livro quando o amor veio a terra

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QUANDO O AMOR VEIO À TERRADJALMA ARGOLO

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1ª EdiçãoDo 1º ao 5º milheiro

Criação da capa: Objectiva Comunicação e MarketingEquipe de Revisão: Lúcia Araújo e Sheldon Menezes

Revisão Final: Maria Angélica de MattosEditor: Adenáuer Novaes

© Copyright 1997Fundação Lar Harmonia

Rua Dep. Paulo Jackson, 560 – Piatã41650-020 – Salvador – Bahia – Brasil

[email protected](71) 3375-1570 e 3286-7796

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-86492-23-5

Todo o produto da venda desta obra é destinado às obrassociais da Fundação Lar Harmonia

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Djalma Argollo

CNPJ (MF) 00.405.171/0001-09Rua Dep. Paulo Jackson, 560 – Piatã

41650-020 – Salvador – Bahia – Brasil2007

QUANDO O AMOR VEIO À TERRA

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Argollo, Djalma.Quando o amor veio à terra. – Salvador:

Fundação Lar Harmonia, 2007

224 p.

1. Espiritismo. I. Argollo, Djalma,1940. – II. Título

CDU – 133.7CDD – 133.9

Índice para catálogo sistemático:1. Espiritismo 139.9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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A Jesus, filho de José de Nazaré,que me ensinou a viver um ideal: o meu amore o desejo de, um dia, ser tão bom quanto ele.

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Sumário

1. A Visão de Zacarias ............................................ 31

2. A Anunciação ..................................................... 35

3. Visitando Isabel .................................................. 41

4. Momento Difícil ................................................. 49

5. “Nasceu-vos Hoje um Salvador” ....................... 55

6. A Circuncisão ..................................................... 65

7. Entre os Doutores ............................................... 69

8. A Despedida ....................................................... 77

9. Elias Retorna ...................................................... 81

10. O Início da Nova Era ......................................... 87

11. “Eu o Sou...” ....................................................... 97

12. O Dia Inesquecível ............................................. 107

13. Fenômenos Notáveis .......................................... 117

14. Resgate Interrompido ......................................... 129

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15. Histórias que Transformam................................ 139

16. Alimentando Almas e Corpos ............................ 147

17. Na Calada da Noite ............................................ 155

18. Uma Sessão Espírita no Tabor ........................... 161

19. Expulsão dos Vendilhões do Templo ................. 169

20. A Última Semana ............................................... 175

21. A Traição ............................................................ 181

22. Trevas Densas .................................................... 191

23. Madrugada de Luz ............................................. 209

24. Os Felizes Galileus ............................................ 217

25. Betânia: o Último Encontro ............................... 225

Posfácio .................................................................... 231

Sugestões Bibliográficas .......................................... 233

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Prefácio

Jesus é o maior fenômeno da História. Com menosde três anos de atividade missionária, sua influência foi,e continua sendo, decisiva no desenvolvimento social dahumanidade. Alguns espíritas parecem desconhecer queé por causa dele que a humanidade passou por radicalinflexão evolucionária em seu processo histórico.Historiadores imaginam que a hegemonia de Roma foidestruída pelas invasões bárbaras, mas se esquecem que,na sua maioria, os bárbaros já haviam se convertido aoCristianismo por causa dos esforços missionários dehereges, como os novacianos, arianos e outros.

Mais ainda, foi Jesus quem desencadeou o únicomovimento de renovação social que tem direito ao títulode revolução em toda a história da humanidade. Todos osmovimentos que os historiadores louvam em seus tratadosforam, até hoje, meras maquiagens sociais que mudaramapenas aspectos superficiais da sociedade sem atingir oponto fundamental – o Homem. Por isso, ainda não seconseguiu uma sociedade justa em todos os sentidos. Queo homem deve ser o objeto principal de qualquermovimento transformador, é uma derivação lógica daprópria definição durkheimiana da sociedade como sendoa síntese dos indivíduos que a compõem. Ora, observando-se os problemas da sociedade humana contemporânea,

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pode-se ver que a síntese denuncia a qualidade doscomponentes. A prova dessa afirmação pode serconstatada em dois grandes movimentos sociais – aRevolução Francesa e a Revolução Bolchevista.

A primeira desfraldou as bandeiras de Liberdade,Igualdade e Fraternidade. Diziam seus líderes quecomeçava uma nova ordem político-social na históriahumana. Não haveria fome, discriminação social,privilégio ou despotismo. Todavia, mesmo em plenoprocesso revolucionário, todo esse ideário se perdeu naorgia autofágica das diversas facções que dele faziamparte.

Com a Revolução Russa de 1818 foi diferente. Elaconseguiu criar um Estado Socialista, vencendo as reaçõescontra-revolucionárias, bem como as tentativasneutralizadoras das nações capitalistas. Dado o primeiropasso – a conquista do poder pela classe proletária –,começou a estruturação do processo político-econômicoque terminaria por construir, segundo pensavam os seusideólogos, o Estado Comunista. O estágio político básico– a ditadura do proletariado – foi iniciado e nuncaterminou. Foi liquidado por um defeito congênito da teoriainspiradora – o Materialismo. Produto artificial na culturahumana, o Materialismo é uma filosofia desagregadora,por radicalizar o individualismo e estimular o egoísmo.

Certas pessoas, e até entre as mais céticas, se fazemapóstolos da fraternidade e do progresso; mas afraternidade supõe o desinteresse, a abnegação da per-sonalidade. Com a verdadeira fraternidade, o orgulhoé uma anomalia. Com que direito impondes um sacri-fício àquele a quem dizeis que quando morre tudoacabou para ele; que o amanhã talvez não seja maisque uma velha máquina desconjuntada e jogada fora?

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Que motivo tem ele para se impor qualquer privação?Não é mais natural que, durante os breves instantesque lhe concedeis, procure viver o melhor possível?Daí o desejo de possuir muito para melhor gozar. Dessedesejo nasce o ciúme dos que possuem mais que elee, desse ciúme, para a cobiça do que eles têm é umpasso. O que o retém? É a lei? Mas a lei não abrangetodos os casos. Direis que é a consciência, o senti-mento do dever? Mas sobre o que baseais o sentimen-to do dever? Esse sentimento tem alguma razão de sercom a crença de que tudo acaba com a vida? Comessa crença só uma máxima é racional: cada um porsi. As idéias de fraternidade, de consciência, de dever,de humanidade e mesmo de progresso não passam depalavras vãs. Oh! Vós, que proclamais semelhantesdoutrinas, não sabeis todo o mal que fazeis à socieda-de nem de quantos crimes assumis a responsabilida-de! Mas eu falei de responsabilidade? Para o cético,não existe responsabilidade; ele só presta homenagemà matéria.1

Vê-se, nesses raciocínios, uma análise lógica dasconseqüências do Materialismo Histórico, que os fatosvieram testificar.

O Marxismo, com seu brilhante humanismo,pretendendo a criação de uma sociedade justa e igualitária,não teve condições de sobreviver ao embate contra oegoísmo das coletividades em que triunfou. A perspectivamaterialista do sistema levou Marx à conclusão de que,não havendo alma que sobrevivesse após a morte, aconsciência humana era apenas um epifenômenoproduzido pelas reações físico-químicas do sistemanervoso. Ela refletiria, tão somente, o movimento da

1 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma MottaArgollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.421-2.

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matéria no seu entorno. Por sua vez, a ação consciente doser humano sobre o meio provocaria modificações, e omeio modificado voltaria a agir sobre o homem, levando-o a uma nova transformação, e assim sucessivamente. Asociedade, sendo regida pela infra-estrutura econômica,as relações de produção a ela inerentes construiriam asuperestrutura ideológica, a qual, refletida pela cons-ciência através dos procedimentos sociais, comandaria ocomportamento individual e coletivo. Para resolver oproblema das desigualdades e injustiças da sociedadeatual, seria bastante socializar os meios de produção paraque os indivíduos mudassem por via de conseqüência.Acontece que a teoria tem um diagnóstico, até certo ponto,correto do problema, mas a eliminação do Espírito,enquanto entidade preexistente e sobrevivente ao corpo,foi um erro fatal. Primeiramente, porque o Espírito,mesmo que não existisse, teria de ser levado em conta,dado o critério lógico utilizado pela crítica marxista dasociedade – a dialética hegeliana. Essa dialética preceituaque toda tese exige, necessariamente, uma antítese paraser construída uma síntese, tese de um novo binômio tese-antítese em nível mais elevado. Nessa linha de pensa-mento, a matéria requer, como premissa coligada eantagônica, a negação da matéria, ou seja, o Espírito, paraque a equação do raciocínio se apresente harmônica, comtodos os seus termos claramente posicionados. Aoconsiderar o espiritual uma irrealidade, portanto descartá-vel, os corifeus do Materialismo Histórico serraram ogalho onde estavam sentados. Esqueceram-se da antítese,mergulhando unilateralmente no interior da tese paraconstruírem raciocínios e tirarem conclusões. Comoresultado, suas premissas foram edificadas sobre falsossupostos, o que prejudicou a elaboração sistêmica.

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O Espírito é imperativo categórico requerido pelaanálise dialética, não apenas por ser uma variávelnecessária, mas porque é uma realidade da Natureza. Semele, seria impossível a existência da matéria, por ser aforça que lhe dá consistência e objetividade. Sem qualquerdúvida, como Marx e Engels concluíram, o Espírito e amatéria interagem dialeticamente, um modificando ooutro, em regime de aperfeiçoamento constante.Diferentemente da consciência evanescente do Marxismo,o Espírito é permanente, preexistindo e sobrevivendo aocorpo que o alberga temporariamente. Os resultados dainteração com o meio material ficam indelevelmenteimpressos nele.

Sem dúvida que, em curto prazo, o apelo humanistado Marxismo é capaz de motivar alguns idealistas a gestosnobres de desprendimento e doação, mas, a longo prazo,mostrou-se incapaz de inspirar o mesmo sentimento àscoletividades. Os regimes comunistas foram corroídospelos germes da dissolução inerentes à própria base dosistema, terminando por implodirem fragorosamente,tragados pelo vórtice genético auto-aniquilante. Isto é, oegoísmo findou por vencer a diminuta capa de altruísmo.

Um dado importante para análise é que, quando oManifesto Comunista foi lançado em fevereiro de 1848,com ele, o Materialismo Histórico passava a ser aideologia da proposta política da Revolução Proletáriapara implantar uma sociedade de absoluta justiça eigualdade social. É interessante notar que assim começao Manifesto: “Um espectro ronda a Europa – o espectrodo comunismo”2. Acontece que, no mês seguinte,

2 MARX,Karl; ENGELS, Friedrick. Manifesto do partido comunista. São Paulo:Ed. e Liv. Anita, 1989. p.29.

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justamente no dia 31 de março, numa casa da pequenavila de Hydesville, no Condado de Wayne, no Estado deNova York, nos EUA, um espectro não apenas rondou,mas literalmente assombrou o mundo – o espectro deCarlos Rosma, o infeliz pedlar, ali assassinado por causade um punhado de dólares. Ora, enquanto o Manifestobaseava-se numa ideologia que propugnava o mundomaterial como única e absoluta realidade, o Espírito docaixeiro viajante demonstrava a continuidade dopsiquismo e todas as suas funções, além do fenômeno damorte numa realidade dimensional que envolve e permeiao citado mundo, ou seja, o mundo espiritual. Assim, oMaterialismo Histórico foi contestado pelos fatos logonos primórdios de sua existência, desmoralizado em seuniilismo esdrúxulo e socialmente nefasto, como demons-trado linhas atrás.

Que o egoísmo é o maior obstáculo à elevação moralda Humanidade, é reconhecido pelos ensinos espirituais:

Qual vício podemos considerar radical?Já dissemos muitas vezes que é o egoísmo, pois delederiva todo o mal. Estudai todos os vícios e vereisque na sua base está o egoísmo. Podereis combatê-los, mas não conseguireis extirpá-los enquanto nãoatacardes o mal pela raiz, não tiverdes destruído acausa. Que todos os vossos esforços, portanto, sejamnesse sentido, pois no egoísmo se encontra a verda-deira chaga da sociedade. Quem quiser aproximar-se, desde esta vida, da perfeição moral, deve extirpardo seu coração todo o sentimento de egoísmo, poisele é incompatível com a justiça, o amor e a carida-de. Ele neutraliza todas as qualidades.3

3 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma MottaArgollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p. 366. (Questão 913).

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No que tange à falência do sistema socialista, podemser alegados vários outros fatores na vã tentativa de seencontrar uma explicação diferente, como, por exemplo,a pressão econômica sistemática das nações capitalistas,lideradas pelos Estados Unidos da América do Norte.

É verdade que isso aconteceu. Todavia, se os povosque viviam a experiência marxista houvessem adquiridonoção efetiva de dedicação ao bem coletivo, crendofirmemente nos valores que os regiam, teriam suplantadoqualquer obstáculo, mesmo à custa de imensos sacrifícios.Existe um exemplo formidável a esse respeito, que nosfoi dado pelos cristãos dos primeiros séculos. Mesmoperseguidos de forma cruel pelo Império Romano,colocados fora da lei em regime absoluto, sendo-lhesnegada a mínima proteção legal, dever impostergável dequalquer Estado Civilizado, mantiveram-se fiéis aospostulados abraçados, embora lhes custassem a torturapessoal e dos entes queridos, bem como a morte. Foramtrês séculos, que não são três dias, de luta ciclópica, emque a arma dos oprimidos era a perseverança, o perdão ea caridade para com os algozes, ou seja, a anti-revolução.

Um outro elemento que tem prejudicado astentativas de transformação social por via revolucionáriaé o emprego da violência para implantação dos princípiosidealizados. Jesus foi taxativo: “Todos que tomam aespada, pela espada perecerão” 4.

O problema com a forma da luta revolucionária éjustamente o método empregado para assumir o poder.Na Revolução Francesa e na Revolução Russa, a sanhaassassina dos revolucionários vitoriosos foi um tristeespetáculo de crueldade. Acontece que só o corpo é morto,

4 Mt 26, 52.mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm

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mas o Espírito permanece guardando toda sua condiçãoemocional, ou seja, odiando e antagonizando seus algozes,aos quais acompanha ininterruptamente, procurando portodos os meios e modos a desforra, considerada justa.Além do mais, a Lei de Causa e Efeito estabelece queestamos ligados, impreterivelmente, às conseqüências denossas ações, boas ou más, num sistema de responsa-bilidade impostergável pelo resultado das atitudes eescolhas tomadas. Por isso, as vítimas de uma revoluçãoterminam por voltar à vida física através da reencarnaçãono círculo familiar ou social dos seus verdugos diretos eindiretos, os quais lhes restituem automaticamente o podertirado, o que é o mesmo que anular os ideais que susten-tavam o movimento, a médio e longo prazos.

A violência desnecessária, cometida quando daimplantação do Socialismo, levou a maioria dos executa-dos à ação obsessiva sobre seus algozes, bem como a umpermanente trabalho de solapa do sistema, pela inspiraçãode planos e decisões que, ao longo do tempo, redundariamem fracasso, lançando ao descrédito a instituiçãosocioeconômica.

Trabalhando o egoísmo dos indivíduos e dascorporações, os exilados da espiritualidade findaram porconseguir fazer da ditadura do proletariado uma tiraniabrutal. A abnegação revolucionária foi substituída pelaopressão estatal. No lugar do despotismo czarista,entronizou-se o despotismo ideológico do partido únicono poder. Pela centralização de todos os meios de produ-ção nas mãos do Estado, todos viraram funcionáriospúblicos, instituindo-se um governo paralelo, corporati-vista, mais poderoso do que o Institucional – a ditadurada burocracia. Os burocratas passaram a se conceder todasas mordomias e benesses possíveis enquanto o povo era

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instado aos maiores e mais difíceis sacrifícios, comoacontecia no regime anterior e acontece nos países doterceiro mundo, como o Brasil. A falta de exemplos dealtruísmo por parte dos quadros dirigentes privou acoletividade de uma fonte natural de estímulos ao despren-dimento e à abnegação. O materialismo entronizado comovisão de mundo, e permanentemente difundido pelapropaganda estatal, levou ao apodrecimento das institui-ções por incentivar a falta de caráter e a inescrupulosidadeem todos os escalões do governo, gerando a revolta e oantagonismo na população, a qual terminou por impor aqueda do sistema, o que aconteceu em apenas três anos.

De acordo com o exposto, só existirá uma sociedaderealmente justa quando se conseguir implantar em cadaindivíduo a certeza de que ele é um Espírito imortal. Veja-se bem que dissemos certeza, e não uma mera crençaimposta de cima para baixo, como aconteceu na Europa,Ásia Menor e Norte da África quando da transformaçãodo Cristianismo em religião de Estado. As religiõestradicionais diferem do Espiritismo nessa condição básica.Enquanto aquelas informam, baseadas no critério daautoridade, sobre a imortalidade da alma, esse leva àcerteza, por comprovar o fato experimentalmente.Enquanto as religiões apelam para o credo quiamabsurdum5, a Doutrina Espírita estatui que “Fé inabalávelsó é aquela que pode encarar a razão face a face, em todasas épocas da humanidade” 6.

Conscientizado o homem da sua condição deEspírito, a etapa seguinte é fazê-lo viver as conseqüências

5 Creio, porque é um absurdo. mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm6 KARDEC, Allan. L´évangile selon le spiritisme. 3 ed. Paris: Les Editeurs du

Livre des Esprits, 1866. Página de rosto. Tradução Djalma Motta Argollo.(Il n´ya de foi inébranlable que celle qui peut regarder la raison face à face, a tous lêsages de l´humanité)

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dessa conscientização, pela reforma de hábitos e atitudes,de acordo com a ética cristã, instando-o para viver oaltruísmo e o amor, destruindo o impulso centralizadorda personalidade – o egoísmo.

Mas será que existe um processo para a eliminaçãodo câncer infeliz e virulento do egoísmo? Sim, existe.

Encontra-se no Livro dos Espíritos a fórmulafundamental para eliminação desse fator negativo, causareal das misérias morais do Homem.

Qual o meio de destruir o egoísmo?De todas as imperfeições humanas, a mais difícil deerradicar é o egoísmo, porque se prende à influênciada matéria da qual o homem, ainda muito próximoda sua origem, não pôde se livrar e essa influênciaconcorre para mantê-lo: suas leis, sua organizaçãosocial, sua educação. O egoísmo diminuirá com a pre-dominância da vida moral sobre a vida material e,sobretudo, com a compreensão que o espiritismo vosdá do vosso real estado futuro, não desnaturado pelasficções alegóricas. O espiritismo bem compreendido,quando estiver identificado com os costumes e as cren-ças, transformará os hábitos, os usos e as relações so-ciais. O egoísmo tem por base a importância da per-sonalidade; ora, o espiritismo bem compreendido, re-pito, faz ver as coisas de tão alto que, de certa manei-ra, o sentimento da personalidade desaparece dianteda imensidão. Destruindo essa importância ou, pelomenos, em fazendo vê-la tal como é, combate neces-sariamente o egoísmo.Ofendido pelo egoísmo dos outros, o homem torna-seegoísta, porque sente necessidade de se colocar nadefensiva. Ao ver que os outros pensam em si própriose não nele, é levado a ocupar-se mais de si que dosoutros. Que o princípio da caridade e da fraternidadeesteja na base das instituições sociais, das relaçõeslegais entre os povos e entre os homens, e o homempensará menos em si próprio quando vir que os ou-

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tros pensam nele. Sofrerá a influência moralizadorado exemplo e do contato. Em face dessa recrudescên-cia do egoísmo, é preciso uma verdadeira virtude parafazer o homem abnegar da sua personalidade em pro-veito dos outros que, em geral, não são reconhecidos;É sobretudo aos que possuem essa virtude que o rei-no dos céus está aberto; a eles está reservada a felici-dade dos eleitos, pois em verdade vos digo que, nodia do juízo, quem só tiver pensado em si próprio seráapartado, e sofrerá do seu abandono (785). 7

A base das conquistas citadas está nos ensinos deJesus, que o Espiritismo, como Consolador Prometido8,recorda e aprofunda.

O rabi Galileu nunca assumiu uma postura deFilósofo das massas; muito pelo contrário. Os ensina-mentos que ministrou sempre foram dirigidos, de formaparticular, para cada um dos seus ouvintes, e continuam ater um caráter individual. Seu postulado sociológico é ateoria do fermento: “O Reino dos Céus é semelhante aofermento que uma mulher tomou e pôs em três medidasde farinha, até que tudo ficasse fermentado” 9.

O significado é óbvio; a transformação social deveacontecer de dentro para fora. Será necessário que osindivíduos se transformem individualmente, em primeirolugar, antes de exigirem a modificação dos outros. A partirdaí, ajam como fermento, levedando a massa lentamente,mas com segurança. O Mestre sabia que uma sociedade ésempre a síntese dos elementos que a compõem. Atravésdo exemplo particular, cada um que realize sua reforma

7 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma MottaArgollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.367 (Questão 917).

8 Negar esse caráter da Doutrina Espírita, sob o argumento de que é muitapretensão, é de um simplismo tão grande que não merece maior atenção.

9 Mt 13, 33.

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íntima atua positivamente, modificando outros sereshumanos. É uma aplicação da Lei de Imitação definidapor Gabriel Tarde, considerado o Pai do PsicologismoSocial, no século XIX. Essa Lei explica como se dá oprocesso de socialização dos seres humanos, cujo apren-dizado se faz por imitação dos atos sociais em vigor nasociedade, como a fala, a cultura, os usos e costumes etc..Note-se que, na citação de Fénelon, seu Espírito diz amesma coisa quando fala na importância do exemplo paraaprimoramento das relações sociais, pela difusão denormas éticas de conduta.

Na medida em que se expande a vivência dosprincípios éticos do Evangelho do Cristo pela vivênciaindividual, a imitação faz com que as atitudes moraiselevadas se propaguem pelos indivíduos, promovendo amudança das unidades sociais numa progressão constanteatravés dos séculos, culminando por transformar comple-tamente a sociedade. Por isso, o Mestre insta com seusseguidores, de todas as épocas, para que exemplifiquemSeus ensinamentos:

Vós sois o sal da terra: porém se o sal se tornar insulso,com o que será salgado? Para nada mais serve, a nãoser para se jogar fora e ser pisoteado pelos homens.Vós sois a luz do mundo, não pode uma cidade situa-da sobre um monte ser escondida. Nem se acende umalamparina e se a põe sob uma vasilha, mas no cande-labro, e brilha para todos que estão na casa. Assim,deixai brilhar vossa luz ante os homens, para que pos-sam enxergar vossas realizações nobres e louvem vos-so Pai, que está nos céus.10

Allan Kardec, inspirado pelos Espíritos Codifi-cadores, endossou tal proposta de forma decisiva: “A

10 Mt 5, 13-16.

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humanidade progride pelos indivíduos que se aperfeiçoame se esclarecem pouco a pouco. Então, quando eles setornam a maioria, lideram e arrastam os outros” 11.

Essa revolução, sem qualquer dúvida, é a única comcapacidade para promover a reformulação social absoluta,realizando as utopias sonhadas por grandes pensadores,desde Platão até Karl Marx, sem retrocessos destrutivos.

Mas, à Lei de Imitação, será necessário ajuntar oprincípio natural da reencarnação, explicada e aprofun-dada pela Doutrina Espírita. Os indivíduos que lutam pelaprópria transformação moral não o conseguem numa sóexistência, de um modo geral, e ao retornarem, depois dadesencarnação, à vida física, terão sempre maior facilidadeem aderir ao processo, progredindo gradualmente no seuobjetivo. Além disso, sua influência sobre os outros ho-mens se propaga no tempo através das vidas sucessivas,aumentando o poder de atuação da citada Lei. O númerocrescente de Espíritos em processo de renovação já se fazsentir no momento presente, quando surgem e se expan-dem, como nunca, os movimentos em prol da modificaçãopositiva do comportamento humano, tanto individualcomo coletivo. Está nascendo uma consciência de valorescomportamentais éticos em todos os níveis da atividadesocial. Movimentos pela valorização da vida, pelo desapa-recimento dos métodos cruéis da tortura, pelo respeito àliberdade de pensamento, pela preservação da Natureza,pela paz entre as nações, pela melhoria das condições deexistência dos pobres, pelo apoio aos deficientes físicos,pela abolição da fome etc.. Esses são indicadores positivosde que as proposições de Jesus estão agindo como um

11 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma MottaArgollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.324 (Comentário àQuestão 789).

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levedo na estrutura social, construindo lenta, mas segura-mente, o Reino de Deus na face da Terra.

Profundamente vinculada aos ensinos de Jesus, aDoutrina Espírita não pode ser dissociada deles, sob penade perder sua finalidade – o aprimoramento moral eespiritual do ser humano. É por isso que todas as tentativasde estabelecer um Espiritismo inteiramente científico, istoé, podado de sua feição religiosa, tende ao mais absolutofracasso. O assunto já foi abordado em outra obra.

Aqui se põe a discussão do problema do Espiritismolaico.Segundo os defensores desta idéia, o Espiritismo deve-ria cortar os laços com qualquer tipo de religiosidade,principalmente a cristã, para, sobrepairando as diferen-ças e radicalismos religiosos, universalizar-se, cumprin-do o objetivo de fazer progredir a humanidade.Argumentam que a cristianização da Doutrina Espíri-ta põe barreiras à sua aceitação por parte da maiorianão-cristã da Humanidade, o que é possível pelos seusprincípios fundamentais que, de resto, já são aceitospor grande parcela dos povos, desde a mais remotaantiguidade, independentemente do nível de civiliza-ção que possuam. Allan Kardec concorda com estaparte, escrevendo que o mérito da Doutrina está emprovar o que os outros sempre afirmaram, apoiadosapenas no critério da autoridade ou da tradição.12

Analisando o problema, escreve o Codificador:

Do ponto de vista religioso, o Espiritismo tem por baseas verdades fundamentais de todas as religiões: Deus,a alma, a imortalidade, as penas e as recompensas fu-turas, sendo, porém, independente de qualquer cultoem particular. Seu objetivo é provar àqueles que ne-

12 ARGOLLO, Djalma Motta. O novo testamento: um enfoque espírita. 2 ed. SãoPaulo: Mnêmio Túlio, 1994. p.45-9.

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gam ou duvidam, que a alma existe, que ela sobreviveao corpo e que sofre, após a morte, as conseqüênciasdo bem ou do mal que praticar durante a vida corpórea:o objetivo de todas as religiões. Quanto à crença nosespíritos, também se encontra em todas as religiões,assim como em todos os povos, porquanto, em todaparte em que há homens, há almas ou espíritos. Suasmanifestações pertencem a todas as épocas, e, em to-das as religiões, sem exceção, há narrativas a este res-peito. Católicos - gregos ou romanos -, protestantes,judeus ou muçulmanos podem crer nas manifestaçõesdos Espíritos e ser, por conseguinte, Espíritas. A pro-va está em que o Espiritismo tem adeptos em todas asseitas. Como moral é essencialmente cristão, porquea doutrina que ensina nada mais é que o desenvolvi-mento e a prática daquela do Cristo, a mais pura den-tre todas, cuja superioridade ninguém contesta, pro-va evidente de que é a expressão da lei de Deus. Ora,a moral está ao alcance de todos. O Espiritismo, in-dependente de qualquer forma de culto, não aconse-lhando nenhum e não se preocupando com dogmasparticulares, não constitui uma religião especial, poisnão possui nem sacerdotes, nem templos. Aos que lheperguntam se fazem bem em seguir tal ou tal prática,apenas responde: Se sua consciência aprova o quevocê faz, faça-o. Numa palavra, o Espiritismo nadaimpõe a ninguém. Não se destina aos que têm fé, e aquem esta fé é suficiente, mas à numerosa classe dosinseguros e dos incrédulos. Não os afasta da Igreja,porquanto já estão dela moralmente afastados, demodo total ou parcial, mas os leva a fazer três quar-tos do caminho para nela entrarem; cabe à Igreja fa-zer o resto.13

O pensamento de Kardec é pleno de lógica ecoerência argumentativa; contudo, a psicologia humana,

13 KARDEC, Allan. O espiritismo em sua mais simples expressão. In: __. Iniciaçãoespírita. Tradução Joaquim da Silva Sampaio Lobo e Cairbar Schutel. 12 ed.Sobradinho-DF: Edicel, 1990. p.27-8.

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egocentrista, raciocina geralmente de acordo com padrõesmaniqueístas, em que as proposições são mutuamenteexcludentes.

O Espiritismo como ponto axiologicamente neutro,em que as religiões pudessem se encontrar acima dequaisquer sentimentos antagônicos, não vingou. A oposi-ção hostil da Igreja Católica e das Igrejas Reformadaspôs seus crentes que aceitavam o pensamento Espíritadiante de um impasse – ou abjuravam o conhecimento eos ensinos que os fatos demonstravam verdadeiros, retor-nando à crença nos dogmas vetustos, senis e irracionais,ou seriam implacavelmente excomungados como heréti-cos. Paralelamente a isso, deslancharam perseguiçãosistemática contra os espíritas, que atingiu paroxismosde intolerância e perversidade. Kardec assim descreveesses lamentáveis episódios inquisitoriais:

Em certas localidades, não foram indicados (os espí-ritas) à censura de seus concidadãos, até serem perse-guidos e injuriados nas ruas? Não se ordenou aos fiéisfazê-los fugir como enfestados, não se dissuadiram osempregados de entrar para o seu serviço? Não se soli-citou às mulheres separarem-se de seus maridos e aosmaridos de suas esposas, por causa do Espiritismo?Não se fizeram despachar empregados, retirar a ope-rários o seu pão de cada dia e a necessitados o pão dacaridade por serem espíritas? Até cegos não foramexpulsos de certos hospitais, porque tinham recusadoabjurar suas crenças? 14

E, finalmente, conclui o sábio lionês:

Em resumo, a Igreja, repelindo sistematicamente osespíritas que voltavam a ela, forçou-os a se refugia-

14 KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 12 ed. Sobradinho-DF: Edicel, 1990.p.99.

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rem na meditação. Pela violência de seus ataques, alar-gou a discussão e a levou para um novo terreno. OEspiritismo não era mais que simples doutrina filosó-fica; foi a própria Igreja que o desenvolveu, apresen-tando-o como um temível inimigo. Foi ela, enfim,quem o proclamou como nova religião. Era uma de-monstração de inépcia, mas a paixão não raciocina.15

Atingido o status de religião, que o Codificadorprocurara evitar, a situação se tornou altamente compli-cada. Acabou-se a neutralidade axiológica. Desde então,todo aquele que se torna espírita abandona sua religiãotradicional numa típica atitude de conversão.

Se o problema é tão grave entre pessoas da mesmatradição cristã, imagine-se com as de tradições absoluta-mente diversas, ou até antagônicas, como a dos islamitas.Nesse caso particular, a situação tem um agravante – a afir-mação supramencionada de ser, como o é, a moral espíritaabsolutamente cristã, que Kardec afirma ser superior a todasas outras, é ponto fatal de rejeição ao Espiritismo.

Pretender-se retornar ao status quo ante pela simplesexclusão do Evangelho segundo o Espiritismo, de formaarbitrária, do elenco da Codificação é de uma ingenuidadegritante. Seria preciso fazer uma recodificação, eliminandodela toda e qualquer afirmativa de cristianidade, o que,além de absurdo, é totalmente impossível.

A Doutrina Espírita surgiu como o Consoladorprometido pelo Cristo, como afirmamos linhas atrás. Suamoral é a estabelecida nos Evangelhos, como escreveuKardec, e ratificou a publicação do Evangelho segundo oEspiritismo.

No Brasil, onde o Espiritismo encontrou sua pátriareal e se desenvolveu de forma extraordinária, ele é total-

15 KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 12ed. Sobradinho – DF: Edicel, 1990, p. 100.

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mente evangélico, e com essa característica está retornandoao berço de origem, a França, e se expandindo pelo mundo,propagado pelos nossos médiuns e expositores. Assim, oEspiritismo laico não passa de um sonho impossível, emcompleta discordância com a realidade histórica.

A essas ilações, pode-se acrescentar que os princí-pios nos quais se estriba o Espiritismo são, por si mesmos,universais, porque são Leis da Natureza. Todos os seresvivos, pelo menos, possuem um campo organizador daforma, o qual preexiste e sobrevive à morte do organismo.Esse campo, enquanto desligado do corpo, permanece comtodos os seus atributos mentais e emocionais ativos, numadimensão própria que envolve e penetra a nossa.

Por guardar suas funções de racionalidade e senti-mentos, continua a interagir com os demais campos, tantono sentido horizontal do hábitat onde vive quanto novertical, com os que ainda se encontram vinculados àmatéria, influenciando-os e sendo por eles influenciados.

Graças à faculdade mediúnica, podem provocarfenômenos diversos, através dos quais atestam suaexistência e continuidade. Ora, o Espírito – comodenominamos geralmente o campo organizador da forma– é, portanto, um fato independente de crença, posiçãosocial, condição econômica, ética ou cultural. Assim,budistas, maometanos, protestantes, católicos, ateus,xintoístas e outros podem promover os meios e modos deintercambiarem com os seres espirituais, criando seuspróprios sistemas filosóficos em torno do que consegui-rem, o que não é proibido nem pode sê-lo, a não ser pelosdogmas e preconceitos alienantes que cultivam. Não é afeição cristã da Doutrina Espírita que os impede. São elesque se impedem de ter acesso ao manancial de ensinos econsolações que o intercâmbio mediúnico enseja.

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Os Evangelhos, bem como o Novo Testamento, sãolivros fundamentais para a Doutrina Espírita, que osesclarece e aprofunda da mesma forma como Jesus o fezcom o Mosaismo.

O Movimento Espírita necessita se preocupar sem-pre, mais e mais, com o seu papel de veiculador dosprincípios evangélicos. Não se pode esquecer que o Espiri-tismo está no mundo para influenciar decisivamente noprogresso da Humanidade, justamente por ser uma revi-vescência do Cristianismo.

De que forma o espiritismo pode contribuir para oprogresso?Destruindo o materialismo, que é uma das chagas dasociedade, ele faz compreender em que se encontra overdadeiro interesse dos homens. A vida futura nãoestando mais sob o véu da dúvida, o homem compre-enderá melhor que pode assegurar o seu futuro pelopresente. Destruindo os preconceitos de seitas, cas-tas e cor, ele ensinará a grande solidariedade que deveunir os homens como irmãos 16

E para conseguir esse desiderato, apresenta-nos umpadrão, que deve ser seguido de maneira absoluta: “Qualo tipo mais perfeito que Deus ofereceu ao homem paralhe servir de guia e modelo? Vede Jesus17”. Ao que oMestre de Lyon, com sua intuição privilegiada, acrescenta:

Jesus é para o homem o tipo de perfeição moral a quepode aspirar a Humanidade na Terra. Deus no-lo ofe-rece como o mais perfeito modelo, e a doutrina queele ensinou é a mais pura expressão de Sua lei, por-

16 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma MottaArgollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.328. (Questão 799).

17 Ibid., p.273 (Questão 625).

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que ele estava animado do Espírito divino e foi o sermais puro que já apareceu na Terra.18

Este livro tem como finalidade chamar atenção parao estudo e a meditação sobre Jesus e seus ensinamentos.Não é uma Vida de Jesus, no sentido tradicional do termo;são histórias em torno da pessoa do Mestre, enquantoviveu entre nós.

O Encontro com Jesus nasceu sob a inspiração doEspírito Mnêmio Túlio, responsável pelo conteúdo dashistórias, mas absolutamente inocente dos erros históricosou de outro gênero nelas existentes, que devem serdebitados à incompetência do co-autor encarnado. Issoporque elas aconteceram por via da mediunidade deinspiração, a qual, segundo Allan Kardec, não permiteque seja feita uma separação objetiva entre o pensamentoda entidade comunicante e o do médium. Nesse caso, porque o médium não assume definitivamente a completaautoria do livro? Pelo simples fato de perceber, quando ofenômeno inspirativo se dava, que a idéia nascia fora dasua mente e, nessas condições, ao assumir sua total autoria,seria uma apropriação indébita, incompatível com o cultoà honestidade que o Espiritismo ensina.

Um esclarecimento. Alguns leitores questionaramo fato de ser apresentado o nascimento de Jesus como ofaz a tradição, ou seja, que Maria era virgem quando daconcepção. O problema é que este livro não se propõe aser uma obra crítica dos Evangelhos e da vida de Jesusconforme apresentada pela ortodoxia, mas uma releiturade episódios constantes dos Evangelhos, emoldurada em

18 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 2ed. 1860. Tradução Djalma MottaArgollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007, p. 273 (Comentárioà Questão 625).

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narrativas para ilustrar o núcleo original. Assim, onascimento virginal, mesmo que seja um mito, enseja umasérie de questões emocionais, transformando-se num ricomanancial de circunstâncias que a imaginação pode, edeve, explorar em todas as dimensões da arte. Aliás, issotem acontecido, e os museus e as bibliotecas do mundointeiro guardam o resultado das projeções do inconscientede inúmeros artistas e escritores que foram arrebatadospela força e dinamismo do arquétipo do nascimentovirginal. Preferi deixar falar a grandiosidade do arquétipo,incomensurável e transcendente, constelando toda anuminosidade do mito da natividade e, confesso, senti aalma invadida por sensações indescritíveis que, em muitasoportunidades, continuam a repercutir no meu psiquismo,gerando estados alterados de consciência bastanteprazerosos. Para os que quiserem, porém, saber o quepenso realmente sobre o assunto, aconselho ler o livro ONovo Testamento: um enfoque espírita.

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A Visão de Zacarias

Zacarias 19, de pé no Hekal 20, em frente aoDebir21, diante do Altar dos Perfumes, coberto de lâminasde ouro batido, aprontara-se para derramar a taça de ourocom o perfume que a família Abtinai, possuidora domonopólio de produção e fornecimento, preparava comcatorze substâncias aromáticas escolhidas e manipuladasde acordo com métodos tradicionais. Ele estava sozinho.Os demais sacerdotes já se haviam retirado para ovestíbulo, tomando posição diante do Altar dos Sacrifícios,rezando a Deus pela vinda do Messias, junto com o povoque se aglomerava nos pátios e adros do Templo deJerusalém, cuja construção fora iniciada por Herodes, oGrande, em 19 a.C., e que só terminaria em 66 d.C., àsvésperas do levante contra o domínio romano e de suaconseqüente destruição.

Durante o reinado de Davi, os sacerdotes foramdivididos em vinte e quatro classes, dentre os que eramdescendentes de dois filhos de Aarão, Eleazar e Itamar, já

1{

19 Zekaryah, nome hebraico que significa Iahweh se lembra.20 Lugar Santo, a primeira das duas divisões do Santuário, onde se encontrava o

Menorá, candelabro de sete braços, o Altar dos Perfumes e a mesa para ospães da proposição.

21 O Santo dos Santos, local onde antes do Cativeiro da Babilônia era guardada aArca da Aliança. Estava separado do Santo, no Templo de Herodes, por umacortina – o Véu do Templo.

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que os outros dois, Nadab e Abiú, desencarnaram semdeixar filhos. Dezesseis classes ficaram com os chefes defamília que descendiam de Eleazar e oito, com os quedescendiam de Itamar. Da primeira classe, a de Joiarib,derivavam os Asmoneus, que governaram a Palestina de140 a 63 a.C.22. Essas classes eram responsáveis pelosserviços religiosos diários do Templo, revezando-se emturnos semanais, sendo os oficiadores do dia escolhidospor sorteio para desempenharem as funções que iam dalimpeza e preparação dos objetos e locais sagrados até aoferta dos sacrifícios. Por esse tempo, não mais existiamas classes originais. Somente quatro – a segunda, deJedeias; a terceira, de Harim; a quinta, de Melquias e asexta, de Maimô – haviam retornado do cativeiro daBabilônia. Para voltar à estrutura original, elas foramredivididas em grupos de seis, que mantinham os nomesprimitivos sem, todavia, descenderem diretamente dosseus fundadores.

Zacarias fora sorteado para realizar a queima dosperfumes no período da oração da tarde, durante o turno desua classe – a de Abias. Segundo os estudiosos, o eventoaconteceu no primeiro dia da semana, tendo o sacerdoteexercido suas diversas obrigações no decorrer desse tempo.

A solenidade do momento fez seu coração pulsar deemoção. Fora escolhido por sorteio, durante a madrugada,para o sacrifício do incenso, honra longamente esperada eque chegava quando ele alcançava uma velhice honrada,depois de uma existência consagrada ao serviço de Deus.

Sob o impacto emocional da solenidade do instante,o velho sacerdote recordou a mágoa que trazia sufocada

22 Os Asmoneus chefiaram o levante contra o jugo Selêucida, conhecido pelo nomede Revolta Macabaica – de Macabeu, que pode ser traduzido por cabeça demartelo, apelido de Judas, um dos filhos de Matatias, o desencadeador da rebelião.

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no peito: não tinha filhos. Sobre ele e sua amada esposaElisheba (Isabel)23 pesava o duro castigo da esterilidade.

Não podia compreender a razão dessa puniçãodivina. Sempre fora fiel servidor do Senhor e intransigenteseguidor dos seus mandamentos, como seu pai e o pai deseu pai. Sua mulher, também descendente de Aarão, erade linhagem sacerdotal e inteiramente submissa à Leidesde a mais tenra infância. Com lágrimas a escorrer pelaveneranda barba grisalha, orou contrito enquanto sepreparava para realizar a sagrada oblação:

Tu és justo, Iahweh, e tuas normas são retas, por issoeu e Isabel nos curvamos resignados diante delas.Embora não encontrando em nossas consciênciasmotivo algum de reproche, sabemos que não punes oinocente. Acredito que, à semelhança de Jó, colocas àprova nossa fé em Ti. Sabes, contudo, que nada nosdesviará dos Teus Caminhos. Compadece-Te de nós,e retira dos nossos ombros o peso do opróbrio, paraque sejamos felizes o resto de nossos dias sobre a Ter-ra. Glória a Ti Senhor, Deus único e Verdadeiro, sus-tentáculo de nossas vidas, esperança de Israel.24

No momento em que, soluçando emocionado, oServo de Deus ia espargir o perfume sobre o braseiro, oSanto se iluminou e, à direita do altar, materializou-seum Espírito, cuja elevação se traduzia pela luz violetasuave que emanava do seu corpo. O sacerdote se assustoucom a aparição, enchendo-se de temor. A nobre entidadefalou, então, buscando acalmá-lo:

– Não temas, Zacarias, porque a tua súplica foi ouvi-da, e Isabel, tua mulher, vai te dar um filho, ao qualporás o nome de João25. Terás alegria e regozijo, emuitos se alegrarão com o seu nascimento, pois ele

23 Deus é plenitude.24 Salmos 119, 137.25 Em hebraico Yohanan ou Yehohanan: Iahweh é propício

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será grande diante do Senhor; não beberá vinho, nembebida embriagante; ficará pleno do Espírito Santoainda no seio de sua mãe e converterá muitos dos fi-lhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Ele caminhará àsua frente, com o espírito e o poder de Elias, a fim deconverter os corações dos pais aos filhos, e os rebel-des à prudência dos justos, para preparar ao Senhorum povo bem disposto26.

Zacarias não podia acreditar no que estava ouvindo;por isso, aproveitando o staccato na comunicação, inqui-riu, mostrando na voz a dúvida que o assaltava: “– Deque modo saberei disso? Pois sou velho e minha esposa éde idade avançada 27”.

Em pouco tempo o ancião passara da fé ardente,extravasada na prece contrita que fizera, ao nível estreitoda racionalidade humana, apegada às demonstraçõeslógicas e comprováveis. O mensageiro, então, respondeu:

– Eu sou Gabriel 28; assisto diante de Deus e fui envi-ado para anunciar-te essa boa nova. Eis que ficarásmudo e sem poder falar até o dia em que isso aconte-cer, porquanto não creste em minhas palavras, que secumprirão no tempo oportuno.O povo esperava por Zacarias, admirado com sua de-mora no Santuário. Quando ele saiu, não lhes podiafalar; compreenderam que tivera alguma visão no San-tuário. Falava-lhes com sinais e permanecia mudo.Completados os dias do seu ministério, voltou paracasa. Algum tempo depois, Isabel, sua esposa, conce-beu e se manteve oculta por cinco meses, dizendo:– Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou retiraro meu opróbrio perante os homens!29

26 Lc 1, 13-17.27 Lc 1, 18.28 Homem de Deus ou Deus mostrou-se forte.29 Lc 1, 19-25.

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A Anunciação30

Nazaré, pequena e graciosa vila, erguia-se sobreum alto do complexo de colinas a sudeste do Lago deGenesaré. Simples e pobre, sua história, anterior a Jesus,não foi marcada por eventos importantes que lhe outorgassemo mérito de constar das páginas do Antigo Testamento.

Seus habitantes, rústicos camponeses e criadoresde ovelhas, eram pobres e incultos, além de não possuíremboa reputação nas cercanias. Quando Filipe, recém-conquistado pelo Mestre, comunica a Natanael, que erada vizinha Cana, “– Encontramos aquele de quemescreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filhode José, de Nazaré” 31, este retrucou: “– De Nazaré podesair algo de bom?” 32. E até hoje, na Palestina, corre oditado: “A quem Deus quer castigar, com uma nazarena ofaz casar” 33.

Sobre Nazaré, escreveu o protestante racionalistaErnesto Renan:

2{

30 O tema deste capítulo e dos dois seguintes se refere ao pretendido nascimentovirginal de Jesus e segue a tradição, pois o livro pretende dar uma visão davida do Mestre tal como está nos Evangelhos, dando-lhe apenas uma formaliterária de contos, não significando a aceitação, por parte do autor, da tesecitada.

31 Jo 1, 45.32 Jo 1, 46.33 URBEL, J. Perez. A vida de Cristo. São Paulo: Quadrante, 1967. p. 33.

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O horizonte da cidade é estreito, mas quem subir umpouco, até chegar à planura bafejada por uma brisacontínua que domina as habitações mais altas, achauma majestosa perspectiva.34.

Do local em que se demora, pode-se vislumbrar, aonorte, os limites de Dan, onde o Hermon projeta seuscimos nevados com o característico tom azulado, e asmontanhas de Safed lançando-se em direção ao mar poronde se recorta o Golfo de Haifa. A nordeste, distinguem-se as alturas da Gaulonítida, em plena Decápolis, comsuas cidades em estilo grego, embelezadas pelo sensoestético dos descendentes dos helenos. Ao sul, numaabrangência de sudeste a sudoeste, por entre espaços dorelevo montanhoso, aparecem flagrantes do Carmelo, emcuja extremidade norte situava-se a antiga fortaleza cana-néia de Megido, rebatizada pelos romanos como Legio,vigilante sentinela do vale de Jezreel; do Gilboá, local damorte de Saul e Jônatas em combate contra os Filisteus; edo Garizim, onde fora construído o templo rival do deJerusalém, que João Hircano destruiu em 128 a.C. duranteo interregno de liberdade proporcionado pela revoltaMacabaica. Por ali, também se podem ver a colina deEndor, onde Samuel foi evocado pelo primeiro rei de Israelgraças à mediunidade de uma mulher, e o Tabor, palco deoutra sessão mediúnica, presidida pelo próprio Jesus esem as sinistras implicações daquela. Mais adiante, namesma direção, abrem-se o vale do rio Jordão e asaltiplanuras da Peréia.

Sua flora apresentava uma grande variedade, ondese podiam encontrar ciprestes escuros, oliveiras de folhas

34 História das origens do cristianismo. Porto: Lelo, s.d., p. 25. Vida de Jesus,Livro 1.

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prateadas, vinhedos, trigo, verbena, lírios, tamargueiras,tamarindeiros, sicômoros e outros, espalhados por entrerelva olente e macia, pintalgada de pequeninas flores dematiz variado.

Naquele dia, a Natureza se apresentava festiva,vestindo seus mais alegres tons e derramando, generosa,pelas mãos delicadas e ágeis das brisas, ondas de perfumessuaves produzidos pela mistura bem dosada e proporcionaldas essências elaboradas pelas flores silvestres.

O Sol fazia destacar toda a beleza da paisagem,saturando-a de luz amena estruturada em claridadeinusitada.

Tocada pela magia reinante na atmosfera, toda afauna buscava emprestar seus encantos particulares paraaumentar a pulcritude ambiente e, assim, seus chilreios,pipilos, zurros, balidos e zumbidos formavam a onomato-péia ambiente, compondo rústicas sinfonias, que encanta-vam os ouvidos e pacificavam os corações.

Os habitantes da cidadezinha, empolgados com oencanto daquele dia incomum, deixavam-se tomar pelosmais puros e nobres sentimentos, esquecendo momenta-neamente suas querelas mesquinhas e banais, entregando-se prazerosamente às atividades prosaicas do cotidiano,nelas descobrindo encantos e motivações insuspeitados.

Maria35, havendo chegado da fonte, que ainda lheguarda o nome – Ain Sitti Mariam –36, posou o cântaro àentrada da casinha singela, pondo-se a apreciar o crepús-culo que se avizinhava célere. O céu se assemelhava auma imensa tela azul, onde o agigantado disco solar,

l 35 Miryam, em hebraico. É de etimologia incerta, não havendo acordo entre osespecialistas quanto ao seu significado. Era o nome da irmã de Moisés, porisso muitos acham que deve ser de origem egípcia.

36 A fonte de Maria.

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matizado de carmim, pintava uma paisagem surrealistaem tons de ouro eterizado, entremeado de púrpura lumi-nescente. Seu coração, puro e generoso, estuava de alegriaenquanto um imenso sentimento de felicidade lhe povoavaos centros emotivos, estimulando anseios de sublimeespiritualidade. Lágrimas de ventura rolavam por sua face,delicada como uma pétala de rosa, fazendo brilhar seusolhos castanho-claros, em que pairavam límpidos reflexosde inocência. A brisa vespertina, encantada com sua belezacândida e sem mácula, veio gárrula e lépida brincar comos cachos castanho-dourados de sua cabeleira vasta echeia, agradavelmente perfumada com essência de nardo.

Com um suspiro profundo de pura emoção, a jovemrecém-comprometida com José, o carpinteiro, entrou emcasa dirigindo-se para o quarto de dormir, depois de colocara vasilha com água na cozinha rústica, localizada empequena gruta que fora incorporada à residência quandoda sua construção. Ali, assentando-se sobre a cama singela,pôs-se a meditar sobre as sensações diferentes que sentia.

Sempre cultivara sentimentos puros, e toda sua vidatranscorrera numa atmosfera de harmonia e tranqüilidade,em que o culto a Deus era uma atividade constante de suaalma. Nunca sentira atração por futilidades e inconseqüên-cias na infância, como soe acontecer, mostrando-seresponsável e criteriosa desde a mais tenra idade. Aochegar à puberdade, não fora arrebatada pelos sonhos eimpulsos juvenis nem se entregara às vaidades comunsdo narcisismo instintivo da menina que desabrocha parauma nova etapa de vida.

O casamento lhe chegara como uma coisa normal,sem impactos emocionais nem grandes surpresas, um fatonatural como qualquer outro da existência. Esperava aconsumação do contrato esponsalício sem maiores

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anseios. Seu futuro marido era um homem digno, traba-lhador, sem vícios nem costumes degradantes. Afável,simples, franco e jovial, fora por ela recebido como umamigo e companheiro, com o qual partilharia os momentosbons e maus da vida. Também ele era profundamentereligioso, uma alma empolgada pelo senso do divino, semas preocupações legalistas dos partidários das diversasfacções político-religiosas da Judéia. Aliás, pouco ecoa-vam, nos altos onde moravam, as questiúnculas escolás-ticas que fermentavam em Jerusalém, quase cento e dozequilômetros de distância.

Repentinamente, em meio a suas cogitações, a RosaMística de Nazaré sentiu uma presença invisível noambiente, o que a fez abandonar a atitude cismarenta sem,contudo, sentir qualquer receio. Uma luz suave e incomumiluminou o recinto, tendo como fonte um ser de belezaangelical que, fitando-a amorosamente, lhe falou em tomcarinhoso: “– Alegra-te, cheia de graça, o Senhor estácontigo. Ela ficou intrigada com essas palavras e pôs-se apensar qual seria o significado da saudação” 37. A entidadeangelical, todavia, prosseguiu:

Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus.Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho,e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será gran-de, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deuslhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casade Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim.38

Maria, surpresa com aquela revelação, externou suaperplexidade: “– Como é que vai ser isso, se eu nãoconheço homem algum?” 39

37 Lc 1, 28.38 Lc 1, 30-33.39 Lc 1, 34.

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Ao que o elevado ser espiritual retrucou: “– OEspírito Puro virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai tecobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer seráchamado Filho de Deus” 40.

Em seguida, para corroborar seu anúncio, o EspíritoSuperior lhe fez uma revelação comprobatória, comoacontece nas comunicações mediúnicas quando é precisovencer as resistências da dúvida, justificável em situaçõesque tais:

Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho navelhice, e este é o sexto mês para aquela que chama-vam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impos-sível.Disse, então, Maria:– Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundoa tua palavra 41.

Nesse ponto, o Mensageiro do Alto desapareceu,deixando o ambiente impregnado de perfume desco-nhecido e suave.

40 Lc 1, 35.41 Lc 1, 36-38.

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Visitando Isabel

Maria estava perplexa com o que acabara deacontecer. Fora tudo tão repentino e extraordinário. Sentia,bem no imo d’alma, que era absolutamente real o quevira e ouvira. Todavia, a razão lhe colocava algumasquestões ponderosas: ela, apesar do compromisso comJosé, não havia convivido maritalmente com ele, o quesó aconteceria dentro de dois meses; uma gravidez trans-cendente? Seria tal coisa possível? No mesmo instante,como se uma voz lhe falasse diretamente no íntimo,recordou-se da história de Sara, a mulher de Abraão, opatriarca maior do seu povo. Ela era muito idosa e já haviaperdido o costume das mulheres. Mensageiros do Senhordisseram a Abraão que ela lhe daria um filho, e o fato secumpriu dando origem ao povo Hebreu. Aliás, como povoescolhido por Deus, Ele nunca deixara de participar desua história com prêmios e castigos. Sofriam então ocastigo da dominação romana, como outrora a de outrospovos.

Mas contrapôs-se consigo mesma. Sara tinhamarido, e ela não. O Mensageiro de Deus lhe revelaraque Isabel estava grávida, e que isto serviria de sinalcomprobatório do que dissera. Como saber se era real?Não havia um meio de, com ela, comunicar-se, pois viviaem Aim Karim, nas bordas do Deserto da Judéia. Só lhe

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restava uma coisa a fazer: ir visitá-la e, dessa forma,constatar a realidade da visão.

Resolvida essa parte, havia uma segunda: em sendoverdade, como haveria José de receber a notícia? Afinalde contas, ela fora avisada; ele, entretanto, não. Comoreagiria? Será que a teria como adúltera? A palavraadúltera lhe despertou um temor inesperado. Não haviaainda cogitado nisto. Ficando grávida de um filho quenão era de seu noivo, todos, inclusive José, só poderiampensar que ela tivesse adulterado. Seria uma situaçãodifícil. Segundo a Lei, a pena aplicável a tal crime era amorte por lapidação. Sabia-se inocente, mas os outrosacreditariam? Começou a ficar aflita ante os pensamentosque lhe ocorriam quanto aos problemas que enfrentaria.Mas, reagindo, disse em voz alta: Senhor! coloco-me,como disse ao Teu Mensageiro, em Tuas mãos comoescrava submissa. O que deliberares a meu respeito,aceitarei com resignação.

No mesmo instante, sentiu uma Paz indescritível.Era a resposta do céu à oração. As preocupações e anseiosa abandonaram completamente, dando lugar a uma alegriaimensa, que lhe invadiu todo o ser.

Comunicou, aos parentes que a tutelavam desde amorte dos pais, a resolução de visitar Isabel e Zacarias.Apesar de surpresos, concordaram prontamente, pois lhetinham muito afeto. José também não opôs obstáculos, eprovidenciou tudo, pois naquele mesmo dia ficara sabendoque seu irmão Cleofas partiria com uma caravana para aregião de Belém, onde realizaria negócios comerciais.Contatado, concordou em levar Maria até Aim Karim e,três meses depois, apanhá-la de volta, o que era conve-niente, pois seria o tempo justo para a realização das bodasdefinitivas.

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Cinco dias depois, Maria entrava em Aim Karim, opequeno povoado que ficava a sete quilômetros deJerusalém, na direção sudoeste. Ao chegar à casa deZacarias, sentia-se envolvida por vibrações espirituaisintensas. Foi recebida por uma serva, acomodando-se napequena sala de entrada enquanto a dona da casa erainformada de sua chegada.

O seu encontro com Isabel, cuja gravidez estava nosexto mês, foi cheio de alegria, pois não se viam há muitotempo. Em meio às efusões de carinho, as duas foramarrebatadas por transcendentes presenças espirituais,entrando em estado alterado de consciência.

Isabel, mediunizada, exclamou:

Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto deteu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhorme visite? Pois quando a tua saudação chegou aosmeus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meuventre. Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi ditoda parte do Senhor será cumprido! 42

Maria ficou admirada, mas ao mesmo tempo alegre,pois via a confirmação do que lhe dissera o enviadoespiritual. Isabel estava grávida e, sem que lhe dissessequalquer coisa, falara sobre sua gravidez. Era tudo, pois,a expressão da verdade. Desde aquele momento, qualquervacilação a abandonou por completo. Num estado deprofunda felicidade e júbilo, sentiu-se a falar, impelidapor forças transcendentes:

Minh’alma engrandece o Senhor,e meu espírito exulta em Deus meu Salvador,porque olhou para a humilhação de Sua serva.

42 Lc 1, 42-45.

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Sim! Doravante todas as gerações me chamarão debem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandescoisas em meu favor.Santo é o Seu nome,e Sua misericórdiaperdura de geração em geração,para aqueles que O temem.Agiu com a força de Seu braço,dispersou os homens de coração orgulhosos.Depôs poderosos de seus tronos,e a humildes exaltou.Cumulou de bens a famintos,e despediu ricos de mãos vazias.Socorreu Israel, Seu servo,lembrado de Sua misericórdia– conforme prometera a nossos pais –em favor de Abraão e de sua descendência,para sempre! 43

Asserenados os ânimos, passaram a conversar sobreas novidades comuns de suas vidas simples, trocandoconfidências familiares, dando-se notícias mútuas sobreparentes que não viam há muito. Pouco depois, Zacariaschegou de seus afazeres normais, expressando-se porsinais por causa da mudez que lhe havia sido impostacomo sinal do que lhe dissera o mensageiro espiritual noTemplo. O velho sacerdote chorava de emoção ao lhe sernarrado o que acabara de suceder. O coração pareciaexplodir no peito, sob a pressão emocional. Sua famíliaestava sendo cumulada de bênçãos pelo Senhor Deus e, omais importante, chegara o tempo em que as profeciasteriam cumprimento. O Messias estava vindo, sentia ele,e a parenta de sua mulher teria a glória de carregá-lo noventre, provendo-lhe o corpo físico indispensável parasua gloriosa missão.

43 Lc 1, 46-55.

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Foram quase três meses de grande enlevo espiritual.Todos os dias, o sacerdote reunia os moradores da casa evizinhos para cultuar o Senhor. Cantavam hinos, liamsalmos e passagens de Isaías, apontados por ele, que oscircunstantes interpretavam profundamente inspirados,pois refletiam o pensamento dos Espíritos Iluminados queos mantinham sob guarda constante. Quase semprealguém da assembléia começava a profetizar, isto é,transmitia mensagens mediúnicas, através da psicofonia,arrancando lágrimas dos presentes.

Foi, portanto, com grande tristeza que Maria sedespediu de Zacarias e Isabel para voltar à sua terra quandoCleofas a foi buscar. Sentiria falta daquelas reuniões, emque a Misericórdia Divina se fazia presente, infundindopaz e alegria, num ágape inefável de espiritualidade. Sentia-se forte para enfrentar todos os obstáculos que viriam;todavia, não podia deixar de sentir um aperto no coraçãoante a perspectiva da revelação de sua gravidez, tanto aonoivo quanto à parentela de Nazaré. Deus, porém, haveráde prover tudo, pensava ela, enquanto a caravana seguiapreguiçosamente rumo ao norte pelo Caminho do Mar.

Cerca de cinco meses depois da partida de Maria,Isabel teve a criança. A casa de Zacarias era só alegria.Amigos e parentes se regozijavam com aquela manifes-tação da Misericórdia Divina. O velho sacerdote, contudo,permanecia sem conseguir falar, o que era complicadopela surdez que o acompanhava há algum tempo. Mas,no oitavo dia, foram circuncisar o menino. Queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias, mas a mãe, tomando apalavra, disse:

Não, ele vai se chamar João. Replicaram-lhe: Em tuaparentela não há ninguém que tenha esse nome! Pormeio de sinais, perguntavam ao pai como queria que

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se chamasse. Pedindo uma tabuinha, ele escreveu: Seunome é João; e todos ficaram admirados 44.

Nesse momento, para espanto e alegria de todos,voltou-lhe a voz. Seus louvores a Deus ecoavam pela casa.De repente, sua expressão se transformou. Parecia queuma luz transcendente o envolvera, iluminando-lhe osemblante. Um Espírito de alta hierarquia, dominando-lhe o centro da fala, transmitiu uma mensagem psicofônicaque até hoje nos emociona pelo seu conteúdo de profundaespiritualidade:

Bendito seja o Senhor Deus de Israel,porque visitou e redimiu o seu povo,e suscitou-nos uma força de salvaçãona casa de Davi, seu servo,como prometera, desde tempos remotos,pela boca de seus santos profetas,salvação que nos liberta dos nossos inimigose da mão de todos os que nos odeiam;para fazer misericórdia com nossos pais,lembrado de sua aliança sagrada,do juramento que fez ao nosso pai Abraão,de nos conceder que - sem temor,libertos da mão dos nossos inimigos, -nós o sirvamos com santidade e justiça,em sua presença, todos os dias.E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo;pois irás à frente do Senhor,para preparar-lhe os caminhos,para transmitir ao seu povo oconhecimento da libertação,pela remissão de seus erros.Louvores ao misericordioso coração do nosso Deus,pelo qual nos visita o Astro das alturas,para iluminar os que jazem nas trevas

44 Lc 1, 59-63.

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e na sombra da morte,para guiar nossos passosno caminho da paz 45.

Um poema mediúnico dos mais belos da literaturacristã, guardado com carinho pela memória dos que oouviram e que chegou até o Evangelista Lucas, que oregistrou para toda a posteridade. Nele encontramos umresumo notável dos acontecimentos que marcaram oadvento da Nova Era, em que são postas de forma clara,em rápidas sentenças, as missões de Jesus e daquele queseria conhecido mais tarde como o Batista. Repare-se queJesus não é apresentado como Filho de Deus, ou o próprioDeus, mas como um Astro que desce das alturas parailuminar as trevas de nossa inferioridade. E, sem dúvida,sua luz o credencia a tal analogia, pois irradia-se até hojesobre nós, guiando-nos em direção aos páramos dainefável perfeição.

João, por sua parte, é citado como um preparadorde caminhos, um profeta a reviver a tradição de médiunsinspirados e lutadores que, há mais de quatrocentos anos,haviam desaparecido das terras da Palestina. Espírito fielaos desígnios superiores, soube viver essa missão grandio-sa, ele que já era tarimbado missionário, como o demons-trara no passado, quando, reencarnado sob o nome deElias, dera exemplos suficientes de perseverança e fé.

45 Lc 1, 67-79.

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Momento Difícil 46

Maria chegou a Nazaré uma semana antes dodia marcado para a consolidação dos laços esponsalícioscom José. Todos a receberam com as naturais efusões dejúbilo, após o período de ausência. José, dentre todos, erao mais alegre, pois o seu afeto pela Rosa Mística era reale profundo.

Naquela noite, a pedido de Maria, os dois saíram aconversar, sentando-se em algumas pedras que ficavam àmargem do monte em que a cidade se situava, faceandouma queda abrupta, de onde, um dia, os nazarenosbuscariam despencar Jesus por lhes ter revelado ser oMessias, de acordo com os textos do profeta Isaías47.

O coração da jovem batia um tanto descompassado,apesar de, nas circunstâncias, manter uma tranqüilidadeinusitada. Desde a volta de Aim Karim, vivera pensandonaquele momento. Não podia imaginar como seria areação do noivo ao tomar conhecimento da sua gravidez;não obstante, seria impossível retardar o assunto, pois oventre começava a dilatar. Em Israel, esse era um assuntoprofundamente grave, e a lei previa pena de morte porapedrejamento para a mulher infiel. Ela, contudo, trazia aconsciência em paz pela realidade de sua inocência. A

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46 Sobre o conteúdo deste capítulo, ver nota 31.47 Ver Lc 4, 14-30.

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criança que se desenvolvia no seu ventre fora gerada pelavontade de Deus, conforme lhe dissera o Enviado Celeste.

– Maria, querida de minh’alma, desde que voltasteda casa de Isabel e Zacarias tens estado pensativa epreocupada. Aconteceu alguma coisa enquanto estavascom eles? Penso que a notícia da gravidez dela, que sofriaa marca da esterilidade, deveria ser motivo de júbilo...

– José, meu amado, não aconteceu nada em casa deIsabel. Pelo menos nada de mau. Foram dias maravilhososcomo lhe contei. As bênçãos de Deus se multiplicaramfartas. Todas as noites, a palavra do Senhor se fazia ouvirpor diversas bocas, anunciando os dias das promessasrealizadas.

– Contudo, tenho verificado que estás diferente...preocupada...

– De fato, guardo uma certa inquietação desde quealguns fatos aconteceram...

– Que fatos foram esses, capazes de abalar tuanatural tranqüilidade? Partilha-os comigo, para que juntospossamos entendê-los e, se for o caso, resolvê-los.

– Na verdade, eles dependem muito de ti.– Estás me deixando preocupado e ansioso. Abre o

teu coração logo.– Bem, tudo começou no dia em que foste à casa de

Efrém, em Caná, para consertar o eirado de sua casa...E Maria contou ao noivo, detalhadamente, tudo o

que lhe ocorrera. Enquanto ela o fazia, uma entidadeespiritual, de indescritível luminosidade, envolvia o casal.Sob sua influência, José escutava o relato, cheio deassombro, mas sem qualquer arroubo de amor-próprioferido.

Quando Maria terminou, José permaneceu silencio-so. O assunto era por demais grave. Sentia, no entanto,

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que a noiva falava a verdade. Seus olhos castanhos,límpidos, refletiam-lhe a pureza de sentimentos. Não podiadeixar de acreditar em sua palavra, mas um sem númerode considerações percorriam sua mente.

Maria, ansiosa, indagou:– O que me dizes?– Estou muito perplexo para poder emitir qualquer

juízo no momento. Contudo, tenho profunda confiançana tua honestidade. Sei que és incapaz de mentir emqualquer circunstância, mas preciso pensar. Concede-meaté amanhã para que te possa expressar minha posiçãodiante dos fatos.

Maria respeitou a atitude do seu amado, e os doisvoltaram. Tenso, José se despediu à entrada da casa deMaria, rumando cismarento para a sua.

O carpinteiro ainda deambulou, sem destino certo,pela estrada que descia em direção ao lago, imerso emcogitações difíceis. Como entender a ocorrência? A noiva,que sabia honesta e pura, comunicava-lhe uma gravidezde origem transcendente. Acreditava que para Deus tudoera possível; entretanto, nunca se ouvira tal coisa nahistória de Israel: um filho gerado sem a intervençãomasculina! Se essa história se divulgasse, ele seria alvoda chacota geral. Maria, por sua vez, ficaria exposta àscalúnias, bem como vulnerável a um processo legal,culminando em pena de morte por apedrejamento. Ele,entretanto, não podia assumir a paternidade de um filhoque não gerara, mas repudiar Maria era condená-la àexecração pública. Quem sabe, o melhor talvez fosseabandoná-la sem qualquer explicação. Poderia fugir parabem longe. Tinha uns parentes no Egito, iria para lá semcomunicar a ninguém. Deixaria com ela uma carta derepúdio sem qualquer explicação. Naturalmente, iria ser

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malquisto pela opinião geral e nunca mais poderia voltarà Galiléia. Não importava. Estava diante de uma situaçãodifícil. Cria na sinceridade de Maria, mas não receberaqualquer aviso de Deus nesse sentido; logo, deveria estarexcluído dos planos do Senhor. O melhor mesmo era seafastar para não interferir de forma negativa nas delibera-ções de Iahweh.

Tranqüilizado pela resolução, foi para casa, poissentia uma imensa necessidade de dormir. Mal se deitou,adormeceu. Era, no entanto, um sono diferente. Sim, sópodia ser sonho. Via-se de pé junto ao leito, onde umasua cópia estava deitada. Aproximou-se e verificou ser oseu corpo. O carpinteiro não podia saber que estavavivendo um fenômeno que os parapsicólogos chamam deOBE (Out of Body Experiency48) e que o Espiritismodenomina de desdobramento. Repentinamente, percebeuque não estava sozinho. Ao seu lado, uma entidadeespiritual de beleza singular, irradiando luz de matizazulado com cintilações safirinas, sorria-lhe, envolvendo-o numa onda de imensa simpatia.

A paz que lhe invadia o íntimo evitou que sentissemedo. Indagava-se quem seria o ser que ali estava. Antesque pudesse formular a pergunta de modo explícito,escutou, não pelos ouvidos, pois a entidade espiritual nãomexeu os lábios. A voz lhe chegava diretamente ao cérebro:

José, filho de Davi, não receies receber Maria, tuaesposa, porque o que nela foi gerado é do EspíritoSanto (Comunidade de Espíritos Puros, responsávelpela Terra). Ela dará à luz um filho, no qual porás onome de Jesus, pois ele haverá de salvar teu povo dosvossos erros (indicar como evoluir espiritualmente).49

48 Experiência fora do corpo.49 Mt 1, 20-21.

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Era a elucidação de que necessitava. Compreendia,agora, que Deus estava agindo para realizar as esperançasdo seu povo, conforme promessas antigas. E ele, José,fora eleito para ser o guardião do Enviado em sua trajetóriainicial pela existência.

Lágrimas de alegria lhe aljofravam a face, escorren-do pela barba em que pontilhavam alguns fios de prata50.O Espírito Superior lhe falou ainda por algum tempo, massua mente consciente só pôde reter a primeira parte daconversação.

O carpinteiro acordou, então, com o coração pulsan-do de imensa alegria. O Senhor não o abandonara, e ofizera saber da sua vontade. Os fatos contados por Mariatinham sido plenamente confirmados. A criança que estavase desenvolvendo no ventre de sua esposa teria umamissão superior a desenvolver. Quem sabe não seria umprofeta? Um novo Elias, verberando contra as autoridadesdissolutas e recolocando o Povo de Deus no caminho davirtude e do temor a Deus?

Aguardou ansioso o nascer do sol, que o encontroude pé no mesmo local onde conversara com Maria na noiteanterior. Seus olhos se enchiam de lágrimas à medida queo crepúsculo da manhã prenunciava a aurora.

Quando os primeiros raios do sol nascente desenha-ram seus arabescos de ouro nas nuvens que estacionavamno firmamento, encaminhou-se em direção à casa deMaria. Ela estava à porta, cântaro no ombro, bela comonunca. Viu com ansiedade o noivo se aproximar. Que reso-lução tomara? O rosto sorridente do amado, entretanto,transmitiu-lhe um alívio imediato, e seu coração pulsou

50 O corpo espiritual, ou perispírito, é uma cópia fiel do corpo físico, conservando-lhe os detalhes específicos.

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de alegria quando ele, osculando-lhe de leve a testa, disse,olhando-a nos olhos puros e lúcidos: Eu te amo! E oEvangelista resumiu, na sua forma característica, o episó-dio, dizendo:

José, havendo despertado do sono, fez como o anjo(Espírito Superior) lhe ordenara, e recebeu sua mu-lher. E não a conheceu (não teve relações sexuais comela) até que desse à luz o filho, ao qual pôs o nome deJesus.51

51 Mt 1, 24.

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“Nasceu-vosHoje um Salvador” 52

Lucas entrou na cidade de Belém por volta daterceira hora.

Seu coração batia um tanto descompassado porcausa da emoção que dele se assenhoreara desde omomento em que, à distância, avistara o casario da cidade.Ali nascera Jesus, o Mestre que lhe polarizava os ideais.Mas não era apenas uma viagem de turismo sentimental.Era parte essencial do seu projeto de escrever duas obras:uma, sobre a vida e os ensinos de Jesus, e outra, sobre omovimento cristão.

A palavra cristão lhe lembrou o fato de que ela fôraempregada por ele, pela primeira vez, para denominar oseguidor de Jesus. Fôra em Antioquia da Selêucida,recordava-se claramente; estavam reunidos após o culto,conversando sobre o Mestre, quando um dos irmãosdissera: Nós, os seguidores do Nome..., e ele, imediata-mente, num arroubo de inspiração, propusera: Irmãos! Nósque amamos e seguimos a Jesus, deveríamos nos fazerconhecidos por uma denominação específica. Ante o olhar

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52 Lc 2, 11.

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indagador dos demais, continuara: Seguidores do Nome éuma forma muito vaga de sermos conhecidos. Existem,no mundo, seguidores de nomes variados, também denomes que caracterizam a perversão, o crime, o ódio, oroubo etc.. Jesus nos disse que deveríamos ser como umacidade sobre um monte, que não pode ser escondida53, eque deixássemos brilhar nossa Luz diante dos homenspara que nossas boas obras pudessem ser vistas e,conseqüentemente, Deus fosse louvado pelos que nosvirem54. Penso que o Senhor queria dizer com isso quedeveríamos nos expor aos olhos de todos, e nunca ficarmosescondidos por qualquer forma. O próprio Jesus, desde omomento em que começou a viver como um Rabi, nuncadeixou o foco da atenção geral; foi, porque queria ser,visto e ouvido nas ruas e praças, nas cidades e nos campos,por poucos e por multidões. Para que sejamos identifi-cados plenamente como seguidores da Boa Nova, sugiroque usemos, como um galardão, o apelativo de Kristianós,que deriva do grego Kristós, termo que, quase todos aquisabem, é em hebraico Maschia, cujo significado é Ungido,pois que Jesus foi, por Deus, ungido para trazer a salvaçãopara todos os povos. Salvação dos enganos em que vivemmergulhados; salvação da iniqüidade e do erro. Todoshaviam ficado entusiasmados e, desde aquele momento,passaram a se tratar pelo nome de cristãos. Em poucotempo, a Comunidade dos discípulos de Jesus, emAntioquia, era conhecida como Comunidade Cristã portodos na cidade e, gradativamente, o novo nome fôra seespalhando, ganhando foros de universalidade.

Como estava alcançando a praça central da cidade, omédico procurou se informar sobre a residência de seu

53 Mt 5, 14.54 Mt 5, 16.

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colega de profissão e velho amigo Heráclides de Tebas, daqual logo lhe deram a direção. Em alguns minutos, estavafrente a frente com o médico grego, que o recebeu comimensa alegria, convidando-o para o interior da casa, que,apesar de não ser suntuosa, era ampla e muito bem cuidada.

Depois de um banho refrescante e de uma boaalimentação servida por dois escravos núbios, puseram-se a conversar no átrio, colocando em dia alguns anos deseparação:

– Lucannus, amigo, Chronos55 parece gostar de ti,pois tens conservado uma perpétua juventude.

– Continuas a mesma alma alegre e generosa,sempre pronta a encontrar a frase certa, capaz de levantaro ânimo e despertar o júbilo nos corações. Mas a verdadeé que o tempo está cumprindo pacientemente a sua tarefa,como posso ver na superfície polida dos espelhos de prata.

– Apesar de tudo, manténs uma forma invejável.Eu, todavia, não posso dizer o mesmo de mim. Desde amorte da querida Artemísia, parece-me ter envelhecidolargos anos.

Uma nuvem de tristeza pareceu se abater sobre aface do anfitrião.

– Soube da sua morte em Trôade e te escrevi umacarta para que soubesses que tens um amigo com quemcontar, sempre.

– Recebi tua missiva, que me foi de muito alento. Aamizade é um dom inefável dos deuses... Ora, eu aquifalando em deuses, e tu, que és crente na existência deum só deus, deves estar escandalizado.

– De forma nenhuma. Respeito tua crença, comoquero ver a minha respeitada.

55 Deus do tempo, na mitologia grega.

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– Sempre apreciei o teu liberalismo. Felizmente nãoés intransigente e fanático como os outros judeus.

– É que, além de judeu, sou cristão, e os cristãosaprendem a respeitar os pontos de vista alheios, muitoembora sem concordar com eles, muitas vezes.

– Será interessante conversarmos sobre esseconceito. Mas, diz-me, o que vem a ser cristão?

– Cristão, caro amigo, é quem segue Jesus deNazaré, que é o Messias, ou Cristo.

– Ah! Entendo. Segues, então, os ensinos daquelegalileu que Pilatos mandou crucificar, às instâncias dossacerdotes e do povo, em Jerusalém...

– Isso mesmo, amigo.– Não estava em Jerusalém quando aconteceu, mas

sei que Pilatos passou maus momentos com a populaçaamotinada, e a condenação saiu sob pressão do povo,insuflado pelos líderes do Sinédrio.

– E, diga-se de passagem, condenado injustamente,pois não se conseguiu encontrar nenhum crime de quefosse culpado.

– Muito ouvi a respeito dele e sinto uma grandecuriosidade em saber melhor sobre seus ensinos e práticas.Dizem que curava todo tipo de doença; é verdade,Lucannus?

– Sem qualquer dúvida.– Confesso que me é difícil, como médico, acreditar.

Mas como sei que és um médico criterioso, pois acompa-nhei teus estudos, quando sempre foste o melhor, comoigualmente conheço teu racionalismo, não me posicionareidecididamente contra, mas manterei um discretocepticismo.

– Tens toda a razão de reagires dessa forma. Eutambém o faria se não tivesse presenciado, com meus

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próprios olhos, curas extraordinárias realizadas pelosdiscípulos do Rabi. Ora, se os seus seguidores são capazesde curar aleijados, cegos, surdos-mudos, de nascença,além de outras enfermidades, logo, tudo o que se contasobre o Mestre só pode ser verdade. Além do mais, tiveoportunidade de entrevistar vários que foram por elecurados, conferindo suas histórias com vizinhos e paren-tes, os quais as confirmaram completamente.

– Meu caro Lucannus. Sei que és incapaz de umamentira, e tais fatos são deveras extraordinários. Eu,todavia, estou muito velho e descrente para me preocuparcom as coisas religiosas. Diz-me: além de ver um velhoamigo, o que mais te trouxe por essas bandas?

– É que estou escrevendo um livro e venho coletan-do informações.

– Sabia que eras pintor, mas escritor não. Isso mealegra muito, pois se escreveres tão bem como pintas, anossa cultura se embelezará. Estás escrevendo sobre oquê?

– Sobre Jesus de Nazaré e o movimento cristão,que está vicejando em todo o mundo.

– Ah! é uma apologia sobre esse Nazareno?– Não. É um tratado em dois livros. O primeiro,

contendo os ensinamentos e feitos de Jesus até sua mortee ressurreição. E o segundo, sobre tudo o que vemacontecendo desde que ele se despediu dos seus discípulos,mais de quarenta dias após ter morrido na cruz, dando-lhes a tarefa de levar sua mensagem a todos os povos daTerra.

– Ressurreição! Não me digas que, médico comoés, acreditas que um defunto possa retornar à vida.

– Sabes, muito bem, que existem casos de pessoasmortas durante algum tempo que voltaram a viver.

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– Sem dúvida. Mas sabe-se que isto é devido a umataque que paralisa os músculos, provocando a aparênciade morte. Todavia, a respiração, apesar de quase imper-ceptível, continua a operar, e as batidas do coração sofremum grande espaçamento; mas o sangue, apesar de lenta-mente, continua a correr pelas veias. Se foi esse o caso doteu Jesus, tudo bem. Mas ele não foi crucificado?

– Justamente, e os soldados se certificaram de queestava bem morto, antes de liberar o seu corpo. Chegarama lhe trespassar o coração com a ponta de uma lança,manando da ferida sangue e água. Mas, apesar de tudo,quase dois dias depois, ele apareceu aos seus discípulosnuma sala fechada em Jerusalém, conversando e tomandoalimento na frente de todos.

– É uma história inacreditável...– Todavia verídica, pois atestada por inúmeras

testemunhas. Na Galiléia, pude conversar com mais decem pessoas que o viram, juntamente com mais quatro-centas, em plena luz do dia, escutando suas palavras, e,depois, elevar-se no ar e desaparecer.

– Meu amigo, não quero polemizar contigo. Comote disse, estou cansado dos problemas religiosos. Se é queexistem deuses, como acredita a quase totalidade dos sereshumanos, ou um deus, como afirmam, como exceção, osjudeus, pouco se me dá. Quero é viver em paz os últimosdias de minha vida.

– É pena, amigo, pois terias muito o que aprendercom os ensinos de Jesus...

– Mas, sem querer ferir-te os sentimentos, não tenhoo menor interesse. Entretanto, estou pronto a te ajudar acoletar os depoimentos que necessitas para teu livro.

– Ótimo. Talvez não saibas, mas Jesus nasceu aquiem Belém, quando ainda reinava Herodes. E estou

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buscando ver se encontro algumas testemunhas da época,bem como o local do seu nascimento, uma gruta que serviade estábulo conforme me contou a própria mãe do Senhorquando a encontrei com meu irmão Paulo, em Éfeso.

– Sei quem pode te auxiliar nessas buscas: o velhoPalu, com seus oitenta e cinco anos de vida, todos vividosaqui, donde nunca se afastou. Mandarei chamá-lo.

– Não, prefiro que mandes alguém me levar até ele,pois quero que se sinta à vontade. Todo homem ficainseguro quando fora do seu ambiente.

– Certo. Levar-te-ei, então, pois preciso fazer algumexercício, e as recordações do velho Palu serão interessantese quebrarão um pouco a monotonia em que vivo mer-gulhado.

Saíram, acompanhados de alguns escravos de Herá-clides, em direção às casas mais pobres, localizadas nafímbria da cidade, perto do campo de Oliveiras.

A casa de Palu, o pastor de ovelhas, era simples e depoucos cômodos. À entrada, sentado num banco rústico,seu dono contemplava o pôr-do-sol. As cãs e barbas brancasdiziam do muito que havia vivido, bem como as rugas quese lhe estampavam na face cor de papiro envelhecido.

Surpreso com a presença de Heráclides, o médico aquem já consultara umas duas vezes por causa da tosserenitente que o acompanhava, levantou-se a custo,saudando os recém-chegados:

– Que a Paz esteja convosco!Lucas teve um gesto de surpresa, ante a saudação

cristã, respondendo:– E permaneçam tu e tua casa na Paz do Caminho!Dessa vez foi Palu quem denotou surpresa, procu-

rando disfarçar com um gesto de agradecimento, edirigindo-se a Heráclides:

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– O que trás o ilustre médico à minha humildemorada?

– O prazer de revê-lo, bem como para atender aeste amigo e colega, Lucannus, que procura certasinformações dos tempos da tua juventude.

– Terei imenso prazer em dispor de minha humildememória, que aliás só possui informações bastante restri-tas, pois nunca saí de Belém nem para ir até Jerusalém,que fica tão perto. Este foi o meu mundo, desde que nasciaté o momento em que estou falando convosco.

– É justamente de acontecimentos que tiveram lugaraqui que estou coletando informações.

Agora já estavam os dois sentados em bancosrústicos de madeira, que o dono da casa mandara vir,enquanto os servos se retiravam a alguma distância, longedo alcance da conversa que se desenrolava.

Sem mais delongas, Lucas foi direto ao assunto:– Devo te informar que sou seguidor de Jesus de

Nazaré, o Messias prometido pelas escrituras.Falou e ficou esperando a reação do velho, que foi

de profunda calma.– Já havia notado, pela tua saudação. Apesar de

nunca ter me locomovido para fora dos limites destacidade, estou informado de tudo o que aconteceu com oEnviado de Deus.

Dito isso, retirou, das dobras da túnica, um rolo depapiro no formato tradicional das Escrituras Sagradas,lidas nas Sinagogas, estendendo-o a Lucas, que o recebeu,abrindo-o com cuidado ante o olhar curioso de Heráclides.

Viu que se tratava de um escrito em aramaico e,com surpresa, leu a coletânea de ensinamentos de Jesus,escrita por Mateus, da qual ouvira falar, mas que aindanão havia conseguido copiar. Isto porque Tiago e seus

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colaboradores a guardavam a sete chaves, só permitindosua reprodução pelos adeptos judaicos do Cristo estrita-mente vinculados à Sinagoga.

– São as sentenças do Senhor devidamente anotadaspor Mateus! É um documento raro, pois está em aramaico.Permitir-me-ias copiá-lo?

– Naturalmente, desde que mo devolvas; é umtesouro que desejo legar ao meu neto.

No mesmo instante, Heráclides interveio, dizendo:– Lucannus, colocarei à tua disposição dois servos

meus, peritos na arte de escrever. Começarão hoje mesmoe, pelo tamanho do rolo, terminarão amanhã à noite, oudepois de amanhã até a hora sexta.

– Ficar-te-ei eternamente grato. Agora, porém,vamos ao que desejo saber. Foi aqui que nasceu o nossoAmado Mestre. Gostaria de saber se tens conhecimentodas coisas que então se passaram.

Os olhos do ancião se encheram de lágrimas, quecomeçaram a lhe escorrer pela face, molhando-lhe a barbagrisalha.

– Naturalmente que sei, pois fui testemunha dosfatos extraordinários que então aconteceram.

Lucas se levantou surpreso:– Glória a Deus! Conta-me, então, tudo o que

ocorreu sem faltar nada.– Satisfarei o teu desejo com muita alegria; sempre

me faz um enorme bem recordar aquele episódio sublime.E, com o olhar se perdendo por detrás do horizonte

das recordações, o velho pastor contou, para o embevecidomédico, todos os acontecimentos daquela noite de bênçãosinesquecíveis. Depois, visitaram o local onde os EspíritosSublimados haviam aparecido com seus cânticos transcen-dentes. Em seguida, foram à gruta, onde Lucas se deixou

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envolver pelas vibrações que ainda impregnavam oambiente.

Mais tarde, Lucas, no quarto que Heráclidescolocara à sua disposição, escreveu com mão trêmula deemoção:

Existiam uns pastores que, naquela região, passavama noite em claro, guardando seus rebanhos. Subita-mente, apareceu diante deles um mensageiro do Se-nhor, e a luz de Deus os circundou de luminosidade, eeles foram tomados de grande medo. Mas o mensa-geiro lhes disse: Não temais, porque eis que vos anun-cio uma boa nova, que será para todo o povo: nasceuhoje, para vós, o Salvador, que é o Ungido e Senhor,na cidade de Davi. E isto vos será como sinal: achareisa criança envolta em faixas e deitado numa manje-doura. E logo juntou-se ao mensageiro uma grandemultidão do exército celeste, louvando a Deus e di-zendo:Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens deSua eleição.Depois que os mensageiros retornaram para o céu,disseram-se os pastores: Vamos, pois, a Belém e veja-mos este acontecimento que o Senhor nos deu a co-nhecer.Foram a toda pressa e encontraram Maria, José e omenino, deitado na manjedoura. Tendo visto tudo,contaram o que lhes fora dito a respeito do menino. Etodos que ouviam se maravilhavam do que contavamos pastores. Maria guardava com cuidado todas essascoisas, meditando-as em seu coração.Voltaram, os pastores, louvando e glorificando a Deuspor tudo o que acabavam de ver e ouvir, assim comolhes fora dito 56.

56 Lc 2, 8-20.

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A Circuncisão

Naquele dia, o Templo estava praticamente vazio.Poucas pessoas conversavam no pórtico de Salomão esomente dois sacrifícios tinham sido solicitados aos sacer-dotes; mesmo assim só se realizariam no fim da tarde.

Quando José e Maria chegaram, Jesus dormiatranqüilamente nos braços dela. Atraíram poucos olharescuriosos, até mesmo porque o casal de pombas que adqui-riram no pórtico denunciava que não eram pessoas ricas.

Quando atravessavam o átrio dos gentios em direçãoao local onde se praticava a circuncisão, foram abordadospor um homem idoso, cujos olhos desfocados como secontemplassem paisagens ou acontecimentos invisíveisapresentavam o estado alterado de consciência que carac-teriza o transe mediúnico. Estendendo as mãos, tomou acriança dos braços da mãe, que, surpresa, não esboçounenhuma reação.

Com lágrimas a escorrer pela face emurchecida pelosanos, ele levantou os olhos para o alto, orando:

Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, segundoa tua palavra, pois os meus olhos viram a tua salva-ção, a qual tu preparaste diante da face de todos ospovos: luz para revelação aos gentios e para a glóriado teu povo de Israel.57

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57 Lc 2, 29-32.

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Maria e José estavam sem entender o que se passava.Acontece que Simeão, médium notável desde a mais tenrainfância, havia recebido, ainda jovem, uma revelação espi-ritual de que não desencarnaria sem ver o Messias. Naqueledia, tivera um desdobramento espiritual, em que conversaracom seu mentor, que ele sabia ter sido, numa encarnaçãopassada, o profeta Samuel, que ungira os dois primeirosreis dos Hebreus, Saul e Davi, sendo Saul protagonista dadiscutida manifestação mediúnica em Endor.

Séculos depois, reuniam-se outra vez, o primeirorei, completamente redimido dos seus erros de séculosatrás – depois de muitas vidas de expiações e dedicaçãoao bem –, e o seu ungidor. O profeta desencarnado lhedisse, na oportunidade:

– Simeão, o dia de hoje será o da tua libertação.O ancião compreendeu imediatamente que ele

falava de sua morte e replicou:– Mas não me disseste, durante a visão no dia do

meu Bar-Mitzvá, que eu só voltaria ao seio de Abraãodepois de tocar no Messias com minhas próprias mãos?Isso não aconteceu ainda...

– Mas acontecerá horas antes de te despedires destavida. Portanto, prepara-te.

– Estou pronto como fiel servidor do Senhor, quesabes que sempre fui.

Nesse momento, acordou sentindo uma profundaalegria no coração. Ele teria o privilégio de ver o Salvadorde Israel. Por isso, levantou-se fazendo uma esmeradapurificação do corpo com as abluções prescritas na Lei.Não tomou qualquer alimento e, abrindo a Tôrah dejoelhos, seus olhos caíram sobre a seguinte passagem:

O Senhor, teu Deus, suscitará do meio de ti, dentreteus irmãos, um profeta semelhante a mim (Moisés);

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a ele ouvirás. Conforme tudo o que pediste ao Senhorteu Deus em Horeb, no dia da assembléia, dizendo:Não ouvirei mais a voz do Senhor, meu Deus, nemmais verei este grande fogo para que não morra. En-tão o Senhor me disse: Falaram bem naquilo que dis-seram. Do meio de seus irmãos, suscitar-lhe-ei umprofeta semelhante a ti, porei as minhas palavras nasua boca, e ele lhes falará tudo o que eu ordenar. E dequalquer que não ouvir as minhas palavras, que elefalar em meu nome, eu exigirei contas 58.

Soluços espoucaram no peito de Simeão, que viaali confirmada a visão que tivera no sonho. Assim, vibran-do da mais elevada emoção, lançou sua mente aos em-píreos numa prece que era só de louvor e gratidão. Quantotempo permaneceu nesse enlevo, ele não saberia respon-der. Voltou a si quando escutou, pela clariaudiência, a vozde Samuel, que lhe dizia: Está na hora. Vai ao templo.Ali, atravessando o átrio das gentes, encontrarás um casalcom uma criança nascida de oito dias, trazida para acircuncisão e cerimônia de purificação da mãe. Compra-rão, na entrada, um casal de pombos, pois não são ricos.Eu estarei contigo por todo o tempo.

Simeão, entregando o menino de volta à sua mãe,levantou os braços e suplicou as bênçãos de Deus para afamília. Depois, voltando-se para Maria, olhou-a profun-damente nos olhos, dizendo:

Eis que este é posto para queda e para levantamentode muitos em Israel, e para ser alvo de contradição.Sim, e uma espada trespassará a tua própria alma, paraque se manifestem os pensamentos de muitos cora-ções. 59

58 Dt 18, 15-19.59 Lc 2, 34-35.

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Os pais estavam aturdidos com o que se passava, e,em volta dos quatro, formara-se um pequeno grupo decuriosos, atraídos pelas declarações de Simeão em vozalta. Nem bem se calara o ancião, uma voz de mulher sefez ouvir: Glórias sejam dadas ao Deus de Abraão, pelaalegria que dá ao seu povo! O Salvador de Israel está entrenós. Este menino haverá de estender a misericórdia divinaa todos os povos.

Os circunstantes, freqüentadores habituais doTemplo, reconheceram a mulher que se aproximou deMaria e José como

Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era avançadaem idade, tendo vivido com o marido sete anos desdea sua virgindade. E era viúva, de quase oitenta e qua-tro anos. Não se afastava do Templo, servindo a Deusdia e noite, em jejuns e orações. 60

Simeão, Ana e o pequeno cortejo de curiososseguiram o casal à cerimônia de circuncisão por entrecomentários discretos. Quando o prepúcio foi cortado, ochoro da criança encheu o recinto. Jesus acabara de entrarpara a Sagrada Aliança, feita por seus mensageiros comAbraão há quase dois mil anos...

60 Lc 2, 36-37.

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Entre os Doutores

Sob a lua cheia daquele mês de Nisã, José, sentadono banco rústico, fitava o horizonte distante para os ladosdo Genesaré, onde diminutos, fugazes, cambiantes eesparsos pontos luminosos indicavam a localização demoradias nos altos platôs da Gaulonítida. De dentro dacasa, ampla, mas simples, vinha aquela mistura de apelos,gritos, risadas e correrias das crianças menores e, a interva-los, a voz de Maria ralhando com um e com outro, bus-cando acabar com a confusão doméstica que se formavano instante em que era dada a ordem de irem todos para acama. Seus lábios esboçaram um sorriso de satisfação.Deus o abençoara com uma prole numerosa e sadia, comuma mulher bonita, virtuosa e trabalhadora. Nisso, a belavoz do seu filho mais velho se fez ouvir, chamando a mãepara lhe dar qualquer coisa.

Como se fora movida por um impulso mágico, suamemória fê-lo recordar-se dos acontecimentos da viagemque fizera, anos atrás, a Jerusalém, com sua mulher e seusfilhos para celebrar a Páscoa, como fazia todos os anos, ecomemorar o fato do seu primogênito ter se tornado umBar-Mitzvá61. Ele, como qualquer pai judeu, ficara

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61 Filho do preceito; era o rito de passagem hebraico quando a criança se tornavaadulto, responsável por seus atos diante da lei.

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orgulhoso por ver que o seu Jesus estava se tornando umhomem, mas, naquela oportunidade, pregara-lhes umgrande susto. Quando pensava no assunto, sentia ainda,se bem que muito amenizada, a aflição que lhe atormentaradurante as horas de angustiosa procura do filho querido.

Jerusalém, como sempre acontecia na época daPáscoa, fervilhava de gente de todas as partes do mundo.Parecia uma imensa Babel, onde se podiam ouvir os maisdiversos idiomas ou escutar o aramaico falado com ossotaques mais variados possíveis. Por todas as ruas encon-travam-se mercadores e comerciantes, mas os lugares ondemais se concentravam eram no Templo e sua vizinhançae por todo o Vale dos Queijeiros. As portas da cidade e aregião do Monte das Oliveiras serviam de acampamentoe de imensa feira livre, onde se vendiam e compravam asmais diferentes, exóticas ou prosaicas mercadorias. Apesarde acostumados a verem o mesmo espetáculo todos osanos, ele sempre se deixava empolgar por aquele climade confusão e inquietação. Hospedaram-se, como decostume, em casa de parentes no Monte Sião, parte nobreda cidade.

Foram ao templo todos os dias da semana, obrigaçãoimpreterível de qualquer judeu quando estava na CidadeSanta. Cumpriram os rituais prescritos, participando dossacrifícios e orações com devoção.

Ele e Maria compraram vários objetos necessáriosà vida cotidiana, que só tinham oportunidade de encontrarali ou quando, eventualmente, alguma caravana demercadores passava nas imediações de Nazaré.

A comemoração da Páscoa fora, como sempre, ogrande momento da viagem.

Após o pôr-do-sol, ou seja, às primeiras horas dodia quinze de Nisã, como acontecia todos os anos, Jasub,

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o dono da casa, começara a celebração. No grande salãodo andar superior da residência, reuniam-se umas vintepessoas, sentadas em almofadas ou sobre o imenso tapetepersa, em volta da grande mesa.

Iniciando as festividades, foi servido o primeiro dosquatro copos de vinho que marcavam as etapas do ritual,preparado, segundo instruções tradicionais, com duaspartes de água e uma de vinho. Após o Qiddush62, forampronunciadas as duas bênçãos iniciais:

Louvado sejas, Javé nosso Deus, rei da Terra, que cri-aste o fruto da vinha e Louvado sejas, Javé nosso Deus,rei da Terra, que deste a Israel, teu servo, dias de festapara alegria e comemoração. Louvado sejas, Javé, quesantificas Israel e os tempos.63

Fora então bebido o primeiro copo. Jasub, prosseguindo,lavara as mãos e distribuíra as ervas amargas e o molhoespecial com que eram comidas, os pães ázimos e asverduras, pronunciando uma ação de graças e provandoos alimentos. Logo depois foi servido o cordeiro assado,comprado no décimo dia de Nisã, que, de acordo com asprescrições da Torah, tinha um ano de idade, macho, semdefeito algum. Havia sido assado em fogo vivo, presopor uma vara de romãzeira. Com o seu sangue, foramaspergidos os umbrais e a verga da porta com um feixe dehissopo, em recordação ao trágico dia em que o Senhordestruíra os primogênitos egípcios, poupando os de Israel.

Antes de se comer o carneiro, fora servido o segundocopo de vinho, e o dono da casa explicara o sentido dacelebração64. Emocionados, como em todos os anos,

62 Bênção do dia festivo e da primeira taça.63 DANIEL-ROPS. Jesus no seu tempo. Porto-Portugal: Liv. Tavares Martins,

1950. p. 509.64 Haggadah.

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reviveram a epopéia do Êxodo, principalmente o dia tensoe difícil da fuga das terras do Faraó, cantando, com todos,a primeira parte do Hallel65. Beberam o segundo copo,lavando as mãos e pronunciando uma oração de louvor aDeus, passando a comer o cordeiro com ervas amargas epão fermentado, que embebiam num molho feito comdiversas frutas, o haroset66. Comido todo o animal, poisnada podia sobrar para o dia seguinte, lavaram-se as mãose foi preparado o terceiro copo de vinho, o copo de açãode graças por causa do agradecimento que se fazia a Deus.Quando foi servido o quarto copo, cantaram a segundaparte do Hallel67 numa expressão de esperança na vindado Messias e na restauração do Reino de Israel,terminando assim a celebração.

Dois dias após a Páscoa, todos os componentes dacaravana se encontraram fora dos muros da cidade, emfrente à Porta de Damasco, alegres e felizes.

Com a chegada do último componente, o grupopartiu em demanda aos seus lares na Galiléia. As crianças,tanto seus filhos como os dos outros, dividiam-se embandos alegres a correrem em torno e por entre os gruposde pessoas e animais. Caminharam toda a madrugada eparte do dia, vencendo cerca de dez mil passos (em tornode quinze quilômetros), até parar para descanso e almoço.Nesse momento, quando se reuniram todos os seus filhos,percebera, juntamente com Maria, a ausência de Jesus.Era um fato inusitado, pois ele era sempre o que primeirose apresentava nessas horas, pronto para colaborar emqualquer tarefa, sem exigências nem reclamações, sempre

65 Salmo 112.66 O haroset era feito com figos, tâmaras, uvas passas, maçãs e amêndoas,

temperados com vinagre.67 Salmos 113-117.

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alegre e contente, estimulando todos com palavras deincentivo ou, com sua voz bela e cheia, cantando salmosque harmonizavam o ambiente. A princípio, sem maiorespreocupações, mas com uma crescente aflição à medidaem que se frustrava a busca, procuraram-no por toda acaravana, sem que ninguém o houvesse visto em momentoalgum da viagem.

Deixando os outros meninos aos cuidados deparentes para que os levassem a Nazaré, retornara comMaria à casa de Jasub, esperando encontrá-lo ali. Novadesilusão os aguardava; não havia sinal do filho, e nin-guém lhe sabia o paradeiro.

Sentira o coração se estraçalhar de dor. Pela suamente aflita, passara a idéia terrível de que seu queridoprimogênito poderia ter sido seqüestrado por mercadoresde escravos, o que era habitual, para ser vendido em outrasregiões do império. Orou, como nunca, ao Senhor, supli-cando-lhe afastar de si e de sua família tamanha provação.

Enquanto Maria ficava em casa orando por entresoluços de aflição, sendo confortada pelas mulheres dacasa e da vizinhança que buscavam envolvê-la em solida-riedade e carinho, ele, Jasub e vários amigos percorriamtodos os cantos de Jerusalém e seus arredores, buscandouma informação sobre o jovem.

Foram quase três dias de ansiedade e dor. Apareciaminformações que lhes acendiam a esperança, mas setransformavam em desilusões que se multiplicavam numacascata interminável de ansiedade e frustração. Jádesiludido, tivera notícia, por um amigo de Jasub, queum jovem com a descrição do seu Jesus fora visto nasimediações da Escola do Templo. Em seu íntimo, sentirauma forte certeza de que daquela vez o encontraria.Tomara Maria e, com vários parentes e amigos, correraao lugar indicado, encontrando o filho amado.

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Assentado no hemiciclo de estudantes, em volta devários Rabis, mantinha uma discussão religiosa com eles.Durante algum tempo, assistiram, admirados, comodialogava com os encanecidos mestres, com proposiçõesclaras e lógicas, arrancando-lhes expressões de assombro.Respondia-lhes as questões de forma pronta e irretorquí-vel, apresentando argumentos simples, porém definitivos.

Quando lhes percebeu a presença, despediu-se dosmestres e alunos com sua habitual gentileza esimplicidade, indo-lhes ao encontro. Não chegara a dizer-lhes nada, pois Maria se adiantara, num arroubo: “– Meufilho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai eeu, aflitos, procurávamos-te” 68.

Ao que ele, gentil, mas com firmeza, respondera:“– Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu deveriaestar na casa de meu Pai?” 69

A resposta lhe causara um impacto. Jesus semprefora uma criança diferente das outras. Responsável,atencioso, delicado, trabalhador, dedicava-se, desde a maistenra infância, aos assuntos religiosos com toda a aplica-ção. Suas brincadeiras eram sempre puras e nunca preju-diciais, preferindo estar sempre perto das pessoas quemantinham conversações edificantes e em torno de Deus.Nunca lhe havia surpreendido em mentiras ou gestosmenos dignos, de qualquer espécie. Sempre chamara oSenhor de Pai, mostrando para com ele uma devoção semlimites, que o deixava satisfeito, pois Deus era a razão deser do Povo de Israel. Naquele momento, José teve suasreminiscências interrompidas pela visão da silhueta dofilho, que se recortava na noite estrelada, ao sair da casa ese dirigir, como habitualmente o fazia, aos lugares mais

68 Lc 2, 48.69 Lc 2, 49.

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altos do monte onde Nazaré repousava. Dali só retornariaem plena madrugada.

– O que fazia?Quando lhe pusera essa questão, ele, com um sorriso

terno, respondera:– Converso com meu Pai Celeste!

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A Despedida

A aurora surgia no horizonte pelos lados do MonteCarmelo, fazendo esmaecer o brilho das estrelas napromessa ridente de um novo dia primaveril naquele finaldo mês de Adar.

Pelo Caminho do Mar, pelo Caminho Real, peloCaminho do Norte, pelo Caminho de Damasco e demaisestradas da Palestina, as caravanas já haviam recomeçadoseu andar lento, cujo ritmo era marcado pelo caminhardos animais carregados, na eterna faina de atender àsnecessidades reais ou imaginárias dos seus usuários.

Nazaré, engastada na vertente da colina onderepousa serena e bucólica, também desperta para oslabores de um novo dia. Suas casas simples e humildesdeixam escapar a dissonância onomatopaica dos seushabitantes a se prepararem para as tarefas monotonamenterecorrentes do cotidiano.

A brisa fresca da manhã transporta a umidade doorvalho noturno que, à semelhança de pingentes de cristal,perolam a superfície das folhas, flores e ervas, e ativam ocheiro forte de terra umedecida.

À distância, escuta-se o balido das ovelhas como achamar seus pastores para conduzi-las às regiões maisbaixas, onde as esperam os campos cobertos de gramíneasvariadas.

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À porta de singela, mas formosa moradia, desenrola-se uma cena singular. Uma mulher de meia idade, de portealtivo e beleza suave, dialoga com um moço no auge dosseus trinta e seis anos, cujos traços fisionômicos caracteri-zam a condição de filho. O semblante da bela matrona seapresenta triste e ansioso, com duas lágrimas, diminutosaljofres de dor a deslizarem mansamente pela faceacetinada, enquanto o moço, sereno, busca transmitir-lheconsolo e tranqüilidade.

– Meu filho, reconsidera tua decisão de nos deixar.És o sustentáculo de todos nós, que te amamos tanto...

– Sabes que não é bem assim, mãe. Todos os meusirmãos já estão trabalhando ativamente, minhas irmãsestão casadas, com exceção de Noemi, que se casa nosmeados de Nisã, em Caná, com Abdias Bensalim, nossoprimo. E a ela já prometi estar presente às bodas.

– E o amor que temos por ti não te diz nada?...– Diz muito, porque também amo todos com muita

ternura e sempre agradeço ao Pai a abençoada família queme deu. Mas amo da mesma forma todos os seres humanose preciso transmitir-lhe a Boa Nova que o Pai me confiou.

– Nunca consegui entender essas tuas idéias...– Um dia entenderás. Agora, é preciso ir ao encontro

de João. Mas nunca te abandonarei nem aos meus irmãos.Estaremos sempre ligados pelo afeto, mas é necessárioque se cumpra a Vontade de Deus, e ela é de que euinaugure a nova era proclamada por Isaías e outrosprofetas.

– Mas, filho, meu coração se angustia com terríveispresságios. Ainda esta noite, no momento em que conseguidormitar, vi Simeão, o homem de Deus que fez profeciassobre ti no Templo de Jerusalém quando da tua circun-cisão. Ele me olhava com um sorriso triste e compassivo,

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repetindo uma frase que me disse naquela ocasião e quenunca consegui esquecer: e tua alma será trespassada deuma espada... . Ó meu filho, tenho tanto medo...

– Mãe, não te preocupes antes do tempo. Basta acada dia o seu problema. Quando Deus solicitar de nós onecessário sacrifício, então enfrentaremos a situação coma devida atitude. No momento, é tempo de trabalhar nasemeadura do bem. Vê como a primavera cobre toda aterra de flores. A nossa amendoeira está toda enfeitada,preparando o milagre do fruto e da semente, promessasde continuação da vida. Da mesma forma, mãe querida, oReino de Deus irá fazer as almas se enflorescerem paraque se produzam os frutos do Amor, num amanhã deFelicidade e Paz, quando a humanidade formar uma sófamília, embalada pelos cânticos da Fraternidade e daConcórdia. Até mais ver, mãe. Beija todos os meus irmãospor mim.

– Mas não levas nada para tua viagem: nem dinheiro,nem roupas, nem alimento... Retrucou a sofrida mãe, comnatural preocupação, como também para prolongar um poucomais aquele instante com seu amado filho. E ele, que jácomeçara a andar, detendo-se um pouco, disse-lhe:

– Meu Pai proverá todas as minhas necessidades.Não veste ele as flores do campo com roupas de belocolorido? e não alimenta as aves e os animais, que nãosemeiam, nem colhem, nem estocam alimentos? Damesma forma, terei tudo o que preciso, pois Deus estácomigo, como eu estou com ele.

E, enquanto a pobre mulher soluçava nas tristezasda separação, o moço se pôs a descer pelo caminho quelevava em direção ao Lago de Genesaré.

Assim, no anonimato daquele dia distante, iniciava-se a epopéia da Boa Nova. A Humanidade, nas várias

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partes do mundo, começava ou prosseguia mais um diaem suas atividades boas ou más, ignorante de que, a partirdele, o mundo não mais seria o mesmo. Jesus assumia,naquele instante, Sua missão sagrada de acender a LuzDivina em pleno habitáculo das trevas. A ignorânciaespiritual começava a contar os dias para sua extinção.

Nos Planos Espirituais Superiores, os Espíritosenobrecidos cantavam hinos de glória ao Criador,jubilosos pelo evento transcendente que começava.Legiões de entidades angelicais formavam um cortejoluminoso, acompanhando os passos do Mestre, invisíveispara os olhos comuns, mas evidentes à visão superior doNazareno, que, com eles, comungava o estado de oraçãoem louvor ao Senhor dos Universos, sob cujas bênçãos atarefa tinha início.

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Elias Retorna

Corria o ano de 28. Deitado sobre a pele de cameloestendida no chão, que lhe servia de cama, João sepreparava para começar sua rotina diária, repetida há quasetantos anos quanto sua própria idade, que era no momentotrinta e cinco anos. Sim, começara os exercícios espiri-tuais, jejum, oração, estudo das Sagradas Escrituras etrabalho árduo, aos seis anos de idade quando o Pai ocolocara na comunidade ascética dos Filhos da Luz, nasimediações do Mar Morto.

Antes de se levantar para realizar as abluções rituais,já recitara o Schemá Yitzrael – Ouve, ó Israel. O Senhorteu Deus é Um só. Amarás o Senhor teu Deus de todo oteu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente–, obrigação de todo judeu do sexo masculino, pela manhãe pela tarde. Às mulheres, era proibido, sob severasameaças, fazê-lo.

Antes de se erguer para executar as obrigaçõeshabituais, o filho de Zacarias meditava no sonho que tiveraaquela noite. Vira-se como o profeta Elias, a exorar fogodo céu para consumir a vítima colocada sobre umimprovisado altar de pedra, sobre o qual ainda derramaraágua para tornar o feito mais notável. Ainda escutava osgritos de assombro e admiração da multidão, bem comoas súplicas de misericórdia e piedade dos sacerdotes deBaal, vencidos, que tinham suas cabeças cortadas nas

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margens do Quisom, cujas águas se tingiam com o ver-melho rubro do sangue derramando em profusão peloscorpos decapitados a se contorcerem em espasmos finais.

A cena fora extremamente real, sem os elementosesdrúxulos e mirabolantes dos sonhos normais. Talvez –imaginava – fosse porque vinha, há quase dois meses,atraído para o estudo dos feitos do grande profeta, cujafigura enérgica, extremamente fiel a Deus, era-lhe parti-cularmente querida, a ponto de conhecer de cor todas aspassagens de sua vida, que sempre lhe pareciam maisrecordações do que algo aprendido.

João se preparava para levantar quando o quartofoi invadido por uma intensa luz azul, entremeada comreflexos dourados, que, apesar de extremamente brilhante,não lhe ofuscava a visão. No centro da luminosidade,configurou-se um ancião de face austera, mas que refletiauma grande paz. Espantado, exclamou:

– Meu pai!Um sorriso fugaz atenuou a austeridade do rosto da

entidade ante o reconhecimento:– Sim, meu filho. Respondeu, prosseguindo:

Chegou a hora de dares início à missão para a qual viesteà Terra, passando por tão longa preparação.

Na mente de João, perpassou rapidamente uma partedo dito profético que o Senhor, como aprendera desde amais tenra infância, teria falado por intermédio de seu paiquando da sua circuncisão, e que tinha ouvido repetidasvezes por ele até sabê-la de memória:

E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; poisirás à frente do Senhor, para lhe preparar os caminhospara transmitir ao seu povo o conhecimento da salva-ção pela remissão dos seus erros.70

70 Lc 1, 76-77.

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O Espírito, dando a entender que lhe conhecia ospensamentos, prosseguiu: Isso mesmo. Sairás adiante doMensageiro de Deus, revivendo a tradição profética donosso povo, interrompida por mais de quatro séculos. Échegado o momento sobre o qual Moisés e os IntérpretesEspirituais dos Filhos de Israel falaram. O Messias já seencontra no seio do seu povo e está pronto para começarseu ministério redentor. Vai, meu filho, e prega aosdescendentes de Abraão que é chegado o Reino dos céus.Tua palavra deverá dirigir-se a todos, incentivando-os amudar a forma de proceder. Combate os vícios, a hipo-crisia, os sentimentos menos dignos. Usa, como sinal datransformação moral, a imersão em água. Os que searrependerem de suas transgressões e aceitarem o roteirode transformação moral deverão ser mergulhados, comosímbolo da morte do homem velho e corrompido; e, aoemergirem, serão como renascidos, iniciando uma vidanova no cumprimento da Lei e da Vontade de Deus. Nãoseguirás, em teus ensinamentos, os caminhos da liderançaapodrecida do Sinédrio nem entrarás pelos caminhostortuosos das discussões estéreis em torno de preciosismoslegalistas. Cumpre teus deveres com abnegação e devota-mento e te prepara para sofrer o ataque dos inimigos dobem, que terminarão por matar teu corpo físico. Porverberar os desatinos dos poderosos, far-te-ão provar oferro da espada, pelo qual resgatarás um erro cometidono passado.

Ante a referência, veio, à mente do moço, o sonhoque tivera. Ao que a entidade respondeu sem que eleverbalizasse: Sim. Como Elias, fizeste destruir a vida físicados teus opositores num momento de exacerbação dodever. Agora redimirás tua culpa assim que tiveresconcluído tua missão de preparador dos caminhos do

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Senhor. Serás a voz do que clama no deserto. Preparai oscaminhos do Senhor. Endireitai as suas veredas. Quandoele aparecer diante de ti, reconhecê-lo-ás porque, noinstante em que se submeter à imersão, verás os céus seabrirem e, diante de tua visão espiritual, o Espírito doBem, no formato de uma pomba, se fará visível. Terásencontrado o Messias. Daí por diante, tua tarefa estaráterminada. Ele crescerá, porque seu trabalho é infinita-mente mais importante, e tu te recolherás, pois os deveresque te foram confiados terão atingido sua finalidade.Voltarás ao Mundo Espiritual por incitamento da que sefez tua inimiga, e que ainda mantém os sentimentostoldados pelo ódio. Retornarás, porém, triunfante, livredos débitos contraídos, para prosseguir na jornada deascensão espiritual. Que o Senhor te conduza pelo espi-nhoso, mas gratificante, caminho do serviço do Bem. Seique não esmorecerás, pois já conquistaste a virtude dadedicação absoluta ao Ideal Superior. Estarei sempre,como estive até agora, ao teu lado, inspirando-te em todosos momentos, com amor e muito carinho.

E diante dos olhos enevoados de pranto de João,Zacarias desapareceu lentamente, deixando o ambienteimpregnado de perfume delicado e suave.

O precursor, então, após orar por muito tempo,agradecendo a Deus pela tarefa confiada, levantou-seresolutamente e, dirigindo-se ao encontro do dirigente dacomunidade, comunicou-lhe que se afastava para atenderao chamamento de Deus, dele recebendo a pronta aquies-cência e bênçãos.

Após alguns dias, nos arredores de Beit-árabat,caravaneiros e viajantes escutavam, admirados, aquelehomem magro, de longos cabelos negros e barba hirsuta,vestido com uma roupa feita com pelo de camelo, presa

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por um largo cinturão de couro, clamando: “Mudai a vossamente, porque é chegado o Reino dos céus” 71.

Sua palavra desataviada e contundente penetrava ocoração dos que o ouviam, pois nele sentiam a força moraldos legítimos homens espirituais, cuja vida representa osustentáculo de suas afirmativas.

Em breve, as multidões o buscavam porque suafama se espalhava rapidamente. Eram habitantes deJerusalém, das regiões ribeiras do Jordão, da Judéia e dalongínqua Galiléia. A todos, ministrava a palavra darenovação dos hábitos e costumes e a verdadeira integra-ção nos preceitos divinos. E aos que lhe aceitavam adireção espiritual e confessavam seus erros, imergia naságuas do Jordão, como seu pai Zacarias ordenara, incutin-do-lhes a idéia da transformação para o Bem.

Mas, diante dos representantes das diversascorrentes religiosas dos Judeus – Escribas, Fariseus,Saduceus e Sacerdote –, mudava de tom:

Geração de serpentes venenosas, quem vos instruiu afugir da ira que virá? Produzi, portanto, frutos dignosda mudança na maneira de pensar. E não penseis, di-zendo dentro de vós mesmos: temos por pai a Abraão,porque eu vos digo que Deus pode, destas pedras, fa-zer se elevem filhos a Abraão. Porém já está colocadoo machado à raiz das árvores; toda árvore que nãoproduzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo.Eu, verdadeiramente, mergulho-vos em água, comosinal de mudança na forma de pensar, porém aqueleque está vindo após mim é mais poderoso do que eu,do qual não sou digno de carregar as sandálias; elevos imergirá no Espírito Santo (energia espiritual pura)e em fogo. Com a pá de joeirar que tem na mão, lim-pará sua eira, reunirá o trigo no celeiro, mas a palhaqueimará, completamente, em fogo inextinguível. 72.

71 Mt 3, 2.72 Mt 3, 7-12.

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Assim admoestados, os líderes religiosos dos judeusse enfureciam, mas o povo, que vivia a lhes suportar asimposições difíceis e os longos ditirambos moralistas,vibrava de alegria por vê-los escutando tais coisas sempoder retrucar, porque ficavam impotentes diante daverdade pronunciada por alguém com a devida autoridadeespiritual.

Estava ali um profeta digno do nome, falando eagindo como aqueles sobre os quais falavam as Escrituras.

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O Início da Nova Era

João havia terminado de aplicar o ritual da imersãoem um grupo de novos adeptos, quando uma sensaçãoinusitada o instou a se voltar e olhar para a margem, ondea multidão se demorava expectante. Seus olhos pousaramsobre um homem, cuja figura o destacava da aglomeração.Era alto, tinha cabelos longos – denunciando o Nazireu,olhos castanho-claros como os cabelos e a barba, que,bem delineada, terminava em duas pontas sob o mento.Sua pele amorenada pela exposição constante ao sol daPalestina deixava entrever o azul das veias sob a epiderme.Todo o seu ser exsudava tal magnetismo pessoal que aspessoas em torno se afastaram, reverentes e curiosas.

Assim que os seus olhos se encontraram, o desco-nhecido tirou a túnica e a capa, ficando semi-desnudo, ese dirigiu ao encontro do Batista na clara intenção de serpor ele mergulhado nas águas do Jordão. No mesmomomento, o Precursor ouviu, mediunicamente, a voz deseu pai, que lhe sussurrava aos ouvidos: Eis o Enviado doSenhor.

Quando Jesus chegou junto a ele, João inclinoulevemente a cabeça, baixando os olhos, e disse:

– Por que vens a mim para a imersão? Ela é umsímbolo para os que estão manchados pelos erros. Tu,porém, és puro. Eu é que deveria ser mergulhado por ti,

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pois sou uma alma impura. Estou pronto para receber detuas mãos a purificação.

O Mestre, porém, lhe retrucou:– Filho de Zacarias! Conheço a beleza de tua alma

devotada e fiel. Se, no passado, cometeste ações duras,foi por excesso de zelo para com as coisas de Deus e nuncapor maldade. Por isso, vamos cumprir o que foi progra-mado pelos que são responsáveis pelo destino da Terra.

Ao ouvir tais palavras, João, com os olhos mareja-dos de pranto, que um imenso júbilo fazia surgir, colocou,com imenso respeito, a mão direita sobre o ombro esquer-do do Mestre e, com uma leve pressão, fé-lo mergulharnas águas límpidas do rio, soerguendo-o de imediato.

Findo o ritual, Jesus lhe disse: Que a Paz continuehabitando em seu coração generoso. E retornou à margem,onde colocou suas roupas, enquanto o Batista o seguiacom olhos de felicidade, incapaz de pronunciar palavra,imerso em delicadas e indescritíveis vibrações espirituais.

Nos dias que se seguiram, o Mestre era um ouvinteatento das palavras de João, que, mais inspirado e docedo que nunca, transmitia mensagens de otimismo eesperança àqueles que o vinham ver e escutar.

No dia seguinte, lá pelas quatro horas da tarde,quando apenas um seleto grupo de discípulos o cercava,o mergulhador, vendo Jesus que passava por perto,apontou-o, dizendo num ímpeto: “Eis o Cordeiro de Deus,que tira os erros do mundo” 73. E se dirigindo a dois emespecial: Ele é o Esperado, por quem Israel tem ansiadodesde os tempos de Moisés.

Tomados de um impulso irresistível, fizeram mençãode se levantar para ir ao encontro do indicado, mas,

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titubeando, olharam para o Precursor, que, com um sorrisoe leve meneio de cabeça, incentivou-os a continuar.Alegres com a permissão, levantaram-se e, apressando opasso, dirigiram-se ao encontro de Jesus.

Ao chegarem perto dele, tímidos, não sabiam comoabordá-lo. O Mestre, todavia, voltando-se, olhou-os comum sorriso, dizendo:

– João e André, dois bravos pescadores galileus, oque desejam de mim?

Surpresos por se ouvirem chamados pelo nome,ficaram ainda mais embaraçados; João, porém, o maisnovo dos dois, conseguiu balbuciar:

– Gostaríamos de conversar contigo, Senhor.Ao que Jesus respondeu:– Vinde comigo até Betânia, e conversaremos pelo

caminho.Enquanto andavam, Jesus, com simplicidade, come-

çou a perguntar a André sobre Simão, o seu irmão maisvelho, e a respeito de outros dos seus parentes, citando-lhes os nomes e fazendo comentários sobre suas personali-dades. Com João, comentou sobre Tiago, seu irmão, seupai Zebedeu e sua mãe.

Os dois, profundamente admirados, respondiam,intrigados como aquele homem podia conhecer tanto sobreos detalhes mais íntimos deles e de seus parentes, suasrelações comerciais numa empresa de pesca, e assimsucessivamente. Sem dúvida, estavam diante do Messias,como o Batista sugerira.

Em Betânia, foram levados por Jesus à casa de Lázaro,antigo conhecido da família do Mestre, ao qual devotavaimensa afeição, bem como a suas irmãs, Marta e Maria.

Recebidos carinhosamente, permaneceram por trêsdias na companhia do Mestre, que, a cada momento,

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empolgava-os com seus pensamentos sobre os diversosincidentes da vida cotidiana e dos relacionamentos entreas criaturas. À noite, reunidos no pequeno jardim internoda casa, viviam momentos de intensa espiritualidade,cercados por vibrações doces e suaves. Testemunharamtambém as primeiras curas levadas a efeito por Jesus empessoas doentes, amigas da família de Lázaro, que eramtrazidas discretamente e atendidas pelo Mestre comimenso carinho. O episódio que mais os tocou foi o deuma criança de cinco anos, parenta de Lázaro, que nasceracega. Marta conseguiu trazê-la, sem dizer aos pais omotivo. Levou-a até Jesus e, ante o assombro dos circuns-tantes, disse:

– Senhor, sei que o teu coração generoso se compa-dece dos aflitos e sofredores. Eis Rute, filha única de nossoprimo Jefté.

Enquanto o Nazareno a tomava nos braços,beijando-lhe as faces rosadas e sentando-a sobre osjoelhos, a menina, com os olhos mortos, tateava-lhe o rostocom um sorriso singelo nos lábios.

Ela prosseguiu: Seus pais têm sofrido muito com asua cegueira. Rogo-te misericórdia para ela. Cura-a, paraque possa ver as belezas do mundo e trazer a alegria devolta aos seus genitores sofridos.

As lágrimas lhe sufocaram a rogativa, enquantoJesus, olhando-a com carinho, falou-lhe:

– Marta, és uma advogada eloqüente. Se tivessesnascido em Roma, superarias os preconceitos e brilhariasno Fórum para inveja dos teus colegas masculinos...

O riso espontâneo de todos, ante a observação ditacom humor sutil, quebrou a tensão que nublara o ambiente,e Jesus, beijando os olhos da menina, continuou: Rute,minha filha, seja feito como Marta solicitou.

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No mesmo instante, a criança soltou um grito dealegria e percorreu os olhos pelo recinto, com a admiraçãode quem enxerga pela primeira vez.

Os pais, que se mantinham à distância, acorrerampressurosos a exclamar em uníssono:

– Filhinha querida!E ela, que os via pela primeira vez, associando as

vozes às figuras que se projetavam sobre ela, abriu osbracinhos para recebê-los, dizendo:

– Papai! Mamãe!A emoção intensa arrancava lágrimas de todos que

ali se encontravam.Os pais, agradecidos, lançaram-se aos pés de Jesus,

procurando beijá-los, a clamar sua gratidão. O Mestre,contudo, delicadamente os ergueu, dizendo:

– Reservemos nossa gratidão ao Pai Misericordioso,único credor dela. Somente ele merece todos os nossoslouvores porque todo o Bem dele promana, e nós, seusfilhos, somos unicamente veículos de sua Infinita Bondade.

Cessado o natural tumulto, Jesus, com naturalidade,pôs-se a comentar: A Terra poderia ser um paraíso dealegria e felicidade, onde o sofrimento não encontrasseguarida. Os homens, contudo, a transformaram num valede lágrimas pelo egoísmo feroz que cultivam. A dor setornou companheira de todos por causa disso. É chegado,entretanto, o momento de iniciarmos a redenção humana.Será uma tarefa árdua e demorada, porque a maldade estáprofundamente arraigada no coração do homem. Mas oReino de Deus chegou para se implantar, definitivamente,no mundo porque assim o deseja nosso Pai Celeste. Tempovirá em que não mais assistiremos o triste espetáculo decriancinhas sofredoras, e a dor deixará de ser a companhei-ra constante de todos os seres. Para isso, deverão, todos

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os que aceitarem a mensagem libertadora do Reino,começar, como ensina João, a tarefa da transformaçãointerior, modificando os hábitos infelizes de maldade eegoísmo em sentimentos de fraternidade e amor, pois oPai é Amor Puro a nos envolver com Sua Providênciaconstante.

E dirigindo-se aos pais da menina: O Amor do Paivos socorreu em vosso infortúnio, mas não podeis descurarda educação de vossa filha. Ensinai-lhe a viver de acordocom a Lei Divina, incentivando-lhe o coração para ascoisas nobres que elevam o Espírito. Nenhum sofrimentoexiste sem causa, e o dela tem raízes no passado, emcircunstâncias que não poderíeis entender por agora.Requererá de vossa parte toda dedicação, para que ossentimentos infelizes que lhe motivaram a expiação nãoretomem sua força, fazendo-a resvalar para os mesmoscaminhos do mal, ontem trilhados. Que o vosso amor porela seja equilibrado, ensinando-lhe a disciplina dosimpulsos menos dignos e a valorização das virtudes, paraque não sejais defrontados amanhã por situações desagra-dáveis. De vossa parte, colocai também vossas vidas àdisposição do Pai, cumprindo-lhe os ditames e transfor-mando-as em oportunidade de elevação e enobrecimentode vossas almas.

Já alta noite, todos foram dormir enlevados e felizes.Na manhã seguinte, João e André, tocados de

entusiasmo, saíram em busca de Simão, irmão de André,que estava em Jerusalém. Ao o encontrarem, disseramcheios de alegria: “– Encontramos o Messias” 74.

Simão era do tipo emotivo. Assim que escutou orelato, entusiasmou-se:

74 Jo 1, 43.

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– Bem que eu sentia que os tempos são chegados.João sempre disse que está apenas preparando oscaminhos do Senhor. Vai começar uma nova era. Com oMessias, teremos condições de expulsar os malditosromanos de nossa terra, e a promessa feita por Deus aAbraão, de que sua descendência herdaria toda a Terra,vai se concretizar. Já pensou, irmão, que estamos sendoescolhidos para participar, como os que seguiram osMacabeus, de uma epopéia gloriosa?

E os três se puseram, por longo tempo, a discretearsobre o futuro promissor de riquezas e glórias, com asmentes incendiadas por sonhos grandiosos, enquantovoltavam para Betânia. Quando ali chegaram, sem quelhe anunciassem o nome do que lhes acompanhava,ouviram, espantados, o Mestre dizer: “Tu és Simão, filhode João, e serás chamado Cefas” 75.

Jesus colocava o apelido de pedra no oscilanteSimão, como a lhe indicar que precisaria ser mais firme ecomedido nas suas resoluções.

O mestre, então, programou partir para a Galiléiano dia seguinte, sendo acertado que ficaria morando,enquanto permanecesse em Cafarnaum, na casa de Simão.E assim foi feito.

Quando estavam em caminho, encontraram umamigo dos novos companheiros do Nazareno, que tambémera discípulo de João. Correram ao seu encontro, contan-do-lhe a respeito do Messias, que haviam encontrado, ecomo o Batista lhes havia esclarecido a respeito. Trouxe-ram-no, pois, a Jesus, que, pousando nele os olhos lúcidose penetrantes convidou-o, dizendo apenas: Segue-me76.

75 Jo 1, 42.76 Jo 1, 43.

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Ao que Filipe, pois assim se chamava, aquiesceuprontamente, sentindo que, de fato, estava diante doPrometido. Ele era conterrâneo de André e Simão, poisnascera em Betsaida, na margem do Jordão onde o rio seabre para formar o Lago da Galiléia.

Os quatro amigos retornavam imersos em profundafelicidade. Em chegando a Cafarnaum, dirigiram-se logoà casa de Simão, acorrendo João à sua casa para dar a boanotícia e levar seus familiares para conhecer o Mestre.Foram encontros cheios de emoção. O Rabi, com simplici-dade, chamou os recém-chegados pelos nomes, sem queos soubesse previamente, inquirindo sobre parentes distan-tes, deixando-os espantados com sua clarividência.

Enquanto isso, Filipe foi ao encontro do seu velho ami-go Natanael, pois o sabia um cumpridor fiel da Lei e dignode entrar para o grupo que Jesus estava formando. Nata-nael, igualmente, fizera-se discípulo do Batista, tendo sidopor ele mergulhado nas águas do Jordão, no ritual de praxe.

Após as saudações usuais, foi logo dizendo:“– Encontramos aquele sobre quem escreveram Moisés eos profetas, na Lei: Jesus, filho de José, de Nazaré” 77.

O rosto do canaense expressou de imediato suaincredulidade: “– E de Nazaré pode sair alguma coisaboa?” 78.

Mas Filipe resolveu a questão, dizendo: “– Vem e vê”79.Assim o fizeram.Logo que entrara, mesmo antes das apresentações,

Jesus se dirigiu a Natanael, dizendo: “– Eis aí umverdadeiro israelita, em quem não existe falsidade” 80.

77 Jo 1, 45.78 Jo 1, 46.79 Jo 1, 46.80 Jo 1, 47.

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Surpreso, o canaense perguntou: “– De onde meconheces?” 81.

Ao que Jesus retrucou: “– Antes que Filipe techamasse, via-te eu, debaixo da figueira” 82.

O espanto de Natanael não teve limites. Sem dúvida,ali estava um profeta, pois o olhar dele indicava que sabiatudo o que acontecera naquele dia em que, com o coraçãoem frangalhos, pusera-se a chorar e a clamar ao Senhorsob a fronde de uma figueira, em sua cidade natal. Porisso, disse de pronto:

– Mestre, tu és o Filho de Deus; tu és o Rei de Israel. Respondeu-lhe Jesus, dizendo-lhe:– Crês, porque te disse que te vira debaixo da figuei-ra. Verás coisa maior que isto. E prosseguiu, dizendo-lhes: Certamente, certamente vos digo que, doravante,vereis o céu aberto e os mensageiros de Deus descen-do e subindo sobre o Filho do Homem.83

Dessa forma, teve início o movimento de renovaçãoda Humanidade, sob o qual ainda vivemos, e do qual aDoutrina Espírita, como o Consolador Prometido, é umanova e decisiva etapa.

81 Jo 1, 48.82 Jo 1, 48.83 Jo 1, 49.

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Eu o Sou...”

O Sol, atingindo o zênite, derramava sobre apaisagem a ardência dos seus raios inclementes.

Fatigado da viagem que os levava de volta para aGaliléia, Jesus decidira parar ali, no poço que a tradiçãoatribuía ao patriarca Jacó, em pleno coração do territóriosamaritano.

O Mestre preferira o caminho mais rápido, em vezdo normalmente usado, que passava pela Transjordânia eevitava contatos com os impuros samaritanos, porquetinha pressa em chegar à região do Lago de Genesaré.

Quanto mais se afastasse, juntamente com seusdiscípulos, das proximidades do local onde João, O QueMergulha, exercia o seu mister de despertar a consciênciareligiosa do Povo de Israel, melhor. As imperfeiçõeshumanas tendentes a criar exclusivismos doentios emtorno de suas crenças e ídolos ameaçavam a harmonia dotrabalho de difusão do Reino de Deus entre ele e o seuprecursor.

É claro que os dois tinham plena consciência dasrespectivas funções, mas seus seguidores principiavamuma esdrúxula disputa sobre a primazia dos seusrespectivos líderes. A cúpula dominante, através do partidodos fariseus, tentava aproveitar-se desses sentimentosnegativos para intrigar, insuflando a discórdia e a cizânia,

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com a finalidade de provocar um conflito que osenfraquecesse, anulando a eficácia de suas missões.

Sabia, o Mestre, que João, plenamente conscientedo seu papel de preparador do caminho, repelira ospruridos exclusivistas dos seus seguidores quando lheforam dizer:

– Rabi, aquele que estava contigo do outro lado doJordão, de quem deste testemunho, está batizando, etodos vão a ele.João respondeu:– Um homem nada pode receber, a não ser que lhetenha sido dado do céu. Vós sois testemunhas de queeu disse: Não sou eu o Cristo, mas sou enviado antesdele. Quem tem a esposa é o esposo; mas o amigo doesposo, que está presente e o ouve, é tomado de ale-gria à voz do esposo. Essa é a minha alegria, e ela écompleta! É necessário que ele cresça e eu diminua.Aquele que vem do alto está acima de todos; o que éda Terra é terrestre. Aquele que vem do céu dá teste-munho do que viu e ouviu.84

Mas, profundo conhecedor da natureza humana,Jesus preferiu colocar distância entre os dois grupos paraevitar maiores problemas, retirando dos inimigos do Bema possibilidade de fomentarem a maledicência e o mal-estar.

Como não haviam trazido alimentos, dada a rapidezda partida, enviou os discípulos à cidade de Sicar, bemno meio do vale entre os montes Ebal e Garizim, que sevia à distância e que outrora fôra um importante centroda Samaria, agora em plena decadência. Fizera questãoque fossem todos, permanecendo sozinho à beira do poço.

84 Jo 3, 26-32.

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Quando todos se foram, sentou-se à beira dacisterna, resguardado do calor do Sol pelo teto de proteçãodo receptáculo de água. Olhando a cidade ao longe, oMestre aguardava. Com a visão psíquica, discernia, àdistância, alguém que se preparava para sair de casa afim de buscar água ali no poço.

Em breve, ela apareceu à saída da cidade. Cântaroapoiado no quadril direito e a corda para amarrar neleenrolada no ombro esquerdo, caminhava perdida em seuspensamentos...

A certa distância, pôde ver que alguém se encontravasentado à borda da cisterna. Um homem, com toda certeza.Mais um pouco e identificou: um imundo judeu! Pensouconsigo mesma. Raça presunçosa e desprezível. Conti-nuou de si para consigo. Provavelmente vai me provocar,insultando-me, pelo fato de ser uma mulher samaritana.Mas vai se arrepender, pois lhe retribuirei à altura, devol-vendo-lhe o cêntuplo de doestos e ironias. Se tentar meagredir, dar-lhe-ei com o cântaro. Vai apanhar como nuncaapanhou quando criança. Ante tal perspectiva, deu umsorriso de satisfação e, com o coração acelerado pela pers-pectiva de conflito, aproximou-se do poço.

Fingia não olhar para o desconhecido; todavia, suavisão periférica já o tinha analisado. A contragosto,admitiu que era um homem bonito e, apesar dos traçosfinos e delicados, tinha um porte viril. Sentiu que o seuolhar a seguia, mas não o sentia como um olhar lascivo,coisa que ela conhecia muito bem. Era um olhar tranqüiloque, por algum motivo, deixava-lhe inquieta.

Ao chegar à beira do poço, preparava-se paraamarrar a corda ao cântaro quando ouviu o judeu dizer:“– Dá-me de beber!” 85.

85 Jo 4, 7.

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Assustou-se. Não com a voz do homem, que eramuito agradável de se ouvir, mas pelo pedido.

Samaritanos e judeus eram inimigos ferrenhos háséculos. Viviam em atritos permanentes e, sempre quepodiam, causavam-se danos mutuamente. Sabia tambémque os Rabinos ensinavam que tomar água dada por umsamaritano era o mesmo que beber um copo cheio desangue de porco.

Apoiou o cântaro e a corda junto à borda do poçoe, voltando-se para o estranho, indagou com ironia:“– Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim quesou samaritana?” 86

Imperturbável, Jesus respondeu: “– Se conhecesseso dom de Deus e quem é que te diz: Dá-me de beber, tu éque lhe pedirias e ele te daria água viva!” 87.

Apesar do tom natural da resposta, a samaritanainterpretou como se fôra arrogância da parte dele. Porisso, carregou na ironia e, com as duas mãos nos quadris,numa clara mímica de deboche, argumentou:

– Senhor, nem sequer tens uma vasilha, e o poço éprofundo; de onde, pois, tiras essa água viva? Ésporventura maior do que o nosso pai Jacó, o qual nosdeu esse poço, do qual ele mesmo bebeu, assim comoseus filhos e animais?.88

Sereno, o Mestre replicou:

– Aquele que bebe desta água terá sede novamente.Mas quem beber da água que eu lhe der, nunca maisterá sede, pois a água que eu lhe der tornar-se-á, nele,uma fonte de água jorrando para a vida eterna.89

86 Jo 4, 9.87 Jo 4, 10.88 Jo 4, 11-12.89 Jo 4, 13-14.

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O homem é louco, pensou a Samaritana, como, deresto, todos da sua raça. E, acentuando o sorriso e os gestosirônicos, solicitou: “– Senhor, dá-me dessa água para queeu não tenha mais sede nem tenha de vir mais aqui paratirá-la!” 90.

Jesus, muito naturalmente, redargüiu: “– Vai, chamateu marido e volta aqui” 91.

A ironia se transmudou em perturbação. O homemlhe tocara num ponto sensível: seu problema na áreaafetiva. Insegura, retrucou: “– Eu não tenho marido” 92.

Agora o Mestre chegara ao ponto principal. Amulher estava preparada para receber a informaçãotransformadora. Amadurecida pelas desilusões, sua almaansiava por algo que a preenchesse, libertando-a de umabusca que não conseguia definir: “– Falaste bem, não tenhomarido, pois cinco maridos já tiveste, e o que tens agoranão é teu marido; nisso falaste a verdade” 93.

O assombro se estampou no rosto da samaritana.Aquele homem tinha o poder de penetrar no íntimo daspessoas, retirando de lá os mais recônditos segredos. Porsua mente, em turbilhão, passaram vários pensamentos.Tinha de aproveitar a ocasião, pois não é sempre que seencontra um profeta, e ali estava um. O seu inconscientedeixou aflorar o problema básico que motivava sua sedede integração, de plenitude, a qual se manifestava comoinquietação sexual, sem encontrar saciedade. Seus muitosmaridos, os quais não conseguia suportar por muito tempo,representavam, em última análise, sua busca de saciedadeíntima, de realização espiritual, que a falta de diretriz

90 Jo 4, 15.91 Jo 4, 16.92 Jo 4, 17.93 Jo 4, 17-18.

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segura no campo religioso a levava a confundir com desejosexual, pois o sexo é, já o intuíra Platão, busca da unidadeperdida, vontade inconsciente de quebrar a barreira queisola o ser humano de Deus, causa efetiva do sentimentode solidão que leva os indivíduos à eterna busca de alguémque os preencha.

Na medida em que a alma vai atingindo o ponto dematuração espiritual, o princípio inteligente começa aenviar mais fortemente seus impulsos pelas vias doinconsciente, procurando romper com as estruturas centra-lizadoras do complexo do ego, procurando reatar sualigação com a fonte de origem – Deus. O ego, todavia,perdido nos intrincados mecanismos de ações e reações,criados ao longo do devir evolutivo, interpreta erronea-mente tais estímulos, tentando vias imediatas para asolução do conflito que se estabelece entre o Self e ele. Équando o ser geralmente deriva para a busca do poder, dafama, ou da fruição dos sentidos, tentando resolver ainquietação íntima não devidamente esclarecida. Quandose lê a magnífica obra de Santo Agostinho, Confissões,pode-se acompanhar as terríveis angústias dessa buscamonumental.

Nesse ponto, provavelmente sob o estímulo davibração de Jesus, a mente da mulher de Samaria liberouseu problema real: “– Senhor, vejo que és um profeta.Nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vósdizeis: é em Jerusalém que está o lugar onde é precisoadorar” 94.

Finalmente aparece o cerne do conflito – a buscade Deus. Ela estava no ponto exato de dar o saltoqualitativo da espiritualidade. A ânsia de integração com

94 Jo 4, 19-20.

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a Divindade se expressou totalmente, fazendo-seconsciente, mesmo que ela não o percebesse.

Jesus, então lhe responde:

– Crê, mulher, vem a hora, e é esta, em que nem sobreesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vósadorais o que não conheceis; nós adoramos o que co-nhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Masvem a hora, e é agora, em que os verdadeirosadoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, poistais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espí-rito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em Espí-rito e Verdade. 95

Era uma definição nova, que lhe atingia em cheio ocoração. Era preciso deixar de procurar um local externopara adorar a Deus, mas trazer o ato de adoração para oíntimo. Todavia, somente alguém com bastante autoridadepoderia realmente corroborar isso. E apenas o Ungidopoderia dilucidar todas essas questões: “– Eu sei que viráo Ungido” 96. “Quando ele vier, anunciarar-nos-á todas ascoisas” 97.

A resposta lhe causou um impacto: “– Eu o sou, euque falo contigo” 98.

Agora ela tinha certeza de que tudo era verdade. Oseu coração já lhe dizia, há algum tempo, que estava diantedo Enviado de Deus. Seus conflitos se resolviam ali,naquele mesmo instante. Nunca mais teria aquela sedeinterior que a levava a procurar no prazer físico, na com-panhia de um homem, o remédio para os anseios que lhecoagiam o peito. Era o momento em que franqueava a

95 Jo 4, 21-24.96 A palavra cristo é uma tradução para o grego da palavra hebraica messiah, que

significa ungido.97 Jo 4, 25.98 Jo 4, 26.

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fronteira das incertezas materiais para entrar no vale daautoconsciência plena.

Vibrações desconhecidas lhe penetravam a alma,fazendo-a sentir uma emoção diferente das que sentiraaté então. Era uma inefável plenitude, uma paz jubilosa,uma serenidade transcendente.

Estava tão inebriada com os sentimentos novos quenão percebera a aproximação dos discípulos, só tomandoconhecimento da sua chegada quando rentearam ela eJesus.

Seus rostos exprimiam estranheza por verem oMestre conversando tão intimamente com uma mulhernaquele local deserto, o que era contrário aos costumesreinantes. O redator das lembranças do Apóstolo Joãodescreveu assim o momento:

E nisto vieram os seus discípulos, e se admiravam deque estivesse falando com uma mulher; todavia ne-nhum lhe perguntou: O que é que procuras? ou: Porque falas com ela?.99

Jesus impunha respeito naturalmente. Por isso é quenão ousaram, os discípulos, pedirem-lhe qualquerexplicação. Aliás, não lhes devia, nem a ninguém, poisessa é a atitude das almas que transcenderam os sentimen-tos mesquinhos da malícia e da maldade. Agem com talpureza que não têm sequer consciência de que os outrospossam julgar mal seus atos nem fazer inferências menosdignas sobre suas atitudes.

A partir desse dia, a mulher samaritana passou aintegrar o grupo dos discípulos do Mestre que, á distância,entregavam-se à tarefa de divulgar-lhe a presença e as

99 Jo 4, 27.

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idéias, anunciando que o Ungido, por quem a nação deAbraão esperava, já se encontrava no mundo, executandosua missão sublime. Sairei ao vosso encontro a fim deiniciarmos a difusão da Boa Nova.

Assim, alegres, retornaram aos seus, com o coraçãoem festa, para lhes anunciar o cumprimento das Promessasdas Escrituras...

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O Dia Inesquecível

Aquele foi o dia em que tudo começou.Estava em meu sítio recém-adquirido, perto do lago

que os Judeus chamam presunçosamente de Mar daGaliléia. Localizava-se perto da pequena enseada de El-Tabga, a cerca de um tiro de flecha de pequena aglome-ração de pescadores, dos quais comprávamos os saborosospeixes fáceis de apanhar nas águas piscosas do belo lago,cuja forma lembra uma cítara. Dizem os entendidos nahistória dos Judeus que, nos tempos heróicos dos seusancestrais, seu nome era justamente esse, que na lingua-gem deles se chama Quineret.

Meu nome é Marco Túlio Scipião e, como se podever, como se isto tivesse valor, descendo de linhagensilustres do patriciado romano. A verdade é que, desde essedia sobre o qual escrevo agora, considero essas coisas,bem como tudo aquilo de que meus conterrâneos seorgulham, como lixo, usando a expressão preferida domeu irmão e concidadão de nascimento Paulo, judeu dacidade de Tarso, a importante cidade da Cilícia, o qual,ontem, foi juntar-se ao nosso querido Mestre nas Regiõesda Eterna Luz. Dentre em breve, espero que não demoremuito, seguirei o mesmo caminho, dado o duvidosoprivilégio, que me é conferido pela cidadania romana, demorrer pelo gládio. Mas, como costumava afirmar aquele

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estimado Servo de Deus: Morrer para mim é lucro, poissei que esta vida não é tudo, e que, num corpo glorioso eincorruptível, viverei para sempre no Reino de Deus juntoao meu Senhor e Mestre Jesus, por e para quem tenhovivido nesses últimos trinta e quatro anos.

Minha mente volta, mais uma vez, para aquele diainesquecível que marcou de forma indelével a minhaexistência, e pelo qual tenho agradecido ao querido Pai,que vive nos céus cotidianamente até este momento, espe-rando poder fazê-lo pessoalmente o mais rápido possível.

Acordara bem cedo. O sol ensaiava nascer, e suaclaridade principiava a espancar as trevas noturnas comseus matizes róseo-dourados.

Tirando a túnica, corri até o lago e mergulhei emsuas águas tranqüilas, cujo frio espantou os restos de sonoque ainda me anuviava o cérebro e entorpecia os músculos.Depois de nadar algum tempo, voltei à margem e me vesti,ajudado por Menandro, o escravo grego que meu pai medera de presente no dia em que usei pela primeira vez atoga pretexta. Naquele tempo, orgulhoso de ser descen-dente de Rômulo e Remo, possuía os prejuízos da minharaça e achava que tínhamos o direito de privar os filhosde Deus, nossos irmãos, de sua liberdade, reduzindo-os àhumilhante servidão.

Depois da primeira refeição, quando o sol jámostrava inteiro o seu disco de ouro, saí a cavalgar pelosarredores, exercício diário que fazia para manter a formafísica, pois me preparava para integrar o quadro de oficiaisdo exército imperial, sonhando com o prestígio, a glóriae a fama; a riqueza não me preocupava, já que meu paiera considerado um dos homens mais ricos do Império.

Logo percebi que algo de anormal acontecia.Afluíam barcos de todas as regiões ribeirinhas carregados

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de pessoas, alguns ameaçando adernar de tão cheios,enquanto, pelas estradas, multidões se deslocavam,convergindo para o interior em direção ao leste.

Intrigado com a ocorrência, e suspeitando de algummovimento subversivo, pois os Judeus nunca se confor-maram com nossa dominação, voltei à casa e, colocandouma roupa que disfarçasse meu tipo romano, misturei-me ao povo, seguindo o mesmo rumo. Levava o gládiooculto sob a túnica e me fazia acompanhar de Menandroe outro escravo robusto, ambos igualmente armados. Erameu dever, como cidadão romano, investigar, paraprevenir qualquer levante que, por acaso, estivesse sendotramado.

Além do número enorme de doentes de todos ostipos, muitos dos quais exibiam suas horríveis e nausea-bundas chagas, intrigavam-me os retalhos de conversaçõesque surpreendiam a cada passo. Aprendera muito cedo alinguagem bárbara da Judéia, pois meu pai tinha muitosinteresses na região e deles me fizera administradorquando completei a maioridade.

– Ele é o Messias Prometido por Moisés e osprofetas. Afirmava um jovem, com a certeza fácil que aidade juvenil favorece.

– Não creio, pois se o fosse, as nossas autoridadesem Jerusalém já o teriam declarado. Contrapunha umhomem idoso, cuja vestimenta, adereçada de filactérios,denunciava o fariseu militante.

– Aquele bando de ladrões, vendidos aos nojentosromanos, não querem nem saber desse assunto, pois nãodesejam arriscar seus indignos privilégios. Retrucava orapaz, com a impulsividade irrefletida de quem nãoaprendeu ainda a virtude da prudência. E, naturalmente,anotei seus traços para posterior averiguação.

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À minha frente, uma senhora dizia a outra quecarregava uma criança de cerca de dois meses de idade,cujos olhos baços falavam de cegueira:

– Ouvi dizer que ele cura todo tipo de enfermidade,seja do corpo ou da mente, como também expulsa espíritosmalignos.

– Oh! Tomara que sim. Pois lhe implorarei para fazercom que meu filhinho possa enxergar. Se ele o fizer, dar-lhe-ei até minha vida se pedir.

À minha esquerda, falava um ancião para outro:– Imagine só! Soube que ele prega o amor até pelos

inimigos. Que disparate!Adiantei os passos e, mais adiante, surpreendi o

seguinte diálogo:– Confesso que ainda estou estarrecido! Quando

entraste correndo pela casa adentro, rindo, chorando elouvando a Deus, pensei que fosse morrer de tanta emoção.Exclamava um senhor de meia idade, continuando: Penaque minha Léia não pudesse participar deste júbilo. E,com a capa, enxugava as lágrimas que lhe escorriam pelaface.

– É, pai, sinto muito que minha mãe tenha morridosem me ver andando. Disse o rapaz de uns dezessete anosque ia ao seu lado.

– Ah! meu filho, quando descobrimos que haviasnascido paralítico, nossa dor foi imensa. E, ainda por cima,foste nosso primeiro e único filho. Quantas vezes, emminhas orações, perguntei angustiado ao Senhor: Por quenos castigas assim? e a minha pobre criancinha?

– Também eu, meu pai, sofri muito, vendo ascrianças de minha idade correndo e pulando, enquanto eunão podia fazê-lo. Cresci com profundo sentimento defrustração e de revolta. Queria participar dos jogos e

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brincadeiras das crianças de minha idade; todavia metornava um estorvo que procuravam afastar com desculpassem sentido. Isso me feria muito mais do que quandoalgum me atirava ao rosto o meu defeito. Muito cedoaprendi a dissimular meus reais sentimentos; por isso,desde que me tornei um Bar-Mitzvá100 e me conscientizeique não podia casar e ter filhos, passei a alimentar a idéiado suicídio... Qual a jovem que se casaria com um aleijãocomo eu? Mas, quando pensava em minha mãe, já tãodoente, prorrogava o projeto para uma ocasião maisoportuna. Depois de sua morte, que me despedaçou ocoração, tomei a deliberação. Sentia pena de te deixar,pai, pois te admiro muito, mas sabia que és forte, capazde superar o choque de minha morte. Além do mais,pensava, livrar-te-ia de um peso morto. Decidi que medeixaria afogar no lago, cuja margem fica perto de nossacasa. Sabia que a melhor hora era depois do escurecer,quando todos os pescadores já chegaram, recolheram suasredes, depois de limpá-las, e foram para suas casas.Poderia, então, arrastar-me até a margem e, protegido pelaescuridão, entrar na água, nadando bem para o seu meio,até que, vencido pelo cansaço, afundasse para a liberdadeda morte. Naquele dia, agi de acordo com o planejado.Quando, porém, já na margem, preparava-me paraadentrar a água, ouvi uma voz dizer: Deus é o Senhor davida. Ele a dá e somente ele a pode tomar. Voltei-me,assustado e descoroçoado por me sentir descoberto.Nossos olhos se encontraram, e então tive a certeza deque ele sabia tudo o que se passava comigo. Era como seeu sentisse o seu olhar lendo meus pensamentos e

100 Filho do Preceito. Rito de passagem hebraico quando a criança se tornava umadulto, responsável por seus atos diante da lei, o que acontecia entre os doze etreze anos.

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sentimentos, mesmo os mais escondidos: Quem destrói aprópria vida atenta contra uma propriedade que não é sua,tornando-se, dessa maneira, um criminoso. Empensamento, retruquei: De que vale a vida para um aleijadoinútil como eu? E escutei: Achas que Deus poderia criaralguma coisa inútil? O teu pensamento não só te deprecia,mas é uma ofensa ao Pai Celeste, a quem temos obrigaçãode louvar e amar sempre. Fiquei estarrecido. Ele era capazde ler pensamentos. Disse-me, então: Deus, todavia, émisericórdia constante, por isso me enviou, para que nãolevasses a efeito tão nefasta atitude. Teu pai, homemcaridoso e bom, não merece passar por um golpe desses,pois ainda tem muito que realizar pelos outros, mas,principalmente, por si mesmo, pelo seu crescimentoespiritual. Assim, levanta-te e anda! Uma força estranhapercorreu todo o meu corpo, enquanto um estranho arrepiofazia tremer as minhas pernas. Ante os meus olhosespantados, elas se endireitaram, firmes e fortes. Ele meestendeu as mãos e, após alguma hesitação, segurei-as,levantando-me; pela primeira vez na vida, fiquei de pé.Hesitante, movimentei uma perna, e ela me obedeceu;movimentei a outra, e a mesma coisa aconteceu. Caminheiassim alguns passos com o coração batendo como umlouco no meu peito. Finalmente, ele me soltou e disse:Vai, em nome do Pai. Aprende a tua lição e não tornes apecar para que não te venha a suceder coisa muito pior.Continuei a andar, e, quando dei por mim, estava entrandoem casa. O resto, tu já sabes.

– Sim. E, desde então, temos buscado por ele. Querolhe agradecer pelo que nos fez e colocar minha vida emsuas mãos. O que quer que ele me peça, eu farei.

Conversa de alienados, pensei comigo. Acho quevim para o meio de loucos. Mas, nesse instante, chegamos

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ao pé do morro onde uma multidão já estava postada. Umpouco acima, na vertente do monte em que havia umaespécie de anfiteatro natural, estava um homem de cabeloslongos e barba, do qual pessoas se aproximavam, doentesna sua maioria. Precisava escutar e ver o que se passava;por isso, empurrando aqui e ali, sem ligar para os protestosque se erguiam à minha volta, aproximei-me o maispossível do lugar onde estava o homem, cuja posturaindicava o líder. Precisava ver e gravar tudo para indicá-lo às nossas autoridades.

De inopino, senti-me empurrado para o lado. Amulher, cujo filhinho era cego, fôra quem me empurrara,no afã de ir até o homem. Agora eu queria ver. O homem,naturalmente, iria embrulhar a pobre mulher, cuja decep-ção não teria limites. Era uma crueldade brincar-se dessaforma com a dor humana. Cheguei mais perto. A mulherestava junto a ele e, pondo-se de joelhos, disse-lhe:

– Senhor, sei que atendes aos pobres e infortunadoscom amor e carinho. Por isso, trago-te o meu filhinho.Ele nasceu cego, Senhor, e é o meu primogênito. Compa-dece-te de nós. Cura-o.

O homem lhe colocou a mão no ombro e, antes dedizer qualquer coisa, seu olhar se encontrou com o meu.Senti como se ele soubesse o que eu pensava. Era umasensação estranha, como se, de repente, a minha privacida-de íntima tivesse sido invadida, e todos os meus senti-mentos e pensamentos ficassem expostos. Sua voz, então,falou dentro de mim: Verás muitas coisas extraordinárias,e também tu realizarás, porque foste escolhido por mimpara levar minha mensagem ao coração do Império juntocom outros.

Quando seu olhar se desviou, fiquei estarrecido, efoi como em sonho que escutei ele dizer à mulher:

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– Seja feito conforme o teu desejo. Teu filho volta aenxergar, mas deverás ensiná-lo a usar os olhos para obem.

A mulher, fitando a criancinha, deu um grito dealegria, e, jogando-se ao chão, pôs-se a lhe beijar os pés.Ele a fez levantar-se e, quando passou por mim, detive-ae, olhando a criança, vi os seus olhos negros, límpidos eclaros, completamente diferentes do azul desmaiado dealgum tempo antes. Voltei-me espantado e notei que eleme olhava novamente com a sombra de um sorriso fugaz,assim me pareceu, nos lábios.

Meu coração era um turbilhão e meus pensamentosme ferviam no cérebro. Foi então que ele começou a falar:

Felizes os pobres em espírito,pois deles é o Reino dos céus.Felizes os que estão aflitos, porque serão consolados.Felizes os humildes, porque herdarão a Terra.Felizes os que têm fome e sede de retidão,porque serão saciados.Felizes os misericordiosos,pois eles encontrarão misericórdia.Felizes os puros de coração,porque eles entenderão a Deus.Felizes os pacificadores,pois eles serão chamados filhos de Deus.Felizes os que são perseguidos por causa da retidão,porque deles é o Reino dos céus.Felizes sois vós, quando vos ultrajarem, perseguireme, mentindo, disserem qualquer tipo de maldade con-tra vós, por causa de mim.Alegrai-vos e exultai, pois grande é a vossa recom-pensa nos céus, porque dessa forma perseguiram osprofetas que foram antes de vós...101

101 Mt 5, 3-12.

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Durante um largo espaço de tempo, sua voz ecoouem meu coração e, pelo que pude perceber, no de todosque ali estavam. Era um convite à construção de ummundo novo, de valores diferentes dos atuais. Umarevolução profunda nos usos e costumes tradicionais –amar os inimigos; fazer bem aos que nos perseguem ecaluniam; ceder, para não entrar em litígio; ajudar sempre;perdoar ininterruptamente; viver a espiritualidade em simesmo; só fazer aos outros o que gostaríamos que osoutros nos fizessem... Era o oposto de tudo o que euaprendera.

Mas tenho que terminar, pois já estão vindo os queme levarão. Pensam que irão me matar, quão enganadosestão... O gládio será a chave que abrirá a porta do Reinodo meu Senhor. Voltarei a encontrar Jesus, o amor daminha vida, no seu Sólio de Luz.

A ti, que por acaso vieres a ler estas linhas, faço umconvite: vem ao encontro de Jesus, e ele te fará conheceras belezas indescritíveis do Espírito...

Até logo.

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Fenômenos Notáveis

O Nilo azul corria mansamente, como há milharesde anos, criando, às suas margens, uma estreita faixa deterra fértil roubada à aridez do deserto que se estendia auma distância pequena de suas margens. No terraçoensombrado de sua residência luxuosa, onde estavaprostrado num coxim forrado de tecido caro e recheadode penas, que o tornavam macio, Âmen-Ra agonizavalentamente, vitimado por insidiosa moléstia que lhedevorava as entranhas aos poucos, provocando doresagudas e terríveis, mal anestesiadas pelas infusões dosmédicos que enxameavam em sua casa, aproveitando aoportunidade de cuidar de um doente tão rico e generoso.

Sabendo-se perto de ser levado pelos embalsamado-res a fim de ser preparado para a caminhada para o Oeste,expulsara os médicos à sua volta, fazendo-se transportarpara o terraço a fim de ver, pela última vez, com os olhosfísicos, a silhueta do Deus Benfeitor e suas águas brilhan-tes de sol.

O neto querido, que nunca o abandonava, sentava-se rente, segurando-lhe a mão emurchecida e fria.

– Seneribe, amado neto, estou sendo chamado aotribunal da eternidade a fim de prestar contas dos atos daminha vida...

– Não fale assim, avô. Replicou o moço, interrom-pendo o ancião com um gesto de ternura e os olhos aflitos.

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– Deixa-me falar sem interrupção, pois necessitoque saibas de uma série de coisas que se passaram naminha mocidade e que, só agora, se me apresentam emseu valor real. Muitas vezes te falei de minhas andançaspor terras distantes, em particular de minha estada na terrados judeus. Como sabes, ali conheci um homem extraor-dinário, de nome Jesus. Uma figura de beleza incompará-vel, cujos ensinamentos refletiam um altruísmo muitodistante da realidade dos nossos tempos. Ele era só bon-dade e amor. Por isso mesmo, terminou morto, crucificadoentre dois ladrões. Por esse motivo abandonei aquela terrae, durante algum tempo, procurei viver de acordo comseus ensinamentos. Meu coração, contudo, ainda não tinhaa madureza necessária, e o mundo, com seus enganos,terminou por sufocar a semente de luz que ele implantaraem meu coração. Deixei-me envolver pela ambição doter, mergulhando nas águas turvas de empreendimentoscomerciais vários que me trouxeram luxo e riqueza, mas,por outro lado, ressecaram meus sentimentos e ideaisenobrecedores. Depois da morte de teu pai, meu único einesquecível filho, e de tua mãe, nora que me foi umafilha carinhosa e boa, afastei-me dos negócios para cuidarde ti e viver a dor da perda das jóias mais preciosas queDeus me dera um dia e me tirara tão repentinamente semqualquer aviso.

Uma estremeção de dor percorreu o corpo dodoente, que parou arfante com a testa porejada de suor,enquanto sua mão apertava convulsivamente a do neto.

– Vovô! Exclamou o moço. Não te canses...Com voz lenta e entrecortada, o moribundo

continuou:– Preciso... continuar. Sinto que... me resta pouco...

tempo...

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Fazendo grande esforço, pediu ao rapaz quemandasse buscar, em seu gabinete, um baú de marfimincrustado de pedras preciosas com um formato de cruz.

Ao chegar o servo com o objeto pedido, disse oenfermo:

– Neste recipiente está o que considero a maiorriqueza que vou te deixar. São pergaminhos onde escreviminhas lembranças dos acontecimentos da Palestina.Durante a minha permanência ali, colhi uma série detestemunhos dos feitos notáveis de Jesus de Nazaré, osquais escrevi cuidadosamente. Gostava de pesquisar osfenômenos extraordinários que ele fazia, alguns dos quaispresenciei pessoalmente, e, depois, fui em busca dos quehaviam sido beneficiados com curas incríveis, entrevis-tando-os, bem como seus amigos, parentes e vizinhos.Esse foi o meu grande erro. Deslumbrado pelos fatos, perdide vista o que eles realmente representavam. Embriagadopelo anseio de pesquisar, esqueci que a finalidade delesera chamar a atenção para a proposta de transformaçãomoral e espiritual que o Galileu – como muitos ochamavam – apresentava para todos nós, objetivando levaros homens a edificar uma sociedade mais justa, maisgenerosa e mais fraterna. Hoje, quando a morte meconvoca, compreendo melhor o tempo desperdiçado comuma curiosidade que, se bem dirigida, poderia ter melevado a uma situação interior muito mais pacífica etranqüila do que agora tenho.

Entregando então o recipiente ao rapaz, sofreu umdesmaio por causa do esforço despendido, voltando a sipouco depois, apenas para despedir-se do neto em prantose mergulhar no coma final.

Dois dias depois, Âmen-Ra partia para o Oeste afim de receber o julgamento de suas ações na vida, e o

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seu corpo era entregue à Casa da Vida para receber otradicional processo de embalsamamento, findo o qualfoi sua múmia repousar no mausoléu adredementepreparado para guardá-la eternamente.

Seneribe passou mais de três meses mergulhado emprofunda tristeza, vagando em prantos pela solidão daimensa casa. Um dia, porém, sonhou com o avô. Estavamambos numa imensa construção, onde se abrigavam váriaspessoas. Âmen-Ra lhe informou que era um lugar derecuperação dos que haviam perdido o corpo físico. Elepróprio estava sentado numa cama, com o semblanteabatido. Falaram-se da saudade, mas o avô lhe dissera serpreciso retomar o curso normal da vida. Não poderia ficarse lamentando por todo o sempre. Existiam obrigaçõesinadiáveis, compromissos com o destino, que não podiamser postergados. Terminou instando para que ele lesse ospergaminhos que deixara.

O rapaz levantou bem disposto, com um novoânimo. Tinha certeza de que estivera com o querido avônas regiões da morte. Chamando os servos, tomou umasérie de providências que se faziam necessárias, tanto emrelação à casa quanto aos negócios que o avô deixara.Durante uma semana esteve afadigado, pondo em ordemmuita coisa, assumindo o seu papel de administrador dosbens que lhe haviam sido legados. Certo dia, lembrou-sedos pergaminhos e, tomando o cofre em que estavamguardados, pôs-se a lê-los cheio de curiosidade.

Como um novo Sinhuê, deixei o regaço do deus Hapi,em busca de fortuna e aventuras. Conheci Roma, acidade que domina o mundo atualmente, estendendosuas legiões por todos os países que circundam o Gran-de Mar; a Grécia, cuja sabedoria foi aprendidaconosco, que existimos há muitos milhares de anos

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antes de todos os povos. Estive entre os povos daMesopotâmia, vendo os restos dos grandes reis queum dia lutaram conosco e que já não existem mais,enquanto o Egito permanece para sempre. Finalmen-te, estive na terra dos judeus, que já foram, como elespropagam, nossos escravos, e aí tive oportunidade deviver uma experiência singular. Tinha chegado a umacidade de nome Kephar-Nahum, situada à beira de umlago que eles chamam de Mar da Galiléia. Vinha deDamasco, onde adquirira muitas mercadorias, depoisde vender as que levara. Ao chegar nessa cidade, empouco tempo consegui negociar os tapetes e quinqui-lharias que trouxera. Como me sentia cansado, com-prei uma casa à beira do lago e alguns escravos paracuidarem dela, e, para não perder a oportunidade, co-mecei a negociar com peixes, que no lago são abun-dantes. Assim, fiz amizade com Zebedeu, que tinhauns barcos de pesca, do qual comecei a comprar opescado, salgando-o e vendendo-o para as caravanase para o comando da legião, sediado em Cesaréia deFilipe.Através de Zebedeu, fiquei sabendo a respeito de umhomem chamado Jesus, originário de uma cidade denome Nazaré, a quem seus filhos estavam seguindo,tendo abandonado os negócios de pesca. Esse Jesusera chamado por ele de Messias e realizador de prodí-gios. Claro que não acreditei, porque, tendo visto tan-tas explorações em nome dos deuses por todos os lu-gares onde estive, tinha me tornado um descrente detudo que dissesse respeito a religião. Um dia, porém,Zebedeu me convidou para conhecer Jesus, que esta-va na cidade, em casa de um antigo seu sócio chama-do Simão. Quando chegamos lá, a casa estava cheia;também do lado de fora havia pessoas de todas as clas-ses sociais, principalmente doentes. Zebedeu, por sermuito conhecido e pai de dois seguidores do Rabi (tí-tulo que dão àqueles que estudam e pregam a religiãodeles), conseguiu atravessar a multidão, levando-meconsigo. Lá, pude ver uma cena singular. Uns homenshaviam trazido um outro, aleijado, deitado numa maca

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improvisada. Como não conseguissem entrar no re-cinto onde Jesus estava, subiram no telhado por umaescada junto à parede do lado de fora, que todas ascasas possuem para permitir reparos no teto quandonecessário. Ali, fizeram uma abertura, quebrando amistura de barro e palha, e por ela desceram o paralí-tico. Estava curioso pelo que aconteceria. O Homemde Nazaré, para minha decepção, disse apenas: ‘Fi-lho, os teus pecados estão perdoados’102. Mais umembusteiro, pensei comigo mesmo; isso eu tambémpoderia ter falado sem que precisassem fazer tantosacrifício para trazê-lo. Nesse momento, porém, Je-sus, voltando-se para alguns sacerdotes e outros sig-natários da religião deles, disse: ‘Por que pensais as-sim em vossos corações? O que é mais fácil dizer aoparalítico: Os teus pecados te são perdoados ou le-vanta-te, toma o teu leito e anda?’103 Diante do silên-cio deles, prosseguiu: ‘Pois bem, para que saibais queo Filho do Homem tem poder de perdoar pecados naTerra, eu te ordeno – disse ele ao paralítico – levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa’104.Deu-se, então, um fato notável. O paralítico, comoque impulsionado por uma força misteriosa, ergueu-se lentamente, ficando de pé, e, um tanto vacilante,pôs-se a caminhar no pequeno espaço que se abrirapara ele. Sua expressão era de imensa alegria, e lágri-mas rolavam por sua face. Ajoelhou-se e tentou beijaras mãos de Jesus, que não o permitiu, instando paraque tomasse sua maca e se fosse, o que ele fez emseguida, agora já sem nenhum titubeio. Não pude meconter e segui o ex-paralítico. Precisava me informarde tudo que lhe dizia respeito. Conversei primeira-mente com ele, que me informou se chamar Heli e serda cidade de Betsaida, na confluência do Jordão como lago. Era aleijado de nascença, tendo vivido todasua vida sustentado pelos irmãos, que o haviam trazi-

102 Mc 2, 5.103 Mc 2, 8-9.104 Mc 2, 10-11.

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do. Sentia-se muito humilhado com isso e, durantemuito tempo, orara a Deus pedindo que o curasse.Quando soubera que Jesus estava realizando curasextraordinárias, resolvera procurá-lo, e seus irmãos,que muito o amavam, vieram trazê-lo, primeiro debarco até ali e depois no leito. Estava admirado, masmuito desconfiado, pois já havia presenciado muitasenganações dos sacerdotes, principalmente na minhaterra, para arrancar dinheiro dos incautos. Assim, pas-sei a semana colhendo informações, em Betsaida, so-bre Heli e sua família. Terminei por lhe confirmar anarrativa, pois todos os que moravam na cidade o co-nheciam muito bem e estavam maravilhados com suacura. Um médico do local, que atendia a família deHeli, deu-me um atestado por escrito sobre a sua pa-ralisia, corroborando, sob juramento, a sua cura, que,em condições normais, seria impossível, pois tinha aspernas atrofiadas.Quando tornei a Kephar-Nahum, Jesus já havia parti-do. Passei então a investigar todas as curas que fizera.Soube que curara uma mulher com um fluxo de san-gue há muitos anos. Fui atrás dela. Consegui encontrá-la, tecendo panos e costurando roupas para mulherese crianças pobres. Contou-me emocionada seus sofri-mentos e que, aproximando-se do Mestre e tocando-lhe a roupa, ficou imediatamente curada. Não confor-mado com suas narrativas, procurei testemunhos lo-cais, fui a médicos que a haviam assistido e todos con-firmaram por escrito o que ela contara.Na verdade, mesmo diante de todos esses fatos, bus-cava uma forma de explicá-los. Não podia admitir queJesus realizara o prodígio de curar. Deveria haver umaexplicação mais simples. Os sacerdotes do Egito co-nhecem as artes de curar pela imposição das mãos epelo convencimento do doente, repetindo, de formamonótona, palavras determinadas.Um acontecimento deixou-me intrigado. Dizia-se queele havia ressuscitado uma menina, filha de um chefeda Sinagoga local, que é como chamam, os judeus,seus templos. Era demais. Fui procurá-lo. Chamava-

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se Jairo, e contou o episódio emocionando-se muito.Sua filha única estava doente e piorando a olhos vis-tos. Como os médicos a desenganassem, em desespe-ro de causa, foi em busca de Jesus. Mas, quandoretornava à casa, chegara a triste notícia: sua filhinhaacabara de falecer. Começara a chorar e a se lamentar,mas Jesus o interrompera, dizendo-lhe que tivesse fé.Chegando à casa, o Mestre afastara todos os que esta-vam no quarto, dizendo que a menina não estava mor-ta, mas dormia. Os médicos e escribas que ali esta-vam começaram a ironizá-lo e rir dele. Ficaram a sós,ele, sua esposa, Jesus e o cadáver da criança. O rabi,então, aproximando-se do leito e tomando a mão inerteda menina, dissera Talitha Kum105, que, na língua dosjudeus, significa menina, levanta-te. Tendo ela estre-mecido, aberto os olhos e se levantado para alegriadeles e de todos na casa, menos, é claro, dos médicose sacerdotes, que procuravam minimizar o fato, semque Jesus lhes desse a mínima importância. Fiqueicomo um louco. Procurei todos que estavam na casanaquele dia. Ouvi as mais contraditórias versões. Osmédicos diziam que a menina estava aparentementemorta, como às vezes acontece, e que, por acaso, quan-do ele falara, voltara a si. Os sacerdotes diziam queeram artes mágicas, comandadas pelos Espíritos ma-lignos, sem verem a contradição do que afirmavam,pois fosse Deus ou um Espírito mau que houvesseproduzido a cura, ela existira; logo, era um fenômenonotável. Além do mais, dera-se para benefício tantoda criança quanto dos pais; logo, deveria ser um bomEspírito mau. Mas os religiosos são sempre irracio-nais.Confesso que, na época, fiquei em dúvida quanto aesse fato.Durante mais de um ano, passei a viajar de um ladopara o outro, colhendo informações e testemunhos arespeito das curas e ressurreições feitas por Jesus. Ti-nha ânsia de saber, mas sempre ficava uma dúvida

105 Mc 5, 41.

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fundamental: não se poderiam encontrar explicaçõeslógicas sem apelar para Deus ou Espíritos? Achavaque sim. Tendo nas mãos um grande acervo de fatos etestemunhos, resolvi procurar o próprio Jesus, paralhe pedir esclarecimento. Depois de muita busca, fuiencontrá-lo numa cidade de nome Betânia, a cerca dequinze estádios106 de Jerusalém, a principal cidade daJudéia. Ali, encontrei o povo em agitação. Dizia-seque Jesus ressuscitara o dono da casa onde estava, quese encontrava sepultado há quatro dias, já recendendoa putrefação. Era demais. Esquecendo-me da conver-sa que pretendia manter com o Mestre, comecei mi-nhas investigações, arrolando testemunhas e toman-do depoimentos. Só não consegui falar com Lázaro,que se recusava a prestar qualquer esclarecimento so-bre o que vira e sentira. Perdido nas minhas pesqui-sas, soube que Jesus partira para Jerusalém. Não ha-via problema; a pesquisa era mais importante. Outrodia conversaria com ele e pediria para que fizesse umacura sob expresso controle meu, para meu pleno con-vencimento (como eu era pretensioso!).Uma semana depois, soube que Jesus havia sido pre-so. Corri para Jerusalém, mas, quando ali cheguei, elejá estava sepultado. Tomei conhecimento de que forajulgado e crucificado. Confesso que minha decepçãoera grande. No primeiro dia da semana, contudo, umanotícia sensacional: Jesus ressuscitara. Corri à sua se-pultura, onde consegui penetrar, e ela estava vazia.Procurei os filhos de Zebedeu, e eles me contaramuma história inverossímil, de que o Mestre apareceraa todos eles reunidos numa casa, na parte velha dacidade, sentando à mesa e comendo. Era demais. Nãopodia acreditar. Talvez, se João e os outros não esti-vessem mentindo, todos tivessem sido vítimas de umailusão, como acontece a pessoas que perdem seus en-tes queridos e não querem admitir que estejam mor-tos. Uma alucinação que envolvesse todos. Só pode-ria ser isso. Procurei saber onde estava o corpo de Je-

106 Cerca de 2,8 Km, sendo cada estádio de 185 m.

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sus. Ninguém sabia informar. Fui a Madalena, queprimeiro o vira, e ela me contou uma históriainacreditável. Desconfiei que houvesse roubado o cor-po e escondido em algum lugar. Cheguei a pagar aalguns homens e mulheres para que a mantivessemsob vigilância. Tudo em vão.Como aumentassem os boatos de que ele estava apa-recendo na Galiléia, fui para lá, onde pude contatarvárias pessoas que me disseram tê-lo visto, assim comomais de quinhentas outras, em pleno dia; ouviram-noe viram-no desaparecer, da mesma forma que surgira,isto é, do nada. Subitamente, cansado de tanta procu-ra e das muitas dúvidas, resolvi desistir e voltar paraminha terra.

Seneribe leu, emocionado, o relato do avô, e folheouuma grande quantidade de papiros com anotações etestemunhos escritos, todos amarelecidos pelo tempo. Um,porém, mais novo, destacava-se. Abriu-o, lendo oseguinte:

Amado Seneribe, neto do meu coração. Estou deixan-do por escrito a minha última experiência com Jesus.Pouco antes de ficar doente, tive um sonho extraordi-nário. Sonhei que estava na Palestina, nas margens doLago da Galiléia. De repente, percebi alguém atrás demim. Voltei-me, e lá estava Jesus tal qual o conhece-ra. Olhava com uma expressão triste. Pensei comigomesmo: isto é apenas um sonho, uma simples imagi-nação. Jesus, balançando lentamente a cabeça, retru-cou: Continuas o mesmo Âmen-Ra. Sempre perdidoem pesquisas, contestando fatos, procurando explica-ções. Sem dúvida que procurar saber a verdade é umaatitude correta; todavia, quando fazemos disso ummeio em si, representa uma doença mental muito gra-ve. A busca de fatos e explicações deve ser realizadacom serenidade e ponderação. Perdendo-nos navolúpia de indagar sem parar, desconfiando de todose de tudo, aproximamo-nos dos que aceitam tudo sem

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procurar saber a verdade. Tanto um como outro estãoperdidos diante da realidade da vida. Toda procura temde ter um objetivo e, no caso do Espírito, deve tercomo meta a consolidação da fé. Quando, ao contrá-rio, o homem se perde num mar de desconfianças eindagações sem fim, torna-se um terrível obstáculoao crescimento, pois se transmuta em vício de conse-qüências imprevisíveis. Procura, meu irmão, o cami-nho do bem e da caridade, pois o intelecto divorciadodo sentimento é caminho certo para o crime.Acordei, nesse momento, ainda com as palavras doMestre nos meus ouvidos e, pela primeira vez na vida,não fiquei indagando sobre a realidade ou não do quese passara. Algo me dizia que estive mesmo com oMestre, e ali estava a prova de sua ressurreição. Meucoração está mais calmo. Lamento apenas o tempoque perdi quando estava tão próximo de Jesus. Pode-ria ter aprendido muito, sendo mais feliz. Entretanto,não adianta lamentar. Sei que dentro em breve estareino Reino, assim chamava as regiões do Oeste, paraonde todos vamos após a morte. Procura, querido neto,informar-te sobre Jesus e seus ensinos, para que a ale-gria da vida seja tua para sempre. Junto com essespapéis, encontrarás uma síntese que fiz dos seusensinamentos, mas que poderás enriquecer, buscandoseus discípulos que por acaso ainda vivam. Deus teabençoe e te guarde de todo o mal.

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Resgate Interrompido

Artabanes despertou numa paisagem diferente,repleta de névoa estranha. Adivinhava-se a luz do Sol peladifusa claridade que saturava o ambiente. Perto dele, umaárvore mirrada, quase sem folhas, estendia galhos secose crestados em direção aos céus, ou melhor, onde deveriasê-lo, pois não se podia enxergar uma réstia do azul cerúleouma vez que a paisagem em volta cobria-se com a densae mal cheirosa neblina, um extenso e contínuo véu denuvens.

Olhando-se, percebeu-se cheio de cortes, por ondemanava sangue espesso e abundante. No mesmo momen-to, a memória se abriu, e tudo lhe voltou de jato à lembran-ça, enquanto uma onda de dor percorria-lhe todo o corpo,fazendo-o rebolcar-se pelo chão lamacento. Sim, foravítima da traição pérfida de Fasate, o amigo em quemdepositava toda a confiança. Via, ainda, o falso a se encos-tar contra a parede de um muro na rua dos tecelões, naparte comercial de Susa, a magnífica capital do ImpérioPersa, enquanto ele era atacado pela súcia de malfeitores.Ainda se ouvia gritando o nome do amigo, pedindosocorro. Como oficial de Dario, rei dos Persas, era acostu-mado à luta, pois fora arduamente treinado para o combate,e já participara de várias missões em satrápias diversas,principalmente nas fronteiras do Império. Certamente, se

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Fasate o houvesse auxiliado, teriam vencido os assaltantescom facilidade. Surpreso, porém, e essa fora a causaprincipal de sua derrota, percebera que o seu mais fielamigo estava de conluio com os desconhecidos.

Apesar de lutar com a força dos desesperados, asestocadas que o atingiam minavam-lhe as forças, termi-nando por lhe quebrar a resistência. Em pouco tempo,fora atravessado por diversas lâminas, o que deveria tê-lomorto. Entretanto, ali estava ele, ferido e coberto desangue, mas vivo.

Vivo! Mas isso era impossível. Sentira o aço dasespadas e punhais longos atravessarem-no vezes semconta. Dores cruéis acompanhavam essas transfixaçõesaté que, num ponto qualquer daquela agonia, uma pazimensa lhe descera sobre o ser.

Naquele justo instante, recordava-se surpreso, umfenômeno interessante desviara toda a sua atenção do queacabara de ocorrer. Com uma precisão mínima nos deta-lhes, recordara-se de todos os fatos de sua vida até aquelemomento. Não se tratava de simples evocação de fatosisolados. Era a visão de todas as frações de tempo quevivera, em todos os detalhes, não só de episódios, mas depensamentos e sentimentos. Acrescentava-se, ao extraor-dinário evento mnemônico, uma faculdade interessante:em todos os episódios, desde a mais tenra infância, emque seu comportamento fugira aos padrões da ética, umquadro paralelo exibia qual deveria ter sido o comporta-mento correto, o que abrangia até mesmo os pensamentose emoções mais recônditos e todos os eventos que haviampermanecido oculto de todos.

Depois viera o sono irresistível, mas cheio depesadelos desagradáveis. Sua mãe e parentes chorandodiante de um cadáver que se parecia consigo; sua noiva,

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desesperada, a gritar pelo seu nome por entre soluços dedor, sendo consolada pelo infame Fasate, o assassinoignóbil e covarde. Em seguida, fora a exposição docadáver, ao qual se sentia ligado, ao relento, conformeestabelecia o costume religioso. Durante algum tempo,sentiu os insetos, os vermes e os abutres cevarem-se nocorpo que se decompunha. O horror da situação o fezimplorar piedade a Ahura-Mazda e que, por Sua ImensaMisericórdia, livrasse-o das garras cruéis de Ahrimã. Foraatendido, pois acordara naquele lugar desconhecido.

Nesse instante, um coro plangente de gemidoscortou o ar, seguido de imprecações, uivos, blasfêmias egritos desesperados. Era tão sinistra a estranha algazarraque seus cabelos se eriçaram e seu coração disparou nopeito, enquanto uma onda de calafrio lhe percorria aespinha dorsal. Apesar de ter, como soldado, habituado-se a viver com o perigo e ver os quadros mais dantescos,aquelas vozes, a exprimirem dores, revoltas e desesperossuperlativos, faziam-no sentir medo. Um medo irracional,que esmagava os sustentáculos do amor próprio e doorgulho do guerreiro. Arrastou-se pelo chão escorregadio,procurando distância daquele coro infernal, até encontrarum paredão de terra batida, e nele, uma espécie de nichoescavado, onde buscou abrigo e proteção. Ali, em calmarelativa, pôs-se a pensar em sua vida passada. A face danoiva se apresentou clara à sua memória, de tal maneiraque lhe parecia estar a vê-la. De fato, enxergava-a atravésda clarividência, o que ele não podia saber. Sahamaraestava linda como nunca. E pensava nele, sim, pensavanele, e ele ouvia e via seus pensamentos, espantado. Elarecordava o dia em que ele morrera. Revia o instante emque Fasate chegara à sua casa com o corpo do amado nosbraços, chorando e lhe contando como foram assaltados

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na rua e, apesar de lutarem, os agressores eram muitos eos sobrepujaram. Com o aparecimento de alguns soldados,que haviam sido atraídos pela luta, os bandidos fugiram.O amigo, porém, estava morto, e ele ferido, com cortespelos braços e pernas.

Artabanes estava revoltado pelo cinismo e desfaça-tez do miserável traidor. Chegara a ponto de se cortar,para dar mais realidade à sua história. E os soldados queele apresentava como salvadores eram alguns dos que ohaviam assassinado e que também se apresentavam feridospelas suas estocadas e cutiladas. O ódio começou a sedesenvolver em seu coração. Sabia agora que fora arreba-tado por Astivihad, o deus da morte, encontrando-se entãono seu reino sombrio.

Mas, perguntava-se, por que Fasate o fizera matar.Como resposta, a cena que via. Sua amada, continuoupensando nos fatos que se seguiram ao seu desapareci-mento, Fasate a cumulara de atenção e carinho. Apoiava-lhe a saudosa lembrança do noivo, mas, lentamente,conseguiu fazê-la interessar-se por ele, suprindo a carênciaque sentia. Agora estavam casados, e ela, grávida, esperavaum filho.

Aquela revelação foi demais para o oficial. Compre-endia agora o porquê da trama sinistra. O traidor o fizeramatar para lhe roubar a mulher amada. O ódio, agora,toma-lhe todas as fibras, fazendo-o tremer e espumar.Desejou, com todas as forças, ver o infame traidor paraexercer sobre ele uma vingança terrível.

Bastou-lhe desejar intensamente o encontro com oinimigo, e lá estava ele na sala, onde via sua antiga noivaagora acompanhada do seu assassino. Investiu contra elecom toda fúria, procurando estrangulá-lo, mas suas mãosnão conseguiam segurá-lo. Constatava, com raiva, a sua

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impotência em exercer a desforra quando alguém lhefalou:

– É inútil, companheiro. Para atingi-lo temos de usaroutros métodos que não a força.

Verificou, então, que não se encontrava sozinho.Outros Espíritos, em estado tão deplorável quanto o dele,estavam no ambiente, seguindo Fasate e demonstrandoódio intenso, tanto na fácies como nos gestos e palavras.E continuava a escutar: Temos de ter paciência e aguardar.Esse miserável deve aqui a todos nós, e muito. Deixemosele guardado por outros sequiosos de vingança, tantoquanto nós. Venha, vou levá-lo ao comando dos Guerrei-ros de Ahrimã 107.

– Guerreiros de Ahrimã? o que vem a ser isso?– Somos todos nós, os mortos, que temos sede de

justiça. A justiça que nos foi negada, enquanto nossosalgozes permanecem vivendo alegres e felizes, como senada houvesse acontecido. Nós agimos para retificar esseestado de coisas.

Algum tempo depois, chegaram a uma fortificaçãoespiritual, construída nos moldes das existentes no ImpérioPersa. Entraram, depois do companheiro de Artabanes seter identificado. Depois de atravessarem vários comparti-mentos, todos fortemente vigiados, chegaram a uma salaonde se lia Comando da Divisão de Susa, dos Guerreirosde Ahrimã, e se fizeram anunciar.

107 Antiga cooperativa do Oriente, de Espíritos infelizes, destinada à manutençãodo mal sobre a terra. Mais tarde, com as modificações históricas ocorridas naárea, fundiu-se com grupos semelhantes formados por muçulmanosdesencarnados em estado deplorável, gerando os Verdugos Celestes queinspiraram movimentos cruéis, como o dos Assassinos, Janizaros etc.. Hojeem dia estão desenvolvendo um vasto movimento de instabilidade política noOriente, inspirando os grupos radicais, principalmente na prática do terrorismoindiscriminado (Nota do Espírito Mnêmio Túlio).

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Depois de longa espera, foram recebidos pelocomandante, que asperamente intimou:

– Diga logo o que quer, Astrodalos, pois não tenhotempo a perder. Quem é esse? Disse, olhando desconfiadopara Artabanes.

– É um recém-chegado que vem se inscrever nasnossas fileiras.

– Tem condições para isso?– Sim, comandante. É mais uma vítima de Fasate, e

vem cheio de ódio, querendo a justiça a que tem direito.– Ótimo. Integre-o na sua turma e veja que venha a

ser treinado. E despediu-os de forma brusca.Depois de algum tempo em que foi instruído nas

técnicas da influência espiritual, usando o magnetismo, aprojeção mental etc., Artabanes foi testado na prática,participando de ações de obsessão, primeiramente comoestagiário, depois como membro atuante. O desejo devingança, aliado à sua inteligência e dedicação, fez comque se destacasse em pouco tempo, galgando postos decomando. Tornara-se frio e impiedoso, desconhecendo osignificado da palavra compaixão.

Os anos se passaram, mas nunca perdera Fasate devista, nem a ex-noiva, pois os dois se casaram, vivendoela uma vida infeliz porque, após o consórcio, o pobrecoitado mostrara sua verdadeira face, fazendo-a viver numinferno em vida. Ela, por sua vez, refugiava-se nas práticasde sua religião, bem como nas lembranças dos momentosem que vivera feliz com o noivo falecido.

Rufião, perverso e beberrão, Fasate foi perdendorapidamente suas defesas psíquicas, terminando por setornar um joguete nas mãos de suas antigas vítimasdesencarnadas. Um dia, chegando em casa bêbado, comoera de costume, agrediu a mulher com tanta violência que

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a matou. Preso, foi condenado à morte, sendo decapitadopela sua condição de soldado.

Sahamara, que passara tão difíceis momentos, foirecebida por amigos espirituais, sendo acolhida a umaregião de Espíritos equilibrados, onde se refez e se dedicoua socorrer as esposas maltratadas, que eram inúmeras porcausa dos costumes de então. Assim que se equilibrou,pôs-se a indagar sobre o noivo que desencarnara tantotempo antes dela, vindo a saber das condições em que seencontrava. Desde então, sempre que podia, visitava-osem que ele lhe pudesse detectar a presença, em virtudeda diferença vibratória.

Enquanto isso, Fasate, entregue à sanha vingativade Artabanes, amargava torturas inimagináveis nos cala-bouços da sede administrativa dos Guerreiros, agora sobo comando deste último.

Muito tempo se passou até que um dia Artabanes,que intimamente já se cansava do que fazia, foi atraídopor Sahamara até o local onde começara o romance dosdois. Ali, inspirado pela antiga noiva, pôs-se a rememoraros seus dias de felicidade, sentindo uma saudade enorme.As lágrimas começaram a correr dos seus olhos, e soluçosdoloridos espocavam-lhe no peito. A jovem desencarnada,envolvendo-o em vibrações de intensa emoção, conseguiuelevar-lhe o nível vibratório, induzindo-o a reconhecerno que havia se tornado. Lentamente, uma súplica a Ormuzsurgiu-lhe na mente. Tímida, a princípio, foi se intensifi-cando, graças a amorosa pressão de Sahamara, até que setransformou num brado de socorro às potências celestes.Nesse momento, companheiros de Artabanes que vinhamem sua busca ficaram surpreendidos com o fenômenosingular do implacável chefe das sombras, chorando comocriança, cercado de luz, abraçado por uma linda mulher.

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Tentaram interferir, querendo arrebatar o seu comandantedaquela situação, mas uma parede vibratória impedia aaproximação, e os dois seres desapareceram em outro nívelde realidade da dimensão espiritual.

Transcorrido muito tempo, Artabanes reencarnouna Judéia, na região de Gérasa. Desde pequeno, todavia,apresentou desequilíbrios singulares. Era um sono agitado,cheio de pesadelos tenebrosos, que lhe deixava com osnervos exangues. Quando se tornou adulto, a obsessãoexplodiu de vez. Os antigos companheiros o haviamencontrado e exerciam uma atroz vingança sobre otrânsfuga, que passou a viver acorrentado por causa dosseus violentos acessos. Um dia, quebrando as correntes,fugiu, escondendo-se pelos cemitérios do lugar, vivendouma vida de animal sob o guante dos inimigos invisíveisaté que:

Chegaram do outro lado do mar, à região dosgerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, caminhouao seu encontro, vindo dos túmulos, um homem pos-suído por um espírito impuro; habitava no meio dastumbas e ninguém podia dominá-lo, nem mesmo comcorrentes. Muitas vezes já o haviam prendido comgrilhões e algemas, mas ele arrebentava os grilhões eestraçalhava as correntes, e ninguém conseguiasubjugá-lo. E, sem descanso, noite e dia, perambulavapelas tumbas e pelas montanhas, dando gritos e se fe-rindo com pedras. Ao ver Jesus, de longe, correu e seprostrou diante dele, clamando em alta voz:– Que queres de mim, Jesus, filho do Deus altíssimo?Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes!Com efeito, Jesus lhe disse:– Sai deste homem, espírito impuro! E perguntou-lhe:Qual é o teu nome?Respondeu:– Legião é o meu nome, porque somos muitos.

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E rogava-lhe insistentemente que não os mandassepara fora daquela região. Ora, havia ali, pastando, umagrande vara de porcos.Rogava-lhe, então, dizendo: Manda-nos para os por-cos, para que entremos neles.Ele o permitiu.E os Espíritos impuros saíram, entraram nos porcos, ea manada – cerca de dois mil – arrojou-se no mar, pre-cipício abaixo, e eles se afogavam. Os que apascenta-vam fugiram e contaram o fato na cidade e nos cam-pos. E acorreram a ver o que havia acontecido. Foramaté Jesus e viram o possuído por Espíritos maus senta-do, vestido e em são juízo, aquele mesmo que tivera alegião. E ficaram com medo. As testemunhas lhes con-taram o que acontecera com o obsediado e o que houvecom os porcos. Começaram então a lhe rogar que seafastasse do seu território. Quando entrou no barco,aquele que fora obsediado rogou-lhe que o deixasse fi-car com ele. Ele não deixou, e disse-lhe:– Vai para tua casa e para os teus, e anuncia-lhes tudoo que fez por ti, o Senhor, na sua misericórdia.Então partiu e começou a proclamar na Decápole oquanto Jesus fizera por ele. E todos ficavam espanta-dos108.

108 Mc 5, 1-20.

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Histórias que Transformam

A lua cheia envolvia todo o Oásis em prata e,mais adiante, sua luz se refletia, aqui e ali, em pequeninoscristais, misturados com a areia que se amontoava emsimétricas dunas construídas pelos ventos.

As tendas armadas num hemiciclo, os camelos umpouco distantes, os servos a se movimentarem, atendendoseus serviços, formavam a babélica mistura de sons emovimentos, dando um colorido especial à cena.

Após a refeição, os negociantes e viajantes agrega-dos à caravana espalhavam-se em pequenos grupos aoredor da fogueira, descansando da caminhada do dia eespancando o frio do deserto que começava a descer sobrea ilha de fertilidade, em meio ao mar de areia.

Um pouco isolado, um homem de meia idade liaum pergaminho com muito interesse. Aproximou-se dele,então, um moço, no auge dos seus trinta anos, dizendo:

– Tarik, o sábio, aumenta o seu saber!– A cultura vem dos livros, mas o saber da vida,

amigo Marued.– Mais uma de tuas frases, que é alimento para a

mente. Mas, dize-me Tarik, o que lês com tão grandeinteresse?

– São umas anotações que fiz das lições que ouvide um Mestre da Sabedoria, junto com outras que copiei.

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– Que Mestre é esse, que conseguiu tua simpatia?– Jesus de Nazaré.– Jesus... Jesus... Bem, Nazaré sei que é na Galiléia,

pois já estive em seus arredores quando comerciei nascidades em volta do lago que ali existe. Seus moradoresnão são muito bem vistos pelos das outras cidadesvizinhas. Fica um pouco acima de Caná. Não é assim?

– É isso mesmo. Esse Jesus era daquela cidade, masnão pode ser incluído na fama negativa dos seus con-terrâneos. Eu o conheci durante minha estada, há poucomenos de um ano, na região do lago, numa cidadechamada Kephar-Nahum.

– Sei onde fica, pois sempre passamos por elaquando pretendemos ir para Damasco.

– Isso mesmo.– Mas, fala-me desse Jesus.– Eu o conheci um dia, à beira do lago. Ali estava

uma grande multidão e, por curiosidade, aproximei-meperguntando do que se tratava, e me disseram que aliestava um profeta que operava maravilhas. Dei risada,interiormente, é claro, pois temos visto, como tu sabes,os mais diversos charlatões roubando, sem qualquervergonha, os incautos, com seus encantamentos e poçõesmaravilhosas. Nesse estado de ânimo, abri caminho porentre a multidão, em que havia um grande número dedoentes de todos os tipos, e me acerquei da borda do lago.Ali, pude observar, num barco de pesca, assentado, umhomem moço, na flor dos seus trinta e poucos anos. Nessemomento, ele se pôs a falar:

Eis que o semeador saiu a semear. E, enquanto semea-va, uma parte da semente caiu à beira do caminho. Evieram as aves e a comeram. Uma outra parte caiu emsolo rochoso, onde havia pouca terra, e logo nasceu,

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por causa da pouca terra. Levantando-se o sol, quei-mou-a, e, porque não tinha raiz, secou. Outra caiu so-bre espinhos, e os espinhos cresceram e a sufocaram.Outra caiu em boa terra e deu fruto: a cem, sessenta etrinta por um. Ouça, quem tem ouvidos de ouvir109.

Fiquei intrigado com a história, percebendo que havianela uma lição, mas não conseguia atinar qual. Sim, porquenão era uma história comum, contada pelos que sãoespecialistas, com o fim de divertir. Jesus estava sério,enquanto a contava. Profundamente sério. E a multidãopercebia isso, pois estava num silêncio profundo, impos-sível de se conseguir com um tão grande aglomerado degente. Olhando em volta, percebi que todos estavam atentos,e que, apesar dele não haver elevado muito a voz, todos otinham escutado muito bem, coisa que comprovei mais tardeperguntando a um paralítico que não conseguira acesso àpraia, ficando bem atrás da multidão, muito distante daborda. Era como se ele falasse diretamente e junto de cadaum de nós. E, visto as coisas extraordinárias que fez, e eutestemunhei, para mim era um prodígio o que realizavasempre que falava. Nesse comenos, verifiquei que um dosque estavam com ele no barco, de nome Simão, seudiscípulo, que todos chamavam de Kephas, que significapedra, o interrogou e, apesar de lhe falar com voz normal,todos o escutamos claramente: – Por que lhes falas porparábolas? E sua resposta foi clara e precisa:

– Porque é permitido a vós conhecer os segredos doReino dos céus; a eles, todavia, não lhes é permitido.Porque ao que tem, mais se lhe dará, e terá em abun-dância. Mas ao que não tem, até o que tem lhe serátirado. Por isso, em parábolas eu lhes falo, pois vendo,não enxergam; ouvindo, não escutam nem entendem.

109 Mt 13, 3-9.

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E cumpre-se neles a profecia de Isaías, a qual diz:Ouvireis com os ouvidos, e de forma alguma enten-dereis. E vereis com os olhos, e de forma algumapercebereis, pois o coração deste povo está endureci-do. E, de má vontade, ouviram com os ouvidos; e cer-raram os olhos, para não acontecer que vejam com osolhos, nem escutem com os ouvidos, nem entendamcom o coração, nem se convertam, e eu os cure. Porém,felizes os vossos olhos, pois vêem, e os vossos ouvi-dos, pois escutam. Verdadeiramente, vos digo, muitosprofetas e pessoas corretas ansiaram ver o que enxergais,e não viram, ouvir o que ouvis e não ouviram110.

– Interessante a filosofia desse seu contador dehistórias, meu amigo. Sem dúvida que a vida nos ensinaque aquele que mais tem ganha muito mais, enquanto osque nada têm perdem até mesmo o pouco que possuem.É uma coisa que nós, mercadores, conhecemos bastantebem. Mas o que ele queria dizer com esta história?

– Ele mesmo a explicou, no momento:

Escutai vós, pois, o que diz a parábola do semeador. Atodo aquele que escuta a palavra do Reino e não a en-tende, vem o maligno e arranca o que lhe foi semeadono coração; este é o que foi semeado na beira do cami-nho. O que foi semeado em solo rochoso é o que ouvea palavra, logo a recebendo com alegria, porém nãopossui raiz em si mesmo, antes é de pequena duração.Sobrevindo a angústia e a perseguição, por causa dapalavra, logo a abandona. O que foi semeado sobre es-pinhos, este é o que escuta a palavra; mas os cuidadosdeste mundo e a fascinação das riquezas sufocam apalavra e ela não produz fruto. Mas, o que foi semeadoem terra boa, este é o que escuta a palavra, entendendo-a, e produz frutos a cem, sessenta e trinta por um111.

110 Mt 13, 10-17.111 Mt 13, 18-23.

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– Para quem não conheça a forma de plantar trigocomo os judeus, egípcios e árabes fazemos, poderáestranhar a forma como o semeador lançou suas sementes.Porque, por exemplo, na região que os romanos chamamHispânia, eles primeiro limpam o terreno e aram, parasemear depois, enquanto nós jogamos primeiro a sementesobre o campo a ser plantado, para depois revolvermos aterra com o arado...

– Muito bem lembrado, meu amigo. Eu não tinhapercebido esse detalhe, pois é tão natural para nós essaforma de plantio. Tua inteligência aguçada e teu raciocíniorápido abriram espaço para esse esclarecimento...

– Interessante essa forma de ensinar. Mas que reinoé esse? Será que ele prega uma revolução contra osromanos, para se tornar rei?

– Nada disso. Não é um sedicioso comum, poissempre afirmou que o Reino começa no coração, e, paraque se o alcance, tem que se amar o inimigo e fazer obem a quem nos faz o mal.

– Aí não concordaremos nunca. Se alguém me fazalgum mal, vai receber em dobro, disso tenha certeza!

– É nisso que ele se diferencia dos demais religiososque eu conheci. Faz do amor e da bondade uma regrabásica para os seus seguidores.

– Tudo isto soa estranho aos meus ouvidos, pois,como comerciante, sempre aprendi que devo procurar, portodos os meios, levar vantagem sobre os outros. O inimigosempre me prejudicará, e prejuízo, amigo, é o que nãoposso ter... Todavia, deixemos de lado essa discussão.Gostei da forma desse seu pregador ensinar. Como sechama esse método?

– Mathla, na língua dos judeus, que possui váriossignificados: comparação, enigma, provérbio, revelação,símbolo, figura de ficção, piada. Mas creio que, com

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respeito a ele, podemos dizer que o mathla é umacomparação, senão vejamos:

O Reino dos céus se assemelha ao homem que se-meou boa semente no seu campo. Mas, enquanto dor-mia, veio o seu inimigo, semeou joio no meio do tri-go, e se foi. A erva cresceu e começou a dar espigas,então o joio apareceu. Vindo os servos do dono dacasa, disseram-lhe: Queres que vamos e o arranque-mos? Ele todavia disse: Não, para que, colhendo ojoio, não arranqueis também o trigo. Deixai-os cres-cer juntos, até a colheita. Por ocasião da colheita, di-rei aos segadores: Ajuntai primeiramente o joio e oatai em feixes, para queimar. O trigo, entretanto,guardai-o no meu celeiro112.

– Realmente, interessante esse mathla. Ele usaelementos da vida cotidiana para expressar uma idéia. Essado joio e do trigo é absolutamente correta. As plantas sãoextremamente parecidas e facilmente seriam confundidaspelos que fossem arrancar o joio, com prejuízo, e issonão é bom. Estou gostando cada vez mais desse teu Jesus.Teria dado um grande comerciante...

– E Jesus transformou o mathla não apenas numinstrumento de ensino, mas num instrumento poderosode defesa contra as armadilhas dos escribas, sacerdotes edoutores da Lei, que se erigiram em seus adversários.Vivem procurando fórmulas para desmoralizá-lo. Assimé que lhe propõem perguntas e situações, tentando pegá-lo numa contradição. Certa feita, estava a escutá-lo nosarredores de Betânia, que fica perto de Jerusalém, navertente do Monte das Oliveiras, que dá para o Jordão.Escutávamos atentos suas palavras, quando um Doutorda Lei se levantou e lhe perguntou:

112 Mt 13, 24-30.

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Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?Todos ficamos de sobreaviso, pois não era uma per-gunta gratuita; atrás da aparente simplicidade estavauma armadilha. Jesus lhe retrucou com outra pergun-ta: O que está escrito na Lei? Como é que lês? O Dou-tor da Lei, após alguma hesitação, respondeu: ‘Ama-rás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de todaa tua alma, com todas as tuas forças e de toda a tuamente; e a teu próximo como a ti mesmo.’ Respon-deste bem – disse-lhe Jesus – Faze isto e terás a vida.O Doutor da lei, então, dando um sorriso matreiro,que parecia dizer: agora te apanhei, inquiriu: E quemé o meu próximo? Ao que Jesus, tomando a palavra,disse:Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiunas mãos de ladrões, que o roubaram, cobriram-no deferidas e, deixando-o meio morto, foram-se embora.Casualmente, descia um sacerdote pelo mesmo cami-nho; viu-o e passou para o outro lado. Igualmente,chegou ao lugar um levita; viu-o e passou para o ou-tro lado. Chegou perto dele, também, um samaritanoque ia de viagem; viu-o e se moveu de compaixão;aproximou-se, deitou-lhe óleo e vinho nas chagas e asligou; em seguida, fê-lo montar no seu jumento, con-duziu-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia se-guinte, tirou dois denários e os deu ao hospedeiro,dizendo: Tem cuidado dele, e o que gastares a mais,pagar-te-ei na volta. Qual destes três mostrou-se pró-ximo daquele que caíra nas mãos dos ladrões? Aque-le que lhe fez misericórdia – respondeu o Doutor daLei. Retrucou-lhe Jesus: Vai tu e faze o mesmo113.

A gargalhada de Marued ecoou pelo Oásis fazendocom que todos se voltassem para olhar na direção dos dois.

– Esse Jesus é de fato muito inteligente! Imaginocomo não ficou o Doutor da Lei, sendo obrigado a admitir

113 Lc 10, 25-37.

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que um inimigo execrado como o samaritano tinha sidomelhor do que um sacerdote e um levita. Somente quemsabe o ódio mútuo que se devotam os dois povos, que porironia veneram os mesmos princípios, pode entender adura lição que o enfatuado entendido no mosaísmorecebeu... Mas vejo, pelo teu enorme bocejo, que estáscom sono. Empresta-me tuas anotações para que leia umpouco mais, pois estou tão curioso sobre estes ensinosque não conseguirei dormir tão cedo.

– Leva-os; amanhã me devolverás.– Durma o sono dos justos, meu bom amigo.Na manhã seguinte, antes do sol nascer, Tarik foi

acordado pelo seu amigo Marued.– Acorda, amigo Tarik, pois quem cedo se levanta

tem mais tempo para realizar suas tarefas e aproveitar avida. Quem dorme demais perde preciosas oportunida-des... Vim devolver o teu tesouro, guarda-o no cofre doteu coração, e me despedir.

– Não ias conosco?– Depois de ler os teus pergaminhos, resolvi conhe-

cer o homem que contou tão interessantes histórias. Elassão como água em pleno deserto: vida! Como o meuescravo grego já fez uma cópia dos teus manuscritos, voulendo-os até chegar à Judéia. Assim, quando encontrá-lo,já saberei muito sobre os seus ensinamentos.

– Tens razão, meu amigo. E quando conheceresJesus, verás que o que acabas de ler não é senão umapálida amostra do que ele realmente é: o Mestre da Vida.

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AlimentandoAlmas e Corpos

Simão Barjonas estava sentado num banco rústicoem casa de Ananias, situada no bairro dos vendedores deazeite, na cidade de Damasco. Desde que chegara à cidademilenar, fugindo da perseguição de Herodes Agripa I, oantigo pescador evitava se expor em público, e apenasuma seleta assembléia de cristãos, ao todo cinco pessoas,fora os moradores da casa, reuniam-se para escutar-lheas lembranças de palavras e episódios da vida de Jesus.

Os olhos do Filho de Betsaida brilhavam ao calordas lembranças, enquanto a voz lhe traía a emoçãoprovocada pelas cenas que a memória liberava. Recordo-me perfeitamente – dizia ele – do dia em que o Mestrenos reuniu, a nós que fazíamos parte dos doze que eleescolheu para o acompanharmos em todos os momentos,e disse que era chegado o momento de partilharmos doseu trabalho de difusão da Boa Nova do Reino de Deus.Dividiu-nos em seis grupos de dois, designando para cadadupla uma região da Terra Santa, onde deveríamos pregara Palavra, bem como atender os doentes, curando-os deseus males. Eu e João ficamos juntos, cabendo-nos aregião ao norte de Jerusalém, compreendendo as cidades

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de Jope, Lida, Arimatéia, Emaús, Jericó e Efraim, alémde povoados diversos. Deu-nos autoridade sobre osEspíritos impuros e o poder de curar todo tipo de doença.Não deveríamos levar coisa alguma, além da roupa docorpo, das nossas sandálias e um cajado em que nosapoiássemos na caminhada, principalmente nos lugaresíngremes. Nem dinheiro ou comida, pois deveríamosexercitar a fé na Providência Divina, a qual sempre amparae provê aqueles que se colocam sob sua proteção numaentrega absoluta. Escuto ainda sua voz, dizendo:

Onde quer que entreis numa casa, nela permaneceiaté vos retirardes do lugar. E se algum lugar não vosreceber, nem quiser ouvir, ao partirdes de lá, sacudi opó de debaixo dos vossos pés em testemunho contraeles. 114

O ex-pescador parou um pouco para respirar e beberum gole de água, continuando: Foi uma experiência muitoboa. Éramos desajeitados e tímidos no começo, comoacontece com todo e qualquer novato. Mas aos poucosfomos ganhando confiança, pois tudo acontecia com muitafacilidade, porque Deus nos amparava sempre. Lembrocom emoção a primeira cura que realizamos. Foi emArimatéia. Tínhamos falado na sinagoga, despertandoalguns para o Reino de Deus. Dentre os que ouviram apalavra e foram tocados por ela, estava um fariseu de nomeJosé, que se tornou discípulo de Jesus e, quando da suamorte, deu o sepulcro de sua propriedade, que havia acaba-do de mandar escavar. Convidou-nos para ir à sua casa,hospedando-nos com muito carinho e gentileza, poisdesejava saber mais sobre o Mestre, sobre o qual já ouvira

114 Mc 6, 10-11.

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referências, e seus ensinamentos. Quando lá chegamos,vimos seu filho mais novo doente com o corpo aberto emferidas. Perguntamos-lhe se desejava que o menino ficassebom, respondendo-nos que era o que mais queria, poistanto ele como sua esposa estavam angustiados com oseu sofrimento. Pedimos licença à mãe e untamos ocorpinho ferido da criança com óleo, como o Rabi nosensinara a fazer, e, em seguida, estendemos as mãos sobreela, invocando as bênçãos de Deus para que a cura serealizasse. Imediatamente o menino dormiu como setivesse tomado uma infusão anestesiante. Os pais deramlouvores a Deus de alegria, pois há quatro noites o garotonão conseguia dormir tão profundamente. Passamos a outrocômodo onde foi servida a refeição, pois era a hora sexta,enquanto falávamos sobre os ensinamentos em que Jesusnos instruíra. Quando terminamos todos de nos alimentar,a esposa de José foi ao quarto do filho de onde saiu emexclamações de surpresa e júbilo – o corpo da criança estavacompletamente limpo, sem qualquer ferida ou marca, comose nunca tivesse sofrido daquela doença. Confesso quechorei de emoção diante daquela prova evidente de queDeus nos amparava o trabalho. Depois de um mês,conforme Jesus estabelecera, voltamos para dar conta denossa missão. Chegando em Cafarnaum, em minha casa,Jesus não se encontrava, pois tinha saído durante a noitepara orar nos montes da cercania da cidade. Mas lá já seencontravam Natanael e Bartolomeu, que nos receberamcom muita alegria, e passamos a conversar sobre osacontecimentos de nossas missões. Eles estavam eufóricos,pois haviam conseguido curar alguns que estavampossuídos por Espíritos impuros. Pouco a pouco, foramchegando os outros, todos muito felizes com o sucesso deseus esforços. Finalmente, chegou o Rabi. Abraçou-nos um

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por um, dando-nos as boas vindas e comentando, antes quehouvéssemos contado qualquer coisa, lances importantesacontecidos com cada dupla. Apesar de já estarmosacostumados com sua capacidade de ver à distância, pormais longínqua que fosse, bem como ler os pensamentosdas pessoas, ficamos admirados, mais uma vez, com o seupoder espiritual. O mestre então nos disse: “Vinde vós,sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco115”. Istoporque a casa estava repleta de gente, e uma multidão já seaglomerava à porta, impedindo qualquer descanso.Rumamos para o lago, tomamos o barco e fomos em direçãoa Betsaida, para uma região deserta nas margens do Jordão.

Assim que ele desembarcou, viu uma grande multi-dão e ficou tomado de compaixão por eles, pois esta-vam como ovelhas que não têm pastor. E começou aensinar-lhes muitas coisas.116

Simão parou novamente para respirar e umedecer agarganta ressequida, com mais um gole de água, prosse-guindo: Foi mais uma oportunidade de estafante trabalho,atendendo todos. Nós, os seus discípulos, esforçávamo-nos para protegê-lo da multidão e organizar o atendimento,pois todos, à uma, queriam falar com ele, tocá-lo. Se nãomantivéssemos constante vigilância, formando um cordãoprotetor com nossos corpos, ele poderia ser esmagado pelaturba. O impressionante é que, em meio a toda confusãode empurra-empurra, o Rabi permanecia sereno. Nuncalhe ouvi a menor palavra ou gesto de irritação nem surpre-endi no seu rosto qualquer sinal de contrariedade. Pareciaque nada estava ocorrendo, e quando acontecia algum de

115 Mc 6, 31.116 Mc 6, 34.

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nós tratar com rispidez ou empurrar alguém, mesmo queligeiramente, ele imediatamente repreendia, chamandoatenção para o dever do amor e carinho ao próximo. Comoa hora ia muito avançada, aproximamo-nos dele duranteum momento em que houve um aquietar de toda amultidão, e Simão, o Zelota, fazendo-se intérprete dasnossas preocupações, disse-lhe: “– O lugar é deserto e ahora já muito avançada. Despede-os, para que vão aoscampos e povoados vizinhos e comprem para si o quecomer 117”. Para surpresa nossa, Jesus respondeu: “– Dai-lhes vós mesmos de comer118”. Retrucamos todos, a umasó voz: “– Iremos nós e compraremos duzentos denários119

de pão para dar-lhes de comer?120”. A verdade é que nãotínhamos aquela quantia, mas talvez pudéssemos arrecadá-la da multidão, e, mesmo assim, não tínhamos certeza deque daria para alimentar todos, o pão que adquiríssemoscom aquele dinheiro. Mas ele perguntou: “– Quantos pãestendes? Ide ver121”. Ao verificarmos entre nós, voltamospara ele e respondemos: “– Cinco pães e dois peixes122”.O Mestre, então, ordenou-nos que fizéssemos todos seassentarem na relva, em grupos, para facilitar o trânsitoentre eles. Fizemos o que nos ordenara, muito admiradose confusos. “E se sentaram no chão, repartindo-se emgrupos de cem e de cinqüenta”.123 Apesar de já termospresenciado, como também realizado, muitos prodígios,

117 Mc 6, 35-36.118 Mc 6, 37.119 Denário era uma moeda romana, cunhada em prata, que trazia a efígie do

imperador com uma inscrição. Valia uma dracma. Era a diária de um trabalhadornas vinhas. Quando havia carestia, era esse o valor de uma medida de trigo outrês de cevada.

120 Mc 6, 37.121 Mc 6, 38.122 Mc 6, 38.123 Mc 6, 40.

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a verdade é que começamos a imaginar que ele não estavabem. Havia tomado a cesta com os pães e os peixes e agiacomo se fora distribuí-los ao povo. Não iria dar nem umfarelo para cada um, pensávamos, sem coragem deexternar nossos pensamentos. Quando todos estavamacomodados, o Senhor,

Tomando os cinco pães e os dois peixes, elevou osolhos ao céu, abençoou, partiu os pães e os deu aosdiscípulos para que lhes distribuíssem. E repartiu tam-bém os dois peixes entre todos. Todos comeram e fi-caram saciados. E ainda recolheram doze cestos chei-os de pedaços de pão e de peixes. E os que comeramdos pães eram cinco mil homens.124

Nosso espanto não teve limites. Íamos e vínhamoscom pedaços de pães e peixes, distribuindo-os com osgrupos, que os passavam de mãos em mãos. Primeiro,conforme ordem de Jesus, eram para as crianças, aspessoas mais idosas, as mulheres, os doentes e finalmenteos jovens. Cada vez que ele punha a mão no cesto, euimaginava – vai acabar –, e a verdade é que nunca acabava.Os pães e peixes pareciam se multiplicar, o que aconteceude fato, e de uma forma maravilhosa. Coisa semelhanteem nossas escrituras só a farinha de trigo e o azeite daviúva de Sarefta125, abençoados pelo profeta Elias, queproduziu por cerca de três anos sem se esgotar126.

Calou-se Simão, com os olhos perdidos nas brumasda lembrança, como a reviver todas as minúcias do episó-dio, enquanto duas lágrimas de saudade rolavam sobresua vasta barba, molhando-lhe a túnica.

124 Mc 6, 41 a 44.125 Hoje, com o nome de Sarafand, cidade situada na costa do Mediterrâneo, a 15

km de Sidon.126 Ver 1 Rs, 17.

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No rosto de todos, estava expressa a emoção que orelato de Simão transmitiu.

Ananias, com voz trêmula, anunciou: Meus irmãos,o Mestre está conosco neste momento. Vejo-o envolto emluz, ao lado de Simão Pedro, com a mão direita sobre oseu ombro.

Sob o impacto da revelação do notável médium deDamasco, todos se puseram de joelhos com a mente emprece.

Vibração de imensa paz envolveu o recinto enquantooloroso e suave perfume desconhecido saturava oambiente...

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Na Calada da Noite

Lázaro estava sentado com Jesus no jardim de suacasa em Betânia. Alguns dos discípulos haviam ficadoem Jerusalém, em casa de Maria Marcos, enquanto osque tinham vindo até ali com o Mestre já estavam dormin-do, cansados das andanças do dia. Com o seu anfitrião,Jesus aguardava um visitante que viria de Jerusalém,trazido por João, a fim de ter consigo uma entrevista.

A primeira vigília já ia a meio quando chamaramno portão de entrada. Era João, acompanhado do esperadovisitante.

O recém-chegado foi apresentado como Nicodemos,membro da facção dos fariseus e de alguma projeção noSinédrio. O seu nome, de origem grega, denunciava umjudeu oriundo da diáspora, e de fato seu pai morara emÉfeso, onde comerciava com vinho, e ali ele havia nascido.Mais importante do que ser um Vencedor do Povo127 é servencedor de si mesmo, disse Jesus ao visitante, à guisade saudação, enquanto lhe dava o ósculo de boas vindas.

Depois de Nicodemos ter recebido o tratamento queera dispensado aos hóspedes, iniciou a conversa, motivoda visita: “– Rabi, sabemos que vens da parte de Deuscomo um Mestre, pois ninguém pode fazer os sinais quefazes se Deus não estiver com ele”128.

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127 Nicodemos, em grego, significa Vencedor do Povo.128 Jo 3, 2.

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Nicodemos vinha tomando conhecimento dos feitosdo Mestre desde que recebera uma carta do seu amigoJairo, um dos principais da sinagoga de Cafarnaum,contando-lhe como sua filha fora revivida por ele, bemcomo a cura instantânea de uma mulher portadora, haviamuitos anos, de um incurável fluxo de sangue, da qualfora testemunha, justamente no dia em que estivera a pontode se ver privado de sua querida Débora.

Ainda nesse mesmo dia, acompanhara a estada deJesus no Templo, vendo-o curar vários doentes e escutandoseus pronunciamentos à multidão. No Sinédrio, antes devir para Betânia, acompanhara acerba discussão sobre oNazareno, tendo como ponto quase unânime o aspectosubversivo do Rabi Galileu. Muitos exigiam medidasdrásticas para eliminar no nascedouro o perigo que elerepresentava. Havia, entretanto, alguns, como José deArimatéia, que ponderavam a necessidade de se tercuidado, pois seus sinais indicavam uma origem divinade poderes, e nesse caso poderiam entrar em conflitoaberto com o próprio Deus, o que seria um absurdo, jáque eles todos buscavam justamente cumprir a Vontadedo Todo-Poderoso. Já os Saduceus, unanimemente, procu-ravam descaracterizar as curas como sendo realizadas porintervenção do Senhor dos Estercos129. Finalmente, sehavia decidido que alguns Escribas, Sacerdotes, Fariseuse Saduceus procurariam, independentemente, investigaro novo Rabi, acompanhando suas andanças e testando-ocom argumentações religiosas e políticas para apanhá-loem algum deslize, montando uma base legal para quepudesse ser levado a julgamento e, como a maioria deseja-va, condená-lo à pena máxima. Eliminar-se-ia, então,

129 Baal-Zebu, aliterado para o grego como Belzebu.

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aquele foco de distúrbios sociais que punha em risco aprópria estabilidade da nação, como sublinhara Caifás,o Sumo Sacerdote em exercício, que era um mero títeredo seu sogro Anás, afastado do cargo pelos romanos, masque continuava a exercer o poder como eminência parda.

Jesus, olhando nos olhos do fariseu que se mostrouinquieto com o olhar que sentia vasculhar-lhe os segredosmais íntimos, retrucou: “– Em verdade, em verdade tedigo: quem não nascer de novo, não pode ver o Reino deDeus”130.

A autoridade do Sinédrio ficou perplexa. O quesignificaria nascer de novo? de que maneira? Muitosfariseus defendiam que as almas das pessoas boasretornavam à terra em outros corpos. Nunca conseguiraatinar como isso era possível, e agora o Rabi falava amesma coisa. Por isso, inquiriu: “– Como pode um homemnascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vezno seio de sua mãe e nascer?”131

O Mestre, com sua paciência, esclarece a Nicode-mos: “– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascerda água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”132.

A água, desde os primórdios da Humanidade,sempre foi considerada como representação da matéria eorigem de tudo. Tales de Mileto (±620-547 a.C.) faz ecodessa tradição quando, iniciando a era do pensamentofilosófico, postula que a água seria o princípio originárioe fundamental de tudo o que existe. Portanto, estabeleceJesus duas condições básicas: nascer da matéria, isto é,em novo corpo, através da reencarnação, e simultanea-mente do Espírito, ou seja, espiritualizar-se, libertando-

130 Jo 3, 3.131 Jo 3, 4.132 Jo 3, 5.

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se da prisão material. Para corroborar o que afirmamos,sigamos o Mestre nos seus esclarecimentos: “O que égerado pela carne é carne, o que é gerado pelo Espírito éEspírito. Não te admires, pois, de eu te haver dito: Importapara vós nascer outra vez”.133

Ficava caracterizada a necessidade do renascimentomaterial na geração carnal e da regeneração espiritual,fruto do aperfeiçoamento moral, numa evolução ética. “OEspírito sopra onde quer, e escutas a sua voz; mas nãosabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aqueleque é nascido do Espírito”.134

Hoje, à luz dos ensinos espíritas, diríamos: o Espíritose manifesta onde deseje e, pela audiência, escutas suavoz, mas não sabes de sua origem ou destino. Da mesmaforma, o que se espiritualiza transcende os níveis mate-riais, e tu, que ficaste preso às necessidades das lidesreencarnatórias, não podes conhecer seus caminhos.

O fariseu estava atônito: “– De que maneira issopode acontecer?” 135

Foi quando o Mestre denotou surpresa:

– És o mestre em Israel e ignoras essas coisas? Emverdade, em verdade te digo: falamos do que sabe-mos e damos testemunho do que vimos, porém nãoacolheis o nosso testemunho. Se não credes quandovos falo das coisas da Terra, como ireis crer quandovos falar das coisas do céu? 136

Durante muito tempo, Jesus falou sobre o problemadas vidas sucessivas, usando uma linguagem passível de

133 Jo 3, 6-7.134 Jo 3, 8.135 Jo 3, 9.136 Jo 3, 9.

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entendimento se bem interpretada pelo fariseu. Fê-lo saberque, acima de todas as considerações de ordem dogmática,está a necessidade de se realizar a mudança da mente numatransformação radical, sempre para melhor, de hábitos eatitudes, idéias e conceitos, terminando por fazer do beme da virtude uma prática normal da existência.

Alta madrugada, Nicodemos se despediu do Mestre,demandando a Jerusalém em fundo cismar. Jesus, por seulado, saiu da casa de Lázaro tomando caminho encostaacima do Monte das Oliveiras em busca do horto doGetsêmani, onde se entregaria á oração pelo resto da noite.

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Uma SessãoEspírita no Tabor

Era a primeira vez que Flávio Marcelo participavade uma assembléia cristã. Ainda se sentia fraco, devidoao longo período de obsessão pertinaz que sofrera, masestava espiritualmente renovado desde que lhe fora minis-trada a cura por Clódio, a mando do Espírito de Jesus137.

Foi recebido com carinho pelos colaboradores dainstituição; sentia, embora, a natural inadaptação, comuma todos os neófitos. Os freqüentadores se assentavam embancos rústicos de madeira no grande átrio da Casa deJesus. Eram pessoas de todos os níveis sociais, sendopredominantes as das classes pobres, também escravos,que vinham participar da reunião de esclarecimento sobreos ensinos da Boa Nova e procurar, em muitos casos, acura de seus males físicos ou morais.

Clódio o abraçou gentilmente com um sorriso dealegria, dizendo:

– Marcelo, que a Paz de Jesus seja contigo. É comimenso júbilo que a Casa de Jesus te recebe, pois sei que

18{

137 Ver Encontro com Jesus, Djalma Argollo. Salvador–Bahia: Fundação LarHarmonia, 2005.

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em breve serás um dos grandes trabalhadores da seara doMestre.

Acanhado pela falta de hábito de conviver emambiente de sincera espontaneidade, sem os habituaisprejuízos da sociedade, respondeu meio sem jeito:

– A tua generosidade é muito grande para umcriminoso infeliz.

Imediatamente, Clódio pôs as mãos sobre seuslábios, impedindo-o de continuar:

– Flávio, Jesus oferece a todos nós a oportunidadeda renovação dos hábitos e atitudes. Nenhum de nós aquitem passado imaculado. O Mestre veio para os doentesda alma e não para os bons. Sua misericórdia nos acolhee socorre, ajudando-nos no processo de remissão dopassado enegrecido pela culpa.

Retirando, então, de dentro da túnica, um rolo depergaminho, o ofereceu ao centurião: Eis aqui um livroque te ajudará a compreender melhor o que te expliqueiquando do nosso primeiro encontro. É uma coleção dosditos do Senhor, escrita pelo Apóstolo Levi, a qual fiztraduzir do aramaico, tanto em grego como em latim,acrescentando-lhe vários episódios da vida do Mestre, queouvi de discípulos que tiveram a ventura de conviver comele, principalmente de Simão Pedro e Natanael. Esta éuma tradução para o grego, língua que manejas comperfeição. Lê e medita para melhor conheceres seusensinamentos e exemplos. Agora, vem sentar-te perto demim, participando de nosso ensino público, quandorecordaremos passagens da vida de Jesus para edificaçãode todos e oraremos a suplicar suas bênçãos para todosnós e os doentes em particular.

Colocando Flávio Marcelo num banco próximo aele, o discípulo do Nazareno, de pé, pôs-se a falar: Meus

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irmãos, que a bondade do Senhor habite nossas almas.Hoje estive meditando num episódio que me foi narradopor Tiago, um dos primeiros a serem chamados por Jesuspara o apostolado, juntamente com João – do qual erairmão –, e que, à semelhança do Mestre, foi morto pelosinimigos da Verdade. Contou-me então:

Certo dia, quando nos dirigíamos para Jerusalém,depois de atravessarmos a Samaria, o Senhor nos fez pararno sopé do monte Tabor, onde havia uma plantação deOliveiras, para descansarmos um pouco. Era a primeirahora do dia, e caminhávamos desde a terceira vigília daNoite. O Sol havia se levantado há pouco no horizonte, eas folhas das árvores, bem como a relva, apresentavam-se molhadas de orvalho. Chamando-nos, a mim, João eSimão Barjonas, recomendou aos outros que ficassem ali,ao redor do poço, enquanto subiríamos ao alto do monte.Seguimo-lo intrigados, mas sem fazer perguntas. Aochegarmos no alto, fez-nos sentar sobre nossas capas,estendidas sob a copa de árvores ali existentes. Depois deconversar conosco por algum tempo, recomendando quemantivéssemos a mente em oração e o coração livre dequaisquer preocupações, fechou os olhos, pondo-se ematitude de prece. Começamos a sentir que a atmosfera emredor tornava-se leve, enquanto uma doçura indescritíveltomava-nos o peito como se estivéssemos sendo preenchi-dos por um mel divino. Ao mesmo tempo, um torporagradável passou a tomar conta de todos nós. Sentíamoscomo se uma substância invisível saísse de nossos corpos,espalhando-se pelo ambiente. De repente, o corpo de Jesusprincipiou a emitir uma luz impossível de ser descrita, esuas vestes tornaram-se imaculadamente alvas. E então,ó prodígio dos prodígios, ladeando o Mestre, apareceramduas pessoas imponentes, emitindo, da mesma forma,

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intensa luminosidade, se bem que de menor beleza e fulgordo que a dele. Uma voz misteriosa sussurrou aos nossosouvidos: o da direita é Moisés, o libertador de nosso povo,e o da esquerda é Elias, o vigoroso mensageiro de Deus.Um gozo celestial nos encheu a alma. Estávamos diantede duas personalidades marcantes da História de nossaraça. Lágrimas de alegria nos inundavam a face. Havíamosassistido a notáveis prodígios realizados pelo Rabi, masaquele excedia a todos, sendo superado apenas pelo seuressurgimento após a morte. Moisés e Elias conversavamcom ele sobre os eventos de sua prisão e morte, que,segundo informavam, aconteceriam, como de fatoaconteceram em breves dias. Jesus lhes transmitiainstruções sobre como deveríamos ser protegidos. Seiapenas o geral, pois não conseguia fixar detalhes por mesentir como querendo adormecer, o mesmo ocorrendo comos outros dois. Repentinamente, com o açodamento quesempre lhe marcou a personalidade, Simão falou, dirigindo-se ao Senhor: “Mestre, é bom estarmos aqui. Se quiseres,construiremos três tendas: uma para ti, outra para Moisés eoutra para Elias”.138 Mal acabara de falar, uma espécie denuvem luminosa envolveu todos nós, e uma voz, impossívelde descrever, disse: “Este é o filho em quem me rejubilo. Aele, ouvi”.139 A nós, pareceu que o próprio Deus nos falava.O medo tomou de assalto os nossos corações. Lançamo-nos por terra, com o rosto coberto pelas mãos e o corpotodo a tremer. Senti, então, a mão de Jesus tocar-me oombro, enquanto ele dizia: “Não temais, e levantai-vos”.140

Ergui o rosto, ainda assustado, mas tudo havia voltado aonormal. Moisés, Elias e a nuvem tinham desaparecido.

138 Mt 17, 4.139 Mt 17, 5.140 Mt 17, 7.

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Enquanto descíamos o monte, o Mestre recomendou: “Nadadigais do que acabastes de ver, até que o Filho do Homemtenha se levantado de entre os mortos”.141 Nesse instante,lembrei-me de uma profecia que corria entre os Doutoresda Lei, que levantara em mim uma dúvida, havia algumtempo, e perguntei: “– Mestre, por que dizem os Escribas eos Fariseus que Elias haveria de vir primeiro?”142 Preocu-pava-me o assunto, pois Jesus, não tinha dúvidas, era oMessias, mas se Elias não viera, então havia uma falha nasprofecias. O Mestre respondeu à minha inquirição, dizendo:

– Sem dúvida, Elias há de vir para restaurar todas ascoisas. Eu, porém, vos digo que Elias já veio, masnão o reconheceram. Pelo contrário, fizeram com eletudo o que quiseram. Da mesma forma, o Filho doHomem sofrerá da parte deles.143

No mesmo instante compreendi, como também os outros,que se referia a João, O Que Mergulha. Entendi, então, oporquê da minha pergunta. Alguma coisa na figura de Elias,que acabáramos de ver, lembrava João. Não que houvessesemelhança nos traços do rosto, mas havia algo sutil namaneira de falar, nos gestos, que me havia parecido familiar.As profecias, portanto, haviam se cumprido integralmente.Elias renascera como João, O Que Mergulha. Era ummistério para mim, mas já houvera muito mistério naqueledia, e não quis aprofundar o assunto.

Assim, meus irmãos, foi a vida de Jesus. Umasucessão de prodígios, que continuam ocorrendo por suaDivina intercessão, entre nós...

Nesse momento, a pessoa de Clódio sofreu umamudança radical. Seu corpo se inteiriçou e a fisionomia

141 Mt 17, 9.142 Mt 17, 10.143 Mt 17, 11-12.

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se transformou com os olhos voltando-se para cima,deixando aparecer o branco do globo ocular, comoacontece com aqueles que sofrem desmaio. A voz sealterou, e ele se pôs a falar completamente mediunizado:Irmãos queridos. Alegra-me o coração que Clódio tenharelembrado esse episódio que lhe narrei quando nosencontramos em Jerusalém, pouco depois doressurgimento do Mestre. Jesus, em sua bondade,aprouve fazer de nós, humildes servos, testemunhas doseu poder incalculável para que fôssemos, entre oshomens, intérpretes do seu incomensurável Amor. Hoje,na Pátria Celestial, posso afirmar que seus ensinamentossão a expressão da Vontade do Pai Celeste e guias segurospara a nossa redenção espiritual. Venho a esta casa,edificada em seu nome, para trazer mensagens deestímulo e alegria a todos e, em particular, ao nosso irmãoFlávio Marcelo, que nos visita pela primeira vez, àdisposição do Senhor.

Citado nominalmente, o centurião se moveu,espantado, arregalando os olhos, postos na figura deClódio em transe, enquanto o Espírito de Tiago prosseguia:Meu irmão, nosso Mestre te resgatou das sombras do male da possessão para uma grande tarefa. Em breve, o irmãoClódio virá para o Seio de Abraão a fim de receber o justoprêmio pela dedicação aos ideais de Amor e Caridade,para os quais tem vivido de maneira integral. De acordocom a vontade de Jesus, assumirás o seu lugar à frentedeste núcleo do Bem. Prepara-te, pois, com empenho eperseverança, lutando para te transformares interiormente,sepultando o militar arbitrário e arrogante que ainda existeem ti e deixando surgir o Filho dos Céus, ainda em embriãoem tua alma. É a oportunidade de quitares os débitoscontraídos com a Lei Divina, através do serviço fraternal.

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Voltando-se para o auditório, que escutava emocio-nado suas palavras e, em lágrimas, após a revelação damorte próxima do missionário por quem todos nutriamimensa afeição, prosseguiu: Não deixeis que a tristezaensombre vosso coração. O irmão Clódio se fez merecedordo prêmio do retorno à Pátria Celestial. Ao contrário doque imaginam os homens, presos a uma visão restrita darealidade, a morte é uma bênção para todos os quesouberam fazer da existência uma oportunidade deelevação. Só devem temê-la os que carregam a consciênciamarcada pelo crime, enlameada pelos vícios, ou as mãosvazias de boas obras. Além do mais, o nosso irmãoprosseguirá em Espírito junto a vós, compartilhando comos nobres trabalhos desse ninho de amor, que, como jávos disse, não sofrerão solução de continuidade,permanecendo ativos e no mesmo nível de espiritualidade.Jesus guarda muitas esperanças naquele que escolheu paraa sagrada missão de dirigir sua casa.

A frase foi dita com marcada intensidade, voltando-se a entidade para Flávio Marcelo, em cujas facesescorriam lágrimas de emoção.

A seguir, dirigindo-se aos cooperadores presentes,solicitou que fossem trazidos os doentes, e, impondo asmãos sobre eles, a todos curou em nome de Jesus,enquanto perfumes variados percorriam o ar, saturado desublimes vibrações. Depois, deslocando o médium parao interior da casa, atendeu muitos enfermos que aliestavam internados, portadores de doenças muito graves.Poucos receberam a cura completa. Outros, em faseterminal, receberam estímulos para uma desencarnaçãotranqüila, tendo suas dores estancadas, o que se percebiaem suas faces, que estampavam alívio e paz.

Em continuação, retornando à assembléia, falou-lhes ainda por algum tempo, dizendo que em breve seriam

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todos os cristãos a demonstrarem fidelidade à Fé, pois asaglomerações do mal, na espiritualidade inferior,planejavam uma perseguição sistemática contra os Servosda Boa Nova. Mas que ninguém se atemorizasse, porqueas Forças do Bem, lideradas pelo Cristo, estariam ao ladode todos, amparando-os nos transes difíceis. Finalmente,orou fervorosamente, deprecando, ao Senhor, amparo eproteção para todos.

Enquanto a prece se evolava através dos lábios domédium, ele se iluminava num fenômeno de transfigu-ração semelhante ao que fora narrado. Irradiava um azulclaro com reflexos violeta, e do seu tórax projetavam-se,a intervalos regulares como que marcados por invisívelcompasso, jatos luminosos que atingiam a todos ospresentes, fazendo-os sentir indescritível paz e alegria.

Finda a prece, retirou-se do médium, que foi cercadopor todos. Clódio se mostrava consciente do aviso dapróxima desencarnação. Seus olhos irradiavam alegria,enquanto confortava os mais tristes com palavras deânimo, edificando pela serenidade natural. Voltando-seentão para Flávio Marcelo, disse-lhe: Sabia que o Mestretinha um propósito quando me enviou à tua casa. Dou-lhe graças pela providência. Sei que serás um fiel servidor,e que esta Casa crescerá em espiritualidade e serviço soba tua direção. Vem, não percamos tempo. Vou te introduzirnos simples segredos da nossa administração, pois anseioir ao encontro do querido Mestre.

Um sorriso de pura alegria iluminava o rosto doservo abnegado. Flávio, em lágrimas, não sabia o que dizerdiante de tantas e inesperadas emoções. Abraçado porClódio, demandou ao interior da Casa de Jesus,começando a tarefa de se integrar nos serviços da CaridadeAtiva.

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Expulsão dosVendilhões do Templo

Caio Valério ao seu amigo muito querido Tércio.Saudações.Exoro aos deuses muitas felicidades para tua amada

Níobe, que, além da aparência bela das ninfas, possui anobreza de Juno, bem como para teus diletos filhosAscânio e Pulquéria.

Aproveitando o Correio Imperial, que parte hojeainda para Roma, envio-te um ligeiro resumo dosacontecimentos desde a minha chegada a este territóriodo nosso Império.

A viagem foi muito agradável. De Óstia até o portode Cesaréia Marítima, o mar esteve calmo como umespelho líquido, coisa bastante incomum nesta época doano.

Fiquei hospedado no palácio do Procurador, quetinha partido para Jerusalém, principal cidade da Judéia,como sabes.

Dois dias depois, fui conduzido por uma escoltade legionários até aquela cidade, que fervilhava de gente.Soube, depois, que eles comemoram várias festasreligiosas, mas esta que encontrei em preparação é a

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principal. Chama-se Páscoa e, segundo dizem, recordaeventos acontecidos há muitos séculos, no Egito, quandoum de seus heróis ancestrais, de nome Moisés, libertou oseu povo do jugo servil que sofria sob os faraós.

A história tem o sabor mitológico dos contos gregos,pois fala de fenômenos maravilhosos e atuação de forçasdivinas – ou será melhor dizer de uma força divina? poiseste povo adora um Deus apenas, que afirmam pretensio-samente ser o único que existe. Comemoram a data comum banquete que segue uma norma ritualística. O chefeda família faz uma oração de abertura da cerimônia.Depois, há um ritual de abençoar os cálices de vinhos.Finalmente, come-se o cordeiro, um espécime imaculado,sacrificado pelos sacerdotes no Templo. Esse requisito éfundamental e, por isso, não se pode comemorar a Páscoafora de Jerusalém. Juntamente com o animal, comem-seervas amargas, pães não fermentados e uma bebida feitade várias frutas – o Haroset.

Você deve estar se perguntando como sei de tudoisso, pois o banquete é vedado a não-judeus. Quem mefez um relato disso e de muitos outros costumes destepovo foi um escravo do Procurador, que pertenceu a umjudeu eminente daqui por muitos anos.

O fato é que, por esta época, judeus de todas aspartes do Império acorrem a Jerusalém, que fica super-lotada. É muito comum, devido à multidão e à exaltaçãoreligiosa, explodirem atitudes de rebeldia contra o domíniode Roma, por parte de elementos radicais. Por isso, asmedidas de vigilância são redobradas e severas.

Apesar das preocupações naturais do momento detensão, Pôncio Pilatos se mostrou deveras gentil e atencio-so para comigo diante da tua carta de apresentação.Providenciou acomodações excelentes e um serviço

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perfeito, levado a efeito por seis escravos, sendo doishomens e quatro mulheres, todos da Bitínia. O Procuradorse referiu a ti e ao teu pranteado pai com expressões decarinho e reconhecimento. Encontrei aqui o SenadorPublius Lentulus, que veio comissionado pelo Senado,acredito que em alguma missão política. Veio com afamília, e tive oportunidade de encontrá-lo, e a esposa,num jantar que Pilatos ofereceu em sua homenagem.

Como o tempo urge, quero narrar-te um episódiointeressante ocorrido ontem. Estava visitando o Templo,acompanhado do escravo a quem me referi, que meexplicava tudo o que ali havia e acontecia. O primeiroTemplo foi erguido por Salomão, o terceiro rei judeu. Porsinal, esse rei era um déspota oriental. Imagine que,segundo narrado nas escrituras judaicas, teve trezentasesposas e setecentas concubinas. Como vês, um verdadei-ro fauno. Dizem que foi o mais sábio dos governantes daJudéia. Imagina.

Esse Templo, contudo, é novo. Foi construído porHerodes sobre as ruínas do anterior, incendiado pelastropas do teu ancestral Pompeu quando conquistouJerusalém. Na verdade, ainda não está terminado, poisfaltam ser erguidos alguns muros externos.

É uma construção imponente. Possui uma série decolunatas, os átrios, que o dividem internamente em trêsgrandes espaços: o átrio das gentes, a que tem acessoqualquer pessoa, judeu ou não; em seguida, o átrio dasmulheres, que, como o nome indica, é até onde têm acessoas mulheres; mais adiante, o átrio onde somente os judeuspodem entrar; é proibido a qualquer não-judeu ultrapassaro átrio das gentes, sob pena de ser morto imediatamente.

No átrio externo, sob as colunatas, estão os chama-dos pórticos. O de Salomão, em homenagem àquele rei, é

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dos mais freqüentados. E foi aí que justamente ocorreu ofato interessante. Os pórticos estavam regurgitando degente. Ouviam-se as línguas mais variadas, bem comoviam-se as vestimentas mais estranhas. Grande númerode pequenas mesas encontravam-se espalhadas por todoo lugar, atrapalhando o trânsito das pessoas. Eram mesasem que os cambistas estavam exercendo o seu mister detrocar moedas para os visitantes de todas as partes domundo que precisavam de dinheiro romano a fim decomprar os animais destinados aos sacrifícios que ali serealizam. Esses animais ficavam espalhados por ali: bois,ovelhas e pombas. Imagina que barulho e que fedor. Maisparecia um mercado do que um templo. Repentinamente,amigo, apareceu um homem de cabelos compridos e barba,cercado de alguns acólitos. Vim a saber depois que seunome é Jesus, de Nazaré, uma cidade da região da Galiléiaque fica bem ao norte e onde existe um lago que eleschamam ufanamente de Mar da Galiléia.

Sua voz estrondou no recinto, e o meu escravotraduziu para mim: “Tirai daqui essas coisas e não façais,da casa de meu Pai, casa de mercado”144. Ao mesmotempo, brandindo uma corda que estava no chão como sefora um azorrague, ameaçava os vendedores como se lhesfosse bater. Uma coisa interessante: todos saíram correndo,derrubando mesas e soltando os animais. Durante muitotempo, reinou uma confusão terrível, que foi acalmandoaos poucos com a chegada da milícia do templo. Penseique fossem prender o homem que causara tudo aquilo, oque na verdade pretenderam, mas ele calmamente lhesfalou, e eles se retiraram sem lhe fazer nada. Fiqueiadmirado, mas você precisava ter visto a cena. Apesar do

144 Jo 3, 16.

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gesto agressivo, não havia, em seus olhos ou face, nadaque lembrasse uma pessoa furiosa. Sua voz era enérgica;sua face, porém, tranqüila. Parecia emanar, daquelehomem, uma tão serena autoridade, que todos, inclusiveeu mesmo, fomos tomados de medo.

Meu servo me disse que o tal homem é, por muitos,tido como o Messias, palavra hebraica que significaUngido. Assim como se faz quando se passa óleoperfumado na cabeça. Não entendi muito, mas parece queele teria sido ungido por Deus; seja lá o que isto queiradizer.

Preciso terminar, pois o mensageiro já chegou.Ex corde 145.

145 Do coração. Expressão latina, empregada para finalizar correspondências parapessoas íntimas.

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A Última Semana

As ondas do Mar Egeu, à distância, quebravam-se na praia em miríades de espumas em recorrênciamonótona, enquanto o sol da tarde caminhava lentamenteem direção ao ocaso.

A primavera enfeitava de flores a paisagem, fazendoa alegria das abelhas, que zumbiam alegremente na fainade colher o néctar, indispensável para a produção de melem suas colméias. Os passarinhos pipilavam por entre osgalhos das árvores frondosas do sítio à beira mar e tambémsaltitavam nervosos pela grama do solo, perto do grupoque se sentava em semicírculo debaixo de antigo carvalhode ampla copa, em cujo tronco se recostava o ApóstoloJoão, com seu rosto sereno e olhos mansos. Apesar daidade avançada, que as rugas acentuadas demonstravam,sua voz fluía doce e calma, rememorando passagens davida do amado Rabi Galileu.

Naquele momento, falava sobre a última semanado Mestre entre os homens:

Depois que Jesus fez Lázaro sair do sepulcro,devolvendo-lhe a vida, os principais do Sinédrio sereuniram em conselho para estudar um meio de se livraremdele. Tomando a palavra, Anás disse, conforme me relatoudepois Nicodemos, que era também discípulo, mas demaneira oculta: “Que faremos? Esse homem realiza

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muitos sinais. Se o deixarmos assim, todos crerão nele eos romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e anação” 146.

Um dos ouvintes, discípulo antigo, de origem grega,mas que, ao ser batizado pelo irmão de Tiago, tomara-lheo nome, interrompeu as anotações que fazia e, dirigindo-se ao ancião, exclamou: Como pode o homem ficar tãocego pelos seus interesses pessoais, a ponto de se transfor-mar em adversário do próprio Deus?

João sorriu ante a indignação que vibrava na vozdo seguidor açodado: João, meu querido João, nãodevemos esquecer que o Mestre nos ordenou amar todasas criaturas, principalmente os nossos inimigos. Anás eseus sequazes estavam enceguecidos pelo mal de seuscorações e naturalmente devem estar sendo objeto darigorosa justiça de Deus.

O discípulo baixou os olhos, confuso, enquanto oApóstolo prosseguia:

Naquele ano, estava como Sumo Sacerdote, Caifás,que era genro de Anás, que, na verdade, exercia o poderpor seu intermédio. Ele, então, interferiu, dizendo aoscircunstantes: “Vós não estais entendendo nada. Nãocompreendeis que é de vosso interesse que morra um sóhomem pelo povo, para que não pereça a nação toda?”147.Depois de discutirem por algum tempo, resolveram queJesus teria de ser morto. Em breve sabíamos da resoluçãodo Sinédrio, e o Mestre resolveu que deveríamos nosafastar de Jerusalém por algum tempo. Por isso, fomospara Efraim, perto da Samaria, onde ficamos em casa deum discípulo chamado Abdiel, até que se aproximasse aépoca da celebração da Páscoa. O Mestre, então, resolveu

146 Jo 11, 47.147 Jo 11, 49-50.

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voltar para Jerusalém, a fim de celebrarmos ali a ceiapascal, como fazíamos todos os anos. Assim, seis diasantes da festa, deslocamo-nos para Betânia, do outro ladodo Monte das Oliveiras, hospedando-nos em casa deLázaro, a quem o Senhor amava muito, e quem o retirarado sepulcro. A alegria do ressurrecto e de suas irmãs foigrande. Deram um banquete em homenagem ao Mestre.Enquanto, reclinados nos coxins, comíamos os pratosdeliciosos que Marta sabia preparar como ninguém, Maria,agradecida a Jesus por ter feito seu irmão retornar à vida,quebrou uma ampola de preciosa e perfumada essênciade nardo puro, de grande valor, e com ele untou os pés doMestre, enxugando-os com seus cabelos. Nesse momento,Judas de Quêriot, aquele que terminou por traí-lo,comentou: “– Por que não se vendeu esse perfume portrezentos denários, para dá-los aos pobres?”148 Nós outrosnos entreolhamos, pois havia um disse-que-disse entrenós que Judas retirava para si importâncias da caixacomum de esmolas. Ao comentarmos o fato com Jesus,ele nos repreendeu, dizendo-nos que deveríamos cada umcuidar da própria conduta, deixando a Deus o julgamentoda ação dos outros. O amor – prosseguiu ele – entre vocêsdeve superar qualquer antipatia, pois devem dar exemplosde fraternidade ao mundo inteiro. Assim, nunca maisvoltamos a tocar no assunto. Naquele momento, Jesusretrucou ao discípulo: “– Deixe-a. Que ela conserve o meucorpo para o dia da sepultura, pois sempre tereis pobresconvosco; a mim, porém, nem sempre tereis”149. Comosempre acontecia, a presença de Jesus atraiu uma grandemultidão, que vinha, além de solicitar curas e ouvir oMestre, conhecer Lázaro, sobre o qual corria a notícia de

148 Jo 12, 5.149 Jo 12, 7.

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que havia sido retirado do vale escuro da sombra e damorte. Sabedores de que o Mestre estava na região, oschefes dos sacerdotes se reuniram para traçar um planopara a sua prisão. Também decidiram que Lázaro deveriaser morto, pois era motivo para que muitos acreditassemque Jesus era o Messias. Confesso que, apesar das notíciasde conspiração contra o Mestre, não estávamos nem umpouco preocupados. Sempre imaginamos que ele haveriade vencê-los, como fizera até aquele momento. Dessaforma, o acompanhamos felizes e despreocupados quandoresolveu ir à cidade de Jerusalém. Na porta da cidade,éramos aguardados por uma multidão. O Mestre, então,montou num jumento que havia mandado buscar e, assim,entrou na cidade. A multidão, empolgada pela suapresença, começou a tomar de ramos de palmeira, gritan-do: “Hosanas! Bendito o que vem em nome do Senhor eRei de Israel”150. Confesso que estávamos orgulhosos.Sentíamos que se inaugurava ali o Reino Messiânico,previsto pelas Escrituras. O fato foi levado ao Sinédrio,onde os fariseus reclamavam: “Vede! Nada conseguis.Todo mundo vai atrás dele!”151. Apesar da euforia de todos,Jesus mantinha um semblante grave e, na primeiraoportunidade, alertou-nos de que acontecimentosdolorosos estavam por vir. Recordo-me de suas palavras:“Quando eu for elevado da Terra, atrairei todos a mim”152.Nenhum de nós, todavia, entendeu o que ele dizia. Vivía-mos, como que fascinados, o momento de glória, que seassemelhava ao da vitória definitiva dos anseiosmessiânicos. Nesse clima de júbilo, preparamo-nos paracomer a ceia pascal, servida na casa de Maria Marcos, no

150 Jo 12, 13.151 Jo 12, 19.152 Jo 12, 32.

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Monte Sião, no primeiro andar da residência daquela queera uma das discípulas da primeira hora, e que fazia partedo grupo de mulheres que apoiavam os trabalhos decaridade que Jesus nos ensinava ser a atividade básicados que o seguissem. Antes do ritual da ceia, o Mestre fezquestão de nos dar mais um exemplo de humildade,lavando-nos os pés. Ante os protestos de Simão, eleretrucou: – Se eu não lavar os teus pés, não terás partecomigo. Depois, disse a todos nós:

Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais deMestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Se, por-tanto, eu, o Mestre e Senhor, lavei-vos os pés, tam-bém deveis lavar-vos os pés uns dos outros. Dei-vos oexemplo para que, como eu vos fiz, também vós ofaçais. Em verdade, em verdade vos digo: o servo nãoé maior do que o seu senhor nem o enviado maior doque quem o enviou. Se compreenderdes isso e opraticardes, sereis felizes.153

Recordo que, na ocasião, com um ar triste, Jesusdisse: “– Em verdade, em verdade, vos digo: um de vósme entregará”154. Fiquei perturbado com a declaração e,instado por Pedro, aproximei-me do Senhor e lhe pergunteiao ouvido: – Quem é, Senhor? Ao que ele me respondeu,em voz baixa: “– É aquele a quem eu der o pão que vouumedecer no Haroset”155. Assim disse, assim fez. Tomandodo pão molhado no molho, ofereceu-o a Judas, filho deSimão de Quêriot e, à meia voz, disse-lhe: “O que estás afazer, faze-o depressa”156. Judas, um tanto perturbado peloque o Mestre lhe disse, saiu apressado, sem que ninguém

153 Jo 13, 12-17.154 Jo 13, 21.155 Jo 13, 25-26.156 Jo 13, 27.

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soubesse o que estava acontecendo, imaginando que Jesuslhe houvesse ordenado realizar alguma ação de caridade,pois ele era quem controlava o dinheiro do grupo paratais finalidades. Depois que o discípulo saiu, o Mestreainda falou durante algum tempo conosco, com palavrasque só mais tarde compreendemos que eram de despedida.Finalmente, convidou-nos para irmos ao jardim no Montedas Oliveiras, onde costumava se recolher à noite, poisnunca permaneceu em Jerusalém durante esse período.Ali, costumava se entregar a longas horas de oração. Nessedia, em particular, Jesus estava muito triste, quase sepodendo sentir nele um toque de ansiedade. Depois quese consumou a tragédia de sua prisão e morte, pudemosavaliar que ele sabia de tudo o que estava para acontecer.Embalados pelo sonho de um reinado messiânico àsportas, não conseguíamos entender a tensão a que estavasubmetido. E ele, com seu carinho por todos nós, evitavafirmemente inquietar-nos antes da hora, embora nostivesse, todo o tempo, alertado muito sutilmente sobre osdolorosos episódios que estavam para acontecer.

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A Traição

Era um sentimento de remorso gigantesco,indescritível. Judas parecia carregar um vulcão em ferozerupção na intimidade da consciência. Em aterradormonoideísmo, a frase se repetia em seu pensamento,queimando e dilacerando os delicados tecidos mentais:Matei o Messias! Sou um réprobo sem remissão.

Alucinado, fechava-se à influência dos EspíritosAmigos que procuravam ajudá-lo, tornando-se um merojoguete nas mãos de cruéis obsessores, que se divertiamem lhe aguçar o complexo de culpa, sugerindo-lhe a idéianefanda do autocídio. Na verdade, todas as falanges dastrevas vibravam de alegria com a prisão e sofrimentos deJesus, para o que muito contribuíram, e inspiravam seusalgozes a serem extremamente cruéis com ele. Seria alição definitiva para todos os que ousassem desafiar-lheso poder. Exultavam só de imaginar que, com aquelafaçanha, estariam perpetuando sua influência sobre aHumanidade, mantendo indefinidamente seu impériosobre ela. Daquele momento em diante, imaginavamloucamente, seriam os senhores incontestes do PlanetaTerra para todo o sempre.

Desde que tomaram conhecimento da encarnaçãode Jesus, movimentaram-se para eliminá-lo. Herodes foio primeiro instrumento de que se utilizaram, sendo co-

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responsáveis pela matança das crianças belemitas e pelafuga de José, Maria e a criança para o Egito. Frustradosem seus planos, e como o Mestre permanecesse em regimede anonimato na vila insignificante de Nazaré, devidamen-te protegido pelas Falanges do Bem, limitaram-se àobservação sistemática do seu desenvolvimento, talvezincertos de que seria mesmo o Messias prometido pelosEscritos Sagrados. Quando, porém, ele se revelou plena-mente diante do Batista, resolveram agir na esperança decorrompê-lo, anulando-lhe a missão no obscuro episódioda tentação no deserto. Desde então, agindo sobre osincautos e irresponsáveis líderes das facções político-religiosas da nação judaica, tentaram, por todos os meios,fazê-lo matar. Uma vez, em Nazaré, quase conseguiram onefando intento quando insuflaram os conterrâneos de Jesusa lançá-lo do alto da montanha, tragédia evitada pela prontaação do Mestre e dos Espíritos que o acolitavam.

Agindo sobre a infeliz Herodiades, Salomé e opusilânime Herodes Antipas, participaram da prisão emorte de João Batista, crendo terem logrado uma vitóriasobre as Forças do Bem. Por alguns momentos, moveramHerodes Antipas contra Jesus, tentando executá-lojuntamente com o Precursor. Mas o Mestre escapou,exilando-se voluntariamente por algum tempo na Siro-fenícia, quando se deu o episódio da cura da filha damulher daquela região.

Jesus estava sempre a escapar das ciladas que osferozes perseguidores espirituais lhe armavam através dossacerdotes, escribas, fariseus e saduceus, com sutilezaslegalistas diversas. Os discípulos, às vezes, sofriam-lhesas influências, prontamente anuladas pelo Rabi Galileuem intervenções corretivas. Judas, porém, perdido emcogitações de ordem política, findou por cairgradativamente sob o seu domínio.

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Enquanto preparava o próprio enforcamento, oinfeliz discípulo rememorava os momentos passados juntoao Mestre, desde quando este o convidara para fazer partedo seu círculo íntimo, dando-lhe também a incumbênciade gerir o fundo financeiro do grupo, cuja finalidade eraatender à imensa necessidade dos pobres da nação judaica.Dessa forma, buscava o Nazareno despertar-lhe para aCaridade Ativa, procurando fazer seu coração se expandirnas ondas do Amor.

Seus colegas de apostolado, todavia, não nutriammuita simpatia por ele. Viviam a acusá-lo de se aproveitardos recursos fiduciários sob sua guarda, tendo-o comoladrão. Isso o magoava muito, principalmente por não serverdade. Assim, vivia quase isolado, sendo que Simão, oZelota, era quem mais dele se aproximava, pelas afinida-des ideológicas. Ambos desejavam uma vitória armadasobre os romanos e sonhavam com a implantação doreinado do Messias, que acreditavam ser Jesus. Nãopodiam compreender a atitude de passividade do Mestre,tomando-a como estratégia até que surgissem as condiçõesefetivas de um levante geral. Imaginavam que os ensinosdo Rabi sobre o Amor e a Fraternidade eram apenas umdisfarce para ocultar-lhes os propósitos libertários.

Quando da apoteótica entrada de Jesus na CidadeSanta, ao ver a multidão aclamá-lo, julgou ser chegado omomento. O Mestre, contudo, parecia não perceber a felizoportunidade. Jerusalém regurgitava de peregrinos, e oefetivo romano, cria, não teria condições de resistir a umarebelião que ali fosse levada a efeito. Além do mais,conhecendo os poderes do Rabi, e sendo ali a sede doTemplo, portanto, a morada do próprio Deus, imaginara,incentivado por cruéis gênios do Mal, ser preciso tomaruma resolução imediata.

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O plano lhe surgiu à mente como se fora umailuminação. Precisava fazer Jesus ser obrigado a agir.Sabia que os dirigentes do Sinédrio viviam buscando umaoportunidade para prender o Mestre, mas não tinham adevida coragem, pois sempre que procuravam fazê-logeralmente eram obstados pela presença da multidão queo acompanhava. Além do mais, o Rabi vivia emdeslocamento constante, sem que os próprios discípulostivessem, de antemão, conhecimento do itinerário queseguiria. Porém, no dia da ceia Pascal, que Jesus realizaracom antecipação, pois deveria ocorrer no sábado, haviaanunciado que pernoitariam no Jardim do Monte dasOliveiras. Enquanto comia a ceia, os pensamentos roda-vam em turbilhão por sua cabeça. Era a oportunidade idealpara o que planejava. Na primeira oportunidade, iria àcasa de Caifás, fingindo entregar-lhe a ansiada presa. Elee os seus sequazes morderiam a isca. Apressar-se-iam aprender o Mestre e, então, este haveria de ser forçado areagir, dando início à luta de libertação com a conseqüen-te implantação do Reino de Deus, sobre o qual falava comtantas metáforas. Quando Jesus, em pleno BanquetePascal, dissera-lhe que fizesse logo o que tinha para fazer,imaginou que, com os seus poderes extraordinários, haviacaptado suas intenções, aprovando-as. Não se aperceberado olhar triste e resignado que Jesus depositara sobre ele.Saíra apressado, com o coração acelerado pela emoção,prelibando a vitória dos seus planos e, naturalmente,imaginando sua posição de relevância na Nova Ordem,dado o papel destacado que teria na sua fundação. Todosos outros discípulos haveriam de se curvar perante ele,pois fora o único que teria demonstrado espírito deiniciativa, o que não deixaria de ser reconhecido por Jesus.Seria seu triunfo sobre os companheiros, sua vingança

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pelo menosprezo que lhe votavam. Daquele dia em diante,seria o principal, que todos procurariam cortejar e adular.

Enquanto atravessava o vale do Cedron em direçãoàs escadarias que conduziam ao Templo, não podia, oinfeliz apóstolo, ver a multidão sombria que o cercava,envolvendo-o em fluidos negros, nem escutar suasgargalhadas sinistras como se saboreasse antecipadamenteuma vitória.

Chegando ao Templo, encaminhou-se ao lugar dereunião do Sinédrio. Ali estavam reunidas as principaislideranças, chefiadas por Anás e Caifás, discutindo sobreos últimos acontecimentos e deliberando o que fazer paraprenderem e executarem Jesus. Tendo indagado a respeitode Anás, foi, após curto intervalo, conduzido à sua presen-ça. Interrogado sobre o que desejava, fez saber que conhe-cia o paradeiro do Mestre e que pretendia entregá-lo àsautoridades. Desconfiado, o sagaz manipulador do podero interrogou sobre o porquê, como discípulo do Nazareno,queria fazer aquilo. Deu-lhe a entender que o fazia pordinheiro. Foi conduzido a um aposento para queaguardasse uma resposta.

Cheio de alegria, o velho político convocou seuspares e expôs o que se passava:

– Deus, na sua sabedoria, pôs o charlatão Galileuem nossas mãos. Exultou. E ante às perguntas que lhefaziam, deu-lhes a conhecer sobre a proposta de Judas.

– Melhor não poderia ser, exclamou Caifás. Um dosseus é que o entregará para nós. Será uma ótima desculpapara prendê-lo sem que nos exponhamos à ira do povo.

Enquanto aguardava, Judas meditava na situação.A consciência lhe dava indicativos de que não agiacorretamente. Será essa a atitude correta? Jesus semprelhe demonstrara confiança. Não estaria lhe traindo a

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confiança? Uma voz interior o advertia da necessidadede meditar melhor nas conseqüências de sua atitude.Mesmo o enganar as autoridades, como estava pensandofazer, não se coadunava com os ensinos do Mestre, queexortava a veracidade em toda e qualquer situação. Ocoração parecia apertar-se-lhe no peito. Uma sensação dedesastre iminente tomava-lhe o ser. Pensou em fugir dali.Mas como fazê-lo? Tinha ido muito longe. Sentiu-seinvadir pelo pânico. Nesse momento, como a lhe forçar amão, um dos soldados do Templo veio buscá-lo para ir aoencontro de Anás e Caifás. Ali, foi-lhe dito que aceitavamsua proposta. Quanto desejava para guiar os esbirros doSinédrio até o local onde Jesus estava? Sem saber o quefalava, balbuciou a quantia: Trinta dinheiros. Ela foiprovidenciada imediatamente e lhe entregue numa bolsa.

À saída, uma guarda composta de uma coorte,comandada por um tribuno, e guardas do Templo,devidamente disfarçada e fortemente armada, aguardava-o. Como poderiam saber, na escuridão, a quem deveriamprender? O comandante da patrulha sugeriu: Aproxime-se dele e lhe dê o beijo de boas-vindas; então o prendere-mos.

Aquiesceu automaticamente. Tomaram, então, omesmo caminho por onde viera.

Judas andava como um autômato. Várias vezespensou em sair correndo, embrenhando-se pelas oliveirasque cobriam o aclive do monte. Como se lhe adivinhasseo pensamento, o capitão da guarda se lhe pôs ao lado,enquanto dois outros soldados ficavam um ao seu lado eoutro às suas costas, todos rentes a ele.

O caminho se iluminava com as tochas que traziam,e, com os varapaus que portavam, apoiavam-se durante asubida. Quando chegaram onde estava o Mestre junto com

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os discípulos que haviam acorrido ante o barulho dachegada do bando, Judas foi ao encontro de Jesus, dizendo:“– Salve, Rabi!”157 E o beijou na face.

Jesus, com um quê de ternura e piedade na voz,inquiriu-lhe: – Amigo, para que estás aqui?

Nesse instante, ante a senha combinada, os sequazesdo Templo avançaram sobre o Nazareno para subjugá-lo.Simão Pedro, impetuoso como sempre, sacou da espadaque trazia consigo e desferiu um golpe contra o Coman-dante da Guarda do Templo, de nome Malco, que serviadiretamente ao Sumo Sacerdote e que dirigia o grupo,atingindo-o na orelha direita porque, à última hora, numato reflexo, desviara a cabeça. Ante o ataque, soltaramJesus, voltando-se para enfrentar o agressor. Mas o Rabi,com a força de sua palavra, conteve os esbirros do temploe, voltando-se para Simão, disse-lhe: “Embainha a tuaespada. Deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?”158

Dirigindo-se então aos que o prendiam, falou:

Como a um ladrão, saístes para prender-me com es-padas e paus! Eu estive convosco no Templo, ensi-nando todos os dias, e não me prendestes. Mas é paraque se cumpram as escrituras. Então, abandonando-o,fugiram todos. Um jovem o seguia, e a sua roupa erasó um lençol enrolado no corpo. E foram agarrá-lo.Ele, porém, deixando o lençol, fugiu nu159.Então a coorte, o tribuno e os guardas dos judeus pren-deram a Jesus e o ataram. Conduziram-no, primeiro,a Anás, que era sogro de Caifás, o Sumo Sacerdotedaquele ano.160

157 Mt 26, 49.158 Jo 18, 11.159 Mc 14, 48-52.160 Jo 18, 12-13 .

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Os discípulos, quando viram que Jesus estava preso,fugiram em carreira desabalada, cada um para um canto.

Quando da entrada na cidade, Judas, que vinha atrásdos guardas, afastou-se, demandando à casa de um amigopertencente ao grupo dos zelotas, com quem se afinavaquanto às idéias políticas. Estava taciturno, com a mentecheia de dúvidas. A consciência lhe dizia que não agirabem. A voz do Mestre, chamando-o de amigo na hora emque o entregou, ecoava-lhe no cérebro incendido.

Não conseguira pregar os olhos. Por toda a noite,vira desfilar diante de si todos os momentos em queestivera com Jesus. Suas palavras eram recordadas emdetalhe e, a cada minuto, ficava claro que o Mestre nãotencionava liderar uma revolta popular para expulsar osromanos nem fazer de Israel um Império.

Mal surgiram os primeiros alvores da manhã,demandou às cercanias do Templo, tomando conheci-mento da condenação de Jesus à morte e de sua flagelação.Correu ao Templo na ânsia de desfazer o tremendo erro.Ali, foi recebido por Caifás, que estava acompanhado deautoridades do Sinédrio. Dirigiu-se, então, a eles, procu-rando devolver-lhes as trinta moedas de prata e dizendo:

– Errei, entregando sangue inocente.Porém eles disseram:– O que nos importa? Veja-te com isso.E, tendo atirado as peças de prata no santuário, ele seretirou161.

Agora, num campo situado fora dos muros, no Valedo Cedron, as lágrimas lhe empanavam a visão, e ossoluços o sufocavam. Vozes sinistras lhe soavam aos

161 Mt 27, 3-5.

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ouvidos: Traidor infame. Onde haverá para ti perdão?Traíste o Santo de Deus, miserável infeliz. A morte seráum castigo pequeno para o teu crime.

Assim, os cruéis verdugos invisíveis, inimigos seusdo passado e tenebrosos vampiros das trevas, induziam-no ao suicídio para atingirem seus nefandos objetivos.

Como um autômato, lançou a corda sobre o troncoda árvore morta, cujos galhos pareciam braços retorcidose nus, qual espectro sinistro a se debruçar sobre o vazio.Fixou uma ponta no tronco enegrecido e, colocando o nócorrediço no pescoço, atirou-se, procurando dar um fimao turbilhão de remorso em que se engolfava. Em poucosminutos, o corpo jazia inerte e sem vida. Mas, ante seusolhos espirituais, enquanto a dor do pescoço esmagado ea sufocação atingiam o indescritível, uma turba deEspíritos infelizes, mais parecendo uma matilha deespectros produzidos pelo dementado horror, lançava-sesobre ele...

Passaram-se alguns anos de sofrimentos inenarrá-veis para o discípulo invigilante. Um dia, quando suamente se voltou para Deus numa súplica suprema deperdão, sentiu uma paz infinita lhe penetrar o imo,enquanto, envolvido por uma luz transcendente, viu afigura do Mestre que, aproximando-se dele com umsorriso amorável, tomou-o nos braços, ergueu-o do soloonde se encontrava prostrado e, beijando-o no rosto commuito carinho, disse-lhe: Meu amigo e meu irmão.

Ninguém poderá conceber o sentimento de alívio ejúbilo daquela alma combalida por anos de desespero eremorso, ao receber o perdão incondicional de sua DivinaVítima.

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Trevas Densas

Era noite alta quando Marued entrou em Jerusalémpela porta das ovelhas, depois de ter acampado nasimediações. A cidade, às vésperas da festa tradicional daPáscoa, estava cheia de pessoas de todas as partes domundo, a grande maioria Judeus que vinham comer oCordeiro Pascal, que só podia ser preparado na CidadeSanta. Notou logo que se passava algo diferente; a guardaestava reforçada, tendo os soldados romanos revistado-ominuciosamente, inquirindo-o sobre sua procedência e oque viera fazer. Tudo explicado, deixaram-no passar.

Já dentro dos muros, verificou que havia inusitadotrânsito de pessoas pelas ruas, coisa inabitual àquela horada noite. Fez parar um dos passantes, perguntando-lhe oque estava acontecendo. O homem o olhou intrigado, eMarued esclareceu:

– Amigo, acabo de chegar e estou estranhando vertanta gente na rua a essa hora.

– Acabam de prender o Nazareno, que se diz oMessias.

A notícia causou surpresa a Marued, que perguntou:– Jesus de Nazaré?O judeu o olhou desconfiado:– És por acaso seu discípulo?– Não, todavia já ouvi falar dele.

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O homem deixou o ar desconfiado, continuando:– Ele está sendo julgado agora na casa do Sumo

Sacerdote. Estou indo para lá.Marued acompanhou seu interlocutor, aproveitando

para se inteirar mais a respeito da situação:– Mas, o que houve? Soube que esse Jesus era um

homem que só fazia o bem.– É o que dizem; mas o Sinédrio sempre lhe fez

oposição, pois, ao que se sabe, ele não lhe seguia as regrase, ainda por cima, desafiava-lhe a autoridade.

– Mas, por que só agora resolveram prendê-lo?– Era que tinham medo, pois sempre estava cercado

de grande número de pessoas. Mas, ao que soube, essanoite, um dos seus discípulos o traiu, entregando-o aosprincipais dos sacerdotes.

Marued estava perplexo. Havia lido as anotaçõesde Tarik, chegando à conclusão de que aquele homem eracompletamente diferente dos religiosos que conhecia,sempre ávidos de dinheiro e profundamente hipócritas.

Quando chegaram à Casa do Sumo Sacerdote, emsua frente, uma grande multidão se aglomerava. Pôs-se,então, a circular por entre o povo, buscando escutar o quediziam.

– É um impostor; o messias, quando vier, será umlíder militar, que haverá de restaurar a glória de Israel.Dizia um, cujos filactérios denunciavam o fariseu.

– Contudo, Isaías fala de um Messias sofredor, enão de um comandante de exércitos. Retrucava um seucompanheiro.

– Ora, Eliaquim, o profeta se referia naturalmenteaos sacrifícios que teria de fazer para cumprir sua missão.Não é possível que o Libertador dos Judeus seja umderrotado, pois, assim, não seria Libertador. Veja você:

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Moisés, Josué e Davi sempre viveram lutando semqualquer contemplação para com os seus inimigos. Esse,todavia, falava até que se devia amar os inimigos e lhesfazer o bem. É um absurdo.

Mais adiante, dizia alguém:– Ainda há uns quatro dias, esse Jesus causou a

maior celeuma no Pórtico de Salomão, investindo contraos que comerciavam ali, dizendo que estavam transfor-mando a Casa de Deus num covil de ladrões. A confusãofoi geral. Um dos meus amigos, que fazia câmbio comorepresentante da Casa dos Boetos, teve um prejuízoenorme, pois sua mesa foi revirada pelos que corriam, eas moedas, espalhadas por todos os lados. Não conseguiureaver nem a metade. Agora mesmo, encontra-se lá dentrotestemunhando contra ele.

Mal acabara de falar, um homem aproximou-secercado por várias pessoas.

– Olhem, é ele quem está vindo, Asaf!Ao ouvir seu nome, o judeu aproximou-se. Via-se

que estava profundamente irritado.– Então, amigo, como é que foi?– Um absurdo. Estão perdendo tempo, procurando

testemunhas contra esse malfeitor. Ele é um perigo paranossa sociedade. Deviam, sem mais delongas, levá-lo parafora da cidade e apedrejá-lo.

– E ele, o que diz em sua defesa?– Nada. Nunca vi tanto cinismo. Por mais que o

interroguem, permanece em silêncio num acinte àsautoridades. Minha opinião é de que não se deve perdertempo. Esse homem é um subversivo. Se não foreliminado imediatamente, causará uma catástrofe. A mimmesmo, já deu um prejuízo imenso, deixando-me numasituação difícil com os meus patrões. Tive de pagar doistalentos de minhas economias. Quero vê-lo morto.

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Continuando a circular, Marued ouvia expressõesdiversas contra Jesus. Percebia, contudo, que aqueles quese pronunciavam contra o Nazareno estavam ligados, dealguma forma, aos que faziam parte do Sinédrio. Em partealguma escutou alguém defendê-lo. Ninguém ousava seexpor, exprimindo simpatia pelo preso, com medo dareação.

Muito tempo depois, a multidão se mostroualvoroçada. Foi condenado por blasfêmia! Exclamavamvárias vozes.

Uma explosão de alegria se fez uníssona. Asaf, ocambista, passou por ele, juntamente com seus acompa-nhantes, celebrando em altas vozes: Deus seja louvado!O miserável já está me pagando. Deus seja louvado!

Marued sentiu ânsias de vômito. Toda aquelamanifestação diante do infortúnio de alguém erarevoltante. Aproveitou-se do momento para aproximar-se do portão da Casa, onde permaneceu pelo resto da noite.

Quando a madrugada se desenhava no horizonte,viu movimentação de soldados rumo à saída. Ao passarem,viu que Jesus seguia enquadrado por eles. Sua face seapresentava cheia de hematomas, que denunciavam osmaus tratos sofridos, enquanto um filete de sangue lheescorria dos lábios partidos, manchando a barba e a túnica.O Sumo Sacerdote Caifás, como alguém lhe informara,seguia logo atrás do prisioneiro, acompanhado de outrasautoridades do Sinédrio, cheio de empáfia, agradecendoas saudações que muitos do povo lhe endereçavam.

Da multidão choviam doestos sobre o condenado,dando trabalho aos soldados do Templo para evitar quese atirasse sobre ele, despedaçando-o ali mesmo. OsFariseus, Saduceus, Escribas e doutores da lei urravamferozmente: Dize, agora, quem é sepulcro caiado, infeliz....

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Raça de víbora é a tua, verme... Impostor, onde estão tuaspráticas de magia...

O comerciante árabe sentia o coração se confranger.O homem maltratado lhe causava infinita piedade.Gostaria de fazer algo para ajudá-lo, mas o quê, pergun-tava-se impotente.

Seguiu a multidão e os guardas até a entrada daresidência do Procurador. Nela, conseguiu ingressar, poisera fornecedor antigo de fazendas e jóias para a famíliado representante imperial. A multidão e as autoridadespermaneciam de fora, pois os judeus não podiam entrarno local onde estavam os incircuncisos, sob pena deficarem imundos e não poderem realizar a Páscoa.Somente o prisioneiro, que fora entregue aos soldadosromanos, foi conduzido para dentro a fim de serinterrogado pelo representante do Imperador. A acusaçãoera de tentativa de revolta contra os romanos:

Verificamos que este homem amotina o nosso povo, proí-be de dar tributo a César e diz que é o Ungido, o Rei.Interrogou-o Pilatos:– És o Rei dos Judeus?Respondeu-lhe Jesus:– Tu o dizes.Ao que Pilatos declarou aos príncipes dos sacerdotes eao povo:– Não acho crime neste homem.Eles, porém, insistiram:– Amotina o povo com a sua doutrina, em toda a Judéia,a começar pela Galiléia, até aqui162.

As acusações eram todas falsas. Pilatos estavainformado de que o problema era exclusivamente

162 Lc. 23, 2-5 .

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religioso, e sabia que as imputações eram mentirosas.Tomando conhecimento de que o homem era Galileu,portanto, súdito de Herodes Antipas, resolveu livrar-sedo problema, enviando-o ao monarca, que se encontravaem Jerusalém para comemorar a Páscoa.

Marued soube, depois, que Herodes ficou alegre porse encontrar com Jesus, pois há muito tinha curiosidadede ver o homem sobre quem se contavam tantas coisas.

Diante do monarca, o Mestre manteve-se no maisabsoluto silêncio, enquanto os representantes do Sinédrioassacavam as mais diversas e mentirosas acusações.

Como Jesus não correspondesse à sua curiosidade,Herodes resolveu ironizá-lo. Já que afirmavam que ele sedizia rei, mandou que fosse vestido com uma capa vistosa,devolvendo-o a Pilatos sem apresentar qualquer base queajudasse o procurador a resolver o problema.

Mandando trazer Jesus para a sala de audiências, orepresentante de César procurava um jeito de resolver oimpasse. O clima era de preocupação com o tumulto e deexpectativa. A mentalidade jurídica do romano, bem comosua experiência com os homens, dizia-lhe que ali estavaum inocente. Mesmo assim, resolveu inquiri-lo novamente.

A essa altura, o Nazareno apresentava a face cheiade hematomas, por causa das brutalidades que vinhasofrendo desde o momento da prisão. Ante a visão daquelafigura maltratada, mas digna, o rosto do procurador seabrandou. Pôs-se a sondá-lo novamente a respeito daacusação principal de tentar subverter a ordem,proclamando-se rei.

– És tu o rei dos judeus?Respondeu Jesus:– Dizes isso de ti mesmo, ou foram outros que to dis-seram de mim?

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Replicou Pilatos:– Porventura sou eu judeu? O teu povo e os principaissacerdotes entregaram-te a mim; que fizeste?Respondeu Jesus:– O meu reino não é deste mundo; se o meu reinofosse deste mundo, pelejariam os meus servos paraque eu não fosse entregue aos judeus; entretanto, omeu reino não é daqui.Perguntou-lhe Pilatos:– Logo, tu és rei?Respondeu-lhe Jesus:– Tu dizes que sou rei. Para isso nasci, e para isso vimao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todoaquele que é da verdade ouve a minha voz.Perguntou-lhe Pilatos:– Que é a verdade?163

Jesus apenas o olhou profundamente nos olhos emanteve silêncio.

Marued pensou que o representante imperial fosseexplodir de raiva, mas, ao contrário, mostrou-se surpresopela reação do Rabi, que, diferentemente de outrosacusados, não se punha a alegar inocência, nem a clamarpor justiça, nem a desafiar sua autoridade num gesto derebeldia.

Via-se que o Procurador não estava convencido daculpabilidade do réu, como não o estavam todos os quetestemunhavam o interrogatório. Percebia-se que ali estavaem jogo um problema de mera questão religiosa, em quea inveja e o despeito das autoridades judaicas erampreponderantes. A situação, todavia, era explosiva, pois amultidão estava a vociferar excitada.

Nesse momento, um servo se aproximou de Pilatose pediu para lhe falar em particular. Afastando-se para

163 O diálogo encontra-se em Jo 18, 34-40.

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um lado, escutou o servo por alguns instantes e, depois,com um gesto de impaciência, despediu-o, voltando parajunto do réu. Em breve, corria, a boca pequena, que aesposa do Procurador lhe mandara um recado, pedindoque não se envolvesse com a morte daquele homem, poistivera um sonho angustiante, em que se via envolvida porinúmeros espectros clamando contra a injustiça que seestava para cometer.

Pôncio Pilatos buscava uma saída para o impasse.De repente, chegando à sacada, como se houvesse tidouma inspiração, pediu silêncio e falou:

– Judeus. Como estamos às vésperas da Páscoa,festa importante da vossa religião, em nome de César,resolvi conceder-vos uma graça. Como sabeis, temos doisprisioneiros: um, Jesus, a quem chamam de Ungido, eoutro, denominado Jesus Filho do Pai164. Assim, coloco àvossa escolha: qual dos dois quereis que ponha emliberdade?

Tomada de surpresa, a multidão ficou em silênciopor alguns instantes. Marued, que se aproximara de umvigia, observou quando Asaf, que se encontrava à frente,pôs-se a gritar, fazendo gestos com as mãos para que aspessoas à sua volta o acompanhassem:

– O Filho do Pai! Solta-nos o Filho do Pai!Em pouco tempo, a multidão, incentivada também

pelos principais dos sacerdotes e outras autoridades que aliestavam, urrava a uma só voz: Solta-nos o Filho do Pai!

Evidentemente desapontado diante da falha do seuestratagema, Pôncio Pilatos fez um gesto pedindo silêncioà multidão. Quando este se fez, ele inquiriu:

164 Barrabás é uma transliteração grega do aramaico Bar Abba, que significa Filhodo Pai. Quanto ao prenome Jesus, aparece em vários manuscritos antigos, tendosido retirado depois, na opinião de muitos críticos, por parecer uma blasfêmiaaos olhos dos cristãos posteriores.

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– E o que quereis que seja feito com Jesus, chamadoo Ungido?

Mais uma vez, Asaf começou a gritar:– Crucifica-o! Crucifica-o!No que foi seguido pela multidão.Marued sentiu um choque diante da terrível

sentença. Era uma forma cruel e perversa de se executaralguém. Somente os rebeldes, traidores e servos crimino-sos sofriam-na. Olhando para Pôncio Pilatos, percebeuque ele se fizera lívido. Em seu íntimo, travava-senaturalmente um conflito de insondáveis proporções. Deum lado, a certeza de que se exigia a prática de inominávelinjustiça e, do outro, o medo das conseqüências que viriamse contrariasse a turba, instigada pelos seus líderesreligiosos. O estratagema de que lançara mão não funcio-nara. O que parecia uma saída transformara-se numaarmadilha contra si próprio.

Sem olhar para o acusado, Pôncio Pilatos mandouque os soldados o levassem e o açoitassem.

O árabe ficou perplexo. Como era possível tal coisa?O Homem era visivelmente inocente; todavia, oGovernador estava cedendo à pressão do povo. Seguiuos soldados com o coração confrangido. Sabia como eramsádicos. Mas o que viu, encheu-lhe o coração de horror.Aplicaram-lhe os quarenta açoites, menos um, tradicional,que arrancaram pedaços dos músculos das costas, de ondeo sangue jorrava aos borbotões. A cada chicotada, todo ocorpo do Rabi estremecia; mas não se lhe ouviu um sógemido ou queixume.

Indo além das ordens, os legionários mandarambuscar talos de espinheiros e, trançando-os, fizeram comeles uma imitação de coroa e cravaram na cabeça de Jesus,enquanto lhe punham sobre os ombros um manto de cor

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púrpura e, nas mãos amarradas, um talo de cana.Aproveitando o momento para debocharem dos judeusem geral, fizeram fila diante dele e, cada qual, em chegadasua vez, fazia exagerada reverência, dizendo: “Salve, reidos judeus 165”. E o esmurravam, uns, e outros, tomandodo pedaço de cana, batiam-lhe com ele na sua cabeça,fazendo cravarem-se mais fundamente os espinhos.

Quando se cansaram da lúgubre patacoada, levaram-no a Pilatos. Todos se confrangeram diante do lastimávelestado em que se encontrava. Numa última tentativa,imaginando talvez, pensou Marued, comover a populaça,o Governador o levou à sacada e o apresentou, dizendo:

– Eis aqui! Vo-lo trago fora, para que saibais quenão acho nele crime algum.

Saiu, pois, Jesus, trazendo a coroa de espinhos e omanto de púrpura.

E lhes disse Pilatos: “Eis o homem!”166

Fez-se um profundo silêncio no Pátio do Pretório.Marued chegou a pensar que a estratégia poderia dar certo,pois o quadro era doloroso demais, podendo comover apopulação. Mas, olhando para o lugar onde se achava Asaf,viu que este lançava olhares de um lado para o outro,como que pressentindo que o humor da multidão estava apique de mudar em favor do pobre flagelado. Por isso,como um desesperado, começou a gritar, enquanto suaboca espumava de ódio:

– Crucifica-o! Crucifica-o! O que pareceu acordaros principais dos sacerdotes, que passaram a lhe fazer coro,incentivando os guardas do templo que estavam com elesa engrossar a lúgubre cantilena que, em breve, enchia opátio num tétrico uníssono:

165 Jo 19, 3.166 Jo 19, 4.

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– Cru...ci...fi...ca-o... cru...ci...fi..ca-o...Agora, o Procurador tinha o rosto crispado de raiva

e, erguendo a mão num gesto de silêncio, esperou que amultidão se calasse, e disse com a voz transtornada pelafúria íntima: “– Tomai-o, vós, e o crucificai, porque eunenhum crime acho nele” 167.

Apanhados de surpresa, os principais dos sacerdotese doutores da lei se entreolhavam espantados, sem sabero que dizer, pois só os romanos podiam aplicar a penacapital, com poucas exceções. Se tomassem a justiça nassuas mãos, sem a chancela do Governador romano,poderiam ser acusados de iniqüidade, pois o Juiz máximodeclarava a inocência do réu.

Marued, que acompanhava o duelo singular com ocoração opresso oscilando entre a esperança e o receio,viu, mais uma vez, Asaf, que parecia intermediário detodas as forças do mal, brandir os punhos cerrados emdireção à sacada e gritar: “– Nós temos uma lei, e, segundoesta lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus168.No que foi seguido dos gritos de aprovação dos líderesreligiosos ali aglutinados.

O Procurador se fez lívido. Retirou-se do lugar ondeestava e, aproximando-se de Jesus, falou-lhe nitidamentedesorientado:

– De onde és tu?Mas Jesus não lhe deu resposta. Disse-lhe, então,Pilatos:– Não me respondes? Não sabes que tenho poder parate soltar e poder para te crucificar?Respondeu-lhe Jesus:

167 Jo 19, 6.168 Jo 19, 7.

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– Nenhum poder terias sobre mim, se de cima não tefora dado; por isso, aquele que me entregou a ti,maior pecado tem169.

O coração de Marued confrangeu-se; sem dúvida,referia-se a Caifás, o factótum de Anás. Mas, ponderouconsigo mesmo: a causa está perdida, é só uma questãode tempo.

O Governador buscava, por todos os meios, sair-sedaquela situação difícil, que conduzia com incrívelinabilidade e completa falta de condições para exercer opoder de que estava investido.

Pilatos confabulou, a um canto, com algunsconselheiros. Depois, chamou o comandante da guarnição,e com ele conversou reservadamente por um longo tempo.Marued pensou consigo: está verificando a possibilidadede usar a força. Mas o soldado fazia ponderações nitida-mente contrárias à idéia.

Nisso, ouviu-se uma voz que, atrevidamente, gritou:“– Se soltares a este, não és amigo de César; todo aqueleque se faz rei é contra César”170.

O susto de Pilatos foi grande. O argumento era umaameaça velada. O Governador sabia que existia uma forteoposição a ele por parte do Legado da Síria, que proclama-va abertamente sua incompetência. O medo lhe alterouas feições.

Pilatos, pois, quando ouviu isto, trouxe Jesus para forae se sentou no tribunal, no lugar chamado pavimento,e em hebraico Gabatá.Ora, era a preparação da Páscoa171, e cerca da horasexta172. E disse aos judeus:

169 Jo 19, 9-11.170 Jo 19, 12.171 Parasceve, ou seja, sexta-feira, segundo nosso calendário.172 Seis horas da manhã, de acordo com o método romano de contar as horas do dia.

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– Eis o vosso rei.Mas eles clamaram:– Tira-o! Tira-o! Crucifica-o!Disse-lhes Pilatos:– Hei de crucificar o vosso rei?Responderam os principais dos sacerdotes:– Não temos rei, senão a César173.

Ironias dispensáveis, pois apenas pretende, comisso, mascarar a capitulação covarde e vergonhosa, pensouMarued, fremindo de raiva e desprezo pelo pusilânimeProcurador.

Ao ver Pilatos que nada conseguia, mas, pelo contrá-rio, que o tumulto aumentava, mandando trazer água,lavou as mãos diante da multidão, dizendo:– Sou inocente do sangue deste homem; seja isso láconvosco.E todo o povo respondeu:– O seu sangue caia sobre nós e sobre os nossosfilhos174.

Fazendo, então, uma fácies de nojo e desprezo,pronunciou a sentença, ordenando sua execução imediata.

Marued notou que o Procurador evitava, por todosos meios, olhar para Jesus, retirando-se do recinto comatitudes de arrogância depois de cumprir os ritos legaisprescritos pelo Direito romano. Não tem coragem deencarar a vítima de sua covardia, dizia a si mesmo,fremindo de raiva impotente.

Os soldados enquadraram o condenado, retirando-o para a via pública aos empurrões, depois de fazerem-nocolocar sobre os ombros a trave da cruz que seria fixada à

173 Jo 19, 13-15.174 Mt 27, 24-25.

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haste, que já se encontraria fincada no Monte da Caveira,fora dos muros, local tradicional desse tipo de execução.Quando surgiram à frente da multidão, esta prorrompeuem doestos e ditos irônicos. Os mais pertinazes eram osrepresentantes do Sinédrio e, naturalmente, Asaf, que, naânsia inglória de tripudiar sobre o inimigo que consideravaderrotado, chegou a tentar agredi-lo, varando a escolta, oque lhe proporcionou uma violenta bastonada em plenorosto, dada por um soldado, que o fez tombar sobre oscircunstantes com nariz e boca sangrando, para deleite deMarued, que seguia de perto a patrulha.

Mas era evidente que Jesus não agüentaria carregara tábua por causa da fraqueza visível, motivada pela perdade sangue, falta de alimentação e à desgastante tensãoemocional das mais de quatorze horas durante as quais searrastara toda a farsa legal. Por isso, o comandante daguarnição que dirigia a escolta chamou um homem quepassava, vindo do seu trabalho do campo. Depois de umrápido interrogatório, acompanhado à pequena distânciapelos que, como nosso árabe, se encontravam por perto,declarou que se chamava Simão e era natural de Cirene,recebendo, então, ordens para carregar o travessão demadeira. O pobre coitado quis protestar, mas, ante o gestode ameaça do militar, acedeu contrafeito, tomando omadeiro e seguindo à frente do condenado.

Por todo o trajeto, só se escutavam impropérios einjúrias lançadas contra o Sublime Condenado. Maruednotou, todavia, que um grupo de mulheres seguia o cortejoà distância, com os rostos cobertos. Mas os olhos percu-cientes do mercador perceberam que elas choravam.Devem ser pessoas ligadas a ele, pensou consigo.

Ao chegarem ao local da execução, começou a partemais hedionda da tortura, cujos detalhes cruéis omitirei

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por serem demasiadamente chocantes. Além do mais, jáforam suficientemente explanados em obras específicas.

Marued não conseguiu conter o pranto diante detanto horror, ainda mais em dose tripla, pois dois ladrõesforam crucificados ao mesmo tempo em que Jesus.

Sobre a cruz do mestre, foi colocada uma placa, enela estava escrito em latim e grego: Jesus de Nazaré,Rei dos Judeus. Tinha, a inscrição, um duplo motivo: oprimeiro, explicitava o porquê da execução, ou seja, queJesus fora condenado por crime de sedição, e o segundo,uma ironia cruel dos romanos, que assim buscavamhumilhar os dominados.

Marued resolveu não esperar pelo fim. Cheio deraiva, com o coração amargurado, retornou ao seuacampamento e, ordenando aos criados embalarem tudo,afastou-se de Jerusalém pela estrada que conduzia a Jericó,onde, em Beit-Arabá, atravessou o Jordão rumando parao sul, em direção à sua região. O céu estava coberto denuvens cinzentas, anunciando uma tempestade pronta acair. Aliás, desde a noite anterior o tempo havia mudado.Até as forças da Natureza protestam contra a iniqüidadeque foi cometida, pensava o árabe. Fazia meia hora quehavia deixado a Cidade, atravessando o Cedron, eultrapassado o Monte das Oliveiras quando o terremotoaconteceu. Os animais já vinham inquietos há algumtempo, dando trabalho para serem controlados. Algunsdispararam, enquanto outros estacaram tremendo de medo.Como estavam em campo aberto, não havia o que temer.Mas, na mesma hora em que aconteceu o sismo, a mentedo negociante vinculou-o à morte de Jesus. Sem saberporquê, tinha a certeza de que, naquele momento, tudoestava consumado. Uma confusão de sentimentos seestabeleceu em seu íntimo. Era um misto de raiva,

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frustração e piedade. Igualmente, um profundo desprezopela espécie humana e pelos que haviam cometido tãobrutal injustiça.

No segundo dia de viagem, foi surpreendido peloencontro inesperado com Tarik, que vinha em sentidocontrário. Correu ao encontro do amigo, abraçando-o achorar convulsivamente. Tarik o acolheu com a mesmaefusão, enquanto lhe falava também em pranto:

– Sim, meu amigo, sei que o mataram.Somente algum tempo depois, quando Marued

conseguiu se asserenar, e os criados haviam armado asbarracas à beira da estrada, é que se deu conta de que oamigo falara sobre a morte de Jesus, sem que lhe houvessedito coisa alguma.

– Tarik, você já sabia da morte do Mestre. Comofoi isso possível? Durante toda a viagem até agora,ninguém passou por nós.

O árabe, então, narrou-lhe que, durante a tarde dodia em que Jesus morrera, sentira um sono muito grande,sendo obrigado a parar e montar acampamento paradescansar. Esperara, nervoso, que os servos aprontassemtudo, tendo se jogado aos tapetes da tenda imediatamente.Sentira-se, no mesmo instante, fora do corpo. Era umasensação diferente. Flutuava sobre ele, estarrecido, quandose sentiu atraído para fora da tenda, cujos panos atravessounum átimo, e, mal teve tempo de fixar o quadro em redor,viu-se voando pelo espaço. Em pouco tempo, chegara aJerusalém. Era a hora sexta, e uma grande escuridão cobriatoda a cidade. Ao longe, podia divisar três cruzes, dasquais se aproximou rapidamente. Numa delas, enxergaraJesus todo ferido e ensangüentado. Olhando a multidão,tivera um momento de pânico – nela misturavam-sepessoas e verdadeiros monstros de formas horrendas. Os

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representantes do Sinédrio, que se posicionavam à frente,estavam imantados a figuras horripilantes que lembravamanimais disformes, contornados por uma luminosidade àsemelhança do ferro em brasa. Mas, em meio à escuridão,brilhavam algumas luzes muito belas. Notara, então, quetoda a cruz em que o Mestre agonizava brilhavaintensamente, dela partindo raios luminosos que alcança-vam o negrume que envolvia a multidão e, quando entra-vam em contato com a espessa nuvem escura, geravamfagulhas intensas. Da mesma forma, um permanente raiode luz projetava-se sobre um grupo de mulheres queestavam perto do madeiro, como a protegê-las. Emseguida, percebera que havia numerosos seres, como quefeitos de luzes de cores diversas, em volta da cruz e sobreela, que choravam, não de revolta, mas de piedade dopovo ali reunido, que cometera a terrível atrocidade detorturar e condenar o Amor, materializado em formahumana. Em determinado instante, a luminosidade queincidia do alto sobre o inominável instrumento de suplíciofizera-se mais intensa. Viu que Jesus, num supremoesforço, fizera pressão sobre os pés cravejados no postee, erguendo o corpo, como a liberar os pulmões, lançaraum brado, entregando o Espírito a Deus. No mesmomomento, o corpo voltara a cair com a cabeça pendendopara frente. Mas o que veio a seguir causara-lhe sumoespanto: uma forma luminosa, semelhante à que estavapendente da cruz, afastara-se do corpo inerme. Todavia,prodígio dos prodígios, diferentemente da forma ensan-güentada e ferida que acabara de deixar, apresentava-seindene. O mestre desencarnado estava como quando oconhecera, somente que a emitir ondas luminosasimpossíveis de descrever. Durante algum tempo, o Espíritode Jesus contemplara o corpo que acabara de deixar;

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depois, desceu suavemente até o grupo de mulheres,abraçando-as carinhosamente, como também a um jovemque estava junto a elas. A seguir, acompanhado por umreluzente cortejo de seres luminosos, voara em direçãoao firmamento, subindo sempre até desaparecer dos seusolhos. Sentira então uma espécie de vertigem, acordandoa soluçar de dor e alegria na tenda onde adormecera.

Marued estava estarrecido com a descrição, semsaber o que pensar. Mas, no íntimo, fervia uma cóleraintensa contra os matadores do Mestre.

Naquele momento, aconteceu algo inesperado. Atenda onde se encontravam iluminou-se, fazendo com queos dois amigos se assustassem. No meio da luminosidade,apareceu a figura radiante de Jesus, reconhecido pelos doisde imediato: Fica em paz, Marued. Eu não tenho o menorressentimento contra os que pensavam me destruir, poiseles foram vitimados pela ilusão dos que vivem nessemundo, ainda repleto de mentiras e falsos conceitos emtorno da realidade da vida. Aprende a perdoar, pois quemperdoa é livre, e quem guarda ódio ou rancor é prisioneirodos próprios sentimentos desequilibrados. Aprende a amar;o amor é a matéria de que se formam os seres e as coisas,porque o Amor nasce do coração do Pai Celestial. Evoltando-se para Tarik: Meu irmão, tua fé sincera e puraproporcionou-te ver o que muitos desejariam. Mantém-tenela, firme e sereno, pois serás intérprete do meu ensina-mento entre os que vivem nas areias escaldantes do deserto.Ensina-lhes a amar e servir, compreender e tolerar.

Assim como surgira, o Mestre se foi da vista dosdois amigos, em cujos corações penetrava uma imensapaz, só concedida aos que se tornam, pelo esforço própriono crescimento espiritual, credores do intercâmbio comas Forças Superiores que dirigem e mantêm a mesmaestrutura da Criação.

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Madrugada de Luz

Maria de Magdala chegara cedo à frente dosepulcro. Dos olhos inchados já não escorriam lágrimas.Seus movimentos se faziam de forma automática, mecâ-nica, e ela os percebia, bem como ao corpo, como algodistante que lhe não pertencesse.

Em sua mente, num movimento perpétuo, asterríveis cenas que culminaram na crucificação se repe-tiam. A memória reproduzia fielmente todas as particulari-dades do dantesco episódio. Acompanhara-o, desde omomento em que o cortejo macabro deixara a FortalezaAntonia com um homem carregando a trave horizontalda cruz. Seu coração quase explodira de dor quando ovira desfigurado e sangrento pelas sevícias passadas. Asoutras mulheres que estavam com ela sofriam da mesmador. Tinha vontade de se aproximar, de verberar contra asituação, de arrebatá-lo daquela situação terrível, mas erauma simples mulher de uma sociedade em que as mulheresnão tinham quase nenhum direito. Junto com suascompanheiras, seguira tudo de longe, chorando sem parar.Quando o prenderam à cruz, sentira como se os cravos secravassem em sua alma. Vivera-lhe toda a agonia.

Havia algum tempo que ele estava crucificado,quando Maria, sua mãe, chegara. Sua dor era tãoformidável que ela parecia estar em transe. Mesmo os

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mais empedernidos motejadores e os soldados não tiveramcoragem de evitar que se aproximasse do madeiro e ali sedeixasse ficar, como que petrificada, de olhar fixo na cenacruel. Não dera nem sinal de entender o momento em queJesus, fixando nela o olhar, dissera: “Mulher, eis aí teufilho. E, dirigindo-se a João, filho de Zebedeu: Filho, eisaí tua mãe”175, explicitando, assim, que o discípulo deveriasubstituí-lo no cuidado daquela por quem, como filho maisvelho, tinha a obrigação de zelar.

Ouvira-lhe os gemidos, que não paravam de ecoarem sua mente. Dobrara-se sobre si mesma, tomada deuma emoção superlativa, no momento em que ele,correndo os olhos pela multidão ensandecida, dissera:“Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”176.

Num momento tão doloroso, quando lhe faziamtantas perversidades e injustiças, ele era o mesmo desempre, cheio de amor, compreensão e, acima de tudo,perdão.

Escutara-lhe as últimas palavras, de coração opres-so: “Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito”177.

Mas a revolta tomara-lhe todo o ser quando ossoldados lhe perfuraram o lado com uma lança paraverificar se havia morrido, depois de quebrarem as pernasdos dois infelizes que haviam sido crucificados juntamentecom ele.

Ali, aos pés da cruz, deixara-se ficar com Maria,mãe de Tiago e João, além de Salomé e a mãe do Mestre,por largo tempo, quando já ia começando o dia da Páscoa,momento em que José de Arimatéia chegou com a ordemde Pilatos para que o corpo de Jesus lhe fosse entregue a

175 Jo 19, 26-27.176 Lc 23, 34.177 Lc 23, 46.

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fim de ser sepultado. Junto com as outras, cuidou do corpo,rapidamente, com os ungüentos e o lençol de linho quehaviam sido trazidos para a ocasião. Depois de o teremcolocado no sepulcro, cuja entrada fora selada com umagrande pedra, José de Arimatéia a levara, quase à força,para sua casa. Naturalmente, não conseguira, comoninguém, dormir, ficando a soluçar sentada a um cantoda parede do quarto onde fora colocada. Uma perguntapairava sobre todas as lembranças: Por que, meu Deus?Ele só fazia o bem. Por que, meu Deus, tanta atrocidade?Ele era a personificação do Amor. Por que, Meu Deus,trataram-no com tanto ódio? Suas mãos, tão bonitas egenerosas, cujo toque leve e suave curava, acalmava,libertava e consolava. Por que, meu Deus, foram cravadasno madeiro, por cravos dilacerantes? Por que, meu Deus,seu rosto sereno e bonito, onde os olhos castanho-escuros,lúcidos e tranqüilos, brilhavam ao falar do Pai Celeste e,penetrantes, podiam ler os mais recônditos segredos dasalmas, teve de ser deformado pelas agressões estúpidasdas bestas-feras do Sinédrio e dos monstros travestidosde homens, que eram os romanos? E, por que, meu Deus,foi abandonado por todos, padecendo sozinho aquelastorturas inomináveis? Por que, meu Deus?

Trazia nas mãos os ungüentos necessários para trataro cadáver querido, que haveria de, carinhosamente, untaracarinhando-o com amor. Queria vê-lo pela última vez echorar sobre ele toda sua saudade.

Quando chegou à frente do Sepulcro, tomou susto.A enorme pedra que lhe tapava a entrada estava deslocadae caída no chão. Os guardas, colocados pela camarilha doTemplo para vigiar o local, não mais ali se encontravam.Aproximou-se da entrada do local, apreensiva. Ali, depoisde olhar cuidadosamente o local mergulhado em semi-

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escuridão, entrou resolutamente, e o corpo havia desapare-cido. Os panos em que fora envolvido estavam no mesmolugar, estendidos. Largou todos os apetrechos que trouxerae saiu sem saber o que fazia. Caminhou sem direção pelohorto até que viu um vulto por entre algumas árvores.Deveria ser o homem que cuidava do jardim. Natural-mente saberia dar-lhe alguma informação sobre o paradei-ro do corpo que, pensava, alguém tirara dali. Talvez elemesmo.

Aproximou-se quase a correr e, com os olhos baixos,sem fitar o desconhecido, o que o costume proibia,falou-lhe:

– Por favor, levaram o corpo do meu Senhor, e nãosei onde o puseram. Se foste tu quem o fizeste, dize-meonde está para que eu possa cuidar dele.

A resposta do homem fê-la tomar um choque:– Maria.Aquela voz... Não era possível! Devia estar sendo

vítima de alguma alucinação. Ergueu os olhos lentamente,quase a medo, e, ó prodígio dos prodígios, ali estava oMestre querido a sua frente com o sorriso inesquecível, enão havia nenhuma marca das torturas sofridas. Seu rostoera o mesmo que ela se acostumara a fitar com veneração.Os punhos e os pés não traziam qualquer sinal dos cravosque os transfixaram. Era ele mesmo. Nenhuma dúvidaatravessou seu coração. Transida de alegria, deixou-se cairde joelhos, e, do íntimo de seu ser, convulsionando porindescritíveis sentimentos, brotou a exclamação:

– Rabúni!178

Ia lançar-se aos seus pés, para beijá-los, quando suavoz a deteve:

178 Meu querido Mestre.

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– Não me toques, pois este novo corpo ainda nãoestá completamente preparado. Mas vai e dize aos meusdiscípulos que, como os avisei, estou retornando da morte,para lhes demonstrar que só existe vida. Vai, e que a Pazse faça em tua alma fiel e boa, para sempre.

E, com um aceno de despedida, dissolveu-selentamente diante dos seus olhos deslumbrados.

Agora, todo o sofrimento desaparecera do seuíntimo, substituído por uma alegria infinita. Deixou-seficar ainda ali, de joelhos, por algum tempo, enquantobalbuciava preces de agradecimento a Deus. Não entendia,é bem verdade, o que estava acontecendo, mas o importan-te é que o Mestre amado estava vivo.

Levantou-se e, quase a correr, entrou na cidade. Nãose preocupou com os olhares de estranheza que lhe lança-vam os transeuntes. Chorava, enquanto caminhava veloz,mas agora de júbilo. Entrou na casa de Maria Marcos,subindo as escadas que davam para os cômodos superioresem desabalada carreira. Entrou arfante no recinto. Osdiscípulos ali reunidos assustaram-se com a entrada intem-pestiva, e só se acalmaram quando a identificaram. Elaqueria falar, mas a voz não saía.

Pedro se aproximou, dizendo:– Acalma-te, mulher. Conta-nos o que aconteceu.Aos arrancos, vencendo o cansaço que a assaltava,

retrucou, aos arroubos:– O Mestre... O Mestre... Está vivo... Vivo... Eu o

vi... No jardim... Vivo...Alguém exclamou:– Coitada, enlouqueceu!Voltou-se na direção da voz:– Não... Eu o vi... Está vivo...Deixou-se cair no chão, num desmaio, vencida pela

debilidade, pelo cansaço.

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As mulheres acorreram pressurosas. Maria Marcosse assentou no chão, colocando sua cabeça no colo,enquanto lhe dizia palavras tranqüilizadoras e procuravafazê-la beber um gole de água.

Passado muito tempo, recuperou-se e, mais calma,contou tudo o que acontecera.

– Em verdade, disse Natanael, perdeste completa-mente o juízo.

Ela protestou, lembrando que Jesus afirmara, váriasvezes, que voltaria depois de morto.

Depois de muita discussão, Pedro e João resolveramir até o sepulcro para verificar o que acontecera e voltaramconfirmando que o corpo havia desaparecido. Ali ficaramapenas os panos com que José de Arimatéia o haviaenvolvido.

– Provavelmente as autoridades do Templo omandaram retirar para consumar a infâmia. Disse-lhesFilipe, revoltado.

Estavam, assim, discutindo o que poderia ter havido.A porta estava trancada. Maria, a um canto com as outrasmulheres, descrevia-lhes, sem parar, o que vira. No cora-ção delas não pairavam dúvidas. Diferentemente doshomens, racionais e lógicos, o coração lhes dizia que ahistória de Maria era verdadeira – o Mestre ressuscitara.

Por volta da hora sexta, entraram, esfuziantes dealegria, dois discípulos que, antes da chegada de Maria,haviam resolvido voltar para Emaús, onde moravam,cheios de angústia por causa dos acontecimentos da mortede Jesus, e lhes disseram: O Mestre se levantou de entreos mortos. Nós o vimos.

Cercados pelos outros discípulos, ouviam indaga-ções de todos os lados. Pedro, finalmente, fez cessar abalbúrdia, pedindo que fizessem silêncio para quepudessem contar o que acontecera.

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Então, Matias Barbetel, um dos dois, contou o quese passara: Como vocês sabem, saímos daqui pelo iníciodo primeiro dia da semana. Íamos tristes e aflitos,comentando nossa dor, em virtude dos acontecimentosinfelizes do parasceve. A certa altura de nossa caminhada,acercou-se de nós um desconhecido, que comentou terpercebido nosso acabrunhamento, perguntando-nos a razão.Tentamos negar que estivéssemos com algum problema,mas, diante de sua insistência, Josias lhe narrou os episódiosdolorosos da crucificação, comentando que não sabíamoso que deduzir de tudo aquilo. Se Jesus era o Messias, porque Deus permitiu que fosse morto de forma tão cruel, semintervir? inquiriu, ao final da narrativa, expondo assim onosso desapontamento. O desconhecido, tomando dapalavra, pôs-se a comentar, à luz das Escrituras, que tudoacontecera conforme as predições ali registradas. Dessaforma, escutando-o, enlevados pela fluência e lógica docompanheiro inesperado, percebemos que chegáramos àentrada de Emaús. Como a madrugada já se fizesse sentir,convidamos o nosso amigo para que tomasse a primeirarefeição do dia conosco, na estalagem que ali existe. Quandofomos servidos, o desconhecido tomou o pão e o partiu,pronunciando uma bênção. Nossos olhos pareceram, então,abrir-se, pois o gesto era por demais conhecido. Diante denós, estava o Mestre com um sorriso nos lábios.Exclamamos a uma só voz: Senhor! e, no mesmo instante,ele desapareceu. Um misto de alegria e medo assaltou-nosa alma. Começamos a comentar as impressões quesentíamos enquanto caminhávamos ao seu lado, escutandoseus comentários. Era uma sensação de que o conhecíamos;entretanto, não conseguíamos lembrar de onde. Levantamo-nos rapidamente e resolvemos voltar para lhes dar a boanotícia.

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Exclamações partiam de todos os lados. As mulherese alguns dos discípulos louvavam a Deus, enquanto outrospermaneciam incrédulos, afirmando que estavam todosenlouquecendo.

Nesse comenos, quando todos falavam ao mesmotempo sem chegar a qualquer conclusão, uma voz se fezouvir, calando a balbúrdia: A Paz esteja convosco.

No meio de todos, Jesus, face serena e sorriso leve,fitava-os.

Susto, medo, alegria, emoções conflitantes percorre-ram todos os corações. As mulheres choravam de alegria.Ali estava a prova de que Madalena falara a verdade.

Jesus acalmou todos, continuando: Não temais, soueu mesmo. E, dirigindo-se à mesa onde estavam algunsrestos de comida, reclinou-se, tomou um pão, partiu-o eo comeu. Disse-lhes então: Estais vendo? não sou umaalucinação, porque elas não se alimentam.

Foi envolvido por todos. O medo foi substituídopor incrível alegria. Todos lhe falavam ao mesmo tempo.

O Mestre os acalmou com um gesto, dizendo: Voltaipara a Galiléia. Ali nos veremos outra vez. E, desejando-lhes paz, desapareceu diante dos seus olhos espantados.

Assim, a fé e a esperança voltaram ao coraçãodaqueles até então descoroçoados discípulos. Pela primei-ra vez, tomavam consciência de que o Mestre não era umMessias Guerreiro como acreditavam antes, mas um reno-vador de mentes e corações, e o seu Reino era um reinode paz a ser construído pelas vitórias alcançadas contraos próprios impulsos negativos. Sua revolução era espiri-tual, objetivando a construção de um novo Homem plenode sentimentos nobres, em que o amor seria o dirigentede todos os impulsos e instintos.

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Os Felizes Galileus

Corria o ano 60 quando Clódio desencarnou. Foium momento de profunda emoção e de magnífica demons-tração de Fé. Apenas dois meses haviam transcorrido doaviso público de sua desencarnação, dado pelo Espíritodo Apóstolo Tiago em reunião pública, através damediunidade do próprio Clódio.

Durante a semana final, o fundador da Casa de Jesusfoi tomado de febre súbita, tendo de guardar o leito forçadopelos companheiros, pois queria continuar exercendo suastarefas a todo transe.

Flávio Marcelo assumiu a direção dos serviços paraa qual já vinha sendo preparado como assistente de Clódio,a fim de substituí-lo definitivamente quando da suadesencarnação, conforme a ordem de Jesus.

O ex-centurião, pois já havia se desligado doexército romano, evoluía rapidamente no conhecimentoe prática dos ensinos do Mestre. Dia e noite, ficavacuidando dos enfermos com todo carinho, pensandoferidas, impondo as mãos sobre todos, assistindo os quedesencarnavam. Nos momentos de rápido descanso, eravisto em seu quarto, lendo e meditando. Dormia muitopouco, pois a oração se tornara um exercício mentalcontínuo, que aprendera a executar com fervor, e no qualhauria revitalização e paz. Quando instado a repousar

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mais, redargüia: Não posso me dar a esse luxo. Tenho derecuperar o tempo perdido. Além do mais, aprendi, nosmeus tempos de militar, a cultivar a disciplina, dominandoo corpo pela vontade. Passava noites em claro, preparandoações contra os que chamavam, em minha ignorância, deinimigos. Em plena madrugada, levantava para fazerexercícios de adestramento e, quando em ação, deslocava-me por longos trechos à frente de meus comandados e,no campo de batalha, dormia muito pouco e me expunhaaos perigos da luta com todo empenho. Agora, quedespertei para as tarefas da Boa Nova, tenho de mepreparar, exercitando-me constantemente, para atender asordens do meu Divino Comandante. Se me preparava comdenodo, em minha cegueira espiritual, para prejudicar osque chamava de inimigos do Império, quanto não tenhoque fazer para conquistar almas para o Reino de Deus?

Marcelo já começara a se dirigir à assembléia, soborientação de Clódio, fazendo pequenas interpretações depassagens da vida de Jesus e seus ensinamentos. Aprincípio titubeante pela falta de prática, progredia rapida-mente no manejo da palavra, tendo momentos de profundainspiração.

Na véspera do desencarne, Clódio o chamou e lhedisse:

– Meu irmão, sinto que amanhã será o dia da minhalibertação.

Ante os protestos do outro de que isso não aconte-ceria, pois ele ainda tinha muito que fazer pela difusão damensagem do Senhor, disse com bom humor: Vade retrome Satana, quoniam non sapis quae Dei sunt, sed quaesunt hominum.179

179 Mc. 8, 33. Passa para trás Adversário, pois não cuidas das coisas que são deDeus, mas das coisas que são dos homens.

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Flávio sorriu ante a recordação oportuna, enquantoo Servo do Mestre prosseguia: A continuação dasatividades de nossa casa já está garantida pelo seu legítimoresponsável – Jesus. Isto é algo que você nunca deveráesquecer – quem é o dirigente efetivo de qualquer institui-ção cristã. Cabe a ele tomar as providências com relaçãoà continuidade ou não das obras erguidas em seu nome.Por isso, nunca me detive sobre a questão de quem seriao meu substituto, guardando a certeza de que tal escolhalhe pertencia por direito inalienável. E, como vimos, oMestre agiu no momento oportuno, escolhendo-o para oencargo de fazer prosseguir os serviços de divulgação doEvangelho e assistência aos necessitados, que é nossoobjetivo. Parando para descansar um pouco, o Servo deJesus continuou: Não tenho nada que me pertença emtermos materiais; por isso, não haverá complicações deheranças, pois já me desfiz há muito tempo de todas asposses materiais. No caixote que está aos pés desta cama,encontrarás os documentos que fazem desta instituição aproprietária dos bens que um dia foram meus, como esteterreno e suas construções, bem como as somas emdinheiro aplicadas em mãos de banqueiros sérios, cujosrendimentos ajudam a manter todas as atividades desocorro e amparo aos pobres e doentes que nos procuram.Nele também estão os rolos de pergaminho onde escrevitodas as informações que me chegaram sobre os ensinose feitos de nosso amado Senhor. Considero-o um tesourode valor incalculável. Faço-te herdeiro deles. Se osestudares e praticares com diligência o que ali está, serásprofundamente rico espiritualmente.

Flávio sorriu ante tais palavras, dizendo:– Sem dúvida, procurarei aplicar bem esse tesouro,

com a ajuda do Mestre.

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Algumas horas depois, rodeado pelo carinho deassistidos e trabalhadores da Casa de Jesus, Clódio exalouo último suspiro, sendo suas últimas palavras: Jesus, emtuas mãos entrego o meu Espírito!

Vibrações suaves enchiam o recinto e, embora aslágrimas de saudade escorressem pelas faces de todos,havia paz nos corações.

Após o enterro do corpo de Clódio, em Catacumbapróxima, Flávio Marcelo, envolto em recordações saudosas,abriu a caixa que lhe fora legada, pondo-se a verificar oseu conteúdo. Em um rolo de pergaminho, encontrouanotações sobre a vida de Jesus, pondo-se a ler:

Embora não tivesse a oportunidade de assistir à exe-cução do Mestre, tive a alegria de vê-lo novamentenum dia inesquecível.Estava em Cafarnaum, hospedado na casa de SimãoBarjonas, onde todos se reuniam após as fainas do dia,esperando o momento de revê-lo, conforme Ele haviaprometido.Numa noite, enquanto conversávamos sobre nossasrecordações dos dias maravilhosos em que o Senhorestivera conosco, a sala onde nos reuníamos foi ilu-minada por luz transcendente de um matiz violeta bri-lhante. No centro da luz, desenhou-se um jovem debeleza ímpar, que nos falou:Irmãos, que a Paz esteja convosco! O Senhor pediuque avisasse a todos os seus fiéis discípulos que, ama-nhã, pelo cedo da manhã, irá encontrá-los no Montedas Flores, no Vale de Genesaré, onde costumava orarantes de deixar a Galiléia. Todos os seus seguidoresdesta região, neste momento, estão recebendo estainformação.Após o anúncio, o mensageiro celeste desapareceuenquanto lágrimas de alegria visitavam todos os sem-blantes.Imediatamente apressamo-nos em partir para a locali-dade indicada. A lua cheia parecia mais bela e clara

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naquela noite, iluminando o nosso trajeto, enquantoos barcos em que nos encontrávamos singrava emmanobras rumo à pequena enseada de Genesaré, e daliaté a encosta do monte onde se daria o encontro. Ali,deitamo-nos sobre nossas capas para descansar, em-bora não conseguíssemos dormir tal era a nossa ex-pectativa. Por todo o resto da noite, foram chegandopessoas, vindas de todas as regiões do lago, acomo-dando-se em grupos após as saudações naturais e asalegrias de reencontros.Ao nascer do Sol, uma multidão de cerca de quinhen-tas pessoas estava reunida. Era uma notável assem-bléia de seguidores de Jesus. Impressionava ver todosos rostos alegres e, diferentemente dos agrupamentoscomuns, naquele havia um real sentimento defraternidade. As pessoas se ajudavam entre si, tratan-do-se com imenso carinho e total espontaneidade.Era algo tão inusitado que me pus a meditar sobrecomo seria o mundo quando a Mensagem Sublime doEvangelho fizesse parte do cotidiano de toda a Huma-nidade. O Reino, do qual o Mestre falava com tantainsistência, será realmente uma sociedade absoluta-mente diversa da qual estamos acostumados. Sem hi-pocrisia, ciúmes, indiferença, antagonismo; enfim, semtodas as mazelas existentes nos relacionamentos en-tre os indivíduos, como em voga atualmente.Pessoas de diversas raças se abraçavam, chamando-se de irmão, também a alguns de nós, romanos, o quenão deixava de ser notável, dado o fato de que, natu-ralmente, deveriam ter ressentimentos óbvios. Isto dáuma dimensão da revolução que os ensinos de Jesusestá provocando. O Amor é, sem qualquer sombra dedúvidas, uma força transformadora. Ele haverá de criaro Homem Novo, cheio de Paz e Alegria.Quando o Astro Rei se levantou no Horizonte, o mur-múrio natural das conversas foi amainando paulatina-mente até cessar por completo. O silêncio se fez pro-fundo, colorido de certa expectativa.O ambiente se preencheu de energias diferentes. Umasensação agradável, misto de alegria e paz, tomou-

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nos o íntimo. Emoções diversas, elevadas, empolga-ram-nos o coração a ponto de banhar-nos o rosto comlágrimas de júbilo. Foi então que, a meia altura daencosta do monte, sobre uma saliência que dele seprojetava, o Mestre apareceu. Todo o seu corpo esta-va iluminado por uma luz indescritível. Em seu sem-blante, de beleza ímpar, pairava um sorriso terno. Nomesmo instante, ouvimos sua voz doce e suave. Eco-ava em nossas mentes, pois o ouvíamos nitidamentefosse qual fosse a distância que dele estivéssemos:Irmãos queridos. Este não é um momento de despedi-da, como os que acontecem na Terra. Na verdade,nunca estaremos separados, enquanto mantiverdes oclima espiritual que detendes neste momento, persis-tindo na vivência da Boa Nova. Seguirei atentamentetodo o desenrolar de vossas vidas como companheiroinseparável. Sempre contareis com meu auxílio emqualquer circunstância. Ensinei-vos o caminho da rea-lização espiritual; cabe a vós vos manterdes nele semesmorecimento. O Pai espera muito de cada um, paraque o mundo possa sofrer uma radical transformação,encontrando, na fraternidade, a forma natural de vi-ver, conquistando a felicidade que todos sempre al-mejaram. Já vos disse que não será uma fácil tarefa.Assim como me trataram, também sereis tratados, poisos homens ainda se debatem na ignorância da realida-de maior do Espírito. Para que alcancem a sabedoria,serão necessários exemplos vivos de uma nova formade viver. Sereis responsáveis por essa exemplificação.Amar, perdoar e servir sempre será o vosso lema. Seperseverardes nessa trilha, tereis encontrado a vossaPaz e ministrado aos homens as lições imprescindí-veis para que também a encontrem. Agora, irmãosamados, é chegado o momento de nos despedirmos.Junto do Pai, estarei cuidando para que a Boa Nova sedissemine entre todos os povos, pois, para ele, nãoexistem privilegiados. Todos são seus filhos diletos.Que a Paz permaneça em vossos corações.Essas palavras ficaram indeléveis em nossa memória.Tenho certeza de que, como eu, nenhum dos que ali

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estavam as esqueceu. Já tive oportunidade de encon-trar, depois, algumas das testemunhas daqueles subli-mes momentos, e suas lembranças conferiam exata-mente com as minhas.Enquanto o Mestre desaparecia lentamente diante dosnossos olhos marejados de pranto, de sua mão direita,erguida, saía um jato de luz que nos atingia a todos,em pleno coração, saturando-nos de imensa felicidade.Quando ele se foi totalmente, ficamos, durante muitotempo, a olhar o local onde estivera, talvez esperandovê-lo retornar. Depois, com as faces molhadas de lá-grimas, pusemo-nos a trocar abraços de despedida,encaminhando-nos cada qual para o seu destino.Tenho certeza de que dali saíram fiéis representantesdo seu Amor. Onde quer que se encontrem, estarãoexemplificando os ensinamentos ouvidos com todo oempenho de suas almas fiéis.Que o Senhor ajude a minha pobre alma, cheia de de-feitos, a cumprir, pelo menos, uma parte da tarefa queele me confiou.

Com lágrimas nos olhos, Flávio Marcelo retrucou,respondendo à última manifestação de Clódio: Meu irmão,tenho certeza de que agora já sabes que cumpriste fielmen-te tudo o que o Mestre esperava de ti. Todos nós, destePouso de Amor, somos testemunhas efetivas do resultadodo teu trabalho. Ajuda-nos, o Senhor, a segui-lo com amesma fidelidade com que o fizeste.

E, nas telas da mente, parecia-lhe ver a figura deClódio abraçando-o com infinita ternura, ladeado de Jesus,sorridente e belo como sempre.

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Betânia:o Último Encontro

Foi um momento inesquecível!Com essas palavras, Lissandro começou a narrativa

que Paulo de Tarso lhe pedira para fazer à comunidadecristã de Tessalônica, reunida na casa de Jasão. Erampouco mais de vinte pessoas que o verbo inflamado doApóstolo das Gentes atraíra para as luzes do Evangelho.

Encontrava-me hospedado em casa de Lázaro hátrês dias, atendendo à curta missiva que enviara à minharesidência na Peréia, cidade que fica além do Jordão, naregião denominada de Decápolis. Nela, dizia apenas queos fiéis seguidores do Rabi Nazareno estavam sendoconvocados para uma reunião urgente na cidade ondemorava.

Atendi prestamente porque queria inteirar-me dasocorrências que davam conta de que Jesus haviaressuscitado e aparecera a vários de seus discípulos.Soubera que, na Galiléia, ele havia se mostrado em plenaluz do dia a mais de quinhentos discípulos.

Não havia em meu coração qualquer dúvida quantoao fato, pois, quem era capaz de restituir a visão a umcego de nascença, como fizera comigo, e trazido meu

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amigo Lázaro à vida após quatro dias de enterrado, comoeu mesmo testemunhei, poderia tudo.

Assim que cheguei, Lázaro me recebeu eufórico:Não poderia deixar que perdesses essa oportunidade. OMestre marcou um encontro com alguns dos seusdiscípulos, aqui em Betânia, para daqui a três dias.

A notícia me encheu de alegria. Iria poder vê-lo maisuma vez, agora na situação ímpar de vencedor da morte.

A espera se fazia longa devido a nossa ansiedade.Quase não dormíamos, passando o tempo a relembrar aspalavras e feitos do querido Amigo. Lázaro, Marta e Mariame contaram vários episódios de aparição do Mestre, quelhes tinham chegado ao conhecimento. Era uma coisafantástica. Nunca, na História de Israel, havia acontecidoalgo semelhante. Nem o próprio Moisés, que falaradiretamente com Deus, havia proporcionado tamanhademonstração de poder.

As noites, antes do dia da prometida aparição, forampovoadas de sonhos extraordinários. Víamo-nos emregiões de beleza indescritível, reunidos em assembléiasà volta do Mestre, que atendia e socorria multidões depessoas, cujos rostos e corpos apresentavam os maisdiversos sintomas de desequilíbrio e enfermidade.Perguntando a um dos luminosos acompanhantes do Rabionde nos achávamos e quem eram aquelas criaturas, ouviuma explicação singular: Meu irmão, esta é a Região daSombra da Morte, de que falam as escrituras. E essesnossos irmãos, quando na Terra, não souberam viver ospreceitos do Amor e da Caridade, praticando toda a sortede ações indignas. O Senhor está lhes estendendo a suaajuda misericordiosa, assim como fez com os que aindaestão no corpo físico.

Confesso que fiquei surpreso, mas tenho hoje acerteza de que os mortos também foram e são atendidos

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pelo carinho e solicitude do Mestre, cuja Bondade seestende tanto sobre os que estão vivos quanto àqueles quese acham no Vale Escuro da Morte.

Quando chegou o dia anunciado, antes que o Solraiasse, fomos para um dos lados do Monte das Oliveiras,ensombrado por diversas dessas árvores, onde havia umapequena clareira encimada por uma rocha que se projetavaligeiramente. Ali encontramos os onze discípulos queviviam mais constantemente com o Rabi Nazarenoacompanhados de uma pequena multidão, que calculeiem torno de duzentas pessoas. Havia uma expectativaquase palpável no ar.

Pouco depois do Astro Rei se levantar no horizonte,sentimos que o ambiente à nossa volta se modificava. Eraalgo muito sutil. Um silêncio profundo, como se a própriaNatureza entrasse em estado de espera de um aconteci-mento singular. A brisa que sacudia levemente as folhasdas oliveiras estava carregada de perfume. Sentimentosde alegria e paz profundos percorriam-nos a alma. Derepente, como se atendendo a um alerta silencioso, volta-mo-nos todos para a projeção rochosa e o Mestre foi apare-cendo lentamente diante de nossos olhares espantados.

Primeiro, era um contorno transparente que se foiconcretizando aos poucos, até que ele se fez presente emtodos os detalhes. Todo o seu ser irradiava uma luminosi-dade deslumbrante, mas que não ofuscava, enquanto suasroupas se apresentavam extraordinariamente alvas.

A emoção tomou conta de todos, manifestando-senas lágrimas que escorriam por todas as faces.

Sua voz, inesquecível, soou novamente aos meusouvidos ou parecia soar, pois, rememorando o episódio,sinto que ela parecia brotar dentro do meu cérebro, emvez de ser captada pelos meus ouvidos:

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Meus irmãos! É chegado o momento em que medespeço da convivência material convosco. Forammomentos de lutas e dificuldades, mas de imensasrealizações, cujos frutos só serão colhidos daqui a muitosséculos. A plantação da semente do Bem no coraçãohumano é tarefa árdua e de germinação difícil,necessitando de muito trabalho e dedicação para quemedre convenientemente. Todavia, não vos deixareiórfãos. Acompanharei vossos passos como um amigoconstante, embora invisível. Nas horas necessárias, senti-reis mais efetivamente a minha presença. Se permanecer-des nas trilhas do Amor e da Caridade que vos indiquei,nada vos faltará, nem no que concerne ao Espírito nemno que diz respeito às coisas materiais. Seja vossa vidadedicada a difundir, entre todas as criaturas, a Boa Novado Reino de Deus, tanto por palavras quanto por ações nosocorro aos desvalidos do corpo e da alma. Mas, principal-mente, façais de vossas existências o mais eloqüentediscurso, vivenciando tudo o que vos ensinei, para quesejais luz do mundo e sal da Terra. O mais belo e sentidodiscurso será de mínima valia se não for fundamentadono exemplo sistemático. Como eu, enfrentareis o ódiogratuito dos que fazem do mal a razão de suas vidas.Semearão armadilhas em torno de vossos passos; levan-tarão torpes calúnias a vosso respeito; procurarão vosridicularizar e, finalmente, farão prender muitos de vós,julgando, torturando e condenando-vos à morte em seustribunais iníquos, dos quais a Justiça nunca se aproximou.Mas, se mantiverdes o coração fiel a mim, recebereis aCoroa da Vida Imperecível. Tomai-me como exemplo.Revesti-me com a vossa carne, vivi todas as circunstânciasde vossas vidas, enfrentei as mesmas tentações, sofri asmesmas dores, sorri e chorei como todos vós. Mas, em

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toda e qualquer situação, mantive estrita fidelidade ao PaiCeleste. Assim, posso me colocar diante de todos comoum padrão a ser seguido, pois demonstrei que o Espíritoé o senhor da matéria densa, e a vontade firmementecentrada em Deus nos faz superar o assalto dos impulsosprimitivos, sempre. Deixo convosco a minha paz.

Sua mão se ergueu num gesto de bênção, deixandofluir sobre nossas cabeças uma chuva de raios luminosos,que, acredito, transformaram nossa tristeza, pelaseparação, em alegria, pela certeza da perene companhiado Mestre inesquecível.

Ao final da narrativa, tanto o orador quanto osouvintes choravam de emoção. Os olhos do Apóstolo dasGentes, marejados de pranto, brilhavam intensamente.Lembrava-se, naturalmente, da visão que tivera às portasde Damasco, e que lhe mudou o rumo da existência.

O átrio onde se encontravam estava repleto devibrações sublimes, e muitos videntes percebiam apresença dos Espíritos, cuja luminosidade, a se irradiarde seus corpos espirituais enobrecidos pela prática do bem,criava uma policromia de matizes delicados etranscendentes.

Envolvidos nos fluidos sutis que dimanavam dasEsferas Superiores da Vida, todos escutaram, porfenômeno de Voz Direta, a voz augusta do Cristo Imortalressoar no ambiente e em seus corações:

Eu estarei convosco até a consumação dosséculos.

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Posfácio

Leitor amigo. As páginas que acabas de ler sãofruto de um entranhado amor ao Mestre e Senhor de todosnós. O Espírito que as inspirou, Mnêmio Túlio, transmiteprofunda afetividade pela figura excelsa de Jesus,arrebatando-me aos mais altos cimos da emoção. Auguroque também possas ter vivido momentos semelhantesdurante sua leitura. Todavia, o mais importante não é seemocionar com a vida do Rabi Galileu, mas procurar vivera Boa Nova que ele nos trouxe.

Assim procedendo, estaremos realizando nossaparte na imensa tarefa da implantação do Reino de Deusentre nós. Afinal, já deveríamos estar cansados de viveruma longa erraticidade de descaminhos e inconseqüências,através de vidas sucessivas, correndo atrás das mesmasilusões, cultivando os mesmos sentimentos conflituosose alimentando as mesmas ambições espúrias, para terminarinevitavelmente nos braços espinhosos da dor, bebendona taça de fel de amarguras reiteradas e chorando lágrimasardentes de remorsos cruéis. É preciso dar um basta nessajornada sem rumo e sem objetivo real.

O Espiritismo, abençoada oportunidade de reeduca-ção espiritual, revive os ideais evangélicos do CristianismoPrimitivo através das línguas de fogo do PentecostesUniversal, que são os Espíritos. Esses, por meio da

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mediunidade triunfante, vêm-nos conclamar ao renasci-mento espiritual, que deterá a recorrência infeliz dasreencarnações dolorosas e cheias de aflições que temosvivenciado habitualmente.

Não deixemos escapar, por entre os dedos, a sublimeoportunidade. Corajosamente, tomemos a resolução daautotransformação, integrando à consciência os aspectosnegativos da personalidade, recolhendo as projeçõesinjustificáveis que procuram perpetuar a via ilusória poronde estamos transitando, através de incontáveis eras. OCristo, na sua Infinita compaixão, abre-nos, mais umavez, seus braços amoráveis, convidando-nos a aceitar oseu jugo suave e a pôr sobre os ombros o seu fardo leve.Por que postergar novamente a entrega? Saltemos, resolu-tos, no imenso pélago do seu Amor, superando atavismose apegos tradicionais, pois ele é a única possibilidade deencontro definitivo com a Felicidade.

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Sugestões Bibliográficas

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ALAND, Kurt et al. The greek new testament. Introdução em castelhanoe dicionário. 3 ed. Stuttgart: United Bible Societies. 1975.

ANDRÉ LUIZ. Entre a terra e o céu. Psicografado por FranciscoCândido Xavier. 13 ed. Brasília: FEB, 1990.

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ANDRÉ LUIZ. Nos domínios da mediunidade. Psicografado porFrancisco Cândido Xavier. 13 ed. Brasília: FEB, 1984.

ANDRÉ LUIZ. Nosso lar. Psicografado por Francisco Cândido Xavier.35 ed. Brasília: FEB, 1988.

ANDRÉ LUIZ. Obreiros da vida eterna. Psicografado por FranciscoCândido Xavier. 17 ed. Brasília: FEB, 1984.

ANDRÉ LUIZ. Os mensageiros. Psicografado por Francisco CândidoXavier. 17 ed. Brasília: FEB, 1984.

ARGOLLO, Djalma Motta. Encontro com Jesus. Salvador-Bahia:Fundação Lar Harmonia, 2005.

ARGOLLO, Djalma Motta. O novo testamento: um enfoque espírita.São Paulo: Mnêmio Túlio, 1994.

ARGOLLO, Djalma Motta. O sermão do monte. São Paulo: MnêmioTúlio, 1993.

ARGOLLO, Djalma Motta. Possibilidades evolutivas. São Paulo:Mnêmio Túlio, 1994.

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Djalma Argollo

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CHAPLIN, Russell Norman. O novo testamento interpretado versículopor versículo. São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural, 1982. 6v.

DRANE, John. A vida da igreja primitiva. São Paulo: Paulinas, 1985.

DRANE, John. Jesus. São Paulo: Paulinas, 1982.

DRANE, John. Paulo. São Paulo: Paulinas, 1982.

EMMANUEL. Caminho, verdade e vida. Psicografado por FranciscoCândido Xavier. 13 ed. Brasília: FEB, 1989.

EMMANUEL. Fonte viva. Psicografado por Francisco Cândido Xavier.17 ed. Brasília: FEB, 1990.

EMMANUEL. Palavras de vida eterna. Psicografado por FranciscoCândido Xavier. 7 ed. Uberaba: CEC, 1975.

EMMANUEL. Pão nosso. Psicografado por Francisco Cândido Xavier.9 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1982.

EMMANUEL. Paulo e Estevão. Psicografado por Francisco CândidoXavier. 11 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1975.

EMMANUEL. Vinha de luz. Psicografado por Francisco CândidoXavier. 10 ed. Brasília FEB, 1987.

FRIEBERG, Bárbara; FRIEBERG, Timothy. O novo testamentoanalítico. São Paulo: Vida Nova, 1987.

FREIRE, Antônio. Gramática grega. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do N.T. gregoportuguês. São Paulo: Vida Nova, 1984.

KARDEC, Allan. La gênese. Paris: La Diffusion Scientifique, 1952.

KARDEC, Allan. Le ciel e l´enfer. Farciennes-França: Union Spirite, 1865.

KARDEC, Allan. Le livre des esprits. Paris: Didier, 1860.

KARDEC, Allan. Le livre des médiums . Paris: Dervy-Livres, 1972.

LASOR, William Sanford. Gramática sintática do grego do N.T. SãoPaulo: Vida Nova, 1986.

MCKIBBEN, Jorge Fitch. Nuevo lexico grieco-español del NuevoTestamento. 4 ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978.

RODRIGUES, Amélia. Primícias do reino. Psicografado por DivaldoPereira Franco. 4 ed. Salvador: Livraria Espírita Alvorada Editora, 1987.

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Outras obras do autor:

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Outros livros daDistribuidora Harmonia

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Conhecendo o Espiritismo

– Um curso básico

Adenáuer Novaes14 x 21cm | 130 páginasISBN 85-86492-04-3

O livro apresenta o Espiritismonuma linguagem simples paraaqueles que se iniciam no seuestudo. É utilizado como manualno Curso Básico de Espiritismo.Apresenta os princípios básicosdo Espiritismo de forma afacilitar o estudo e acompreensão de suaimportância para o serhumano.

Alquimia do Amor –

Depressão, Cura e

Espiritualidade

Adenáuer Novaes14 x 21cm | 256 páginasISBN 85-86492-17-5

O autor faz um estudo profundo arespeito da depressão,apresentando seus principaissintomas, suas causas e formas detratamento. Procura desmistificar adepressão, estabelecendo asdiferenças em relação a outrosestados de consciência, visandoum diagnóstico mais preciso.Considera a depressão como umprocesso de auto-erotização e dealquimia de energias internas. Oenfoque é psicológico e espírita.

Sonhos– Mensagens

da Alma

Adenáuer Novaes14 x 21cm | 236 páginasISBN 85-86492-03-5

Um estudo sério arespeito dos sonhos,considerando-os comorecados ao sonhador.Introduz o leitor nomundo onírico,mostrando suaimportância para odesenvolvimento psíquicoe espiritual com umaanálise comparadaesclarecendo opensamento espírita arespeito.

Filosofia eEspiritualidade

– Uma

abordagemPsicológicaAdenáuerNovaes14 x 21cm |240 páginasISBN 85-86492-15-9

Nesse livro,o autor analisa aevolução do pensamento dahumanidade, trazido pelos mais diversospensadores, sob uma perspectiva psicológica eespiritual. Encontram-se referências filosóficasde temas constantes em O Livro dos Espíritos.O psiquismo humano é considerado comoinstrumento flexível e moldável às idéiascoletivas que nortearam o pensamento emvárias épocas.

Psicologia eMediunidade

Adenáuer Novaes14 x 21cm | 172páginasISBN 85-86492-11-6

Este trabalho tenta estabelecer uma ponte entre oespiritual e o psicológico, apresentando amediunidade como uma faculdade que deve serutilizada pelo ser humano nas diversas atividades davida. A mediunidade é um dos instrumentos de quedispõe a mente humana para o acesso aoinconsciente, permitindo que a realização pessoal sedê com a inserção do espiritual.

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