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  • PARTILHAR O SABER: FORMAR O LEITOR

    conversas entre a escrita, a histria, narrativase leituras,na perspectiva da cultura

  • Universidade Federal da Grande DouradosCOED:

    Editora UFGDCoordenador Editorial : Edvaldo Cesar Moretti

    Tcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva FilhoRedatora: Raquel Correia de Oliveira

    Programadora Visual: Marise Massen Frainere-mail: [email protected]

    Conselho Editorial - 2009/2010Edvaldo Cesar Moretti | Presidente

    Wedson Desidrio Fernandes | Vice-ReitorPaulo Roberto Cim Queiroz

    Guilherme Augusto BiscaroRita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti

    Rozanna Marques MuzziFbio Edir dos Santos Costa

    Diagramao:Marco Antnio Brochini Martins

    Ereni dos Santos BenvenutiReviso de textos e normatizao:

    Jorge Luiz de Paula

    Impresso: Central Indstria Grfi ca| Juiz de Fora |MG

    Ficha catalogrfi ca elaborada pela Biblioteca Central - UFGD

    372.4P436p

    Pereira, Valria.Partilhar o saber : formar o leitor : conversas entre a

    escrita, a histria, narrativas e leituras, na perspectiva da cultura / Valria Pereira ; Nilton Ponciano Dourados : Ed. UFGD, 2012.

    197 p.

    Possui referncias.Apresentao de Eliana Yunes.ISBN 978-85-8147-017-7

    1. Leitura Crtica. 2. Formao de leitores. I. Ponciano, Nilton. I. Ttulo.

  • VALRIA PEREIRANILTON PONCIANO

    PARTILHAR O SABER: FORMAR O LEITOR

    conversas entre a escrita, a histria, narrativase leituras,na perspectiva da cultura

    2012

  • Agradecimentos

    Aos profi ssionais das Faculdades Integradas de Ftima do Sul/MS, que, nos anos de 2003 e 2004, contriburam efetivamente para o andamento dos projetos que anteciparam este livro, especialmente as professoras Gicelma Chacarosqui, Maria Ceclia de M. Silva e o pro-fessor Srgio Gracia.

    Aos participantes do crculo de leitura: Adriana Amncio Ro-drigues, Alessandra Lopes Cajaba, Alessandra Lopes de Souza, Aline Nunes Girandeli, Celi Silva dos Santos, Claudinei Menezes (egresso do curso de Pedagogia), Claudineth Roseli Zacarias de Souza, De-nise Garcia de Matos, Diana Sayuri Ianagui, Elaine de Souza Uzan, Elizngela Souza da Silva, Gerulina Rios dos Santos, Ivete Garcia, Izngela Cndida de Alencar, Jacobetes Gomes da Silva Gonalves, Jos Roberto Nascimento de Castro, Josiane Alves da Silva, Jozieli dos Santos Arajo, Keila Aparecida Brito da Silva, Leila Ferreira Oliveira Gonalves, Marcos Mariano de Aguiar, Maria Lcia Fernandes, Mari-neide Ferreira Baptista, Rosngela Aparecida Galindo, Suely Moreira Silveira da Silva, Tatiany de Arajo Teixeira.

    A toda a comunidade de Ftima do Sul/ MS e a de todo o es-tado do Mato Grosso do Sul, que, entrelaadas, esto neste livro.

  • Algum deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso.

    Cora Coralina

    No h saber mais ou saber menos: H saberes diferentes.

    Paulo Freire

    [...] quem somos ns seno uma combinatria de experincias, de informaes, de leituras, de imaginaes? Cada vida uma enciclopdia, uma biblioteca, um inventrio de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente re-mexido e reordenado de todas as maneiras possveis.

    talo Calvino

  • Sumrio

    Apresentao Eliana Yunes, 9

    I - Partilhar o saber Nilton Ponciano e Valria Pereira, 13

    II - Narrativas primeiras Nilton Ponciano, 35

    III - Narrativas terceiras/ outras/ mesmas: o crculo de leitura de Ftima do Sul Valria Pereira, 105

    IV - Fontes e referncias utilizadas e consultadas, 185

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    Apresentao

    Notas em torno de um tema permanente.

    As pesquisas dos ltimos vinte anos aceleraram a discusso em tor-no da formao de leitores, que deixou a rbita da mera alfabetizao em crise efetiva e generalizada que compromete toda a escolarizao dos jovens para se constituir uma rea de estudos relevante, complexa no sentido proposto por Morin, alm de efetivamente interdisciplinar. Seus efeitos se prolongam muito alm da vida escolar e repercutem com impac-to sobre a sociedade em perspectiva renovada de cidadania na qualifi cao da vida pessoal, no horizonte da criatividade, no campo do trabalho.

    Sem leitura como uma experincia constitutiva da (inter) subjeti-vidade, diante da avassaladora quantidade de informao nivelada acri-ticamente, fragmentria, desvinculada muitas vezes do contexto em que precisa funcionar, o indivduo se torna presa fcil das contradies que o aprisionam tanto nas afetividades epidrmicas quanto na ausncia de refl exo para o discernimento.

    A leitura tem-se revelado condio inalienvel para o domnio da palavra oral e escrita no mundo contemporneo, propiciadora de oportu-nidades para o autoconhecimento, para um acercamento mais efetivo das realidades que envolvem a vida e as relaes sociais, para a anlise e a ex-presso crtica de pontos de vista diferenciados, em linguagens mltiplas, artsticas ou no. A leitura consolida um hbito refl exivo que fortalece um proceder atento s sutilezas dos discursos. A leitura azeita o pensamento, concebida deste lugar, em que os sentidos e a interpretao no so meras concesses, mas construes permanentemente ligadas vida e ao reper-trio dos sujeitos, tornando-os partcipes da histria, ainda que pequena, construda pelos homens.

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    A obra de Valria Pereira e Nilton Ponciano , de fato, uma longa conversa sobre as interfaces da leitura sob o foco da cultura: h que falar da narrativa, da escrita, da histria, da oralidade, das linguagens que cons-tituem redes sistmicas em que se movem os sujeitos; o contexto histrico, social e poltico das prticas e a decorrente refl exo terica que embasa e que se delineia a partir do acompanhamento crtico das aes. A prtica leva a uma teorizao se descobre na base do agir, permitindo a correo de pressupostos e a avaliao das atividades.

    O trabalho aqui apresentado tem a seriedade de comear pela apresentao ao leitor da obra, a realidade, tomada de forma analtica, no recorte de uma cidade e sua histria em Ftima do Sul (MS). O processo se inicia pela partilha do enfoque, dos conceitos, do poder criador que a palavra humana dispe desde que, Gnesis, tomou-se a palavra como criadora de mundos. Com rigor, sem pedantismo acadmico, com uma linguagem acessvel a pesquisadores iniciantes, as narrativas primeiras apresentam os fundamentos deste priplo terico-metodolgico, garan-tindo um enquadramento do olhar de quem busca, nas narrativas tercei-ras, um caminho para pensar a formao de leitores e os seus obstculos neste contexto.

    A pesquisa assim localizada no perde o valor mais universal que possa ter para leitores mais distantes deste contexto geogrfi co, contudo prximo na vertente antropolgica, cultural e social.

    A leitura do relatrio-pesquisa se faz como a de um ensaio estabele-cido sobre a vivncia efetiva das situaes que vo sendo apresentadas ao longo dos captulos; estes, tematicamente, aproximam-se dos problemas que afl igem o campo das leituras verbal e no-verbal, num universo mul-ticultural, em que convivem, em oferta, nveis diversos de apropriao da cultura.

    O trabalho no se fecha, mas amarra algumas questes, fi os de uma rede que se vai tecendo medida que a refl exo avana criticamente. As prticas avaliadas, retomadas, revistas, do ao leitor deste livro a segurana

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    de caminhar acompanhado em suas dvidas, obstculos, possibilidades. O exerccio proposto dos crculos de leitura para a formao de leitores universitrios, muitas vezes desprovidos de sua prpria herana cultural, entrelaada s modernas mdias, oferece uma contribuio substantiva e uma metodologia revisada, alm de amparada teoricamente, conduo de resgate da experincia leitora de jovens analfabetos funcionais.

    A narrativa de fundo, uma narrativa segunda, do pensamento dos autores-pesquisadores, tambm se oferece como modus operandi do exerc-cio de fazer e pensar.

    Eliana Yunes

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    I - Partilhar o saber...

    O terreno da interdisciplinaridade, ainda que seja, em teoria, co-nhecido por muitos, encontra-se em tmida explorao, quando pensa-mos aes voltadas e desenvolvidas, simultaneamente, para/por diferentes campos disciplinares. No poderamos, mesmo com o desejo da clareza, precisar as causas plausveis das resistncias emperradoras de tais proces-sos, j que, sob o ponto de vista da teoria e da pesquisa publicadas nos ltimos vinte anos, pelo menos, o trabalho interdisciplinar aponta para um superdimensionamento dos ganhos relacionados, em especial, educao e ao ensino.

    A quem interessa que toda a mquina, usando um termo foucaultia-no, funcione enferrujada, assunto para tambm pensarmos, mas no a tnica deste livro. Ele, ao contrrio, j venceu a ferrugem, empreende um esforo no sentido de busca pelo dilogo entre os campos do saber, neste caso, o das cincias sociais, mais fortemente representado pela Histria, e o da Teoria da Literatura, representado, com mais nfase, pelas ideias do campo da formao de leitores, sem, no entanto, prescindir de outras ncoras como as da fi losofi a, especialmente a desconstrutivista, relendo Marx nesta perspectiva. Todo o dilogo, na verdade, no prescinde de tericos necessrios s discusses que se apresentam conforme o leitor poder constatar. Ao invs de afunilar, a conversa pretende mais ampliar os enfoques.

    Indo alm, desejamos no instaurar discusses sobre a validade dos dilogos, visto que sua validade est, para ns, instaurada, mas pontuar os eixos de encontro do pensamento norteadores de nossa viso sobre o campo interdisciplinar, procurando, com isso, alcanar o terreno da cultu-ra mais prximo de um sujeito de carne e osso. Tal esforo implica fazer um percurso de discusses que partam de um campo in abstracto com

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    o objetivo de alcanar sujeitos e contextos reais, a fi m de a pesquisa aca-dmica, desprovida do rano que a torna estril, cumprir sua verdadeira funo e contribuir de forma efetiva para o desenvolvimento e para a qualidade da educao em nosso pas.

    Antes de prosseguirmos, porm, preciso explicar que esta conver-sa no foi pensada para uma posterior publicao como a presente, todavia, depois de escritos, cada um em seu tempo e espao, os textos revelaram fecundidade para o dilogo, tamanha a gama de confl uncias apresentada. Assim, mesmo com trajetrias iniciais particulares, nossos estudos, nes-te momento, buscam lanar outras luzes sobre o campo interdisciplinar e permitir as conversas, como percebemos, impulsionadas pelo objeto de estudo: o contexto de muitas vozes numa cidade do Mato Grosso do Sul.

    Tratemos primeiro da Histria.A escrita da histria das primeiras dcadas do sculo XX construiu

    um conjunto de argumentos contra a histria historicizante do sculo XIX, procurando colocar abaixo os postulados de uma histria narrativa/poltica/acontecimento.

    A crtica defendida pelos fundadores da Revista dos Annales era histria poltica elaborada por Lavisse, Langlois, Seignobos herdeiros da histria metdica alem , de Savigni, Lieburh e Ranke, como uma escrita que dava nfase ao acontecimento e que no possibilitava, em funo das suas preocupaes de mtodo, serem alcanadas as bases mais profundas da explicao histrica centrada nas esferas econmica, social e mental1.

    noo comum entre os historiadores que a histria historicizan-te do sculo XIX estava sustentada em uma narrativa que privilegiava a biografi a dos grandes estadistas, a histria poltica e militar, a histria do Estado, procurando construir uma histria linear, evolutiva, factual, no-

    1 A esse respeito ver as obras A escola dos Annales 1292-1989 (1991), de Peter Burke, e A apologia da histria ou o ofcio de historiador (2001), de Marc Bloch.

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    -confl itiva e, acima de tudo, uma histria que servisse como modelo de civismo uma histria-nao.

    Esta escrita da histria, denominada histria narrativa, por ser ba-seada nos princpios expostos, serviu-se dos postulados de uma histria/cincia construda no sculo XIX, tendo como princpio desenvolver uma escrita da histria que eliminava qualquer tipo de interveno subjetivista, sustentando-se na preocupao da neutralidade, da objetividade, da anlise crtica dos documentos, na perspectiva de que os documentos falam por si e de que o passado deve ser visto pelo passado2. A histria narrativa da escola metdica do sculo XIX desenvolvia sua escrita a partir de uma busca da origem, de forma cronolgica, privilegiando os grandes aconte-cimentos, a qual construsse um sentido histrico pautado nas ideias de progresso, de civilizao, de evoluo.

    Contudo, com o avano das outras cincias sociais, como a socio-logia, a psicologia, a economia, a antropologia e a lingustica, no fi nal do sculo XIX e no incio do seguinte, a histria narrativa de Ernest Lavisse, de Gabriel Monod, centrada nos acontecimentos polticos, no respondia mais s questes levantadas pelas disciplinas vizinhas Histria em rela-o compreenso do ser humano no tempo. Alm do mais, a histria efetiva, com confl itos de ordem econmica, racial e blica apresentava as-pectos que a histria narrativa da escola metdica no conseguia absorver em suas argumentaes.

    Este conjunto de fatores levou jovens historiadores da primeira me-tade do sculo XX a repensarem a escrita da histria a partir de aspectos a que at ento a histria metdica no tinha colocado luz.

    Historiadores como Marc Bloch e Lucien Febvre, entre outros, co-mearam a escrever uma histria mais preocupada com as anlises das

    2 Jos Carlos dos Reis explora a questo da escrita da histria metdica na obra Histria entre a fi losofi a e a cincia (1999), bem como na obra Histria e teoria (2003).

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    estruturas sociais, bem moda da sociologia de mile Durkheim, com seu fato social total; da sociologia de Maurice Halbwachs, e sua memria coletiva; entre outros pensadores decisivos para a reescrita da histria, no incio do sculo XX, como Vidal de La Blache, no campo da geografi a, permitindo se passar de uma histria narrativa para uma histria compa-rativa. Esta, mais lenta, mais densa, redefi ne o olhar do historiador sobre vrios aspectos da histria tradicional.

    Um dos aspectos discutidos pelos historiadores do incio do scu-lo XX diz respeito questo da neutralidade do trabalho histrico as-pecto que no exclusividade do conhecimento histrico: a antropologia igualmente se interroga sobre seu futuro, seus postulados e seu campo de pesquisa3. Para os historiadores dos Annales, seu trabalho acadmico no neutro no sentido do conceito de neutralidade concebido pelas cincias naturais. Eles argumentavam que no h trabalho histrico neutro, pois o historiador no capaz de analisar suas fontes apenas do exterior, como se fosse um ser no-sensvel, como se fosse possvel analisar um documento do passado e no deixar as questes do presente interferirem na anlise de tal documento4.

    Juntamente a essa observao, outra questo no menos importan-te trazida tona pelos historiadores: a relao entre passado e presente. Segundo Marc Bloch, contestador agudo da escrita da histria metdica, no possvel escrever uma histria baseado apenas no passado, j que o historiador vai ao passado a partir das preocupaes do presente. A ma-neira como indagar os documentos, as preocupaes para as quais o histo-riador tentar encontrar respostas, sempre estar permeada pelo presente.

    3 A esse respeito ver a obra Aprender antropologia (1987), de Franois Laplantine, especifi -camente o captulo intitulado O campo e a abordagem antropolgicos. 4 A obra A pesquisa histrica: teoria e mtodo (2006), do historiador espanhol Julio Arstegui, uma boa referncia para se compreender a discusso da objetividade do tra-balho do historiador.

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    No h mtodo histrico neutro que anular a presena do historiador, quando ele analisar suas fontes de pesquisa. Assim, Bloch observa que a histria dever ser reescrita a cada nova gerao, sempre com novas preo-cupaes levantadas a partir do presente5.

    Duas preocupaes estavam em pauta para os historiadores do in-cio do sculo XX: reescrever a histria superando a histria historicizante do sculo XIX, sem perder de vista seu estatuto cientfi co, e construir uma escrita que valorizasse as estruturas sociais, uma histria mais lenta, com-parada, que registrasse as continuidades e as mudanas na apresentao do social.

    A superao da histria narrativa estava relacionada a fazer uma histria no-poltica, no-linear, no-evolutiva, procurando centrar suas pesquisas em outras fontes no apenas os documentos escritos ofi ciais. Esta histria econmica e social, que encontra na Revista dos Annales sua porta-voz, preocupa-se, cada vez mais intensamente, com as estruturas econmica, social e mental da sociedade, valorizando as massas, a longa durao, a problematizao, a totalizao do fato social, na tentativa de es-capar das armadilhas do acontecimento, ento considerado como a apre-enso mais tnue do real, mais superfi cial, ou, como observou Fernand Braudel, a espuma das ondas do mar.

    A partir dos anos 1950, a escrita da histria ganha uma forma mais dura, uma preocupao com as esferas mais profundas da sociedade, e a geografi a, a economia, a demografi a sero as disciplinas que auxiliaro os historiadores a realizar uma leitura geohistrica do real, ou uma histria econmica, ou uma histria demogrfi ca, em suma, a escrita da histria procura, entre os anos 1950 e 1970, aprofundar-se no ritmo mais lento da histria, a longa durao de Braudel passa a ser referncia historiografi a

    5 Sobre a questo entre passado e presente na escrita da histria, alm da obra A apologia da histria ou o ofcio de historiador (2001), de Marc Bloch, j referida neste texto, h o excelente trabalho Histria e memria, de Jacques Le Goff.

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    mundial, com algumas excees, e a questo central da narrativa histrica sero as estruturas sociais.

    A escrita da histria passou a ser considerada como uma histria--estrutural a histria se preocupar com a demografi a, com a economia e a metodologia vai ao encontro da quantifi cao e da estatstica, na ten-tativa de produzir uma escrita da histria que revelasse as causas da ao humana. As profundas e verdadeiras aes humanas seriam reveladas pelas instituies sociais nos sistemas econmicos e no meio-ambiente a partir de uma histria de longa durao.

    Nesse perodo, Fernand Braudel assume a direo da Revista dos An-nales no fi nal dos anos 1940 e torna-se um dos historiadores mais lido e respeitado no mundo ocidental, colocando duas preocupaes para o ofcio de historiador: a histria total e a histria global.

    Assim, nota-se que a escrita da histria se preocupar com a glo-balidade dos fenmenos humanos para a necessidade de perceber em um espao e em um tempo a totalidade do social. Aos olhos de Braudel, a histria deveria ser capaz de alcanar a totalidade da ao humana com o auxlio das outras cincias sociais6. Para tanto, Braudel procura eliminar as fronteiras entre a histria e as outras cincias sociais. A histria brau-deliana defende uma concepo de Histria que se apresenta como um magma, como se tudo infl usse sobre tudo e reciprocamente.

    A possibilidade de trabalhar com a histria total de Braudel se cen-tra na perspectiva da longa durao, que alcana as estruturas mais lentas do social, as mais difceis de sofrerem mudanas.

    Na segunda gerao da Revista dos Annales, alm das preocupaes com a longa durao, com a totalidade dos fatos sociais, com a perspectiva de uma histria global, outros mtodos da escrita da histria ganharam

    6 Sobre a questo da longa durao, da interdisciplinaridade e da histria global, ver a obra Escrita sobre a histria (2007), de Fernand Braudel.

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    visibilidade. Labrousse e Chaunu so dois historiadores franceses que vo apresentar a histria quantitativa com uma metodologia baseada na estats-tica. Nesse perodo, a escrita da histria volta-se para a histria baseada em grfi cos, quadros, dados estatsticos, apresentados em sries sob a histria da longa durao.

    A escrita da histria estrutural/ quantitativista/ serial ser um mo-delo seguido por muitos historiadores, tanto na Frana quanto em outras regies do mundo, como a Amrica Latina.

    Contudo, alguns historiadores franceses iniciaram uma contra--ofensiva escrita da histria estrutural, levantando a impossibilidade de se fazer uma histria total. Alm do mais, Braudel deixa a direo da Re-vista dos Annales em 1969 e, logo em seguida, a direo da VI Seo da cole des hautes tudes.

    Os novos historiadores como Jacques Le Goff, Jacques Revel, Pierre Nora, George Duby, Philippe Aris, Le Roy Ladurie e Roger Char-tier7, junto com cientistas sociais como Michel de Certeau e Pierre Bour-dier e com fi lsofos como Michel Foucault, reiniciam um dilogo mais acentuado com a antropologia e com a lingustica e interrogam os postu-lados dominantes da escrita da histria dos anos 1950 a 1970.

    Segundo Peter Burke, usando uma expresso consagrada por Michel Vovelle e Maurice Aguilhon, esse o perodo em que a Revista dos Annales vai do poro ao sto, ou seja, a escrita da histria, a partir do fi nal dos anos 1970, comea a valorizar a cultura como objeto de anlise numa perspectiva antropolgica8. Assim, a cultura no ser mais interpre-tada do ponto de vista tradicional, restrito, mas do ponto de vista amplo, permitindo uma abertura escrita da histria nunca antes alcanada.

    7 Esses pensadores ocupavam os cargos de direo da Revista dos Annales, da VI Seo, alm de um espao cada vez maior na mdia. 8 Ver sobre o assunto a obra O que histria cultural? (2005), de Peter Burke, bem como a obra Para uma histria cultural (1989), organizada por Riuox e Sirineli.

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    Tal abertura trouxe questes epistemolgicas caras escrita da his-tria, principalmente em relao ao tipo de narrativa que o historiador estava produzindo.

    Para alguns historiadores no franceses, como Hayden White e Dominick La Capra, a histria no poderia mais aferir o cunho de cienti-fi cidade, pois estava revelado o carter romanesco de sua escrita a partir de estudos da virada lingustica. Para White, a histria era um enredo construdo pelo historiador, to fi ccional quanto as obras literrias, e o que difere um trabalho do outro o fato de a escrita da histria ofcio de historiador buscar a verdade, o real, e ser sustentada em testemunhos, documentos, vestgios; porm, isso no traz a segurana de uma escrita cientfi ca9.

    Entretanto, passada a euforia da obra Meta-histria, de Hayden Whi-te, e todo o barulho por ela provocado, a escrita da histria descartou pelo menos por boa parte de historiadores comprometidos seriamente com a disciplina de Histria como Julio Arstegui e Ciro Flamarion, entre outros a possibilidade de ser uma escrita fi ccional, elucidando alguns pontos sobre a fronteira da escrita da histria e apresentando argumentos substanciais a respeito das preocupaes que o historiador deve ter ao desenvolver seu ofcio. At um aliengena10, como se autodefi ne Luis Costa Lima, faz srias restries escrita da histria, maneira de Hayden White, e observa que a narrativa histrica se diferencia da narrativa fi ccio-nal por diversos fatores; dentre eles, o que se destaca o fato de esse tipo de escrita estar relacionado a vrios aspectos da epistemologia cientfi ca, como a preocupao com a tica, como a busca do real, como a veracidade dos fatos.

    9 Ver a esse respeito a obra Histria. Fico. Literatura (2006), de Luis Costa Lima.10 com tal expresso que Luiz Costa Lima se refere a si mesmo quando escreve sobre a narrativa histrica em sua obra referida.

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    Porm, Francois Hartog11 que nos convida a pensar as preocupa-es da escrita da histria nesse fi nal de sculo com argumentaes sli-das. Hartog, baseando-se no fi lsofo Paul Ricouer, lembra que, para dis-cutir a narrativa histrica, devemos, primeiramente, conceituar narrativa, para, posteriormente, procurar defi nir tipos de narrativas. Como exemplo, o historiador observa a escrita da histria no sculo XIX e chama a aten-o para a histria rankeana como uma histria no singular, uma histria conhecimento de si mesma, e lembra, tambm, que a histria social dos Annales, antes de criticar a noo de narrativa daquela, critica a noo de acontecimento. Logo, o que os Annales fi zeram, na viso do Hartog, foi criticar um tipo de narrativa histrica dominante nos meios acadmicos no fi nal do sculo XIX e na primeira metade do sculo XX, qual seja: aquela narrativa histrica que, a partir da acumulao e da organizao dos fatos levantados pelo historiador nos arquivos, seria capaz de oferecer as leis da Histria, para observar, em seguida, que a obra O Mediterrneo, de Fernand Braudel, no escapou da narrativa, porm fi cou demonstrada, com este trabalho, a existncia de outro tipo de narrativa que a conjuga em trs temporalidades: a curta durao do acontecimento, a longa durao conjuntural e a longussima durao do meio ambiente. Contudo, observa Hartog que esta obra prejudica a noo de acontecimento ao transform--lo em algo limitado a uma viso superfi cial de histria e questiona coloc--lo condio de superfi cial no signifi car faz-lo desaparecer, bem como superar a narrativa. O que aconteceu com a publicao de O Mediterrneo e com o surgimento da histria social, seja ela annalista ou marxista, foi o aparecimento da narrativa histrica de formas diversas.

    Francois Hartog faz essas e outras observaes para concluir que a narrativa histrica, principalmente a partir dos anos 1950, abandona a no-

    11 Hartog apresenta o texto A arte da narrativa histrica, que faz parte da obra Passados recompostos (1998), organizada por Jean Boutier e Dominique Julia.

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    o de histria acontecimento, baseada em Ranke, e interroga-se acerca do que a narrativa para defender a ideia de a histria no poder ser reduzida a um texto, argumentando: para que surja a questo da narrativa, basta o historiador acabar por se fazer esta simples pergunta soprada por Michel de Certeau: o que estou fazendo quando fao histria?12.

    Acreditamos ser essa indagao a ponte que nos leva a pensar em reafi anar a histria cultural. Vejamos por qu.

    Em primeiro lugar, porque, se a discusso acerca da narrativa his-trica foi latente durante boa parte do sculo XX, o campo da histria cultural no se esquivou de um exame minucioso, ora levantando os prs de uma narrativa acontecimento, ora levantando as fraquezas epistemol-gicas desta, para colocar a possibilidade de que a narrativa acontecimento retornou histria com outro vis, preocupando-se com o sujeito comum o sujeito ordinrio de Michel de Certeau um bom exemplo disso , na compreenso do sentido de seu mundo, sua vida, sua experincia. Tal assertiva vai ao encontro do pensamento de Burke, para quem

    /.../ o atual interesse histrico pela narrativa , em parte, um in-teresse pelas prticas narrativas caractersticas de uma cultura em particular. As histrias que as pessoas naquela cultura contam a si mesmas sobre si mesmas /.../ Tais narrativas culturais, como foram chamadas, oferecem pistas importantes para o mundo em que foram contadas.13

    Assim, advogamos a ideia de que a narrativa da histria cultural pode contribuir para aproximar a histria cincia do sujeito de carne e osso, que o seu campo de investigao.

    Em segundo, h a perspectiva de que a histria cultural cultural e social ou, como diz Burke, hbrida, e, em nossa modesta opinio, este

    12 HARTOG, Francois. A arte da narrativa histrica. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Domi-nique (Org.). Passados recompostos, 1998, p. 201.13 BURKE, Peter. O que histria cultural?, 2005, p. 158.

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    Partilhar o saber: formar o leitor

    um ponto de vista importante para elucidar de que histria cultural se est falando.

    A histria, que ora apresenta seus postulados, demonstra no preten-der realizar um trabalho baseado em objetos especfi cos de um estudo seto-rial sem se preocupar com a perspectiva mais ampla do seu sujeito estudado. Antes de falar de Literatura, de Histria, fala-se em experincias vividas por homens, mulheres, jovens, velhos, velhas e crianas, personagens de sangue, que registram, em suas memrias, nas suas prticas sociais, nos seus cotidia-nos, nas suas lembranas, as marcas de seu tempo, as razes de sua formao.

    Logo, desenvolver um estudo cujos enunciados no tenham susten-tao em seus contextos ou elaborar uma pesquisa que reduza a capacida-de de anlise de questes levantadas, a priori, do exterior correr o risco de se deixar levar pela batalha, por vezes mope, de paradigmas historiogrfi -cos pouco iniciados no exerccio da crtica interna.

    Neste sentido, Antoine Prost autor de um argumento que se revela til quando desenvolvemos pesquisas no campo da cultura, pois, para ele

    /.../ A histria cultural j no quer hoje ser uma histria entre ou-tras, uma das mercadorias com que se guarneceria uma das gavetas da clebre cmoda de Lucien Febvre: em cima direita, a poltica interna, esquerda a externa. Ela pretende uma explicao mais global. Na verdade, aspira substituir a histria total de ontem. Bela ambio, que supe outras...14

    Se assim , sigamos com um breve momento de fi losofi a.Outra aproximao interessante, como aporte aos estudos aqui tra-

    tados, encontra-se no campo da fi losofi a desconstrutivista, na qual esto inseridos os nomes de Foucault, Deleuze, Guatarri, Marcuse e Derrida, sustentando a ideia comum acerca da tenso que permeia a sociedade

    14 PROST, Antoine. Social e cultural indissociavelmente. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Francois (Org.). Para uma histria cultural, 1989, p. 123.

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    na qual vivemos hoje, embora num terreno demasiadamente abstrato em relao aos sujeitos presentes no estudo. Nesse sentido, a herana de tal pensamento nos interessa justamente atrelada ideia de foras em tenso da contemporaneidade, as quais nos obrigam, quando buscamos coern-cia em nossas aes, a admitir que o lugar do intelectual (professor ou pesquisador) o lugar do desconforto, do movimento constante, do olhar voltado para diferentes epistemes. E ponto de aproximao ainda mais produtivo o pensamento de Jacques Derrida, pois, atravs dele, entramos num terreno nebuloso, em que no h o passado, no h o futuro, ou me-lhor, h os dois, mas, antes, h o presente em forma espectral, o presente fronteirio, de onde no possvel vislumbrar os tempos idos, nem os vin-douros, sem a conjurao dos espectros que rondam o hoje. Entretanto, para conjurar os fantasmas do presente, preciso, ou at inevitvel, recla-mar heranas, retornar ao passado, levantar da memria os escombros e escavar para encontrar e determinar o que nos pertence.

    O pensamento ora exposto est ancorado no texto Espectros de Marx, que analisa o problema da herana, do legado transmitido por este pensador aos seus herdeiros intelectuais do fi nal do sculo XX ou, ainda, como esses herdeiros lidam com tal herana. A ideia do espectro para ava-liar a herana do pensamento intelectual mostra-se frtil, porque, a partir dela, podemos vislumbrar os avanos e as limitaes das apropriaes do pensamento fi losfi co que foram se comunicando, reformulando-se e des-dobrando-se em novos pensamentos. O problema levantado por Derrida com relao herana intelectual est calcado em um ponto fundamental: decretar a morte absoluta do marxismo signifi ca negar a existncia de uma ordem poltica e econmica atravs da qual uma hegemonia tambm se sustenta. Eis a crtica aos herdeiros desconstrutivistas.

    Desse modo, o espectro ou fantasma pode ser entendido, ento, como algo fantasmtico, originado no passado, mas est (i) materializado no presente, como herana de um sujeito que necessita lidar com ele para

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    permitir o futuro acontecer. Havemos de atentar aos espectros, baseados no fato de que as heranas podero ser positivas ou negativas, segundo o julgamento de quem as herda.

    Entretanto, a ideia de conjurao de fantasmas , para ns, mais in-teressante medida que podemos desloc-la da anlise de um pensamento fi losfi co para nos reportarmos ainda a outro universo, no somente o do herdeiro intelectual da cultura fi losfi ca, mas tambm o daquele oriundo de outra cultura que se relaciona memria de gentes e de lugares, porm de onde possvel ver despontar um sujeito de carne e osso. Aqui, ns mesmos podemos sentir a presena de alguns espectros, devendo enfatizar que no so de carne e osso: primeiro o do prprio Marx, que contextu-alizou o sujeito em um campo histrico, portanto, oriundo de um estar no mundo, numa coletividade; o de Niestzsche, que descortinou a culpa engendrada pelo cristianismo no ocidente; o de Freud, que abriu as portas para o universo obscuro do inconsciente; e o de Foucault, que, contra-riando abertamente as leituras essencialistas da teoria marxista, mostrou as formas difusas do poder. Somos herdeiros desta horda, porque vivemos a contemporaneidade, e nossas refl exes mostram-se potentes, inclusive como autorefl exes.

    Enfi m, assombrados por fantasmas de fi guras paternas (sim, por-que s os fi lhos herdam) que habitam e rondam todas as instncias da vida na terra e, consequentemente, plasmam-se aos modos de pensar e de viver, infl uenciando, assim, os herdeiros de uma cultura, vemos (a ideia) o espectro de Derrida como possibilidade fecunda para analisar as heranas transmitidas com relao escola e pela escola, enquanto instituio sis-tematizadora da cultura, e a conjurao desses fantasmas pelos herdeiros da qual fazem parte.

    Passemos pela etnografi a e pela antropologia.Por todo o dito at aqui, procuramos avanar mais, perceben-

    do como relevante trazer para este estudo o pensamento de Clifford

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    Geertz15, pois seus conceitos elaborados no campo da antropologia tm sido constantemente aproveitados em pesquisas mais atuais que tentam dar conta de abrir diferentes possibilidades de entendimento acerca das questes culturais.

    Segundo Geertz, o conceito de cultura, como tantos outros, encon-trou muitas diferentes abordagens, e, do mesmo modo que outros, medi-da que as teorias iam surgindo parecia ser possvel acreditar na descoberta de algo capaz de resolver os problemas que a prtica impunha16. Mas, como em todas as teorias, o que se v o seu desgaste, restando-nos aproveitar os acrscimos e descartar o insignifi cante para buscarmos novas abordagens.

    Assim, Geertz transcreve algumas possibilidades, na verdade onze delas, para o entendimento do conceito de cultura e tenta praticar, nes-te alargamento, um ajuste, preocupado em no cometer reducionismos. Em face disso, o autor procura substituir o conceito de E. B. Tylor, para quem a cultura concebida como o todo mais complexo17, por acredi-tar que, embora possua uma ampla fora criadora, Tylor mais confunde do que esclarece. Segundo Geertz, o conceito de cultura a ser defendido essencialmente semitico, pois, como Weber, ele acredita ser o homem um animal amarrado a teias de signifi cados tecidas por si mesmo. Ento, a cultura sero essas teias, e a sua anlise uma cincia interpretativa em busca de signifi cados.

    Logo, para entender a cultura, preciso olhar o que fazem os pra-ticantes daquela cincia. Neste caso, o que os antroplogos fazem a et-nografi a, uma descrio densa18 dos processos nos quais o homem est envolvido, produzindo signifi cados, e estes sendo produzidos por ele, ou

    15 GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas, 1989.16 Geertz remete viso exposta na obra por ele citada, Philosophy in a new key , de Susan Langer, sobre o surgimento de certas ideias que nascem num tremendo mpeto no pano-rama intelectual.17 Geertz contrape o conceito proposto por E. B. Tylor.18 Geertz toma essa noo de emprstimo de Gilbert Ryle.

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    seja, uma descrio no superfi cial das teias que envolvem o homem em sociedade.

    Explicitando um exemplo de Ryle sobre a descrio densa to-das as possibilidades de uma piscadela de olhos Geertz afi rma que, para pensar a cultura, devemos considerar que as complexidades so poss-veis, se no praticamente infi ndveis, pelo menos do ponto de vista da lgica. Desse modo, o objeto da etnografi a uma hierarquia estratifi cada de estruturas signifi cantes, amarradas umas s outras, que nossa lgica fi nita no pode abarcar em totalidade mas pode enxergar-se consciente de tal limitao e evitar assumir abordagens essencialistas, totalizadoras e polarizantes.

    Prosseguindo com Geertz, temos que a escrita da etnografi a uma tarefa que se assemelha escrita da crtica literria, pois, a partir da obser-vao das culturas, o etngrafo deve, atravs da escrita, transmitir impres-ses dos fatos observados, entretanto, nesta escrita, ele faz opes, marca seu estilo, privilegia os dados, enfi m, aproxima-se da escrita da crtica da literatura.

    Assim sendo, como o crtico, o etngrafo escolhe entre as estrutu-ras de signifi cao, que so complexas, emaranhadas, amarradas em infi -nitude.

    /.../ uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas s outras, que so simultaneamente estranhas, irregulares e inexplcitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso verdade em todos os nveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro/.../ Fazer uma etnografi a como ler (no sentido de construir uma leitura de) um manuscrito es-tranho/.../ escrito no com o sinal convencional do som, mas com exemplos transitrios de comportamento modelado.19

    19 GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas, 1989, p. 7.

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    Ento, pensar a leitura, hoje, no possvel sem o respaldo de uma teoria antropolgica que nos abra os olhos para a existncia das teias sig-nifi cativas mencionadas por Geertz amarradas aos contextos nos quais se formam os leitores: afi nal, o homem l e escreve e/ou se inscreve com um repertrio (ao mesmo tempo em que o devolve ao seu meio), e este vai se formando, no de maneira aleatria, mas contaminando/contaminado os/pelos legados (de toda espcie).

    H pelo menos dois pontos relevantes no pensamento de Geertz que, em muito, podem contribuir para este estudo. O primeiro deles est justamente atrelado s consideraes que o autor tece sobre a tarefa do et-ngrafo e aproximao com o trabalho do crtico de literatura, haja vista que, leitores de leitores que somos, vemo-nos impulsionados a caminhar considerando os modos de vida (contextos) desses leitores. O segundo permite verifi car a preocupao em produzir uma etnografi a dialogando bastante com as ideias do educador Paulo Freire na medida em que veri-fi camos como bastante necessria uma observao minuciosa e paciente dos contextos e dos sujeitos em questo. A chamada realidade do edu-cando pode vir tona atravs do olhar atento do observador em espaos diferenciados, estando isso aliado insero da ateno aos discursos dos sujeitos observados.

    Entretanto, embora parea bvia para o pesquisador a necessidade de fazer escolhas entre as estruturas de signifi cao disponveis no tecido cultural, vemos por bem mencionar que h aspectos positivos de tal des-crio para os nossos estudos; porm, h uma limitao que, s vezes, tais escolhas colocam pesquisa, quando, por exemplo, o pesquisador opta por uma viso sua unidimensionada, restrita ao seu trabalho de observa-o etnogrfi ca. Sabemos da imensa contribuio que nos do os estudos antropolgicos em diferentes reas, mas, com relao leitura, vemos des-pontar um grande problema, pois a construo de sentido para um texto no se d mediante somente a prtica de um ritual; ela se constri apoiada,

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    tambm, em processos cognitivos muito mais complexos durante a inte-rao texto-leitor.

    E, ainda, embora saibamos da importncia do contexto para a construo de um sujeito, vemos que considerar como prioridade a infl u-ncia do contexto sobre o indivduo no o mais rentvel para pensar a formao do sujeito-leitor no tempo em que vivemos. Ao considerarmos prioritariamente o contexto, voltamos a um velho paradigma do trabalho com a leitura, e, alm disso, a adoo de apenas um fator preponderante para pensar a formao do sujeito-leitor pode nos levar a praticar algum tipo de determinismo e/ou excluso com os setores de baixa renda, por exemplo.

    Pensamos que a grande contribuio da antropologia para o presen-te estudo esteja alicerada no exerccio etnogrfi co, por ser a descrio que, num primeiro momento, poder nos fornecer subsdios para conhecer o leitor. A observao dos espaos de insero dos leitores e de seus com-portamentos , sem dvida, o primeiro grande passo para pensar sua for-mao. Mas somente o primeiro, pois outros precisaro se agregar a ele.

    Indo alm, acreditamos que pensar a formao do leitor exige, por consequncia, pensar categorias fl utuantes e pensar os contextos e os su-jeitos, no de forma separada, mas, concomitantemente, em contextos--sujeitos, como partes agrupadas na mesma unidade, o que revela a impos-sibilidade de existncia de uma sem a outra. De todo modo, as teias so de fato infi nitas; no entanto, mesmo diante da exigncia de um caminho para esta pesquisa, mesmo com a tesoura do recorte, os estudos pretendem avanar para uma viso mais ampla acerca do sujeito-leitor.

    Ento, voltemos histria mas a histria cultural e s prticas da leitura.

    No mbito da formao de leitores, alcanamos, assim, a histria cultural e o pensamento do historiador Roger Chartier fortemente absor-vido pelos estudiosos brasileiros em diferentes reas, especialmente aque-

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    las relacionadas a estudos ligados cultura e leitura, a partir dos anos 80. Estes estudos importam-nos de maneira simultnea, pois, conforme per-ceptvel na crena do prprio pesquisador, os temas so intimamente re-lacionados, j que a leitura concebida por ele como uma prtica cultural.

    Refl etir sobre o pensamento de Roger Chartier implica fazer emer-gir trs categorias fundamentais que atuam imbricadas horizontalmente no campo da cultura e implica ainda tentar perceber como estas podem ser aproveitadas para o entendimento da construo de um sujeito quando este concretiza o ato de ler, sendo elas: as prticas, as representaes e as apropriaes. A primeira as prticas ns podemos entender como todo um conjunto de elementos de formas, simblicas ou no, que constituem as confi guraes sociais e conceituais prprias de um tempo ou de um espao. J a segunda as representaes podemos elaborar a partir do registro dos modos de um sujeito se situar em determinadas comunidades histrica e socialmente variveis. A terceira categoria as apropriaes ns podemos entender como as maneiras distintas pelas quais um sujeito se apossa dos usos e das diferenciaes de signifi cados, ou seja, as manei-ras de produzir ressignifi caes. importante ressaltar que, no tocante questo da apropriao, como a reconhece Chartier, ns poderamos pensar, em um primeiro instante, estar sob uma espcie de determinismo, mas precisamos estar atentos ao fato de que se trata de um processo em constante refazer-se.

    Logo, vamos perceber que a proposta do pesquisador, no que se re-fere histria cultural, no pode apresentar uma defi nio fechada, e sim o olhar sempre voltado para as prticas e para as representaes, signifi can-do uma constante observao do universo da cultura no qual tais prticas esto inseridas e, por consequncia, o que elas representam, lembrando que as categorias citadas operam em constante tenso.

    Como vemos, no possvel conceber uma defi nio de histria cultural a no ser, paradoxalmente, como uma defi nio aberta, na me-

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    dida em que ela , por si mesma, uma prtica ancorada na observao das prticas e das relaes sociais. Dessa forma, atua dinamicamente na percepo dos processos culturais, e, portanto, impulsiona o trabalho na perspectiva da amplitude sem poder provocar reducionismos, utilizando--se, para tanto, de pontos de confl uncia entre diferentes disciplinas, como a psicanlise, a antropologia, a sociologia, a lingustica, a semitica, a her-menutica, entre outras. Conforme Chartier: A histria cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identifi car o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social cons-truda, pensada, dada a ler20.

    Enfi m, a histria cultural importante para pensar a leitura, porque, da forma como Chartier a apresenta, podemos estabelecer uma ponte que nos leva compreenso de um sujeito que constri sua leitura atravs de um ato concreto, envolvido em prticas e em representaes culturais. Isso considerado, ns chegamos, ento, ao sujeito de carne e osso, e no a uma entidade terica. Assim, tambm, o texto no algo to abstrato com uma recepo passvel de ser controlada, como entendiam uns, ou, ainda, que a inteno do autor poderia ser a chave de qualquer leitura.

    A leitura, assim entendida, leva-nos a um mar em que as categorias de percepo dos atos de ler somente podem ser aplicadas em superfcies fl utuantes, as quais sofrem deslocamentos a partir das posies ocupadas pelos sujeitos que concretizam tais atos e tornam-se produtores de outros discursos.

    Pensar a leitura , pois, um empreendimento que s pode ser impul-sionado a partir do centro do local da cultura, ancorado, simultaneamente, em refl exes tericas. Isso supondo um constante dilogo entre uma e outra, porque, afi nal, conforme acredita Chartier, as inteligncias no so desencarnadas.

    20 CHARTIER, Roger. A histria cultural, 1989, p. 17.

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    Para alm de duas importantes contribuies em relao valoriza-o da fi gura do leitor nos campos da Esttica da Recepo, de Jauss; e da Fenomenologia e da Hermenutica, de Ricoeur o historiador avana para universos mais particulares em direo a prticas sociais de sujeitos encarnados. Assim,

    /.../para Rojas, os contrastes na recepo do texto que ele props ao pblico tm que ver, em primeiro lugar, com os prprios leito-res, cujos juzos contraditrios devem ser inscritos na diversidade de caracteres e dos humores (tantas y tan differentes condicio-nes) e tambm na pluralidade de aptides e expectativas/.../.21

    A leitura, compreendida deste modo, abre uma perspectiva para verifi carmos o quanto insufi cientes so as teorias que consideram o ato de ler como algo tranquilo e transparente na relao entre o texto e o leitor. Ao contrrio, o ato da leitura , forosamente, alguma coisa que se con-cretiza em meio a processos engendrados por foras tensionadas e sobre as quais o leitor tem apenas um certo controle: da a razo pela qual, muitas vezes, um texto que no possui conotao poltica, por exemplo, tornar-se gerador de alteraes nas posies do leitor numa determinada realidade social. Ento,

    Considerar a leitura como um acto concreto requer que qualquer processo de construo de sentido, logo de interpretao, seja en-carado como estando situado no cruzamento entre, por um lado, leitores dotados de competncias especfi cas, identifi cados pelas suas posies e disposies, caracterizados pela sua prtica de ler, e, por outro lado, textos cujo signifi cado se encontra sempre de-pendente dos dispositivos discursivos e formais/.../.22

    Vislumbrando, ento, o sujeito-leitor envolvido nas suas prticas de leitura, possvel entender que, numa dada situao, um panfl eto con-

    21 CHARTIER, Roger. A histria cultural, 1989, p. 122. 22 Ibid., p. 17.

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    tra (ou a favor de) certo regime poltico possa causar efeito contrrio em determinado leitor e lev-lo a rasgar o impresso em vez de difundir o contedo da mensagem veiculada. Para que texto e leitor possam fechar uma ideia em comum, necessria a disposio de quem l. O fato : pre-cisamos encarar o ato de ler como estando dotado de uma mobilidade que no aceita teorias reducionistas nem fundamentalistas.

    No entanto, para Roger Chartier, no possvel ler as prticas cul-turais da realidade apoiando-nos na perspectiva de dois plos, pois eles, na verdade, operam nos entrecruzamentos, e nossa viso dicotomizada s existe num mundo criado pela herana intelectual.

    A relao desse modo instaurada entre a cultura da elite e aquilo que no o diz respeito tanto s formas quanto aos contedos, tanto aos cdigos de expresso quanto aos sistemas de representaes logo, ao conjunto do campo reconhecido histria intelectual. Tais cruzamen-tos no devem ser entendidos como relaes de exterioridade entre dois conjuntos estabelecidos de antemo e sobrepostos (um letrado; o outro popular), mas como produtores de ligas culturais, ou intelectuais, cujos elementos se encontram incorporados uns nos outros de forma to slida como nas ligas metlicas23.

    Somos todos, ento, parte dos elementos incorporados uns aos outros, citados por Chartier. H, portanto, que se fazer um esforo para redimensionar nossa leitura de mundo, do texto e do contexto, trazendo elementos historicizveis, oriundos tanto das prticas da oralidade, quanto das fontes escritas, ou seja, cabem aqui mais leitores e escritores da histria do que aqueles que foram catalogados em compndios do cnone.

    Cabe, por fi m, mencionar, que fi zemos, neste texto inicial, um per-curso terico, partindo do discurso da tradio, para trazemos, ao dilogo, tericos de linhas mais contemporneas, os quais no praticam a lingua-

    23 CHARTIER, Roger. A histria cultural, 1989, p. 56-57.

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    gem do obscurantismo, com relao ao papel de sujeitos de carne e osso e de sua participao na formao das identidades histricas, individuais e coletivas. E, se assim o fi zemos, porque, tambm, ns pretendemos, atravs do emaranhado tecido cultural, que repercute nas histrias de lei-tura dos sujeitos, mostrar, ou permitir que o leitor encontre, ele mesmo, os imbricamentos entre estes campos, conforme se ver no estender do livro.

    Assim acreditando e dialogando com os pensamentos expostos at aqui, alcanamos, precisamente neste ponto, o local da cultura e dos su-jeitos que engendraram nossos estudos: oeste do Brasil, estado do Mato Grosso do Sul, cidade de Ftima do Sul.

    Nilton Ponciano e Valria Pereira

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    II - Narrativas primeiras

    ngela de Castro Gomes chama a ateno, em seu texto Histria e Historiadores24, para o fato de que todo trabalho tem sua histria. Este no diferente. Ele nasceu das discusses sobre o papel da cultura no pro-cesso de constituio da sociedade contempornea com colegas pesquisa-doras da rea de Literatura, em especial a professora Valria Pereira, autora com quem dialogo no presente livro. Nasceu tambm da leitura da tese de doutoramento desta mesma professora sobre a formao do leitor numa perspectiva cultural, alm da prpria ligao que tenho com o tema pesqui-sado: as observaes de pessoa simples que, estudando, procurou compre-ender, vertical e cientifi camente, a sociedade que a envolve, que a formou, e que a constitui ao mesmo tempo em que lhe devolve tais aspectos.

    O sul-mato-grossense adepto de contar histrias. Histrias de Silvino Jacques e Laquicho25, personagens que fazem parte do imaginrio da regio, Marechal Rondon, Getlio Vargas, Jnio Quadros, entre ou-tras personalidades presentes no imaginrio das pessoas comuns, assim como as suas prprias histrias de vida. No contar e recontar dos cau-sos, das lendas, das histrias polticas e dos confl itos, sob uma rvore frondosa, com sua cuia de terer, nas longas tardes de vero, encontra--se presente, tambm, a vivncia dessa gente, suas difi culdades de gente simples, suas dores, em suma, seu processo de formao enquanto sujeito historicamente datado.

    Nesse lembrar e relembrar da memria, homens e mulheres sul--mato-grossenses concebem sua histria, e percebe-se que os autores/

    24 GOMES, A.C. Histria e historiadores, 1996. 25 BIASOTTO, Wilson Valentin. At aqui o Laquicho vai bem: os causos de Liberato Leite de Farias. Campo Grande: UFMS, 1988.

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    narradores no delimitam uma fronteira entre a histria dos grandes homens e a histria da gente simples. Nota-se, nas narrativas, uma linearidade textual que abarca, em um nico processo, a ao do estadista, do bandoleiro ou do moribundo ao dos seres humanos que vivem de forma comum, que agem socialmente de forma comum, ou, como diria Drummond, o poeta, de homens e mulheres que levam uma vida besta.

    Dois aspectos so dignos de nota nas histrias: primeiro, a necessi-dade de demonstrar que a Histria construda, tambm, no dia a dia dos homens e das mulheres que caminham na multido, que trabalham, que so-nham, que votam, que se frustram; segundo, que h, nessas narrativas, um fl uxo contnuo, sem recortes, que ilustra sua histria a partir da experincia de vida do sujeito-narrador, interpretando o passado como algo do qual este sujeito o centro, registrando as marcas de suas experincias de vida.

    Eis aqui uma questo para os historiadores procura de analisar a cultura como um fator importante nas relaes das estruturas sociais, uma vez que a disciplina de Histria, como qualquer rea de conhecimento a investigar a ao social do ser humano, opera por descontinuidade, ela-borando um processo de seleo dos acontecimentos, das conjunturas, das estruturas, dos modos de viver, na tentativa de explicar como era a vida dos seres humanos no passado. Se, como observa Verena Alberti26, a narrao dos sujeitos que fazem histria por meio de sua ao capaz de restabelecer um contnuo do passado, porque, em tal narrativa, o entrevistado experimenta a possibilidade de reviver o passado dando um sentido ao presente. Entretanto, tambm registra Alberti no haver, na Histria, a possibilidade de restabelecer o vivido. possvel aos historia-dores elaborar uma reconstruo da Histria a partir de fragmentos do passado contidos nas narrativas dos sujeitos ordenada pelo discurso do entrevistado de modo a possibilitar um sentido.

    26 ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em histria oral, 2004.

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    Assim sendo, pode-se pensar a Histria como uma rede de inte-raes cujo centro est em toda parte por no haver nela um centro, um motor, como sugere Agnes Heller27. Ento, o centro da Histria est no lugar onde o historiador o localizar, j que ele trabalha com o todo, ao contrrio, por exemplo, das cincias fsicas, que trabalham com alguns aspectos de determinado fenmeno necessrios para explic-lo28.

    Observo, ainda, que o trabalho histrico prende-se a todo o pro-cesso de construo de um fenmeno na perspectiva de reconstru-lo, le-vando em considerao sua prtica no seccionar os acontecimentos, mas conceitu-los a partir de uma lgica conjuntural.

    Contudo, acredito no ser possvel explicar uma mobilidade social como um fenmeno geral que impe sua lgica aos comportamentos dos indivduos ou grupos de todas as esferas sociais e, a partir desta lgica, constituir historicamente a sociedade em estudo. Alm do mais, a forma-o de uma classe, de um grupo social, de uma coletividade, s pode ser compreendida se forem levadas em considerao suas trajetrias e suas experincias individuais e sociais29.

    Com base nessas consideraes, o tpico seguinte pretende discutir a hiptese de que a cidade de Ftima do Sul se desenvolveu na integra-o entre Igreja e Estado ocorrida durante o primeiro governo Vargas. O papel da Igreja Catlica parece ter sido preponderante no processo de formao da cidade, visto que, como se v nos depoimentos dos antigos colonos ou dos sujeitos do crculo de leitura, ela participou na formao do imaginrio social de Ftima do Sul.

    27 HELLER, A. O cotidiano e a histria, 2004. 28 VEYNE, P. Como se escreve a histria, 1995.29 REVEL, J. (Org.). Jogos de escalas: a experincia da microanlise, 1998.

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    2.1 Ftima do Sul hoje: uma leitura em nmeros

    Ftima do Sul, tambm conhecida como cidade favo de mel, situa-se na regio Centro-Oeste do pas, estado de Mato Grosso do Sul. Convm explicar, antes de prosseguir pelos nmeros, que a cidade assim conhecida, por ser originria do projeto de reforma agrria arqui-tetado pelo ento Presidente da Repblica, Getulio Dornelles Vargas, no ano de 1943. Neste perodo foi criada na regio do sul de Mato Grosso a Colnia Agrcola Nacional de Dourados (CAND), como se ver adiante, com uma rea de 360.000 hectares a ser distribuda para a populao brasileira carente. Partindo do planejamento topogrfi co dos administradores e continuando to somente com a experincia do colo-no candidato a proprietrio, a rea destinada CAND fi cou recortada em lotes de 30 hectares, transformando-se em um desenho geomtrico que lembrava uma colmia. Deste desenho surgiu o smbolo da cidade favo de mel.

    Esclarecida a origem da expresso, pode-se acrescentar que a ci-dade possui um ndice populacional, segundo o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica (IBGE), de 19.024 habitantes, sen-do 16.956 na zona urbana e 2.068 na zona rural. , atualmente, um dos menores municpios do estado com extenso territorial em uma rea de 315,24 km, representando 0,09% do estado30.

    O municpio faz parte da microrregio Campos de Vacaria e Mata de Dourados, regio sul do estado de Mato Grosso do Sul, situado a 352 m acima do nvel do mar latitude 22-22-75 S e longitude 54-30-50 W. Seus limites e confrontaes so os seguintes: Norte, municpio

    30 Aqui cabe uma observao importante: Ftima do Sul, at a dcada de 1980, tinha uma extenso territorial maior, ou seja, uma rea de 462.000 quilmetros quadrados e compre-endia os atuais municpios de Ftima do Sul e Vicentina; sua populao total era de 33.313 habitantes (SEPLAN, 1984).

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    de Dourados; Sul, municpio de Vicentina; Leste, municpios de Glria de Dourados e Deodpolis; Oeste, municpios de Caarap e Dourados. Seu relevo dividido em duas unidades: a Oeste, as sub-bacias meridio-nais com ondulaes e topos tabulares; e, nas demais reas, o Planalto de Dourados. Sua vegetao composta de culturas cclicas e permanentes, cerrados e campos limpos para pastagem. O clima tropical. E a bacia hidrogrfi ca qual pertence o municpio a Bacia Hidrogrfi ca do Paran. O principal curso dgua de Ftima do Sul o rio Dourados com alguns crregos como o Picada, o crrego do Engano, gua Limpa, So Fran-cisco, crrego das Moas e o Tapei. O municpio possui atualmente um distrito (Culturama) e um povoado (Novo Planalto).

    Ainda segundo o IBGE, a lavoura permanente de maior expresso em Ftima do Sul a uva, com dezoito toneladas de quantidade produ-zida. J a lavoura temporria composta dos seguintes produtos: milho, com 1.620 toneladas de quantidade produzida; soja, com 5.400 toneladas produzidas; arroz, com 3.300 toneladas; mandioca, com 5.400 toneladas; feijo, com 135 toneladas; tomate, com 120 toneladas e cana de acar, com 29.970 toneladas de quantidade produzidas. A pecuria composta de 1.204.692 cabeas, divididas entre bovinos, sunos, equinos, muares, ovinos, aves (galos, galinhas, frangos, frangas e pintos) e caprinos.

    Em relao educao bsica, compreendendo o ensino funda-mental e o ensino mdio, Ftima do Sul possui um total de oito escolas do ensino fundamental, sendo quatro escolas pblicas estaduais, duas escolas pblicas municipais e duas escolas privadas. As escolas do ensino mdio so cinco, quatro pblicas estaduais e uma privada. Essas escolas perten-cem zona urbana. H, ainda, no ensino superior, uma faculdade privada.

    Quanto ao aspecto religioso, ainda embasado pelo IBGE, observa--se que, dos 19.024 habitantes residentes em Ftima do Sul, a sua grande maioria so catlicos; em seguida, esto os evanglicos, as religies orien-tais e outras religies no especifi cadas. H, tambm, 917 habitantes que

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    se declararam sem religio ou que no determinaram qual a sua crena. Chama a ateno o fato de a maioria dos habitantes fatimassulenses per-tencerem religio Catlica Apostlica Romana.

    Outra constatao signifi cativa no haver praticantes da religio esprita, da umbanda/candombl e da judaica; entretanto, empiricamente, sabe-se da existncia de terreiros de candombl na periferia da cidade e de um centro esprita originrio dos anos 1950, o que sugere terem preferido os praticantes se dizer pertencentes a outras religies a assumir o espiritis-mo ou a umbanda/candombl.

    Tambm de acordo com IBGE, Ftima do Sul possui: trs insti-tuies bancrias (Caixa Econmica Federal, Banco do Brasil e Banco Bradesco) e 504 empresas atuantes. Sua receita oramentria realizada em 2008 de R$21.432.965,31.

    2.2 Narrativas: e a cidade nasce...

    Quem passava por ali via, seno dinheiro e pro-gresso, ao menos, barulho da manh noite.(Livro Tombo da Igreja Catlica de Ftima do Sul).

    A radiografi a da cidade de Ftima do Sul aqui apresentada a comisso de frente de um estudo com interesse maior em demonstrar de que modo, historicamente, homens e mulheres desta cidade contribu-ram para a formao da sociedade a partir da sua ao cotidiana.

    Disso, podemos inferir, tendo por base as observaes do antrop-logo Robert Erza Park, em seu artigo A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano que [...] a cidade o habitat natural do homem civilizado. Por esta razo, ela uma rea cultural caracteriza-da pelo prprio tipo cultural peculiar31. O pesquisador argumenta que o

    31 PARK, R. E. A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, O. G. (Org.). O fenmeno urbano, 1979, p. 27.

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    homem civilizado um campo de investigao complexo e instigante, uma vez que ele mais acessvel observao e ao estudo do que os povos no citadinos, e sua cultura e seu modo de vida so mais variados, sutis e complicados32.

    Levando em considerao tal assertiva, acredito que a anlise sobre a cidade do sculo XX se torna pertinente, pois o esteretipo de homens e de mulheres ocidentais do referido perodo se baseia em uma concepo de ser humano citadino com um modo de vida urbano.

    Assim, torna-se necessrio analisar os aspectos determinantes para a formao de uma cidade, visto que estes so peculiares, nicos, e isso desperta interesse particular por compreender o processo de formao de Ftima do Sul, a partir da articulao de dados de sua organizao scio-espacial.

    No entanto, de maneira geral, devemos pensar a categoria cidade como algo mais que um amontoado de homens, mulheres, crianas, estru-turas sociais e fsicas, ruas, casas, carros, tribunais, escolas, etc. Cidade tambm um estado de esprito, de atitude, de sentimentos, de costumes e tradies33.

    Sugerimos que cidade pode ser compreendida como um corpo fsico, construo artifi cial, porm envolvida na cultura de um conjunto de pessoas que falam a mesma lngua, tm costumes e interesses semelhantes, histria e tradio comuns. Assim, a cidade tem sua cultura, e esta permeia sua geo-grafi a, ecologia, economia, comunicao e poltica. Isso nos leva a perceber que a cidade est enraizada nos hbitos e nos costumes das pessoas que a habitam, e sua organizao fsica interage com sua organizao moral, for-mada por instituies religiosas, caritativas, escolares e polticas, entre outras.

    32 PARK, R. E. A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, O. G. (Org.). O fenmeno urbano, 1979, p. 28.33 Ibid., passim.

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    Pode ser que a primeira impresso de uma cidade seja sua estrutura fsica, mas devemos lembrar que ela a prpria histria de seus habitan-tes, como demonstra Park quando observa: a estrutura da cidade que primeiro nos impressiona por sua vastido e complexidade visveis. Mas, no obstante, essa estrutura tem suas bases na natureza humana, de que uma expresso34.

    Coaduna-se com essas refl exes outro estudioso da categoria ci-dade, Lewis Mumford. Em seus estudos, ele observa que a cidade uma unidade formada pelas condies de vida especfi cas do ser humano; en-tretanto, esta foi constituda a partir da juno em um nico espao da evoluo tecnolgica e da formao moral.

    Comenta ainda o pesquisador que apenas o aumento numrico de habitantes das aldeias no seria capaz de transform-las em cidades. Para alcanar tal mudana, foi necessrio surgir uma nova confi gurao35, uma transformao no todo que alterasse suas propriedades inerentes.

    Os antigos componentes da aldeia foram incorporados a uma nova unidade urbana, graas ao de novos fatores, foram eles re-compostos num padro mais complexo e instvel que o da aldeia e, apesar disso, de uma forma que promoveu ulteriores transformaes e desenvolvimentos36. Assim, a composio humana na unidade urbana fi cou mais complexa, incorporando aos hbitos do caador, do campons e do pastor, outros tipos primitivos, tais como o mineiro, o lenhador, o pescador. Em outra origem primitiva, acrescenta Mumford, surgiram tam-bm o barqueiro e o marinheiro, o que contribuiu ainda para o desenvolvi-mento de outros grupos como o mercador e o sacerdote, os quais criaram uma unidade superior denominada cidade.

    34 PARK, R. E. A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, O G. (Org.). O fenmeno urbano, 1979, p. 79.35 MUMFORD, L. A cidade na histria: suas origens, transformaes e perspectivas, 1991, p. 37.36 Ibid., p. 37.

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    Essa complexidade social prpria da unidade urbana expandiu a capacidade humana, uma vez que

    A cidade efetuou uma mobilizao de potencial humano, um do-mnio sobre os transportes entre lugares distantes, uma intensifi ca-o da comunicao por longas distncias no espao e no tempo, uma exploso de inventividade, a partir de um desenvolvimento em grande escala da engenharia civil, e, o que no menos impor-tante, promoveu uma nova e tremenda elevao da produtividade agrcola.37

    Mumford observa que a mudana ocasionada pela unidade urbana nos meios de sobrevivncia foi acompanhada tambm pelo inconsciente coletivo, qui precedido/da por este38. Nas cidades, os deuses fami-liares foram substitudos pelos deuses celestiais, identifi cados pelo sol, pela gua, pela lua39. O chefe local passou a exercer o poder dominante, valendo-se de atributos divinos ou quase divinos. Houve, ainda, altera-es nos hbitos e costumes, e a sabedoria dos ancios no mais repre-sentava a autoridade. Na nova unidade urbana, a audcia da juventude e a sua vocao contavam mais que as ligaes de famlias para caracterizar o novo tempo.

    Assim, para este pensador, a civilizao urbana pode ter sua ori-gem na combinao de criatividade e controle, de expresso e represso, de tenso e libertao, cuja manifestao exterior foi a cidade histrica40. E ele observa que

    /.../ a cidade pode ser descrita como uma estrutura especialmente equipada para armazenar e transmitir os bens da civilizao e su-

    37 MUMFORD, L. A cidade na histria: suas origens, transformaes e perspectivas, 1991, p. 38.38 Ibid., p. 38.39 Ibid., p. 38.40 Ibid., p. 38.

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    fi cientemente condensada para admitir a quantidade mxima de facilidades num mnimo de espao, mas tambm capaz de um alar-gamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo s necessidades mutveis e s formas mais complexas de uma sociedade crescente e de sua herana social acumulada.41

    Mumford procura mostrar a transformao proporcionada pela ci-dade ao homem no podendo ser vista como uma revoluo, uma vez que a ascenso da cidade no signifi ca necessariamente o declnio abrupto de culturas antigas. Para o autor, ocorre o contrrio: a ascenso contribuiu para juntar e para aumentar a efi ccia e o alcance de antigos elementos culturais, prprios das sociedades no citadinas; desse modo, serviu, tam-bm, para organizar, em uma rea restrita, algumas funes sociais que eram fortuitas e dispersas em sociedades aldes, ou seja, a cidade consegue manter em estado de tenso e interao todos os componentes culturais que se constituam isoladamente em sociedades no citadinas.

    No contexto maior proporcionado pela cidade, devemos pensar a tcnica, a poltica e a religio. Lembra Mumford que principalmente a religio deve ser analisada no contexto citadino por ser esta a primeira a manifestar sua condio de prioridade. O autor justifi ca sua hiptese ao analisar as projees coletivas e o imaginrio social que dominava a realidade ao comentar Monumentos e documentos sobreviventes mos-tram que essa ampliao geral do poder [religioso] foi acompanhada por imagens igualmente exorbitantes, que brotavam do inconsciente [coletivo urbano e eram transpostas nas formas eternas da arte42.

    Nesse sentido, importante ressaltar que a cidade no uma forma-o social exclusiva do modo de vida moderno e, portanto, no foi somen-te a partir do sculo XVI que ela adquiriu status de imprescindvel para a

    41 MUMFORD, L. A cidade na histria: suas origens, transformaes e perspectivas, 1991, p. 38.42 Ibid., p. 38.

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    compreenso da histria dos seres humanos. Ela se fez presente, tambm, nas sociedades anteriores, conforme chama a ateno Penalva Santos:

    As cidades no so uma categoria tpica do capitalismo. Na An-tigidade, por exemplo, existiram muitas e importantes cidades centros de controle poltico e militar cujo papel era eminente-mente poltico, a partir das quais se estabeleceram imprios, como o caso notvel do Imprio Romano. Na Idade Mdia, apesar da descentralizao poltica e econmica, muitas cidades se destaca-ram como centros de comrcio, a exemplo de Brugges, na Blgica, e de tantas outras na Europa, cujo stio geogrfi co sempre inclua um rio, quando no se localizavam na costa martima.43

    Dessa forma, v-se que chama a ateno em relao categoria ci-dade na sociedade moderna sua funo histrica, ou seja, neste perodo, sob a gide do capitalismo, o papel dessa categoria peculiar.

    Lembra Mumford que h uma distncia considervel entre as pri-meiras cidades construdas antes da era crist e as cidades da modernidade. Segundo ele, nas modernas, verifi cam-se avanos tecnolgicos voltados apenas para o desenvolvimento da cincia e da tecnologia.

    /.../ vivemos num explosivo universo de invenes mecnicas e eletrnicas, cujas partes se movem num ritmo rpido, distancian-do-se cada vez mais do seu centro humano e de quaisquer fi nali-dades humanas racionais e autnomas. Essa exploso tecnolgica produziu uma exploso semelhante na prpria cidade: a cidade [moderna] arrebentou-se e se espalhou, em rgos e organizaes complexas, por toda a paisagem.44

    Entretanto, reconhecemos existirem caractersticas distintas entre o sculo XIX e o sculo XX que explicam o surgimento das cidades. No sculo XIX, a populao era essencialmente rural, e as cidades foram sur-

    43 SANTOS, A. M. S. P. Economia, espao e sociedade no Rio de Janeiro, 2003, p. 25.44 MUMFORD, L. A cidade na histria: suas origens, transformaes e perspectivas, 1991, p. 42.

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    gindo em funo do crescimento da industrializao, a qual alimentava a dinmica da economia urbana e atendia suas necessidades internas, tpicas das cidades europeias principalmente45. E, durante aquele sculo, aquelas que no estavam integradas em tal conjuntura tinham importncia nfi ma no contexto supranacional, j que eram controladas por cidades externas, que fi cavam nas metrpoles, locus do controle poltico, econmico, reli-gioso e militar. No sculo XX, o processo de urbanizao em pases de industrializao tardia, como o Brasil, apresentou um crescimento urbano incontestvel se comparado ao nmero de habitantes residentes na zona rural at as primeiras dcadas desse sculo.

    Observando-se a tabela do IBGE, em relao urbanizao do Brasil durante o sculo passado, nota-se um deslocamento populacional substancial do campo para a cidade, ocorrido essencialmente a partir da dcada de 1960.

    Segundo as estatsticas, entre 1960 e 1996, o aumento da popula-o urbana brasileira ganhou propores irrestritas. Em 1940, de um total de 41.236.315 habitantes, apenas 12.880.182 residiam na cidade, ou seja, pouco mais de 30% residiam na zona urbana e aproximadamente 70% residiam no campo

    45 SANTOS, A. M. S. P. Economia, espao e sociedade no Rio de Janeiro, 2003, p. 25.

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    DADOS DOS CENSOS DO IBGE

    POPULAO RESIDENTE POR SITUAO DO DOMICLIO E POR SEXO 1940-1996

    TOTAL URBANA RURAL

    1940 20.614.088 20.622.473 6.164.473 6.715.709 14.449.615 13.906.518

    1950 25.885.001 26.059.396 8.971.163 9.811.728 16.913.838 16.247.668

    1960 35.055.457 15.120.390 15.120.390 16.182.644 19.935.067 18.832.356

    1970 46.331.343 25.227.825 25.227.825 26.857.159 21.103.518 19.950.535

    1980 59.123.361 39.228.040 39.228.040 41.208.369 19.895.321 18.670.976

    1991 72.485.122 53.854.256 53.854.256 57.136.734 18.630.866 17.203.619

    1996 77.442.865 59.360.442 63.360.442 17.726.476 17.726.476 16.266.856

    1996 77.442.865 59.360.442 63.360.442 17.726.476 17.726.476 16.266.856

    Nos anos 1960, o nmero de habitantes entre a zona urbana e a zona rural no pas quase se equiparou, contudo, havia ainda uma leve ten-dncia para um maior nmero de habitantes residentes no campo. Veja--se que, de um total de 70.070.457 habitantes, residiam na zona urbana 31.303.034 e 38.767.423 residiam na zona rural. Nos anos 1970, aconteceu a primeira inverso nos nmeros entre os habitantes residentes na zona urbana e os habitantes residentes na zona rural.

    De um total de 93.139.037 habitantes do pas, 52.084.984 j residiam na zona urbana ao passo que a zona rural contava com uma populao de 41.054.053 habitantes. E, segundo os dados do Censo de 1996, a inverso do nmero de habitantes residentes na zona urbana em relao zona rural, se comparado ao Censo de 1940, inquestionvel, demonstrando que, no fi nal do sculo XX, o Brasil passou a ser um pas com alta taxa de urbanizao, pois, de um total de 157.070.163 habitantes, 123.076.831 residem na zona urbana, enquanto apenas 33.993,332 residem na zona rural. Isso equivale a dizer que, no fi nal do sculo XX, 80% dos habitantes brasileiros esto nas cidades e 20% no campo.

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    Partindo desta conjuntura histrica e fi xando o olhar nos anos 1960 e 1970, perodo em que se processam algumas mudanas na ordem social brasileira, como a multiplicao de cidades de pequeno porte, oportuno observar que h um fenmeno de crescimento do nmero de cidades em regies at ento com pouca densidade populacional, tais como as regies Centro-Oeste e Norte.

    Segundo o gegrafo Milton Santos46, esse fenmeno ocorreu de-vido necessidade de incorporar economia nacional regies inexplora-das economicamente pelo capitalismo detentoras de excelentes recursos naturais, bem como devido necessidade que o Estado tinha de marcar presena no interior do territrio brasileiro. Assim, durante as dcadas de quarenta a setenta do sculo XX, no Brasil, nota-se um crescimento da ur-banizao a partir das migraes do campo para a cidade, o que contribuiu de forma considervel para o aumento do nmero de cidades de pequeno porte por todo o interior brasileiro.

    conveniente aqui uma ressalva por considerarmos que esse mo-vimento migratrio campo/cidade no deve ser pensado a partir de uma nica via migrantes do campo procurando se estabelecer nos grandes centros urbanos do centro-sul do pas, como Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte, entre outras metrpoles. Se este um movimento predo-minante em mbito nacional, h um grande nmero de cidades de peque-no porte surgindo no interior do Brasil, oriundas, sobretudo, da poltica de ocupao dos espaos vazios organizada pelo Estado Novo e deno-minada Marcha para Oeste.

    Tal constatao pode ser subsidiada pela tabela seguinte que apre-senta a criao de 14 municpios somente entre os meses de novembro e dezembro do ano 1963, em sua maioria no sul do estado de Mato Grosso, rea que, segundo Vargas, deveria ser ocupada pelos brasileiros, conforme observou a poltica de colonizao dirigida do Estado Novo.

    46 SANTOS, M. A urbanizao brasileira, 1996.

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    DADOS HISTRICOS DO INSTITUTO MEMRIA

    CRIAO DOS MUNICPIOS NO ESTADO DE MATO GROSSO

    ENTRE OS MESES DE NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 1963

    Nmero da Lei

    Data da pblicao no Dirio Ofi cal Autor Emenda

    1.940 20.11.1963 Dep. Valdon Varjo Cria o municpio de Luciara

    1.941 11.11.1963 Dep. Weimar GonalvesCria o municpio de Glria de Dourados

    1.943 27.11.1963 Dep. Valdon Varjo Cria o municpio de Nobres

    1.944 22.11.1963 Dep.Weimar Gonalves TorresCria o municpio de Navira

    1.945 22.11.1963 Deps. Agapito Boeira e Walderson CoelhoCria o municpio de Porto dos Gachos

    1.946 22.11.1963 Dep. Manoel Jos de ArrudaCria o municpio de Araguainha

    1.948 22.11.1963 Dep. Wilson Loureiro Cria o municpio de Anaurilndia

    1.949 25.11.1963 Dep. Vivaldo Oliveira e Alves DuarteCria o municpio de Ivinhema

    1.950 25.11.1963 Dep. Weimar Gonalves TorresCria o municpio de Jate

    1.951 25.11.1963 Dep. Alexandrino MarquesCria o municpio de Iguatemi

    1.967 22.11.1963 Dep. Alves Duarte Cria o municpio de Bataipor

    1.971 28.11.1963 Dep. Carlos Medeiros Cria o municpio de Caracol

    2.051 03.12.1963 Dep. Valdon Varjo Cria o municpio de General Carneiro

    2.057 13.12.1963 Dep. Weimar Gonalves TorresCria o municpio de Vila Brasil

    Fonte: Dados do Instituto Memria do Poder Legislativo do Estado de Mato Grosso, 2005.

    Segundo as estatsticas, nove municpios emancipados no fi nal de 1963 faziam parte da regio sul do estado de Mato Grosso, so eles: Navira, Anaurilndia, Glria de Dourados, Ivinhema, Jate, Iguatemi,

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    Bataipor, Caracol47 e Vila Brasil. Assim, mais de 60,0% dos municpios que conquistaram sua autonomia poltica no Mato Grosso no fi nal de 1963 esto localizados na regio sul do estado.

    Em especfi co, direcionando-se o olhar a uma das localidades, o municpio de Vila Brasil, pode-se sugerir que sua emancipao poltica ocorrida em onze de dezembro de mil novecentos e sessenta e trs foi resultado de lutas endgenas de migrantes nordestinos oriundos, principalmente, do interior do estado de So Paulo a partir do fi nal dos anos 1940.

    sabido que a extenso geogrfi ca da outrora Colnia Agrcola Na-cional de Dourados (situada entre os atuais municpios de Dourados, Fti-ma do Sul, Vicentina, Jate, Glria de Dourados, Deodpolis e Anglica), a qualidade de seu solo e a possibilidade de conquista da terra por integrantes de uma parcela da sociedade que vivia margem do sistema econmico vigente a transformaram em um atrativo para inmeras famlias vindas de diversas partes do pas. Segundo Ponciano48, os migrantes eram originrios dos estados de Alagoas, Cear, Pernambuco, Piau, Sergipe, So Paulo, Pa-ran, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e da Bahia, alm de um pequeno nmero de imigrantes estrangeiros japoneses, portugueses e paraguaios.

    O movimento desses migrantes para o interior do Brasil durante a maior parte do sculo XX, considerado por Martins como o movimento de fuga [dos pobres] das reas que os grandes proprietrios e as grandes empresas vm ocupando progressivamente49, foi marcado por muitas di-fi culdades.

    47 Caracol localiza-se na regio sudeste do antigo estado de Mato Grosso. 48 PONCIANO, N. P. Um olhar nos crimes de seduo: a mulher da famlia de Ftima do Sul (1967/1977). 2000. 166 p. Dissertao (Mestrado em Histria) UNICENTRO UNESP/ASSIS. (Especifi camente o primeiro captulo.)49 MARTINS, J. S. A vida privada nas reas de expanso da sociedade brasileira. In: NOVAIS, F. A. (Coord.). Histria da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contempornea, 1998, p. 664.

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    Acredita-se que um dos aspectos a ser apontado como fator de complicao na fi xao de tais migrantes no interior do Brasil, em espec-fi co na antiga Colnia Agrcola Nacional de Dourados, na dcada de 1950, esteve relacionado mudana macropoltica do Estado.

    O primeiro governo Vargas prometeu ajuda aos novos bandei-rantes para que eles se instalassem em regies de espaos vazios da Amaznia legal. Entretanto, conforme depoimentos de remanescentes daquele perodo, apenas os primeiros migrantes receberam apoio estatal50. Os colonos que chegaram a partir da dcada 1950 no obtiveram a base de sustentao e se viram desprovidos da assistncia do Estado no po-voamento da regio. Dulce de Oliveira, migrante remanescente daquela dcada, residindo atualmente na periferia de Ftima do Sul, evidencia a situao em seu depoimento:

    Ns chegamo aqui em 51, era mata virgem, essas estradas foi aber-ta pelo olho do colono, no foi maquinrio, foi com o olho do colono. As famlias se juntava e, ali, juntava 20 homem e arrancava uma peroba, e ia prosseguindo a estrada. Foi muito difcil a vida aqui para pessoa pobre, ns sofremo muito, ns era fraco. Vinha aqui comprava um pedao de terreno e plantava. Muitas pessoas sofreram como a gente. Um tanto dessas pessoas no moram mais aqui, uns morreram e outros mudaram (DULCE DE OLIVEIRA).

    Registre-se, tambm, o que observa o aposentado Belmiro de Oli-veira, antigo proprietrio de lote, sobre a ajuda do Estado no processo de fi xao dos migrantes na Colnia:

    Os lotes foi feito aqui, os lotes foi dado aqui [lado esquerdo do rio Dourados]. Aqui era Colnia, era Colnia Federal, que quan-do veio aqui naquela ocasio a cooperativa, que hoje a vila So

    50 O texto de Bencia Couto de Oliveira e Valdeir Justino, intitulado Projeto colonizador na regio da Grande Dourados: encontros e desencontros na malha fundiria, esclarecedor em relao ausncia do Estado no processo de fi xao dos colonos na CAND.

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    Pedro, o governo dava, quando comeou, um machado, uma foi-ce, uma enxada e fazia a casa, voc pode olhar que ainda em casa antiga pregada assim [com tbuas em transversal], pois , aquela foi dada pelo governo [...], mas ento o pessoal veio demais e o pessoal [do governo] j no fez mais. O governo no deu conta, o governo no incio ajudava... (BELMIRO DE OLIVEIRA).

    Com base nos dois depoimentos, possvel destacar que, a partir do fi nal da dcada de 1940, intensifi cou-se a chegada de migrantes para a rea do extremo sul de Mato Grosso, destinada pelo Estado Novo implantao de uma Colnia Agrcola, como observa a pesquisadora Damarci Olivi da Costa em seu artigo Colonizao, especulao fundiria e terra de ndio: [...] a busca pelos espaos vazios e por melhor sorte na vida provocou a avalanche de migrantes para a regio de Dourados51. Por outro lado, argumenta Ponciano em sua dissertao de mestrado, Um olhar nos crimes de seduo: a mulher da famlia de Ftima do Sul (1967/1977), quando registra: [...] nos anos 50, quando acontece de forma macia a migrao para esta rea [CAND], tais recursos j no existem, a assistncia do Es-tado se torna totalmente inoperante, e os migrantes se vem sozinhos no processo de povoar os espaos vazios52.

    As famlias que chegavam eram orientadas a se estabelecer proviso-riamente no ptio da administrao da Colnia onde se situa atualmente a vila So Pedro, distrito do municpio de Dourados, para preencherem o requerimento de doao do lote e para o administrador se certifi car de que tais famlias estavam aptas a serem contempladas. Aps alguns dias ali, [...] s com a roupa do corpo, exposto ao sol, chuva, ao frio, sem

    51 COSTA, D. O. Colonizao, especulao fundiria e terra de ndio: a Colnia Agr-cola Nacional de Dourados e a Aldeia Panambi. In: Fronteiras Revista de Histria, p. 38, 1999. 52 PONCIANO, N. P. Um olhar nos crimes de seduo: a mulher da famlia de Ftima do Sul (1967/1977). 2000. 166 p. Dissertao (Mestrado em Histria) UNICENTRO UNESP/ASSIS, p. 40.

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    qualquer recurso53, os migrantes comeavam, por iniciativa prpria, sua caminhada para o interior da CAND.

    Assim, deslocavam-se para o sudeste da Colnia, terminando por se concentrar margem esquerda do rio Dourados, lugar denominado de Porto Ubatuba. Convm registrar que o referido rio serviu como linha demarcatria para se estabelecerem as reas destinadas primeira Zona e segunda Zona no interior da Colnia, sendo, respectivamente, o lado esquerdo e o lado direito do mesmo.

    As notas registradas pelo padre Amadeu Amadori no Livro Tom-bo da Igreja Catlica so esclarecedoras no tocante ao surgimento deste povoado:

    Vila Brasil teve incio nos primrdios de 1950, quando, tomados todos os lotes da margem esquerda do Rio Dourados, os migrantes que vinham em massa de todos os recantos do Brasil, comearam a embrenhar-se nas matas virgens margem direita do mesmo rio. Devido difcil passagem do rio (s canoas) e por causa do serto bruto, as numerosas famlias que vinham chegando acampavam temporariamente na barranca do rio, enquanto fosse aberta uma clareira nos lotes. Assim comearam aparecer barracos e ranchos de sap. Em poucas semanas a rancharia marginava uma longa rua lado a lado. De um dia para outro apareciam botequins, pousos, casinhas de comrcio. Quem passava por a via, seno dinheiro e progresso, ao menos, barulho da manh noite.54

    Neste perodo, os primeiros administradores da Colnia haviam mapeado e dividido a primeira zona em lotes rurais de 30 hectares aproxi-madamente, no entanto, a rea demarcada era pequena frente ao nmero de famlias que se desalojavam diariamente no ptio da administrao, e estas desciam por iniciativa prpria at a margem do rio Dourados pro-cura de seu lote rural, esperando a administrao cortar a segunda Zona

    53 INFORMATIVO REGIONAL SUL, Ftima do Sul, 09 de julho de 1999, p. 7. 54 LIVRO TOMBO..., 1963, p. 4, grifo nosso.

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    Conversas entre a escrita, a histria, narrativas e leituras na perspectiva da cultura

    da Colnia. Entretanto, desta rea, os agentes do governo procederam somente reserva de dois lotes, contguos ao rio, correspondendo a 60 hectares aproximadamente, localizados do lado contrrio ao local que fi -caria conhecido como Porto Ubatuba.

    Assim, os migrantes terminaram por se concentrar junto mar-gem esquerda do Porto Ubatuba na expectativa de que fossem iniciadas a abertura e a demarcao da segunda Zona da Colnia com a consequente distribuio da terra. No entanto, como o processo foi sendo postergado pelos administradores da Colnia, por volta do incio dos anos 1950, era considervel o nmero de famlias de migrantes reunidas naquele local.

    Este aspecto histrico justifi ca dois fatores importantes no pro-cesso de colonizao da regio: primeiro, proporcionou a ocupao das terras localizadas na segunda Zona da Colnia pela iniciativa dos prprios colonos ante a letargia do governo; segundo, favoreceu a concentrao de famlias margem do Porto Ubatuba, constituindo a gnese de um po-voado que inicialmente era denominado Porto Ubatuba, em seguida Vila Brasil e, por fi m, em 1965, Ftima do Sul.

    Sobre o