livro serviço social - direitos sociais e competências profissionais - cfess e abepss 2009

743
Estudos Socioeconômicos Regina Célia Tamaso Mioto

Upload: claudiamuniz39

Post on 30-Nov-2015

3.559 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • Estudos Socioeconmicos

    Regina Clia Tamaso Mioto

  • 2

    Introduo

    Abordar o tema estudos socioeconmicos no mbito do Servio Social remete a

    pens-lo, inicialmente, enquanto parte intrnseca das aes profissionais dos assistentes

    sociais. Afinal de contas o desenvolvimento das aes profissionais pressupe o

    conhecimento acurado das condies sociais em que vivem os sujeitos aos quais elas se

    destinam, sejam indivduos, grupos ou populaes. No entanto, esse tema se impe ao

    debate, de forma especial, quando a Lei n. 8.662, que dispe sobre o exerccio da profisso,

    no seu artigo 4o, lhe atribui o estatuto de competncia profissional. Entre outras

    competncias elencadas nesse artigo, o item XI afirma que constitui competncia do

    assistente social realizar estudos scio-econmicos com usurios para fins de benefcios e

    servios sociais junto a rgos da administrao pblica direta e indireta, empresas

    privadas e outras entidades (CRESS/SC, 1999).

    Dentro dos marcos de uma legislao, esta definio legitima o reconhecimento social

    de uma competncia construda historicamente pela profisso, particularmente, no mbito

    das polticas sociais, que constitui o campo de trabalho privilegiado dos assistentes sociais.

    Isso significa dizer que a realizao de estudos socioeconmicos esteve presente no

    cotidiano do exerccio profissional dos assistentes sociais ao longo da trajetria do Servio

    Social, mas nem por isso manteve o mesmo significado e direo. A sua concepo e as

    questes implicadas na sua operacionalizao se transformaram medida que a profisso

    tambm se transformou, buscando responder aos desafios impostos pela realidade social.

    Nessa perspectiva, o texto que se apresenta pretende contribuir para o

    aprofundamento da discusso dos estudos socioeconmicos como competncia

    profissional, visando construo de um dilogo para uma qualificao mais apurada dessa

    ao profissional e a produo de um marco de referncia para a operacionalizao dos

    estudos socioeconmicos. Para tanto, est estruturado em quatro tpicos: Servio Social e

    estudos socioeconmicos; Estudos socioeconmicos/estudos sociais: o que so, para que

    so e onde se realizam; Estudos socioeconmicos/estudos sociais: quem so seus sujeitos;

  • 3

    Estudos socioeconmicos/estudo sociais: realizao e elaborao de documentos; e

    finalmente, uma brevssima (in)concluso.

    1 Servio Social e estudos socioeconmicos

    Os estudos socioeconmicos na trajetria do Servio Social brasileiro tiveram um

    grande desenvolvimento tcnico no perodo da consolidao da profisso, atravs da

    apropriao do marco conceitual do Servio Social americano e particularmente do Mtodo

    do Servio Social de Caso. De acordo com Nicholds (1969), tinha como objetivo realizar o

    ajustamento dos indivduos a seu meio, cooperando com eles a fim de benefici-los e

    tambm a sociedade em geral. Enquanto mtodo de tratamento, inclua a necessidade de

    diminuir ou resolver o problema trazido pelos clientes e, se possvel, modificar as

    dificuldades e complicaes fundamentais. Esse mtodo previa que, quando um cliente

    pedia auxlio, era necessria a realizao do estudo social de caso, numa primeira etapa,

    posteriormente o diagnstico e por ltimo o tratamento.

    No estudo social de caso, dois grupos de informaes eram importantes: aquelas

    inerentes ao indivduo (aparncia fsica, capacidade mental, habilitaes especficas) e

    aquelas prprias do ambiente (tipo de casa, tipo de emprego do presente e do passado,

    companheiros dos quais gostava). A assistncia ao cliente tinha como premissa a busca de

    recursos tanto na personalidade como no seu ambiente para corrigir a situao

    (HAMILTON, 1976; NICHOLDS, 1969).

    Essa postulao sobre o estudo social de caso no contexto do Servio Social

    reveladora como apontaram inmeros estudos entre os quais se destacam os de Yazbec

    (1993) e Iamamoto (1994) de uma perspectiva paradigmtica de orientao

    positivista/funcionalista que partia da concepo que a desigualdade social era um fato

    natural. Assim, as relaes sociais dos indivduos eram compreendidas no plano do

    imediato e a soluo dos problemas sociais, como responsabilidade dos prprios

    indivduos. Portanto, a busca de soluo dos problemas se concentrava essencialmente nas

    questes de personalidade e adaptao dos indivduos. Disso se pode deduzir que o acesso

  • 4

    a determinados auxlios materiais e a servios no mbito das instituies se vinculavam

    muito mais a julgamentos morais do assistente social sobre a personalidade e os modos de

    vida dos indivduos do que de suas condies objetivas de vida. Mais que isso, pautava-se

    na ideia de que o auxlio pblico s deve acontecer de forma temporria e depois de

    esgotadas as possibilidades da utilizao dos recursos dos prprios indivduos ou de seu

    ambiente (materiais e imateriais).

    Ancorados nessa perspectiva, os assistentes sociais aprimoraram os seus

    instrumentos e tcnicas tais como a entrevista, a observao, a visita domiciliar

    direcionados basicamente para o processo de averiguao dos modos de vida dos

    indivduos. Houve, no interior das instituies, um processo de burocratizao dos

    procedimentos e de regulamentao para a conduo dos estudos socioeconmicos. Nessa

    linha, enraizaram-se no interior da profisso as bases dessa concepo e das formas de

    operar os estudos socioeconmicos. A sua reatualizao tem encontrado terreno frtil no

    contexto da lgica neoliberal que revigora tanto o iderio de seletividade e merecimento na

    obteno de auxlios materiais e de servios, quanto incentiva o processo de

    refilantropizao e despolitizao do tratamento da questo social (YASBEC, 2000).

    Em contraposio lgica prevalente dos estudos socioeconmicos desenvolvida sob

    a chancela do servio social de caso, uma outra lgica para o encaminhamento desses

    estudos foi sendo engendrada. Isto ocorreu a partir do momento em que autores e

    profissionais de Servio Social passaram a discutir a profisso dentro das bases da teoria

    social de Marx, que permitiu tanto o avano do debate terico-metodolgico da profisso,

    quanto a construo de seu projeto tico-poltico1. A partir dessa nova perspectiva

    paradigmtica e da afirmao do compromisso tico poltico dos assistentes sociais com as

    classes trabalhadoras, os estudos socioeconmicos ganham uma nova configurao pautada

    em dois pontos fundamentais.

    1 O debate terico-metodolgico do Servio Social com base na teoria social de Marx, bem como do projeto

    tico-poltico encontram-se amplamente referenciados nesse curso, nos mdulos anteriores.

  • 5

    O primeiro concerne interpretao das demandas postas aos assistentes sociais

    pelos indivduos. Aquelas necessidades trazidas por sujeitos singulares no so mais

    compreendidas como problemas individuais. Ao contrrio, tais demandas so interpretadas

    como expresses de necessidades humanas bsicas no satisfeitas, decorrentes da

    desigualdade social prpria da organizao capitalista. Assim, o assistente social tem como

    objeto de sua ao as expresses da questo social, e essa premissa no admite que se

    vincule a satisfao das necessidades sociais competncia ou incompetncia individual

    dos sujeitos.

    O segundo refere-se ao redimensionamento que a perspectiva crtico-dialtica exige

    da ao profissional no que diz respeito ao seu alcance e direcionalidade. Ao postular que as

    solues dos problemas dos sujeitos singulares s se efetivam, de fato, com a transformao

    das bases de produo e reproduo das relaes sociais superao do modo de produo

    capitalista , exige-se que a ao profissional seja pensada na sua teleologia. Para alm de

    sua eficincia operativa ou de sua instrumentalidade, como prope Guerra (2000),

    incorpora a elas o compromisso tico com a transformao social.

    Por outro lado, ao reconhecer o terreno scio-histrico na qual se movimenta a

    profisso, adota a categoria dos Direitos e da Cidadania como direo no encaminhamento

    das aes profissionais. Os direitos so entendidos como caminhos para a concretizao da

    cidadania por meio de polticas sociais orientadas para o atendimento das necessidades

    humanas bsicas. O Estado reconhecido como instncia responsvel por essa garantia e

    ateno (VIEIRA, 2004; LIMA, 2006).

    Tal redimensionamento impe uma nova lgica aos estudos socioeconmicos, e eles

    passam a ser entendidos como aes significativas no processo de efetivao, garantia e

    ampliao de direitos fundamentais e no enfrentamento das expresses da questo social.

    Assim, exigi-se a ampliao da ao profissional para alm dos sujeitos singulares que serve

    de subsdio para as respostas coletivas s demandas que so singulares.

  • 6

    Enfim, pode-se dizer que a perspectiva crtica no Servio Social provocou uma

    verdadeira revoluo nas formas de conceber e conduzir os estudos socioeconmicos. As

    mudanas abrangeram tambm as formas de relacionamento entre os sujeitos (agora

    sujeitos de direitos), os assistentes sociais e a sociedade. A partir dessa tica, discutem-se

    os estudos socioeconmicos enquanto ao de competncia dos assistentes sociais. Como

    tal, constroi-se como processo sem poder ser definido priori e sem poder ser

    desvinculado dos determinantes estruturais, conjunturais e profissionais, que condicionam

    os seus limites e as suas possibilidades.

    2 Estudos socioeconmicos/ estudos sociais: o que so, para que so e onde

    acontecem

    O avano e consolidao do debate da profisso no bojo da teoria crtica fizeram surgir

    vrias aproximaes que passaram a ser construdas para redimensionar a prtica dos

    estudos socioeconmicos em diferentes espaos sociocupacionais, especialmente aqueles

    vinculados ao campo das polticas pblicas, com destaque seguridade social e ao campo

    sociojurdico. Nesse processo de construo do debate, os estudos socioeconmicos

    tambm foram se afirmando terminologicamente como estudo social, simplesmente. As

    manifestaes provindas das diversas reas profissionais tm insistido na importncia

    dessa ao profissional e tm destacado a realizao dos estudos sociais sob o ponto de

    vista da totalidade e da garantia de direitos. A ao profissional dos assistentes sociais

    reveladora do compromisso dos assistentes sociais com a matriz da teoria crtica.

    A adoo da perspectiva de totalidade revela-se atravs da incluso no estudo social

    da observao e anlise dos diferentes aspectos da vida social que incidem na configurao

    das situaes singulares, inclusive os de ordem estrutural (COSTA; OLIVEIRA, 2004;

    MOREIRA; ALVARENGA, 2004). Nessa tica, Fvero (2004, p. 42) afirma que o estudo social

    tem por finalidade conhecer com profundidade, e de forma crtica uma determinada

    situao ou expresso da questo social, objeto da interveno profissional especialmente

    nos seus aspectos scio-econmicos e culturais.

  • 7

    No mesmo sentido, Iamamoto (2004, p. 286) afirma que existe uma exigncia de

    articulao da vida dos indivduos singulares com as dimenses estruturais e

    conjunturais uma vez que so estas que a conformam. As situaes individuais ou

    familiares condensam, simultaneamente, as dimenses universais, particulares e

    singulares da vida em sociedade.

    A perspectiva dos direitos de cidadania destacada como fundamental,

    especialmente, medida que os estudos sociais subsidiam pareceres sociais que so

    instrumentos de viabilizao de direitos, um meio de realizao do compromisso

    profissional com os usurios, tendo em vista a equidade, a igualdade, a justia social e a

    cidadania (SILVA, 2000, p. 116). Acrescenta-se a isso que a sistematizao e anlise do

    conjunto de informaes contidas no conjunto dos estudos realizados geram possibilidades

    de discusso do processo de fruio dos direitos relativa tanto garantia como sua

    ampliao. Assim pode-se impactar tanto a gesto e o planejamento de programas e

    servios, como a formulao de polticas sociais.

    Os estudos sociais so realizados nos mais diversos campos de interveno

    profissional e esto vinculados ao acesso a determinados benefcios sociais de ordem

    material e financeira, em que se inclui a aquisio de bens e de servios. Ou ainda, so

    realizados para servir como subsdio para o arbtrio de situaes conflituosas como tpico

    do campo sociojurdico. Assim acontece em inmeros espaos sociocupacionais presentes

    na organizao dos mais variados servios e programas vinculados s polticas pblicas, ao

    judicirio de maneira geral, as organizaes privadas e tambm s organizaes no-

    governamentais (ONGs).

    No mbito das polticas pblicas, destaca-se a seguridade social, rea em que os

    estudos sociais so largamente utilizados. Na Assistncia Social, so utilizados tanto para o

    acesso de usurios ao Benefcio de Prestao Continuada (BPC), como aos programas de

    transferncia de renda. Na Previdncia Social, destinam-se, concesso de benefcios,

    recursos materiais e para subsidiar a deciso mdico-pericial. Na Sade, so realizados para

    o acesso a determinados servios, como o caso da oxigenoterapia. Na Poltica Urbana, so

  • 8

    utilizados pelas administraes municipais nos processos de iseno de impostos, caso do

    Imposto Territorial Urbano (IPTU). Nos Programas Habitacionais de carter governamental

    ou no, cresce o nmero de contratao de assistentes sociais para que realizem estudos

    socioeconmicos, entre outras aes, com vistas aquisio e manuteno da casa prpria.

    Nas empresas privadas, os estudos sociais servem para proporcionar acesso a

    determinados benefcios, inclusive emprstimos financeiros. Nas ONGs destinam-se

    adstrio da populao no acesso a determinados servios (creches, por exemplo) ou

    concesso de diferentes auxlios. As mesmas finalidades esto presentes nos inmeros

    programas vinculados s parcerias pblico-privadas to em voga atualmente. E, por fim, no

    campo sociojurdico, os estudos sociais so a base para emisso de pareceres e laudos, que

    inclusive tm valor de prova nos processos judiciais, Eles visam a contribuir, nas palavras

    de Fvero (2004, p. 42), para a justa aplicao da lei.

    Alm dos programas e servios vinculados s diferentes reas de interveno

    profissional que tm os estudos sociais como finalidade precpua, merece destaque o

    espao do planto social. Este existe no contexto de um grande nmero de organizaes

    pblicas ou privadas, como espao tambm privilegiado de realizao de tais estudos. no

    planto social que, tradicionalmente, se define o acesso a uma gama imensa de recursos e

    servios dentro ou fora das organizaes. Tal definio tem na sua base a realizao de um

    estudo socioeconmico/estudo social, independente de ser realizado com mais ou menos

    tempo, com mais ou menos qualidade, ou ainda com mais ou menos compromisso, uma vez

    que estas aes tm sido altamente desvalorizadas no contexto profissional.

    Dentro desse universo de larga utilizao, que certamente extrapola os mencionados

    acima, os estudos socioeconmicos assumem determinadas caractersticas e finalidades

    condicionadas tanto pelas especificidades das reas (sade, educao, judicirio), como

    pela natureza dos espaos sociocupacionais (o pblico, o privado) e isso tanto exige do

    profissional conhecimentos relacionados a matrias especficas, como impe condutas

    ticas e limites sua ao.

  • 9

    Os estudos socioeconmicos/estudos sociais, como toda ao profissional, consistem

    num conjunto de procedimentos, atos, atividades realizados de forma responsvel e

    consciente. Contm tanto uma dimenso operativa quanto uma dimenso tica e expressa,

    no momento em que se realiza a apropriao pelos assistentes sociais dos fundamentos

    terico-metodolgico e tico-polticos da profisso em determinado momento histrico.

    Os estudos sociais so estruturados a partir dos sujeitos para os quais a ao est

    dirigida, formas de abordagem desses sujeitos, bem como pela utilizao dos instrumentos

    tcnico-operativos e pela produo de documentos. Documentos esses relacionados tanto

    s aes na sua singularidade, como na produo de sistematizaes como: informes e

    relatrios que podem desencadear outras aes profissionais, de si ou de outros, ou

    subsidiar outras instncias de planejamento, gesto e formulao de polticas sociais.

    Operacionalmente, os estudos socioeconmicos/estudo social podem ser definidos

    como o processo de conhecimento, anlise e interpretao de uma determinada situao

    social. Sua finalidade imediata a emisso de um parecer formalizado ou no sobre tal

    situao, do qual o sujeito demandante da ao/usurio depende para acessar benefcios,

    servios e/ou resolver litgios. Essa finalidade ampliada quando se incluem a obteno e

    anlise de dados sobre as condies econmicas, polticas, sociais e culturais da populao

    atendida em programas ou servios, partir do conjunto dos estudos efetuados como

    procedimento necessrio para subsidiar o planejamento e a gesto de servios e

    programas, bem como a reformulao ou a formulao de polticas sociais.

    Na breve apresentao sobre o que so os estudos sociais, suas finalidades e os

    espaos onde essa ao profissional geralmente ocorre, o prximo passo ser conhecer um

    pouco os sujeitos implicados na realizao desses estudos.

    3 Estudos socioeconmicos/estudo sociais: quem so os seus sujeitos

    Os estudos sociais se realizam, via de regra, a partir de demandas de um determinado

    sujeito que chega a um programa ou servio. Eles devem contemplar o conhecimento da

    situao em que o sujeito demandante est implicado e de suas condies de vida. Devem

  • 10

    reconstruir processos sociais geradores de tal situao tendo em considerao o conjunto

    de relaes e determinaes sociais para permitir um conhecimento mais amplo e profundo

    e uma interpretao crtica da situao. (MIOTO, 2001; IAMAMOTO, 2004).

    Tradicionalmente, a rede de relaes primrias tem sido sujeito privilegiado desse

    processo, em particular, a famlia por ser o primeiro ncleo de referncia dos indivduos na

    vida social e por conformar a sua condio social. De acordo com Cioffi (1998), as condies

    de vida de cada indivduo dependem menos de sua situao especfica que daquela que

    caracteriza sua famlia. A famlia reconhecida como instncia de proteo social, inclusive

    em termos legais. No Brasil, alm de constar da Constituio Federal e do Cdigo Civil, essa

    condio aparece em outras leis vinculadas proteo social. Atualmente, a Lei Orgnica da

    Assistncia Social (CRESS/SC, 1999) clara em estabelecer a responsabilidade da famlia

    para com seus membros quando no seu artigo 2o, item V, afirma que para o acesso aos

    benefcios necessrio que se comprove que os indivduos no possuem meios de prover

    sua manuteno e nem t-la provida por sua famlia (CAMPOS; MIOTO, 2003).

    De acordo com a linha terica adotada neste trabalho, a famlia concebida na sua

    condio histrica e as configuraes que ela vai assumindo no arco do tempo e das

    culturas esto condicionadas s diferentes formas de relaes sociais estabelecidas. Assim,

    reconhece-se a sua diversidade, descarta-se a ideia de modelos de estrutura e de relaes e

    desprende-se do ideal do amor e da harmonia ao tomar o conflito como inerente s suas

    relaes, inclusive quelas que estabelecem com outras esferas da sociedade (MIOTO,

    2000).

    A realizao dos estudos sociais implica, em termos gerais, conhecer as formas

    assumidas pelas famlias, isto , sua estrutura de relaes tanto dentro de seus limites como

    fora deles. Deve analisar como ela exerce a proteo social de seus membros e como o

    Estado/Sociedade prov suas necessidades. Trata-se de um trabalho complexo que exige

    clareza sobre os marcos tericos que orientam a sua compreenso, pois a falta dela pode

    redundar numa ao profissional que reduz o social ao familiar e a proteo social

  • 11

    solidariedade familiar. A falta de clareza pode levar perda da perspectiva de totalidade e

    da lgica dos direitos e da cidadania.

    Ao considerar que o ponto de partida para o conhecimento de uma determinada

    situao vivida por um sujeito no contexto de suas relaes sociais a estrutura das

    relaes familiares, a questo conceitual no pode ser desmerecida. Por isso, importante

    saber distinguir as diversas referncias para transitar por ela e para definir o que uma

    famlia. Isto propicia uma compreenso mais abrangente da situao e de suas inter-

    relaes com os processos sociais, dos critrios estabelecidos para o acesso a benefcios no

    mbito das polticas sociais.

    Lima (2005) e Mioto e Nora (2006), apoiadas na literatura, apontam trs indicadores

    importantes para definir famlia: o domiclio, o parentesco e os afetos. No indicador

    domiclio, a famlia definida a partir da co-habitao na mesma unidade de moradia. O

    termo domiclio refere-se estrutura fsica da residncia e ao grupo de pessoas que

    residem no seu interior, sendo este o indicador utilizado pelo Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatstica (IBGE). O IBGE classifica os domiclios em coletivos e particulares,

    nos ltimos, convivem pessoas ligadas por laos de parentesco, dependncia domstica ou

    normas de convivncia. Reconhece-se a existncia de vrios ncleos numa mesma unidade

    de moradia quando existe independncia no acesso a determinado espao da habitao ou

    quando existe independncia nas despesas de alimentao e moradia (MEDEIROS; OSRIO,

    2001).

    No entanto, embora a moradia seja um dos indicadores mais bvios da existncia de

    uma famlia, nem sempre se considera famlia o conjunto de todas as pessoas que convivem

    em seu espao. Em sentido inverso, tambm se reconhece que a organizao e as relaes

    de dependncia entre os indivduos no se limitam quelas que se estabelecem dentro da

    moradia. Portanto, no devem ser relegados os dois outros indicadores, a saber, o

    parentesco e as relaes afetivas.

  • 12

    O parentesco define-se pela existncia de laos consanguneos ou biolgicos e, no

    necessariamente, coincide com a unidade de moradia ou com as relaes afetivas. No

    entanto, quando se trata de famlia, a noo de parentesco um indicador importantssimo.

    Toda a discusso antropolgica sobre famlia tem na categoria do parentesco sua pedra

    fundamental, e esse indicador tem orientado ao longo da histria tanto as definies legais

    sobre os direitos como as obrigaes familiares que rebatem fortemente nas definies

    sobre os beneficirios das diferentes polticas sociais.

    As relaes afetivas concorrem para se definir famlia a partir de aspectos e vivncias

    subjetivas e por isso assumem caractersticas muito particulares. Nessa concepo de

    famlia, podem ser includas pessoas, como amigos e vizinhos, que no tm laos nem de

    parentesco e nem partilham da mesma unidade de moradia.

    Apesar da distino efetuada, esses indicadores no se excluem, mas se apresentam

    superpostos ou inter-relacionados e ganham sentidos diversos nas diferentes classes

    sociais, nas diferentes culturas e nas diferentes formas de organizao e de convivncia das

    famlias. Assim, forjam-se as estruturas e as dinmicas familiares que expressam a

    constante inter-relao entre os acontecimentos prprios do curso de vida das famlias

    (nascimentos, mortes, envelhecimento, casamentos, separaes), os acontecimentos e

    exigncias do mundo extrafamiliar (trabalho/desemprego, migraes, exigncias

    institucionais, catstrofes), as demandas individuais de seus membros, as demandas

    impostas pela sociedade sobre ela. Tudo isso produz contnuas transformaes no carter

    dos vnculos familiares, na natureza das competncias, nas atribuies de autoridade e de

    poder e nas formas de insero dos grupos familiares na sociedade.

    O conhecimento da estrutura de relaes das famlias permite chegar a um outro

    ponto importante, que o entendimento de como as famlias se organizam para a satisfao

    das necessidades de seus membros ou para a proviso de bem-estar. Para tanto

    necessrio entender como as famlias dispem de seus prprios recursos (o trabalho, o

    afeto) e de outros advindos da rede social primria, da rede social secundria (instituies,

    associaes) e de direitos sociais assegurados. Nesse processo, se detectam justamente as

  • 13

    condies que as famlias possuem e os mecanismos de proteo social disponveis, para

    que exeram a sua proteo.

    Na montagem desse quebra-cabea, torna-se possvel articular os processos familiares

    com os processos sociais mais amplos e definir com maior clareza a situao em pauta. E

    consequentemente, torna-se possvel propor alternativas e realizar encaminhamentos que

    atendam as necessidades postas pelos sujeitos estudados e aes que permitam a

    ampliao do leque de solues que podem ser estendidas a outros. O conhecimento dos

    sujeitos envolvidos nos estudos implica adotar posturas profissionais, formas de

    abordagens e instrumentos que estruturem a ao profissional.

    4 Estudos socioeconmicos/estudo sociais: a aproximao com a realidade social e a

    elaborao de documentos

    Para realizar estudos sociais, necessrio aproximar-se da realidade social dos

    sujeitos demandantes da ao para compreender com preciso a sua situao e poder

    analis-la, avali-la ou emitir um parecer sobre ela. Prev-se que esse processo seja

    conduzido de acordo com os princpios dispostos no Cdigo de tica Profissional do

    Assistente Social. Na abordagem dos sujeitos, dever do assistente social inform-los

    sobre os objetivos de seu trabalho, prestar as informaes solicitadas e manter o sigilo

    profissional conforme dispe o captulo V do referido cdigo (CRESS, 1999, p. 17-18).

    Os estudos socioeconmicos/estudos sociais se realizam pela abordagem de

    determinados sujeitos implicados, diretamente ou indiretamente, na situao a ser

    estudada. De acordo com Sarmento (1994, p. 281-282), a abordagem

    um contato intencional de aproximao, atravs do qual criamos um espao

    para o dilogo, para a troca de informaes e/ou experincias para a tomada de

    conhecimento de um conjunto de particularidades necessrias a ao

    profissional e, ainda, para o estabelecimento de novas relaes [...] permite a

    criao de um espao para conhecimento (e interveno) desencadeando um

  • 14

    processo de ao-reflexo (crtica) com a realidade e entre os sujeitos

    envolvidos.

    A abordagem ocorre, portanto, de diferentes formas. Nos estudos socioeconmicos

    so mais comuns as abordagens individuais e grupais, realizadas atravs de instrumentos

    tradicionalmente definidos pela profisso: a entrevista, a observao, a reunio, a visita

    domiciliar e a anlise de documentos referentes situao.

    As entrevistas supem habilidade e tcnica do assistente social para que viabilizem o

    ato de conhecer. Para tanto podem ser utilizadas entrevistas estruturadas, no

    estruturadas e semiestruturadas. As estruturadas so conduzidas com formulrios que

    visam a obteno de determinadas informaes e que, na maioria das vezes, so

    preenchidos de acordo com padres j definidos no mbito de programas ou de servios.

    As no-estruturadas privilegiam o dilogo aberto, conduzido preferencialmente pelos

    entrevistados. Nesse processo, as informaes vo sendo produzidas medida que os

    temas surgem e se concatenam. Finalmente, as entrevistas semiestruturadas comportam

    tanto a utilizao de determinados roteiros como tambm o dilogo aberto com os

    entrevistados. Tem sido uma modalidade bastante adotada por permitir a obteno de

    dados sobre a situao e a captao de sua dinmica.

    As entrevistas podem ser realizadas de forma individual ou de forma conjunta. Essa

    ltima modalidade permite observar e estudar as transaes concretas entre os sujeitos

    participantes e criar uma situao em que se estabelece o dilogo entre eles sobre a

    situao. So comuns, nessa modalidade, as entrevistas familiares conjuntas que

    possibilitam ao assistente social compreender a dinmica e a estrutura das relaes das

    famlias (MIOTO, 2001).

    As visitas domiciliares, de acordo com Mioto (2001), acontecem na residncia dos

    sujeitos envolvidos na situao e visam conhecer as condies de vida (residncia, bairro)

    e os aspectos do cotidiano das relaes desses sujeitos que geralmente escapam s

    entrevistas de gabinete. Alm da entrevista, da visita domiciliar e da observao realizada

  • 15

    durante o processo de entrevistas e de visitas, os documentos gerados e que esto

    relacionados situao tambm so fundamentais para o conhecimento da realidade em

    questo. Os instrumentos acima referidos no devem ser vistos de maneira esttica, eles

    so criados e recriados de acordo com os objetivos e com as exigncias da ao

    profissional. No contexto das entrevistas e das visitas domiciliares, a observao

    instrumento indispensvel, como fonte de dados e indcios sobre a realidade social.

    Uma vez efetuado e documentado todo o processo, elabora-se o documento final. No

    havendo um modelo institucionalmente definido, alguns pontos so fundamentais para sua

    elaborao, tais como: a identificao dos sujeitos demandantes dos estudos e dos sujeitos

    implicados na situao e da situao; a descrio concisa da situao estudada que deve

    trabalhar, de forma organizada, o conjunto de informaes contidas nos relatrios de

    entrevistas, documentos, visitas domiciliares, observaes; a anlise da situao na qual o

    profissional dar a conhecer como articulou os dados da realidade com o marco terico-

    metodolgica que orientou sua ao e com seu conhecimento da rea em que est se

    realizando o estudo, das legislaes em vigor e de outros estudos que embasem sua

    perspectiva analtica. No se trata obviamente de um ensaio terico, mas de uma anlise da

    situao que permita embasar e direcionar o parecer sobre ela. O parecer deve expressar a

    opinio do profissional sobre a demanda que motivou o estudo social ou responder

    questes sobre a situao. Nele so sugeridos encaminhamentos possveis para atender

    tanto demanda quanto situao. Destaca-se que o documento final, que expressa o

    estudo social realizado, assume diversas configuraes de acordo com as caractersticas e

    exigncias dos diferentes campos sociocupacionais do Servio Social.

    A elaborao do documento final significa a consecuo de um objetivo importante da

    ao profissional, que responder, a partir de uma perspectiva de totalidade, uma demanda

    na sua singularidade. Uma vez realizados tais estudos, o assistente social passa a dispor de

    um conjunto de informaes sobre as demandas e necessidades de uma determinada

    populao. As informaes so fundamentais para desencadear outros processos que visem

    tanto a garantia como a ampliao de direitos de cidadania, ou seja, a efetiva fruio da

    proteo social. Portanto, trabalhar na realizao de estudos sociais pressupe o

  • 16

    cumprimento de outros objetivos. Um deles subsidiar a realizao de diagnsticos sobre o

    funcionamento de servios e programas e de processos de planejamento. Um outro

    subsidiar o planejamento e a formulao de polticas sociais e o debate em espaos pblicos

    (como os conselhos de direitos por exemplo). Ou seja, as informaes e as anlises geradas

    a partir dos estudos podem colocar na agenda pblica o debate sobre o acesso aos direitos,

    sobre como esto sendo acessados esses direitos no mbito das diferentes polticas sociais

    e ainda sobre a qualidade dos servios responsveis pela execuo das polticas sociais.

    Para tanto, a sistematizao das informaes, a sua anlise e a produo de documentos a

    serem encaminhados para diversas instncias tambm fazem parte do conjunto de aes

    profissionais do assistente social e devem ser realizadas de acordo com os princpios ticos

    da profisso.

    O redimensionamento dos estudos sociais exige planejamento para que as

    informaes possam ser compiladas e trabalhadas posteriormente e para que contribuam

    para a construo de respostas coletivas s demandas e s necessidades da populao. Eles

    expressam no s as dimenses terico-metodolgicas/ tico-polticas/ tcnico-operativas

    do trabalho do assistente social, mas tambm o carter investigativo da profisso.

    5 Concluso

    A ttulo de (in)concluso, destaca-se que, como toda ao profissional, o estudo social

    coloca muitos dilemas e desafios aos assistentes sociais, pois ele se movimenta no terreno

    da contradio: das contradies inerentes ao sistema capitalista que so geradoras das

    mltiplas expresses da questo social e das contradies presentes no cotidiano do

    trabalho profissional, que so vinculadas ao embate de projetos societrios antagnicos.

    Para transitar no terreno da contradio, exige-se tanto competncia terico-metodolgica

    como tico-poltica. Elas so necessrias para a anlise da conjuntura na qual os estudos

    sociais se inserem, a fim de que no se reduzam efetivao de processos seletivos e nem

    sejam realizados de forma simplista e desqualificada.

  • 17

    Portanto, o redimensionamento dessa ao profissional na perspectiva crtica significa

    o rompimento com uma perspectiva pautada na individualizao dos problemas sociais no

    momento em que a hegemonia da lgica neoliberal insiste na reduo do papel do Estado

    no mbito da proteo social e recoloca a famlia como instncia mxima de proteo social.

    Significa tambm a afirmao do compromisso com os princpios do Cdigo de tica da

    profisso que postula a defesa intransigente dos direitos humanos, a ampliao e

    consolidao da cidadania, o posicionamento em favor da eqidade e da justia social.

  • 18

    Referncias

    ALVARENGA, R. F. C. de; MOREIRA, M. C. O. Parecer Social: um instrumento de viabilizao de direitos. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIO SOCIAL (Org.). O Estudo Social em Percias, Laudos e Pareceres Tcnicos: contribuio para o debate no judicirio, penitencirio e previdncia social. So Paulo: Cortez, 2004. CAMPOS, M. S.; MIOTO, R. C. T. Poltica de Assistncia Social e a posio da famlia na poltica social brasileira. Revista Ser Social, Braslia: UnB, v. 1, n. 1, p. 165-190, jan./jun., 2003. CIOFFI, S. Famlias Metropolitanas: Arranjos Familiares e Condies de Vida. So Paulo: SEADE, 1998. CONSELHO REGIONAL DE SERVIO SOCIAL. Coletnea de Leis. Florianpolis: CRESS/12o Regio, 1999. COSTA, D.; OLIVEIRA, M. T. A Percia Tcnica como Instrumento de Incluso Social: documento norteador para a capacitao de procedimentos envolvidos no processo de concesso e reviso do benefcio de prestao continuada no Paran. Paran: [s.n.], 2004. FVERO, E. T. O. Estudo Social: fundamentos e particularidades de sua construo na rea judiciria. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIO SOCIAL (Org.). O Estudo Social em Percias, Laudos e Pareceres Tcnicos: contribuio para o debate no judicirio, penitencirio e previdncia social. So Paulo: Cortez, p. 9-47, 2004. HAMILTON, G. Teoria e Prtica do Servio Social de Caso. 3. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1976. IAMAMOTO, M; CARVALHO, R. Relaes Sociais e Servio Social no Brasil: esboo de uma interpretao histrico-metodolgica. So Paulo: Cortez; Lima: CELATS, 1983. IAMAMOTO, M. Renovao e Conservadorismo no Servio Social: ensaios crticos. 2. ed. So Paulo: Cortez, 1994. ______. Questo Social, famlia e juventude: desafios do trabalho do assistente social na rea scio-jurdica. In: SALES, M. A.; MATOS, M. de C.; LEAL, M. C. (Org.). Poltica Social, Famlia e Juventude: uma questo de direitos. So Paulo: Cortez, 2004. LIMA. E. M. A proteo social no mbito da famlia: um estudo sobre as famlias do bairro Monte Cristo em Florianpolis. 2005. Dissertao (Mestrado em Servio Social) Programa de Ps-graduao em Servio Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2005.

  • 19

    LIMA, T. C. S. As aes scio-educativas e o projeto tico poltico do Servio Social: tendncias da produo bibliogrfica. 2006. Dissertao (Mestrado em Servio Social) Programa de Ps-graduao em Servio Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2006. MEDEIROS, M.; OSRIO, R. Arranjos domiciliares e arranjos nucleares no Brasil: classificao e evoluo de 1977 a 1998. Braslia: IPEA, 2001. MIOTO, R. C. T. Percia Social: proposta de um percurso operativo. Revista Servio Social e Sociedade, So Paulo: Cortez, n. 67, 2001. ______; NORA, N. I. Sistematizao do conceito de famlia: indicadores para a ao profissional. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIO SOCIAL, 10., 2006, Recife. Anais X ENPESS... Recife, ABEPSS, 2006. ______; NOGUEIRA, V. M. R. Sistematizao, Planejamento e Avaliao das aes profissionais no campo da sade. In: MOTA, A. E. et al. (Org.). Servio Social e Sade: formao e trabalho Profissional. So Paulo: Cortez, 2006.

    NICHOLDS, E. Noes Bsicas de Servio Social de Caso. 2. ed. Rio de Janeiro, So Paulo: Cortez, 1969. SARMENTO, H. B. de M. Instrumentos e Tcnicas em Servio Social: elementos para uma rediscusso. 1994. Dissertao (Mestrado em Servio Social) Programa de Ps-graduao em Servio Social, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 1994. SILVA, M. L. L. da. Um novo fazer profissional. Cadernos de Capacitao em Servio Social e Polticas Sociais. Mdulo 4. Braslia: UnB, p. 111-124, 2000. VIEIRA, E. Os direitos e a poltica social. So Paulo: Cortez, 2000. YASBEC, M. C. Classes subalternas e assistncia social. So Paulo: Cortez, 1993. ______. Terceiro Setor e despolitizao. Revista Inscrita, Braslia: CFESS, jul., 2000.

  • Introduo ao mtodo da teoria social

    Jos Paulo Netto

    Professor titular do Departamento de Mtodos e Tcnicas da Escola de Servio Social da

    UFRJ.

  • 1

    Introduo ao mtodo da teoria social

    Todo comeo difcil em qualquer cincia.

    (K. Marx)

    Introduo

    A questo do mtodo um dos problemas centrais (e mais polmicos) da teoria

    social demonstra-o o esforo dos clssicos das cincias sociais: no foi por acaso que

    Durkheim (1975) se ateve construo de um mtodo para a sociologia e que Weber

    (1992, 2000), alm de se ocupar da conceptualizao das categorias sociolgicas,

    escreveu largamente sobre metodologia. Por isto mesmo, toda aproximao sria a tais

    cincias implica um esforo de clarificao metodolgica (FERNANDES, 1980). E no

    casual que sempre que elas foram objeto de questionamento, o debate metodolgico

    esteve em primeiro plano assim ocorreu, por exemplo, quando se tornou visvel, nos

    anos 1970, a crise da sociologia acadmica (GOULDNER, 2000; MORIN, 2005; GIDDENS,

    1978), e assim voltou a verificar-se quando, j aprofundada esta crise, as cincias sociais

    desenvolveram explicitamente a discusso sobre os paradigmas (SANTOS, 1989,

    2000).

    A questo do mtodo que tambm alvo de polmica nas cincias que tm por

    objeto a natureza (POPPER, 1980; GEYMONAT, 1984-1985; FEYERABEND, 1990, 2007)

    apresenta-se tanto mais problemtica quanto mais est conectada a supostos de

    natureza filosfica. De fato, no se pode analisar a metodologia durkheimiana sem

    considerar o seu enraizamento positivista, bem como n~o se pode debater a sociologia

    compreensiva de Weber sem levar em conta o neokantismo que constitui um de seus

    suportes.

    Tambm no que toca teoria social de Marx, a questo do mtodo se apresenta

    como um n de problemas. E, neste caso, problemas que no se devem apenas a razes

    de natureza terica e/ou filosfica: devem-se igualmente a razes ideopolticas na

    medida em que a teoria social de Marx vincula-se a um projeto revolucionrio, a anlise

  • 2

    e a crtica da sua concepo terico-metodolgica (e no s) estiveram sempre

    condicionadas s reaes que tal projeto despertou e continua despertando. Durante o

    sculo XX, nas chamadas sociedades democr|ticas, ningum teve seus direitos civis ou

    polticos limitados por ser durkheimiano ou weberiano mas milhares de homens e

    mulheres, cientistas sociais ou no, foram perseguidos, presos, torturados, desterrados e

    at mesmo assassinados por serem marxistas.

    Esta referncia ideopoltica no ser tematizada neste texto introdutrio,

    elaborado especificamente para profissionais de Servio Social inscritos num processo

    de formao continuada (donde, inclusive, o carter da bibliografia, citada apenas nos

    idiomas mais utilizados pela categoria profissional). Mas preciso levar tal referncia

    sempre em conta, porque uma parcela considervel das polmicas em torno do

    pensamento de Marx parte menos de motivaes cientficas e mais de recusas

    ideolgicas afinal, Marx nunca foi um obediente servidor da ordem burguesa: foi um

    pensador que colocou, na sua vida e na sua obra, a pesquisa da verdade a servio dos

    trabalhadores e da revoluo socialista.

    1 Interpretaes equivocadas

    O estudo da concepo terico-metodolgica de Marx apresenta inmeras

    dificuldades desde as derivadas da sua prpria complexidade at as que se devem aos

    tratamentos equivocados a que a obra marxiana foi submetida. Antes de tangenciar os

    principais elementos que contribuem para superar as dificuldades especficas do tema,

    cabe mencionar rapidamente alguns equvocos que decorrem das interpretaes que

    deformaram, adulteraram e/ou falsificaram a concepo terico-metodolgica de Marx.

    Curiosamente, quando se analisam os equvocos e as adulteraes existentes

    acerca desta concepo, verifica-se que foram responsveis por eles tanto os prprios

    seguidores de Marx quanto seus adversrios e detratores. Uns e outros, por razes

    diferentes, contriburam decisivamente para desfigurar o pensamento marxiano.

  • 3

    No campo marxista, muitas das deformaes tiveram por base as influncias

    positivistas, dominantes nas elaboraes dos principais pensadores (Plekhanov,

    Kautsky) da Segunda Internacional, organizao socialista fundada em 1889 e de grande

    importncia at 1914. Essas influncias no foram superadas antes se viram

    agravadas, inclusive com incidncias neopositivistas no desenvolvimento ideolgico

    ulterior da Terceira Internacional (organizao comunista que existiu entre 1919 e

    1943), culminando na ideologia stalinista. Delas resultou uma representao simplista

    da obra marxiana: uma espcie de saber total, articulado sobre uma teoria geral do ser

    (o materialismo dialtico) e sua especificao em face da sociedade (o materialismo

    histrico). Sobre esta base surgiu farta literatura manualesca, apresentando o mtodo de

    Marx como resumvel nos princpios fundamentais do materialismo dialtico e do

    materialismo histrico, sendo a lgica dialtica aplicvel indiferentemente natureza

    e sociedade, bastando o conhecimento das suas leis (as clebres leis da dialtica)

    para assegurar o bom andamento das pesquisas. Assim, o conhecimento da realidade

    no demandaria os sempre rduos esforos investigativos, substitudos pela simples

    aplica~o do mtodo de Marx, que haveria de solucionar todos os problemas: uma

    an|lise econmica da sociedade forneceria a explica~o do sistema poltico, das

    formas culturais etc. Se, num texto clebre dos anos 1960, Sartre (1979) ironizava os

    resultados obtidos desta maneira, j muito antes, numa carta de 5 de agosto de 1890,

    Engels protestava contra procedimentos deste gnero, insistindo em que a

    nossa [de Marx e dele] concepo da histria , antes de tudo, um guia

    para o estudo [...]. necessrio estudar novamente toda a histria e

    estudar, em suas mincias, as condies de vida das diversas formaes

    sociais antes de fazer derivar delas as idias polticas, estticas,

    religiosas [...] etc. que lhes correspondem (MARX;ENGELS, 1963, p. 283;

    itlicos no originais).

    Acresce, ainda, que, no registro dos manuais, Marx aparece geralmente como um

    terico fatorialista ele teria sido aquele que, na anlise da histria e da sociedade,

    situou o fator econmico como determinante em rela~o aos fatores sociais, culturais

    etc. Tambm Engels, em carta de setembro de 1890, j advertira contra essa

    deformao: recordando que Marx e ele sustentavam to somente a tese segundo a qual

  • 4

    a produo e a reproduo da vida real apenas em ltima instncia determinavam a

    histria, advertia: Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isto. Se

    algum o modifica, afirmando que o fato econmico o nico fato determinante,

    converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda (ENGELS, op. e loc. cit., p.

    284).

    Tal concepo reducionista, que nada tem a ver com o pensamento de Marx,

    compartilhada tambm por muitos dos adversrios tericos de Marx. Weber, por

    exemplo, criticou, na concep~o materialista da histria, as explicaes

    monocausalistas dos processos sociais, isto , explicaes que pretendiam esclarecer

    tudo a partir de uma nica causa (ou fator); a crtica procedente se relacionada a

    teorias efetivamente monocausalistas mas inteiramente inepta se referida a Marx,

    que jamais recorreu a monocausalidades, uma vez que, como realou um de seus

    melhores estudiosos, o ponto de vista da totalidade e no a predominncia das causas

    econmicas na explicao da histria que distingue de forma decisiva o marxismo da

    cincia burguesa (LUKCS, 1974, p. 41).

    Atualmente, no diversificado e heterogneo campo dos adversrios (e mesmo

    detratores) de Marx, porm, a crtica se concentra especialmente sobre dois eixos

    temticos. O primeiro diz respeito a uma suposta irrelevncia das dimenses culturais e

    simblicas no universo terico de Marx, com todas as consequncias da derivadas para

    a sua perspectiva metodolgica. Apesar de amplamente difundida em meios acadmicos,

    trata-se de crtica absolutamente despropositada, facilmente refutvel com o recurso

    textualidade marxiana dados os limites deste texto introdutrio, recordo, to somente

    como contraprovas, o peso que Marx atribui {s tradies quando tangencia a

    propriedade comunal entre os eslavos (MARX, 1982, p. 18) e as suas permanentes

    preocupaes com a especificidade de esferas ideais como a arte (MARX-ENGELS, 1971;

    LUKCS, s.d. e 2009, p. 87-119). O segundo eixo temtico relaciona-se a um pretenso

    determinismo no pensamento marxiano: a teoria social de Marx estaria comprometida

    por uma teleologia evolucionista ou seja, para Marx, uma dinmica qualquer

    (econmica, tecnolgica etc.) dirigiria necessria e compulsoriamente a histria para um

    fim j previsto (o socialismo). Vrios estudiosos j mostraram a inconsistncia dessa

  • 5

    crtica (MSZROS, 1993, p. 198-202; WOOD, 2006, p. 129-154; BORON et alii, 2007, p.

    43-47); recentemente, contudo, ela foi retomada por um terico ps-moderno de grande

    influncia no Brasil (SANTOS, 1995, p. 36-38, 243), a que dediquei uma nota crtica

    (NETTO, 2004, p. 223 e ss).

    Praticamente todas essas interpretaes equivocadas podem ser superadas

    supondo-se um leitor sem preconceitos com o recurso a fontes que operam uma

    anlise rigorosa e qualificada da obra marxiana como, por exemplo, os diferenciados

    estudos de Rosdolsky (2001), Dal Pra (1971), Lukcs (1979), Dussel (1985), Bensad

    (1999, terceira parte) e Mszros (2009, cap. 8).

    Entretanto, a recorrncia aos prprios textos de Marx (e, eventualmente, de Marx

    e Engels) que propicia o material indispensvel e adequado para o conhecimento do

    mtodo que ele descobriu para o estudo da sociedade burguesa.

    2 O mtodo de Marx: uma longa elaborao terica

    Sabe-se que Marx (1818-1883) inicia efetivamente a sua trajetria terica em

    1841, aos 23 anos, ao se doutorar em Filosofia pela Universidade de Jena. Mas entre

    1843 e 1844, quando se confronta polemicamente com a filosofia de Hegel, sob a

    influncia materialista de Feuerbach, que ele comea a revelar o seu perfil de pensador

    original (so deste perodo os seus textos Para a questo judaica e Crtica da filosofia do

    direito de Hegel. Introduo).

    , porm, com o estmulo provocado pelas formulaes do jovem Engels acerca da

    economia poltica que Marx vai direcionar as suas pesquisas para a anlise concreta da

    sociedade moderna, aquela que se engendrou nas entranhas da ordem feudal e se

    estabeleceu na Europa Ocidental na transio do sculo XVIII ao XIX: a sociedade

    burguesa. De fato, pode-se circunscrever como o problema central da pesquisa marxiana

    a gnese, a consolidao, o desenvolvimento e as condies de crise da sociedade

    burguesa, fundada no modo de produo capitalista.

  • 6

    Esta pesquisa, de que resultaro as bases da sua teoria social, ocupar Marx por

    cerca de quarenta anos, de meados da dcada de 1840 at sua morte e pode-se

    localizar o seu ponto de arranque nos Manuscritos econmico-filosficos de 1844 e a sua

    culmina~o nos materiais constitutivos dO capital (MARX, 1994 e 1968-1975).

    Alicerando essa pesquisa de toda uma vida, alm do profundo conhecimento que Marx

    adquiriu em seu trato com os maiores pensadores da cultura ocidental e da sua ativa

    participao nos processos poltico-revolucionrios da poca, est a sua re-elaborao

    crtica do acmulo cultural realizado a partir do Renascimento e da Ilustrao. Com

    efeito, a estruturao da teoria marxiana socorreu-se especialmente de trs linhas-de-

    fora do pensamento moderno: a filosofia alem, a economia poltica inglesa e o

    socialismo francs (LENIN, 1977, p. 4-27 e 35-39). Numa palavra: Marx no fez tbula

    rasa do conhecimento existente, mas partiu criticamente dele.

    Cabe insistir na perspectiva crtica de Marx em face da herana cultural de que era

    legatrio. No se trata, como pode parecer a uma vis~o vulgar de crtica, de se

    posicionar frente ao conhecimento existente para recus-lo ou, na melhor das hipteses,

    distinguir nele o bom do mau. Em Marx, a crtica do conhecimento acumulado

    consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os

    seus condicionamentos e os seus limites ao mesmo tempo em que se faz a verificao

    dos contedos desse conhecimento a partir dos processos histricos reais. assim que

    ele trata a filosofia de Hegel, os economistas polticos ingleses (especialmente Smith e

    Ricardo) e os socialistas que o precederam (Owen, Fourier).

    Avanando criticamente a partir do conhecimento acumulado, Marx empreendeu a

    anlise da sociedade burguesa, com o objetivo de descobrir a sua estrutura e a sua

    dinmica. Esta anlise, iniciada na segunda metade dos anos 1840, configura um longo

    processo de elaborao terica, no curso de qual Marx foi progressivamente

    determinando o mtodo adequado para o conhecimento veraz, verdadeiro, da realidade

    social (MANDEL, 1968). Isto quer dizer, simplesmente, que o mtodo de Marx no

    resulta de descobertas abruptas ou de intuies geniais ao contrrio, resulta de uma

    demorada investigao: de fato, s depois de quase quinze anos das suas pesquisas

    iniciais que Marx formula com preciso os elementos centrais do seu mtodo,

  • 7

    formula~o que aparece na Introdu~o, redigida em 1857, aos manuscritos que,

    publicados postumamente, foram intitulados Elementos fundamentais para a crtica da

    economia poltica. Rascunhos. 1857-1858 (MARX, 1982, p. 3-21). nestas poucas pginas

    que se encontram sintetizadas as bases do mtodo que viabilizou a an|lise contida nO

    capital e a fundao da teoria social de Marx.

    3 Teoria, mtodo e pesquisa

    Antes de sinalizar rapidamente o processo intelectual que surge resumido na

    Introdu~o referida linhas acima, e mesmo antecipando algo do contedo deste texto

    de 1857, preciso esclarecer o significado que teoria tem para Marx. Para ele, a teoria

    no se reduz ao exame das formas dadas de um objeto, com o pesquisador descrevendo-

    o detalhadamente e construindo modelos explicativos para dar conta base de

    hipteses que apontam para relaes de causa/efeito de seu movimento visvel, tal

    como ocorre nos procedimentos da tradio empirista e/ou positivista. E no , tambm,

    a construo de enunciados discursivos sobre os quais a chamada comunidade cientfica

    pode ou no estabelecer consensos intersubjetivos, verdadeiros jogos de linguagem ou

    exerccios e combates retricos, como querem alguns ps-modernos (LYOTARD, 2008;

    SANTOS, 2000, cap. 1).

    Para Marx, a teoria uma modalidade peculiar de conhecimento (outras

    modalidades so, por exemplo, a arte, o conhecimento prtico da vida cotidiana, o

    conhecimento mgico-religioso cf. MARX, 1982, p. 15). Mas a teoria se distingue de

    todas essas modalidades e tem especificidade: o conhecimento terico o conhecimento

    do objeto tal como ele em si mesmo, na sua existncia real e efetiva, independentemente

    dos desejos, das aspiraes e das representaes do pesquisador. A teoria , para Marx,

    a reproduo ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o

    sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinmica do objeto que pesquisa. E

    esta reproduo (que constitui propriamente o conhecimento terico) ser tanto mais

    correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto. Detenhamo-nos um pouco

    neste ponto to importante e complexo, comeando pela prpria no~o de ideal.

  • 8

    Ao mencionar a relao do seu mtodo com o de Hegel, de quem recolheu

    criticamente a concepo dialtica, Marx anotou:

    Meu mtodo dialtico, por seu fundamento, difere do mtodo hegeliano,

    sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento

    [...] o criador do real, e o real apenas sua manifestao externa. Para

    mim, ao contrrio, o ideal no mais do que o material transposto para a

    cabea do ser humano e por ela interpretado (MARX, 1968, p. 16; itlicos

    no originais).

    Assim, a teoria o movimento real do objeto transposto para o crebro do

    pesquisador o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento).

    Prossigamos: para Marx, o objeto da pesquisa (no caso, a sociedade burguesa) tem

    existncia objetiva; no depende do sujeito, do pesquisador, para existir. O objetivo do

    pesquisador, indo alm da aparncia fenomnica, imediata e emprica por onde

    necessariamente se inicia o conhecimento, sendo essa aparncia um nvel da realidade e,

    portanto, algo importante e no descartvel , apreender a essncia (ou seja: a

    estrutura e a dinmica) do objeto. Numa palavra: o mtodo de pesquisa que propicia o

    conhecimento terico, partindo da aparncia, visa alcanar a essncia do objeto1.

    Alcanando a essncia do objeto, isto : capturando a sua estrutura e dinmica, por meio

    de procedimentos analticos e operando a sua sntese, o pesquisador a reproduz no

    plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo mtodo, o pesquisador

    reproduz, no plano ideal, a essncia do objeto que investigou.

    O objeto da pesquisa tem, insista-se, uma existncia objetiva, que independe da

    conscincia do pesquisador. Mas o objeto de Marx a sociedade burguesa um sistema

    de relaes construdo pelos homens, o produto da a~o recproca dos homens (MARX,

    2009, p. 244). Isto significa que a relao sujeito/objeto no processo do conhecimento

    terico no uma relao de externalidade, tal como se d, por exemplo, na citologia ou

    1 Para Marx, como para todos os pensadores dialticos, a distino entre aparncia e essncia primordial; com efeito, toda cincia seria suprflua se a forma de manifestao [a aparncia] e a essncia das coisas coincidissem imediatamente (MARX, 1985, III, 2, p. 271); mais ainda: As verdades cientficas sero sempre paradoxais se julgadas pela experincia de todos os dias, a qual somente capta a aparncia enganadora das coisas (MARX, 1982, p. 158). Por isto mesmo, para Marx, n~o cabe ao cientista olhar, mirar o seu objeto o olhar muito prprio dos ps-modernos, cuja epistemologia suspeita da distin~o entre aparncia e realidade (SANTOS, 1995, p. 331).

  • 9

    na fsica; antes, uma relao em que o sujeito est implicado no objeto. Por isto mesmo,

    a pesquisa e a teoria que dela resulta da sociedade exclui qualquer pretenso de

    neutralidade, geralmente identificada com objetividade (acerca do debate que sobre

    a objetividade se acumulou nas cincias sociais e na tradio marxista, cf. Lwy, 1975,

    p. 11-36).

    Entretanto, essa caracterstica no exclui a objetividade do conhecimento terico: a

    teoria tem uma instncia de verificao da sua verdade, instncia que a prtica social e

    histrica. Tomemos um exemplo: da sua anlise do movimento do capital, Marx (1968a,

    p. 712-827) extraiu a lei geral da acumulao capitalista, segundo a qual, no modo de

    produo capitalista, a produo da riqueza social implica, necessariamente, a

    reproduo contnua da pobreza (relativa e/ou absoluta); nos ltimos cento e cinqenta

    anos, o desenvolvimento das formaes sociais capitalistas somente tem comprovado a

    corre~o da sua an|lise, com a quest~o social pondo-se e repondo-se, ainda que sob

    expresses diferenciadas, sem soluo de continuidade. E ainda outro exemplo:

    analisando o mesmo movimento do capital, Marx (1974, 1974a e 1974b) descobriu a

    impossibilidade de o capitalismo existir sem crises econmicas; tambm, no ltimo sculo

    e meio, a prtica social e histrica demonstrou o rigoroso acerto dessa descoberta. Essas

    e outras projees plenamente confirmadas sobre o desenvolvimento do capitalismo

    n~o se devem a qualquer capacidade proftica de Marx: devem-se a que sua anlise da

    dinmica do capital permitiu-lhe extrair do seu objeto a lei econmica do movimento da

    sociedade moderna (MARX, 1968, p. 6) no uma lei no sentido das leis fsicas ou das

    leis sociais durkheimianas fixas e imut|veis, mas uma tendncia histrica determinada,

    que pode ser travada ou contrarrestada por outras tendncias2.

    Voltemos concepo marxiana de teoria: a teoria a reproduo, no plano do

    pensamento, do movimento real do objeto. Esta reproduo, porm, no uma espcie

    2 No posf|cio { segunda edi~o (1873) dO capital, Marx cita passagens de um crtico de sua obra que considera ter apreendido corretamente o seu mtodo de pesquisa, contrapondo-o aos velhos economistas [que] no compreenderam a natureza das leis econmicas porque as equipararam s leis da fsica e da qumica; ora, isto o que Marx contesta. [...] Cada perodo histrico, na sua opini~o, possui suas prprias leis (MARX, 1968, p. 15). De fato, Marx escrevera nO capital, a propsito das leis da popula~o: [...] Todo perodo histrico tem suas prprias leis [...], v|lidas dentro de limites histricos. Uma lei abstrata da populao s existe para plantas e animais e apenas na medida em que esteja excluda a a~o humana (MARX, 1968a, p. 733).

  • 10

    de reflexo mecnico, com o pensamento espelhando a realidade tal como um espelho

    reflete a imagem que tem diante de si. Se assim fosse, o papel do sujeito que pesquisa, no

    processo do conhecimento, seria meramente passivo. Para Marx, ao contrrio, o papel do

    sujeito essencialmente ativo: precisamente para apreender no a aparncia ou a forma

    dada do objeto, mas a sua essncia, a sua estrutura e a sua dinmica (mais exatamente:

    para apreend-lo como um processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um mximo

    de conhecimentos, critic-los, revis-los e deve ser dotado de criatividade e imaginao.

    O papel do sujeito fundamental no processo de pesquisa. Marx, alis, caracteriza de

    modo breve e conciso tal processo: na investigao, o sujeito tem de apoderar-se da

    matria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e

    de perquirir a conex~o que h| entre elas (MARX, 1968, p. 16).

    Neste processo, os instrumentos ou, se se quiser, tcnicas de pesquisa so os

    mais variados, desde a anlise documental at as formas mais diversas de observao,

    recolha de dados, quantificao etc.3. Esses instrumentos so meios de que se vale o

    pesquisador para apoderar-se da matria, mas n~o devem ser identificados com o

    mtodo: instrumentos similares podem servir (e de fato servem), em escala variada, a

    concepes metodolgicas diferentes. Cabe observar que, no mais de um sculo

    decorrido aps a morte de Marx, as cincias sociais desenvolveram um enorme acervo

    de instrumentos (tcnicas) de pesquisa, com alcances diferenciados e todo

    pesquisador deve esforar-se por conhecer este acervo, apropriar-se dele e dominar a

    sua utilizao.

    s quando est concluda a sua investigao (e sempre relevante lembrar que,

    no domnio cientfico, toda concluso sempre provisria, sujeita comprovao,

    retificao, abandono etc.) que o pesquisador apresenta, expositivamente, os resultados

    a que chegou. E Marx, na sequncia imediata da ltima cita~o que fizemos, agrega: S

    depois de concludo este trabalho [de investigao] que se pode descrever,

    adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficar espelhada, no plano ideal,

    a vida da realidade pesquisada (id., ibid.). Como se v, para Marx, os pontos de partida

    3 O prprio Marx recorreu utilizao de distintas tcnicas de pesquisa (hoje caracterizadas como anlise bibliogrfica e documental, anlise textual, anlise de contedo, observao sistemtica e participante, entrevistas, instrumentos quantitativos etc.); conhece-se, inclusive, um minucioso questionrio que elaborou, disponvel em Thiollent (1986).

  • 11

    so opostos: na investigao, o pesquisador parte de perguntas, questes; na exposio,

    ele j parte dos resultados que obteve na investigao por isto, diz Marx, mister, sem

    dvida, distinguir formalmente o mtodo de exposi~o do mtodo de pesquisa (id.,

    ibid.).

    importante observar que, considerado o conjunto da sua obra, Marx poucas

    vezes se deteve explicitamente sobre a questo do mtodo. No casual, de fato, que

    Marx nunca tenha publicado um texto especificamente dedicado ao mtodo de pesquisa

    tomado em si mesmo, como algo autnomo em relao teoria ou prpria

    investigao: a orientao essencial do pensamento de Marx era de natureza ontolgica

    e no epistemolgica (LUKCS, 1979): por isto, o seu interesse no incidia sobre um

    abstrato como conhecer, mas sobre como conhecer um objeto real e determinado

    Lnin, alis, sustentava, em 1920, que o esprito do legado de Marx consistia na an|lise

    concreta de uma situa~o concreta. O mesmo Lnin, uns poucos anos antes, j

    compreendera que a Marx no interessava elaborar uma cincia da lgica (como o fizera

    HEGEL): importava-lhe a lgica de um objeto determinado descobrir esta lgica

    consiste em reproduzir idealmente (teoricamente) a estrutura e a dinmica deste objeto;

    lapidar a conclus~o lenineana: [...] Marx no deixou uma Lgica, deixou a lgica de O

    capital (LNIN, 1989, p. 284).

    4 As formulaes terico-metodolgicas

    Sublinhei, h pouco, que o mtodo de Marx no resulta de operaes repentinas, de

    intuies geniais ou de inspiraes iluminadas e momentneas. Antes, o produto de

    uma longa elaborao terico-cientfica, amadurecida no curso de sucessivas

    aproximaes ao seu objeto. Vejamos, muito esquematicamente, os principais passos

    dessa elaborao.

    no segundo tero dos anos 1840 que se encontram as formulaes terico-

    metodolgicas iniciais de Marx. Suas primeiras aproximaes ao materialismo devidas

    influncia de Feuerbach j surgem, ntidas, numa crtica filosofia do direito de

  • 12

    Hegel, redigida em dezembro de 1843 a janeiro de 1844 e logo publicada4.

    especialmente no curso de 1844, quando comea a se deslocar da crtica filosfica para a

    crtica da economia poltica como se verifica nos Manuscritos econmico-filosficos de

    1844, s tornados pblicos em 1932 (MARX, 1994) , que essas aproximaes ganham

    uma articulao claramente dialtica. No por acaso que, paralelamente redao

    desses Manuscritos..., Marx retorne hegeliana Fenomenologia do Esprito,

    demonstrando o domnio que j possui das suas categorias (MARX, 1994, p. 155-161), e

    a leitura dos Manuscritos... se revela um conhecimento ainda insuficiente da economia

    poltica, isso indica a segurana do autor no manuseio da dialtica. Manuseio que se

    aprofunda na sequncia do estabelecimento da relao pessoal com Engels: no livro que

    marca o comeo da sua colaborao intelectual, A sagrada famlia ou A crtica da crtica

    crtica, de 1845 (MARX; ENGELS, 2003), confrontando-se com os pensadores alemes

    contemporneos. Em vrias passagens, os dois jovens autores apontam a perspectiva

    terica a partir da qual criticam filsofos com os quais, at pouco tempo antes,

    mantinham boas relaes intelectuais.

    Porm, na obra a que se dedicam em seguida, A ideologia alem (escrita em

    1845/1846, mas s publicada em 1932), que surge a primeira formulao mais precisa

    das suas concepes. Marx e Engels esclarecem que as suas anlises tm pressupostos,

    mas se trata de pressupostos reais: constituem-nos os indivduos reais, sua a~o e suas

    condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j encontradas como as produzidas

    por sua prpria a~o (MARX; ENGELS, 2007, p. 86-87)5. E escrevem que, por isto

    mesmo, nas suas an|lises, n~o se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou

    representam, tampouco os homens pensados, imaginados ou representados para, a

    partir da, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos [...],

    do seu processo de vida real (id., ibid., p. 94; itlicos no originais). Na base dessas ideias,

    est um argumento essencial:

    4 Trata-se do ensaio Crtica da filosofia do direito de Hegel. Introduo, que no deve ser confundido com o manuscrito de 1843 conhecido como Crtica da filosofia do direito de Hegel, Manuscrito de Kreuznach, Manuscrito de 1843 etc. e s publicado em 1927 ambos esto disponveis em Marx (2005). 5 Observe-se nesta formula~o a antecipa~o de uma passagem clebre dO 18 brumrio de Lus Bonaparte, na qual os homens s~o tomados como, simultaneamente, autores e atores da histria: Os homens fazem a sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (MARX, 1969, p. 17).

  • 13

    Os homens so os produtores de suas representaes, de suas idias e

    assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como so

    condicionados por um determinado desenvolvimento de suas foras

    produtivas e pelo intercmbio que a ele corresponde [...]. A conscincia

    no pode ser jamais outra coisa do que o ser consciente e o ser dos

    homens o seu processo de vida real. [...] No a conscincia que

    determina a vida, mas a vida que determina a conscincia (id., ibid.;

    itlicos no originais).

    Extrada da anlise da realidade histrica e expressamente materialista, esta

    determinao das relaes entre o ser e a conscincia dos homens em sociedade que

    permitir a Marx avanar, na segunda metade dos anos 1840, na sua anlise da

    sociedade burguesa. Mas ela se insere na concepo que Marx e Engels j alcanaram

    neste perodo acerca da histria, da sociedade e da cultura e que ser desenvolvida e

    aprofundada nos anos seguintes. Para ambos, o ser social e a sociabilidade resulta

    elementarmente do trabalho, que constituir o modelo da prxis processo,

    movimento, que se dinamiza por contradies, cuja superao o conduz a patamares de

    crescente complexidade e novas contradies impulsionam a outras superaes. Por

    estes anos, como Engels o recordar bem mais tarde, j estavam ele e Marx de posse

    de uma grande idia fundamental, que extraram de Hegel: a ideia de que n~o se pode

    conceber o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de

    processos (MARX-ENGELS, 1963, p. 195). a partir desta idia fundamental

    prosseguir Engels noutra oportunidade que

    se concebe o mundo da natureza, da histria e do esprito como um

    processo, isto , como um mundo sujeito constante mudana,

    transformaes e desenvolvimento constante, procurando tambm

    destacar a ntima conexo que preside este processo de

    desenvolvimento e mudana. Encarada sob este aspecto, a histria da

    humanidade j no se apresentava como um caos [...], mas, pelo

    contrrio, se apresentava como o desenvolvimento da prpria

    humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir [...] at

    conseguir descobrir as leis internas, que regem tudo o que primeira

    vista se pudesse apresentar como obra do acaso (ENGELS, 1979, p. 22).

  • 14

    medida que Marx se desloca da crtica da filosofia para a crtica da economia

    poltica, suas ideias ganham crescente elaborao. o que se verifica no primeiro texto

    em que desenvolve com mais rigor a crtica da economia poltica o livro Misria da

    filosofia (1847), de polmica com o socialista francs P.-J. Proudhon , alis, logo que l a

    obra de Proudhon (Filosofia da misria, 1846) e antes mesmo de escrever a sua rplica,

    Marx observa que o fracasso terico desse pensador deve-se a que ele n~o concebe

    nossas instituies sociais como produtos histricos e no compreende nem a sua

    origem nem o seu desenvolvimento (MARX, 2009, p. 250). Na mesma carta, Marx

    esclarece como j concebe a estrutura do que constituir o objeto de pesquisa de toda a

    sua vida (precisamente do qual investigar| a origem e o desenvolvimento):

    O que a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ao

    recproca dos homens. Os homens podem escolher, livremente, esta ou

    aquela forma social? Nada disso. A um determinado estgio de

    desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens corresponde

    determinada forma de comrcio e de consumo. A determinadas fases de

    desenvolvimento da produo, do comrcio e do consumo

    correspondem determinadas formas de constituio social, determinada

    organizao da famlia, das ordens ou das classes; numa palavra, uma

    determinada sociedade civil. A uma determinada sociedade civil

    corresponde um determinado estado poltico, que no mais que a

    expresso oficial da sociedade civil. [...] suprfluo acrescentar que os

    homens no so livres para escolher as suas foras produtivas - base de

    toda a sua histria -, pois toda fora produtiva uma fora adquirida,

    produto de uma atividade anterior. Portanto, as foras produtivas so o

    resultado da energia prtica dos homens, mas essa mesma energia

    circunscrita pelas condies em que os homens se acham colocados,

    pelas foras produtivas j adquiridas, pela forma social anterior, que no

    foi criada por eles e produto da gerao precedente. O simples fato de

    cada gerao posterior deparar-se com foras produtivas adquiridas

    pela gerao precedente [...] cria na histria dos homens uma conexo,

    cria uma histria da humanidade [...]. As suas [dos homens] relaes

    materiais formam a base de todas as suas relaes (id., p. 245).

  • 15

    E Marx avana a indicao que, nos anos seguintes, fundamentar

    persuasivamente: [...] Os homens, ao desenvolverem as suas faculdades produtivas, isto

    , vivendo, desenvolvem certas relaes entre si, e [...] o modo destas relaes muda

    necessariamente com a modificao e o desenvolvimento daquelas faculdades

    produtivas (id., p. 250). Todas estas ideias comparecem na Misria da filosofia e so

    basilares para a compreenso do mtodo de Marx. Observem-se duas passagens do

    livro:

    As relaes sociais esto intimamente ligadas s foras produtivas.

    Adquirindo novas foras produtivas, os homens transformam o seu

    modo de produo e, ao transform-lo, alterando a maneira de ganhar a

    sua vida, eles transformam todas as suas relaes sociais. O moinho

    movido pelo brao humano nos d a sociedade com o suserano; o

    moinho a vapor d-nos a sociedade com o capitalista industrial (idem, p.

    125).

    Os mesmos homens que estabeleceram as relaes sociais de acordo

    com a sua produtividade material produzem, tambm, os princpios, as

    idias, as categorias de acordo com as suas relaes sociais. Assim, essas

    idias, essas categorias so to pouco eternas quanto as relaes que

    exprimem. Elas so produtos histricos e transitrios (MARX, 2009, p.

    126).

    ainda neste texto que Marx avana duas ideias fundamentais, que s se

    desdobraro com mais elementos cerca de uma dcada depois. A primeira diz respeito

    ainda s categorias econmicas, escreve ele: As categorias econmicas s~o expresses

    tericas, abstraes das relaes sociais de produ~o (id., p. 125). E mais: As relaes

    de produ~o de qualquer sociedade constituem um todo (id., p. 126). Trata-se, na

    verdade, de duas determinaes tericas que constituiro ncleos bsicos do mtodo de

    pesquisa de Marx, e a elas voltaremos logo adiante.

  • 16

    Todas estas concepes e ideias, fundadas nos estudos histricos e nas anlises de

    realidade que acumula a partir de meados dos anos 18406 ademais das experincias

    polticas vividas no curso da revoluo de 1848 , vo adquirir um significado ainda

    maior no perodo que se inicia (1850) com o exlio de Marx em Londres. Especialmente a

    partir de 1852, ele se dedica obsessivamente ao estudo da sociedade burguesa: analisa

    documentao histrica, percorre praticamente toda a bibliografia j produzida da

    economia poltica, acompanha os desenvolvimentos da economia mundial, leva em conta

    os avanos cientficos que rebatem na indstria e nas comunicaes e considera as

    manifestaes das classes fundamentais (burguesia e proletariado) em face da

    atualidade. Vivendo em Londres, ento capital do pas capitalista mais desenvolvido, de

    um imprio de dimenses mundiais, sede do maior centro financeiro (a City), tendo

    sua disposio a imprensa mais informada da economia e a mais completa biblioteca da

    poca (a do British Museum), Marx pode enfim determinar precisamente, em sua plena

    maturidade, o seu objeto de estudo e o seu mtodo de investigao. , pois, ao fim de

    quase quinze anos de pesquisa que ele escreve, entre agosto e setembro de 1857, a

    clebre Introdu~o, onde a sua concepo terico-metodolgica surge ntida7.

    Ele inicia a Introdu~o delimitando com clareza o seu objeto de investigao: a

    produo material, que s pode ser algo de indivduos produzindo em sociedade e,

    com isto, Marx descarta figuras isoladas de indivduos nas atividades econmicas. De

    fato, quando se trata [...] de produ~o, trata-se da produo em um grau determinado

    do desenvolvimento social, da produ~o dos indivduos sociais. Por isto mesmo, Marx

    considera que a produ~o em geral uma abstra~o, que denota apenas um fenmeno

    comum a todas as pocas histrias: o fenmeno de, em qualquer poca, a produo

    implicar sempre um mesmo sujeito (a humanidade, a sociedade) e um mesmo objeto (a

    natureza)8. Este fenmeno confere unidade histria da humanidade, mas unidade no

    6 N~o se esquea que Marx, de 1848 at o fim da vida, foi um permanente analista de conjunturas (histricas, poltico-econmicas e sociais). As incontveis anlises que ele produziu geralmente publicadas em jornais e revistas contriburam em boa medida para o seu acmulo terico. Para exemplos dessas anlises, cf. Marx (1979, 1986 e 1987). 7 Neste e nos seguintes pargrafos no farei a remisso s pginas donde se extraem as citaes de Marx, desde que retiradas da Introdu~o todas proveem de Marx (1982, p. 3-21). 8 Anos depois, nO capital, ele determinar o processo de trabalho humano (processo em que o ser humano, com sua prpria a~o impulsiona, regula e controla seu interc}mbio material com a natureza) como sempre constitudo por trs elementos: a atividade adequada a um fim, isto , o prprio trabalho; a matria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho, o instrumental de trabalho

  • 17

    o mesmo que identidade: preciso distinguir as determinaes que valem para a

    produ~o em geral daquelas que dizem respeito a certa poca; do contr|rio, perde-se a

    historicidade na anlise, e s categorias econmicas atribuem-se vigncia e valor

    eternos. Destarte, e consequentemente, Marx especifica que quer estudar uma

    determinada forma histrica de produ~o material: a produ~o burguesa moderna.

    Marx est convencido, em funo dos estudos histricos que j| realizara, de que a

    sociedade burguesa a organizao histrica mais desenvolvida, mais diferenciada da

    produ~o. E deixa bem claro que o conhecimento rigoroso da sua produ~o material

    no basta para esclarecer a riqueza das relaes sociais que se objetivam no marco de

    uma sociedade assim complexa; por exemplo, no trato da cultura, Marx enfatiza a

    existncia de uma rela~o desigual do desenvolvimento da produ~o material face {

    produ~o artstica e assinala ainda as dificuldades para clarificar de que modo as

    relaes de produ~o, como relaes jurdicas, seguem um desenvolvimento desigual.

    Mas por todo o acmulo terico que realizou com suas pesquisas anteriores ele est

    igualmente convencido de que o passo necessrio e indispensvel para apreender inteira

    a riqueza dessas relaes sociais consiste na plena compreenso da produo burguesa

    moderna. Sem esta compreenso, ser impossvel uma teoria social que permita oferecer

    um conhecimento verdadeiro da sociedade burguesa como totalidade (incluindo, pois, o

    conhecimento para alm da sua organizao econmica das suas instituies sociais

    e polticas e da sua cultura). Para elaborar a reproduo ideal (a teoria) do seu objeto

    real (que a sociedade burguesa), Marx descobriu que o procedimento fundante a

    anlise do modo pelo qual nele se produz a riqueza material.

    A questo da riqueza material ou, mais exatamente, das condies materiais da

    vida social , porm, no envolve apenas a produo, mas articula ainda a distribuio, a

    troca (e a circula~o, que a troca considerada em sua totalidade) e o consumo. Por

    que, ento, comear pela produo? A argumentao de Marx, baseada no

    aprofundamento de seus estudos anteriores e consolidada no exlio londrino, depois de

    demonstrar que a produo , em parte, consumo e este, parcialmente, produo, e

    tambm depois de relacion-los distribuio e circulao, leva ao seguinte resultado:

    (MARX, 1968, p. 202).

  • 18

    estes momentos (produo, distribuio, troca, consumo) no so idnticos, mas todos

    s~o elementos de uma totalidade, diferenas dentro de uma mesma unidade. Mas, sem

    prejuzo da interao entre esses elementos, dominante o momento da produo:

    A produo se expande tanto a si mesma [...] como se alastra aos demais

    momentos. O processo comea de novo sempre a partir dela. Que a troca

    e o consumo no possam ser o elemento predominante, compreende-se

    por si mesmo. O mesmo acontece com a distribuio [...]. Uma [forma]

    determinada da produo determina, pois, [formas] determinadas do

    consumo, da distribuio, da troca, assim como relaes determinadas

    desses diferentes fatores entre si.

    Uma teoria social da sociedade burguesa, portanto, tem que possuir como

    fundamento a anlise terica da produo das condies materiais da vida social. Este

    ponto de partida no expressa um juzo ou uma preferncia pessoal do pesquisador: ele

    uma exigncia que decorre do prprio objeto de pesquisa sua estrutura e dinmica

    s sero reproduzidas com veracidade no plano ideal a partir desse fundamento; o

    pesquisador s ser fiel ao objeto se atender a tal imperativo ( evidente que o

    pesquisador livre para encontrar e explorar outras vias de acesso ao objeto que a

    sociedade e pode, inclusive, chegar a resultados interessantes; entretanto, tais

    resultados nunca articularo uma teoria social que d conta dos nveis decisivos e da

    dinmica fundamental da sociedade burguesa.)9.

    Uma vez determinado o seu objeto, pe-se a Marx a questo de como conhec-lo

    pe-se a questo do mtodo. Aqui, nada melhor que dar a palavra ao prprio Marx:

    Quando estudamos um dado pas do ponto de vista da Economia

    Poltica, comeamos por sua populao, sua diviso em classes, sua

    9 o caso, para ficarmos entre os cl|ssicos das cincias sociais, de Durkheim e Weber. Nas suas obras encontram-se anlises e proposies que oferecem indicaes pertinentes compreenso da vida social; dadas, porm, as suas concepes tericas e metodolgicas (todas conducentes a pensar as relaes sociais no marco de uma cincia particular e autnoma, a Sociologia, dela excluda precisamente a questo da produo material, tornada objeto de outra disciplina acadmica, a Economia), eles - mesmo Weber, que, sabe-se, interessava-se por Economia - no foram capazes de elaborar uma teoria social apta a dar conta da articulao entre relaes sociais e vida econmica. Para uma crtica de princpio Sociologia como cincia particular e autnoma, cf. Lukcs (1968, cap. VI).

  • 19

    repartio entre cidades e campo [...]; os diferentes ramos da produo,

    a exportao e a importao, a produo e o consumo anuais, os preos

    das mercadorias etc. Parece que o correto comear pelo real e pelo

    concreto, que so a pressuposio prvia e efetiva; assim, em Economia,

    por exemplo, comear-se-ia pela populao, que a base e o sujeito do

    ato social de produo como um todo. No entanto, graas a uma

    observao mais atenta, tomamos conhecimento de que isso falso. A

    populao uma abstrao se desprezarmos, por exemplo, as classes

    que a compem. Por seu lado, essas classes so uma palavra vazia de

    sentido se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o

    trabalho assalariado, o capital etc. Estes supem a troca, a diviso do

    trabalho, os preos etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho

    assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preo etc. no nada.

    Assim, se comessemos pela populao, teramos uma representao

    catica do todo e, atravs de uma determinao mais precisa, atravs de

    uma anlise, chegaramos a conceitos cada vez mais simples; do

    concreto idealizado passaramos a abstraes cada vez mais tnues at

    atingirmos determinaes as mais simples.

    Como bom materialista, Marx separa claramente o que da ordem da realidade, do

    objeto, do que da ordem do pensamento (o conhecimento operado pelo sujeito):

    comea-se pelo real e pelo concreto, que aparecem como dados; pela anlise, um e

    outro elementos so abstrados e, progressivamente, com o avano da anlise, chega-se

    a conceitos, a abstraes que remetem a determinaes as mais simples. Este foi o

    caminho ou, se se quiser, o mtodo:

    [...] historicamente seguido pela nascente economia. Os economistas do

    sculo XVII, por exemplo, comeam sempre pelo todo vivo: a populao,

    a nao, o Estado, vrios Estados etc., mas terminam sempre por

    descobrir, por meio da anlise, certo nmero de relaes gerais

    abstratas que so determinantes, tais como a diviso do trabalho, o

    dinheiro, o valor etc.

  • 20

    Marx considera que este procedimento analtico foi necessrio na emergncia da

    economia poltica, mas est longe de ser suficiente para reproduzir idealmente

    (teoricamente) o real e o concreto. Com efeito, depois de alcanar aquelas

    determinaes mais simples, teramos que voltar a fazer a viagem de modo inverso,

    at dar de novo com a populao, mas desta vez no como uma representao catica de

    um todo, porm como uma rica totalidade de determinaes e relaes diversas.

    esta viagem de volta que caracteriza, segundo Marx, o mtodo adequado para a

    elaborao terica. Ele esclarece:

    O ltimo mtodo manifestamente o mtodo cientificamente exato. O

    concreto concreto porque a sntese de muitas determinaes, isto ,

    unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o

    processo da sntese, como resultado, no como ponto de partida, ainda

    que seja o ponto de partida efetivo [...]. No primeiro mtodo, a

    representao plena volatiliza-se em determinaes abstratas; no

    segundo, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto

    por meio do pensamento (itlicos no originais).

    Deve-se distinguir, a esta altura, para alcanar a inteira compreenso do mtodo

    que Marx considera cientificamente exato, o sentido de abstra~o e abstrato. A

    abstrao a capacidade intelectiva que permite extrair da sua contextualidade

    determinada (de uma totalidade) um elemento, isol-lo, examin-lo; um procedimento

    intelectual sem o qual a anlise invivel alis, no domnio do estudo da sociedade, o

    prprio Marx insistiu com fora em que a abstrao um recurso indispensvel para o

    pesquisador10. A abstrao, possibilitando a anlise, retira do elemento abstrado as suas

    determinaes mais concretas, at atingir determinaes as mais simples. Neste nvel,

    o elemento abstrado torna-se abstrato precisamente o que no na totalidade de

    que foi extrado: nela, ele se concretiza porquanto est| saturado de muitas

    determinaes. A realidade concreta exatamente por isto, por ser a sntese de muitas

    determinaes, a unidade do diverso que prpria de toda totalidade. O

    10 [...] Na anlise das formas econmicas, no se pode utilizar nem microscpio nem reagentes qumicos. A capacidade de abstra~o substitui esses meios (MARX, 1968, p. 4).

  • 21

    conhecimento terico , nesta medida, para Marx, o conhecimento do concreto, que

    constitui a realidade, mas que no se oferece imediatamente ao pensamento: deve ser

    reproduzido por este e s a viagem de modo inverso permite esta reprodu~o. J

    salientamos que, em Marx, h uma contnua preocupao em distinguir a esfera do ser

    da esfera do pensamento; o concreto a que chega o