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    Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    Vale doamanhecer

    Sueritedci do Iphan o Distrito Federl

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    Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    Vale doamanhecer

    Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal

    Braslia 2010

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    Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da Cultura

    Juca Ferreira

    Presidente do IPHANLuiz Fernando de Almeida

    Diretora de Planejamento e AdministraoMaria Emlia Nascimento Santos

    Diretor de Patrimnio Material e FiscalizaoDalmo Vieira Filho

    Diretora de Patrimnio ImaterialMarcia Sant Anna

    Diretora de Articulao e FomentoMrcia Helena Gonalves Rollemberg

    Superintendente do IPHAN no Distrito FederalAlfredo Gastal

    Chee da Coordenao TcnicaTereza Lagioia

    Chee da Coordenao AdministrativaGuilherme Cabral Junior

    Coordenao da PublicaoRodrigo Martins RamassoteGiorge Bessoni

    Superintendncia do IPHAN no Distrito FederalSBN Quadra 2 Ed. Engenheiro Paulo Maurcio 12 andarCep 70040-905 Braslia/DF

    Telefone: (61) 2024-6464http://www.iphan.gov.br

    Associao Positiva de Braslia (APB)Glucia Oliveira AbreuLcia Augusta de Vasconcelos

    PesquisaDeis Siqueira (Coordenadora)Marcelo Reis (Supervisor de Campo)Jairo Zelaya LeiteLenio Matos GomesMrcio da Silva Santos

    Tnia Quaresma

    TextosDeis Siqueira

    Jairo Zelaya LeiteMarcelo ReisRodrigo Martins Ramassote

    Projeto Grfco e Tratamento de ImagensPaulo Roberto Pereira Pinto

    Pesquisa iconogrfcaJairo Zelaya LeiteMarcelo ReisPaulo Roberto Pereira Pinto

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA ALOSIO MAGALHES

    S959i Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal.Vale do Amanhecer: Inventrio Nacional de

    Referncias Culturais / Deis Siqueira, Marcelo Reis,Jairo Zelaya Leite, Rodrigo M. Ramassote. Braslia, DF:Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal, 2010.

    276 p. : il. color. ; 22 cm.

    1. Vale do Amanhecer - DF. 2. Patrimnio CulturalImaterial. 3. Lugar Sagrado. I. Siqueira, Deis. II. Reis,Marcelo. III. Zelaya, Jairo. IV. Ramassote, Rodrigo M. IV.

    Ttulo.CDD 299

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    Sumrio

    Apresentao

    IntroduoCaptulo I

    Braslia Mstica

    Captulo IIVale do Amanhecer:

    aspectos de sua dimenso cultural

    Captulo IIITia Neiva:

    traos de um itinerrio existencial

    As palavras e as coisas:apontamentos sobre possveis aes de

    salvaguarda no Vale do Amanhecer

    Referncias

    Glossrio

    Termos prprios do Vale do Amanhecer

    5

    11

    33

    85

    163

    233

    241

    251

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    Apresentao

    INRC DO VALE DO AMANHECER 5

    A partir de 04 de agosto de 2000, por efeito

    do Decreto 3551, que instituiu o Registro de Bens

    Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa

    Nacional de Patrimnio Imaterial, o Instituto do

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)vem realizando polticas pblicas voltadas para o

    reconhecimento, a valorizao e o apoio sustentvel

    aos chamados bens culturais de natureza imaterial.

    Desde ento, ofcios e modos de fazer tradicionais,

    formas de expresso (musicais, coreogrcas, cni-

    cas, literrias e ldicas), lugares onde se concentram

    ou se reproduzem prticas culturais e celebraescoletivas associadas, em especial, a minorias tnicas

    e segmentos sociais marginalizados, passaram a ser,

    de modo sistemtico, objeto de aes de invent-

    rios, de proposies de registros e de projetos de

    salvaguarda.

    Nesse contexto, grande parte das unidades do

    IPHAN, dispersas por todos os estados do pas, come-

    ou a receber demandas ou ento denir potenciais

    reas de atuao de inventrios e possveis registros.

    Na Superintendncia do IPHAN do Distrito Federal, anfase analtica foi colocada na Braslia mstica, com

    a realizao de pesquisas e inventrios voltados para

    o conhecimento das principais caractersticas da

    demanda religiosa local. Dentre eles, dois se desta-

    caram: o Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    (INRC) dos Lugares de Culto de Matrizes Africanas e

    Afro-Brasileiras e o Inventrio Nacional de RefernciasCulturais (INRC) do Vale do Amanhecer.

    Sabe-se que a construo de Braslia, ocorrida

    h cinqenta anos, est envolta numa narrativa len-

    dria de cunhos modernizante e mstico , apoiada

    em profecias, indcios e inferncias que evidenciam

    Alfredo GastalSuperintendente do IPHAN no Distrito Federal

    Rodrigo Martins RamassoteAntroplogo Superintendncia do IPHAN-DF

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    APRESENTAO

    INRC DO VALE DO AMANHECER6

    certas predestinao mstica e vocao desen-

    volvimentista da capital. Da tica modernizante,

    constituem exemplares expressivos o planejamento

    urbano e a arquitetura futurista do chamado Plano

    Piloto. Os polticos, intelectuais, artistas e plane-

    jadores que participaram da fundao de Braslia

    sonhavam instaurar uma civitas no Brasil, inaugu-

    rando assim um novo tempo, de desenvolvimento,

    no qual Braslia seria a primeira prova da capacidade

    de modernizao e progresso do povo brasileiro. A

    nova capital do pas proporcionaria, assim, o surgi-mento de uma nova civilizao, no contexto de

    uma urbe sustentada pela viso de igualdade e um

    espao urbano que possibilitasse a diminuio de

    diferenas econmicas e de status social. Do ngulo

    mstico-religioso chamam a ateno as profecias do

    padre catlico Dom Bosco, que, em 1882 ou 1883,

    teria tido sonhos e vises que previam um futurograndioso para a Amrica do Sul, particularmente

    para o Brasil, mais precisamente entre os paralelos

    de 15 e 20, onde surgiria uma terra prometida, uma

    grande civilizao de riqueza incomensurvel no

    Planalto. Destaque-se que em 1956 foi inaugurada

    a Ermida Dom Bosco, s margens do Lago Parano,

    justamente na passagem do paralelo 15. A esta pro-

    fecia do clrigo se somaram outras identicaes de

    cunho mstico a Braslia: chakra cardaco do Planeta

    Terra; centro irradiador de poder e energia; regio

    onde se dar a prxima civilizao de Aquarius;

    Nova Civilizao do Terceiro Milnio. Assim, o mito

    foi-se tornando lenda e, gradativamente, foi-se plas-

    mando no imaginrio social da populao local; est

    formado um terreno propcio para as novas religiosi-

    dades que foram surgindo juntamente com a nova

    capital, como o caso da Cidade Ecltica, da Cidade

    da Fraternidade, do Vale do Amanhecer.

    Situado na Regio Administrativa de Planaltina

    RA VII, onde vive uma populao superior a 25 mil

    habitantes, entre mdiuns residentes e pessoas sem

    liao com a doutrina, o Vale do Amanhecer o

    nome pelo qual conhecida a comunidade religiosaocialmente denominada Obras Sociais da Ordem

    Espiritualista Crist OSOEC. Historicamente, seu

    percurso confunde-se com a vida da mdium Neiva

    Chaves Zelaya, popularmente conhecida como Tia

    Neiva. Em 1957, data em que as obras de Braslia

    foram iniciadas, Tia Neiva que trabalha como cami-

    nhoneira na construo dos prdios da capital acometida por conitos de denio e aceitao de

    sua mediunidade; a sua superao ocorreu mediante

    as conrmaes e a consolidao de suas vises. Sua

    relao com o sagrado passa a se solidicar, e o reco-

    nhecimento de sua mediunidade encontra parcerias

    em outras pessoas.

    A partir de ento, Tia Neiva comea a realizar

    trabalhos de cunho espiritual ancorados em sua

    mediunidade no Ncleo Bandeirante, onde residia.

    Em 1959, juntamente com um tmido grupo de reli-

    giosos, funda na regio da Serra do Ouro, no municpio

    de Alexnia, Gois, a Unio Espiritualista Seta Branca

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    APRESENTAO

    INRC DO VALE DO AMANHECER 7

    UESB. J instalada na Serra do Ouro, a pequena

    comunidade no parava de receber novos adeptos.

    Em fevereiro de 1964, Tia Neiva e seu grupo se

    transferem para Taguatinga, mais precisamente para

    a QNC 11, Lote 15. o m da UESB e o comeo da

    OSOEC, fundada em 30 de junho do mesmo ano.

    Esse acontecimento entendido por alguns adep-

    tos como decisivo para a expanso da comunidade

    religiosa. No entanto, Taguatinga ainda no seria o

    ltimo local deste grupo.

    Conforme os adeptos acreditam, orientados pelaEspiritualidade, o grupo foi guiado para os arredores

    de Planaltina e, no ano de 1969, estabelece suas razes

    e crenas no espao hoje conhecido como Vale do

    Amanhecer. Da em diante muitas transformaes se

    processaram. Num perodo que soma pouco mais de

    meio sculo, um fenmeno religioso em que se identi-

    ca a partilha de diversos bens simblicos e materiais,integrados num espao urbano criado para tal m,

    e mantido, sobretudo, pela solidariedade social em

    torno desse universo ritualstico-doutrinrio complexo,

    composto de elementos religiosos de matrizes distin-

    tas, mas integrados em um conjunto coeso e unicado

    em torno da manuteno da assistncia espiritual,

    ganhou relevo dentro do contexto territorial de Braslia.

    A organizao espacial do territrio do Vale do

    Amanhecer foi instituda a partir de coordenadas

    espirituais acolhidas e retransmitidas por Tia Neiva,

    traadas diretamente no cho, estabelecendo os limi-

    tes e a localizao dos espaos sagrados e dos demais

    edifcios. A arquitetura desses prdios e a congura-

    o dos espaos pblicos se caracterizam por uma

    expressiva carga simblica, apreensvel e decodic-

    vel para os iniciados e praticantes, em que se observa

    referncias arquitetnicas a mltiplas origens, histori-

    camente reconhecveis (egpcia, pr-colombiana etc),

    e a outras fontes diversas, articuladas livremente, com

    destaque para o uso das cores e das formas.

    Nesse sentido, a operao de apropriao no

    erudita das referncias produz um resultado imag-

    tico impactante, de expresso direta, viabilizando suaapreenso popular. Este procedimento equivale, no

    limite, lgica de elaborao dapop art, sem preten-

    der s-lo. E assim, ao fundir tantas referncias, apenas

    guisa de categorizao, tal produo poderia ser

    denominada, por um neologismo, de pop-sincrtico.

    A concatenao da urbanizao e da arquitetura

    com a cultura vigente neste lcus d-se de formaharmnica, integrando crenas espirituais com

    matria e espao, num todo esttico que embora

    possa se opor ao gosto burgus, ou ao dito rena-

    mento letrado, adqua-se aos objetivos litrgicos e

    sociais para os quais foi projetado.

    Por seu carter estruturador e inclusivo, a catego-

    ria de lugar tornou-se o o condutor adequado para

    a apreenso dos principais elementos rituais e dou-

    trinrios existentes no Vale do Amanhecer, expressos

    em linguagens, performances e iconograas diversas.

    Dentre os vrios espaos que compem o seu com-

    plexo arquitetnico-paisagstico-ritual, deniram-se

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    APRESENTAO

    INRC DO VALE DO AMANHECER8

    dois lugares focais como particularmente signicati-

    vos: rea do Templo (inclusos o Templo-Me, Turigano

    e a Estrela de Nerhu, Casa Grande, Cabana do

    Pequeno Paj, Estrela de Davi, Biblioteca do Jaguar,

    Bonrio, Salo do Grupo Jovem, estacionamento,

    hotel e blocos comerciais) e o Solar dos Mdiuns

    (abrangendo a Estrela Candente, Cachoeira do

    Jaguar, Cabala dos Delfos, Orculo de Koatay 108,

    Quadrantes e Pirmide). Um e outro lugares acomo-

    dam atividades ritualsticas cotidianas e eventuais,

    concentrando o maior nmero de adeptos.Seguindo as diretrizes metodolgicas do INRC,

    a Superintendncia do IPHAN no DF contratou uma

    equipe de pesquisa etnogrca composta por estu-

    diosos, adeptos e interessados para a realizao do

    inventrio do Vale do Amanhecer. Entre ns de 2007

    e maro de 2009, foram realizadas pesquisas de

    campo, entrevistas, preenchimento de chas, levan-tamento documental e reunies com lideranas

    do local com o intuito de aprofundar o conheci-

    mento sobre a localidade. Ao longo do processo

    de pesquisa, dividido em duas etapas (a saber:

    Levantamento preliminar e Identicao), foram

    identicadas 62 referncias culturais, 28 pessoas para

    contato, 103 indicaes bibliogrcas e reunidos 79

    registros audiovisuais.

    Com esta publicao, realizada simultanea-

    mente com a criao de um banco de imagens, a

    Superintendncia do IPHAN no Distrito Federal traz

    a pblico os resultados alcanados nesses trs anos

    de atividades, esperando com isso contribuir para o

    melhor entendimento da dinmica cultural e religiosado Vale do Amanhecer, promover a implementao, de

    fato, de direitos sancionados pela Constituio Federal,

    bem como combater o preconceito, a intolerncia reli-

    giosa e o etnocentrismo que, eventualmente, possam

    permear a apreciao do local por parte da mdia, de

    outros grupos religiosos e da sociedade. Espera-se ainda

    contribuir para o avano do entendimento sobre estelugar diferenciado, apresentando material iconogrco

    e uma descrio detalhada das lideranas que constru-

    ram a sua trajetria de meio sculo de existncia.

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    APRESENTAO

    INRC DO VALE DO AMANHECER 9

    Raul Oscar Zelaya ChavesPresidente da Ordem Espiritualista Crist Vale do Amanhecer

    O Vale do Amanhecer uma doutrina espi-

    ritualista crist fundada em 1959 pela mdium

    clarividente Neiva Chaves Zelaya, mundialmente

    conhecida como Tia Neiva, falecida em 1985.

    Tia Neiva, sergipana de nascimento, parti-

    cipou da construo de Braslia como motorista

    prossional caminhoneira ento devidamente

    contratada pela Novacap. Com a descoberta de sua

    mediunidade, Tia Neiva, por orientao espiritual,

    criou, em 1959, a UESB Unio Espiritualista Seta

    Branca, primeira manifestao comunitria do Vale

    do Amanhecer, em uma rea conhecida como Serra

    do Ouro, no municpio de Alexnia, em Gois. Seusdons medinicos tornaram-se conhecidos na regio

    e em Braslia.

    Tambm por orientao dos espritos, Tia Neiva

    mudou-se com seus lhos e seguidores, em 1964,

    para Taguatinga. Em 1969, xou-se no local onde

    existe, at hoje, o Vale do Amanhecer, prximo a

    Planaltina.Atualmente, a Doutrina do Amanhecer tem

    cerca de 800 mil mdiuns ativos no Templo-Me

    e em mais de 600 templos localizados em todos

    os estados da federao e em outros pases, como

    Estados Unidos, Portugal, Espanha, Alemanha, Japo

    e Bolvia.

    Com indumentrias, rituais e ensinamentos

    exclusivos de nossa doutrina, alm de elementos

    sincreticamente conjugados de religies e doutrinas

    antigas, como o Budismo, o Hindusmo, o Candombl

    e o Catolicismo, o Vale do Amanhecer se tornou alvo

    da curiosidade e do interesse da populao brasileira,

    atraindo turistas, pesquisadores, religiosos, estudantes,

    prossionais da imprensa brasileira e internacional,

    assim como pessoas de todas as classes sociais. O

    atendimento aos pacientes, como so chamados

    os freqentadores no-adeptos de nossos trabalhos,funciona diariamente, das 10h00 s 21h00, em carter

    ocial, e nas 24 horas do dia, em regime de planto.

    A comunidade e o corpo medinico do Vale do

    Amanhecer agradecem Superintendncia do IPHAN

    no Distrito Federal pelo belssimo inventrio, apresen-

    tado neste livro, assim como expressam o desejo de

    verem reconhecidas a nossa cultura e as nossas tra-dies como um patrimnio do povo brasileiro. Este

    reconhecimento seria uma grande homenagem aos

    brasileiros que nela crem, que a ela estimam e que

    por ela foram, so e sero beneciados.

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    Introduo

    INRC DO VALE DO AMANHECER 11

    Impactam quantitativa e qualitativamente o

    leigo as celebraes desenvolvidas pela comuni-

    dade do Vale do Amanhecer. O calendrio, marcado

    por ritos cotidianos (Retiro, Trabalho Ocial, Escalada,

    Quadrante, Unicao), consagraes (Consagraode Enlevo, Consagrao de Falanges do Mestrado,

    Consagrao de Falanges Missionrias, Consagrao

    de Adjuntos, Consagrao do Dia do Doutrinador),

    festividades (Troca de Rosas, Semana de Koatay

    108, Festas Ciganas, estas ltimas promovidas oca-

    sionalmente por alguns adjuntos de Povo), eventos

    intempestivos (reunies com o corpo medinico ou

    segmentos especcos deste, Unicao Especial)

    verdadeiramente representativo de como os adep-

    tos se vem enredados em uma rede de sentidos

    e de prticas em que o sagrado ganha relevos pro-

    nunciados e contribui para a denio dos pers

    Deis SiqueiraDoutora em Sociologia (Universidade de Braslia)

    Marcelo ReisDoutor em Histria (Universidade Estadual de Gois)

    identitrios dos que ali investem suas experincias e

    expectativas.

    As formas de expresso, ofcios e modos de fazer

    no se apresentam menos numerosos na contextura

    do Amanhecer. Os rituais e a cotidianidade que con-ferem singularidade ao Vale se cumprem mediante a

    observncia de uma soma de princpios, de ordenaes

    e de prticas, que, assim depreendemos, convencem-

    se em um roteiro de sentida complexidade e cuja

    perfeita execuo se d em razo do compromisso e,

    no raro, da abnegao de um quadro de ociantes,

    que, informados por uma tradio, denem-se, direta

    ou indiretamente, instrudos e legitimados por Tia

    Neiva, a matriz do movimento religioso em tela.

    Vrias religiosidades no convencionais nas-

    ceram com a Nova Capital. Entretanto, enquanto

    muitas tenderam ao esvaziamento ou apenas se

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    INTRODU

    O

    INRC DO VALE DO AMANHECER12

    mantm, o Vale do Amanhecer no pra de crescer,

    ultrapassando vrios tipos de fronteiras. Em 2010,

    contabilizam os adeptos, a doutrina do Amanhecer

    soma mais de setecentos templos instalados noBrasil e mais de uma dezena de unidades templrias

    no exterior,incluindo o Japo, a Alemanha e os EUA.

    Em face da importncia do Vale do Amanhecer

    para a construo do patrimnio e da identidade

    cultural de Braslia, a Superintendncia do IPHAN no

    Distrito Federal, a partir de agosto de 2007, promo-

    veu o incio do Inventrio Nacional de RefernciasCulturais (INRC)-Vale do Amanhecer, com a realiza-

    o do Levantamento Preliminar, no qual foram

    identicadas 62 referncias culturais, 28 pessoas para

    contato, 103 indicaes bibliogrcas e 79 registros

    audiovisuais, e da Identicao, em que em que

    se discutiu, em relatrio analtico nal, as categorias

    de espao, territrio, memria, paisagem cultural

    e geograa cultural, culminando na compreenso

    do Vale do Amanhecer como lugar sagrado, isto ,

    um lugar imantado, desde a sua escolha, em 1969,

    como futura sede da entidade Obras Sociais da

    Ordem Espiritualista Crist (OSOEC), pela dimenso

    da sacralidade: um lugar diferenciado consagrado

    reproduo e difuso de sua prpria doutrina.

    O INRC do Vale do Amanhecer o primeiro

    trabalho integrante de um possvel inventrio, maisgeral, consagrado Braslia Mstica, dimenso pre-

    sente no imaginrio social de muitos habitantes

    da Capital e pesquisada por socilogos e antrop-

    logos. Nesse sentido, soma-se ao INRC do Vale do

    Amanhecer um segundo inventrio, dedicado aos

    Lugares de Culto de Matriz Africana e Afro-brasileira

    do DF e Entorno, o qual se encontra em andamento1

    .O presente trabalho considera a importncia da

    ampliao da idia de patrimnio cultural, promulgada

    pelos artigos 215 e 216 da Constituio Federal de 1988

    e contemplada pelo Decreto-Lei 3551, de 04 de agosto

    de 2000. Tais instrumentos legais vinculam idia

    de patrimnio cultural no apenas bens de natureza

    material, especialmente os chamados de pedra e cal,

    mas passam a assimilar prticas culturais expressivas da

    diversidade cultural brasileira, constituda por manifes-

    taes oriundas de diferentes grupos que a compem.

    O IPHAN responsvel por preservar a diversi-

    dade cultural que caracteriza a sociedade brasileira, o

    1 O INRC dos Lugares de Culto de Matrizes Africanas e Afro-brasileiras teve incio em 2008, a partir da solicitao de adeptos, preva-lentemente de casas de Umbanda e Candombl, para preservao de lugares centraisde culto e para considerao dos terreirosnas aes de planejamento territorial. Como logo cou claro que a localizao das casas extrapolava os limites territoriais do DistritoFederal, situadas na regio compreendida pelo Entorno, embora mantendo uma ligao com a cidade de Braslia, decidiu-seestender os limites territoriais da pesquisa. At o momento, foram realizadas as fases de Levantamento Preliminar, ocorrida entresetembro de 2008 e agosto de 2009, na qual foram identicados 26 terreiros em atividade, com a aplicao de questionrios do INRCem 20 deles, e fase de Identicao, a partir de setembro de 2009, que aprofundou o conhecimento sobre os terreiros da regiodemarcada ao ampliar o nmero de terreiros identicados.

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    INTRODU

    O

    INRC DO VALE DO AMANHECER 13

    que implica conservar, divulgar e scalizar o patrim-

    nio cultural nacional, alm de assegurar a permanncia

    e o usufruto deste para a atual e as futuras geraes.

    Portanto, o IPHAN compreende patrimnio culturalcomo formas de expresso, modos de criar e de fazer;

    criaes cientcas, artsticas e tecnolgicas; obras,

    objetos, documentos, edicaes; conjuntos urbanos

    e stios de valor histrico, paisagstico, artstico, arque-

    olgico, paleontolgico, ecolgico etc.

    Importa revalidar2: a partir de 04 de agosto de

    2000, por efeito do Decreto 3551, que instituiu oRegistro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou

    o Programa Nacional de Patrimnio Imaterial, o rgo

    vem desempenhando polticas pblicas voltadas para

    o reconhecimento, a valorizao e o apoio sustentvel

    aos chamados bens culturais de natureza imaterial.

    Desde ento, ofcios e modos de fazer tradicionais,

    formas de expresso (musicais, coreogrcas, cnicas,

    literrias e ldicas), lugares onde se concentram ou se

    reproduzem prticas culturais e celebraes coletivas

    associadas, em especial, a minorias tnicas e segmen-

    tos sociais marginalizados, passaram a ser, de modo

    sistemtico, objeto de aes de inventrios, de propo-

    sies de registros e de projetos de salvaguarda.

    De uso e difuso recentes, a expressopatrim-

    nio imaterial ainda causa celeuma e algum equvoco,

    tanto no mbito do debate acadmico quanto entre

    os prprios grupos sociais a cujos universos de prticas

    e representaes culturais o termo se refere. Conforme

    dene o 2 artigo da Conveno para a Salvaguardado Patrimnio Cultural Imaterial, ocorrida em Paris, em

    2003, a expresso patrimnio imaterial designa

    (...) as prticas, representaes, expresses,

    conhecimentos e tcnicas junto com os

    instrumentos, objetos, artefatos e lugares que

    lhes so associados que as comunidades,os grupos e, em alguns casos, os indivduos

    reconhecem como parte integrante de seu

    patrimnio cultural. Este patrimnio cultural

    imaterial, que se transmite de gerao em

    gerao, constantemente recriado pelas

    comunidades e grupos em funo de seu

    ambiente, de sua interao com a natureza

    e de sua histria, gerando um sentimento

    de identidade e continuidade, contribuindo

    assim para promover o respeito diversidade

    cultural e criatividade humana.3

    Embora tenha sido promulgado recentemente,

    cabe lembrar que a instituio do Decreto 3551 repre-

    senta, dentro do IPHAN, o ponto culminante de um

    2 A discusso referente legislao de patrimnio deste captulo se apia no seguinte texto: Ramassote, Rodrigo Martins; Bessoni, Giorge.Patrimnio imaterial: aes e projetos da Superintendncia do IPHAN no DF. Braslia: Superintendncia do IPHAN no DF/Grca Brasil, 2010.

    3 Cury, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais.3 Ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 373.

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    INTRODU

    O

    INRC DO VALE DO AMANHECER14

    longo processo de iniciativas que remontam, no

    limite, ao anteprojeto elaborado em 1936 por Mrio

    de Andrade para a criao do rgo, no qual j se

    previa o estudo e reconhecimento de expressesculturais populares. Por razes diversas, tal perspec-

    tiva no foi implementada naquele momento, mas

    uma srie de eventos, movimentos e experincias

    posteriores podem ser identicados como marcos

    decisivos que impulsionaram tanto a elaborao e

    regulamentao da legislao nacional a respeito

    da matria quanto a formulao de instrumentos jurdicos e administrativos e formas apropriadas de

    acautelamento que levassem em conta as caracte-

    rsticas especcas dos bens em questo. Dentre eles,

    destacam-se: a) Campanha Nacional do Folclore, vin-

    culada ao Ministrio da Educao e Cultura, iniciada na

    segunda metade da dcada de quarenta; b) a criao,

    em 1975, sob a coordenao de Alosio Magalhes,

    do Centro Nacional de Referncias Culturais (CNRC),

    preocupado em empreender um conjunto de ini-

    ciativas empenhadas em repensar a concepo de

    patrimnio ento vigente e ampliar o repertrio de

    reas de atuaes das polticas pblicas de patrim-

    nio; c)a adoo, pela Constituio Federal de 1988, da

    concepo de patrimnio cultural formada por suas

    dimenses material e imaterial (artigos 215 e 216); c)o Seminrio Patrimnio Imaterial: estratgias e formas

    de proteo, realizado em Fortaleza (CE), em 1997, no

    qual se discutiu estratgias e formas de proteo ao

    patrimnio imaterial, produzindo a Carta de Fortaleza;

    d) experincia-piloto de aplicao do mtodo preconi-

    zado pelo Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    (INRC), realizada em 1999 na regio do Museu Aberto

    do Descobrimento, em Porto Seguro (BA).Desde 2002, quando o primeiro bem de natureza

    imaterial foi registrado a saber, o Ofcio das Paneleiras

    de Goiabeiras (ES), no Livro dos Saberes as polticas

    pblicas de patrimnio na rea vm atuando na dire-

    o da incluso de referncias culturais relacionadas

    a segmentos sociais at ento ocialmente relegados

    dentro do rgo, procurando cumprir as determinaesconstitucionais instauradas pela letra da Constituio

    Federal, promulgada em 1988, cuja noo de patrim-

    nio cultural denida pelo artigo 216 como:

    Constituem patrimnio cultural brasileiro os

    bens de natureza material e imaterial tomados

    individualmente ou em conjunto, portadores

    de reerncia identidade, ao, memria

    dos dierentes grupos ormadores da sociedade

    brasileira, nos quais se incluem: I - as ormas de

    expresso; II - os modos de criar, azer e viver; III - as

    criaes cientfcas, artsticas e tecnolgicas; IV - as

    obras, objetos, documentos, edifcaes e demais

    espaos destinados s maniestaes artstico-

    culturais; V - os conjuntos urbanos e stios de valor

    histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico,

    paleontolgico, ecolgico e cientfco

    Pargrao 1. O poder pblico, com a colabo-

    rao da comunidade, promover e proteger

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    INTRODU

    O

    INRC DO VALE DO AMANHECER 15

    o patrimnio cultural brasileiro por meio de

    inventrios, registro, vigilncia, tombamento e

    desapropriao, e de outras ormas de acaute-

    lamento e preservao.4

    Se as dimenses materiais e imateriais do patri-

    mnio so conceitualmente concebidas como

    complementares e indissociveis, no que se refere

    gesto e protees legais envolvidas com bens de

    natureza material e bens de natureza imaterial h

    ntidas diferenas de abordagens: para garantir a inte-

    gridade do bem tombado, so necessrias vistorias,

    visitas tcnicas, scalizaes e, caso necessrio, emisso

    de autorizaes, noticaes e embargos. J em relao

    ao registro, o Decreto 3551 assegura ao bem registrado

    documentao por todos os meios tcnicos admiti-

    dos, cabendo ao IPHAN manter banco de dados com

    o material produzido durante a instruo do processo,

    bem como ampla divulgao e promoo. Enquantoo tombamento busca promover a proteo e conser-

    vao das caractersticas de interesse preservao de

    uma obra de arte ou edicao ou stio arqueolgico, o

    instrumento do registro pressupe o carter processual

    e dinmico das formas e signicados dos bens sob sua

    alada, submetidos por seus praticantes a um contnuo

    processo de recriao e atualizao, colocando nfase,

    sobretudo, na sua continuidade histrica e referncia

    identitria para uma coletividade. Da a substituio,

    como esclarece Mrcia SantAnna, da

    (...) idia de autenticidade ancorada na origi-

    nalidade e permanncia de atributos tangveis

    por outra, que tome como parmetro as pr-

    ticas tradicionais e as dimenses sociais do

    patrimnio, alm dos contextos culturais que

    lhe conerem signifcado [...], a seleo e avalia-

    o dos bens culturais imateriais devem estarapoiadas mais em noes de reerncia cultural

    e de continuidade histrica do que no conceito

    de autenticidade que tradicionalmente estru-

    tura o campo da preservao.5

    Um dos eixos responsveis por instaurar e cons-

    tituir o patrimnio imaterial vincula-se ao conceito de

    referncia cultural. Criada com base em experincias

    anteriores do IPHAN nos municpios de Serro (MG),

    Cidade de Gois (GO) e Diamantina (MG), a metodo-

    logia do Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    (INRC) foi aplicada pela primeira vez na rea do

    Museu Aberto do Descobrimento (MADE), na costa

    sul da Bahia, em 1999. A partir de ento, sua aplicao

    foi adotada e normatizada, com os devidos ajustes a

    4 BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organizao dotexto: Juarez de Oliveira. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1990. (Srie Legislao Brasileira).

    5 Cf. SantAnna, Mrcia. A face imaterial do patrimnio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorizao. In: Abreu,Regina; Chagas, Mrio (orgs.). Memria e patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

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    INTRODU

    O

    INRC DO VALE DO AMANHECER16

    cada contexto e bem cultural especco, pelos inven-

    trios realizados pelas unidades do IPHAN.

    A nfase do INRC se centra em torno dos produ-

    tores dos bens culturais e no sobre os produtos, emsi mesmo, destacando, assim, o carter simblico (e

    poltico) do processo de produo e de apropriao

    do patrimnio cultural. Ou seja, trata-se, sobretudo,

    de pesquisa e de reconhecimento de uma expresso

    social como bem cultural, e no sinnimo de pro-

    cesso de tombamento ou controle similar.

    Anal, como a prpria denio do IPHAN dereferncia cultural explicita, o processo de produ-

    o e de reproduo de um grupo social, de uma

    comunidade, ancora-se na existncia de um universo

    simblico compartilhado por um conjunto de atores

    sociais. Compartilhamento que propicia a coeso e a

    comunicao continuada entre esses mesmos atores.

    E para que o conceito de referncia cultural seja

    de fato operacionalizvel e ecaz, preciso vincul-

    lo ao processo de produo e de reproduo social

    de um grupo especco, ou de uma comunidade

    real, o que, por sua vez, traz tona o conceito de

    conito entre indivduos e grupos. Nas palavras de

    Marisa Veloso: A tradio cultural ruto de uma tes-

    situra muito complexa que os indivduos tecem a partir

    de elementos da histria, da memria e do cotidiano.6Diante disso, no caso especco do Vale,

    identica-se uma tradio cultural que, em termos

    doutrinrios, apresenta-se de modo pronunciado:

    Tia Neiva e a Doutrina do Amanhecer. Essas so as

    fontes fundamentais que autorizam a existncia do

    que se poderia chamar de um universo simblicocompartilhado coletivamente, cujos valores reli-

    giosos so, sobretudo, os ingredientes que unem

    a comunidade. Trata-se de um conjunto de cons-

    trutos simblicos, responsveis por estabelecer a

    dinmica de um processo cultural singular, que, em

    anlise ltima, pe em relevo a maneira especca

    como o grupo sociorreligoso ocupa, utiliza, valoriza,constri sua histria e suas edicaes e objetos,

    conhecimentos, usos, costumes. Temticas que

    podem ser melhor visualizadas se observado o cap-

    tulo 3 do presente esforo descritivo e de anlise.

    Desse ponto de vista, a distino entre patrim-

    nio material e imaterial deve ser encarada do ngulo

    meramente operacional, cunhada, sobretudo, para dis-

    tinguir-se da materialidade da pedra e cal. A nosso ver,

    os smbolos, valores, relaes, processos, cosmovises,

    enm, tudo o que est embutido na noo de imaterial,

    manifesta-se por meio de suportes fsicos, sejam estes

    artefatos ou lugares especcos, celebraes, rituais, pr-

    ticas, vestimentas, objetos, edifcios ou ofcios manuais,

    ou ento, no limite, a mente e o corpo humano.

    Em que pesem os desentendimentos polticosrelacionados conduo da Doutrina; dos pontos de

    vista divergentes diante do crescimento nacional e

    6 Veloso, Marisa. O fetiche do patrimnio. In: Habitus. Goinia, v. 4, n.1, jan./jun. 2006, p. 451.

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    INTRODU

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    INRC DO VALE DO AMANHECER 17

    internacional do Vale do Amanhecer; dos existentes

    entre as diferentes leituras sobre a Doutrina deixada

    por Tia Neiva, pode-se armar que h uma atribuio

    de sentido s prticas culturais e religiosas, as quaispermitem a construo de um marcador identitrio

    compartilhado: adepto do Vale do Amanhecer.

    Utilizando-nos das categorias do IPHAN, adianta-

    mos que o Vale do Amanhecer est sendo considerado

    como parte da LocalidadePlanaltina7. Essa a mais antiga

    cidade do Distrito Federal, tendo sido fundada em 1859.

    Foi integrada ao Distrito Federal (DF) em 1960, quandode sua criao. uma das Regies Administrativas (RA)

    do DF. Tem a mais reputada encenao da Via Sacra do

    DF, com a participao de um grande nmero de pes-

    soas da regio e de outros estados brasileiros. O cenrio

    para a Via Crucis o Morro da Santssima Trindade,conhecido como Morro da Capelinha.

    O Vale, em 2003, contabilizava, entre mdiuns

    residentes e moradores sem liao com a comuni-

    dade religiosa, uma populao de cerca de vinte e duas

    mil pessoas. Atualmente, estima-se que sua popula-

    o seja superior a vinte e cinco mil habitantes. Dista

    quarenta e cinco km do Plano Piloto, a sede do poderfederal e local.8 E Planaltina incorporada por Braslia.

    7 Segundo o Manual do INRC: de acordo com as dimenses e a densidade cultural de um stio que venha a ser inventariado, pode serconveniente, para efeitos prticos, subdividi-lo em localidade .Cf. Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual deAplicao do Inventrio Nacional de Reerncias Culturais . Braslia: Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000.

    8 O Vale do Amanhecer integra a rea de Proteo Ambiental das Bacias do So Bartolomeu. O decreto no. 25.928, de 14/06/2005

    GDF cria o Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer na Regio Administrativa de Planaltina (RA VI).Art. 1 - Fica criado o Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer, na Regio Administrativa de Planaltina RA VI, na rea deProteo Ambiental das Bacias do So Bartolomeu, localizado em rea pblica. Pargrafo nico: O Parque de Uso Mltiplo Vale doAmanhecer, de que trata o caput deste artigo, tem rea total de 36.0318 hectares, e poligonal denida conforme coordenadas UTMconstantes da tabela anexa.Art. 2 - So Objetivos do Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer:I - conservar reas verdes, nativas, exticas ou restauradas, de grande beleza cnica;II - promover a recuperao de reas degradadas e a sua revegetao, com espcies nativas ou exticas;III - estimular o desenvolvimento da educao ambiental e das atividades de recreao e lazer em contato harmnico com a natureza.Art. 3 - A implantao, administrao, e manuteno do Parque so de competncia da Secretaria de Estado de Administrao deParques e Unidades de Conservao.

    Art. 4 - O Parque de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer regido pelas normas constantes da Lei Complementar n 265, de 14 dedezembro de 1999 e do Decreto Distrital n 9.417, de 21 de abril de 1986.Art. 5 - O regimento do Parque Ecolgico de Uso Mltiplo Vale do Amanhecer ser elaborado pela Secretaria de Estado deAdministrao de Parques e Unidades de Conservao, no prazo de 90 dias, em parceria com a Comunidade da Subadministraodo Vale do Amanhecer.Art. 6 - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicao.Art. 7 - Revogam-se as disposies em contrrio. Joaquim D. Roriz GovernadorPublicado no DO/DF de 15.06.2005, p. 03.

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    INTRODU

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    INRC DO VALE DO AMANHECER18

    Esta, por sua vez, est sendo considerada como Stio.9

    Como posto pelo prprio IPHAN, a identi-

    cao de um sentido patrimonial constitui um dos

    sustentculos necessrios para o registro de um bemcomo patrimnio imaterial. No Vale do Amanhecer,

    elementos importantes capazes de consignar a

    idia de patrimnio so observados se tomadas as

    comemoraes e edicaes que nele observamos:

    expresses culturais estas, de fundamentao reli-

    giosa, sobretudo originadas de Tia Neiva.

    Adiantamos ainda que, por se tratar o objetode estudo de uma Doutrina Espiritualista, apresen-

    tam-se, nas vrias descries realizadas neste livro,

    citaes de seres espirituais, os quais, conforme a

    crena local, agem, governam, inuenciam prticas

    e propem ensinamentos doutrinrios. Tratam-se

    de personagens os mais diversos, representados nas

    roupagens de ndios, pretos-velhos, sereias, mdi-

    cos, ciganos, cavaleiros. Enm, de origens culturais

    as mais diversas. Formam, sob a gide de um lder,

    o Esprito de Pai Seta Branca, um grupo organizado

    e com funes distribudas, que tem por nalidade

    a manuteno e a assistncia espiritual da Doutrina.

    Segundo o IPHAN10, o trabalho cultural de

    construo de sentidos e sobre-signicaes base-

    ados no concreto (pois no se trata de elementos

    inerentes natureza de tais objetos, prticas, luga-res, o fato de serem associados identidade social),

    confere, em termos reexivos, a estas realidades o

    que se poderia chamar de sentido patrimonial. Isto ,

    elas passam a integrar um repertrio diferenciado de

    distncias com que se constroem as fronteiras sim-

    blicas e com que se conguram as imagens de si e

    dos outros. Seria este o seu valor, como ingredienteda construo de identidades, ou seja, de tradio e

    de territrios. Assim, apesar dos conitos inerentes a

    qualquer grupo ou comunidade,

    (...) pode-se afrmar que a riqueza do patrim-

    nio cultural consiste em seu poder de reorar

    a idia de pertencimento ao todo coletivo, e

    reorar a identidade social dos mais dierentes

    grupos, trazendo para o espao pblico mlti-

    plas maniestaes culturais, aastando, assim,

    com a ora simblica de sua constituio,

    todos os etiches e simulacros.11

    9 Os Stios podem ser reconhecidos em diferentes escalas: vilas inteiras, bairros, zonas ou manchas, amplas regies geogrcas cul-turalmente diferenciadas e tradicionalmente reconhecveis ou mesma uma rea delimitada para efeitos da implantao de umadeterminada poltica. Cf. Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual de Aplicao do Inventrio Nacional deReerncias Culturais. Braslia: Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000.

    10 Fonseca, Maria Ceclia Londres. Trs anos de existncia do Decreto 3551/2000. In: O registro do patrimnio imaterial: dossi nal dasatividades da comisso e do grupo de trabalho Patrimnio Imaterial. Braslia: Ministrio da Cultura/ IPHAN, 2003.

    11 Veloso, Marisa. O fetiche do patrimnio. In: Habitus. Goinia, v. 4, n.1, jan./jun. 2006, p. 452.

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    INRC DO VALE DO AMANHECER 19

    E por que o Vale do Amanhecer foi escolhido

    entre tantos bens culturais existentes na capital do

    Brasil? Entendemos que o Vale do Amanhecer cor-

    responde concretizao mais evidente, completa ecomplexa da dimenso e da vocao da capital fede-

    ral como cidade mstica, tema de que trataremos

    com mais vagar no captulo inaugural deste livro,

    cujo ttulo Braslia Mstica.

    Estamos certos de que a criao de Braslia via-

    bilizou, entre outras questes, o retorno do fenmeno

    mstico-religioso ou a visibilidade do mesmo, o que,percebe-se, vem ocorrendo nas sociedades ocidentais.

    Porque, considerados diversos grupos culturais, a busca

    pelo sagrado insiste em gurar como uma prtica cul-

    tural destacada. Por seu turno, o Vale do Amanhecer

    se efetiva como um lugar capaz de abrigar referncias

    religiosas mltiplas, parecendo ir ao encontro de uma

    disposio ecumnica que, no imaginrio social, apre-

    senta-se como um marco distintivo da capital federal.

    No Brasil, a persistncia dos fenmenos ms-

    tico-religiosos caracteriza-se como um trao cultural

    fundante e essencial do ethos de seu povo. Braslia,

    por sua vez, foi fundada a partir de uma interao

    entre as dimenses do mstico e do mtico. As pre-

    vises de D. Bosco, que acenavam para a imagem

    de uma terra prometida, iluminaram e iluminammentes e caminhos. E na capital federal o retorno

    do mstico-religioso-sagrado no ocorreu apenas na

    dimenso arquitetnico-urbanstica, mas tambm

    no plano social.

    Ao retomar o Manual de Aplicao do INRC,sublinhamos que as referncias culturais cuidam de

    apontar e delinear a identidade de uma determinada

    comunidade ou grupo social: Sintetizando, armaria

    que, para efeitos metodolgicos, o objeto do INRC

    so atividades, lugares e bens materiais que cons-

    tituam marcos e referncias de identidade para

    determinado grupo social.12

    E no h dvidas sobre a identidade especca

    dos adeptos da Doutrina do Vale do Amanhecer. E

    qual seria a importncia da presente pesquisa para o

    Vale? Converte-se o INRC em um instrumento capaz

    de contribuir com a ampliao do entendimento

    e o eventual reconhecimento por parte do Estado

    brasileiro do Vale do Amanhecer como referncia des-

    tacada no conjunto do patrimnio cultural da regio.

    Escolha religiosa deciso pessoal. Produo

    social e bem cultural dizem respeito sociedade e ao

    Estado, este ltimo enquanto representante e guar-

    dio dos interesses daquela. O INRC, sem dvida,

    contribuir para diminuir o preconceito existente em

    relao doutrina e seus elementos constitutivos.

    Ademais, concordando com Corra & Rosendahl,A cultura popular, negligenciada pela geografa brasileira,

    12 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual de Aplicao do Inventrio Nacional de Reerncias Culturais. Braslia:Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000, p. 30 (grifos nossos).

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    INRC DO VALE DO AMANHECER20

    constitui-se em importante temtica para a inteligibilidade

    do pas. Ela se ope a uma cultura hegemnica.13 Aquela

    no tem sido negligenciada apenas pela Geograa. E

    da religiosidade popular em particular (superstio,crendice, falta de cultura), que dizer? Que dizer, ainda,

    das demais cincias humanas e das polticas pblicas?

    E estas e, em particular, as de carter territorial, devem

    propor aes que representem espacialmente inte-

    resses coletivos (explcitos ou implcitos em pactos e

    compromissos).14

    E o Vale do Amanhecer, considerando-se a varie-dade, a recorrncia de expresses de estranhamento

    e de eventuais desqualicaes existentes a seu

    respeito, indica, certamente, uma construo social,

    cultural, espacial, religiosa, no mnimo, rebelde em

    relao sociedade envolvente.

    Procedimentos metodolgicos

    Em primeiro lugar, destaque-se a boa receptivi-

    dade por parte da comunidade quando da realizao

    do INRC. Foi fundamental, para tanto, o fato de a

    equipe de pesquisa contar com vrios membros que

    so adeptos e moradores do Vale do Amanhecer,

    sendo um deles neto de Tia Neiva, a mentora da

    Doutrina, conrmando a sugesto do Manual de

    Aplicao do INRC ao se referir formao da equipe:

    (...) ser imprescindvel, por vrias razes, envol-

    ver a populao nesses levantamentos (...) que

    as equipes de campo do inventrio incluam,

    alm de especialistas e tcnicos, pessoas do

    lugar que possam uturamente ser os interlocu-

    tores do IPHAN no trabalho de manuteno e

    realimentao desses acervos de inormao.15

    Tambm a nosso favor contou o fato de se tra-

    tar de adeptos de uma religiosidade ancorada em

    Tia Neiva, falecida h poucos anos. Ademais, seguem

    vivos vrios de seus contemporneos, os quais foram

    participantes da criao da Doutrina e do lugar Vale

    do Amanhecer, alm de seus lhos e netos, em sua

    maioria, residentes no Vale e adeptos da Doutrina.

    O bom desenvolvimento do trabalho deveu-se

    ainda: a) excelente integrao de todos os investiga-

    dores; b) suas qualicaes especcas (uma sociloga

    e antroploga doutora, um historiador doutor, uma

    mestra em Educao, um especialista em Histria,

    13 Corra, Roberto Lobato; Rosendahl, Zeny (Org.). Introduo Geografa Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.9.

    14 Steinberg, Marlia. Territrio, ambiente e polticas pblicas espaciais. In: Steinberg, Marlia (Org.). Territrio, ambiente e polticas pbli-cas espaciais. Braslia: Paralelo 15 & LGE Editora, 2006, p. 27.

    15 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Manual de Aplicao do Inventrio Nacional de Reerncias Culturais. Braslia:Departamento de Identicao e Documentao do IPHAN, 2000, p.35.

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    INTRODU

    O

    INRC DO VALE DO AMANHECER 21

    uma gegrafa, um advogado); c) interlocuo, super-

    viso e assistncia contnua dos antroplogos Giorge

    Bessoni e, a partir de sua terceira fase, de Rodrigo

    Martins Ramassote, da Superintendncia Regional doIPHAN no Distrito Federal.

    Este livro fruto de um trabalho coletivo. Mas

    se ancora, e pode ser considerado, um desdobra-

    mento dos resultados de duas pesquisas que vm

    sendo desenvolvidas por dois membros da equipe

    que realizou o INRC:

    a) investigaes realizadas por Marcelo Reis,com vistas elaborao de sua dissertao de

    mestrado, defendida em 200416, e de sua tese de

    doutoramento, centrada na trajetria religiosa de Tia

    Neiva, fundadora e lder da doutrina do Amanhecer,

    trabalho este defendido em 200817.

    b) O projeto de pesquisa Sociologia das Adeses:

    o misticismo em Braslia, coordenado por Deis

    Siqueira18, vem sendo realizado no Departamento

    de Sociologia da UnB, desde nais de 1994, tendo

    contado, inicialmente, com apoio da Fundao de

    Apoio Pesquisa do DF (FAPDF), e quase desde seu

    princpio, at o momento, do Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq).

    Na primeira etapa desta investigao foram

    entrevistadas lideranas de dezessete religiosida-

    des no-convencionais (grupos mstico-esotricos;

    religiosidades alternativas) existentes na capital e

    seu entorno. Autodenominam-se doutrina, losoa,

    escola, ordem, cidade, estilo de vida, as quais tendema negar ou a secundarizar seu estatuto enquanto

    religio. Anal, so vivenciadas como distintas das

    prticas religiosas ocidentais tradicionais. Portanto,

    no foram considerados os catlicos, protestantes,

    espritas e os cultos afro-brasileiros, na medida em

    que a pesquisa centra-se em torno do que poderia

    ser denominado como nova conscincia religiosa19,

    ou religiosidade alternativa enfocada na passagem

    16 Reis, Marcelo Rodrigues dos. Discurso e Temporalidades:A Construo da Memria e da identidade no Vale do Amanhecer (1957-2004). Dissertao de Mestrado. Universidade de Braslia, Instituto de Cincias Humanas, Departamento de Histria, 2004.

    17 Reis, Marcelo Rodrigues dos. Tia Neiva: a trajetria de uma lder religiosa e sua obra, o Vale do Amanhecer (1957-2008). 2008. 301p.Tese (Doutorado em Histria) Departamento de H istria, Universidade de Braslia, Braslia, 2008.

    18 Siqueira, Deis; Lima, Ricardo Barbosa de, (Orgs.). Sociologia das Adeses: novas religiosidades e a busca mstico-esotrica na capital do

    Brasil. 1a ed. Rio de Janeiro; Goinia: Garamond; Vieira, 2003; Siqueira, Deis. As novas religiosidades no Ocidente: Braslia, cidade mstica.Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 2003; Siqueira, Deis. Novas religiosidades na capital do Brasil. Tempo Social. So Paulo:USP, v. 14, n. 01, 2002. Siqueira, Deis; Bandeira, Lourdes. Misticismo no Planalto Central: a Chapada dos Veadeiros, chakra cardacodo planeta. In: Duarte, Laura M. G. (Org.). Tristes Cerrados. Sociedade e D iversidade. Braslia: Paralelo 15, 1998. Siqueira, Deis; Bandeira,Lourdes. O profano e o sagrado na construo da Terra Prometida. In: Nunes, B. F. (Org.). Braslia:a construo do cotidiano. Braslia:Paralelo 15, 1997.

    19 A este respeito ver Soares, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER 23

    b) Identicao descrio sistemtica e

    aprofundada do bem cultural selecionado.

    Com base na aplicao e preenchimento

    das chas de identicao (divididasnas seguintes categorias: saberes e of-

    cios, formas de expresso, celebraes,

    edicaes e lugares), o objetivo desta

    fase consiste na descrio detalhada das

    principais caractersticas culturalmente

    relevantes para a compreenso adequada

    do bem, assim como no diagnstico dequestes ou entraves para a sua reprodu-

    o e continuidade;

    c) Documentao elaborao de estudos

    tcnicos e autorais, de natureza eminen-

    temente etnogrca; produo de um

    documento audiovisual com vistas ins-

    truo do processo de registro; e, ainda, a

    fundamentao do trabalho de insero

    dos dados, obtidos nas etapas anteriores,

    no banco de dados do INRC.

    No caso do Vale do Amanhecer foram preen-

    chidas as seguintes Fichas, conforme prescreve o

    Manual do INRC:

    a) Ficha de Campo: Levantamento Preliminar;b) Identifcao do Stio e Localidades: Ficha de

    Identifcao do Stio; e de Identifcao de Localidade.

    Anexos: Bibliograa; Registros Audiovisuais; Bens cul-

    turais inventariados; Contatos.

    c) Identifcao dos Bens Culturais. Questionrios

    e Fichas de Identifcao: Celebraes; Edifcaes;

    Formas de Expresso; Lugares; Ocios e Modos de Fazer;

    Ficha de campo: Registros Audiovisuais.

    A realizao de entrevistas lmadas com infor-

    mantes privilegiados do Vale (segunda Etapa do INRC

    Identicao) foi fundamental. Porque, de fato,

    conrmaram, ampliaram, modicaram a lista de Bens

    Culturais identicados na Etapa de Levantamento

    Preliminar da pesquisa.

    Principais decises

    Todas as decises terico-metodolgicas foram

    construdas por meio de discusses da equipe de

    pesquisa com tcnicos da Superintendncia do

    IPHAN no Distrito Federal e foi utilizada a linguagem

    (denominaes, conceitos, categorias) tal como

    usada pelos adeptos do Vale do Amanhecer.

    Sobretudo durante o processo de preenchi-

    mento das Fichas de Bens Culturais, foi se aclarando o

    que seria considerado pelos prprios adeptos como

    Celebraes, Edicaes, Ofcios e saberes, Formas de

    Expresso. Estas articulaes foram, em boa medida,

    sendo propiciadas pela prpria lgica interna dasFichas e pela discusso dos contedos, das denies

    e das orientaes do Manual de Aplicao.

    Ocios e modos de azer. Na identicao

    dos principais ofcios e modos de fazer, tomou-se

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER24

    como referncia, no geral, sua articulao com as

    Celebraes. Ou seja, essas serviram de ncora, uma

    vez que os ofcios e modos de fazer a elas se articu-

    lam, diretamente. As Celebraes so centrais parase visualizar e pensar o Vale. Elas so, de fato, um

    eixo de referncia no universo que constitui o Vale

    do Amanhecer. Anal,

    (...) alar de patrimnio cultural mais complexo

    do que pode parecer primeira vista, precisa-

    mente porque o patrimnio cultural ruto derelaes sociais defnidas, historicamente situ-

    adas, e ao mesmo tempo, corporifcado em

    alguma maniestao concreta, seja conceitu-

    almente defnida como material ou imaterial.21

    Formas de expresso. Foram identicadas as

    principais e pensadas como smbolos, estruturado-

    res de sentidos.

    Edifcaes e Lugares. O espao propriamente

    sagrado do Vale inclui muitas edicaes, tais como

    o Templo-Me do Amanhecer, a Estrela Candente, a

    Pirmide, o Lago de Yemanj, a Cachoeira do Jaguar, a

    Casa Grande (Memorial Tia Neiva). Considerando-se a

    espacialidade e organicidade das celebraes, essas

    edicaes foram sistematizadas em dois Lugares:Solar dos Mdiuns e rea do Templo.

    No incio das discusses da equipe envolvida

    com o INRC, seis bens culturais correspondentes ao

    Vale do Amanhecer foram sugeridos para aprofunda-

    mento. Porm, rapidamente o grupo de pesquisa sedeu conta de que no seria possvel um nmero to

    grande de bens, tendo em vista o nvel de aprofunda-

    mento esperado. Haveramos de chegar a um ou dois

    bens que fossem, de fato, os mais signicativos para o

    complexo conjunto que o Vale do Amanhecer.

    Com isso, a primeira aproximao se deu em

    torno das Celebraes. Partiu-se do entendimentode que o Vale do Amanhecer aparentava se resol-

    ver como uma Grande Celebrao. Porque nele

    se desenvolvem mltiplas prticas ritualsticas

    e concentraes de mdiuns em torno de datas

    especcas, quando ocorrem as celebraes mais

    representativas.

    Primeiro de Maio uma das mais importantes,

    mas no prioritria para os adeptos (as celebraes

    anuais aglutinam o maior nmero de pessoas - adep-

    tos, visitantes, turistas, imprensa e no so realizadas

    nos demais Templos do Amanhecer). Seria, inclusive,

    cmodo eleger a celebrao de 1 de Maio, Dia do

    Doutrinador, considerada a importncia que esta

    assume diante da mdia (espetculo ritual 22).

    Trabalho Ofcial e Escalada. Essas duas dimen-ses ritualsticas espelham bem o que o cotidiano

    21 Veloso, Marisa. O fetiche do patrimnio. In: Habitus. Goinia, v. 4, n.1, jan./jun. 2006, p. 439.

    22 Tet Catalo. Espetculo Ritual. Correio Braziliense, Braslia, 04 jun. 1978. Caderno Questes, p. 05.

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER 25

    do Vale (a Doutrina sobreviveria sem outros, mas

    no sem eles). Importa a ressalva de que cada um

    deles caracterizado por um conjunto de rituais. So

    referncias tanto para os visitantes quanto para osmdiuns. Sobretudo o Trabalho Ocial, uma vez que

    este conta com a participao de um nmero mais

    expressivo tanto de pacientes quanto de adeptos.

    Apresenta-se to rico em sentidos e prticas que

    poderia se converter no bem cultural a ser privilegia-

    damente focado. Em resumo, responderia como o

    bem da Doutrina do Vale do Amanhecer .No entanto, para se tratar do Trabalho Ofcial

    entendemos que haveramos de incluir, necessaria-

    mente, o Retiro. Naquele momento o pensamento

    era de que o bem seria o Trabalho Ocial, mas,

    frise-se, indispensvel se faria a incorporao do

    Retiro. Porm, do primeiro, o que interessaria? Mesa,

    Tronos e Curas (atendimento ao pblico). Eliminar os

    trabalhos com os quais o pblico externo no tem

    contato? No. A soluo desejvel seria incluir tudo

    que compe o Trabalho Ocial, o qual se efetiva em

    um conjunto de mais de dez rituais, ainda que cada

    um deles tenha vida prpria. Teramos uma Ficha

    Me do Trabalho Ocial e Fichas Secundrias destes.

    E no seria necessrio pensar o Ritual deEstrela

    Candente? No seria indispensvel a Escalada?Ento,os bens selecionados poderiam ser a Escalada e o

    Trabalho Ofcial. Descrever todos os ritos se converteria

    em tarefa impossvel. E, em termos da compreen-

    so de patrimnio cultural em que nos ancoramos,

    reconhecamos a necessidade de nos resolvermos

    seletivos. Os bens culturais a serem aprofundados/

    Identicados poderiam ser: Dia do Doutrinador, Solar

    dos Mdiuns, Trabalho Ocial, Retiro, Dia da Benode Pai Seta Branca (ocorrncia mensal). Esses, obvia-

    mente, se remetem a bens articulados.

    O bem pode ser o rito, mas este, por sua vez, se

    processa no Vale do Amanhecer em espaos demar-

    cados. Se as celebraes fossem eleitas, haveria de se

    explicitar consequentemente os locais em que so

    desenvolvidas. A questo a que nos impusemos: omapeamento e a exposio dos ritos traduziria ao

    leitor o Vale como um lugar?

    Consenso nal: lugar, e no ritos. At porque,

    caso o eixo fossem os ritos, o Inventrio poderia assu-

    mir um carter excessivamente tecnicista, detalhista,

    cansativo para a apreciao do leitor e do leigo. O

    lugar, sem dvida, mais signicativo e abrangente:

    inclui as demais dimenses. De resto, importa assi-

    nalar que por ocasio da fase inaugural do INRC

    decidimos por reetir o Vale do Amanhecer como

    lugar, deliberao esta que, considerado o seqen-

    ciamento das pesquisas e das produes a que

    demos materialidade, converteu-se de fato em um

    norte metodolgico acertado.

    Assim, o Vale do Amanhecer, autntica zona decopioso inuxo cultural, foi por ns pensado a partir

    de dois lugares que, avaliamos, se pronunciam com

    maior vigor se considerada a geograa sagrada dessa

    que a nossa localidade: a rea do Templo e o Solar dos

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER26

    Mdiuns. Estes so os dois lugares focais em torno dos

    quais se centraram os esforos de pesquisa e de an-

    lise. Ancorados no que traduz o cotidiano do Vale do

    Amanhecer, pode-se armar que este se prende prio-ritariamente ao Templo-Me e ao Solar dos Mdiuns. O

    que move a Doutrina do Amanhecer, em boa medida,

    a crena na cura espiritual (desobsessiva) e esta se

    processa prioritariamente no interior do Templo. A

    cura desobsessiva inclusive lida pelos adeptos como

    o propsito fundamental da Doutrina do Amanhecer.

    O que implica, no mnimo, um contato visual com os

    rituais, com os smbolos, com as vestimentas, estimu-

    lando perguntas, dvidas, memrias, associaes. E o

    Solar dos Mdiuns, por sua vez, proporciona uma viso

    mais panormica do Vale do Amanhecer.

    A rea do Templo, em que se inscreve o Templo-

    Me propriamente, espao a que acorrem em maior

    nmero mdiuns, pacientes, visitantes, turistas e

    imprensa, acomoda ainda outras edicaes, nas

    quais possvel identicar a ocorrncia cotidiana de

    rituais afetos doutrina, assim como a Casa Grande,

    residncia ocial de Tia Neiva, e que, nos dias de hoje,

    d lugar a seu memorial. Esses dois lugares, a rea do

    Templo e a Casa Grande, sublinhemos, dialogam e

    sinergicamente do nimo a um lugar maior, que

    mesmo o Vale do Amanhecer.

    As edicaes mais representativas so: Cabana

    do Pequeno Paj, espao em que crianas e jovens

    principiam sua relao com a doutrina do Vale do

    Amanhecer, a partir de instrues elementares e dainterao com a Espiritualidade; Orfanato Lar das

    Crianas de Me Tildes, desativado, mas que foi por

    Tia Neiva, no transcurso de sua vida, assistido com

    deferncia e empenho pessoais; Estrela de Ner e

    Turigano, setores em que se desenvolvem rituais

    tidos como relevantes pelos adeptos.

    No que toca ao Solar dosMdiuns

    , complexode edicaes ritualsticas a cu aberto, em que se

    encontra ademais a Pirmide, pode-se observar, di-

    ria e tempestivamente, em horrios observados e

    cumpridos com o mximo rigor pelos adeptos, a movi-

    mentao, mormente de mdiuns, daqueles que se

    empenham em dar encaminhamento pluralidade de

    rituais que nesse espao sagrado tm lugar. Destaques

    para as edicaes da Pirmide, cujo acesso franque-

    ado inclusive aos que no tm liao com a doutrina

    do Amanhecer, os Quadrantes, a Cachoeira do Jaguar,

    a Cabala de Koatay 108 e a Cabala de Delfos.

    As reexes de Berque23 e de Ribeiro24, den-

    tre outras, em torno da paisagem foram teis para

    se reetir o Vale do Amanhecer enquanto lugar. O

    primeiro lembra que a paisagem no se reduz ao

    23 Cf. Berque, Augustin. Paisagem marca paisagem matriz: elementos da problemtica para uma Geograa Cultural. In: Corra,Roberto Lobato; Rosendahl, Zeny (Org.). Introduo Geografa Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

    24 Ribeiro, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimnio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007.

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER 27

    mundo visual posto nossa volta. A subjetividade do

    observador sempre a especica, a particulariza. Mas

    a subjetividade mais do que um ponto de vista.

    E ento Ribeiro complementa: o estudo da paisa-gem , portanto, uma coisa distinta da morfologia

    do ambiente, assim como mais do que um espe-

    lho da alma. Porque, de fato, referida aos objetos

    concretos, os quais existem, de fato, sua volta. H

    imaginrio, h evocao, mas h sempre um suporte

    objetivo. Assim, a paisagem no se ancora ou habita

    apenas no objeto ou no sujeito, mas na interao

    complexa de ambos.

    Ademais, apoiados nas leituras de Holzer, enfa-

    tizamos os lugares porque o lugar:

    (...) sempre um centro de signifcados e, por

    extenso, um orte elemento de comunicao,

    de linguagem, mas que nunca seja reduzido a

    um smbolo despido de sua essncia espacial,

    sem a qual torna-se outra coisa, para a qual a

    palavra lugar , no mnimo, inadequada.25

    Entrevistas gravadas: amemria dos veteranos

    A importncia e a centralidade da Memria

    viram-se conrmadas nas entrevistas realizadas junto

    aos adeptos-veteranos: lugar como construo his-

    trica e como ncora de identidade. Anal, como se

    construiu o lugar?

    De qualquer forma, pode-se armar que acoletividade do Amanhecer serve-se profusamente

    do conjunto de representaes consignado pelo

    extenso imaginrio do Vale do Amanhecer de forma

    a se constituir identitariamente. A partilha de crenas,

    expectativas de futuro, valores, saberes, prticas (pro-

    fanas e sagradas), aproxima os adeptos e os inscreve

    num universo cultural que lhes oferece o alicerce do

    pertencimento. O que, de fato, nos aponta para a

    existncia de uma memria socialmente construda.

    O tempo (historicamente identicado ou miti-

    camente construdo) apropriado pela comunidade

    do Vale do Amanhecer, pela via da memria, de sorte

    a infundir-lhe na dimenso do imaginrio coletivo

    representaes constituintes de uma tradio vigo-

    rosa o bastante para legitimar suas aes (tanto

    sagradas quanto profanas).

    E na medida em que esta tradio veio se con-

    solidando e se encontra em plena vigncia, pode-se

    armar a caracterizao identitria do grupo reli-

    gioso: vive-se num tempo contnuo com ares de

    atemporalidade. No presente, os membros da comu-

    nidade do Vale do Amanhecer valem-se de umpassado (reencarnaes individuais e coletivas) no

    intuito de assegurar a sua permanncia no futuro. O

    25 Holzer, Wether. O lugar na geograa humanista. In: Revista Territrio, Rio de Janeiro, ano IV, n. 7, jul/dez, 1999, p. 76.

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER28

    tempo tem uma outra cronologia. No comeou e

    no se ndar na presente vida/encarnao.

    E os lugares sagrados espelham e, simultane-

    amente, ancoram estas representaes sociais. Porsua vez, Entrikin26 destaca como o estudo geogrco

    do lugar dever compreender as experincias indi-

    viduais (narrativas), alm dos discursos pblicos. E

    Holzer arma que para o humanista o lugar:

    (...) signifca um conjunto complexo e simblico,

    que pode ser analisado a partir da experincia

    pessoal de cada um a partir da orientao

    e estruturao do espao, ou da experincia

    grupal (intersubjetiva) do espao como estru-

    turao do espao mtico-conceitual.27

    O lugar, por conseguinte, se d a conhecer se

    validada e analisada a historicidade que o instrui e o

    torna dotado de valores e smbolos singularizadores.Mas a que instrumento apelar de modo a proceder

    a uma imerso no complexo Vale do Amanhecer

    de modo a melhor reconhecer seus bens culturais

    e o lugarque os acomoda. Uma pronta resposta: a

    memria, esta que nos pe diante e, com sorte, no

    ncleo da ampla paisagem humana do Amanhecer.

    A noo categorial de memria aquela, por-

    tanto, que nos permitir reconhecer como seguiram

    se denindo os marcos materiais e imateriais do Valedo Amanhecer e da comunidade que o anima. A

    memria vivica o tempo, d-lhe voz. Uma reexo

    mais detida acerca da memria nos foi exigida. Ao

    agir como um narrador do passado, o depoente, ao

    enunciar e a silenciar, reconstri a si e a seu mundo.

    Negocia com as imagens que lhe acometem estimu-

    lado por questes que se impem no presente.

    H portanto uma memria coletiva produzida

    no interior de uma classe, mas com o poder

    de diuso, que se alimenta de imagens, sen-

    timento, idias e valores que do identidade

    quela classe.28

    Mas quem foram esses homens e mulheres, nosquais pretendamos enxergar o sagrado a imprimir

    sentidos ordenadores de suas existncias, que viriam

    a se dispor excitao de re-presentifcar29o passado

    e se dedicar a construir as suas as memrias do Vale

    do Amanhecer?

    26 Cf. Entrikin, J. Nicholas. The betweenness o place: towards a Geography of modernity. London: Macmillan, 1991.

    27 Holzer, Wether. O lugar na geograa humanista. In: Revista Territrio, Rio de Janeiro, ano IV, n. 7, jul/dez, 1999, p. 71.

    28 Bosi, Ecla. O tempo vivo da memria: ensaios de Psicologia Social. So Paulo: Ateli Editorial, 2003, p.18.

    29 Cf. Catroga, Fernando. Memria e Histria. In: Sandra Jatahy Pesavento (org.). Fronteiras do milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER 29

    Diante desse questionamento, decidimos por

    priorizar os veteranos, aqueles que partilharam do

    convvio Tia Neiva e que, portanto, ajudaram, mate-

    rial e espiritualmente a construir o Vale. Porque, sepor um lado se identicou na primeira Fase do INRC

    o forte carisma de Tia Neiva, por outro, tambm

    signicativo foi o carter coletivo da produo do

    Vale. O carisma inquestionvel de Tia Neiva parece

    que se deveu, tambm, s suas relaes no autori-

    trias com os adeptos e, em particular, com os mais

    prximos, o que acabou se conrmando com os

    adeptos-veteranos entrevistados.

    Outro ganho capital a ser ressalvado na cons-

    tituio desse acervo de memrias contempla o

    prprio objeto de pesquisa. No caso especco do Vale

    do Amanhecer, alm de promover o mapeamento,

    a identicao e constituir documentao de seus

    respectivos bens culturais de natureza imaterial, a exe-

    cuo do inventrio proporciona aos da comunidade,como contrapartida, material audiovisual em que se

    encontram os registros de entrevistas com adeptos

    veteranos de sorte a contribuir com a preservao da

    memria do grupo, essa que se convence, por deni-

    o, em patrimnio cultural imaterial do Amanhecer,

    o que conseqentemente, concorre para a modela-

    o, a defesa e o reforo de sua identidade cultural.Os adeptos, produtores e detentores desses saberes e

    fazeres asseguram assim s geraes futuras o acesso

    a registros importantes da histria do movimento.

    Considerando-se as diculdades de se ques-

    tionar diretamente sobre os lugares focais (Solardos Mdiuns e a rea do Templo - as informa-

    es sobre estes surgiram, sobretudo, durante as

    falas-memria).30

    A estratgia se deu no sentido de no se seguir

    o questionrio sugerido pela Metodologia do INRC

    enquanto roteiro. As entrevistas foram pautadas

    em torno de questes mais amplas entrevistas-

    memria, as quais, para a maioria dos informantes,

    ancoram-se na Doutrina. Da se chegava, com mais

    facilidade, por exemplo, aos Ofcios (oportunizando,

    neste momento, determo-nos na particularidade do

    entrevistado e direcionar-lhe questes especcas).

    Todos os entrevistados tm uma relao bem

    direta com alguma especicidade em termos de

    Ofcio: msica, pintura, indumentria. E a partir destadiversidade, o cenrio se construiu. E, de fato, a linha

    de memria dos entrevistados cumpriu responder s

    perguntas previstas pelo questionrio. Os caminhos

    so as histrias, ou seja, a memria. a memria que

    revela e produz os sentidos que do vigor cultural ao

    lugar. A recproca se faz verdadeira.

    E tambm com relao Tia Neiva: como atri-buir a ela a devida centralidade e status enquanto

    30 Foram realizadas, em 10/01/2009, sbado, dia de Trabalho Ofcial, catorze brevesentrevistas-enquetes com adeptos, tambm lma-das, centradas em trs perguntas sobre a representao do Vale como lugar.

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    INTRODUO

    INRC DO VALE DO AMANHECER30

    atribuidora de sentidos? Para tanto, decidimos por

    analisar com mais vagar as falas representativas das

    memrias dos adeptos com o propsito de identi-

    car Tia Neiva em sua competncia no gerenciamentoe na denio da paisagem sagrada do Amanhecer.

    Segundo Rosendahl, a nfase da Geograa da

    Religio recai:

    (...) sobre o valor e o smbolo de bens religiosos,

    aqui considerados como bens que expressam a

    revelao do sagrado. Tal revelao constitui o

    resultado dos processos de produo simblica

    que azem possvel o ato ou o acontecimento

    no qual a unifcao das duas partes do sm-

    bolo pode se realizar. Para o gegrao, o estudo

    do smbolo, simbolizante e simbolizado, ocorre

    no espao e tempo sagrados (...) o bem sim-

    blico que d sentido e signifcado s prticas

    religiosas de dierentes grupos.31

    Estamos de acordo com a autora. A noo de

    bem simblico central para se pensar o Vale. Isto

    porque a nfase da anlise se d em torno do valor

    e smbolo de bens religiosos (bens que expressam

    a revelao do sagrado). o bem simblico, como

    assinala Rosendahl, que atribui sentido e signicado

    s prticas religiosas de diferentes grupos sociais.

    Entretanto, deve-se destacar que o INRC rea-

    lizado, o qual no um estudo restrito Geograaou qualquer outra das Cincias Humanas, no est

    lendo o Vale do Amanhecer, sobretudo, enquanto

    religio, e sim enquanto lugar diferenciado. O cerne

    da discusso do Inventrio se d em torno dos

    conceitos de bem cultural e atribuio de valor e

    polticas pblicas espaciais. Neste sentido, citando

    outro gegrafo, Claval, tratou-se aqui de se Analisar

    a experincia dos lugares pelos grupos estudados e a

    sua maneira de organizar o espao (...).32

    Ademais, parte-se do pressuposto de que as pr-

    ticas espaciais ocorrem em trs dimenses: o vivido, o

    percebido e o imaginado. Trata-se de um lcus social

    congurado em lugar se consideradas e compreendi-

    das as prticas religioso-culturais que ali so vivenciadas.

    E mais: em que o simblico, materializado nas vestes,nos ritos, nas imagens de natureza e representaes as

    mais diversas, consubstanciam-se em marca identica-

    dora da espacialidade do Amanhecer e da identidade

    daqueles que com ele mantm vvida liao.

    Em sntese: o espao s faz sentido se conside-

    rados os usos que os indivduos fazem dele, como

    31 Catroga, Fernando. Memria e Histria. In: Sandra Jatahy Pesavento (org.). Fronteiras do milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 179.

    32 Claval, Paul.A contribuio rancesa ao desenvolvimento da abordagem cultural na geografa. In: Corra, R. Lobato e Rosendahl, Z. (org.)Introduo geografa cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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    INTRODUO

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    lhe denem seu arranjo simblico, este ltimo que

    se concentra em imprimir na concretude marcas

    profundas de signicao. A materialidade posta se

    edica mediante o incontornvel e desejvel recursoaos estmulos e demarcaes de natureza imaterial.

    Desse duplo emerge o mundo a cultura.

    Com as reexes e recomendaes propor-

    cionadas pelo Manual de Aplicao do Inventrio

    Nacional de Referncias Culturais, que, reiteramos,

    pensou-se no Vale do Amanhecer como um lugar,

    que se arma mediante a especicidade de sua viso

    e organizao de mundo e suas prticas culturais,

    mas sobretudo por se revelar capaz de acomodar

    celebraes (concentraes humanas e performan-

    ces ritualsticas) que igualmente lhe denem uma

    sionomia, no mnimo, invulgar.

    E neste lugar onde foram inventariados os

    bens culturais de tipo Celebraes, Edicaes,

    Formas de Expresso, Ofcios e Modos de Fazer,Lugares, consoante as expectativas da metodolo-

    gia do INRC, os quais sero tratados no captulo III

    Vale como bem cultural Lugar, ainda que a nfase

    recaia sobre os lugares: rea do Templo e Solar dos

    Mdiuns. Isto porque o Vale um Lugar, social-

    mente representado, em que a sua aluso primeira

    (referncia cultural) nos conduz a qualic-lo comoum lugar especial ou, como quer a UNESCO, excep-

    cional. Lugar esse:

    a) onde se realizam rituais e prticas religio-

    sas (com o uso de vestimentas prprias,

    inconfundveis);

    b) em que se situa um conjunto de edica-

    es e

    c) onde residem, majoritariamente, adeptos

    da Doutrina criada por Tia Neiva.

    Mesmo para os adeptos que freqentam algum

    dos mais de 600 Templos do Amanhecer existentes

    em outras cidades do pas ou do exterior, o Vale do

    Amanhecer de Braslia (sede) se arma nuclear, o

    centro, o Templo-Me na linguagem dos adeptos,no qual se inscreve a totalidade das edicaes, dos

    smbolos, em suma, dos signos prprios da Doutrina

    do Amanhecer.

    3

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    Captulo IBraslia Mstica1

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    A presente reexo, inaugural se observada

    a estruturao desta publicao, vincula-se ao pro-

    psito de proporcionar ao leitor elementos de

    compreenso relacionados ao amplo cenrio cultu-

    ral de Braslia que, historicamente, deixou-se informar

    por um elenco de representaes e de prticas que

    a posicionam de modo destacado como uma cidade

    em que o sagrado assume contornos pronunciados.

    Antes de tudo, importa sublinhar: o Vale do

    Amanhecer, alm de suas caractersticas etnogrcas

    Deis SiqueiraDoutora em Sociologia (Universidade de Braslia)

    Marcelo ReisDoutor em Histria (Universidade Estadual de Gois)

    peculiares, tambm est sendo lido como um bem

    cultural integrante e representativo do contexto

    mais amplo da Braslia Mstica. A capital da Repblica

    nasceu ancorada em dois grandes mitos.2

    Braslia, quando de sua gnese, proclamava-se

    prottipo da modernidade, sede do poder e motor

    que se dispunha a ensejar e a acelerar o progresso.

    Denia-se territrio em que se tornaria nalmente

    possvel promover a integrao de mltiplos Brasis.

    Vinha luz a capital em terras do Planalto Central,

    1 Com respeito aos contedos msticos atribudos Braslia, sugerimos, sobretudo, as leituras de:Siqueira, Deis.As novas religiosidades

    no Ocidente: Braslia, cidade mstica. Braslia: EdUnB, 2003; Siqueira, Deis et Lima, Ricardo Barbosa de (Orgs.). Sociologia das Adeses:novas religiosidades e a busca mstico-esotrica na capital do Brasil. 1a ed. Rio de Janeiro: Garamond; Vieira, 2003; Reis, Marcelo. TiaNeiva: a trajetria de uma lder religiosa e sua obra, o Vale do Amanhecer (1957-2008). Tese de Doutorado. Universidade de Braslia,Instituto de Cincias Humanas, Departamento de Histria, 2008, 301 p. Dessa tese de doutoramento, em particular, o captuloBraslia Mstica: Mosaico de Etnias e de Credos.

    2 Siqueira, Deis et Bandeira, Lourdes. O profano e o sagrado na construo da Terra Prometida.In: Nunes, Brasilmar Ferreira. Braslia: Aconstruo do cotidiano. Braslia: Paralelo 15, 1997.

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    sim, mas privada de uma historicidade que a precedesse

    e lhe institusse como desdobramento da tradio, uma

    memria. Carecia de ancoragem histrica. Diante de tal

    ausncia, a aluso aos mitos se fez estratgia simblicaecaz na armao daquela que se pretendeu reco-

    nhecer como a capital de todos os brasileiros.

    Mitos prdigos oportunizavam sua apario

    paralelamente projeo de Braslia na realidade,

    marcada pela obstinao de Juscelino Kubitschek

    expressa por seu nimo de se arraigar a ideais mudan-

    cistas, historicamente engendrados, e de se consolidar

    como o idealizador e propiciador mais entusistico do

    desenvolvimento, o qual, projetivamente, encarregar-

    se-ia de minimizar as desigualdades sociais e fundar

    um novo porvir, uma nova civilizao-civitas.

    Ao citarmos Holston, a idia de civitas evidencia-

    se, por exemplo, no artigo 10 do plano do urbanista

    Lcio Costa, quando aquele expressou:

    (...) o centro de diverses da plataorma uma

    mistura de Piccadilly Circus, Times Square e

    Champs Elyses (...) com galerias, amplas cala-

    das, terraos e cas, (...) no gnero tradicional

    da rua do Ouvidor e das vielas venezianas.

    Tudo isto as idias arquitetnicas do mundo

    antigo, medieval e moderno, do Egito, de

    Roma, Versalhes, Paris, Londres, Veneza, Rio e

    Nova Iorque incorpora-se (...) em um plano

    para a cidade do uturo. Em suma, conclui o

    autor, se devemos acreditar no mito da legiti-mao elaborada por Costa, o plano contm

    toda a arquitetura mundial, passada, presente

    e utura. Sem dvida, o mbito ecumnico (uni-

    versal) dessa legitimao extraordinrio.3

    Alm de ser vista como a cidade do ecumenismo,

    do Terceiro Milnio, Braslia tambm se projetava como

    uma espacialidade geogrca em se consolidariam

    toda sorte de inovaes e de desenvolvimentos, nas

    reas de Sade, Habitao, Educao, Planejamento e

    outras. Em todas elas Braslia funcionaria como baliza-

    mento de utopia do futuro.

    Evidencia-se, considerada a trama discursiva a

    que dava forma, o intento aclarado de promover a

    consolidao de um imaginrio utpico4 destinadoa ajustar sentidos psteros Nova Capital e que

    resultasse ecaz o bastante para salvaguardar suas

    aspiraes de poder.

    Deste Planalto Central, desta solido que, em

    breve, se transormar em crebro das mais altas

    decises nacionais, lano os olhos mais uma vez

    3 Holston, James.A cidade modernista . Uma crtica de Braslia e sua utopia. So Paulo: Cia das Letras, 1993.

    4 Acerca do dilogo entre imaginrio e utopia, sugerimos a leitura do artigo de Pasn, Angel Enrique Carretero. Imaginario yutopias.Athenea Digital, 07, 40-60. Disponvel em: . Acesso em 07 de novembro de 2007.

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    sobre o amanh de meu Pas e antevejo esta

    alvorada, com uma inquebrantvel e uma

    confana sem limites no seu grande destino.5

    aventura inslita e aferrada de dar seiva e legiti-

    mao a um novo territrio e sua correspondente face

    humana somava-se a orquestrao de uma imagem

    futurista que deveria recomendar e assegurar a gran-

    deza de seu destino e da suapertinncia histrica.

    Assim, apesar de inmeras suspeies e das

    duras crticas direcionadas ao projeto de trans-

    ferncia da capital6, uma turma de entusiastas,

    intelectuais e especialistas aderiram ao sonho de

    Juscelino Kubitscheck. Entre eles, importa citar, Oscar

    Niemeyer, Lcio Costa, Israel Pinheiro, Bernardo

    Sayo, Athos Bulco, Burle Marx.

    Pioneirismo, bravura e empenho edicador

    uniam os candangos, que, a despeito de suas ml-

    tiplas origens, formaram uma comunidade que sevia orientada pela consecuo de um feito que, no

    limite, entendiam e representavam como herico.

    Braslia deriva, portanto, de uma dupla dispo-

    sio, que se pode distinguir onrica: os sonhos do

    progresso, fundao de uma nova civilizao, enla-

    ado de modernidade, de vanguarda, de integrao

    do pas, e um segundo, gurado pelo profetismo de

    Dom Bosco e sua prescincia no despontar de umaterra de bem-aventurana. So esses os mitos funda-

    cionais, de razes postas aos pares, propiciadores de um

    dilogo importantemente estvel, discursivamente

    trabalhados e retrabalhados, que, no devir, viabiliza-

    ram a constituio dos marcadores identitrios na

    nova Capital Federal: misticismo e modernidade; terra

    de predestinao e de oportunidades; mito e razo.

    Mas se faz necessrio que o ancoradouro deste

    ato herico e destes mitos sejam contextualizados

    historicamente. Estamos nos referindo ao Ocidente a

    partir da segunda metade do sculo XX.

    Novas formas de religiosidadeno Ocidente

    Laplantine tipica trs vozes do Imaginrio ao

    operar com a noo de imaginao coletiva: a da

    espera messinica ou milenarista, a da possesso e a

    da utopia. Ou seja, trs tipos de formulaes mentais

    5 Fragmento do pronunciamento dado pelo presidente Juscelino Kubitschek, quando de sua visita inaugural ao local exato em queseria erguida a Nova Capital do Brasil (02/10/1956). Notabilizou-se a histrica frase de Juscelino Kubitscheck e, atualmente, pode serencontrada, em destaque, no Museu da Cidade, Centro Cultural Trs Poderes. Ver: Kubitscheck, Juscelino. 50 anos em 5:meu cami-nho para Braslia. V. III. Rio de Janeiro: Edies Bloch, 1978, p. 83 (grifos nossos).

    6 Com respeito s vozes que se pronunciaram contrrias mudana da capital, ver: Santos, Michelle. A construo de Braslia nasTramas e Imagens e Memrias pela imprensa escrita. Dissertao de Mestrado. Universidade de Braslia, Instituto de Cincias Humanas,Departamento de Histria, 2008.

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    performatizadas por homens e mulheres quando

    de seu exerccio imaginrio de projetar o futuro. A

    primeira delas vai ao encontro do momentum hist-

    rico em que nasceram Braslia e todas as projees aela associadas, em especial as representaes que a

    identicavam como uma Terra Prometida e deprome-

    timentos. Segundo aquele autor, a espera messinica

    (ou milenarista) seria a resposta sociolgica naturalde

    uma sociedade ameaada em seus fundamentos7.

    O Ocidente, poca, assumia uma postura

    questionadora de seus valores universais e de suas

    verdades cienticismo idealizado, racionalismo

    fundamentalista, ideologias totalitrias. Fala-se ainda,

    na atualidade, em falncia de paradigmas culturais

    monolticos; derrocada das grandes fundamentaes

    cientcas; desmoronamento das interpretaes un-

    vocas da realidade, de matrizes tica ou esttica8.

    A deliberao e efetiva construo de Braslia

    tm lugar na segunda metade da dcada de 1950e sua armao como Capital Mstica se resolve nas

    dcadas seguintes. E essas temporalidades mencio-

    nadas se vem, sim, afetadas pelas torrentes que,

    como fez reverberar o historiador Keith Jenkins9,

    desaguaram na morte dos centros.

    De quais transformaes estamos a falar? Na

    arena das relaes internacionais, desdobramentos

    das duas grandes guerras mundiais. Corridas impe-

    rialistas que levaram a desatinos e aproximaocom a dura face da desrazo. No campo cientco, o

    avano da Filosoa da Cincia, que nos apresentou o

    anarquismo epistemolgico de Feyerabend, a reva-

    lorizao da imaginao pela verve bachelardiana,

    o falsicacionismo popperiano, os paradigmas kuh-

    nianos, a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, o

    Princpio da Indeterminao, ou da Incerteza enun-

    ciado revolucionrio da Mecnica Quntica proposto

    pelo fsico alemo Werner Heisenberg, submeteu a

    comunidade e o modelo cientcos ao exaustivo

    exame de suas ntimas e xas verdades.

    No terreno losco, a imagem estanque de

    uma inexorvel curva evolutiva da histria e a un-

    voca razo de inspirao hegeliana pareciam dar

    lugar s proposies loscas direcionadas plura-lidade e descontinuidade dos saberes, consignadas

    por aqueles que foram, em medida varivel, reco-

    nhecidos como herdeiros do ruidoso iconoclastismo

    nietzschiano, entre eles, Martin Heidegger, Michel

    Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze.

    7 Laplantine, Franois. As Trs Vozes do Imaginrio. Trad. Srgio Coelho. So Paulo, n. 1, Out, 1993. Disponvel em: . Acesso em 10 de maio de 2007.

    8 Tarnas, Richard.A epopia do pensamento ocidental: para compreender as idias que moldaram nossa viso de mundo. Trad. BeatrizSidou. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 422-440.

    9 Jenkins, Keith.A Histria repensada. Trad. Mrio Vilela. So Paulo: Contexto, 2001, p. 94.

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    Na dimenso poltico-econmica, alm do

    estado de privao a que se v submetida frao

    expressiva da populao mundial, ressalvamos os

    regimes de governo que se queriam denir e seanunciaram consagradores da eqidade entre os

    homens, mas que, no plano prtico, viram-se desca-

    racterizados, constituindo-se, no raro, totalitrios.

    Deste exame crtico por que passaram os

    centros tradicionais (etnocentrismo, falocentrismo,

    logocentrismo, antropocentrismo, eurocentrismo,

    eclesiocentrismo) e suas correspondentes verdades

    essenciais, intensicado na segunda metade do sculo

    XX, agrega-se o reconhecimento da existncia de um

    esprito ocidental representado por uma cultura poli-

    nuclear e crescentemente insubmisso a saberes e a

    fazeres que se pretenderam ordenadores e totalizantes.

    A