Ciganas, estas ltimas promovidas oca-
sionalmente por alguns adjuntos de Povo), eventos
intempestivos (reunies com o corpo medinico ou
segmentos especcos deste, Unicao Especial)
verdadeiramente representativo de como os adep-
tos se vem enredados em uma rede de sentidos
e de prticas em que o sagrado ganha relevos pro-
nunciados e contribui para a denio dos pers
Deis SiqueiraDoutora em Sociologia (Universidade de Braslia)
Marcelo ReisDoutor em Histria (Universidade Estadual de Gois)
identitrios dos que ali investem suas experincias e
expectativas.
As formas de expresso, ofcios e modos de fazer
no se apresentam menos numerosos na contextura
do Amanhecer. Os rituais e a cotidianidade que con-ferem singularidade ao Vale se cumprem mediante a
observncia de uma soma de princpios, de ordenaes
e de prticas, que, assim depreendemos, convencem-
se em um roteiro de sentida complexidade e cuja
perfeita execuo se d em razo do compromisso e,
no raro, da abnegao de um quadro de ociantes,
que, informados por uma tradio, denem-se, direta
ou indiretamente, instrudos e legitimados por Tia
Neiva, a matriz do movimento religioso em tela.
Vrias religiosidades no convencionais nas-
ceram com a Nova Capital. Entretanto, enquanto
muitas tenderam ao esvaziamento ou apenas se
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INTRODU
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mantm, o Vale do Amanhecer no pra de crescer,
ultrapassando vrios tipos de fronteiras. Em 2010,
contabilizam os adeptos, a doutrina do Amanhecer
soma mais de setecentos templos instalados noBrasil e mais de uma dezena de unidades templrias
no exterior,incluindo o Japo, a Alemanha e os EUA.
Em face da importncia do Vale do Amanhecer
para a construo do patrimnio e da identidade
cultural de Braslia, a Superintendncia do IPHAN no
Distrito Federal, a partir de agosto de 2007, promo-
veu o incio do Inventrio Nacional de RefernciasCulturais (INRC)-Vale do Amanhecer, com a realiza-
o do Levantamento Preliminar, no qual foram
identicadas 62 referncias culturais, 28 pessoas para
contato, 103 indicaes bibliogrcas e 79 registros
audiovisuais, e da Identicao, em que em que
se discutiu, em relatrio analtico nal, as categorias
de espao, territrio, memria, paisagem cultural
e geograa cultural, culminando na compreenso
do Vale do Amanhecer como lugar sagrado, isto ,
um lugar imantado, desde a sua escolha, em 1969,
como futura sede da entidade Obras Sociais da
Ordem Espiritualista Crist (OSOEC), pela dimenso
da sacralidade: um lugar diferenciado consagrado
reproduo e difuso de sua prpria doutrina.
O INRC do Vale do Amanhecer o primeiro
trabalho integrante de um possvel inventrio, maisgeral, consagrado Braslia Mstica, dimenso pre-
sente no imaginrio social de muitos habitantes
da Capital e pesquisada por socilogos e antrop-
logos. Nesse sentido, soma-se ao INRC do Vale do
Amanhecer um segundo inventrio, dedicado aos
Lugares de Culto de Matriz Africana e Afro-brasileira
do DF e Entorno, o qual se encontra em andamento1
.O presente trabalho considera a importncia da
ampliao da idia de patrimnio cultural, promulgada
pelos artigos 215 e 216 da Constituio Federal de 1988
e contemplada pelo Decreto-Lei 3551, de 04 de agosto
de 2000. Tais instrumentos legais vinculam idia
de patrimnio cultural no apenas bens de natureza
material, especialmente os chamados de pedra e cal,
mas passam a assimilar prticas culturais expressivas da
diversidade cultural brasileira, constituda por manifes-
taes oriundas de diferentes grupos que a compem.
O IPHAN responsvel por preservar a diversi-
dade cultural que caracteriza a sociedade brasileira, o
1 O INRC dos Lugares de Culto de Matrizes Africanas e Afro-brasileiras teve incio em 2008, a partir da solicitao de adeptos, preva-lentemente de casas de Umbanda e Candombl, para preservao de lugares centraisde culto e para considerao dos terreirosnas aes de planejamento territorial. Como logo cou claro que a localizao das casas extrapolava os limites territoriais do DistritoFederal, situadas na regio compreendida pelo Entorno, embora mantendo uma ligao com a cidade de Braslia, decidiu-seestender os limites territoriais da pesquisa. At o momento, foram realizadas as fases de Levantamento Preliminar, ocorrida entresetembro de 2008 e agosto de 2009, na qual foram identicados 26 terreiros em atividade, com a aplicao de questionrios do INRCem 20 deles, e fase de Identicao, a partir de setembro de 2009, que aprofundou o conhecimento sobre os terreiros da regiodemarcada ao ampliar o nmero de terreiros identicados.
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INTRODU
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que implica conservar, divulgar e scalizar o patrim-
nio cultural nacional, alm de assegurar a permanncia
e o usufruto deste para a atual e as futuras geraes.
Portanto, o IPHAN compreende patrimnio culturalcomo formas de expresso, modos de criar e de fazer;
criaes cientcas, artsticas e tecnolgicas; obras,
objetos, documentos, edicaes; conjuntos urbanos
e stios de valor histrico, paisagstico, artstico, arque-
olgico, paleontolgico, ecolgico etc.
Importa revalidar2: a partir de 04 de agosto de
2000, por efeito do Decreto 3551, que instituiu oRegistro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou
o Programa Nacional de Patrimnio Imaterial, o rgo
vem desempenhando polticas pblicas voltadas para
o reconhecimento, a valorizao e o apoio sustentvel
aos chamados bens culturais de natureza imaterial.
Desde ento, ofcios e modos de fazer tradicionais,
formas de expresso (musicais, coreogrcas, cnicas,
literrias e ldicas), lugares onde se concentram ou se
reproduzem prticas culturais e celebraes coletivas
associadas, em especial, a minorias tnicas e segmen-
tos sociais marginalizados, passaram a ser, de modo
sistemtico, objeto de aes de inventrios, de propo-
sies de registros e de projetos de salvaguarda.
De uso e difuso recentes, a expressopatrim-
nio imaterial ainda causa celeuma e algum equvoco,
tanto no mbito do debate acadmico quanto entre
os prprios grupos sociais a cujos universos de prticas
e representaes culturais o termo se refere. Conforme
dene o 2 artigo da Conveno para a Salvaguardado Patrimnio Cultural Imaterial, ocorrida em Paris, em
2003, a expresso patrimnio imaterial designa
(...) as prticas, representaes, expresses,
conhecimentos e tcnicas junto com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares que
lhes so associados que as comunidades,os grupos e, em alguns casos, os indivduos
reconhecem como parte integrante de seu
patrimnio cultural. Este patrimnio cultural
imaterial, que se transmite de gerao em
gerao, constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em funo de seu
ambiente, de sua interao com a natureza
e de sua histria, gerando um sentimento
de identidade e continuidade, contribuindo
assim para promover o respeito diversidade
cultural e criatividade humana.3
Embora tenha sido promulgado recentemente,
cabe lembrar que a instituio do Decreto 3551 repre-
senta, dentro do IPHAN, o ponto culminante de um
2 A discusso referente legislao de patrimnio deste captulo se apia no seguinte texto: Ramassote, Rodrigo Martins; Bessoni, Giorge.Patrimnio imaterial: aes e projetos da Superintendncia do IPHAN no DF. Braslia: Superintendncia do IPHAN no DF/Grca Brasil, 2010.
3 Cury, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais.3 Ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 373.
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longo processo de iniciativas que remontam, no
limite, ao anteprojeto elaborado em 1936 por Mrio
de Andrade para a criao do rgo, no qual j se
previa o estudo e reconhecimento de expressesculturais populares. Por razes diversas, tal perspec-
tiva no foi implementada naquele momento, mas
uma srie de eventos, movimentos e experincias
posteriores podem ser identicados como marcos
decisivos que impulsionaram tanto a elaborao e
regulamentao da legislao nacional a respeito
da matria quanto a formulao de instrumentos jurdicos e administrativos e formas apropriadas de
acautelamento que levassem em conta as caracte-
rsticas especcas dos bens em questo. Dentre eles,
destacam-se: a) Campanha Nacional do Folclore, vin-
culada ao Ministrio da Educao e Cultura, iniciada na
segunda metade da dcada de quarenta; b) a criao,
em 1975, sob a coordenao de Alosio Magalhes,
do Centro Nacional de Referncias Culturais (CNRC),
preocupado em empreender um conjunto de ini-
ciativas empenhadas em repensar a concepo de
patrimnio ento vigente e ampliar o repertrio de
reas de atuaes das polticas pblicas de patrim-
nio; c)a adoo, pela Constituio Federal de 1988, da
concepo de patrimnio cultural formada por suas
dimenses material e imaterial (artigos 215 e 216); c)o Seminrio Patrimnio Imaterial: estratgias e formas
de proteo, realizado em Fortaleza (CE), em 1997, no
qual se discutiu estratgias e formas de proteo ao
patrimnio imaterial, produzindo a Carta de Fortaleza;
d) experincia-piloto de aplicao do mtodo preconi-
zado pelo Inventrio Nacional de Referncias Culturais
(INRC), realizada em 1999 na regio do Museu Aberto
do Descobrimento, em Porto Seguro (BA).Desde 2002, quando o primeiro bem de natureza
imaterial foi registrado a saber, o Ofcio das Paneleiras
de Goiabeiras (ES), no Livro dos Saberes as polticas
pblicas de patrimnio na rea vm atuando na dire-
o da incluso de referncias culturais relacionadas
a segmentos sociais at ento ocialmente relegados
dentro do rgo, procurando cumprir as determinaesconstitucionais instauradas pela letra da Constituio
Federal, promulgada em 1988, cuja noo de patrim-
nio cultural denida pelo artigo 216 como:
Constituem patrimnio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial tomados
individualmente ou em conjunto, portadores
de reerncia identidade, ao, memria
dos dierentes grupos ormadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem: I - as ormas de
expresso; II - os modos de criar, azer e viver; III - as
criaes cientfcas, artsticas e tecnolgicas; IV - as
obras, objetos, documentos, edifcaes e demais
espaos destinados s maniestaes artstico-
culturais; V - os conjuntos urbanos e stios de valor
histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico,
paleontolgico, ecolgico e cientfco
Pargrao 1. O poder pblico, com a colabo-
rao da comunidade, promover e proteger
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o patrimnio cultural brasileiro por meio de
inventrios, registro, vigilncia, tombamento e
desapropriao, e de outras ormas de acaute-
lamento e preservao.4
Se as dimenses materiais e imateriais do patri-
mnio so conceitualmente concebidas como
complementares e indissociveis, no que se refere
gesto e protees legais envolvidas com bens de
natureza material e bens de natureza imaterial h
ntidas diferenas de abordagens: para garantir a inte-
gridade do bem tombado, so necessrias vistorias,
visitas tcnicas, scalizaes e, caso necessrio, emisso
de autorizaes, noticaes e embargos. J em relao
ao registro, o Decreto 3551 assegura ao bem registrado
documentao por todos os meios tcnicos admiti-
dos, cabendo ao IPHAN manter banco de dados com
o material produzido durante a instruo do processo,
bem como ampla divulgao e promoo. Enquantoo tombamento busca promover a proteo e conser-
vao das caractersticas de interesse preservao de
uma obra de arte ou edicao ou stio arqueolgico, o
instrumento do registro pressupe o carter processual
e dinmico das formas e signicados dos bens sob sua
alada, submetidos por seus praticantes a um contnuo
processo de recriao e atualizao, colocando nfase,
sobretudo, na sua continuidade histrica e referncia
identitria para uma coletividade. Da a substituio,
como esclarece Mrcia SantAnna, da
(...) idia de autenticidade ancorada na origi-
nalidade e permanncia de atributos tangveis
por outra, que tome como parmetro as pr-
ticas tradicionais e as dimenses sociais do
patrimnio, alm dos contextos culturais que
lhe conerem signifcado [...], a seleo e avalia-
o dos bens culturais imateriais devem estarapoiadas mais em noes de reerncia cultural
e de continuidade histrica do que no conceito
de autenticidade que tradicionalmente estru-
tura o campo da preservao.5
Um dos eixos responsveis por instaurar e cons-
tituir o patrimnio imaterial vincula-se ao conceito de
referncia cultural. Criada com base em experincias
anteriores do IPHAN nos municpios de Serro (MG),
Cidade de Gois (GO) e Diamantina (MG), a metodo-
logia do Inventrio Nacional de Referncias Culturais
(INRC) foi aplicada pela primeira vez na rea do
Museu Aberto do Descobrimento (MADE), na costa
sul da Bahia, em 1999. A partir de ento, sua aplicao
foi adotada e normatizada, com os devidos ajustes a
4 BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organizao dotexto: Juarez de Oliveira. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1990. (Srie Legislao Brasileira).
5 Cf. SantAnna, Mrcia. A face imaterial do patrimnio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorizao. In: Abreu,Regina; Chagas, Mrio (orgs.). Memria e patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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cada contexto e bem cultural especco, pelos inven-
trios realizados pelas unidades do IPHAN.
A nfase do INRC se centra em torno dos produ-
tores dos bens culturais e no sobre os produtos, emsi mesmo, destacando, assim, o carter simblico (e
poltico) do processo de produo e de apropriao
do patrimnio cultural. Ou seja, trata-se, sobretudo,
de pesquisa e de reconhecimento de uma expresso
social como bem cultural, e no sinnimo de pro-
cesso de tombamento ou controle similar.
Anal, como a prpria denio do IPHAN dereferncia cultural explicita, o processo de produ-
o e de reproduo de um grupo social, de uma
comunidade, ancora-se na existncia de um universo
simblico compartilhado por um conjunto de atores
sociais. Compartilhamento que propicia a coeso e a
comunicao continuada entre esses mesmos atores.
E para que o conceito de referncia cultural seja
de fato operacionalizvel e ecaz, preciso vincul-
lo ao processo de produo e de reproduo social
de um grupo especco, ou de uma comunidade
real, o que, por sua vez, traz tona o conceito de
conito entre indivduos e grupos. Nas palavras de
Marisa Veloso: A tradio cultural ruto de uma tes-
situra muito complexa que os indivduos tecem a partir
de elementos da histria, da memria e do cotidiano.6Diante disso, no caso especco do Vale,
identica-se uma tradio cultural que, em termos
doutrinrios, apresenta-se de modo pronunciado:
Tia Neiva e a Doutrina do Amanhecer. Essas so as
fontes fundamentais que autorizam a existncia do
que se poderia chamar de um universo simblicocompartilhado coletivamente, cujos valores reli-
giosos so, sobretudo, os ingredientes que unem
a comunidade. Trata-se de um conjunto de cons-
trutos simblicos, responsveis por estabelecer a
dinmica de um processo cultural singular, que, em
anlise ltima, pe em relevo a maneira especca
como o grupo sociorreligoso ocupa, utiliza, valoriza,constri sua histria e suas edicaes e objetos,
conhecimentos, usos, costumes. Temticas que
podem ser melhor visualizadas se observado o cap-
tulo 3 do presente esforo descritivo e de anlise.
Desse ponto de vista, a distino entre patrim-
nio material e imaterial deve ser encarada do ngulo
meramente operacional, cunhada, sobretudo, para dis-
tinguir-se da materialidade da pedra e cal. A nosso ver,
os smbolos, valores, relaes, processos, cosmovises,
enm, tudo o que est embutido na noo de imaterial,
manifesta-se por meio de suportes fsicos, sejam estes
artefatos ou lugares especcos, celebraes, rituais, pr-
ticas, vestimentas, objetos, edifcios ou ofcios manuais,
ou ento, no limite, a mente e o corpo humano.
Em que pesem os desentendimentos polticosrelacionados conduo da Doutrina; dos pontos de
vista divergentes diante do crescimento nacional e
6 Veloso, Marisa. O fetiche do patrimnio. In: Habitus. Goinia, v. 4, n.1, jan./jun. 2006, p. 451.
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internacional do Vale do Amanhecer; dos existentes
entre as diferentes leituras sobre a Doutrina deixada
por Tia Neiva, pode-se armar que h uma atribuio
de sentido s prticas culturais e religiosas, as quaispermitem a construo de um marcador identitrio
compartilhado: adepto do Vale do Amanhecer.
Utilizando-nos das categorias do IPHAN, adianta-
mos que o Vale do Amanhecer est sendo considerado
como parte da LocalidadePlanaltina7. Essa a mais antiga
cidade do Distrito Federal, tendo sido fundada em 1859.
Foi integrada ao Distrito Federal (DF) em 1960, quandode sua criao. uma das Regies Administrativas (RA)
do DF. Tem a mais reputada encenao da Via Sacra do
DF, com a participao de um grande nmero de pes-
soas da regio e de outros estados brasileiros. O cenrio
para a Via Crucis o Morro da Santssima Trindade,conhecido como Morro da Capelinha.
O Vale, em 2003, contabilizava, entre mdiuns
residentes e moradores sem liao com a comuni-
dade religiosa, uma populao de cerca de vinte e duas
mil pessoas. Atualmente, estima-se que sua popula-
o seja superior a vinte e cinco mil habitantes. Dista
quarenta e cinco km do Plano Piloto, a sede do poderfederal e local.8 E Planaltina incorporada por Braslia.
7 Segundo o Manual do INRC: de acordo com as dimenses e a densidade cultural de um stio que venha a ser inventariado, pode serconveniente, para efeitos prticos, subdividi-lo em localidade .Cf. Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual deAplicao do Inventrio Nacional de Reerncias Culturais . Braslia: Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000.
8 O Vale do Amanhecer integra a rea de Proteo Ambiental das Bacias do So Bartolomeu. O decreto no. 25.928, de 14/06/2005
GDF cria o Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer na Regio Administrativa de Planaltina (RA VI).Art. 1 - Fica criado o Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer, na Regio Administrativa de Planaltina RA VI, na rea deProteo Ambiental das Bacias do So Bartolomeu, localizado em rea pblica. Pargrafo nico: O Parque de Uso Mltiplo Vale doAmanhecer, de que trata o caput deste artigo, tem rea total de 36.0318 hectares, e poligonal denida conforme coordenadas UTMconstantes da tabela anexa.Art. 2 - So Objetivos do Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer:I - conservar reas verdes, nativas, exticas ou restauradas, de grande beleza cnica;II - promover a recuperao de reas degradadas e a sua revegetao, com espcies nativas ou exticas;III - estimular o desenvolvimento da educao ambiental e das atividades de recreao e lazer em contato harmnico com a natureza.Art. 3 - A implantao, administrao, e manuteno do Parque so de competncia da Secretaria de Estado de Administrao deParques e Unidades de Conservao.
Art. 4 - O Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer regido pelas normas constantes da Lei Complementar n 265, de 14 dedezembro de 1999 e do Decreto Distrital n 9.417, de 21 de abril de 1986.Art. 5 - O regimento do Parque Ecolgico de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer ser elaborado pela Secretaria de Estado deAdministrao de Parques e Unidades de Conservao, no prazo de 90 dias, em parceria com a Comunidade da Subadministraodo Vale do Amanhecer.Art. 6 - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicao.Art. 7 - Revogam-se as disposies em contrrio. Joaquim D. Roriz GovernadorPublicado no DO/DF de 15.06.2005, p. 03.
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Esta, por sua vez, est sendo considerada como Stio.9
Como posto pelo prprio IPHAN, a identi-
cao de um sentido patrimonial constitui um dos
sustentculos necessrios para o registro de um bemcomo patrimnio imaterial. No Vale do Amanhecer,
elementos importantes capazes de consignar a
idia de patrimnio so observados se tomadas as
comemoraes e edicaes que nele observamos:
expresses culturais estas, de fundamentao reli-
giosa, sobretudo originadas de Tia Neiva.
Adiantamos ainda que, por se tratar o objetode estudo de uma Doutrina Espiritualista, apresen-
tam-se, nas vrias descries realizadas neste livro,
citaes de seres espirituais, os quais, conforme a
crena local, agem, governam, inuenciam prticas
e propem ensinamentos doutrinrios. Tratam-se
de personagens os mais diversos, representados nas
roupagens de ndios, pretos-velhos, sereias, mdi-
cos, ciganos, cavaleiros. Enm, de origens culturais
as mais diversas. Formam, sob a gide de um lder,
o Esprito de Pai Seta Branca, um grupo organizado
e com funes distribudas, que tem por nalidade
a manuteno e a assistncia espiritual da Doutrina.
Segundo o IPHAN10, o trabalho cultural de
construo de sentidos e sobre-signicaes base-
ados no concreto (pois no se trata de elementos
inerentes natureza de tais objetos, prticas, luga-res, o fato de serem associados identidade social),
confere, em termos reexivos, a estas realidades o
que se poderia chamar de sentido patrimonial. Isto ,
elas passam a integrar um repertrio diferenciado de
distncias com que se constroem as fronteiras sim-
blicas e com que se conguram as imagens de si e
dos outros. Seria este o seu valor, como ingredienteda construo de identidades, ou seja, de tradio e
de territrios. Assim, apesar dos conitos inerentes a
qualquer grupo ou comunidade,
(...) pode-se afrmar que a riqueza do patrim-
nio cultural consiste em seu poder de reorar
a idia de pertencimento ao todo coletivo, e
reorar a identidade social dos mais dierentes
grupos, trazendo para o espao pblico mlti-
plas maniestaes culturais, aastando, assim,
com a ora simblica de sua constituio,
todos os etiches e simulacros.11
9 Os Stios podem ser reconhecidos em diferentes escalas: vilas inteiras, bairros, zonas ou manchas, amplas regies geogrcas cul-turalmente diferenciadas e tradicionalmente reconhecveis ou mesma uma rea delimitada para efeitos da implantao de umadeterminada poltica. Cf. Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual de Aplicao do Inventrio Nacional deReerncias Culturais. Braslia: Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000.
10 Fonseca, Maria Ceclia Londres. Trs anos de existncia do Decreto 3551/2000. In: O registro do patrimnio imaterial: dossi nal dasatividades da comisso e do grupo de trabalho Patrimnio Imaterial. Braslia: Ministrio da Cultura/ IPHAN, 2003.
11 Veloso, Marisa. O fetiche do patrimnio. In: Habitus. Goinia, v. 4, n.1, jan./jun. 2006, p. 452.
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E por que o Vale do Amanhecer foi escolhido
entre tantos bens culturais existentes na capital do
Brasil? Entendemos que o Vale do Amanhecer cor-
responde concretizao mais evidente, completa ecomplexa da dimenso e da vocao da capital fede-
ral como cidade mstica, tema de que trataremos
com mais vagar no captulo inaugural deste livro,
cujo ttulo Braslia Mstica.
Estamos certos de que a criao de Braslia via-
bilizou, entre outras questes, o retorno do fenmeno
mstico-religioso ou a visibilidade do mesmo, o que,percebe-se, vem ocorrendo nas sociedades ocidentais.
Porque, considerados diversos grupos culturais, a busca
pelo sagrado insiste em gurar como uma prtica cul-
tural destacada. Por seu turno, o Vale do Amanhecer
se efetiva como um lugar capaz de abrigar referncias
religiosas mltiplas, parecendo ir ao encontro de uma
disposio ecumnica que, no imaginrio social, apre-
senta-se como um marco distintivo da capital federal.
No Brasil, a persistncia dos fenmenos ms-
tico-religiosos caracteriza-se como um trao cultural
fundante e essencial do ethos de seu povo. Braslia,
por sua vez, foi fundada a partir de uma interao
entre as dimenses do mstico e do mtico. As pre-
vises de D. Bosco, que acenavam para a imagem
de uma terra prometida, iluminaram e iluminammentes e caminhos. E na capital federal o retorno
do mstico-religioso-sagrado no ocorreu apenas na
dimenso arquitetnico-urbanstica, mas tambm
no plano social.
Ao retomar o Manual de Aplicao do INRC,sublinhamos que as referncias culturais cuidam de
apontar e delinear a identidade de uma determinada
comunidade ou grupo social: Sintetizando, armaria
que, para efeitos metodolgicos, o objeto do INRC
so atividades, lugares e bens materiais que cons-
tituam marcos e referncias de identidade para
determinado grupo social.12
E no h dvidas sobre a identidade especca
dos adeptos da Doutrina do Vale do Amanhecer. E
qual seria a importncia da presente pesquisa para o
Vale? Converte-se o INRC em um instrumento capaz
de contribuir com a ampliao do entendimento
e o eventual reconhecimento por parte do Estado
brasileiro do Vale do Amanhecer como referncia des-
tacada no conjunto do patrimnio cultural da regio.
Escolha religiosa deciso pessoal. Produo
social e bem cultural dizem respeito sociedade e ao
Estado, este ltimo enquanto representante e guar-
dio dos interesses daquela. O INRC, sem dvida,
contribuir para diminuir o preconceito existente em
relao doutrina e seus elementos constitutivos.
Ademais, concordando com Corra & Rosendahl,A cultura popular, negligenciada pela geografa brasileira,
12 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual de Aplicao do Inventrio Nacional de Reerncias Culturais. Braslia:Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000, p. 30 (grifos nossos).
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constitui-se em importante temtica para a inteligibilidade
do pas. Ela se ope a uma cultura hegemnica.13 Aquela
no tem sido negligenciada apenas pela Geograa. E
da religiosidade popular em particular (superstio,crendice, falta de cultura), que dizer? Que dizer, ainda,
das demais cincias humanas e das polticas pblicas?
E estas e, em particular, as de carter territorial, devem
propor aes que representem espacialmente inte-
resses coletivos (explcitos ou implcitos em pactos e
compromissos).14
E o Vale do Amanhecer, considerando-se a varie-dade, a recorrncia de expresses de estranhamento
e de eventuais desqualicaes existentes a seu
respeito, indica, certamente, uma construo social,
cultural, espacial, religiosa, no mnimo, rebelde em
relao sociedade envolvente.
Procedimentos metodolgicos
Em primeiro lugar, destaque-se a boa receptivi-
dade por parte da comunidade quando da realizao
do INRC. Foi fundamental, para tanto, o fato de a
equipe de pesquisa contar com vrios membros que
so adeptos e moradores do Vale do Amanhecer,
sendo um deles neto de Tia Neiva, a mentora da
Doutrina, conrmando a sugesto do Manual de
Aplicao do INRC ao se referir formao da equipe:
(...) ser imprescindvel, por vrias razes, envol-
ver a populao nesses levantamentos (...) que
as equipes de campo do inventrio incluam,
alm de especialistas e tcnicos, pessoas do
lugar que possam uturamente ser os interlocu-
tores do IPHAN no trabalho de manuteno e
realimentao desses acervos de inormao.15
Tambm a nosso favor contou o fato de se tra-
tar de adeptos de uma religiosidade ancorada em
Tia Neiva, falecida h poucos anos. Ademais, seguem
vivos vrios de seus contemporneos, os quais foram
participantes da criao da Doutrina e do lugar Vale
do Amanhecer, alm de seus lhos e netos, em sua
maioria, residentes no Vale e adeptos da Doutrina.
O bom desenvolvimento do trabalho deveu-se
ainda: a) excelente integrao de todos os investiga-
dores; b) suas qualicaes especcas (uma sociloga
e antroploga doutora, um historiador doutor, uma
mestra em Educao, um especialista em Histria,
13 Corra, Roberto Lobato; Rosendahl, Zeny (Org.). Introduo Geografa Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.9.
14 Steinberg, Marlia. Territrio, ambiente e polticas pblicas espaciais. In: Steinberg, Marlia (Org.). Territrio, ambiente e polticas pbli-cas espaciais. Braslia: Paralelo 15 & LGE Editora, 2006, p. 27.
15 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual de Aplicao do Inventrio Nacional de Reerncias Culturais. Braslia:Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000, p.35.
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uma gegrafa, um advogado); c) interlocuo, super-
viso e assistncia contnua dos antroplogos Giorge
Bessoni e, a partir de sua terceira fase, de Rodrigo
Martins Ramassote, da Superintendncia Regional doIPHAN no Distrito Federal.
Este livro fruto de um trabalho coletivo. Mas
se ancora, e pode ser considerado, um desdobra-
mento dos resultados de duas pesquisas que vm
sendo desenvolvidas por dois membros da equipe
que realizou o INRC:
a) investigaes realizadas por Marcelo Reis,com vistas elaborao de sua dissertao de
mestrado, defendida em 200416, e de sua tese de
doutoramento, centrada na trajetria religiosa de Tia
Neiva, fundadora e lder da doutrina do Amanhecer,
trabalho este defendido em 200817.
b) O projeto de pesquisa Sociologia das Adeses:
o misticismo em Braslia, coordenado por Deis
Siqueira18, vem sendo realizado no Departamento
de Sociologia da UnB, desde nais de 1994, tendo
contado, inicialmente, com apoio da Fundao de
Apoio Pesquisa do DF (FAPDF), e quase desde seu
princpio, at o momento, do Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq).
Na primeira etapa desta investigao foram
entrevistadas lideranas de dezessete religiosida-
des no-convencionais (grupos mstico-esotricos;
religiosidades alternativas) existentes na capital e
seu entorno. Autodenominam-se doutrina, losoa,
escola, ordem, cidade, estilo de vida, as quais tendema negar ou a secundarizar seu estatuto enquanto
religio. Anal, so vivenciadas como distintas das
prticas religiosas ocidentais tradicionais. Portanto,
no foram considerados os catlicos, protestantes,
espritas e os cultos afro-brasileiros, na medida em
que a pesquisa centra-se em torno do que poderia
ser denominado como nova conscincia religiosa19,
ou religiosidade alternativa enfocada na passagem
16 Reis, Marcelo Rodrigues dos. Discurso e Temporalidades:A Construo da Memria e da identidade no Vale do Amanhecer (1957-2004). Dissertao de Mestrado. Universidade de Braslia, Instituto de Cincias Humanas, Departamento de Histria, 2004.
17 Reis, Marcelo Rodrigues dos. Tia Neiva: a trajetria de uma lder religiosa e sua obra, o Vale do Amanhecer (1957-2008). 2008. 301p.Tese (Doutorado em Histria) Departamento de H istria, Universidade de Braslia, Braslia, 2008.
18 Siqueira, Deis; Lima, Ricardo Barbosa de, (Orgs.). Sociologia das Adeses: novas religiosidades e a busca mstico-esotrica na capital do
Brasil. 1a ed. Rio de Janeiro; Goinia: Garamond; Vieira, 2003; Siqueira, Deis. As novas religiosidades no Ocidente: Braslia, cidade mstica.Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 2003; Siqueira, Deis. Novas religiosidades na capital do Brasil. Tempo Social. So Paulo:USP, v. 14, n. 01, 2002. Siqueira, Deis; Bandeira, Lourdes. Misticismo no Planalto Central: a Chapada dos Veadeiros, chakra cardacodo planeta. In: Duarte, Laura M. G. (Org.). Tristes Cerrados. Sociedade e D iversidade. Braslia: Paralelo 15, 1998. Siqueira, Deis; Bandeira,Lourdes. O profano e o sagrado na construo da Terra Prometida. In: Nunes, B. F. (Org.). Braslia:a construo do cotidiano. Braslia:Paralelo 15, 1997.
19 A este respeito ver Soares, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.
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INTRODUO
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b) Identicao descrio sistemtica e
aprofundada do bem cultural selecionado.
Com base na aplicao e preenchimento
das chas de identicao (divididasnas seguintes categorias: saberes e of-
cios, formas de expresso, celebraes,
edicaes e lugares), o objetivo desta
fase consiste na descrio detalhada das
principais caractersticas culturalmente
relevantes para a compreenso adequada
do bem, assim como no diagnstico dequestes ou entraves para a sua reprodu-
o e continuidade;
c) Documentao elaborao de estudos
tcnicos e autorais, de natureza eminen-
temente etnogrca; produo de um
documento audiovisual com vistas ins-
truo do processo de registro; e, ainda, a
fundamentao do trabalho de insero
dos dados, obtidos nas etapas anteriores,
no banco de dados do INRC.
No caso do Vale do Amanhecer foram preen-
chidas as seguintes Fichas, conforme prescreve o
Manual do INRC:
a) Ficha de Campo: Levantamento Preliminar;b) Identifcao do Stio e Localidades: Ficha de
Identifcao do Stio; e de Identifcao de Localidade.
Anexos: Bibliograa; Registros Audiovisuais; Bens cul-
turais inventariados; Contatos.
c) Identifcao dos Bens Culturais. Questionrios
e Fichas de Identifcao: Celebraes; Edifcaes;
Formas de Expresso; Lugares; Ocios e Modos de Fazer;
Ficha de campo: Registros Audiovisuais.
A realizao de entrevistas lmadas com infor-
mantes privilegiados do Vale (segunda Etapa do INRC
Identicao) foi fundamental. Porque, de fato,
conrmaram, ampliaram, modicaram a lista de Bens
Culturais identicados na Etapa de Levantamento
Preliminar da pesquisa.
Principais decises
Todas as decises terico-metodolgicas foram
construdas por meio de discusses da equipe de
pesquisa com tcnicos da Superintendncia do
IPHAN no Distrito Federal e foi utilizada a linguagem
(denominaes, conceitos, categorias) tal como
usada pelos adeptos do Vale do Amanhecer.
Sobretudo durante o processo de preenchi-
mento das Fichas de Bens Culturais, foi se aclarando o
que seria considerado pelos prprios adeptos como
Celebraes, Edicaes, Ofcios e saberes, Formas de
Expresso. Estas articulaes foram, em boa medida,
sendo propiciadas pela prpria lgica interna dasFichas e pela discusso dos contedos, das denies
e das orientaes do Manual de Aplicao.
Ocios e modos de azer. Na identicao
dos principais ofcios e modos de fazer, tomou-se
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INTRODUO
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como referncia, no geral, sua articulao com as
Celebraes. Ou seja, essas serviram de ncora, uma
vez que os ofcios e modos de fazer a elas se articu-
lam, diretamente. As Celebraes so centrais parase visualizar e pensar o Vale. Elas so, de fato, um
eixo de referncia no universo que constitui o Vale
do Amanhecer. Anal,
(...) alar de patrimnio cultural mais complexo
do que pode parecer primeira vista, precisa-
mente porque o patrimnio cultural ruto derelaes sociais defnidas, historicamente situ-
adas, e ao mesmo tempo, corporifcado em
alguma maniestao concreta, seja conceitu-
almente defnida como material ou imaterial.21
Formas de expresso. Foram identicadas as
principais e pensadas como smbolos, estruturado-
res de sentidos.
Edifcaes e Lugares. O espao propriamente
sagrado do Vale inclui muitas edicaes, tais como
o Templo-Me do Amanhecer, a Estrela Candente, a
Pirmide, o Lago de Yemanj, a Cachoeira do Jaguar, a
Casa Grande (Memorial Tia Neiva). Considerando-se a
espacialidade e organicidade das celebraes, essas
edicaes foram sistematizadas em dois Lugares:Solar dos Mdiuns e rea do Templo.
No incio das discusses da equipe envolvida
com o INRC, seis bens culturais correspondentes ao
Vale do Amanhecer foram sugeridos para aprofunda-
mento. Porm, rapidamente o grupo de pesquisa sedeu conta de que no seria possvel um nmero to
grande de bens, tendo em vista o nvel de aprofunda-
mento esperado. Haveramos de chegar a um ou dois
bens que fossem, de fato, os mais signicativos para o
complexo conjunto que o Vale do Amanhecer.
Com isso, a primeira aproximao se deu em
torno das Celebraes. Partiu-se do entendimentode que o Vale do Amanhecer aparentava se resol-
ver como uma Grande Celebrao. Porque nele
se desenvolvem mltiplas prticas ritualsticas
e concentraes de mdiuns em torno de datas
especcas, quando ocorrem as celebraes mais
representativas.
Primeiro de Maio uma das mais importantes,
mas no prioritria para os adeptos (as celebraes
anuais aglutinam o maior nmero de pessoas - adep-
tos, visitantes, turistas, imprensa e no so realizadas
nos demais Templos do Amanhecer). Seria, inclusive,
cmodo eleger a celebrao de 1 de Maio, Dia do
Doutrinador, considerada a importncia que esta
assume diante da mdia (espetculo ritual 22).
Trabalho Ofcial e Escalada. Essas duas dimen-ses ritualsticas espelham bem o que o cotidiano
21 Veloso, Marisa. O fetiche do patrimnio. In: Habitus. Goinia, v. 4, n.1, jan./jun. 2006, p. 439.
22 Tet Catalo. Espetculo Ritual. Correio Braziliense, Braslia, 04 jun. 1978. Caderno Questes, p. 05.
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INTRODUO
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do Vale (a Doutrina sobreviveria sem outros, mas
no sem eles). Importa a ressalva de que cada um
deles caracterizado por um conjunto de rituais. So
referncias tanto para os visitantes quanto para osmdiuns. Sobretudo o Trabalho Ocial, uma vez que
este conta com a participao de um nmero mais
expressivo tanto de pacientes quanto de adeptos.
Apresenta-se to rico em sentidos e prticas que
poderia se converter no bem cultural a ser privilegia-
damente focado. Em resumo, responderia como o
bem da Doutrina do Vale do Amanhecer .No entanto, para se tratar do Trabalho Ofcial
entendemos que haveramos de incluir, necessaria-
mente, o Retiro. Naquele momento o pensamento
era de que o bem seria o Trabalho Ocial, mas,
frise-se, indispensvel se faria a incorporao do
Retiro. Porm, do primeiro, o que interessaria? Mesa,
Tronos e Curas (atendimento ao pblico). Eliminar os
trabalhos com os quais o pblico externo no tem
contato? No. A soluo desejvel seria incluir tudo
que compe o Trabalho Ocial, o qual se efetiva em
um conjunto de mais de dez rituais, ainda que cada
um deles tenha vida prpria. Teramos uma Ficha
Me do Trabalho Ocial e Fichas Secundrias destes.
E no seria necessrio pensar o Ritual deEstrela
Candente? No seria indispensvel a Escalada?Ento,os bens selecionados poderiam ser a Escalada e o
Trabalho Ofcial. Descrever todos os ritos se converteria
em tarefa impossvel. E, em termos da compreen-
so de patrimnio cultural em que nos ancoramos,
reconhecamos a necessidade de nos resolvermos
seletivos. Os bens culturais a serem aprofundados/
Identicados poderiam ser: Dia do Doutrinador, Solar
dos Mdiuns, Trabalho Ocial, Retiro, Dia da Benode Pai Seta Branca (ocorrncia mensal). Esses, obvia-
mente, se remetem a bens articulados.
O bem pode ser o rito, mas este, por sua vez, se
processa no Vale do Amanhecer em espaos demar-
cados. Se as celebraes fossem eleitas, haveria de se
explicitar consequentemente os locais em que so
desenvolvidas. A questo a que nos impusemos: omapeamento e a exposio dos ritos traduziria ao
leitor o Vale como um lugar?
Consenso nal: lugar, e no ritos. At porque,
caso o eixo fossem os ritos, o Inventrio poderia assu-
mir um carter excessivamente tecnicista, detalhista,
cansativo para a apreciao do leitor e do leigo. O
lugar, sem dvida, mais signicativo e abrangente:
inclui as demais dimenses. De resto, importa assi-
nalar que por ocasio da fase inaugural do INRC
decidimos por reetir o Vale do Amanhecer como
lugar, deliberao esta que, considerado o seqen-
ciamento das pesquisas e das produes a que
demos materialidade, converteu-se de fato em um
norte metodolgico acertado.
Assim, o Vale do Amanhecer, autntica zona decopioso inuxo cultural, foi por ns pensado a partir
de dois lugares que, avaliamos, se pronunciam com
maior vigor se considerada a geograa sagrada dessa
que a nossa localidade: a rea do Templo e o Solar dos
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Mdiuns. Estes so os dois lugares focais em torno dos
quais se centraram os esforos de pesquisa e de an-
lise. Ancorados no que traduz o cotidiano do Vale do
Amanhecer, pode-se armar que este se prende prio-ritariamente ao Templo-Me e ao Solar dos Mdiuns. O
que move a Doutrina do Amanhecer, em boa medida,
a crena na cura espiritual (desobsessiva) e esta se
processa prioritariamente no interior do Templo. A
cura desobsessiva inclusive lida pelos adeptos como
o propsito fundamental da Doutrina do Amanhecer.
O que implica, no mnimo, um contato visual com os
rituais, com os smbolos, com as vestimentas, estimu-
lando perguntas, dvidas, memrias, associaes. E o
Solar dos Mdiuns, por sua vez, proporciona uma viso
mais panormica do Vale do Amanhecer.
A rea do Templo, em que se inscreve o Templo-
Me propriamente, espao a que acorrem em maior
nmero mdiuns, pacientes, visitantes, turistas e
imprensa, acomoda ainda outras edicaes, nas
quais possvel identicar a ocorrncia cotidiana de
rituais afetos doutrina, assim como a Casa Grande,
residncia ocial de Tia Neiva, e que, nos dias de hoje,
d lugar a seu memorial. Esses dois lugares, a rea do
Templo e a Casa Grande, sublinhemos, dialogam e
sinergicamente do nimo a um lugar maior, que
mesmo o Vale do Amanhecer.
As edicaes mais representativas so: Cabana
do Pequeno Paj, espao em que crianas e jovens
principiam sua relao com a doutrina do Vale do
Amanhecer, a partir de instrues elementares e dainterao com a Espiritualidade; Orfanato Lar das
Crianas de Me Tildes, desativado, mas que foi por
Tia Neiva, no transcurso de sua vida, assistido com
deferncia e empenho pessoais; Estrela de Ner e
Turigano, setores em que se desenvolvem rituais
tidos como relevantes pelos adeptos.
No que toca ao Solar dosMdiuns
, complexode edicaes ritualsticas a cu aberto, em que se
encontra ademais a Pirmide, pode-se observar, di-
ria e tempestivamente, em horrios observados e
cumpridos com o mximo rigor pelos adeptos, a movi-
mentao, mormente de mdiuns, daqueles que se
empenham em dar encaminhamento pluralidade de
rituais que nesse espao sagrado tm lugar. Destaques
para as edicaes da Pirmide, cujo acesso franque-
ado inclusive aos que no tm liao com a doutrina
do Amanhecer, os Quadrantes, a Cachoeira do Jaguar,
a Cabala de Koatay 108 e a Cabala de Delfos.
As reexes de Berque23 e de Ribeiro24, den-
tre outras, em torno da paisagem foram teis para
se reetir o Vale do Amanhecer enquanto lugar. O
primeiro lembra que a paisagem no se reduz ao
23 Cf. Berque, Augustin. Paisagem marca paisagem matriz: elementos da problemtica para uma Geograa Cultural. In: Corra,Roberto Lobato; Rosendahl, Zeny (Org.). Introduo Geografa Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
24 Ribeiro, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007.
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mundo visual posto nossa volta. A subjetividade do
observador sempre a especica, a particulariza. Mas
a subjetividade mais do que um ponto de vista.
E ento Ribeiro complementa: o estudo da paisa-gem , portanto, uma coisa distinta da morfologia
do ambiente, assim como mais do que um espe-
lho da alma. Porque, de fato, referida aos objetos
concretos, os quais existem, de fato, sua volta. H
imaginrio, h evocao, mas h sempre um suporte
objetivo. Assim, a paisagem no se ancora ou habita
apenas no objeto ou no sujeito, mas na interao
complexa de ambos.
Ademais, apoiados nas leituras de Holzer, enfa-
tizamos os lugares porque o lugar:
(...) sempre um centro de signifcados e, por
extenso, um orte elemento de comunicao,
de linguagem, mas que nunca seja reduzido a
um smbolo despido de sua essncia espacial,
sem a qual torna-se outra coisa, para a qual a
palavra lugar , no mnimo, inadequada.25
Entrevistas gravadas: amemria dos veteranos
A importncia e a centralidade da Memria
viram-se conrmadas nas entrevistas realizadas junto
aos adeptos-veteranos: lugar como construo his-
trica e como ncora de identidade. Anal, como se
construiu o lugar?
De qualquer forma, pode-se armar que acoletividade do Amanhecer serve-se profusamente
do conjunto de representaes consignado pelo
extenso imaginrio do Vale do Amanhecer de forma
a se constituir identitariamente. A partilha de crenas,
expectativas de futuro, valores, saberes, prticas (pro-
fanas e sagradas), aproxima os adeptos e os inscreve
num universo cultural que lhes oferece o alicerce do
pertencimento. O que, de fato, nos aponta para a
existncia de uma memria socialmente construda.
O tempo (historicamente identicado ou miti-
camente construdo) apropriado pela comunidade
do Vale do Amanhecer, pela via da memria, de sorte
a infundir-lhe na dimenso do imaginrio coletivo
representaes constituintes de uma tradio vigo-
rosa o bastante para legitimar suas aes (tanto
sagradas quanto profanas).
E na medida em que esta tradio veio se con-
solidando e se encontra em plena vigncia, pode-se
armar a caracterizao identitria do grupo reli-
gioso: vive-se num tempo contnuo com ares de
atemporalidade. No presente, os membros da comu-
nidade do Vale do Amanhecer valem-se de umpassado (reencarnaes individuais e coletivas) no
intuito de assegurar a sua permanncia no futuro. O
25 Holzer, Wether. O lugar na geograa humanista. In: Revista Territrio, Rio de Janeiro, ano IV, n. 7, jul/dez, 1999, p. 76.
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tempo tem uma outra cronologia. No comeou e
no se ndar na presente vida/encarnao.
E os lugares sagrados espelham e, simultane-
amente, ancoram estas representaes sociais. Porsua vez, Entrikin26 destaca como o estudo geogrco
do lugar dever compreender as experincias indi-
viduais (narrativas), alm dos discursos pblicos. E
Holzer arma que para o humanista o lugar:
(...) signifca um conjunto complexo e simblico,
que pode ser analisado a partir da experincia
pessoal de cada um a partir da orientao
e estruturao do espao, ou da experincia
grupal (intersubjetiva) do espao como estru-
turao do espao mtico-conceitual.27
O lugar, por conseguinte, se d a conhecer se
validada e analisada a historicidade que o instrui e o
torna dotado de valores e smbolos singularizadores.Mas a que instrumento apelar de modo a proceder
a uma imerso no complexo Vale do Amanhecer
de modo a melhor reconhecer seus bens culturais
e o lugarque os acomoda. Uma pronta resposta: a
memria, esta que nos pe diante e, com sorte, no
ncleo da ampla paisagem humana do Amanhecer.
A noo categorial de memria aquela, por-
tanto, que nos permitir reconhecer como seguiram
se denindo os marcos materiais e imateriais do Valedo Amanhecer e da comunidade que o anima. A
memria vivica o tempo, d-lhe voz. Uma reexo
mais detida acerca da memria nos foi exigida. Ao
agir como um narrador do passado, o depoente, ao
enunciar e a silenciar, reconstri a si e a seu mundo.
Negocia com as imagens que lhe acometem estimu-
lado por questes que se impem no presente.
H portanto uma memria coletiva produzida
no interior de uma classe, mas com o poder
de diuso, que se alimenta de imagens, sen-
timento, idias e valores que do identidade
quela classe.28
Mas quem foram esses homens e mulheres, nosquais pretendamos enxergar o sagrado a imprimir
sentidos ordenadores de suas existncias, que viriam
a se dispor excitao de re-presentifcar29o passado
e se dedicar a construir as suas as memrias do Vale
do Amanhecer?
26 Cf. Entrikin, J. Nicholas. The betweenness o place: towards a Geography of modernity. London: Macmillan, 1991.
27 Holzer, Wether. O lugar na geograa humanista. In: Revista Territrio, Rio de Janeiro, ano IV, n. 7, jul/dez, 1999, p. 71.
28 Bosi, Ecla. O tempo vivo da memria: ensaios de Psicologia Social. So Paulo: Ateli Editorial, 2003, p.18.
29 Cf. Catroga, Fernando. Memria e Histria. In: Sandra Jatahy Pesavento (org.). Fronteiras do milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.
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Diante desse questionamento, decidimos por
priorizar os veteranos, aqueles que partilharam do
convvio Tia Neiva e que, portanto, ajudaram, mate-
rial e espiritualmente a construir o Vale. Porque, sepor um lado se identicou na primeira Fase do INRC
o forte carisma de Tia Neiva, por outro, tambm
signicativo foi o carter coletivo da produo do
Vale. O carisma inquestionvel de Tia Neiva parece
que se deveu, tambm, s suas relaes no autori-
trias com os adeptos e, em particular, com os mais
prximos, o que acabou se conrmando com os
adeptos-veteranos entrevistados.
Outro ganho capital a ser ressalvado na cons-
tituio desse acervo de memrias contempla o
prprio objeto de pesquisa. No caso especco do Vale
do Amanhecer, alm de promover o mapeamento,
a identicao e constituir documentao de seus
respectivos bens culturais de natureza imaterial, a exe-
cuo do inventrio proporciona aos da comunidade,como contrapartida, material audiovisual em que se
encontram os registros de entrevistas com adeptos
veteranos de sorte a contribuir com a preservao da
memria do grupo, essa que se convence, por deni-
o, em patrimnio cultural imaterial do Amanhecer,
o que conseqentemente, concorre para a modela-
o, a defesa e o reforo de sua identidade cultural.Os adeptos, produtores e detentores desses saberes e
fazeres asseguram assim s geraes futuras o acesso
a registros importantes da histria do movimento.
Considerando-se as diculdades de se ques-
tionar diretamente sobre os lugares focais (Solardos Mdiuns e a rea do Templo - as informa-
es sobre estes surgiram, sobretudo, durante as
falas-memria).30
A estratgia se deu no sentido de no se seguir
o questionrio sugerido pela Metodologia do INRC
enquanto roteiro. As entrevistas foram pautadas
em torno de questes mais amplas entrevistas-
memria, as quais, para a maioria dos informantes,
ancoram-se na Doutrina. Da se chegava, com mais
facilidade, por exemplo, aos Ofcios (oportunizando,
neste momento, determo-nos na particularidade do
entrevistado e direcionar-lhe questes especcas).
Todos os entrevistados tm uma relao bem
direta com alguma especicidade em termos de
Ofcio: msica, pintura, indumentria. E a partir destadiversidade, o cenrio se construiu. E, de fato, a linha
de memria dos entrevistados cumpriu responder s
perguntas previstas pelo questionrio. Os caminhos
so as histrias, ou seja, a memria. a memria que
revela e produz os sentidos que do vigor cultural ao
lugar. A recproca se faz verdadeira.
E tambm com relao Tia Neiva: como atri-buir a ela a devida centralidade e status enquanto
30 Foram realizadas, em 10/01/2009, sbado, dia de Trabalho Ofcial, catorze brevesentrevistas-enquetes com adeptos, tambm lma-das, centradas em trs perguntas sobre a representao do Vale como lugar.
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atribuidora de sentidos? Para tanto, decidimos por
analisar com mais vagar as falas representativas das
memrias dos adeptos com o propsito de identi-
car Tia Neiva em sua competncia no gerenciamentoe na denio da paisagem sagrada do Amanhecer.
Segundo Rosendahl, a nfase da Geograa da
Religio recai:
(...) sobre o valor e o smbolo de bens religiosos,
aqui considerados como bens que expressam a
revelao do sagrado. Tal revelao constitui o
resultado dos processos de produo simblica
que azem possvel o ato ou o acontecimento
no qual a unifcao das duas partes do sm-
bolo pode se realizar. Para o gegrao, o estudo
do smbolo, simbolizante e simbolizado, ocorre
no espao e tempo sagrados (...) o bem sim-
blico que d sentido e signifcado s prticas
religiosas de dierentes grupos.31
Estamos de acordo com a autora. A noo de
bem simblico central para se pensar o Vale. Isto
porque a nfase da anlise se d em torno do valor
e smbolo de bens religiosos (bens que expressam
a revelao do sagrado). o bem simblico, como
assinala Rosendahl, que atribui sentido e signicado
s prticas religiosas de diferentes grupos sociais.
Entretanto, deve-se destacar que o INRC rea-
lizado, o qual no um estudo restrito Geograaou qualquer outra das Cincias Humanas, no est
lendo o Vale do Amanhecer, sobretudo, enquanto
religio, e sim enquanto lugar diferenciado. O cerne
da discusso do Inventrio se d em torno dos
conceitos de bem cultural e atribuio de valor e
polticas pblicas espaciais. Neste sentido, citando
outro gegrafo, Claval, tratou-se aqui de se Analisar
a experincia dos lugares pelos grupos estudados e a
sua maneira de organizar o espao (...).32
Ademais, parte-se do pressuposto de que as pr-
ticas espaciais ocorrem em trs dimenses: o vivido, o
percebido e o imaginado. Trata-se de um lcus social
congurado em lugar se consideradas e compreendi-
das as prticas religioso-culturais que ali so vivenciadas.
E mais: em que o simblico, materializado nas vestes,nos ritos, nas imagens de natureza e representaes as
mais diversas, consubstanciam-se em marca identica-
dora da espacialidade do Amanhecer e da identidade
daqueles que com ele mantm vvida liao.
Em sntese: o espao s faz sentido se conside-
rados os usos que os indivduos fazem dele, como
31 Catroga, Fernando. Memria e Histria. In: Sandra Jatahy Pesavento (org.). Fronteiras do milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 179.
32 Claval, Paul.A contribuio rancesa ao desenvolvimento da abordagem cultural na geografa. In: Corra, R. Lobato e Rosendahl, Z. (org.)Introduo geografa cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
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lhe denem seu arranjo simblico, este ltimo que
se concentra em imprimir na concretude marcas
profundas de signicao. A materialidade posta se
edica mediante o incontornvel e desejvel recursoaos estmulos e demarcaes de natureza imaterial.
Desse duplo emerge o mundo a cultura.
Com as reexes e recomendaes propor-
cionadas pelo Manual de Aplicao do Inventrio
Nacional de Referncias Culturais, que, reiteramos,
pensou-se no Vale do Amanhecer como um lugar,
que se arma mediante a especicidade de sua viso
e organizao de mundo e suas prticas culturais,
mas sobretudo por se revelar capaz de acomodar
celebraes (concentraes humanas e performan-
ces ritualsticas) que igualmente lhe denem uma
sionomia, no mnimo, invulgar.
E neste lugar onde foram inventariados os
bens culturais de tipo Celebraes, Edicaes,
Formas de Expresso, Ofcios e Modos de Fazer,Lugares, consoante as expectativas da metodolo-
gia do INRC, os quais sero tratados no captulo III
Vale como bem cultural Lugar, ainda que a nfase
recaia sobre os lugares: rea do Templo e Solar dos
Mdiuns. Isto porque o Vale um Lugar, social-
mente representado, em que a sua aluso primeira
(referncia cultural) nos conduz a qualic-lo comoum lugar especial ou, como quer a UNESCO, excep-
cional. Lugar esse:
a) onde se realizam rituais e prticas religio-
sas (com o uso de vestimentas prprias,
inconfundveis);
b) em que se situa um conjunto de edica-
es e
c) onde residem, majoritariamente, adeptos
da Doutrina criada por Tia Neiva.
Mesmo para os adeptos que freqentam algum
dos mais de 600 Templos do Amanhecer existentes
em outras cidades do pas ou do exterior, o Vale do
Amanhecer de Braslia (sede) se arma nuclear, o
centro, o Templo-Me na linguagem dos adeptos,no qual se inscreve a totalidade das edicaes, dos
smbolos, em suma, dos signos prprios da Doutrina
do Amanhecer.
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Captulo IBraslia Mstica1
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A presente reexo, inaugural se observada
a estruturao desta publicao, vincula-se ao pro-
psito de proporcionar ao leitor elementos de
compreenso relacionados ao amplo cenrio cultu-
ral de Braslia que, historicamente, deixou-se informar
por um elenco de representaes e de prticas que
a posicionam de modo destacado como uma cidade
em que o sagrado assume contornos pronunciados.
Antes de tudo, importa sublinhar: o Vale do
Amanhecer, alm de suas caractersticas etnogrcas
Deis SiqueiraDoutora em Sociologia (Universidade de Braslia)
Marcelo ReisDoutor em Histria (Universidade Estadual de Gois)
peculiares, tambm est sendo lido como um bem
cultural integrante e representativo do contexto
mais amplo da Braslia Mstica. A capital da Repblica
nasceu ancorada em dois grandes mitos.2
Braslia, quando de sua gnese, proclamava-se
prottipo da modernidade, sede do poder e motor
que se dispunha a ensejar e a acelerar o progresso.
Denia-se territrio em que se tornaria nalmente
possvel promover a integrao de mltiplos Brasis.
Vinha luz a capital em terras do Planalto Central,
1 Com respeito aos contedos msticos atribudos Braslia, sugerimos, sobretudo, as leituras de:Siqueira, Deis.As novas religiosidades
no Ocidente: Braslia, cidade mstica. Braslia: EdUnB, 2003; Siqueira, Deis et Lima, Ricardo Barbosa de (Orgs.). Sociologia das Adeses:novas religiosidades e a busca mstico-esotrica na capital do Brasil. 1a ed. Rio de Janeiro: Garamond; Vieira, 2003; Reis, Marcelo. TiaNeiva: a trajetria de uma lder religiosa e sua obra, o Vale do Amanhecer (1957-2008). Tese de Doutorado. Universidade de Braslia,Instituto de Cincias Humanas, Departamento de Histria, 2008, 301 p. Dessa tese de doutoramento, em particular, o captuloBraslia Mstica: Mosaico de Etnias e de Credos.
2 Siqueira, Deis et Bandeira, Lourdes. O profano e o sagrado na construo da Terra Prometida.In: Nunes, Brasilmar Ferreira. Braslia: Aconstruo do cotidiano. Braslia: Paralelo 15, 1997.
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sim, mas privada de uma historicidade que a precedesse
e lhe institusse como desdobramento da tradio, uma
memria. Carecia de ancoragem histrica. Diante de tal
ausncia, a aluso aos mitos se fez estratgia simblicaecaz na armao daquela que se pretendeu reco-
nhecer como a capital de todos os brasileiros.
Mitos prdigos oportunizavam sua apario
paralelamente projeo de Braslia na realidade,
marcada pela obstinao de Juscelino Kubitschek
expressa por seu nimo de se arraigar a ideais mudan-
cistas, historicamente engendrados, e de se consolidar
como o idealizador e propiciador mais entusistico do
desenvolvimento, o qual, projetivamente, encarregar-
se-ia de minimizar as desigualdades sociais e fundar
um novo porvir, uma nova civilizao-civitas.
Ao citarmos Holston, a idia de civitas evidencia-
se, por exemplo, no artigo 10 do plano do urbanista
Lcio Costa, quando aquele expressou:
(...) o centro de diverses da plataorma uma
mistura de Piccadilly Circus, Times Square e
Champs Elyses (...) com galerias, amplas cala-
das, terraos e cas, (...) no gnero tradicional
da rua do Ouvidor e das vielas venezianas.
Tudo isto as idias arquitetnicas do mundo
antigo, medieval e moderno, do Egito, de
Roma, Versalhes, Paris, Londres, Veneza, Rio e
Nova Iorque incorpora-se (...) em um plano
para a cidade do uturo. Em suma, conclui o
autor, se devemos acreditar no mito da legiti-mao elaborada por Costa, o plano contm
toda a arquitetura mundial, passada, presente
e utura. Sem dvida, o mbito ecumnico (uni-
versal) dessa legitimao extraordinrio.3
Alm de ser vista como a cidade do ecumenismo,
do Terceiro Milnio, Braslia tambm se projetava como
uma espacialidade geogrca em se consolidariam
toda sorte de inovaes e de desenvolvimentos, nas
reas de Sade, Habitao, Educao, Planejamento e
outras. Em todas elas Braslia funcionaria como baliza-
mento de utopia do futuro.
Evidencia-se, considerada a trama discursiva a
que dava forma, o intento aclarado de promover a
consolidao de um imaginrio utpico4 destinadoa ajustar sentidos psteros Nova Capital e que
resultasse ecaz o bastante para salvaguardar suas
aspiraes de poder.
Deste Planalto Central, desta solido que, em
breve, se transormar em crebro das mais altas
decises nacionais, lano os olhos mais uma vez
3 Holston, James.A cidade modernista . Uma crtica de Braslia e sua utopia. So Paulo: Cia das Letras, 1993.
4 Acerca do dilogo entre imaginrio e utopia, sugerimos a leitura do artigo de Pasn, Angel Enrique Carretero. Imaginario yutopias.Athenea Digital, 07, 40-60. Disponvel em: . Acesso em 07 de novembro de 2007.
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sobre o amanh de meu Pas e antevejo esta
alvorada, com uma inquebrantvel e uma
confana sem limites no seu grande destino.5
aventura inslita e aferrada de dar seiva e legiti-
mao a um novo territrio e sua correspondente face
humana somava-se a orquestrao de uma imagem
futurista que deveria recomendar e assegurar a gran-
deza de seu destino e da suapertinncia histrica.
Assim, apesar de inmeras suspeies e das
duras crticas direcionadas ao projeto de trans-
ferncia da capital6, uma turma de entusiastas,
intelectuais e especialistas aderiram ao sonho de
Juscelino Kubitscheck. Entre eles, importa citar, Oscar
Niemeyer, Lcio Costa, Israel Pinheiro, Bernardo
Sayo, Athos Bulco, Burle Marx.
Pioneirismo, bravura e empenho edicador
uniam os candangos, que, a despeito de suas ml-
tiplas origens, formaram uma comunidade que sevia orientada pela consecuo de um feito que, no
limite, entendiam e representavam como herico.
Braslia deriva, portanto, de uma dupla dispo-
sio, que se pode distinguir onrica: os sonhos do
progresso, fundao de uma nova civilizao, enla-
ado de modernidade, de vanguarda, de integrao
do pas, e um segundo, gurado pelo profetismo de
Dom Bosco e sua prescincia no despontar de umaterra de bem-aventurana. So esses os mitos funda-
cionais, de razes postas aos pares, propiciadores de um
dilogo importantemente estvel, discursivamente
trabalhados e retrabalhados, que, no devir, viabiliza-
ram a constituio dos marcadores identitrios na
nova Capital Federal: misticismo e modernidade; terra
de predestinao e de oportunidades; mito e razo.
Mas se faz necessrio que o ancoradouro deste
ato herico e destes mitos sejam contextualizados
historicamente. Estamos nos referindo ao Ocidente a
partir da segunda metade do sculo XX.
Novas formas de religiosidadeno Ocidente
Laplantine tipica trs vozes do Imaginrio ao
operar com a noo de imaginao coletiva: a da
espera messinica ou milenarista, a da possesso e a
da utopia. Ou seja, trs tipos de formulaes mentais
5 Fragmento do pronunciamento dado pelo presidente Juscelino Kubitschek, quando de sua visita inaugural ao local exato em queseria erguida a Nova Capital do Brasil (02/10/1956). Notabilizou-se a histrica frase de Juscelino Kubitscheck e, atualmente, pode serencontrada, em destaque, no Museu da Cidade, Centro Cultural Trs Poderes. Ver: Kubitscheck, Juscelino. 50 anos em 5:meu cami-nho para Braslia. V. III. Rio de Janeiro: Edies Bloch, 1978, p. 83 (grifos nossos).
6 Com respeito s vozes que se pronunciaram contrrias mudana da capital, ver: Santos, Michelle. A construo de Braslia nasTramas e Imagens e Memrias pela imprensa escrita. Dissertao de Mestrado. Universidade de Braslia, Instituto de Cincias Humanas,Departamento de Histria, 2008.
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performatizadas por homens e mulheres quando
de seu exerccio imaginrio de projetar o futuro. A
primeira delas vai ao encontro do momentum hist-
rico em que nasceram Braslia e todas as projees aela associadas, em especial as representaes que a
identicavam como uma Terra Prometida e deprome-
timentos. Segundo aquele autor, a espera messinica
(ou milenarista) seria a resposta sociolgica naturalde
uma sociedade ameaada em seus fundamentos7.
O Ocidente, poca, assumia uma postura
questionadora de seus valores universais e de suas
verdades cienticismo idealizado, racionalismo
fundamentalista, ideologias totalitrias. Fala-se ainda,
na atualidade, em falncia de paradigmas culturais
monolticos; derrocada das grandes fundamentaes
cientcas; desmoronamento das interpretaes un-
vocas da realidade, de matrizes tica ou esttica8.
A deliberao e efetiva construo de Braslia
tm lugar na segunda metade da dcada de 1950e sua armao como Capital Mstica se resolve nas
dcadas seguintes. E essas temporalidades mencio-
nadas se vem, sim, afetadas pelas torrentes que,
como fez reverberar o historiador Keith Jenkins9,
desaguaram na morte dos centros.
De quais transformaes estamos a falar? Na
arena das relaes internacionais, desdobramentos
das duas grandes guerras mundiais. Corridas impe-
rialistas que levaram a desatinos e aproximaocom a dura face da desrazo. No campo cientco, o
avano da Filosoa da Cincia, que nos apresentou o
anarquismo epistemolgico de Feyerabend, a reva-
lorizao da imaginao pela verve bachelardiana,
o falsicacionismo popperiano, os paradigmas kuh-
nianos, a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, o
Princpio da Indeterminao, ou da Incerteza enun-
ciado revolucionrio da Mecnica Quntica proposto
pelo fsico alemo Werner Heisenberg, submeteu a
comunidade e o modelo cientcos ao exaustivo
exame de suas ntimas e xas verdades.
No terreno losco, a imagem estanque de
uma inexorvel curva evolutiva da histria e a un-
voca razo de inspirao hegeliana pareciam dar
lugar s proposies loscas direcionadas plura-lidade e descontinuidade dos saberes, consignadas
por aqueles que foram, em medida varivel, reco-
nhecidos como herdeiros do ruidoso iconoclastismo
nietzschiano, entre eles, Martin Heidegger, Michel
Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze.
7 Laplantine, Franois. As Trs Vozes do Imaginrio. Trad. Srgio Coelho. So Paulo, n. 1, Out, 1993. Disponvel em: . Acesso em 10 de maio de 2007.
8 Tarnas, Richard.A epopia do pensamento ocidental: para compreender as idias que moldaram nossa viso de mundo. Trad. BeatrizSidou. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 422-440.
9 Jenkins, Keith.A Histria repensada. Trad. Mrio Vilela. So Paulo: Contexto, 2001, p. 94.
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BRASLIAM
STICA
INRC DO VALE DO AMANHECER 37
Na dimenso poltico-econmica, alm do
estado de privao a que se v submetida frao
expressiva da populao mundial, ressalvamos os
regimes de governo que se queriam denir e seanunciaram consagradores da eqidade entre os
homens, mas que, no plano prtico, viram-se desca-
racterizados, constituindo-se, no raro, totalitrios.
Deste exame crtico por que passaram os
centros tradicionais (etnocentrismo, falocentrismo,
logocentrismo, antropocentrismo, eurocentrismo,
eclesiocentrismo) e suas correspondentes verdades
essenciais, intensicado na segunda metade do sculo
XX, agrega-se o reconhecimento da existncia de um
esprito ocidental representado por uma cultura poli-
nuclear e crescentemente insubmisso a saberes e a
fazeres que se pretenderam ordenadores e totalizantes.
A