livro3[52292]

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  • O Inspetor Geral

    Admirvel Mundo Novo

  • Escrever o Prefcio de Expedies pelo Mundo da Cultura no somente escrever uma pgina para iniciar o livro e instigar sua leitura. escrever sobre uma viagem por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada histria que se apresenta pgina aps pgina, personagem a personagem, cenrio aps cenrio. escrever sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaos inusitados para o ra-cional e o imaginrio; que nos d oportunidade de sair do lugar comum para lugares consagrados da literatura clssica.

    Quando se busca o significado da palavra expedio, encontra-se como uma de suas definies: conjunto de pessoas que viajam para um determinado territrio, com o objetivo de analis-lo. Foi isso que Monir Nasser nos proporcionou durante quatro anos de parceria entre ele, ilustre intelectual, e o Sesi Paran. Momentos nicos nos quais conhecimentos foram compartilhados e viagens por destinos diversos foram realizadas, modificando o olhar que temos de nossa realidade, dando-nos condies de ampliar nossa viso de mundo.

    Ao todo se somaram 92 possibilidades de expedies, mediadas por ele, que leva-ram os participantes dos encontros por um mundo indesvendvel, por um univer-so cultural a ser desmistificado e descortinado aos poucos. Encontros nos quais j existia a expectativa para o prximo e que, por isso mesmo, no se conseguia parar. Os encontros possibilitaram atravessar a Ponte Rialto, em Veneza, por nosso imagi-nrio e participar da negociao entre Antonio e Shylock. Encontrar Dom Quixote de La Mancha, cavaleiro medieval, em busca da sua amada Dulcinia, sempre em companhia de seu cavalo Rocinante e seu fiel escudeiro Sancho Pana, pelos cami-nhos espanhis. Navegar para a ndia, pela obra potica de Os Lusadas, de Cames, compreendendo a histria de Portugal. Entender a complexidade do Livro de J, com seus discursos e respostas para perguntas existenciais. Navegar em busca de Moby Dick, refletindo sobre os sentimentos humanos e tantas outras compreenses.Enfim, Monir nos traduziu obras de William Shakespeare, Tolsti, Miguel de Cervan-tes, Herman Melville, Cames, Aldous Huxley, Tolkien, Nicolai Gogol e livros bblicos, aproximando-nos dos autores e de suas obras.

    Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela A Morte de Ivan Ilitch, que no adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a nica soluo olhar para a vida a partir da morte; no h outro jeito de orientarmos a vida.

    Assim, devemos olhar para a vida com a possibilidade de continuarmos o legado de Monir, contribuindo com a sociedade e futuras geraes para a descoberta de novas possibilidades que se abrem quando se descortinam as histrias da humanidade.Esta coletnea representa a existncia que transcende a morte e permanece presen-te em nossos coraes e mentes.

    Jos Antonio Fares,

    Superintendente Sesi Paran.

  • O legado de um intelectual extraordinrio

    Uma obra singular

    A Volvo entende que a formao de suas lideranas passa por algo mais amplo do que o conhecimento de negcios, relacional ou cognitivo. Passa tambm pela for-mao cultural de alto nvel e ampla. Foi assim que, por mais de cinco anos, os lderes Volvo tiveram o privilgio de apreender, refletir, re-pensar temas profundos com o Mestre Jos Monir Nasser, um intelectual mpar do cenrio paranaense que tinha o dom de transformar aulas de literatura em experincias nicas num expedio cul-tural sem precedentes.

    Foram dezenas de obras estudadas. Obras clssicas da literatura mundial. Dramas, comdias, textos filosficos e teatrais, que permitiram aos participantes uma viso refinada e diferenciada da evoluo do pensamento humano, cada vez mais relevan-te para enfrentarmos os dilemas modernos.

    Ao patrocinar o livro do Mestre Jos Monir Nasser, o Grupo Volvo no Brasil faz uma homenagem dedicao mpar que ele sempre teve em compartilhar seu conheci-mento ao longo dos anos, sua escolha por ser representante da Primeira Casta. Tra-duzir, comentar, resumir e revelar as chaves que permitem entender a essncia das grandes obras ajudou a construir histrias, memrias e referncias. Na Volvo, os en-contros literrios eram convites abertos, voluntrios, para participar de uma progra-mao cultural elevada. Mais de 30 lderes fizeram desses momentos uma vivncia cujo valor incalculvel. Valor do saber, do conhecimento e da troca de experincias.

    Alm da saudade do Mestre, fica aqui o legado de sua obra. uma forma de con-tinuar embebecido pelo belo, pelo profundo, pelo eterno, que nos faz entender o quanto a formao cultural pode fazer diferena na vida pessoal e profissional de um verdadeiro lder.

    O primor desta edio nos d a oportunidade de resgatar esses saberes e momentos. um privilgio para quem o conheceu de perto. E uma oportunidade valiosa para aqueles que agora sero apresentados sua obra.

  • Ele continua fazendo a diferena

    Perdi a companhia do Jos Monir em 16 de maro de 2013, depois de trinta anos de convivncia. Para todos que o conheceram ou privaram de sua frondosa companhia foi uma perda irreparvel. Foi um cometa que passou rpido, embora tenha brilhado intensamente.

    Como professor conheci o Jos Monir em 1981 na turma de trainees da Fininvest, um grupo de jovens que estava sendo preparado para implementar nos anos se-guintes o Mercado Comunitrio de Aes em Joinville (SC), onde moramos juntos uns trs anos. Depois deste perodo seguimos caminhos diferentes, mas ficando sempre em contato; sua busca profissional levou-o a vrias experincias. A partir dos anos 90 ns dois passamos a residir de novo em Curitiba; ele j atuava como consultor empresarial, caminho que tambm adotei, inclusive por influncia dele.

    Ao longo dessa caminhada pude conhec-lo cada vez mais, tanto suas origens como sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formao clssica herdada. O pai, mdico, cursara especializao em Paris como bolsista da Aliana Francesa, dirigida em Curitiba pelo casal Garfunkel; a me, secretria da Aliana Francesa at casar-se. O bero familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultrio tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pblica do Paran, na quadra vizinha, at o final de sua jornada. Lia de tudo, dizia; Roberto Campos o influenciaria com seu estilo polmico e afiado. Frequentou tambm a Escolinha de Arte, da prpria Biblioteca Pblica. O Jos Monir falava e escrevia fluentemente fran-cs, ingls e alemo; na juventude participou de programas de intercmbio escolar nesses trs pases; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha, vindo a trabalhar como operrio numa fbrica, experincia marcante qual se refe-ria com frequncia. At o final do 2 Grau teve apenas formao clssica, isto , de humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-mento da capacidade de expresso do esprito humano. Sua primeira faculdade foi em Letras, mas j no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-corrncia do clima poltico do pas no final dos anos setenta. Discorria com domnio sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religio, cincia, literatura, economia e outros tantos. Teve forte influncia de Virglio Balestro, hoje com mais de 80 anos, Irmo Marista professor do colgio em que estudou; com ele tinha au-las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte e cinco e trinta anos, sob a influncia marcante de Rubens Portugal, nosso diretor e grande mentor. Mesmo tendo contato com gesto empresarial s nesta idade, o Jos Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.

    Nesse tempo destacava-se por sua vivacidade intelectual e arguta capacidade de abordar as situaes mais complexas no campo gerencial e econmico, de maneira inovadora. Recendia qualidade em tudo que fazia, desde clareza de raciocnio at re-dao densa, leve e comunicativa, recheada de vocabulrio erudito sem ser pedan-te. Demonstrava prodigiosa versatilidade; ia direto ao ponto central dos assuntos; conseguia revelar relaes incomuns entre fatos e situaes aparentemente desco

  • nexas. Sabia localizar o ouro. Ele fazia a diferena! Detestava autoridade imposta; pugnava pela autoridade interna da abordagem orgnica dos fatos e anlises sobre a situao enfrentada. Irritava-se com mediocridade, e com burocracia em geral. Era hbil em desmascarar espertezas travestidas e agendas ocultas.

    Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas tribos civi-lizadas. Gostava de merecer o prmio e a vantagem, em vez de dar-se bem s custas alheias. Sua nobreza de carter dispensava as competies predatrias; perder para ele era reconhecido como ganho at pelos adversrios; nunca o vi tripudiar sobre algum. Era dono de uma verve humorstica mpar: sua volta sempre predomina-vam as satricas risadas de um fair play. Sabia portar-se com franqueza lhana; para ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um curitibano da gema; ainda no consegui encontrar algum que superasse sua capacidade de entender a alma curitibana. Dizia que em Curitiba no bem assim para namorar uma moa de fa-mlia: antes de pegar na mo, voc tem que se apresentar, dar provas, frequentar e ... esperar ser convidado; ser entro pega mal; somos uma sociedade da serra, no da praia. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas pessoas capacidades e experincias extraordinrias; hauriu muito da convivncia com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de So Paulo) e Arthur Pereira e Oliveira Filho (do Rio).

    Sua trajetria profissional foi intensa, rdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre trabalhando por conta prpria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor empresarial junto a grandes clientes do circuito So Paulo-Rio-Braslia. Teve um es-critrio de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma letter, lide-rava um Programa de Anlise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia projetos sobre as experincias internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre outros projetos. Nesse perodo dedicou-se pintura com atelier prprio; frequenta-va aulas particulares e convivia no meio artstico local.

    Desencantado com a inrcia brasileira por ideias inovadoras, no incio do novo mi-lnio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paran Desenvolvimento (IPD), um centro de pensamento sob a liderana de Karlos Rischbieter. Nesse perodo partici-pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educao (Filosofia), patrocinado pelo IPD. Em 2002 fundou a Trade Editora e escreveu os livros A Economia do Mais sobre clusters, e o O Brasil Que Deu Certo, com o empresrio Gilberto J. Zancop, sobre a histria da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televiso em que corajosa-mente discutia temas quentes de forma crtica.

    No final da primeira dcada dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-fissional, lanando Expedies ao Mundo da Cultura. Consistia numa engenhosa adaptao ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de cem obras clssicas bsicas como programa de formao de um cidado culto. Nada do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho, dizia. Em menos de um ano tinha grupos em Curitiba, So Paulo e algumas cidades do Paran. Sua gran-de inovao foi fazer um resumo de cada obra, com vinte pginas em mdia, para contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-

  • tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes para a dimenso cultural. At que um AVC o abateu.

    A semente da herana cultural cresceu, floresceu e frutificou. Seu grande legado o exemplo de como a Cultura prspera e construtiva, ao contrrio do que se pensa neste pas como apenas entretenimento. exemplo de projeto educacional humanista clssico, ao contrrio do que se faz hoje em se privilegiar precocemente a orientao profissional em detrimento da formao humana. exemplo profissio-nal de trabalhar por conta prpria correndo riscos e dedicando-se de corpo e alma ao projeto em que acredita. exemplo de modernidade inteligente, tanto na sua herana como na sua obra e no seu legado, fundados sobre a matriz cultural clssica no mbito da famlia. O que a famlia no fizer dificilmente ser recuperado pela escola e pela empresa. A volta desse cometa acontecer sempre que se replicar essa proposta de formao.

    A trajetria de vida corajosa e realizadora de Jos Monir (1957-2013) orgulho para sua famlia e referncia para os amigos e os que o conheceram. Ele continua vivendo em ns; ele continua fazendo a diferena!

    Carlos Jaime Loch, Consultor de Gesto Empresarial.

  • Ao mestre, com carinho

    Jos Monir Nasser costumava dizer que ns no explicamos os clssicos; eles que nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar o trabalho do professor Monir resultar em fracasso, pois toda explicao possvel advm do prprio trabalho. preciso dizer de uma vez por todas: ele o professor e ns somos os alunos.

    Aristteles discordou de seu mestre Plato em muitas coisas, mas certa vez decla-rou: Plato to grande que o homem mau no tem sequer o direito de elogi-lo. Quem somos ns para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ningum. No entanto, tentaremos faz-lo, do modo mais sucinto possvel, para no tomar o tempo precio-so do leitor.

    Os textos reunidos nesta srie so transcries de aulas de Jos Monir Nasser sobre clssicos da literatura universal, dentro do programa Expedies pelo Mundo da Cul-tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento do pblico os temas que ocupavam o esprito dos grandes autores. So nomes e histrias que muitas vezes esto presentes na vida e na linguagem cotidiana vide os adjetivos homrico, dantesco, quixotesco, kafkiano , mas que em geral ficam adormecidos na poeira das estantes. A misso de Monir era trazer esses enredos e personagens clssicos para a luz do dia.

    O foco das palestras de Monir no era a crtica literria ou a anlise estilstica, mas sim a discusso do contedo. Ele possua uma verdadeira e sagrada obsesso por esclarecer mesmo as passagens mais difceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-do diversas vezes, era: proibido no entender! Todos ficavam vontade para in-terromper sua fala com perguntas, reflexes, ponderaes, comentrios. O objetivo no era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferena na vida das pessoas. E fez.Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clssicos da literatura universal. No foi possvel: ele discutiu apenas 92. A lista inicial dos clssicos partiu da obra Como ler um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeioada ao longo do tempo. Na presente seleo h dez obras: Gnesis e J (textos bblicos), Fdon (de Plato), Os Lusadas (de Cames), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-tor Geral (de Ggol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolsti), Moby Dick (de Melville), O Senhor dos Anis (de Tolkien) e Admirvel Mundo Novo (de A. Huxley).

    A ideia de trabalhar com os clssicos j havia sido colocada em prtica por Monir e o filsofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associao Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paran de Desenvolvimento). O programa Expedies pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e j no primeiro ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranava, Londrina, Maring, Toledo e Ponta Grossa. O programa tambm foi realizado em So Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.

  • Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossvel ou-vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao prximo. Os encontros duravam cerca de quatro horas, com um intervalo para caf. Monir comeava as palestras com uma apresentao genrica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um resumo do livro, entremeado por observaes de Monir. Esses comentrios forma-vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal. As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa e voc tem em mos a oportunidade de comprovar essa afirmao.

    No bastassem a fluidez e a sutileza de suas observaes, Jos Monir Nasser tinha a capacidade de enriquec-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-tismo ou arrogncia. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoo entre os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos clssicos, Monir chegava s lgrimas, como testemunharam alguns de seus alunos e amigos.

    Em cada cidade por onde Monir levou os clssicos, espalhou tambm as sementes do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autntico lder de primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o esprito de seus semelhantes. Muito mais do que explic-lo, cumpre agora ouvir a sua voz nas pginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas, aps ouvir as gravaes e ler as transcries de suas aulas, posso considerar-me, tal-vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conhea voc tambm o mestre Monir.

    Paulo Briguet, jornalista e escritor.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 13

    O Inspetor GeralPalestra do professor Jos Monir Nasser em 5 de junho de 2010 em Curitiba. Resumo

    feito por Jos Monir Nasser, com excertos traduzidos por Arlete Cavaliere, retirados de O

    Inspetor Geral, 1a. Ed., Editora Peixoto Neto, So Paulo, 2007.

  • Professor Jos Monir Nasser14

    O Inspetor Geral

    PROF. MONIR: Que dizer do nosso livro de hoje, O Inspetor Geral? preciso

    falar antes um pouquinho do autor, Nicolai Ggol. Sempre digo pra vocs

    que toda a literatura russa se concentra no sculo XIX. Por um fenmeno

    interessantssimo, antes do sculo XIX os russos no sabiam se eram

    europeus ou se eram asiticos. Nunca esquecer, jamais, que a Rssia tem

    o dobro do territrio brasileiro. Vocs acham o Brasil grande? A Rssia o

    dobro do territrio brasileiro; ela vai da Europa at a sia, tem uma fronteira

    l no oceano Pacfico. E a Rssia j era grande assim naquela poca. Talvez

    fosse at maior naquela poca, eu imagino. Mas um pas gigantesco,

    enorme, que no sabia muito bem o que era, porque a maior parte da Rssia

    mais asitica do que ocidental, do que europeia. Portanto os russos tiveram

    esse problema de deciso sobre a sua prpria identidade durante toda a sua

    histria, e s no incio do sculo XIX os russos resolvem achar que so de

    fato europeus. A h uma enorme exploso de literatura na Rssia, exploso

    que ir at o incio do sculo XX, quando ento o advento do comunismo,

    em 1917, destri completamente a literatura russa, criando apenas tipos

    estatais, como, por exemplo, Mximo Gorki. Gorki uma espcie de Jorge

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 15

    Amado russo, ou seja, um sujeito que est a servio do partido e no da

    literatura. E a literatura russa verdadeira vai para os subterrneos, porque

    passou a ser proibida, a comear por Boris Pasternak, que no um grande

    escritor escreveu Doutor Jivago. A nica razo pela qual Boris Pasternak

    ficou famoso porque ele falava mal do leninismo. Ele foi perseguido

    politicamente, e no por ser um bom escritor.

    Mas toda a literatura que prestou da para frente passou a ser clandestina,

    tendo como principal personagem Alexander Soljentsin, que passou quase

    a vida toda preso no Gulag e que depois, quando conseguiu, escreveu os

    melhores, mais importantes livros russos do sculo XX.

    Quer dizer, quando voc pega o sculo XIX, voc tem a mais ou menos a

    seguinte sequncia cronolgica: Ggol, o nosso autor de hoje; Turgueniev;

    Pushkin, que um pouco mais velho que Ggol (Pushkin o maior de todos

    os poetas russos.) Temos Pushkin, depois Ggol, depois Turgueniev; depois

    voc tem Tolstoi, depois de Tolstoi vem Dostoievski e, depois de Dostoievski,

    Tchekhov. Pronto, quando voc soma essa turma, a literatura russa est no

    sculo XIX. No h nenhum grande autor que no esteja no sculo XIX, e os

    que sobrevivem a [esse] sculo morrero no comeo do sculo XX como

    Tolstoi, que vai morrer em 1910, mas um homem do sculo XIX. Todos

    pr-revolucionrios.

    E Ggol, de todos estes grandes escritores russos, o mais intrigante, porque

    pessoalmente era um ser humano muito estranho. Viveu pouqussimo, s

    40 e poucos anos. Era um menino que no combinava com os outros; no

    colgio, foi apelidado de ano misterioso. Para vocs terem uma ideia, ele

    tem um problema de origem porque no russo, ucraniano havia nascido

  • Professor Jos Monir Nasser16

    numa regio da Ucrnia dominada pela Rssia, aquilo que se chama na

    Ucrnia de Pequena Rssia, uma regio totalmente dominada pela Rssia

    onde havia o bilinguismo quer dizer, todo o mundo ali falava ucraniano

    e russo. E Ggol no de origem russa tambm; o pai dele era cossaco1

    (era russo no sentido de que os cossacos so considerados russos) e a me,

    ucraniana. Portanto, ele era um menino que veio de uma provncia afastada,

    que era esse pequeno pedao da Ucrnia, e que precisava se transformar

    em russo de verdade.

    Nunca conseguiu adaptao sociedade russa. A capital da Rssia nessa

    ocasio era So Petersburgo, uma cidade como Braslia: foi planejada

    por Pedro, o Grande, portanto uma cidade que no tinha nenhuma

    espontaneidade. Substitui Moscou at a Revoluo Russa. Na Revoluo

    Russa, Moscou volta a ser capital ( at hoje a capital da Rssia) e So

    Petersburgo passa a ter o nome de Leningrado perde esse nome com o final

    do comunismo, passando a ser So Petersburgo de novo. Em todo o caso,

    os russos chamam a cidade de Peter. So Peter uma cidade extremamente

    admirada pelos russos uma cidade artificial, feita do lado do rio Neva com

    aqueles palcios todos, aquelas arborizaes; uma cidade originalssima.

    Na poca em que a histria acontece, em que Ggol vive, a capital da Rssia

    era So Petersburgo. Ele um sujeito que passou a vida inteira entre duas

    grandes atividades: ou ele era pequeno funcionrio (muito pequeno, sem

    nenhuma importncia) ou era escritor.

    1 Nota da transcritora - Os cossacos so um grupo tnico de nativos das estepes das regies do

    sudoeste da Europa (principalmente da Ucrnia e do sul da Rssia), que se estabeleceram mais

    tarde nas regies do interior da Rssia asitica. Grupos diferentes de cossacos so identificados

    por regies geogrficas: os da Sibria, de Baikal, de Ural, Terek, Don e de Zaporozhian Sich,

    entre outros. So considerados como os fundadores da Ucrnia no sculo XVII. No sculo XIX

    travaram diversas batalhas com a Rssia. Fonte: Wikipedia.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 17

    preciso lembrar que a estrutura social da Rssia na poca era

    extremamente simples: voc tinha os latifundirios, que eram pessoas,

    de modo geral, da nobreza. Esses latifundirios tinham a seu servio os

    servos, que eram escravos brancos. Eram vendidos e comprados pela

    propriedade; quer dizer, eram uma espcie de patrimnio da propriedade.

    Sobre esses escravos, o dono tinha uma autoridade quase de vida e

    morte. A escravido branca, ou seja, a servido, s acabou na Rssia em

    1861. Vejam como isso interessante, porque ns tivemos escravido

    aqui no Brasil escravizando estrangeiros os negros no eram brasileiros,

    eram importados. L, eles escravizavam os prprios compatriotas.

    Ggol um sujeito do incio do sculo XIX. Essa obra que vamos ler hoje

    foi encenada pela primeira vez em 1836 (s fazia 14 anos que o Brasil era

    independente de Portugal) e fala sobre uma sociedade baseada nessa

    estrutura: havia uma aristocracia que vivia das terras nas quais trabalhavam

    os servos; e havia a burocracia, uma gigantesca pequena burocracia.

    Imaginem como que se fazia para administrar um pas daquele tamanho!

    Enorme, gigantesco, duas vezes maior que o Brasil. Era tudo centralizado

    em So Petersburgo, com uma enorme quantidade de pequenos burocratas

    que mandavam e desmandavam. Os altos cargos da administrao pblica

    eram ocupados pelos latifundirios que, mesmo quando civis, tinham

    tambm nomes militares. Havia generais civis e generais militares. O general

    civil um sujeito com o mesmo padro de status do general militar, s que

    no pegava em armas, era um funcionrio pblico. Havia um pouquinho

    de burguesia, pouqussimo. Havia uma populao de artesos, alfaiates,

    pequenos fabricantes, basicamente alemes. Os alemes dominavam

    toda a atividade fabril na Rssia desse tempo. Estavam l desde Catarina, a

    Grande, que era alem e queria civilizar a Rssia. Como ela fez isso? Trouxe

  • Professor Jos Monir Nasser18

    via imigrao para a Rssia milhares e milhares e milhares de alemes.

    Aparecem vrias personagens com nome alemo na literatura russa.

    Alguns desses alemes que foram pra l andaram por aqui, como esses

    menonitas que h aqui em Curitiba, por exemplo, ou l em Witmarsum,

    perto de Palmeira. So todos alemes que vieram da Rssia direto para o

    Brasil quando comearam as perseguies religiosas implantadas pelo

    comunismo. So russos-alemes que falam um dialeto de alemo que no

    existe na Alemanha, porque eles ficaram num bolso de estrangeiros dentro

    da Rssia, trabalhando no campo.

    Pois Ggol viveu disso. Ele tentou ser professor universitrio, mas o fracasso

    foi retumbante... Ele no conseguia dizer duas palavras, tinha uma timidez

    profunda, no sabia dar aulas, no conseguia comear a conversar. Passou

    a sua vida, ento, ou ficando nos pequenos trabalhinhos da burocracia, ou

    viajando pela Europa s custas da me, que herdou um pequeno patrimnio.

    Mas no pensem que ele viajava com luxo; ele no era um sujeito de posses,

    nem a me era. Ele tinha l um dinheiro, em um tempo em que viajar era

    mais barato que hoje, porque era mais simples; de vez em quando ficava

    dois, trs anos fora da Rssia.

    Essa a vida de Ggol. Ele escreveu meia dzia de obras memorveis.

    Receita pra ler Ggol pra ler o que interessa de verdade: leia Almas

    Mortas; leia O Inspetor Geral, que a grande pea de Ggol segundo

    Otto Maria Carpeaux, uma das maiores peas j escritas pela humanidade.

    Vladimir Nabokov (bigrafo de Ggol, autor de Lolita) diz que O Inspetor

    Geral a maior pea escrita em russo em todos os tempos. E h tambm

    uns quatro ou cinco contos magnficos, maravilhosos, que ficaram para a

    histria da literatura, que so O Nariz, O Capote (diz Dostoievski que toda

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 19

    literatura russa descende desse conto O Capote), Avenida Nvski, O Retrato

    e O Dirio de um Louco. So esses os cinco contos essenciais. Se voc ler

    esses cinco contos, mais Almas Mortas e mais O Inspetor Geral, voc leu

    praticamente 90% de Ggol. H muito mais, mas as outras coisas no tm

    a mesma importncia ou a mesma qualidade, de modo que voc teria lido

    fundamentalmente quase o autor todo. Se voc tem interesse s por esse

    autor, pode ler tudo, mas se voc pretende ler outros ainda, lendo essa dose

    voc j estaria lendo muito Ggol.

    Ggol um admirvel humorista. As peas e os livros de Ggol so

    engraadssimos, tm um humor finssimo. muito interessante, no h

    ningum assim na literatura russa, que em geral uma literatura muito

    soturna e sinistra. H uma coisa engraada que acontece: a msica erudita

    russa uma msica muito leve. Se voc pegar algum como Tchaikovsky,

    por exemplo. Rimsky-Krsakov, um compositor com grande sensibilidade

    para temas de natureza folclrica. Voc vai pegando um russo atrs do outro,

    e descobre o seguinte: que a msica quase sempre aquilo que se chama

    de msica de programa. Uma msica alegrica, que serve pra voc ilustrar

    uma situao. Talvez Shostakovich seja uma exceo a essa regra. Talvez

    seja ele o mais profundo. Mas um contraste interessantssimo, em que a

    msica russa muito menos profunda do que a literatura russa. E a possvel

    explicao pra isso que a literatura russa sempre esteve sob censura.

    Durante todo o czarismo houve uma censura sistemtica dos autores russos,

    porque a literatura era o meio de divulgao de ideias mais eficaz num

    mundo que no tinha televiso, no tinha rdio. Ggol no conseguiu fazer

    a primeira edio de Almas Mortas como Almas Mortas porque certo censor

    o obrigou a trocar o nome do livro por Aventuras de Tchtchicov (Tchtchicov

    a personagem central de Almas Mortas). O censor julgou que almas no

  • Professor Jos Monir Nasser20

    podem morrer; almas so eternas seria uma espcie de blasfmia chamar

    um livro de Almas Mortas. A voc v a que ponto ia isso. Almas Mortas

    s um pouquinho posterior a O Inspetor Geral. Em 1840, por a, havia na

    Rssia uma censura ferrenha, e o fato de que a censura nunca abandonou

    os escritores russos a possvel explicao do porqu de a literatura russa

    ser to profunda quanto . Essa uma caracterstica de todo o sculo XIX:

    autores extraordinrios tentando escapar das garras dos censores.

    Ggol o que menos aparenta ser um perigo. Dostoievski fazia livros muito

    mais pesados; Ggol parece mais ser um comediante, uma espcie de

    cmico. Mas no, vocs vero no dia de hoje o quanto isso inverdade. J

    no Almas Mortas, se havia algum sabor cmico, era na verdade um sabor

    agridoce, no chegava a ser realmente um sabor aucarado. Havia uma

    coisa agridoce naquela personagem Tchtchicov comprando almas mortas.

    O que so almas mortas? So servos que haviam morrido e ainda constavam

    da contabilidade da fazenda, de modo que ainda pagavam imposto. Havia

    um imposto sobre os servos, e esse imposto s era recalculado de vez em

    quando, quando se fazia um censo. Viam-se quantos servos havia, fazia-se

    uma nova apurao e o imposto seria calculado da. No entanto, enquanto

    no houvesse o novo censo, voc pagava imposto sobre os seus servos

    [mortos] como se eles de fato ainda existissem. O que faz Tchtchicov tentar

    comprar os servos todos que j esto mortos dando um dinheirinho por

    cada um, com o objetivo depois de pegar todos esses servos mortos e dar

    como garantia num emprstimo bancrio. Era essa a ideia de Tchtchicov,

    ele inventou uma maneira de dar garantia bancria de pessoas. Eram

    propriedades, como se fosse outra qualquer; no havia diferena entre um

    servo e um trator, era igual.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 21

    Ggol parece nunca ser um sujeito perigoso, mas se vocs fizerem comigo

    hoje um exerccio de compreender o que est a nesse Inspetor Geral um

    livro magnfico, maravilhoso vocs ficaro surpreendidos. Ggol morreu

    muito jovem, numa terrvel crise mstica. Ele aos pouquinhos foi ficando

    cada vez mais mstico e morreu de um jeito meio suicida, recusando-se a

    comer, a beber, numa espcie de autodestruio, com a colorao mstica

    do cristianismo ortodoxo. Mstica no sentido do cristianismo ortodoxo da

    Rssia.

    Antes de morrer, Ggol nos fez o desfavor muito grande de queimar a

    segunda parte inteira (ou quase inteira) do Almas Mortas, de modo que

    Almas Mortas no acaba, acaba no meio de uma frase no no fim de uma

    frase no meio do captulo; acaba no meio de uma frase. No sabemos, claro,

    o que havia l na continuao. Ele estava muito mais impressionado com o

    fato de que o padre que estava, digamos assim, monitorando a sua vida o

    havia feito renegar toda a sua vida anterior, includo nisso sua admirao

    por Pushkin. Pushkin foi a personagem que mais influenciou Ggol (eles

    se conheceram pessoalmente, foram amigos), e ele renegou at mesmo

    Pushkin, motivado por esse padre. E a sua obra, o que faltava estragar, ele

    estragou. De modo que a morte de Ggol foi melanclica, uma pena, uma

    tristeza mas o que ele deixou a, deixou com muita competncia.

  • Professor Jos Monir Nasser22

    Resumo da Narrativa

    O Inspetor Geral (Revizor) uma pea satrica de Nikolai Ggol, encenada pela

    primeira vez no dia 19 de abril de 1836 uma sexta-feira. Achei que vocs iam

    achar til essa informao. (Risos.) Eu fui l na HP2, peguei uma HP e puxei

    o resultado. O enredo teria sido inspirado num caso contado por Pushkin.

    Pushkin contou pra ele: Olha, voc no sabe a histria de que eu ouvi

    falar! e comea a histria que inspirou a pea. Segundo o autor, sua pea

    a primeira concebida com o propsito de corrigir nossa sociedade, e no creio

    havlo conseguido; s viram, na minha comdia, uma tendncia partidria a

    ridicularizar nossas leis e a ordem estabelecida, que s pretende estigmatizar

    certos abusos e certos atos ilegais. Isso o Ggol reclamando. Desgostoso

    com um pblico que ficou atnito, sem entender nada. Ggol passa os anos

    seguintes fora da Rssia. De fato, a reao pea foi muito polmica: liberais a

    favor e conservadores contra. O prprio czar Nicolau I impediu a censura. Esse

    um fato importantssimo, o prprio czar que assistiu estreia, no permitiu

    que censurassem a pea e teria dito, o folclore pelo menos diz, que o czar

    declarou o seguinte O soberano teria dito aps a primeira apresentao:

    Todo mundo teve o que merecia, e eu mais do que todos.

    A histria ganha mais compreenso quando se considera o contexto czarista,

    que mantinha na Rssia uma sociedade dominada por funcionrios pblicos e

    grandes latifundirios, beneficirios do regime de servido, que s seria abolido

    em 1861. Essa data de 1861 a data quase mais importante da histria da

    2 Nota da transcritora trata-se de uma calculadora Hewlett-Packard com capacidade de

    clculos mais sofisticados.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 23

    Rssia. A Rssia czarista administrada por uma pequena burocracia a partir de

    So Petersburgo, capital desde 1703, quando foi fundada por Pedro, o Grande.

    Para Otto Maria Carpeaux, O Inspetor Geral uma das comdias mais geniais de

    toda a literatura. Para Vladmir Nabokov, russo e bigrafo de Ggol, tratase da

    maior pea escrita em russo.

    A ao passase numa inominada pequena cidade do interior, cujas autoridades

    corruptas e clientelistas esto aterrorizadas ante a chegada iminente de

    um inspetor de So Petersburgo. Como epgrafe da obra, Ggol escolheu o

    provrbio popular: A culpa no do espelho, se a cara torta.

    PROF. MONIR: Pessoal, a pea engraadssima, divertidssima. Como

    sempre, ns vamos comear aqui com a leitura da Clarinha, que nossa

    leitora oficial. Vamos l ento para o Ato I, Cena I, de O Inspetor Geral. Filha,

    por favor.

    Ato I

    Cena I

    A ao comea na casa do prefeito Antn Antnovitch SkvoznkDmukhanvski

    PROF. MONIR: , vocs sabem que os russos todos tm trs nomes pelo

    menos: tm um pr-nome Antn (Antnio); o segundo Antnovich,

    que significa filho de Antnio, e o terceiro nome, que quase sempre um,

    mas s vezes so dois, o nome da famlia. Portanto, quando voc v um

    nome russo, voc sempre sabe como o nome do pai do sujeito, porque

    o segundo nome o patronmico, o nome do pai. Quando homem, pode

  • Professor Jos Monir Nasser24

    ser Antnovitch ou Antnov; quando mulher, s pode ser Antnova. E

    eles fazem a flexo por gnero, tambm. Ento, por exemplo, se esse Anton

    tivesse uma irm chamada Lisavieta, seria Lisavieta Antnova...

    ALUNA: No evna? Nicolaievna?

    PROF. MONIR: Acho que com Antnio faz Antnova. Skvoznk-Dmukhanvski.

    A o sobrenome [para mulher] seria igual. Um dos efeitos colaterais mais

    interessantes dessa nossa pea de hoje que todo mundo vai sair daqui

    falando russo, no ? Tem tambm essa vantagem.

    que reuniu os presentes, o encarregado da assistncia social, o inspetor de

    escolas, o juiz, o chefe de polcia, o mdico e dois policiais para comunicar fato

    gravssimo:

    Prefeito

    Chameios aqui, meus senhores, para lhes dar uma notcia

    bem desagradvel. Est a caminho um inspetor3 geral.

    PROF. MONIR: Hoje de manh eu li uma pea russa chamada Tio Vnia,

    do Tchekhov, e tem um dado momento em que uma das personagens da

    pea rene a famlia toda e fala assim: Senhores, eu os chamei aqui para

    lhes comunicar um fato gravssimo: est chegando o inspetor geral. Pois ,

    Tchekhov botou na boca da personagem a piada que vem aqui dessa linha

    de O Inspetor Geral. Como ningum entendeu nada, ele fala assim: Bom,

    3 Nota do resumidor Em russo, revizor, ttulo escolhido para a obra tambm em alemo (Der

    Revisor).

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 25

    no farei mais menes a Ggol por enquanto. Entre Tchekhov e Ggol h

    uns 50 ou 60 anos de distncia. J nem todo mundo conseguia entender

    esse incio.

    Ams fidorovitch

    Como? Um inspetor?!!

    Artmi filPovitch

    Como? Um inspetor?!!

    Prefeito

    Um inspetor de Petersburgo, incgnito. E, ainda por cima,

    em misso secreta.

    PROF. MONIR: O fato de que a misso secreta muito importante na

    compreenso do sentido da pea.

    Ams fidorovitch

    Essa no!!

    Artmi filPovitch

    Era s isso que faltava!!

    luk luktch

    Santo Deus! E ainda por cima em misso secreta! (pg. 37)

    PROF. MONIR: O problema que nessa cidade, que uma cidade

    pequenininha cujo nome ns no sabemos, todo mundo pilantra. Todos

  • Professor Jos Monir Nasser26

    os funcionrios pblicos so safados. Todos eles tm irregularidades, tudo

    est esculhambado, no tem nada que funcione direito. Quando eles ficam

    sabendo que vir um inspetor da capital, h uma espcie de deus nos acuda,

    todo mundo querendo saber como que vai se safar dessa. Essa a razo

    do desastre que est prestes a acontecer.

    O prefeito confirma: Eu bem que pressentia: sonhei durante toda a noite com

    duas ratazanas impressionantes e passa a ler trechos da carta em que havia sido

    avisado da desgraa por seu compadre Andrei Tchmkhov, habitante da capital.

    PROF. MONIR: Quer dizer, ele recebeu a dica. Olha, a auditoria vem a...

    Ele no foi oficialmente informado de uma misso secreta. S se fosse em

    Portugal... Mas ele recebeu uma dica de um conhecido.

    Segundo o remetente, o inspetor apareceria na cidade como indivduo

    qualquer, se que ainda no havia chegado. O prefeito reflete: S pode ser

    coisa do destino. At hoje, graas a Deus, s se meteram com outras cidades,

    agora chegou a nossa vez. Os presentes discutem as reais razes da visita.

    Pelo sim, pelo no, o prefeito orienta todos os funcionrios ali presentes a se

    prepararem, maquilando as reparties pblicas.

    Explica o alcaide:

    No h uma pessoa que no tenha l seus pecados. Foi

    assim que o prprio Deus determinou e no adianta os

    voltairianos4 protestarem contra. (pg. 41)

    4 Nota do resumidor Referncia a Voltaire (1694-1778), intelectual escandaloso do sculo

    XVIII.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 27

    PROF. MONIR: Aqui vocs tm nessas duas linhazinhas do prefeito uma

    espcie de declarao de humanidade. O prefeito descrevendo o que a

    humanidade. Vocs vo matar a charada com muita facilidade desta vez,

    garanto. Mas vou dando umas dicas pra vocs levarem em conta.

    Comea uma discusso sobre suborno e as demais irregularidades administrativas

    que todos praticam, como o juiz que enquanto protela a deciso de uma causa

    entre os dois vizinhos caa lebre nas terras de ambos.

    PROF. MONIR: Enquanto estava para decidir entre dois brigando por um

    pedao de terra, o juiz ficava caando lebre. Cada um acha bacana que o

    juiz cace lebre na sua terra, porque com isso se imagina corrompendo o

    magistrado.

    Cena II

    Chega Ivan Kuzmtch Chpkin, chefe dos correios, que tem o hbito de abrir

    correspondncia alheia.

    PROF. MONIR: No tem um que se salve. um negcio impressionante.

    Perguntamlhe se poderia ficar de olho nas cartas para interceptar notcias do

    tal inspetor. O prefeito sugere mtodos discretos, mas o funcionrio dispensa

    ajuda:

    J sei, j sei... No precisa me ensinar, isso eu j fao, nem

    tanto por precauo, mas s por curiosidade: sou louco

    pra saber o que h de novo no mundo. Olha, vou lhe dizer,

  • Professor Jos Monir Nasser28

    uma leitura superinteressante. Algumas cartas a gente

    l com tal deleite, h passagens to variadas, algumas

    to edificantes... Bem melhores do que as do Correio de

    Moscou! (pg. 46)

    PROF. MONIR: Em outras palavras: Melhor que a Tribuna, a Tribuna do Paran5

    incapaz de ter o mesmo nvel de interesse. Ento vocs j perceberam,

    no? O juiz caa lebres nas terras dos demandantes, o chefe dos correios l

    as cartas todas, e vai assim por diante. Muito bem.

    Cena III

    Chegam Pitr Ivnovitch Dbtchinski e Pitr Ivnovitch Bbtchinski6

    PROF. MONIR: Isso j foi usado na literatura. O Matador e o Mata A Dor

    lembram aqueles dois que so inimigos do Jambo e do Ruivo7? Ento, a

    mesma ideia. So dois sujeitos iguais.

    ALUNO: No seria o Humpty Dumpty?

    PROF. MONIR: , o Humpty Dumpty da Alice [Atravs do Espelho]. Todas

    obras mais novas, no ?

    5 Nota da transcritora - A Tribuna do Paran um jornal sensacionalista de Curitiba.

    6 Nota do resumidor O autor faz piada com os nomes parecidos, apresentando a dupla como

    se fossem duplos um do outro, colocando-os sempre juntos.

    7 Nota da transcritora - Jambo e Ruivo (The Ruff & Reddy Show) uma srie de desenho ani-

    mado que foi produzida pela Hanna-Barbera. A primeira exibio foi em dezembro de 1957.

    Matador e Mata A Dor eram dois bandidos, irmos gmeos, adversrios de Jambo (um gato) e

    Ruivo (um cachorro).

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 29

    ALUNA: No Tintin tem um duplo l... Os dois de chapu coco que so gmeos?

    ALUNO: Tem no Kafka, n?

    PROF. MONIR: No, no Kafka toda a personagem tem um duplo dela

    prpria, mas de um jeito mais sutil. A literatura est cheia de personagens

    explcitas.

    ALUNA: L no Tintin...

    PROF. MONIR: Ah sim, claro! Os dois que andam de gravata, de fraque e

    de chapu cco... verdade! Acho que so dois cientistas... No lembro os

    nomes, verdade8. Bom.

    pequenos proprietrios de terras, trazendo notcias de um acontecimento

    extraordinrio. Quando jantavam salmo, haviam encontrado na hospedaria do

    Vlass um jovem bemapessoado e paisana.

    PROF. MONIR: T vendo, Vlass um nome alemo porque todas as atividades

    comerciais e industriais da Rssia eram ocupadas por alemes. Era muito

    comum o alfaiate ser alemo, o ferreiro ser alemo, etc. Tudo isso resultado

    da Catarina, a Grande.

    Perguntado, Vlass disse tratarse de Ivan Aleksndrovitch Khlestakv9,

    8 Nota da transcritora Trata-se dos detetives Dupond e Dupont, que parecem gmeos e s

    podem ser diferenciados por um pequeno detalhe no formato dos seus bigodes.

    9 Nota do resumidor O nome Khlestakv, segundo Nabokov, faz aluso a silvo de uma

    bengala leve, ao som de tapa de cartas de baralho, fanfarronice de um bobalho e aos modos

    arrojados de um dom-juan.

  • Professor Jos Monir Nasser30

    PROF. MONIR: Os nomes que Ggol usa so sempre engraados. A gente

    no consegue saber porque no sabe russo... Mas so sempre nomes com

    sutis indicaes de outras coisas. O nome Khlestakv, que a principal

    personagem da histria, lembra uma espcie de chicotada, um golpe que

    algum d no outro, como um don juan que d uma cantada numa mulher.

    um jovem funcionrio de Petersburgo. Emenda o hospedeiro: Vai para Sartov,

    diz ele. E tem reaes estranhas: j est hospedado aqui h quase duas semanas

    e no vai embora, compra tudo fiado e no paga um tosto. O tal funcionrio,

    hospedado no quarto cinco, no teria mais que vinte trs ou vinte e quatro

    anos. O prefeito conclui que certamente se tratava do inspetor geral e decide ir

    visitlo com o comissrio de polcia, sob o pretexto de verificar se os viajantes

    no esto tendo aborrecimentos.

    PROF. MONIR: Muito bem! Acontece que esses dois a, os dois Pitr

    Ivnovitch, chegam com a notcia de que tinham visto um estranho na

    hospedaria que deve ser a nica que existe numa cidadezinha dessas ,

    e o prefeito julga automaticamente de que se trata ali do inspetor geral. No

    entanto, o sujeito que est l, o tal do Khlestakv, no paga a conta, tem

    uma situao difcil junto hospedaria e no parece ser de fato o inspetor.

    Pessoal, importante vocs prestarem ateno nisso. Uma pessoa que est

    devendo a conta do hotel... d pra imaginar que seja uma autoridade de So

    Petersburgo? Estava l j h alguns dias, e no tinha dado as caras ainda?

    No parece; no entanto, possvel que voc se engane. possvel que voc

    tome uma pessoa por aquilo que ela no , e esse ponto muito importante

    aqui nesta histria, seno voc no vai entender o nosso enredo.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 31

    Cena IV

    O prefeito, com medo de denncias dos comerciantes, parte para a hospedaria,

    dando ordens a um soldado:

    (Pega a espada do soldado e diz a ele.) Agora v

    correndo, rena alguns sargentos e que cada um traga...

    Diabo, a espada est toda arranhada! Esse maldito

    comerciantezinho Abdlin10 v que o prefeito est

    usando uma espada velha e no lhe manda uma nova.

    Gente malandra! Esses vigaristas, aposto que j esto

    com suas peties no bolso do colete. Que cada um

    desses sargentos pegue na mo uma rua, que diabo, uma

    vassoura! Que varram toda a rua que leva hospedaria. E

    que deixem tudo muito bem limpo. Est ouvindo? Olhe

    aqui: eu te conheo! Conheo muito bem! Faz os seus

    trambiques e ainda por cima esconde colheres de prata

    nas botinas. Estou de olho em voc!! O que voc fez com

    o comerciante Tcherniaiev, hein? Ele te deu dois archins11

    de tecido para a farda e voc lhe roubou a pea toda. Voc

    que se cuide! A sua posio no para tanto! V! (pg. 58)

    PROF. MONIR: O soldado tambm corrupto. O soldado que o prefeito

    quer que v limpar a rua para parecer que a rua mais limpa do que est

    normalmente.

    10 Nota do resumidor Os comerciantes na histria tm nomes judeus.

    11 Nota da tradutora - Archim: medida russa equivalente a 0,71 metro.

  • Professor Jos Monir Nasser32

    Cena V

    O prefeito encontra Stepan Ilitch Ukhovertov12, o chefe de polcia, e anuncialhe

    com ar grave: O tal funcionrio de Petersburgo j chegou. Continua a dar

    ordens curiosas:

    PROF. MONIR: Eles pensam que o Khlestakv. J tomaram a deciso de

    que se trata do Khlestakv.

    Pois veja o que voc tem a fazer: o soldado Pgovitsin...

    que bastante alto, deve ficar na ponte, dando uma

    olhada. Mande imediatamente retirar aquela velha cerca

    ao lado do sapateiro e coloque l algumas placas de

    palha, para dar a impresso de um certo planejamento

    urbano. Quanto mais tudo estiver quebrado, mais se

    denota a atividade do dirigente. Ah! Santo Deus! J me

    ia esquecendo de que ao lado dessa mesma cerca esto

    amontoadas quarenta carroas com toda espcie de lixo.

    Que cidade horrvel! Basta a gente colocar em algum lugar

    um monumento qualquer ou uma simples cerca, e pronto

    s o diabo sabe de onde trazem tanta porcaria! (Suspira.)

    E se o tal funcionrio perguntar aos policiais: Esto todos

    satisfeitos? Respondam: Muito contentes, excelncia. E

    aquele que no estiver contente vai ver depois comigo o

    que estar descontente... Ufa! Culpado, sou culpado. (pg.

    60)

    (...)

    12 Nota do resumidor Ukhovertov faz aluso a torcer orelhas.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 33

    Ah, e se perguntarem por que ainda no foi construda a

    igreja junto Casa de Misericrdia, para a qual h cinco

    anos recebemos uma boa soma, no esqueam de dizer

    que... que comeamos a construir, mas que pegou fogo.

    J apresentei um relatrio sobre isso. Porque, seno, pode

    algum dizer por esquecimento, ou por bobeira mesmo,

    que nem chegamos a comear a obra. (pg. 61)

    PROF. MONIR: Essa situao verossmil? Quer dizer, vocs imaginam que

    pudesse acontecer alguma coisa assim no Brasil? Ou parece impossvel que

    tal coisa tenha acontecido aqui? Ento, fazendo um resumo: uma cidadezinha

    pequena, cheia de problemas, de malandragem e de picaretagens oficiais,

    que est morrendo de medo da vinda de um tal inspetor incgnito. E que j

    sups que esse inspetor seja o tal do Khlestakv, que na verdade apenas

    um picareta que est l sem conseguir pagar a conta do hotel.

    Cena VI

    Ana Andrievna, mulher do prefeito, e a filha Mria Antnovna entram correndo

    pedindo informaes sobre o tal inspetor: Tem bigodes? Que tipo de bigodes?

    PROF. MONIR: , a mulher e a filha do prefeito esto mais interessadas na

    aparncia do rapaz.

  • Professor Jos Monir Nasser34

    Ato II

    Cena I

    Num pequeno quarto do hotel, ssip, criado de Ivan Aleksndrovitch Khlestakv,

    sozinho e deitado na cama do patro, reflete:

    Que diabo! Estou com uma fome! E minha barriga est

    fazendo um barulho como se um regimento inteiro

    estivesse tocando cornetas. Duvido que cheguemos

    em casa! O que que se h de fazer? J faz mais de um

    ms que samos de Peter! Esbanjou o dinheiro todo pelo

    caminho e, agora, o meu anjinho fica a, com o rabo entre

    as pernas, desanimado. E at que a gente tinha um bom

    dinheirinho; mas, no, ele tem que se bacanear em cada

    cidade. (Imita) Eh, ssip! V l, v se acha o melhor quarto,

    e a comida tambm, pea a melhor que houver: refeies

    ruins, duro de suportar, preciso do bom e do melhor.

    PROF. MONIR: Ele faz isso imitando a voz e o jeito do patro.

    Ainda se fosse algum que se preze, mas, qual nada, um

    funcionariozinho de quinta categoria! (pg. 67)

    (...)

    PROF. MONIR: Ele se refere ao ttulo do patro, que tem l um empreguinho

    qualquer subchefe do setor de contagem de gatos, coisa do gnero.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 35

    E a culpa todinha dele. O que que a gente vai fazer?

    O papaizinho manda dinheiro, mas em lugar de poupar

    qual nada! se pe a farrear: s anda de carruagem,

    todos os dias compra um bilhete para o teatro e, depois

    de uma semana, manda vender o seu novo fraque na feira.

    s vezes se livra at da ltima camisa e fica s com o terno

    e o capote.

    PROF. MONIR: Vende a roupa pra fazer caixa. A gente no entende uma

    coisa dessas hoje, no? Se voc for vender sua roupa ali na esquina, vo

    lhe dar 5 reais pela roupa inteira. Nessa poca as roupas eram carssimas,

    ento roupas usadas tinham status de produto com valor patrimonial,

    eram penhoradas. Tanto que O Capote, um conto maravilhoso do Ggol,

    narra a histria de um sujeito chamado Akki Akkievich que tem l um

    capote muito velho, e julga que por causa daquilo um sujeito de baixo

    prestgio social. Ento ele vai arrumar um capote novo. Faz uma poro de

    malabarismos econmicos incrveis para mandar fazer um capote novo,

    com o qual ele imagina crescer na vida. Tanto que d certo, pelo menos

    no comeo. O final do conto eu no vou contar, mas no comeo d certo

    porque ele convidado para ir a uma festa na casa do patro, coisa que

    jamais na vida o patro teria feito se ele no tivesse vestido um capote to

    bonito. O capote era o maior investimento da vida de algum. Imaginem

    um pas muito frio, em que a roupa pesada (mais cara do que a roupa leve)

    muito cara, em que as roupas so smbolo de status. Essa a Rssia da

    poca.

    Juro por Deus que verdade! E o tecido to caro! Pura

    l inglesa! S o fraque deve ter custado cento e cinquenta

    rublos, mas, no mercado, vo arrematlo por uns vinte

  • Professor Jos Monir Nasser36

    rublos. As calas, ento, nem se fale uma ninharia. E

    tudo isso por qu? Porque ele no quer saber de nada.

    Em vez de ir para a repartio, vai passear pelas ruas,

    jogar cartas. Ah! Se o meu velho patro soubesse disso

    tudo! No se importaria nem um pouco de ser ele um

    funcionrio e levantaria a sua roupinha para lhe cobrir

    tanto de palmadas que lhe deixariam coceiras por mais

    de quatro dias. Se tem que trabalhar, ento trabalhe. E

    agora o dono do hotel disse que no vai lhe dar mais nada

    de comer enquanto no pagar o que deve. E se a gente

    no pagar? (Suspira.) Ah! Meu Deus do cu! Pelo menos

    uma sopinha qualquer! Acho que seria capaz de comer

    o mundo inteirinho. Esto batendo, deve ser ele. (Pula da

    cama apressadamente.) (pgs. 6869)

    PROF. MONIR: No quer ser visto na cama do patro... Agora reparem, esse

    ssip tem o patro em boa conta? No parece que tem, no. Ao contrrio, acha

    que um funcionariozinho de quinta categoria, esbanjador, irresponsvel,

    absolutamente inconfivel. E que ele, no entanto, tem que seguir, porque

    afinal deve ser servo (provavelmente ssip escravo do outro), est no

    regime de servido, no pode dizer assim: Olha, eu vou pegar a conta e

    vou embora. Ele tem que ficar ali servindo. Khlestakv herdou esse ssip

    quando o pai morreu, ou ento o pai passou pra ele, como quem passa um

    carro para o filho. Mesma ideia.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 37

    Cena II

    Ivan Khlestakv chega e, ao perceber pela desarrumao que o criado havia

    deitado em sua cama, passalhe descompostura e ordenalhe ir pedir comida ao

    albergueiro, mas o criado se recusa:

    ssiP

    Ah, no! No quero ir no!

    khlestAkv

    Como que se atreve, seu idiota?

    ssiP

    E tambm tanto faz, ir ou no ir. No vai adiantar nada. O

    dono j disse que no vai dar mais nada pra gente comer.

    khlestAkv

    Como se atreve, no vai dar? um absurdo!

    ssiP

    E ainda disse mais. Disse que vai ao prefeito, que o senhor

    h quase trs semanas no paga. Voc e seu patro, disse

    ele, so dois vigaristas, e o seu patro um trapaceiro.

    Conhecemos muito bem vagabundos e patifes dessa laia,

    ele disse.

    khlestAkv

    E voc ainda fica feliz, animal, de me contar tudo isso?

  • Professor Jos Monir Nasser38

    ssiP

    E disse mais: Dessa maneira, qualquer um chega aqui, se

    instala, fica endividado e depois no h como enxotlo.

    Eu no brinco em servio, vou direto dar queixa para que

    o levem logo para a cadeia.

    khlestAkv

    J chega, seu idiota! V, v j falar com ele. Que porco!

    ssiP

    melhor que eu chame o dono para que ele mesmo

    venha aqui falar com o senhor.

    khlestAkv

    Mas para que o dono vir aqui? V l e fale com ele.

    ssiP

    Mas, senhor, ser que...

    khlestAkv

    Ento v se danar! Chame o dono. (pgs. 7273)

    Cena III

    khlestAkv

    (Sozinho.) Estou morrendo de fome! Fui dar uma voltinha

    para ver se perdia o apetite, mas que nada, diabos, a fome

    no passa. ..., se no fosse aquela farra em Penza, at que

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 39

    o dinheiro daria para chegar em casa. Aquele capito de

    infantaria me limpou mesmo.

    PROF. MONIR: Um golpe num jogo de cartas.

    Que lances impressionantes! Em um quarto de hora me

    depenou. Apesar disso, bem que eu queria jogar mais

    uma vez. Ainda no tive ocasio de me encontrar com

    ele. Para tudo preciso a ocasio. Mas que cidadezinha

    horrvel! Nem nas quitandas querem vender fiado! uma

    verdadeira infmia! (Comea a assobiar o incio da pera

    Roberto13, depois cantarola uma cano popular e por fim

    qualquer coisa sem sentido.) Ningum quer vir para c!

    (pg. 75)

    PROF. MONIR: Uma pera que havia acabado de acontecer. O livro foi

    publicado em 1836; quer dizer, cinco anos antes, estreou essa pera Roberto.

    Esse comentrio no p da pgina muito importante para entender depois

    o sentido da obra, t?

    13 Nota do resumidor Robert, o Demnio uma pera de Jacob Meyerbeer (1791-1863),

    considerada a primeira grande pera. Baseada na lenda medieval de Roberto, um sujeito

    controlado por certo Bertram, uma criatura misteriosa que ganha de Roberto no jogo de

    dados e fica com todas as suas propriedades. Bertram diz a Roberto que ele pode obter tudo

    de volta com ajuda de uma vareta mgica, com a qual pode ficar invisvel. Trata-se na verdade

    de uma trama para vend-lo ao diabo. No final, Bertram, que seria na verdade pai de Roberto,

    sacrifica-se indo ele mesmo ao inferno e liberando o filho, salvo pelo amor de Isabelle. A pera

    estreou na pera de Paris em 1831.

  • Professor Jos Monir Nasser40

    Cena IV

    Um criado da hospedaria vem ver o que Khlestakv quer. Quando ouve o

    pedido de comida, confirma que as refeies esto cortadas at o pagamento

    dos atrasados.

    Cena V

    khlestAkv

    Se por acaso ele no me der nada para comer, a coisa vai

    ficar feia. E se eu fizesse um negcio com alguma pea

    de roupa? Que tal vender as minhas calas? Ah no,

    melhor passar fome do que chegar em casa sem a minha

    roupa de Petersburgo. Pena que Iokhn no me alugou

    a carruagem. J pensou, que diabo, chegar em casa de

    carruagem, passar pela entrada de um vizinho qualquer,

    feito um diabo, com os faris acesos e o ssip atrs, vestido

    de libr? Posso imaginar, todo mundo em alvoroo: Mas

    quem ele, quem esse a? E o lacaio entra:

    PROF. MONIR: Pouco antes o lacaio o imitou, no ? Agora ele vai imitar o

    lacaio.

    (Erguese, imitando o lacaio.) Ivan Aleksndrovitch

    Khlestakv, de Petersburgo, pode ser recebido? Esses

    ignorantes nem sabem o que quer dizer pode ser

    recebido! Se chega algum ricao proprietrio de terras,

    ento se atira feito um urso na sala de visitas. E quando

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 41

    a gente se aproxima da filha, uma gracinha, preciso

    dizer: Senhorita, como eu... (Esfrega as mos e faz uma

    reverncia.) Arre! (Cospe.) Tenho enjoo de tanta fome.

    (pg. 79)

    Cena VI

    O criado acaba trazendo o almoo a Khlestakv, advertindo que se trata da

    ltima vez. O rapaz reclama da pouca quantidade e da falta de molho na sua

    refeio. O criado diz s haver aquilo, mas Khlestakv alega que havia visto dois

    sujeitos comendo salmo no restaurante do hotel14.

    khlestAkv

    E o salmo, o peixe, as almndegas?

    o criAdo

    Isso s para pessoas dignas.

    khlestAkv

    Ah! Seu idiota!

    o criAdo

    Sim senhor!

    14 Nota do resumidor Trata-se de Dbtchinski e Bbtchinski, que tambm o haviam visto e

    haviam ido avisar o prefeito.

  • Professor Jos Monir Nasser42

    khlestAkv

    Seu porco! E como pode: eles comem e eu no? Por que,

    diabos, eu tambm no posso comer? Ser que no so

    hspedes como eu?

    o criAdo

    A gente sabe que no.

    khlestAkv

    E como so eles?

    o criAdo

    Ora, como so eles! Todo mundo sabe: gente que paga.

    (pgs. 8283)

    Khlestakv manda devolver o prato: Mas que porcaria de comida essa?

    Quando o criado ameaa de no trazer outra, o jovem concorda: Est bem, est

    bem, t bom... Deixa a, seu tonto. Come a contragosto, reclamando:

    Parece madeira. No d para tirar. E os dentes ficam escuros

    com uma coisa dessas. Vigaristas... Canalhas! Miserveis! Se

    ainda tivesse um molhozinho ou um pastel. Vagabundos!

    S querem esfolar os hspedes. (pg. 84)

    PROF. MONIR: Ento, parando um minutinho. Qual a impresso que vocs

    tm do Khlestakv? Boa, mdia ou ruim? O que vocs acham? Quais so as

    caractersticas que ele tem at agora? Ele um pilantra, um aproveitador,

    um sujeito exibido, folgado. Tem alguma qualidade no Khlestakv at

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 43

    agora? Um certo senso de humor, que no deixa de ser uma boa qualidade,

    no ? melhor um pilantra engraado do que um pilantra sem graa; tem

    essa vantagem. Mas no parece uma pessoa muito recomendvel, esse

    Khlestakv, no isso? Ele est por a, ningum sabe direito o que ele faz;

    est procurando um jeito de no pagar a conta do hotel, do alberguezinho

    onde est hospedado com o seu servo ssip.

    Cena VII

    Depois da refeio, Khlestakv tem a impresso de que no comeu nada. ssip

    comunica a seu patro que o prefeito estava na hospedaria, com pequena

    comitiva, perguntando por ele. Khlestakv se assusta:

    PROF. MONIR: Ele deve estar pensando: Nossa! Agora o que ser que

    o prefeito... Como ele est devendo a conta, imagina que o prefeito veio

    prend-lo. Ou amea-lo, ou expuls-lo da cidade...

    khlestAkv

    Ainda mais essa! S falta esse infeliz do patro ter se

    queixado de mim! E se eles, ainda por cima, me jogarem

    na cadeia? No faz mal. Se for por bem, eu, ainda... no,

    no, no quero. Esta cidade est cheia de oficiais e de

    gente, e eu, assim, no sei por qu, j dei uma de gostoso

    e dei uma piscadinha para a filha de um negociante... No,

    no quero. Mas quem ele pensa que ? Que arrogncia!

    Pensa que sou um negociante ou um arteso qualquer?

    (Cria coragem e se levanta.) Eu vou dizer bem na cara dele:

    Como ousa, como...

  • Professor Jos Monir Nasser44

    (A maaneta da porta se move, Khletakv empalidece e se

    encolhe.) (pg. 85)

    PROF. MONIR: Aqui h um fato importantssimo que vocs no devem ter

    notado, mas reparem como que uma pessoa do governo, quer dizer, um

    funcionrio pblico trata um comerciante nesse momento da histria.

    mais uma demonstrao da hierarquia das castas. De fato o comerciante

    est numa casta de poder abaixo da casta do guerreiro, que onde est

    o funcionrio pblico. Embora este aqui seja um funcionrio sem poder

    nenhum, ele tem uma pretenso a ser poderoso. Por que razo depois a

    gente vai descobrir, meio surpreendentemente. Mas natural que os

    polticos tratem os empresrios de modo depreciativo. Todas as castas

    tm legitimidade moral; no entanto, entre a primeira casta, que a casta

    brammica, e a ltima, que a casta servil, h quatro castas, sendo que trs

    delas so castas ativas. Aquela histria: h aqueles que rezam, que esto no

    topo; aqueles que vo guerra, que esto em segundo lugar; aqueles que

    trabalham, em terceiro. H a quarta casta que se confunde com a terceira,

    no sentido de que tambm trabalha, mas trabalha para todas as trs castas

    de cima, e no apenas para si prpria. Essa a diviso clssica de castas, que

    uma das mais preciosas definies ontolgicas que h. claro que se voc

    ficar insistindo em tentar entender isso pelo critrio da novela da Globo que

    fala da ndia, a voc no entender nada mesmo; ento esquea, nem se

    preocupe com isso. Mas se voc olha para esse assunto com olhos muito

    cientficos, eu at diria, voc ir descobrir que essa definio de castas uma

    das mais extraordinrias percepes que se faz sobre a natureza humana,

    entre as disponveis. E nessa percepo de castas embora as castas tenham

    todas o mesmo valor moral e a mesma importncia social a primeira casta

    mais poderosa que a segunda, a segunda mais poderosa que a terceira,

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 45

    a terceira mais do que a quarta, de modo que o normal a casta poltica,

    a casta guerreira (a segunda) tratar com uma enorme desfaatez e desprezo

    a terceira casta, a casta dita empresarial. Os polticos acham desprezvel a

    ao dos empresrios, e os empresrios so absolutamente subservientes a

    tudo que os polticos mandam. Seja qual for a exigncia que o governo faa,

    os empresrios a cumpriro de modo automtico, porque o empresrio, o

    mundo empresarial sabe que tem um grau de poder muito baixo em relao

    ao poder do mundo poltico, que da natureza das castas ser assim. por

    isso que quando voc procura saber como que voc envolve empresrios

    na poltica, no para empresrio ser poltico, porque isso no d certo

    (Slvio Santos tentou, quebrou a cara na primeira vez que bateram nele,

    ele saiu correndo. Antonio Ermrio de Moraes tentou ser governador de

    So Paulo, tambm no deu certo), voc conseguir que haja amigos dos

    empresrios na casta de cima do poltico e no na casta poltica, porque

    quem controla a casta poltica nunca ela prpria, mas a casta que est

    acima dela, que a casta bramnica. Enquanto eu estou dizendo pra vocs

    isso aqui, dizendo que graas a Deus ainda h no Brasil algum capitalismo,

    seno ns estvamos mortos enquanto eu digo para vocs isso, todos

    os professores de sociologia, histria, filosofia, economia do Brasil esto

    dizendo o contrrio: que o mal do Brasil ter empresa, que o mal do Brasil

    o capitalismo, a explorao disso e daquilo. Entenderam como que voc

    perde o jogo o tempo todo? Voc perde o jogo quando deixa toda a casta

    bramnica falar mal de voc e voc no tem amigos nela. E os empresrios,

  • Professor Jos Monir Nasser46

    infelizmente, pensam que dar dinheiro para o Instituto Ethos15 e para

    o ETCO16 a soluo, quando na verdade esses so os maiores inimigos

    dos empresrios, porque no fundo, em ltima anlise, toda essa conversa

    de empresa socialmente responsvel nada mais do que uma espcie de

    pr-condenao como se as empresas estivessem pr-condenadas

    automaticamente por serem criminosas ad limine, e estivessem ento sendo

    condenadas a prestar servios comunitrios. Isso o que se chama por a

    de projeto de responsabilidade social e coisas do gnero. E quem promove

    isso? Esse negcio de Ethos, ETCO... inimigos n 1 das empresas brasileiras.

    No entanto, vejam vocs em So Paulo no se conseguiu ter um Instituto

    15 Nota da transcritora: O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social uma

    organizao sem fins lucrativos, caracterizada como Oscip (organizao da sociedade civil

    de interesse pblico). Sua misso mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus

    negcios de forma socialmente responsvel, tornando-as parceiras na construo de uma

    sociedade justa e sustentvel. Criado em 1998 por um grupo de empresrios e executivos

    oriundos da iniciativa privada, o Instituto Ethos um polo de organizao de conhecimento,

    troca de experincias e desenvolvimento de ferramentas para auxiliar as empresas a analisar

    suas prticas de gesto e aprofundar seu compromisso com a responsabilidade social e

    o desenvolvimento sustentvel. tambm uma referncia internacional nesses assuntos,

    desenvolvendo projetos em parceria com diversas entidades no mundo todo. Fonte: http://

    www1.ethos.org.br

    16 Nota da transcritora: Sobre o ETCO, segue definio encontrada no prprio site do instituto,

    em http://www.etco.org.br/: Fundado em 2003, o Instituto Brasileiro de tica Concorrencial

    (ETCO) uma organizao da sociedade civil de interesse pblico OSCIP.Congrega empresas

    e entidades empresariais no governamentais com o objetivo de promover a melhoria no

    ambiente de negcios e estimular aes que evitem desequilbrios concorrenciais causados

    por evaso fiscal, informalidade, falsificao e outros desvios de conduta. Numa viso mais

    ampla, conscientizar a sociedade sobre os malefcios sociais de prticas no ticas e seus

    reflexos negativos para o crescimento do pas.Adicionalmente propor e apoiar iniciativas que

    estimulem o comportamento tico na economia. Compem o ETCO seis cmaras setoriais

    congregando empresas dos segmentos de tecnologia, medicamentos, combustveis, fumo,

    cervejas e refrigerantes.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 47

    Liberal17; enquanto isso, o Instituto Ethos tem contribuintes para a sua

    operao que perfazem mais ou menos 40% do PIB. 40% do PIB contribui

    com o Instituto Ethos e no se consegue botar para o Instituto Liberal uma

    secretria com um telefone num escritoriozinho velho no centro de So

    Paulo (ali na rua Pedro Xavier de Toledo, num daqueles lugares baratinhos).

    Esse o problema essencial. Como a casta bramnica no Brasil no conversa

    direto com a casta empresarial, porque a casta bramnica no tem simpatia

    pela casta empresarial, ela deixa que o governo o faa, e quando o governo

    fala com a casta empresarial, fala do jeito que est falando esse pequeno

    Khlestakv. Diz assim: Quem eles pensam que so? Ser que eles acham

    que eu sou empresrio como eles? Ou seja, tratam-nos aos pontaps, com

    toda a clareza, porque isso um problema que voc s entende quando

    compreende o esquema bsico das castas, sem o que no possvel

    entender. Bom. Continuamos.

    Cena VIII

    O prefeito entra e fica parado. Ambos, de olhos arregalados,

    olham apavorados um para o outro por alguns minutos.

    Prefeito

    (Recompondose um pouco, braos em posio de

    17 Nota da transcritora: Apresentao do Instituto Liberal encontrada no site http://www.

    institutoliberal.org.br : O Instituto Liberal uma instituio sem fins lucrativos e no tem -

    nem pode ter, de acordo com seu estatuto, - qualquer vnculo poltico-partidrio. O IL uma

    instituio voltada para a pesquisa, produo e divulgao de ideias, teorias e conceitos que

    revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal. Na

    ordem liberal, o cidado a parte mais importante da sociedade, no o governo (..). O Instituto

    Liberal foi criado por Donald Stewart Jr. no Rio de Janeiro, em 1983.

  • Professor Jos Monir Nasser48

    sentido.)

    Saudaes respeitosas!

    khlestAkv

    (Saudando.) Meus respeitos!...

    PROF. MONIR: Reparem que o prefeito acha que ali est o inspetor geral

    que vai bot-lo na cadeia, e Khlestakv acha que ali est o prefeito que vai

    bot-lo na cadeia. Quer dizer, os dois acham que o outro o inimigo, no ?

    Os dois esto achando isso.

    Prefeito

    Desculpe...

    khlestAkv

    No h de qu.

    Prefeito

    meu dever, como cidado responsvel que zela por esta

    cidade, cuidar para que os viajantes e todas as pessoas de

    bem no tenham nenhum aborrecimento...

    PROF. MONIR: Que a desculpa que o prefeito est dando para ter ido l,

    no ?

    khlestAkv

    (Gagueja um pouco, de incio, e depois fala em voz alta.)

    Mas o que fazer?... A culpa no minha... Juro que vou

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 49

    pagar... Vo me enviar l da minha casa... (Bbtchinski

    mostra a cara na porta.) Ele que o culpado. A carne

    que me d dura como pedra. A sopa, ento, nem o

    diabo sabe o que tem dentro. Tive que jogar pela janela.

    Ele me faz passar fome durante dias... E o ch, ento coisa

    esquisita: tem cheiro de peixe. Essa boa! E por que eu

    deveria...

    PROF. MONIR: Vejam s, pessoal, no seria uma situao normal se voc,

    supondo que ali est um alemo, quando aquela pessoa comeasse a falar

    com voc em espanhol nativo, voc desconfiasse que a pessoa no era o

    alemo que voc achava que era antes? (Risos.) Pois a reao do rapaz no

    uma reao que desautoriza a tese de que ele seja o inspetor geral? No

    entanto, ser que o prefeito vai acreditar nisso? No. No acreditar nisso,

    por mais que seja bvio que ele no o inspetor geral. Agora, por que isso

    acontece, daqui a pouco a gente vai entender melhor. Continuamos.

    Prefeito

    (Intimidado.) O senhor me perdoe, mas a culpa tambm

    no minha. Sempre tenho carne boa no mercado. Os

    negociantes de Kholmogry que trazem, gente que no

    bebe, de boa conduta.

    PROF. MONIR: O prefeito est falando mal dos comerciantes da cidade.

    Est dizendo assim: No, no como o pessoal daqui, que so todos uns

    bbados. No isso? Porque ele sabe que os comerciantes iro entregar

    peties ao inspetor geral quanto a ele, prefeito. Ento ele j est fazendo a

    campanha contra os comerciantes nesse comentrio.

  • Professor Jos Monir Nasser50

    No tenho a menor ideia de onde vem essa tal carne. Mas

    se alguma coisa est, ento... Permita que o convide a ir

    comigo para outro domiclio.

    khlestAkv

    No, no. No quero. Sei muito bem o que significa outro

    domiclio: quer dizer cadeia. Mas com que direito? Como

    se atreve? Pois saiba que eu... eu sou um alto funcionrio

    de So Petersburgo. (Cria coragem.) Eu, eu, eu...

    Prefeito

    ( parte.) Ai, meu Deus, como severo! J est sabendo de

    tudo. (pgs. 8788)

    PROF. MONIR: Quer dizer, tudo que um diz o outro interpreta de acordo

    com a fantasia que ele tem sobre o outro. Ento no tem mais jeito de ele

    desmentir que o inspetor geral nessa altura. Se ele dissesse assim: Eu no

    sou o Inspetor Geral, iam dizer: Ah, o jeito pelo qual ele quer continuar

    incgnito, portanto no vamos acreditar nisso, no ? Lembro-me de um

    filme engraadssimo, chamado A Vida de Brian, daquele pessoal do Monty

    Python. Neste filme, no dia em que nasce Jesus Cristo tambm nasce Brian,

    e a populao toma esse Brian por Jesus Cristo. E Brian, que no nada,

    perseguido como Jesus Cristo. Tem uma hora que ele est sendo perseguido

    por uma turba, e a ele para e fala assim: Eu no sou o Messias. Da o pessoal

    diz: Olha, quem mais diria que no o Messias, seno o prprio Messias?

    S o Messias diria que ele no o Messias. o Messias! E ele: No, ento

    eu sou, eu sou, eu sou! (Risos.) E a turba: Viu? ele! ele, sim! Tem certos

    momentos na situao humana em que no se pode desmentir nada,

    entenderam? Reparem, pessoal.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 51

    Aqueles malditos negociantes18 contaram tudo. (pgs. 87

    88)

    A conversa continua com ambos confundindo o sentido das palavras um do

    outro.

    khlestAkv

    (Com mais coragem.) E, olhe aqui, mesmo que venha com

    todo o seu regimento, eu no irei! Vou diretamente ao

    ministro. (Bate como os punhos na mesa.) Quem o senhor

    pensa que ?

    Prefeito

    (Perfilase, tremendo da cabea aos ps.) Por piedade, no

    me desgrace! Tenho mulher, filhos pequenos... no acabe

    com a vida de um homem. (pg. 88)

    PROF. MONIR: Mentira! Ele tem s uma filha de 18 anos. Est mentindo,

    claro, pra gerar um efeito emocional no inspetor.

    O prefeito, aterrorizado, se desfaz em desculpas: Pelo amor de Deus, foi por

    falta de experincia, falta de experincia.

    Prefeito

    Por favor, tente compreender. A verba no d nem para

    o ch e para o acar. E se, por acaso, houve subornos,

    foi uma ninharia: uma coisinha toa para comer, um

    18 Nota do resumidor O prefeito teme que os comerciantes locais procurem o inspetor para

    denunci-lo.

  • Professor Jos Monir Nasser52

    cortezinho para uma roupa. E quanto viva do suboficial,

    aquela que faz negcios escusos e a quem eu teria

    mandado espancar, tudo calnia, pelo amor de Deus,

    calnia. Tudo inveno daqueles malvados, essa gente

    que quer atentar contra a minha vida.

    khlestAkv

    E da? No tenho nada a ver com isso. (Pensativo.) Mas eu

    no sei por que o senhor est me falando desses malvados

    ou da viva do suboficial... A mulher do suboficial, tudo

    bem, mas a mim o senhor no vai aoitar, no senhor!

    J se viu uma coisa dessas, ora bolas? Eu vou pagar. Vou

    pagar tudo. Mas, assim, no momento, no tenho como.

    justamente por isso que estou aqui, porque no tenho um

    tosto. (pg. 89)

    Continua a conversa confusa. O prefeito pese disposio: Meu dever

    ajudar os nossos visitantes. Khlestakv, que comea a sentirse em vantagem,

    pedelhe emprestados duzentos rublos.

    PROF. MONIR: Ns somos o nico lugar do Brasil que faz confuso entre pedir

    emprestado e emprestar. Em todo lugar do Brasil, quando algum pede, o

    suplicante, pede emprestado e o que o que empresta, empresta. Aqui

    em Curitiba costuma-se usar a mesma expresso para as duas coisas, o que

    uma anomalia. to engraado... Voc vai biblioteca e no empresta o

    livro, quem empresta o livro a biblioteca para voc. Voc vai biblioteca e

    pede emprestado o livro, ou toma emprestado, e quem empresta sempre

    quem faz o ato ativo de ceder. Mas aqui, por alguma razo estranhssima,

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 53

    ns costumamos confundir essas duas coisas. S aqui em Curitiba tem esse

    problema. Engraado, n? uma idiossincrasia curitibanesa. Muito bem.

    O prefeito os entrega imediatamente e comenta consigo mesmo ( parte):

    Ai, graas a Deus! Aceitou o dinheiro. A coisa agora vai melhorar. Em vez de

    duzentos, deilhe quatrocentos. (Risos.) Khlestakv est cada vez mais confiante.

    O prefeito decide fingir que no sabe quem ele e alega que sua iniciativa est

    baseada no amor cristo pela humanidade e no seu desejo que cada mortal

    receba boa acolhida. Sem entender a situao, Khlestakv d informaes sobre

    si, que so inconsistentes com a teoria do prefeito, mas este, transtornado pelo

    medo, no entende:

    khlestAkv

    Eu tambm estou muito feliz. Sem o senhor, francamente,

    eu iria ficar aqui um tempo: no teria a menor ideia de

    como pagar a conta.

    PROF. MONIR: No uma declarao que vai contra o status de grande

    autoridade de So Petersburgo? No entanto, o prefeito no saca que ali est

    havendo um engano.

    Prefeito

    ( parte.) Ora, no me venha com essa! No tinha ideia como pagar!

    (Em voz alta.)

    PROF. MONIR: , No tinha ideia de como pagar...??!! Quer dizer, ironizando

    como se o outro estivesse fingindo que no podia, quando na realidade era

    verdade, ele no tinha dinheiro nenhum, mesmo.

  • Professor Jos Monir Nasser54

    Prefeito

    Se me permite perguntar, para onde, para que lugares,

    pretende o senhor se dirigir?

    khlestAkv

    Vou para a provncia de Sartov, para as minhas

    propriedades.

    Prefeito

    ( parte, com expresso irnica.) Provncia de Sartov,

    hein? Est bem! E nem fica vermelho! Com esse a a gente

    tem que ficar de orelha em p! (Em voz alta.) O bom Deus

    o proteja no caminho de volta. Mas veja, com relao s

    estradas, dizem que, se por um lado, a demora dos cavalos

    uma coisa bem desagradvel, por outro lado, uma

    distrao para o esprito. Mas, ao que parece, o senhor est

    viajando por puro prazer, no?

    khlestAkv

    No, meu pai que me obriga a voltar. O velho est

    zangado porque, at agora, no fiz carreira em Petersburgo.

    Ele acha que, nem bem a gente chega l, j nos do uma

    medalha de condecorao. Eu queria s ver se fosse ele

    zanzando pelas reparties.

    Prefeito

    ( parte.) Mas olhem s como ele d bolas imaginao...

    Agora inventou essa histria do velho pai? (Em voz alta.) E

    o senhor pensa em viajar por muito tempo? (pgs. 9192)

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 55

    Khlestakv aproveita para reclamar do quarto: um quarto deplorvel, e

    tem cada percevejo que nunca vi igual: mordem como cachorros. O prefeito

    imediatamente convidao a ficar em sua casa: Juro por Deus, ofereo de corao.

    Khlestakv aceita dizendo teatralmente no exigir nada, alm de lealdade e

    respeito, respeito e lealdade.

    PROF. MONIR: Olha, pessoal, esse pedacinho aqui to importante, se vocs

    imaginassem como importante para entender essa obra! O que Khlestakv

    exige como compensao: respeito e lealdade, lealdade e respeito. Depois a

    gente vai entender se vocs no matarem antes, no ? Porque est fcil

    de matar essa. Bem, vamos l.

    Cena IX

    Na sada, Klestakv pede autoritariamente a conta, mas o prefeito se encarrega

    junto ao hoteleiro de saldla depois.

    Cena X

    O prefeito quer que o inspetor geral v visitar algumas instituies como a

    Assistncia Social. Khlestakv no entende para qu. Como o alcaide insiste, ele

    concorda, ainda sem entender. O prefeito discretamente manda Dbtchinski

    avisar sua mulher e o responsvel pela Assistncia Social.

  • Professor Jos Monir Nasser56

    Ato III

    Cena I

    Ana Andrievna e Mria Antnovna esto junto janela.

    PROF. MONIR: A mulher e a filha do prefeito, respectivamente.

    Percebem Dbtchinski que vem trazendo o bilhete do prefeito.

    Cena II

    As mulheres interrogam Dbtchinski ansiosamente. O pequeno proprietrio

    relata:

    Graas a Deus, tudo em ordem. A princpio, ele recebeu Antn Antnovitch

    com certa aspereza. , sim senhora. Ficou zangado e disse que no hotel tudo

    estava mal, que no iria se hospedar na casa dele e que no queria ser preso por

    causa disso.

    PROF. MONIR: Tudo confuso, no ? Misturou toda a histria.

    Mas, depois, quando percebeu a generosidade de Antn

    Antnovitch e conversou um pouco melhor com ele, a

    sua cabea virou e, graas a Deus, tudo comeou a correr

    bem. Agora foram visitar as instituies da assistncia

    social... Para dizer a verdade, Antn Antnovitch chegou a

    pensar em alguma denncia secreta e at eu fiquei assim

    com medo.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 57

    AnA AndrievnA

    Mas assustado por qu? O senhor no funcionrio

    pblico!

    PROF. MONIR: Ele um pequeno proprietrio. Esse Dbtchinski e tambm

    o Bbtchinski.

    dbtchinski

    A senhora sabe, quando um homem to importante fala,

    a gente morre de medo. (pg. 106)

    Continua o interrogatrio e elas ficam sabendo que se trata de um moo de

    vinte e trs anos, mais para o castanho, que fala como um velho.

    PROF. MONIR: Ah! Fala como um velho. Mais uma dica enorme aqui pra

    vocs entenderem a histria.

    No bilhete, h instrues para a hospedagem do inspetor geral.

    PROF. MONIR: Inspetor geral agora entre aspas porque ele no inspetor

    geral coisa nenhuma. Ele no se faz passar ainda por isso, porque ainda no

    entendeu bem o que est acontecendo. Ele s est achando muito estranho

    que todo o mundo o bajule naquele lugar, no ?

    Cena III

    As mulheres, nervosas, discutem que roupa vestiro para receber hspede to

    ilustre.

  • Professor Jos Monir Nasser58

    Cena IV

    Chega ssip e conduzido casa adentro por Michka, servo do prefeito. Enquanto

    carregam as malas, conversam:

    michkA

    Diga, amigo: o general vem logo?

    ssiP

    Que general?

    michkA

    Seu patro, ora essa!

    ssiP

    Meu patro? Mas que general que nada!

    michkA

    Ento no general?

    ssiP

    General, sim, de meiatigela. (pg. 111)

    ALUNOS: (Risos.)

    PROF. MONIR: O general o cargo mais alto a que chega um burocrata na

    Rssia. No Brasil tambm assim. No exrcito, o militar de maior patente

    o general. Marechal um militar com uma misso em tempos de guerra;

    aquele que conduz a guerra. um general que tem essa especialidade.

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 59

    Mas, na hierarquia normal, o general o mximo aqui. Na Rssia czarista,

    em que o servio civil tambm tinha hierarquia militar, general era o nome

    do mais alto cargo de um funcionrio pblico. Por isso que o empregado

    no entende nada. Mas quase ningum entende. Aqui h uma tremenda

    confuso.

    ssip pede comida. Michka fica sem entender nada.

    Cena IV

    Khlestakv inspeciona a assistncia social. O prefeito aponta aos soldados

    que o acompanham um papel que est no cho. Eles correm para apanhlo,

    chocandose entre si na pressa. Khlestakv, j despreocupado com sua situao,

    finge: Que belas instituies! Fico contente que os senhores mostrem aos

    viajantes tudo o que a cidade possui. No me mostram nada nas outras cidades.

    ALUNOS: (Risos.)

    PROF. MONIR: Por razes bem bvias, n?

    O prefeito explicalhe que nas outras cidades, os dirigentes e funcionrios

    pensam apenas em tirar vantagem de tudo, mas ali seria diferente. Khlestakv

    elogia o bacalhau do almoo e as instalaes da assistncia social. O diretor,

    Artmi Filpovitch Zemlianik19, diz que ali os pacientes ficam todos curados

    como moscas. O doente nem bem entra no hospital j fica bom. Insiste em que

    a causa deste milagre no seriam os remdios, mas a honestidade e a ordem.

    19 Nota do resumidor Zemlianik significa morango maduro.

  • Professor Jos Monir Nasser60

    O prefeito aproveita para emendar, capitalizando a situao para si:

    E. se me permite dizerlhe, todo esse quebracabea

    de responsabilidade do prefeito. Quantos problemas

    diferentes; a limpeza aqui, um conserto ali, um reparo

    acol... Numa palavra, o homem mais inteligente se veria

    em apuros; mas, graas a Deus, tudo corre na santa paz.

    Um outro prefeito, claro, se contentaria apenas em agir

    em proveito prprio; mas, pode acreditar, a gente, at

    mesmo quando vo para cama dormir, fica pensando:

    Queira Deus que tudo seja feito para que os superiores

    reconheam o meu zelo e fiquem satisfeitos...

    PROF. MONIR: Toda a noite ele tem essa viso: Tomara que meus superiores

    me reconheam...

    Se serei recompensado ou no, s Deus sabe; mas, pelo

    menos, tenho a conscincia tranquila. Quando tudo est

    em ordem na cidade, as ruas varridas, os presos em boas

    condies e h poucos bbados... o que se pode querer

    mais? Palavra de honra, as honrarias... no quero mesmo.

    Claro que so sedutoras, mas, diante da virtude, tudo isso

    so cinzas e vaidades. (pgs. 114115)

    PROF. MONIR: Vocs acharam o prefeito sincero? (Risos.) Algum achou

    o prefeito sincero? D pra imaginar uma situao dessas aqui no Brasil,

    ou no? Reparem que o sistema russo poltico da poca um sistema

    absolutamente centralizado, quer dizer, esse lugarzinho que no fim do

    mundo tem o prefeito indicado pelo czar, pelo imperador. Repararam que

  • EXPEDIES PELO MUNDO DA CULTURA O Inspetor Geral 61

    o prefeito indicado, no eleito? No h nenhuma espcie de democracia.

    H um sistema absolutista moda russa em que o czar, que mora em So

    Petersburgo, controla todo aquele imenso pas, duas vezes maior que o Brasil,

    a partir de um sistema de molas e engrenagens burocrticas extremamente

    complexo. esse pesadelo burocrtico que est aqui por trs disso tudo.

    Tanto que h uma interpretao comum da obra (a mais comum que

    voc vai encontrar por a), de que se trata de uma crtica cida burocracia

    czarista ou ao prprio modelo czarista. claro que ns no somos mais to

    bobos assim ao ponto de achar que um livro desse s fala disso, no ? Ns

    j somos capazes de desconfiar de que tem mais coisa por a. Mas vamos l.

    Khlestkv pergunta se h no local uma boa so