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Direitos Humanosuma contribuio mineira
Educaoem
Distribui o Gratuita
Coletnea de artigos elaborada pelo Projeto Integrando Aes de Educao emDireitos Humanos em Minas Gerais: uma parceria entre FMDH e UFMG.
rgo Fomentador: SEDH-Governo Federal
Organizadores:
Mari BrochadoDcio Abreu
Natlia Freitas
Criao e Design: Matheus Hermsdorff
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Direitos Humanosuma contribuio mineira
Educaoem
Coletnea de artigos elaborada pelo Projeto Integrando Aes de Educao emDireitos Humanos em Minas Gerais: uma parceria entre FMDH e UFMG.
rgo Fomentador: SEDH-Governo Federal
Organizadores:
Mari BrochadoDcio Abreu
Natlia Freitas
Criao e Design: Matheus Hermsdorff
Distribui o Gratuita
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E24 Educao em direitos humanos : uma contribuio
mineira / Organizao: Mari Brochado, DcioAbreu, Natlia Freitas. - Belo Horizonte :Ed. UFMG: Proex, 2009.
ISBN: 978-85-88221-22-2
1. Direitos humanos I. Brochado, Mari.II. Abreu, Dcio. III. Freitas, Natlia.
CDU: 342.7
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NDICE
APRESENTAO ................................................................................................................................................... 7Erasto Fortes Mendona
A EXTENSO UNIVERSITRIA E A EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ............................................. 11Paula Cambraia Mendona Viana e Egdia Maria de Almeida Aiexe
PEDAGOGIA DA EMANCIPAO APLICADA EM DIREITOS HUMANOS .................................................. 17Miracy Barbosa S. Gustim
PAIDEIA OU EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ..................................................... 29Joaquim Carlos Salgado
QUAL ESCOLA QUEREMOS? EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ........................................................ 37Adla Betsaida, Natlia Freitas e Lucas Pereira
A SALA DE AULA COMO LABORATRIO DE CIDADANIA .......................................................................... 47Egdia Maria de Almeida Aiexe
A SALA DE AULA E OS DIREITOS HUMANOS - CONCEITOS SUBJETIVOS E SUBLIMADOS ................ 57Joo Batista Rocha
EDUCAO MORAL E POLTICA DE CRIANAS E DIREITOS HUMANOS ................................................ 71Maria Fernanda Salcedo Repols
DIREITOS HUMANOS E PROMOO DA CULTURA DE PAZ ...................................................................... 83Clber Lizardo de Assis
PARA UMA NOVA VISO DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ....................................................... 93Pedro Henrique Lima, Lucas Winter e Mariana Lacerda
PEDAGOGIA DA AUTONOMIA E PEDAGOGIA JURDICA ............................................................................ 103Dcio de Abreu, Lvia Martelletto e Matheus Hermsdorff
TRANSVERSALIDADE E EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ................................................................ 113Flvia Santana da Silva e Mariana Canuto
SOLIDARIEDADE E EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ......................................................................... 123
Mrcia de Olveira AlvaresEDUCAO EM DIREITOS HUMANOS COMO FORMAO DA CIDADANIA CULTURAL ..................... 133
Mari Brochado
PLANO NACIONAL DE EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ................................................................... 145Anglica Barroso, Caio Benevides e Diego Laignier
DISPOSITIVOS DO ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE PARA IMPLEMENTAODO PLANO NACIONAL DE EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ............................................................... 153
gina Glauce Pereira e Estevo Damazo
MDIA, VIOLNCIA E EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ..................................................................... 165Robson Svio Souza
DIREITOS HUMANOS E POLCIA, BINMIO FUNDAMENTAL DA SEGURANA PBLICA ................... 175Capito Cludio Duani Martins
TERCEIRO SETOR E EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS ........................................................................ 185Nathlia Lipovetsky, Guilherme Jeangregrio e Jordo Silva
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APRESENTAO
Passados mais de sessenta anos de existncia da Declarao Universal dos Direitos Humanos
e de seus desdobramentos na forma de tratados e acordos internacionais que alcanaram a
compreenso da ampliao e da positivao de direitos especialmente voltados para
segmentos da sociedade humana sobre os quais deve estar presente a proteo do Estado,
foroso reconhecer que o mundo segue sendo violador dos direitos fundamentais.
Sobre a afirmao proclamada no primeiro artigo da Declarao Universal dos Direitos
Humanos de que todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e direitos e que devem
agir uns com os outros num esprito de fraternidade, j Hanna Arendt contrapunha a sua
polmica posio de que os homens no nascem livres e iguais. verdade que essa condio
no nos dada como um presente dos cus, mas pode ser alcanada to somente na medida
em que nos organizamos e lutamos por direitos.
Essa preocupao nos indica que a conscincia do outro como um igual precisa ser lembrada,
reconhecida, aperfeioada a cada momento de nosso processo de permanente educao. Porisso mesmo, j a Declarao Universal dos Direitos Humanos, em seu prembulo, preocupou-
se em afirmar a necessidade de instaurao de processos educativos que permitam que a
conscincia sobre a dignidade da pessoa humana seja assimilada como um valor universal.
A Conferncia de Viena realizada em 1993 pela Organizao das Naes Unidas clareou e
objetivou ainda mais essa preocupao, instaurando a Dcada Internacional da Educao em
Direitos Humanos e instando os pases membros a organizarem-se para a realizaosistemtica de processos educacionais capazes de promover a compreenso dos direitos
fundamentais e universais do ser humano como forma eficaz para o enfrentamento s
violaes no campo dos direitos civis e polticos, econmicos, sociais, culturais e ambientais,
bem como no combate intolerncia tnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial,
fsico-individual, de gnero, de orientao sexual, de nacionalidade, de opo poltica dentre
outras.
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O Brasil respondeu a essa demanda internacional com a criao de um Programa Nacional de
Direitos Humanos e, posteriormente, com a instituio de um Comit Nacional de Educao
em Direitos Humanos que teve como primeira tarefa a elaborao de um Plano Nacional de
Educao em Direitos Humanos orientador das polticas pblicas para essa temtica. Proposto
em sua verso preliminar no ano de 2003, o Plano Nacional de Educao em Direitos
Humanos foi apresentado e debatido em encontros estaduais que geraram a contribuio de
mais de cinco mil emendas, de maneira que, no final de 2006 pde o Estado brasileiro contar
com um instrumento normativo que define diretrizes e princpios gerais e estabelece aes
programticas a serem alcanadas em cinco grandes reas: na educao bsica, na educao
superior, na educao no-formal, na mdia e na formao dos profissionais dos sistemas de
justia e de segurana pblica.
A Educao em Direitos Humanos compreendida como um processo sistemtico e
multidimensional que orienta a formao de sujeitos de direitos, articulando vrias dimenses
como a apreenso de conhecimentos sobre os direitos humanos; a afirmao de valores,
atitudes e prticas que expressem uma cultura de direitos humanos; a afirmao de uma
conscincia cidad; o desenvolvimento de processos metodolgicos participativos; e o
fortalecimento de prticas individuais e sociais que gerem aes e instrumentos em favor dapromoo, da proteo e da defesa dos direitos humanos.
Em acordo com o Programa Mundial de Educao em Direitos Humanos da ONU, o nosso
Plano Nacional considera que os direitos humanos so uma rea de conhecimento
transdisciplinar que deve estar presente na formao de todas e todos desde a mais tenra
idade, alcanando, inclusive, a formao inicial e continuada de nvel superior de todos os
cursos.
A certeza de que h muito ainda a ser conquistado no campo do respeito dignidade da
pessoa humana, sem qualquer distino, nos impele a aprofundar cada vez mais os processos
formativos inspirados nos valores humanistas embasados nos princpios da liberdade, da
igualdade, da equidade e da diversidade, da solidariedade e da fraternidade entre os seres
humanos. A afirmao da universalidade, da indivisibilidade e da interdependncia desses
direitos fundamentais constitui o lastro para a implantao na sociedade de uma cultura de
direitos humanos, de respeito s diversidades e de formao de cidados capazes de zelar pelo
exerccio e pelo controle democrtico das aes do Estado.
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O acesso a esse material, em especial a educadores e estudantes, poder constituir-se
importante fonte de apreenso de conhecimentos, de afirmao de valores e do fortalecimento
de prticas protetivas dos direitos fundamentais da pessoa humana. A UFMG e o Frum
Mineiro de Educao em Direitos Humanos, com essa obra, colabora de maneira decisiva
para a efetivao dos objetivos do Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos,
afirmando mais uma vez a importncia e o compromisso da Universidade Pblica e dos
organismos da sociedade civil com a realizao de polticas pblicas que ampliam a formao
de uma cultura de direitos humanos na sociedade brasileira.
queles que sonham com a construo de uma sociedade planetria onde a essncia da
igualdade e da liberdade de todos os seres humanos possa ser a lgica de sua organizao,resta a compreenso de que um Planeta Mundializado s ser alcanado quando a nfase ao
que comum famlia humana, com o concurso da Fraternidade, for um imperativo da
convivncia. Considerar o outro como um diferente e um semelhante, na nossa condio de
sermos todos nicos e, ao mesmo tempo, semelhantes porque irmos em humanidade, nos
leva fraternidade praticada por meio do olhar mesma altura do olhar do outro.
Esta obra disponibilizada ao grande pblico mais um importante elemento para aconsecuo dessa utopia, aqui tomada no como um objetivo irrealizvel, mas como um
horizonte a ser alcanado pelo esforo coletivo comprometido com a construo de um
mundo justo e igualitrio.
Erasto Fortes Mendona1
1 Doutor em Educao. Coordenador-Geral de Educao em Direitos Humanos da Secretaria Especial dosDireitos Humanos da Presidncia da Repblica e professor aposentado da Universidade de Braslia.
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A EXTENSO UNIVERSITRIA E A EDUCAO EM DIREITOS
HUMANOS2
Paula Cambraia de Mendona Vianna
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Egdia Maria de Almeida Aeixe
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Uma Universidade deve ser capaz de cumprir, de forma harmnica e indissocivel suas
funes de Ensino, Pesquisa e Extenso.
A Extenso, pela sua capacidade de realizar interaes diversas e mltiplas com os diferentes
setores da sociedade, viabiliza o compromisso da responsabilidade social universitria,gerando conhecimento, transmitindo-os e contribuindo com as transformaes que ocorrem na
sociedade. Isto s se torna possvel porque as aes extensionistas so sustentadas por uma
prtica dialgica, interdisciplinar e impactante tanto no contexto social quanto na formao
dos atores envolvidos no processo.
A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem se destacado no cenrio de nosso
estado pelo seu engajamento nos esforos para resoluo dos problemas que assolam nossasociedade, dentre os quais o da violncia, que tem sido objeto de crescente preocupao em
nossas comunidades.
O avano da violncia encontra campo frtil nas sociedades que se caracterizam pela
desigualdade social. A baixa renda familiar e a falta de expectativa de emprego tm levado as
nossas crianas e adolescentes ao mundo da explorao sexual e das drogas. H, portanto,
nesse contexto, um problema srio de cooptao de crianas e jovens, iludidos pelas drogas epelo ganho fcil de dinheiro.
Por outro lado, a violncia tambm est associada impunidade legal e social e acontece em
ambientes provveis, onde a relao de poder dominador/dominado ocorre sem a interveno
2Texto resultante da transcrio da conferncia proferida no I Seminrio Mineiro de Educao em Direitos
Humanos, ocorrido na Faculdade de Direito da UFMG nos dias 28 e 29 de maio de 20093Pr-Reitora Adjunta de Extenso/UFMG.4Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora do Frum Mineiro deDireitos Humanos.
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severa e clara de prticas e sanes de coero e punio ao dominador pelo abuso de poder e
pratica de crime contra indivduos e, porque no, contra a sociedade.
De uma forma geral, a violncia compromete a qualidade de vida e a sade dos cidados,
impede o acesso aos servios pblicos, rouba postos de trabalho, onera investimentos e,
principalmente, tem sido responsvel por um nmero crescente de mortes entre jovens,
particularmente nos grandes centros urbanos.
A UFMG vem, h alguns anos, desenvolvendoprogramas e projetos de formao junto a
educadores que atuam com crianas e adolescentes em diferentes contextos: creches, pr-
escolas, abrigos, centros de internao e outros. No desenvolvimento dessas aes, pode-sedeparar com a riqueza de um universo que transcende ao acadmico. A interlocuo
permanente com estes parceiros propicia a construo de um conhecimento embasado na
realidade e no cotidiano dos profissionais, crianas e adolescentes.
Esta parceria sinaliza para o respeito s especificidades de cada comunidade assim como a sua
formatao enquanto grupo social, na medida em que a nossa participao busca amalgamar
de forma sistemtica os conhecimentos construdos e as experincias e reflexes estabelecidasao longo dos ltimos anos.
Vivemos na Universidade um momento muito especial, em que projetos que nos remetem
incluso social, responsabilidade social, enfrentamento s diversas formas de violncia contra
crianas e adolescentes compem a nossa agenda. Entendemos que a atuao nestes projetos
uma deciso poltica da instituio, em funo de seu compromisso social como universidade
pblica, comprometida com o exerccio pleno da cidadania e a superao de formas deexcluso social e marginalizao.
Salientamos alguns destes projetos, que, sem sombra de dvida, mantm entre si uma relao
de proximidade e coerncia no seu desenvolvimento: o Escola que Protege, o Programa de
Enfrentamento Violncia Sexual Infanto-Juvenil (PAIR), a Escola de Tempo Integral, o
Conexes de Saberes.
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Uma discusso que nos instiga a articulao entre os instrumentos legais de proteo s
crianas, adolescentes e mulheres (Estatuto da Criana e do Adolescente - ECA, Lei Maria da
Penha e outros) e os projetos de EDH.
Antes de abordar a articulao entre os instrumentos legais referidos, caberia pensarmos o que
existe em comum entre ambos os dispositivos, at para sabermos se faz sentido, no conjunto
de polticas pblicas voltadas ao atendimento de grupos em situao de vulnerabilidade, falar
em uma articulao entre os instrumentos legais de proteo e os projetos de EDH. Em
seguida, poderemos avaliar a eficcia dessa articulao, os desafios e caminhos que podem ser
trilhados pelos operadores de polticas pblicas direcionadas para atender tais situaes.
O primeiro aspecto que se poderia dizer em comum ou afim entre instrumentos legais de
proteo e projetos de EDH o escopo: corrigir distores provocadas, muitas vezes, pela
ausncia de mecanismos de promoo dessas pessoas antes de se tornarem vulnerveis, ou
populaes sensveis, como alguns preferem.
Falando em vulnerabilidade, poderamos distinguir, de incio, entre a) vulnerabilidades de
ordem fsica (desenvolvimento biolgico, como idade, condies de sade, dentre outras);bio-psiquico-emocional (e a, identificaramos o prprio desenvolvimento psquico, ou
situaes de sofrimento ou deficincia mental, alcoolismo, dependncia qumica, etc.); b)
vulnerabilidades de ordem scio-cultural (pobreza extrema, relaes de violncia
intrafamiliar, etc.).
O que leva a definirmos como grupos vulnerveis ou populaes sensveis, antes de mais
nada, a falta de recursos para responder a uma precariedade (ainda que transitria oucircunstancial) que tem como efeito mais nefasto o de gerar relaes de subalternidade no
interior de comunidades e de grupos sociais.
Poderamos argumentar que mulheres, crianas e adolescentes, idosos, portadores de
sofrimento mental ou deficincia mental (dentre outros grupos) no nascem vulnerveis. E a,
tristemente, precisamos dizer que no plano scio-cultural no se nasce vulnervel; torna-se
vulnervel, por fora de fatores de natureza scio-econmico-cultural, que se do tambm
como resultantes de uma conformao poltica.
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Um outro elemento que entra na discusso diz respeito ao lugar social de cada um dos
membros de uma comunidade poltica. A sociedade elege os seus cidados, por mais que isso
soe medieval. Somos ainda uma sociedade hierrquica, no em nossa conformao jurdica,
por certo, mas em nossas prticas sociais. Elegemos quem cidado, ou, como afirmam
autores como Charles Taylor, ao tratar do tema do reconhecimento, e Jos Murilo de
Carvalho, ao tratar da questo da cidadania, quem cidado de primeira e quem cidado
de segunda classe. Para um comeo de conversa, temos que admitir a existncia, entre ns,
de sub-cidadanias e sobre-cidadanias. neste contexto que nascem as leis e instrumentos de
que nos valemos para promover ou defender direitos de cidados vtimas de violaes aos
seus direitos fundamentais.
Se podemos admitir como pressuposto que a vulnerabilidade de ordem scio-cultural
produto de fatores scio-econmico-culturais, podemos admitir como possvel consenso que
ser pela mesma via que ela poder ser desconstruda. E, como considerao preliminar,
afirmaremos que as polticas (no apenas programas e projetos) de EDH devem
necessariamente apontar nessa direo. Mas o desafio proposto pelo tema colocado, no est
ainda respondido. Ele traz complexidades que no podem ser ignoradas, sob pena de se
produzir mais e novas violaes a direitos. Dessa forma, passamos segunda parte de nossasreflexes.
2 - Como responder a tais fenmenos sem invadir a esfera da autonomia dos respectivos
indivduos ou sem desqualificar sua condio de cidados plenos, como supe o Estado
Democrtico de Direito?
Por muito tempo, os movimentos sociais reivindicaram direitos sociais, como a redistribuio
scio-econmica, para reduzir as graves desigualdades materiais de grandes parcelas da
populao brasileira, fruto ainda das distores de um modelo de Estado Liberal, ausente,
indiferente s necessidades humanas, s injustias sociais. Mas sempre houve uma incmoda
sensao, para aqueles atores sociais srios e comprometidos com a justia social em sentido
amplo, de que as polticas gestadas em moldes assistencialistas estariam gestando a
perpetuao da condio dos usurios desses programas.
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A promulgao de leis como o Estatuto da Criana e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e a
Lei Maria da Penha representou um esforo dos setores organizados (a chamada sociedade
civil organizada) para dar um novo desenho/ formato s demandas por justia social, a partir
do que se passou a chamar empoderamento de setores em situao de risco pessoal e social,
como crianas e adolescentes, mulheres, idosos, pessoas com deficincia ou sofrimento
mental, etc.
Essas leis impuseram uma nova tica nas relaes (seja no plano privado, seja na esfera do
setor pblico) com essas pessoas e grupos. De portadores de vulnerabilidades, passaram a ser
considerados (ainda que no plano formal) portadores de direitos. Ou, para usar o termo
correto, sujeitos de direitos. Como isso possvel? Uma lei pode mudar a realidade, muitosperguntam, ou duvidam. No, uma lei no muda a realidade. Primeiro, porque ela uma
abstrao. Portanto, ela requer um ator social que a aplique, que a faa operar sobre a
realidade.
Segundo, porque, conforme o foco, ela pode at produzir o efeito contrrio. Vemos como
algumas garantias conquistadas pela mulher na Constituio Federal levaram reduo do
nvel de empregos oferecidos a elas. Notamos tambm o surgimento de artifcios para lesaremtais direitos, por parte de empregadores, isto sem falar nas prticas de esterilizao
compulsria de mulheres pobres, por parte do Poder Pblico em algumas regies e cidades.
Tanto o ECA quanto a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso, dentre outras leis dessa
natureza, vieram propor um reposicionamento scio-poltico-cultural de atores estigmatizados
e marginalizados. No entanto, como instrumentos ou ferramentas, eles requerem um
protagonismo das prprias pessoas afetadas pelas violaes de direitos que caracterizam essespblicos/setores. Eis a um grande, seno o maior desafio de toda a sociedade e do Poder
Pblico. Como exigir-lhes um protagonismo, uma ao se esto amedrontados, acossados e se
sentem pequenos, inferiores em relao s outras pessoas?
Como falar de direitos humanos, de cidadania, sem cairmos no vazio de um discurso terico?
Como criar e implementar cada vez mais polticas preventivas e cada vez menos polticas
compensatrias? O papel da poltica deve ser o de evitar que o problema acontea e no
buscar mecanismos para compensar os danos j instalados.
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3 - Feitas estas ponderaes, iniciamos uma reflexo a respeito de uma aposta na educao em
direitos humanos como a porta que abre vrias outras portas. Um ponto de partida, digamos.
(Vemos que isto nem sempre foi unnime; na verdade, foi um longo caminho at chegarmos
neste ponto, e estamos secularmente atrasados). Mas, antes tarde do que nunca, vamos falar
em um amplo programa de educao para a cidadania.
Quem seriam os destinatrios, num primeiro momento, desses projetos? Por onde comear?
Pelos prprios afetados? Ou pelos atores pblicos que atuam junto a eles, prestando-lhes
assistncia?
Os movimentos sociais tm feito muitas iniciativas e desenvolvido muitos projetos nessa
direo. E o Poder Pblico, e a Universidade, como podem atuar neste quadro/ nessa
perspectiva?
Uma interface fundamental est no direcionamento dos programas e projetos de EDH para os
aplicadores/ operadores dessas leis (agentes scio-educativos, profissionais e agentes de
sade, conselheiros tutelares, policiais, assistentes sociais, profissionais e servidores daeducao).
Algumas questes permanecem em aberto: como aplicar medidas scio-educativas sem uma
poltica pblica clara, bem delineada e consistente, de EDH? Como inserir os profissionais de
comunicao neste fenmeno, levando-os a conhecer essas leis? Como formar uma
conscincia crtica que possa levar informao de qualidade populao em geral?
Gostaramos, finalmente, de ressaltar que s conseguiremos construir propostas cidads, deincluso e responsabilizao, se nos unirmos e avanarmos em direo a uma prtica que
supere polticas pontuais, fragmentadas e desarticuladas, produzindo aes incompatveis com
os marcos legais, como o ECA, a Lei Maria da Penha, entre outros.
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UMA PEDAGOGIA DA EMANCIPAO APLICADA EDUCAO
EM DIREITOS HUMANOS
Miracy B. S. Gustin5
1 REFLEXES INICIAIS
Cabe introduzir, neste texto, antes de quaisquer outras formulaes mais diretas, a distino
entre o sbio daquele que sabe muitas coisas. Valeremos-nos, para tanto, de Manuel
Sacristn (SACRISTN, 1953, p.13) em uma homenagem feita a Ortega, em 1953, aoafirmar: O sbio contribui para o conhecimento das coisas um saber de si mesmo e dos
demais homens, e daquilo que interessa ao homem. O sabedor de coisas comunica seus
conhecimentos. O sbio, ao contrrio, est obrigado a mais: se cumpre sua obrigao, aponta
para fins. (...) Quando o sbio ensina, assim, os fins dos homens, mais que ensinar coisas,
aquilo que ensina a ser homem6
. Assim, o homem sbio seria aquele que reconhece seu
prprio ser e de seu outro lhe atribuindo uma identidade que , ao mesmo tempo, sua prpria
autonomia e a autonomia de todos os demais seres em um espao definido de eticidade(HONNETH,2007; GUSTIN,1999).
A Filosofia, mais que atribuir novos conceitos quilo que existe, revisita concepes
anteriores e, reinterpretando-as aos novos tempos, ensina ao homem a ser protagonista de sua
prpria vida, a construir seu prprio mundo e de sua alteridade, a atribuir vida ao seu entorno,
alm da indispensvel experimentao de intersubjetividade e transcendncia. Esta ltima, se
expressa desde o contato corporal at linguagem que relaciona seres, smbolos e imagens.
Assim, para a Filosofia, ensinar mais que ensinar, educar no sentido do saber viver, que
tambm deve significar: conviver, comunicar, amar, comprometer-se. Enfim, emancipar-se
das estruturas adversas realizao do homem probo. Adversidade que impede a atribuio
5Doutora em Filosofia do Direito. Mestre em Cincia Poltica. Ps-doutora em Metodologia da Pesquisa e doEnsino do Direito pela Universidade de Barcelona/CAPES. Professora Associada Aposentada da Faculdade deDireito da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Professora do Corpo Permanente do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFMG. Fundadora do Programa Plos da Faculdade de Direito da UFMG. Fundadorado Programa Plos de Cidadania da FDUFMG.6El sabio aade al conocimiento de las cosas un saber de si mismo y de los dems hombres, y de lo que interesaal hombre. El sabedor de cosas cumple com comunicar sus conocimientos. El sbio, em cambio, est obligado ams: si cumple su obligacin, seala ins (...) Cuando el sabio ensea as los fines del hombre, ms que ensearcosas lo que ensea es a ser hombre..
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forma, o que pode ser considerado falso seu modo de apresentao conscincia, ou
melhor, por meio de formas imprecisas de expresso ou de linguagem pouco rigorosa. Sendo
assim, o eixo metodolgico deve ser visto como anlise de discurso, como um conjunto
preciso de seqncias lingsticas ligadas entre si por expresses de uma lgica discursiva.
Na histria da humanidade inmeras explicaes falsas da realidade serviram para justificar
institutos que eram teis ao poder vigente ou manuteno do status quo. Como metodologia
jurdica, a Filosofia do Direito realiza uma reflexo crtica sobre o discurso ou o
conhecimento jurdico; seu contedo fundante seria, pois, uma teoria crtica.
A prpria complexidade das tarefas que se atribui Filosofia do Direito deve ser enfrentada.A abrangncia de sua ao no mais se restringe a uma tarefa deontolgica de curto alcance.
sua misso refletir no somente sobre o direito como norma, mas, tambm sobre o direito
como fenmeno humano e cultural. Retornando ao conceito anterior, em que a Filosofia do
Direito vista como ideologia e como metodologia, deve-se entender, ento, que sua histria
se realiza tanto como histria das ideologias como histria de sua prpria metodologia. Em
sentido semelhante a este, de alguma forma tambm semelhante Filosofia Social e Poltica7
,
que se pretende tratar o tema da educao e da pedagogia da emancipao aplicada aosDireitos Humanos neste texto.
Algumas propostas pedaggicas sero, assim, relatadas e analisadas para depois serem
aplicadas ao objeto deste trabalho, sob um ponto de vista filosfico aplicado. A primeira
proposta, da Biologia do Conhecimento, conforme Humberto Maturana, supe a inter-relao
entre racionalidade e emoo. Essas duas esferas h bem pouco tempo eram pensadas como
conceitos que se desvinculavam no momento cognoscvel. Esse filsofo da teoria sistmicaafirma que ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as
emoes, e no vemos o entrelaamento cotidiano entre razo e emoo, que constitui nosso
viver humano (...) As emoes no so o que correntemente chamamos de sentimento. Do
ponto de vista biolgico, o que conotamos quando falamos de emoes so disposies
corporais dinmicas que definem os diferentes domnios de ao em que nos movemos...
(MATURANA, 1998, p.15). A partir dessa premissa pode-se entender que o querer humano
7Entende-se por Filosofia Social e Poltica aquela que empreende um esforo sistemtico na formulao de umaexegese terica das crises scio-culturais, neste estudo em relao ao Mundo Contemporneo, e que fundamentateoricamente a atividade prtica e cotidiana.
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deve ser considerado como um movimento em direo ao saber. Assim, a esfera racional
pressuporia coerncias dos sistemas argumentativos, enquanto a emocional seria sua condio
de possibilidade, seu fundamento.
Uma revisita das formas tradicionais de educao jurdica pode ser compreendida como uma
aproximao crtica a um conjunto de coordenaes consensuais ou de convencimento que
permanecem e se estruturam continuamente por meio da linguagem, dos gestos, dos costumes,
da aceitao do outro, das comunicaes sensveis, das emoes. Estas ltimas fundam a
convivncia social e sua linguagem sobre a realizao das coisas e das formas de
construo/reconstruo das vises de mundo.
Essa reconstruo, ao se estruturar a partir da Filosofia da Educao Aplicada ou da Filosofia
Social e Poltica aplicada educao em Direitos Humanos, refere-se no apenas ao ensino e
instruo; toda pessoa, nesse sentido conceitual, deve expressar-se por meio da capacidade
educativa de todo ser humano. Educao entendida como formao humana, como
desenvolvimento integral das qualidades e potencialidades do ser humano e no apenas como
aquisio de habilidades e competncias formais. O pleno desenvolvimento e
plenipotencializao dos indivduos, fundamento dos Direitos Humanos, por isso da Filosofiado Direito e da prpria Filosofia em sua totalidade, s so garantidos pela educao, pois a
instruo por si no tem um carter abrangente, capaz de permitir o aprimoramento das
diferentes facetas do todo complexo que constitui a experincia vital humana. As dimenses
mltiplas da cognio, a experincia ininterrupta das relaes sociais, a insero cultural, a
realizao da dignidade humana, no so necessariamente asseguradas pela instruo ou pelo
ensino, mas o so pela educao em seu sentido mais abrangente.
Torna-se, assim, indispensvel reler de forma crtica, at mesmo a Declarao dos Direitos
Humanos, de 1948, em seu artigo XXVI, e entender instruo (termo que ali se utiliza) como
sinonmia conceitual de educao, pois justamente o contedo abrangente e emancipatrio
desta ltima, que nela est contemplado, ao afirmar o direito de todo ser humano ao pleno
desenvolvimento de sua personalidade e de suas liberdades fundamentais. O desafio de se
constituir o direito humano educao e educao em direitos humanos consiste,
justamente, em construir um modelo de ensino-aprendizagem que no esteja vinculado apenas
s habilidades e saberes de cunho formal, tecnicista, como sugere a noo de ensino ou de
instruo, mas que tambm, e fundamentalmente, se preocupe com a formao plena dos
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indivduos em determinada cultura. Isso significa tratar o educando como um sujeito de
direitos. E, ao se entender que a educao um direito, como tal deve ser universal e acessvel
a todos e a todas, em qualquer nvel e em todos os mbitos. Essa universalidade, porm, no
deve significar um desconhecimento dos direitos autctones e das distines necessrias
quando se trata da educao de grupos sociais com caractersticas e costumes especiais. Desse
modo, no se pode submeter a educao um direito humano a quaisquer barreiras
discriminatrias ou a requisitos prvios que no permitam ser reconhecidos como justificveis
por uma certa comunidade.
Se aqui se fala em uma Filosofia da Educao aplicada ao campo dos Direitos Humanos em
novos moldes, sem a negao absoluta do velho modelo que a estruturou, indispensvelreconceituar, contudo, o sentido do novo no processo de educar. Educar ou favorecer a
educabilidade potencial do ser humano , usando-se de uma forma conceitual mais simples, a
convivncia com nossa alteridade, a realizao da intersubjetividade. Assim, educar pressupe
reciprocidade e comunicabilidade, uma ao contnua que faz do homem um ser inconcluso
(FREIRE, 1996), uma vivncia individual e social dinmica e permanente que permite o
respeito a si mesmo e sua diferena e a tudo aquilo que lhe estranho. Assim, educar
forma de vida e no apenas uma preparao atemporal para a vida. Ainda, conformeindagao de Maturana, Como posso aceitar-me e respeitar-me se estou aprisionado no meu
fazer (saber), porque no aprendi um fazer (pensar) que me permitisse aprender quaisquer
outros afazeres ao mudar meu mundo, se muda meu viver cotidiano? (MATURANA, 1998,
p.33).
Da porque a temporalidade, a espacialidade e a historicidade devem se inserir no processo de
educar, pois, educao mudana, valorao dos afazeres do mundo e de suastransformaes, julgamento crtico permanente de determinado meio social e de seus
valores. Se no for, assim, para que educar? Se educar aprender a coexistir, todos esses
valores devero constituir a formao contnua do ser. O respeito nossa alteridade
justamente um dos elementos que conforma a bilateralidade atributiva dos direitos e que,
afinal, dever constituir o fundamento teleolgico maior da Filosofia da Educao Aplicada
ao Direito. Como ser possvel dar continuidade apenas aos velhos padres da educao
formal se os fluxos da experincia humana e de seus modos de pensar e de fazer so
dinmicos e ininterruptos? Ser possvel conformar uma epistemologia do saber em direitos
humanos na esttica do instruir se o mundo permanente fazer/refazer, histria que depende
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pensamento/repensamento da educao como um fazer/pensar reestruturador de novos modos
de formar os seres em uma concepo emancipatria em relao aos direitos humanos.
2 UMA PEDAGOGIA DA EMANCIPAO PARA UMA UNIVERSIDADE ABERTA
A UMA APREENSO DOS DIREITOS HUMANOS EM SEUS CURRCULOS
Este estudo, que se estrutura primordialmente a partir das premissas filosficas do
pensamento contemporneo, tem como prioridade uma abordagem terico-conceitual sobre as
condies contextuais e conjunturais que atribuem complexidade s funes universitrias
bsicas: a aprendizagem, a produo de conhecimento e sua expanso crtica. Deve-se sugerirum significado para o tema da complexidade scio-cultural para, em seguida, relacion-lo a
um raciocnio dialtico crtico sobre os direitos humanos. Aqui, a complexidade entendida
como a multiplicidade de funes de determinado espao ou tempo, uma verdadeira difrao
funcional que atribui aos seres uma variedade de localizaes ou de temporalidades culturais.
Espao e tempo como categorias indispensveis existncia humana. (HARVEY, 1992). No
se pode aceitar, contudo, que essa complexidade possa disciplinar ou domesticar de forma
absoluta as funes universitrias ou a prpria educao superior, pois, elas mesmas, por si, jcontm suas prprias difraes conceituais. A universidade lugar e tempo onde se realizam
fatos e imaginaes desses fatos, concretudes e subjetividades. Da porque suas funes
podero expressar tanto a ontologia do ser quanto uma deontologia ou uma epistemologia do
dever-ser. Ontologia, deontologia, epistemologia intercalam-se em um labirinto de expresses
conceituais cruzadas ou, ao contrrio, interminavelmente abertas. Nesse sentido, h que se
decifrar o contedo ou contedos abrigados por essas funes para que se decida o que a
Universidade como ser e dever-ser para que sua identidade seja revelada, desvelada oudesconstruda.
As Cincias Sociais Aplicadas, que acolhem a Cincia do Direito em seu espectro
paradigmtico e fazem parte dessa estrutura organizacional, tambm se atribuem papis
representativos de espaos terico-conceituais, que inmeras ocasies deslocadas no tempo,
no de forma linear como o movimento irrecorrvel da flecha do tempo, porm como
deslocamento sinuoso, s vezes em movimento para o futuro, outras como reproduo de
arcasmos.
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Considerando as caractersticas da contemporaneidade h que se pensar em novos
fundamentos, metodologias e papis para o desenvolvimento da educao brasileira. Com a
intensificao do fnomeno da globalizao, particularmente com os avanos da
microeletrnica, da automao e de outras tecnologias de largo espectro, tem-se convivido
com uma acelerao do conhecimento cientfico e com seus impactos nos campos da
comunicao e da informao. A educao superior , imediatamente, afetada por essas
transformaes que questionam sua efetiva contribuio para o pas, para a sociedade como
um todo e, mais especialmente, para o bem-estar e a dignidade do ser humano.
O ensino superior no poderia se eximir dos efeitos da atual crise de transio paradigmtica
pela qual passam os pases. O processo de universalizao das relaes, os avanos dacomunicao entre as cincias e cientistas, dentre outros, trazem transformaes nas esferas
sociais e produtivas, no podendo ser negligenciada a importncia da formao do
profissional de nvel superior para as novas funes e para uma sociedade, considerada
perifrica, que apresenta nveis crescentes de excluso e de risco. Ao mesmo tempo, apesar
das restries e dos condicionamentos negativos, essa sociedade perifrica deve propor,
permanentemente, a liberao das possibilidades humanas para que o homem possa alcanar
sua emancipao das estruturas - fticas e de pensamento - dissolutivas e perversas.
Assim, dever repensar o fundamento que tradicionalmente foi atribudo aos direitos em geral
e, mais especificamente, aos direitos humanos. Lembre-se que estes ltimos foram uma
conquista da civilizao. Na modernidade, os direitos humanos apresentaram-se como uma
conquista normativa em sentido estrito. As normas deveriam atribuir aos homens seus direitos
fundamentais como regras universais, vlidas para todas as sociedades e culturas. Esta seria
uma viso moderna do direito natural. Com sua universalidade normativa passa-se a sequestionar sobre as possibilidades de sua efetiva garantia para todos os homens. Assim, o seu
agrilhoamento em normas que se pretendiam universais e irrefutveis foi questionado na
contemporaneidade do ps-guerra. Foram os movimentos sociais em favor da garantia dos
direitos humanos que demonstraram a necessidade de os reconceber vista dos novos valores
e da variedade de direitos dessa natureza que gradualmente surgiam. E, isso implicou na
atribuio de um contedo aberto aos direitos humanos no sentido de sua constante adequao
s transformaes scio-culturais e polticas.
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Elas [as Cincias Sociais] apontam para vrias direes. Por um lado,observa-se uma profissionalizao cada vez maior, bem como uma enormevariedade de perspectivas empricas, como nunca houve antes, baseada numapoderosa estatstica que nos oferece a possibilidade de fazer prognsticosmuito precisos. Mas, nesse sentido, as chances de uma unidade terica entrefilosofia e pesquisa, como se pensou no passado cada vez menor. Com aexceo dos trabalhos de Habermas, Pierre Bourdieu e Alain Touraine,poucas reflexes contemporneas oferecem essa amplitude e busca deunidade entre teoria e prxis. Pessoalmente acredito que por meio daspresses do presente possamos estabelecer pretenses morais eemancipatrias para os atores sociais (HONNETH, 2007).
O contedo dessa entrevista tem grande importncia para o repensamento e o
desenvolvimento das Cincias Sociais Aplicadas no sentido da necessidade de construo de
novos paradigmas para os setores que constituem essa rea de conhecimento, dentre elas oDireito e sua capacidade de educao para a libertao e de educao em direitos humanos
para que esses no permaneam como um setor de status secundrio no sistema de ensino
jurdico. Os direitos humanos tm sido constitucionalizados nas democracias contemporneas.
Mas, isto no basta. preciso garanti-los, dar-lhes efetividade. Uma pedagogia emancipadora
poderia fazer esse movimento no apenas de disseminao do conhecimento desses direitos
como, tambm, de sua garantia efetiva para todas as camadas sociais.
3 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS E BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
ARNAUD, Andr-Jean, OLGIATI, Vittorio(eds.) On complexity and socio-legal studies:some european examples. Vitoria-Gasteiz: Oati I.I.S.L., 1993.240p.
CAPELLA, Juan Ramn. El aprendizaje del aprendizaje: fruta proibida; una introduccin alestudio del Derecho. Madrid: Trotta, 1995. 114p.
CLAUDE, Richard Pierre, ANDREOPOULOS, George J. (Orgs.). Educao em DireitosHumanos para o Sculo XXI. So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo: Ncleo deEstudos da Violncia, 2007. 885p.
FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.274p.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo:Paz e Terra, 1996. 146p.
GIBBONS, Michael et al. The new production of knowledge:.The dynamics ofscience andresearch in contemporary societies. London: Sage, 1994. 320p.
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PAIDEIA OU EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS-
FUNDAMENTAIS8
Joaquim Carlos Salgado
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Paideia10
o ideal de formao do homem para a liberdade, e dentro desse ideal esto
evidentemente as seguintes dimenses: a esttica, a tica e a cientfica, como entendiam os
gregos. Paideia e educao significam a mesma coisa. Educao uma palavra que vem do
latim educere, que significa conduo de um lugar para outro, ou seja, a palavra educao
envolve um processo pelo qual h a interveno de uma pessoa na educao da outra, uma
pessoa que dirige, e que est na condio de saber de onde parte a pessoa que est sendo
educada e para onde ela deve ir (no para onde ela vai necessariamente, mas para onde ela
deve ir). Dizer para onde ela deve ir, dizer que toda a sociedade traa o rumo para sua
formao e para a formao e educao de todos os seus membros individualmente. Isso
porque se parte do pressuposto de que uma pessoa s pode ter o dever de caminhar em um
determinado sentido se ela tem liberdade para decidir se caminha ou no, se aceita a conduo
daquele que o seu docente (aquele que dirige) ou no. Ento a palavra educao deve ser
tomada exatamente no sentido de formao, de Paideia.
A palavra formao tal como a palavra Paideia, quer dizer exatamente que o indivduo se
forma. Assim, a palavra Paideia no est imediatamente ligada educao como conduo
externa por algum, embora sempre, desde a Grcia, h professores para dirigir a formao,
principalmente aquele que est comeando a se desenvolver, a criana.
A formao, portanto, exige que aquele que est se formando seja o autor da sua formao.No suficiente que o educador esteja intervindo no seu trajeto para o ponto ao qual ele deve
se dirigir, mas necessrio que ele ao querer dirigir-se para tal ponto, decida livremente
8 Texto resultante da transcrio da conferncia proferida no I Seminrio Mineiro de Educao em DireitosHumanos, ocorrido na Faculdade de Direito da UFMG nos dias 28 e 29 de maio de 2009.9 Professor Catedrtico de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Diretor da Faculdade deDireito da UFMG.10 Palavra grega que inspira a noo de Paideia Jurdica, criada pela Prof. Mari Brochado, fundadora doNcleo de Estudos Paideia Jurdica, que tem por objetivo o desenvolvimento de um projeto pedaggicoinclusivo da formao em direitos humanos-fundamentais de todos os indivduos, desde os primeiros anos davida escolar, como condio necessria ao exerccio pleno da cidadania.
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normas pode ser um Estado violento, porque ele mesmo que pe as suas normas. O Estado
que cria suas normas e no as obedece completamente arbitrrio. um Estado que a todo
momento cria uma nova norma, uma nova lei casustica para aquela situao, ao invs de
cumprir a que emite. Este no pode ser o Estado de Direito, que alm de observar e obedecer
s suas prprias normas, sua Constituio e sua ordem jurdica, aquele que declara e
torna possvel a efetivao dos Direitos Humanos ou dos Direitos Fundamentais.
No se faz aqui distino entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. Esto eles
consagrados nas Constituies dos Estados civilizados do mundo contemporneo e na Carta
das Naes Unidas. Os Direitos Humanos passaram a ser incorporados nas declaraes de
direitos desses documentos, portanto, so direitos tambm postos por ato de vontade daAssemblia Constituinte ou das Naes Unidas.
O Estado Democrtico de Direito, do ponto de vista no somente formal, mas tambm de
contedo, s pode ser aquele que declara os direitos fundamentais. Direitos humanos
decorrem da natureza humana e a natureza humana aquela pela qual se manifesta a pessoa
humana, o ser irrepetvel, o ser singular, a pessoa nica porque dotados de liberdade. A pessoa
nica porque livre, e no pode ser determinada por nada; ela se determina, ela se formacomo livre. Assim, a declarao de direitos tem compromisso com um contedo, que o
Estado deve preservar, para que a declarao de direitos da sua Carta seja de Direitos
Fundamentais; este contedo so os valores de uma determinada cultura. pela histria dos
direitos fundamentais que se verifica o que realmente direito fundamental.
O direito fundamental aquele que realiza no seu contedo um determinado valor de uma
determinada cultura, no caso, evidentemente a cultura ocidental, que foi a criadora do quehoje se chamam direitos fundamentais. Para falar do valor que d contedo aos direitos
fundamentais preciso trazer colao a Revoluo Francesa. No momento prvio da
Revoluo Francesa, que o da primeira declarao de direitos que se conhece, h
exatamente a conscincia de determinados valores que se formaram atravs da histria do
mundo ocidental, valores estes que trazem em si um significado dentico, isto , que devem
ser direitos. Assim, os tericos da Revoluo Francesa, os que fomentaram idealmente a
Revoluo, entendiam esses valores como direitos naturais, tanto o direito de liberdade,
quanto o direito da igualdade com a eliminao de todo privilgio, como tambm o direito da
propriedade, o direito honra e assim sucessivamente. Direitos naturais esses, que so valores
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que se desenvolveram na histria da cultura ocidental, que a cultura da liberdade. Eram
concebidos como direitos naturais, mas no ainda positivos e declarados. Esses valores,
principalmente o da liberdade e o da igualdade, passaram a ser reivindicados para serem
positivados e, assim, declarados pelo Estado, aps o qu, o contedo, o valor que no era
direito, passa a ser direito. A sua formalizao, a declarao de 1789 dos direitos de todo o
cidado e de todo o ser humano, pe esses valores como direitos, torna-os positivos.
Desse modo, os direitos fundamentais tm por contedo os valores de uma cultura, no caso da
cultura ocidental que os criou, e uma forma, que a forma do direito positivo, uma vez que
declarados pelo Estado, em uma determinada Constituio. Quando foram declarados por uma
Assemblia Constituinte, que representa todo um povo, portanto universalmente, passam a serdireitos fundamentais, e dentre estes direitos fundamentais esto os direitos humanos, dos
quais o mais importante para o direito a liberdade, sem a qual no h possibilidade de
preservao de nenhum direito, nem o direito vida.
A Cincia do Direito, a prpria dogmtica jurdica, o sistema privilegia, antes da liberdade,
um outro valor que o direito vida, direito sem o qual no h nenhum outro direito, nem
mesmo a liberdade por evidente. Ento, o primeiro direito que se protege em umadeterminada ordem jurdica o direito vida. E aps instaurado esse direito vida, h que se
falar que o direito vida de um ser humano, de uma pessoa, portanto de um ser livre.
O que seria o ser humano? H mais de 2.000 anos Aristteles disse que o homem um ser
racional, um ser que pensa, tendo em sua estrutura duas dimenses: um plexo biolgico e
outro racional. A partir dessa natureza do bios(da vida) e da ratio(do logos), ou seja, a partir
desses dois elementos essenciais para a existncia do ser humano, que se desenvolveramesses direitos chamados humanos. O direito vida vai trazer consigo vrios outros direitos,
tais como o direito segurana, o direito incolumidade da sua pessoa (fsica ou moral), o
direito honra, e tantos outros.
O elemento racional do homem que vai dar o ncleo, a origem, a matriz do direito, sem o
qual no existe direito nenhum, que o direito liberdade. A liberdade no de um, mas de
todos, e com isso surge o direito igualdade.
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Aqui j esto os dois grandes grupos de direitos, os primeiros chamados de individuais, que
decorrem exatamente dessa estrutura racional do homem de ser um homem livre, e depois os
direitos sociais que decorrem do fato de ser o homem um ser biolgico, um ser que tem que
sustentar a sua vida.
Os direitos que aparecem no quadro do direito da liberdade so os direitos individuais, os
direitos que aparecem no quadro do direito vida como centro so os direitos sociais.
Verificando os direitos sociais, e descobrimos que o seu primeiro direito, aquele que relativo
ao direito vida, e tambm comum ao direito de liberdade: trata-se do direito ao trabalho.
Porque sem o trabalho no h como o homem formar-se e ser livre. atravs do trabalho que,
alm de produzir a sua vida, o homem se torna livre, porque assim que ele se constri. Dodireito ao trabalho surge um enorme elenco de outros direitos, dentre eles, os direitos do
trabalhador, o de greve, de garantia de emprego, etc. So direitos que decorrem desse
primeiro ncleo de direito que o direito vida.
O direito de garantia ao emprego vem sendo discutido desde a constituinte. Em 1986 a
Universidade Federal de Minas Gerais convocou um grupo de professores para escrever um
texto para servir de orientao aos Constituintes de 1988. Foi ento que escrevi um textosobre direitos fundamentais, que pudesse ser tomado como um contraponto terico poca.
Nele j havia consignado o direito de garantia de emprego como um direito nuclear,
fundamental, ou seja, partia do conceito de que a empresa no somente do dono do capital,
como tambm no somente daquele que o portador da fora de trabalho. A empresa , sim,
o conjunto daquele que trabalha com o que tem o capital, de modo que no pode um
trabalhador ser dispensado arbitrariamente, somente porque o outro dono do capital. Tem
que haver uma razo, uma motivao para a dispensa do indivduo do emprego. Isso agarantia do emprego. O que se fez no foi a preconizao da volta da estabilidade que deu
tantos problemas para a organizao da sociedade.
Como exemplo do que se preconizou como garantia de emprego, tem-se na Alemanha e na
Itlia a situao jurdica segundo a qual, para dispensar algum de uma empresa, no basta
apenas que o dono queira; necessrio que haja a aprovao prvia de uma comisso de
empresa, a qual formada por maioria de trabalhadores da prpria empresa. Os prprios
trabalhadores tm interesse, caso ele seja desidioso, que ele saia da empresa, porque se ele
coloca em risco a existncia daquela empresa, coloca em risco o emprego de todos. claro
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aumentar as situaes de discriminao, violaes e desrespeito aos direitos humanos,
gerando ainda maior descrena quanto sua eficcia. Diante disso, ao analisar a legislao
brasileira, nota-se um descaso poltico em relao ao desenvolvimento de normas reguladoras
dessas questes acerca da dignidade humana, as quais sejam respeitadas e observadas de fato.
Os primeiros cdigos de leis conhecidos foram elaborados no Oriente Mdio, pelo rei Ur-
Nammu, aproximadamente em 2010 a.C, seguido por outros, dentre os mais conhecidos o
chamado Cdigo de Hamurabi de 1880 a.C. que determinava direitos e deveres para seu
povo14
. Mesmo nesta poca as leis jamais se aplicavam igualmente a todos, caso dos
prisioneiros de guerra escravizados.
As leis que resguardam os direitos humanos so produto de conquistas sociais, revelam
discursos construdos e desejos por civilidade, enfim por uma sobrevivncia mediante
circunstncias de uma poca. Neste sentido, a inexistncia destas tornaria a convivncia
humana bastante difcil. Contraditoriamente, apesar de construdas para servir a humanidade,
frequentemente encontramos discursos que revelam estranhamentos e mesmo descrenas
nestas leis especificamente em direitos humanos - como de fato um direito ou dever de
todos. Muito se deve ao desconhecimento (entendimento) destas leis: de sua construohistrica, de seus progressos e vantagens para a convivncia social, de suas possibilidades e
limitaes, enfim de sua funo vital para a sobrevivncia de uma sociedade.
Como j afirmado, as leis surgem com a tentativa de materializao e organizar os desejos,
interesses de grupo, seja de ordem social, religiosa, poltica, econmica, enfim destinadas
sobrevivncia/convivncia em uma organizao civilizada15
14Mesmo antes da criao da escrita, as leis j orientavam a vivncia de povos primitivos. Dentre os cdigoslegais registrados pela escrita tem-se conhecimento do Cdigo de Moiss, lder hebreu (1000 anos a.C), oscdigos de sociedades na ndia e China (500 a.C), todos com nfase na moral. Os cdigos de leis nas civilizaesocidentais sofreram influncia da sociedade Grega que institucionaliza o conceito de direito do cidado,
entendendo que no apenas deuses, mas homens tambm tm o direito de criar leis e modific-las
. Estas expressam convenes
histricas que nem sempre resultaram das escolhas de todos os indivduos ou nem mesmoaplicadas ou gozadas igualmente por todos numa mesma sociedade. No obstante, no
retiremos a responsabilidade daqueles que mesmo descontentes se calam e se submeteram a
estas leis, ou seja, no desprezemos a capacidade de resistir e mudar os destinos traados nas
(http://oiuscivile.vilabol.uol.com.br/historialei.htm), estando excludos os escravos.15Que no se entenda aqui sociedade civilizada como antnimo de sociedade primitiva ou brbara, nem mesmo,leis como sinnimo de civilidade.
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linhas inertes da legalidade. A histria bem nos mostra estas possibilidades. O Brasil de hoje
no pode ser entendido apenas como produto de intervenes colonialistas, mas precisa
tambm ser compreendido como tendo um passado importante de conquistas que
possibilitaram a ordem democrtica em que vivemos. A responsabilidade por nossa histria
deve ser compartilhada entre os opressores e oprimidos, estes por vezes tambm oprimindo
seus pares.
Manifesta-se aqui o primeiro desafio, ou seja, como podemos educar indivduos em direitos
humanos fazendo com que percebam que conhecimentos jurdicos so de fato instrumentos
que o conduziro ao estado de direito, ou seja, que saiam da condio de esperar por justia,
para um estgio de reclamar por justia. Como combater o ceticismo e a deturpao dosdireitos humanos nos meios intelectuais? Como evoluir de um pas historicamente construdo
em relaes de favor, tutela, caridade (GENEVOIS, 2007) para relaes de direito, de
demanda por direitos?
Nenhum sistema legal responde a todas as demandas oriundas da diversidade das interaes
sociais. Leis so produtos de negociaes humanas temporais, no so resultados de obra
divina ou aliengena. Neste sentido, as leis no esto imunes manipulao por indivduosque detm ou anseiam poderes e privilgios. As leis sero sempre uma tentativa de organizar
aquilo que por si mesmo sempre ser desorganizada, ou seja, a convivncia em sociedade.
Entretanto, rejeitar, desconhecer e, pior, tornar-se ctico necessidade das leis perpetuaria
ainda mais as injustias.
Segundo BROCHADO (2002) preciso buscar um aprendizado do direito, ou seja, o
conhecimento das leis, no significa oferec-lo na forma que se apresenta ao jurista, nocomo cincia, mas como realidade social (p. 275). A vivncia de uma sociedade democrtica
no se limita a conhecer as leis ou efetuar sanes para aqueles que as viola 16
16Segundo a autora, a busca por uma sociedade humanitria no pode se pautar numa justia punitiva, mas poruma justia preventiva, pacificadora, de coordenao de liberdades consentidas. Se todo o direito houvesse deser obedecido (logo, previamente reconhecido) diante de um Tribunal, no haveria Estado suficiente capaz de
realiz-lo. Logo, mais que evidente tambm a necessidade de se admitir o papel preventivo do direito, seja namodalidade de consultoria sria, seja na modalidade formativa ou informativa geral dos indivduos sobre arealidade normativa denominada direito, que o leve formao de uma conscincia jurdica mais slida nocontexto do cenrio tico atual (tico em sentido amplo: seja moral, social, jurdico, poltico).
, mas depende
de um processo de apropriao destas para empoderamento dos indivduos. Aspirar esta
sociedade implica em buscar indivduos que tenham desenvolvido em si uma conscincia
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jurdica e tica17
, ou seja, que tenha acesso, entendimento e aproprie-se das leis de seu tempo.
Para BROCHADO (2002) este processo est condicionado possibilidade de que se tornem
crveis o acesso s leis. A nosso ver, para alm de acreditar no acesso, o indivduo acreditaria
no seu poder de elaborar e transformar as leis para o bem comum, isto na concepo grega,
seria parte do exerccio do direito, da cidadania. Isto percebido no processo democrtico da
eleio, o qual determinar os constituintes do Congresso Nacional, rgo este responsvel
pela elaborao das normas da legislao brasileira.
Alm disso, seriam necessrios que a forma do acesso e o contedo do acessvel
expressassem-se como realidades da vida em comunidade (BROCHADO, 2002), buscando
estratgias de compreenso pelas quais esses princpios ganhem sentido para os indivduos,para que o reconheam como legtimos, como elementos possuidores de caractersticas de
autoridade para reger a vida cotidiana, ou seja, para que ocorra uma apropriao desses
valores. Sem informao e sem formao no possvel estabelecer um processo de
conhecimento e de reconhecimento destas leis pelos indivduos.
Por informao no se entenda meramente ter acesso leitura das leis ou cdigos. Seria
preciso recuperar o discurso sobre a empatia, que desde o sculo XVIII tem sido formuladonos crculos e debates sobre direitos humanos e que hoje se coloca da seguinte forma: o que
pode nos motivar a agir com base em nossos sentimentos pelos que esto distantes -
(tsunamis na sia, Guerra no Iraque ou a exploso das Torres Gmeas/USA) e o que faz o
sentimento da camaradagem entrar num tal colapso que podemos torturar aleijar ou at matar
os que nos so mais prximos? (HUNT, 2009, p. 213), ou a no mais se sensibilizar frente ao
extermnio dirio de jovens a servio do trfico de drogas, quanto violncia domstica e
mesmo a violncia escolar. A questo da empatia aparece aqui como elemento importante, namedida em que forja ou fortalece as militncias pelos direitos humanos: como o caso de
imagens dos corpos expostas publicamente em jornais e romances ou a circulao dos
romances epistolares sobre amor e casamento, desde o sculo XVIII. Estes so exemplos de
induo, de resignificao de discursos construdos, enfim de criao de novas sensaes a
respeito do eu interior, fabricando assim uma identificao com um coletivo (HUNT, p. 30-
17A tica pode ser entendida alm da definio e delimitao de comportamentos e costumes em cdigos mais
ou menos normativos, suportado por princpios morais (o que j ampliaria a noo para o protestante, o catlico,o revolucionrio, por exemplo) como o cuidado pessoal que cada um tem consigo mesmo: ou melhor, aforma como as pessoas se comportam diante dos cdigos vigentes. Isto implicaria em desenvolver no indivduouma conscincia jurdica e tica democrtica e apta ao exerccio da cidadania contempornea.
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31). Nas palavras de HUNT (2009, p. 33) para que os direitos humanos se tornassem auto-
evidentes, as pessoas comuns precisaram ter novas compreenses que nasceram de novos
tipos de sentimentos.
Este sentimento, ou seja, este reconhecimento implicaria sentir-se contemplado pela lei, de
modo que se veja e veja o seu contexto contemplado nela.
Os direitos humanos dependem tanto do domnio de si mesmo como doreconhecimento de que todos os outros so igualmente senhores de si. odesenvolvimento incompleto dessa ltima condio que d origem a todas asdesigualdades de direitos que nos tm preocupado do longo de toda ahistria (HUNT, 2009, p. 28)
Reconhecer-se na lei o primeiro passo para o desenvolvimento de uma conscincia jurdica
e tica democrtica que seja capaz de se reconhecer no outro e de reconhecer o outro em si
mesmo. Esta postura no implicaria numa conduta individualista no sentido egocntrico -
mas todo um conjunto de aes possveis/planejadas para o bem-estar social coletivo, o que,
consequentemente teria implicaes no bem-estar individual. Esta equao abriria a
possibilidade de todos se constiturem como cidado de direitos e deveres. Neste sentido so
vrias as instituies que podero contribuir para o projeto de educao em direitos humanos.
A escola est entre as instituies mais adequadas para realizar este projeto educativo, pois
dispe de tempo e espaos, alm de ter acesso aos indivduos desde a mais tenra idade. A
educao em direitos humanos em instituies de ensino formal e no-formal tem sido
defendida como parte do direito educao, ou seja, objetivando informar, saber e conhecer
seus direitos e os modos de defend-los e proteg-los (ZENAIDE, 2007)18
18 Decorrentes das conquistas dos direitos civis e polticos nos sculos XVII e XVIII, os direitos humanosrepresentam a expanso deste estado de direito, legitimados em 1948 com a Declarao Universal dos DireitosHumanos na Blgica. A educao em direitos humanos tem sido legitimada em vrios acordos internacionais eregionais: Conferncia Mundial de Direitos Humanos (1993), Congresso Internacional sobre Educao em Proldos Direitos Humanos (1993) e da Democracia que estabeleceu um Plano Mundial de Ao para a Educao emDireitos Humanos referendado na Conferncia Mundial de Viena e na Campanha Mundial de InformaoPblica sobre Direitos Humanos (1993) e, finalmente, na Dcada da Educao em Direitos Humanos,promulgada pela ONU a partir de 2004. No Brasil, a resposta aos esforos internacionais por educao emdireitos humanos, ganha contornos com o fim da represso poltica (dcada de 80) sob princpios pedaggicos da
teoria crtica da educao. Estes foram declarados e assegurados oficialmente na Constituio Federativa de1988 e no plano poltico-institucional em 1996 com o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)(ZEINAIDE, 2007, BITTAR, 2007), configurados em poltica pblica no Plano Nacional de Educao emDireitos Humanos (PNEDH) em 2003, revisto em 2006.
para a
transformao social. Neste sentido, educar para os direitos humanos seria desenvolver uma
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atitude crtica sobre a realidade, instrumentalizar e sensibilizar os indivduos, formando uma
responsabilidade individual preocupada com o futuro coletivo.
Ser que o modelo de educao que temos hoje capaz de responder aos propsitos acima?
Para tanto, a educao em direitos humanos deve ser dada a crianas e jovens, mas tambm a
todos os envolvidos no processo educativo: docentes, demais profissionais do ensino e mesmo
os responsveis pelas crianas. Estes adultos ensinam a crer ou a desacreditar na necessidade
de respeitos aos direitos humanos. Portanto, preciso que os profissionais nas escolas
revejam suas crenas e aes pedaggicas, tornando-as respeitosas aos direitos humanos. Esta
mudana depende primeiramente de modificar-se (as docentes) para ento contribuir na
transformao de outros (estudantes).
Para alm de informar crianas e jovens sobre direitos humanos, preciso modificar as
lgicas na organizao escolar: entendimentos sobre hierarquias, respeito entre indivduos
(incluindo as interaes entre alunos ou entre adultos, jovens e crianas), uso dos espaos,
resoluo de problemas, negociaes de regras, sanes, enfim planejamentos. preciso
existir coerncia entre o que se diz (discurso) e o que se faz (atitudes) por parte de todos, entre
aquilo que declarado e o que cumprido nas interaes educativas.
Haja vista os casos citados no incio deste texto, a escola ainda apresenta muitas incoerncias
em suas aes educativas, longe de assegurar ou educar sobre os direitos humanos. Como
mencionado, este despreparo deve-se em parte ao desconhecimento dos direitos humanos,
porm deve-se tambm inexistncia de um propsito pedaggico explicitado, ou seja, da
previso de aes nos planejamentos escolares19
.
O conhecimento e reconhecimento do direito deveriam guiar as experincias de escolarizao
dos estudantes, desde a educao infantil at a profissionalizao. Esta formao no
necessariamente deve ser realizada como disciplinas escolares isoladas. Ao contrrio, ela
deveria decorrer da vivncia de situaes contextualizadas, criando uma identificao entre as
leis e os indivduos. Assim, a educao em direitos humanos tomar forma em situaes
19O projeto de uma educao em direitos humanos na escola formal no pode depender somente da boa vontadedocente ou da mera informao destes. Atualmente, no h nos horrios escolares espaos coletivos para quedocentes e demais profissionais da escola se encontrem para debater, construir conhecimentos, enfim planejarcoletivamente projetos educativos. Sem estes tempos no h como construir qualquer projeto educativo.
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aparentemente simples, porm planejadas (prevendo aes e reaes), como a definio de
tipos de interaes que a escola deseja estabelecer entre adultos e crianas: civilidade mtua,
respeito, dilogo. O indivduo que cresceu sendo desrespeitado dificilmente saber respeitar,
pois lhe falta vivncias ou conhecimento sobre o que seja respeitar o outro, a diversidade, o
direito de ser diferente e coabitar num mesmo espao. Este processo requer planejamento, no
se nasce sabendo viver em sociedade.
Algumas perguntas so inevitveis para que este processo educativo se instaure. So elas:
Como formar indivduos responsveis, cordiais, solidrios se no ambiente escolar, as crianas
so diariamente desrespeitadas, submetidas a humilhaes e ameaas a sua integridade fsica e
emocional? Que resultados teremos com uma educao intelectualmente pouco provocativa,discriminatria, indiferente s diversidades? Qual a formao exigida dos responsveis em
ensinar nossas crianas e jovens?
Argumentamos aqui sobre a necessidade de uma educao em direitos humanos para docentes
e estudantes como um dos esforos para a garantia de uma sociedade pacfica. Entendemos
que o conhecimento jurdico, acompanhado de uma prtica das noes desse saber, pode
proporcionar o empoderamento do indivduo como cidado de direitos, e ainda que a escolapossa responder como um espao privilegiado para elaborao de projetos em que esses
conhecimentos ganhem sentido nas vidas dos indivduos educando, pais, e membros da
comunidade escolar. Como nos coloca Maria BENEVIDES (2000), a educao em direitos
humanos implica numa:
... formao de uma cultura de respeito dignidade humana atravs dapromoo e da vivncia dos valores da liberdade, da justia, da igualdade, dasolidariedade, da cooperao, da tolerncia e da paz. Portanto, a formaodesta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar
mentalidades, costumes, atitudes, hbitos e comportamentos que decorrem,todos, daqueles valores essenciais citados os quais devem se transformarem prticas...
A autora no fala de um conceito de cultura tradicional, como conservao: dos costumes,
das tradies, das crenas e dos valores, mas:
... em cultura nos termos da mudana cultural ... implica a derrocada devalores e costumes arraigados entre ns, decorrentes de vrios fatoreshistoricamente definidos: nosso longo perodo de escravido ... (da) nossapoltica oligrquica e patrimonial; nosso sistema de ensino autoritrio,elitista, e com uma preocupao muito mais voltada para a moral privada doque para a tica pblica; nossa complacncia com a corrupo, dosgovernantes e das elites, assim como em relao aos privilgios concedidos
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A DESCONSTRUO DA VIOLNCIA NO AMBIENTE ESCOLAR: A
SALA DE AULA COMO LABORATRIO DE CIDADANIA
Egidia Maria de Almeida Aiexe20
Do rio, que tudo arrasta, se diz violento, mas no sedizem violentas as margens que o oprimem.
[B. Brecht]
Quando colocado em debate um grupo de professores, alm dos que preferem evitar se expor
para evitar polmicas, e se mantm discretos, indiferentes ou omissos no calor da discusso,
comum encontrarmos duas posies contrapostas: a dos que se sentem vtimas da violnciaproduzida no ambiente escolar, nisso includa a violncia dos pais, diretores, sociedade; e a
dos que, desafiados diante da complexidade e gravidade do problema, se sentem motivados e
saudavelmente provocados a descobrir e construir sadas altura daquele. Quanto a estes
ltimos, nossa contribuio talvez seja mnima: uma gota a mais num oceano pleno de
possibilidades e potencialidades. Para os primeiros, porm, tentaremos apresentar algumas
pistas que possam reduzir o peso de uma carga acima do que desejariam ter que suportar.
Resgatando uma das mximas de Bertold Brecht , tornou-se lugar comum dizer que a escola
sofre violncias, mas no se verifica a mesma preocupao em investigar se ela tambm no
pode produzir violncia. No para culpabilizar seus integrantes, mas para tentar compreender
em que medida essa violncia NA escola, intramuros, pode constituir reflexo de uma
violncia externa (a criminalidade, as prticas sociais das populaes no seu entorno), mas
tambm um dos desdobramentos de uma outra violncia: a violncia DA escola, ou DO
sistema de ensino. Em outros termos, em vez de limitarmos vitimizao da escola, a
investigao do problema deve considerar a parcela de responsabilidade do prprio sistema de
ensino, no qual ela est inserida.
A violncia constitui o inimigo nmero um das sociedades atuais. Isto porque ela possui
variadas facetas, e se manifesta de diversas formas, em todos os ambientes sociais, e com
recursos cada vez mais inesperados, o que a torna de difcil enfrentamento. Nos ltimos
tempos, os noticirios vm divulgando/ denunciando diversos episdios de violncia
20Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora do Frum Mineiro deDireitos Humanos.
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de forma reiterada, com atitudes autoritrias e desrespeitosas no seu processo de formao
estar sofrendo, deste modo, um processo de violncia latente, com conseqncias marcantes
em seu desenvolvimento emocional e intelectual.
A segunda forma de violncia DA escola ocorre quando esta, com todo seu potencial para
estabelecer ou fortalecer vnculos, no procura construir laos sociais com a comunidade.
Uma hiptese que pode orientar essa investigao se o que faz com que a violncia externa
atinja o ambiente interno da escola no a sua falta ou a fragilidade de laos com os prprios
alunos e com a comunidade, grupos de pais, grupos de jovens, associao de moradores. Essa
escola fica mais vulnervel, porque o agente da violncia externa encontra alguma adeso,
ainda que implcita, no seu interior. Afinal, um grupo de pessoas (professores e alunos)oprimidas, insatisfeitas, desmotivadas, inseguras, no desenvolve muitos recursos para lidar
com agresses, venham de onde vierem. E podem at mesmo aliar-se e apoiar aes e
prticas violentas, como resposta a um sofrimento ou uma subalternizao vivida em silncio.
Algumas iniciativas de abrir o espao da escola para a comunidade tm mostrado bom
resultado; resultaram numa cumplicidade, envolvimento e parceria extremamente saudveis
entre escola e comunidade. Seria este o principal escudo contra a violncia?
A terceira forma de violncia est na falta de compreenso do papel poltico da educao e do
educador. O professor, por meio da escola e do sistema de ensino, alm de ser o responsvel
pela prestao de um servio pblico indiscutivelmente essencial, forma novas pessoas para
estarem na sociedade. Ele abre as portas que levam a uma passagem da maior importncia
para essa sociedade: a passagem que prepara a sada da vida privada para a entrada na vida
pblica (como lembrou a Professora Maria Fernanda Salcedo Repols, no nosso curso de
capacitao, uma das aes previstas no Projeto Integrando aes em Educao em DireitosHumanos em Minas Gerais). Esta parece ser a justificativa primeira para o poder do professor
sobre os seus alunos. E, como todo poder, ele precisa ser bem utilizado. Para comear,
porque, como em toda sociedade democrtica, este poder limitado. Em segundo lugar, este
lugar de poder pode ser ameaado por um outro poder, que no o poder do(a) diretor(a), dos
pais ou da sociedade: o poder do aluno.
23Como diz a letra da msica do compositor Belchior, apesar de tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos, evivemos como os nossos pais.
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O aluno tem uma margem de autonomia na sua relao com os contedos que lhe so
transmitidos: ele pode se recusar a aprender. Ou fingir que aprendeu... Simples assim, j que
ningum pode forar algum a aprender. A escola deve ofertar aos discentes a possibilidade
de aprender. Mas so eles que, na sua autonomia, escolhem abrir as portas a esse processo:
nesta escolha reside o seu poder. Afinal, a escola existe em razo deles, e deve prestar contas
dos resultados desse servio sociedade, comunidade e prpria famlia do educando.
Ao mesmo tempo, a criana e o jovem so convencidos de sua carncia, bem como da
possibilidade de supri-la mediante o acesso a um conjunto de informaes com as quais
supostamente adquiriro conhecimentos, sem os quais no estaro habilitados a ocupar
posies sociais desejveis segundo critrios do seu grupo.
Nesse sentido, aceitar participar do processo de aprendizagem exige dupla renncia: iluso
de completude, tpicas de seres em desenvolvimento intelectual, psicolgico e emocional, e
renncia sua parcela de autonomia, produto to caro a um jovem, em seu natural desejo de
afirmao. Isso sem falar no tempo que lhe retirado para viver as emoes e descobertas
dessa etapa da vida, plena de apelos ao prazer imediato. Nessa perspectiva pode-se dizer que a
educao, alm de um direito, um dever social. Para receber o que no deseja, mas aceitaque precisa, ele tem que abrir mo do que lhe mais significativo neste estgio da vida. E o
professor, que tambm est abdicando de preciosas horas do seu (nem sempre bem
remunerado ou socialmente reconhecido) tempo de vida e de trabalho, se sente a nica vtima.
Talvez no lhe tenha ocorrido que, se h vtimas, ele no a nica. E que o inimigo comum a
ele e aos alunos e aos demais membros dessa comunidade escolar no a violncia externa,
mas a violncia interna; um modelo de ensino e de escola que, no essencial, no conseguiu se
alterar desde a sua criao: sala de aula fechada, alunos calados, pensando no que fizeramantes ou no que faro depois... Professor solitrio no seu poder e no seu saber. Que triste
poder e que triste saber!24
Nesse sentido, ancorados no conceito formulado por GALTUNG, podemos afirmar que a
violncia interna o inimigo nmero um da educao, dos educadores, dos educandos.
Porque ela afasta quem deveria unir; ela segrega quem deveria agregar. Ela corta ou
24 Importantes, neste ponto, as consideraes contidas na obra O trabalho docente (op. cit.), em particular otpico A docncia como trabalho interativo e seu objeto humano,p. 28-36.
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ocupar o lugar. E isso pode causar muito medo em todos os que esto envolvidos no processo
de transformao. Colegas podem estranhar e at se afastar, de incio, se alguns professores de
disciplinas distintas comearem a trocar idias sobre seus contedos e sua metodologia, e
desenvolverem estratgias de ensino interdisciplinar...L vm eles querendo inventar mais
trabalho para ns...Diretores podem se assustar se, de repente, o professor deixar de dar
uma aula expositiva sobre histria do perodo medieval, e convidar os alunos para visitarem
uma cidade histrica, ou um museu. Ou levar um filme como O Nome da Rosa, ou mesmo
um cmico Robin Wood para introduzir o assunto, ou sugerir uma pea teatral, em conjunto
com o professor de portugus. Ou tocar uma msica para abrir a discusso. Os prprios alunos
ficaro intrigados e at incomodados se um professor passar a pedir-lhes que leiam em duplas
e conversem, troquem idias sobre o tema alguns minutos, antes de antes de introduzir temanovo, como sugere a Profa. Miracy Gustin, no trabalho de formao interna da equipe
responsvel pela capacitao do projeto Integrando Aes em Educao em Direitos
Humanos em Minas Gerais.
Esse desarranjo, ou desconserto, tem um nome: ruptura, ou desconstruo. Ruptura com um
modelo autoritrio e fechado de sistema de ensino, com uma postura solitria de organizao
do trabalho de educao, com um jeito de pensar o ensino, a educao, o processo deconstruo do saber. Um saber que forme cidados e no simples peas para o mercado. Um
saber construdo em parceria com os educandos, com respeito genuno sua autonomia e
dignidade, e com verdadeira valorizao do professor. Uma escola consciente do seu papel
poltico, que convoque a comunidade a construir uma parceria em benefcio dela mesma, de
todos os seus membros e da coletividade. Essa escola pode representar um verdadeiro escudo
contra a violncia e constituir-se em efetiva promotora da cultura de paz, em consonncia com
os direitos humanos, como prev o Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ARENDT, Hannah. Sobre a violncia. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994.
MNDEZ, Emilio Garcia. Infncia e cidadania na amrica latina. Trad. Angela MariaTijiwa. So Paulo: Hucitec/Instituto Ayrton Senna, 1998.
PDUA, Lcia Pedrosa de. Evangelizar uma cultura violenta. In: Violncia, Sociedade eCultura. Cadernos CERIS, Ano I n. 1 Abril, 2001, p. 41.
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TARDIF, Maurice e LESSARD, Claude. O trabalho docente. Elementos para uma teoria dadocncia como profisso de interaes humanas. Traduo de Joo Batista Kreuch. Petrpolis: Vozes, 2005.
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No pode nenhum professor que no tenha conscincia de sua responsabilidade na formao e
transformao do aluno, poltica e socialmente falando, pois no se deve formar maus
bacharis, mas seres humanos profundamente conscientes de seu dever tico e profissional.
O aluno ser em certa medida a sombra daquilo que projetamos sobre ele. Se nos
apresentamos irresponsavelmente como professores no preparados para tal, estaremos
igualmente formando profissionais irresponsveis, sem conscincia tica de seus deveres. O
exemplo ainda vem de cima.
No adianta repassar contedo sem conscincia poltica, moral e tica, nosso aluno nos ter
como exemplo e refletir vida afora, o mau exemplo dado na sala aula irresponsvel.
O problema, contudo, est muito alm dessa textura moral, tica, profissional e responsvel,
eis que isso pode ser lanado por um vis no profissional e o contedo cai na vala comum,
nossa vertente a competncia do professor.
O aluno de hoje sem dvida alguma, aquele jovem assombrado pela concorrncia, pelo
estresse, pela falta de oportunidade, pela mundializao que tornou tudo mais complexo emuito difcil de ser alcanado, pois a disputa globalizou-se e ganhou dimenses impensveis.
Esse aluno precisa ver visto com outro olhar, precisa ser atrado e acolhido dentro de uma sala
de aula criativa e de sucesso.28
O aluno por seu turno, sabe e muito bem, que essa problemtica da competio, da
mundializao, da concorrncia, das exigncias cada vez maiores do mercado de trabalho, dasespecializaes tambm cada vez mais requeridas, so problemas recorrentes do nosso tempo
e que no se deve colocar o fardo somente na mesa do professor, mas esperar dele uma atitude
participativa, visionria, de ao e aconselhamento.
H muitas maneiras criativas de estar e se fazer presente nessa contextualizao problemtica
dos nossos alunos, mas h uma que certamente no pode faltar de modo algum, ela tem que
28 A criatividade tambm deve ser exercida pelo professor na sua forma de abordagem, criando analogias,comparaes e at novas formas de sedimentar os conhecimentos ou despertar potencialidades e habilidades nosalunos. (CONSOLARO, 2001, p. 99-100).
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Dir-se- a rebater este argumento que o MEC tem cobranas e exigncias mnimas em
nmeros de professores com mestrado e doutorado. Ora, reparem bem na colocao nmeros
mnimos exige a lei, e quem garante que nmeros mnimos garantir resultados. A verdade
est diante de nossos olhos dos 89 cursos de direito autorizados no Brasil e reconhecidos
pela OAB, 39 deles no atingem 10% de eficincia nos exames da OAB (dados da
OAB/2007).
A questo muita mais sria do que se imagina, pois nem mesmo que tivssemos as nossas
faculdades e universidades repletas (100%) de mestres e doutores, no nos garantiriam
resultados e, sobretudo ensino eficiente, que se dir ento queles cursos que ficam naschamadas cotas mnimas da lei, enganando cruelmente seus alunos, que ao sarem dali com
um diploma na mo, voltam tristemente s suas atividades anteriores, justamente porque no
tm condies mnimas para alarem o to sonhado vo profissional.
Da nossa janela discente contempla-se tambm, esse triste e desrespeitoso quadro de
aproveitadores e oportunistas, que se valendo da falta de compromisso governamental com o
problema, v nele uma maravilhosa oportunidade para o enriquecimento ilcito e criminoso.
H por certo, quem queira enganar-se a si prprio ou que talvez, com a mesma inteno
criminosa, busque no diploma uma oportunidade de tambm enganar a sociedade a seu
modo, jeito e vez.
Nossa proposta para alm dessa triste cena, que deveria ser objeto de apropriao
investigativa, pelo Ministrio Pblico, a quem compete zelar pelos nossos interesses e,sobretudo, nos proteger de atitudes to infames. Retomemos a guia e o foco.
3 CONFLITO SUBLIMADO
No contexto da boa sala de aula nos dir Consolaro (2001 p. 101) Planejamento, mtodo e
objetividadeeis a questo! Planejar, adotar um bom mtodo e ser objetivo, est muito alm
de nossas formaes e dos nossos cursos de ps-graduao. Esse um conflito sublimado.
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No esqueamos a lio do professor chileno, Humberto Maturana, para quem a competio
sadiano existe e que nela est implcita as emoes que conduzem a ao de negao do
outro.
Polemizar por polemizar, por certo no conduz ao cientfico, e tampouco nos leva ao
crescimento pela reflexo, mas preciso faz-lo de modo responsvel, at para que se levem
outras pessoas a meditar sobre o assunto Maturana tem razo em certa medida, mas o
problema no pode ser visto somente por este vis, at porque o ser humano e a competio
guardam uma relao de vida basta lembrar que somos frutos de uma competio entre os
espermatozides.
Justificar o problema a soluo mais simples que o cientista pode dar, mas h questes,
como a competio, para as quais no se reclama soluo, vive-se-as, at porque o perdedor
de hoje faz da derrota um estmulo para a vitria de amanh. A vida este paradoxo, um
enfrentamento infinito de problemas, que motiva o viver e faz dele um maravilhoso caminhar
por sobre o fio da navalha.
Voltando em Maturana e de se lembrar que ele levanta a questo e a expe de modo visceral,
todavia ele no a enfrenta.
Retomando o fio, esse, pois, o nosso conflito sublimado, no h nas grades