livro | memórias do olhar

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R A U L C î R D U L A Mem—rias do Olhar LINHA DÕçGUA

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Livro de memórias sobre a década de 1960 na Paraíba vistas sob o olhar de um artista plástico.

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R A U L Ê C î R D U L A

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L INHAÊDÕçGUA

INSTITUTO CULTURALR A U L C Ó R D U L A

Talvez pela idade em que estamos, talvez pelas nuvens que obscurecem, por momentos, o horizonte do nosso país e do mundo, a paisagem da vida nos parece mais bela quando olhamos para trás. Por isso, estas “Memórias do Olhar” do pintor Raul Córdula me sensibilizaram tanto. Memórias podem ser mais estimulantes e enriquecedoras do que obras de �cção. Sobretudo quando o autor não fala apenas de si, mas das suas circunstâncias, das pessoas, cenas e lugares que o marcaram e modelaram, em sua aventura existen-cial. É o que faz Raul, ao narrar as suas vivências nos anos 50 e 60 do século passado, na “capital das acácias” e no “Sul Maravilha”, para onde a intolerância dos “anos de chumbo” o levou, por algum tempo. E com isso dá nova vida a heróis obscuros e injustamente esquecidos, dos quais o melhor exemplo é o Professor Léon Clerot, sábio e artista a quem a Paraíba deve tanto, e ninguém sabe. Como membro da “Geração 59”, muito me grati�cou con�rmar como foi importante a nossa convivência com o então adolescente que procurava consolidar a sua opção pela vida artística, em um ambiente tão acanhado como o da João Pessoa de 50 anos atrás. Suas belas ilustrações �caram grudadas aos nossos poemas e contos, mas só ao ler seu livro “Fragmentos”, de comentários sobre artes plásticas, é que fui perceber como também nossas imagens,

expressões e ideias o impregnaram em seu trabalho de pintor. Agora, com este novo livro, e para grande honra nossa, essa percepção se completa. Pelas páginas do volume des�lamos todos nós – alguns até com direito à palavra, em entrevistas e artigos – e muitos dos que nos antecederam e sucederam, com todos os matizes: brilhantes, excêntricos, ousados, discretos, incompreendidos, audazes, atrevidos, toda uma gama de caracteres de que a Paraíba sempre foi pródiga. Quem o ler verá. E nele se encontrará, seja pessoalmente, seja por a�nidade espiritual com algum dos seus personagens. Memórias do Olhar. Um livro para ser lido como foi escrito: com emoção e saudade. Mas também – pois que o otimismo é indispensável à ação – na justa perspectiva de colher a doçura do passado para suavizar os caminhos do futuro.

Clemente Rosas

Alem do autor �guram neste livro Vanildo Brito, Clemente Rosas, Breno Mattos, Celso Japiassu, Jomar Souto, Ângela Bezerra de Castro, Otávio Sitônio, José Lyra, Mocidade, Flávio Tavares, Jomard Muniz de Brito, Leon Clerot, Marcus Vinícius

de Andrade, Hermano José, Virgínius da Gama e Mello, Domenico Lazzarini, Geraldo Emílio Porto, Reitor Mário Moacir Porto, Marcos Ribeiro Coutinho, Archidy Picado, Governador José Maranhão, Jurandy Moura, Samico, Chico

Pereira, Vicente do Rego Monteiro, Pontes da Silva, Maria José Limeira, Gover-nador João Agripino Maia, Marcelo e Milton Veloso Borges, Dona Daura, José

Madruga, Paulo Melo, Governador Pedro Gondim, Prof. Raul Córdula, Maestro Severino Araújo, Wills Leal, Luis Carlos Cavalcanti, Wladimir Carvalho,

Marlene Almeida, Linduarte Noronha, José Bezerra Cavalcante Adrião e Creusa Pires, Balduino Lélis, Maestro Pedro Santos, Elcir Dias, José Altino, Unhandei-jara Lisboa, Hildebrando Assis, Pedro Santos, Celene Sitônio, Carioca, Hosana, Roupa Velha, Péricles Leal, Berta, Mário Pedrosa, Juarez Batista, Heitor Cabral,

Vassoura, Márcio Mattar e outros igualmente notáveis.

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O tempo é a substancia de que sou feito.Jean Luc Godard em Alphaville.

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O tempo é a substancia de que sou feito.Jean Luc Godard em Alphaville.

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Memórias do Olhar

R a u l C ó r d u l a

LINHA D ’ÀGUA

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FICHA TECNICA

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Aos vivos, aos mortos e aos esquecidos neste livro.

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Sumário

Aquele que não perde o costume de olhar – Kubistcheck Pinheiro, 9

As heranças, 15 Paisagem Zero, 17 José Lyra, o pintor da cidade, 20 Leon Clerot, meu amigo elefante, 21 Ivan Freitas, 24 Breno Mattos, 26 Archidy Picado, 29 Arte e devenir – Archidy Picado, 31 Geração 59 Ponto de Cem Réis, 33 Nós éramos o mundo – Vanildo Brito, 41 Entrevista com Clemente Rosas, 47 Fala o poeta que emigrou, 54

Arte e poder A União nas Letras e nas Artes, 59 Rondas líricas, performances e instalações, 61 Jomard Muniz de Brito, 63 A Rádio Tabajara, 64 O Liceu, 66 O fidalgo semiótico, 68 Arte em Palácio, 71 O Grupo Santa Rosa, 73 Bares, 77

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O Departamento Cultural da UFPB, 83 Civitas Diabolis, 85 Domenico Lazzarini, 88 A Galeria de Arte – Virgínius da Gama e Mello, 90 Crônica do Cotidiano – Germana Vidal, 93 Conversa com o poeta Luiz Carlos Cavalcanti, 97 Aventuras do mercado, 101 Marcio Mattar, 102 Meu amigo neozelandês, 104 De volta ao Rio, 108 Olinda – o Movimento da Ribeira, 110 XV Salão nacional de Arte Moderna, 111

O Museu de Campina Grande, 117 Mário Pedrosa, 122 Resenhas Tropicalismo, 125 Novos espaços, 126 Karimbada, 127 José Altino, 128 A SAPP e o happening, 131 Resenhas, 132

Chumbo grosso, 139 Primavera Negra, 140 Catete, 147

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Aquele que não perde o costumede olhar

Kubistcheck Pinheiro

De tempos em tempos, o artista sente a necessidade do renascimento. De tudo: visual, textos e imagens, que vão sendo guardados no miolo de sua memória e essa memória é algo animalesco, que sai aos poucos como uma visita pela mobília, a dor da fotografia, o elo entre o homem e Deus.

O novo livro de Raul Córdula é o novo Raul Córdula minuciosamente, até o reen-contrar do seu olhar atento. Até onde ele enxerga da janela do Casarão de Olinda a focar e dizer “sim, eu sou eu”. Depois, ele senta e sente que falta algo a dizer e diz. Ai surge o recomeço.

O olhar sobre memória, não sei bem se o livro seria a memória do olhar, ou o olhar que busca a memória lá atrás, bem adiante, tem algo que faz o artista caminhar e isso é belo e é a necessidade de mudança. A preguiça do artista fica atrás, no bocejo do sonho até onde estão os fantasmas que já não podem ser um de seus mais patentes pecados, a taça de vinho, o tilintar do cristal. Raul está nu. Eu vi. Eu li.

Nessa louca busca, ele nunca escapa do espaço. A palavra seguinte é reconstrução. Descobrir que pedaços dele foram espalhados pelo país, de ontem, das florestas centenárias, pra não dizer milenares de Burle Marx e todo seu amor respondido e correspondido à altura de seus anseios de artista popular poeta brasileiro.

Seu livro me concede prestigio de memorizá-lo no infinito desejo de agora, como a verificar que dores são realmente necessárias e estão presentes em todos os per-sonagens, de Arnaldo Tavares a Creusa Pires, que sobrevoam nossa necessidade de viver mais, viver sempre.

O livro de Raul leva o leitor a um crescimento secular, senão, ímpar, como uma promessa, uma dívida, paga, de tantos objetos de arte juntos no alfabeto do orgas-mo, o grito solto no Parque Sólon de Lucena, na nova roupagem dada à Bambu, coisa de quem não joga fora encantos antigos, amores doídos, lembranças que de-

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vem morrer, mas renascem na obra do artista. E fazer tudo isso com serenidade, maturidade, amor, não é fácil.

A dignidade da arte

A obra de Raul tem sido o grande exercício de todos os seus dias. E a única palavra de ordem não é ponderação, nem sensação, talvez devoção, de onde chegam nos-sos bichos que voam ao redor da lâmpada igual à impossibilidade de não existir de Clarice Lispector.

Sabe lidar com palavras e críticas, para viver de modo mais artístico, a bus-car o afago do velho seu pai, elegância que eu não tive o prazer de beijar. Sim, sim, sim. Sei que pelos altíssimos delírios de uma transa, o triângulo um pouco maior, um pouco aveludado, é a sua legítima arte, a arte que o faz seguir e faz parte daquilo em que mais acredito e que ainda não sei nomear. Raul é a dig-nidade da arte. Não. É algo um pouco menos complexo que esses termos. É um artista cuja obra está em crescimento, porque Raul agora abre e prova as maiores verdades: sua vida em quadrinhos, deixando que as coisas se encaixem onde possam. E tenham vida.

Este é um livro para ler e emprestar. Nada de guardar. Se vai colocá-lo na estante, depois de lido, saiba que ele estará fechado ou ele mesmo se encarregará de desa-parecer. Livros bons são como pessoas bacanas, precisam viajar. Quando comecei a ler os originais, achei que o artista estava tentando me iludir, com histórias de um filme onde o menino Córdula faz um solo, sol a sol como um solo supremo de Amália Rodrigues a cantar seus mouros, tão nossos, no meio de tanto lixo jogado em nossa cara pela tecnologia que, fiquem atentos: a parafernália está nos matan-do, a nos afastar da literatura, do romance, do Brás ou da ilha de Cuba da mais singela apresentação de D. Omara Portuondo a balançar um negrito que não quer dormir, porque ninguém quer dormir. Dorme-se pela necessidade.

Manifestando os trópicos e infernos

Eu não sabia quase nada do Manifesto do Tropicalismo, tanto anunciado em crônicas passageiras de Carlos Aranha, o maior acerto de um movimento cultural brasileiro com estrondos lá fora, o Tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil e priu. Priu não, tem a presença do singelo Jomar Muniz de Brito, a representação da pernambucália com raízes paraibanas americanas, “por que não, porque não, por que não?”

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Raul já foi longe, hoje é observado num lounge. Ele tem a convicção que nunca mais veríamos toda essa globalização de palavras em plena era do tal estresse mau/bom humor especialmente nessa ou naquela noite inesperada do encontro da arte com o olhar.

Só Raul para nos transportar para dias anteriores, todos sentados no “Cabaré de Berta” algo já acabado, enfim. O canto clássico toma conta do livro na “Gafieira dos Amantes”, como se numa gafieira fosse possível ouvir Mozart, Lizt, Vivaldi ou Be-thoven. É, mas no “Mercado da Ribeira” sim, com um Dj de paletó alugado, onde a “Ema gemeu no tronco do jurema”, do imortal Jackson do P. Aliás, Salve Jackson Ribeiro e o porteiro do infernal alto astral.

O livro de Raul toma conta da nossa vida. A Paraíba pequenina para quem Hum-berto Teixeira mandou um abraço um dia, e Caetano Veloso repetiu em “Terra”, por mais distante ou errante navegante, quem jamais esqueceria o pintor Raul Cór-dula?

Confiro a obra, ainda está pela metade, então, vamos um pouco mais da metade ainda. Vou atrás desse carnaval de Raul, como quem procura Risoleta no fundo do mar, em vão. Ela está na canção de Vinicius e Baden ,”menina bonita não vá para o mar, vou procurar, o meu grande amor no fundo do mar”. E foi.

Rio, 1965 graus

Rio de Janeiro, 1965 graus, onde o artista hóspede da utopia carioca, monta sua primeira exposição no ateliê do amigo Marcio Mattar, não, minto, na Galeria Ver-seau, (dos marchands fulana e sicrano, os nomes estão no livro, abra e leia. Se tivesse ficado no Rio, Raul era o mesmo que é hoje em Olinda, o artista consagrado no seu recanto milenar.

Por garantia, o livro é sua cara, cara a cara, sua tela, branca, preta, seu protesto, sua Paraíba (sai de riba), que se nega a ser negada pelo ego dos bacanas que são sacanas a olho nu.

Risadas. Muitas. E momentos de noites eternas nos braços juvenis de sua Amé-lia, a Amélia que não é Mário Lago & Ataulfo Alves, mas de verdade, artista da construção, das profundezas dos pratos que alimentam olhares e que se tornam mais largos & mais profundos quando de perto, muito perto, porque lá no prato fundo está a glória do varão que eles engendraram, o Cláudio, Cacau, que não

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pretende mais voltar ao ninho, construindo o seu, porque tudo é muito bom de ser quando somos nós também.

O livro de Raul fecha um ciclo e abre outro. Meu Deus, Raul é um cara gozador, adora brincadeira de roda. Longas diferenças de linguagens, como quem não con-segue estar com alguém se não estiver com todos, já que seu livro é uma reunião, um encontro da arte e seu volume, até onde está o nascimento e a morte do mais interessante diálogo, mas o melhor ainda dançar por aí, dois pra lá, 2 pra cá.

Cara a cara

Para alguns, no entanto, discrição é tudo. Tem que ser. É cinema, é Glauber Rocha, é o pernambucalismo de Joaquim Nabuco. Ou talvez seja simplesmente aquilo em que gostariam de acreditar. Na casa pequena sem senzala. Porque discrição não significa omissão, assim como gargalhadas contagiantes não têm nada a ver com o tal do “estou vivo”.

Discrição com nomes, signos, tudo está no caldeirão do Senhor Córdula. Respeito pelos nomes e sobrenomes, pelas suas vontades de terem existido. Dessa maneira, o livro de Raul é a característica melhor do que optar por simples-mente não dizer as coisas às pessoas que dizemos lembrar, coisas que são muito importantes, caras, que precisam ser ditas, na cara.

Se não podemos salvar ninguém pelo amor, ao menos temos que fazer isso por meio das palavras, que são coisas, aliás. Se eu fosse contar aqui o que tem no livro de RC, o tanto de vezes em que conheci pessoas, palavras, parágrafos, coisas outras, todos e todas, pessoas, canções, batucadas, exposições num livro que são memó-rias do olhar do artista, que sabe onde pode ir bem mais...

Cabo Branco, entre agosto e setembro 2009

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Desenho de Raul Córdula para A União nas Letras e nas Artes.

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Igreja de São Francisco, xilogravura de Pontes da Silva.

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As heranças

Na década anterior ao movimento das artes plásticas que caracterizou os anos 60, existiu em João Pessoa um grupo de pintores reunidos em torno do Centro de Artes Plásticas, que constituía nosso meio artístico. O Centro foi fundado em 1948 por artistas que pintavam paisagens, retratos e naturezas mortas. Era a ins-tituição dos pintores, independente do governo, uma espécie de clube misturado com ateliê e escola de pintura. Dele participaram Olívio Pinto, José Lyra – ambos também fotógrafos, Amélia Teorga, Hermano José Guedes, Arnaldo Tavares – médico dermatologista, pai do pintor Flávio Tavares, que despertou para a arte ainda menino, Elcir Dias – pioneiro da publicidade visual na Paraíba, Professor Leon Clerot – historiador e arqueólogo, Edésio Rangel, que veio a ser diretor da ARTENE, a agência que a SUDENE mantinha para o desenvolvimento do artesa-nato antes da ditadura, entre outros. Todos estavam envolvidos com o bucolismo da cidade que antes se chamou Frederica, depois Felipéia de Nossa Senhora das Neves, durante muito tempo se chamou Parayba e, a partir da hecatombe de 1930, João Pessoa.

Liam Rilke, Proust, e Augusto dos Anjos e eram apaixonados pelos tons verdes, vegetais e marinhos, que definem o céu e o mar destes arrabaldes. Desenhavam os fractais que contornam estas beiras de praia que encantariam Monet e Matisse. Alguns dos artistas que surgiram nos anos 60 devem a estes antecessores da pintura moderna o sereno exemplo da humildade e da contemplação. Quando o Centro foi criado, a vida cultural da cidade se arrastava indolente. Assi-nalam-se, porém, alguns fatos interessantes, como o ciclo de 13 conferências inti-tulado de “Universidade Popular”, instalado em 15 de janeiro de 1913, por inicia-tiva do Presidente da Província Castro Pinto. As duas primeiras foram proferidas pelo pintor Aurélio de Figueiredo, nosso melhor pintor do período acadêmico e irmão do ilustre Pedro Américo, e versaram sobre “O desenho como elemento de educação popular” e “Influência da pintura nas civilizações antigas e modernas”. As eventuais atividades de Aurélio na província, pintando retratos e quadros históri-cos de encomenda para o Governo, de certa forma substituíram a presença do seu

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famoso irmão que viveu mais na Europa e no Rio de Janeiro, Capital do Império. Sobre Pedro Américo muito se escreveu, mais recentemente a arquiteta e profes-sora Madalena Zaccara defendeu em Toulouse uma tese de doutorado sobre sua história e sua obra. A intelectualidade nacional, no entanto, deve ao povo o resgate da obra do seu irmão Aurélio de Figueiredo, um artista que, entre outros aspectos do seu trabalho, é responsável pela pintura de retratos da aristocracia rural parai-bana na virada dos séculos XIX e XX, no brejo da Borborema.

Antes do Centro de Artes Plásticas, porém, o espírito acadêmico dominava total-mente a cena artística paraibana. O academicismo, que no limiar do século XX já se encontrava decadente na Europa modernista desde o surgimento do Impressio-nismo, cinco décadas antes, encontrou seguidores, ainda na primeira metade do novo século, nos artistas pernambucanos e paraibanos que combatiam as ideias modernas, envolvidos numa verdadeira ideologia da arte do passado. De fato, a Escola de Belas Artes de Pernambuco foi fundada em 1932 e, segundo declara José Cláudio, em “Tratos da arte em Pernambuco” (Recife, 1984), ela nasceu como re-ação dos pintores recifenses à arte moderna que já começava a ocupar espaços. O modernismo oriundo da Semana de 22 e seu correspondente nordestino, o Movi-mento Regionalista de Gilberto Freyre, se instalaram no Recife uma década antes da iniciativa dos fundadores da Escola de Belas Artes. Mas é também notável, mes-mo sendo uma ação com o olhar para tras, o fato de a fundação da Escola se dar por iniciativa dos artistas, e não por uma decisão imperial, como foi a criação da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Em maio de 1924 houve em João Pessoa, que ainda era Parayba, uma exposição coletiva dos pintores liderados por Frederico Falcão, misto de político e artista, com o título de Salon Felipeia. Na verdade, eles não se uniram para mostrar suas pinturas, mas sim para um ato de desagravo contra a obra pictórica de Joaquim do Rego Monteiro, que tinha sido mostrada três meses antes no “hall” do jornal “A União”. Dessa exposição, a tela “Paisagem de Nice” foi adquirida pelo Presidente da Província, Dr. Sólon de Lucena, e integra hoje o acervo do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba.

A reação à obra de Joaquim do Rego Monteiro chegou à imprensa. Na revista “Era Nova”, veículo da cultura da época, de forte cunho positivista, estava escrito:

“Não há que negar que o Salon Felipeia, aberto após a exposição do Sr. Rego Monteiro, cuja bizarria e audácia vieram revolucionar o nosso meio artísti-co, dá-nos a mesma impressão de uma bonança após uma tempestade.” Em “A União” de 24/05/24, lia-se: “A Exposição, embora anunciada há cerca de

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três meses, parece ter-se ensacado como uma reação a certa intrujice pictó-rica que aqui veio zombar da nossa cultura.”

A história, porém, tem sido justíssima com os irmãos Joaquim, Vicente e Fédora do Rego Monteiro, cujas obras estão entre os nossos maiores patrimônios culturais. Joaquim, talvez o mais criativo, morreu cedo, não deixando uma obra quantitati-vamente importante.

Fédora, pintora sutilíssima, tem parte de suas pinturas nos acervos dos museus per-nambucanos e em coleções de todo o Brasil. Lucilo Varejão, em artigo para a “Re-vista do Arquivo”, da Prefeitura do Recife (segundo José Cláudio declara em Tratos da Arte em Pernambuco), cita o comentário de Gilberto Freyre sobre Fédora:

“Vitoriosa sobre o ‘academismo’ de que se impregnara na Escola Nacional de Belas Artes e sobre o ‘impressionismo’ que era a onda renovadora no tempo de seus estudos em Paris (1914 – 1919), apresenta esta artista, nos seus últimos trabalhos, um frescor muito pessoal no colorido, coragem de claridade no jogo de luz e um como lirismo do sol”.

Vicente foi o mais importante, pois esteve presente na Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. Além de ter deixado uma obra madura e uma vida intelectual ativíssima, como escritor e poeta entre Recife e Paris. Gilberto Freyre, no artigo “A pintura no Nordeste”, do “Livro do Nordeste”, escrito para comemorar o cen-tenário do Diário de Pernambuco, em 1925, escreve sobre Vicente: “Um dos mais interessantes pintores. Talvez o mais pessoal e ao mesmo tempo o mais brasileiro.” Gilberto Freyre estava certo.

Sobre seu quadro “Paisagem Zero” escrevi em 1983 o texto abaixo para uma expo-sição do acervo do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em Olinda, ao qual ele pertence:

Paisagem Zero

A inteligência construtiva de Vicente do Rego Monteiro é clara e serena. Fa-lando sobre seu trabalho ele afirmou: Como um arquiteto, vou por cálculos sucessivos até encontrar a linha final. Há a fabricação do quadro, como uma casa, construindo-se. Inspiração só no Tachismo e Impressionismo. Acho que o artista, depois do Cubismo, constrói seu trabalho. A cor dá luz e a sombra; a linha é que define.

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Por isso parte de sua obra nasceu das especulações sobre o infinito, como a Paisagem Zero, quase sideral, não existisse nele a ingênua identidade de um filho da Terra – e, ao mesmo tempo, quase angelical, nos jogos de eclipses e no azul-rosa, ao gosto das crianças e do povo.

O ponto de vista dessa pintura não se situa para quem olha, é necessário vi-ver o quadro, imaginar-se na paisagem, pois não se tem a ideia do seu ponto de fuga. Está longe das perspectivas vãs dos acadêmicos. Vê-se como quem vê de um avião, fora da terra, subvertendo o espaço através da mudança de dimensões: “Nos três eclipses / condenando o muro, * dos anteparos de curvas e triângulos, e dos cometas.”

Paisagem Zero, esta pequena obra prima, nos fala mais do tempo que do es-paço - atributo da pintura – sendo ao mesmo tempo um verdadeiro tratado das relações existentes num retângulo construído de cor e forma. Fala-nos do tempo em seu sentido filosófico, pois nos projeta uma expressão cósmica perdida entre as linhas de sua composição. E fala-nos também num sentido pendular, físico, em seu jogo de esfera nos eclipses pintados. Um tempo diá-rio, perene, que João Cabral de Mello Neto encontra no seu poema: “A luz de três sóis / ilumina as três luas / girando sobre a terra / varrida de defuntos. / Varrida de defuntos / mas pesada de morte: / como a água parada, / a fruta madura”**. João Cabral revela um sentimento subjetivo e fatal como se esse quadro fosse uma antinatureza-morta.

Encontramos noutro poeta, o paraibano Vanildo de Brito, também pintor de palavras, em “Primeiro Soneto Lunar”, outra descrição da transitoriedade do indivíduo diante da eternidade cósmica: “... então âncoras gemem. Nasce o porto / liberto de jangadas e navios / mas coroado de uma luz tão forte / que os duros ângulos dos rochedos frios / cantam a vida, embora a grave morte / continue habitando essas paisagens.”

Uma pintura filosófica como os ornatos das catedrais góticas, mas uma pin-tura contemporânea do seu futuro, o eterno agora da arte: uma pintura de 1922 que nos faz pensar, ainda hoje, no amanhã.

*De “Vicente Inventor”, monografia de Walmir Ayala, Prêmio FUNARTE de 1979.** “A Paisagem Zero”, João Cabral de Melo Neto, de “O Engenheiro”, 1942/45.

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O Salon Felipeia, portanto, foi fruto da reação de pintores que não conseguiam conceber a maneira simples e moderna de Joaquim pintar, atualíssima naquele momento, um século à frente deles. No grupo de pintores liderado por Frederico Falcão não existia o espírito modernista que já havia contagiado o Recife, o mesmo espírito que norteou os alunos do Centro de Artes Plásticas, quando Ivan Freitas, Breno Mattos e Archidy Picado começaram seus envolvimentos com a arte no fi-nal dos anos 50, tardiamente embora. Foram iniciados na prática do desenho e da pintura através dos mesmos métodos das escolas de belas artes, embora seus orien-tadores não fossem formados por elas, mas sim talentosos artistas. Por conta pró-pria, por razões dos seus espíritos inquietos, Ivan, Breno e Archidy desgarram-se das amarras acadêmicas daqueles ensinamentos e desenvolveram suas tendências artísticas no espaço da arte moderna. Sucedendo o Centro de Artes Plásticas, eles foram os responsáveis pela primeira grande ruptura entre a tradição e a moderni-dade. Cada um ao seu modo criou estilos na arte e na vida, desenvolveu atitudes e comportamentos afinados com as mudanças sociais que os novos tempos traziam.

Paisagem Zero, pintura de Vicente do Rego Monteiro.

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José Lyra, o pintor da cidade José Lyra viveu numa família de artistas. Seu avô José Graciliano Filho era pintor e escultor. Seus primos José Pinto Serrano e Olívio Pinto chegaram a realizar uma obra importante através de paisagens que registram praias, igrejas, canaviais da várzea, fazendas, riachos e pormenores da vida urbana, detalhes da época em que João Pessoa ainda era Parayba. Olívio Pinto foi aquarelista e pintor de alegorias que ainda hoje podem ser vistas nas paredes do Tribunal de Justiça da Paraíba. As obras desses artistas são pontos de partida, fontes iconográficas para se investigar as transformações ocorridas nas décadas de 30 a 50 passando pelo Estado Novo, quando a cidade passou a se chamar João Pessoa e teve uma nova estrutura urbana. As primeiras mudanças importantes aconteceram na parte leste da cidade, com a construção do Parque Sólon de Lucena – obra do melhor critério arquitetônico e paisagístico –, as avenidas de acesso às praias, o Ponto de Cem Réis, a moderniza-ção do Passeio Público, mas também as lamentáveis demolições de igrejas e edifí-cios de grande interesse arquitetônico. Era o espírito da modernidade que chegava a João Pessoa pelos braços da “Revolução de 30”. Pena que com ele, em nome de novos traçados e novos partidos urbanísticos, mas muito mais por conta de uma política de privilégios, nos chegou também, na década de setenta, uma verdadeira onda de burrice que transformou áreas da cidade numa coisa informe e sem iden-tidade.

José Lyra no ateliê com o auto-retrato.

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José Lyra foi o mais produtivo artista da família Pinto. Seu aprendizado, ao lado do seu primo Olívio, foi o atelier de fotografia de seu outro primo, Gustavo, que o empregou em 1922, tirando-o de Vila Nova, sua cidade natal, no interior do Rio Grande do Norte. Vem dessa origem como fotógrafo seu amor aos detalhes e à verdade documental. Fotógrafo de retratos, foi também excelente pintor retratista. Pode-se mesmo dizer que ele foi o retratista da cidade de João Pessoa. Mas sua paisagem também é corretíssima. Nos anos 50, quando a face da cidade – a antiga, a alta e a nova, esta magnificamente projetada nos anos 30 buscando o mar – ainda se mantinha harmônica, e ainda se convivia com o Bonde Amarelo que parava no Ponto de Cem Réis, em frente ao Cine Plaza, com o Café Alvear e o Cinema Mor-se. São dele as mais belas vistas do Cabo Branco e de outros acidentes costeiros paraibanos. Porém, diante dos temas pintados por Antonio Macedo, Amelinha Teorga e Hermano José, não se pode dizer que José Lyra foi o nosso único paisa-gista. Amelinha pintou a Lagoa do Parque Sólon de Lucena como ninguém, tema também de Hermano, pintor e defensor dos nossos ecossistemas, como o do Cabo Branco, nosso grande monumento natural. Já Macedo foi nosso grande paisagista da área da cidade antiga, das ladeiras da Borborema e de São Francisco, das igrejas e casarões antigos da Rua da Areia.

Leon Clerot, meu amigo elefante

Nunca fui aluno de Leon Clerot, fui aluno de um filho seu, em Campina Grande, de Leon eu fui amigo. Um amigo esquisito, pois eu tinha dezesseis anos, e ele já era sexagenário. Uma pessoa de extrema simpatia que, ao lado de sua mulher, uma senhora mineira culta e elegante, me recebia na casa da Rua das Trincheiras, onde fui várias vezes ver as coleções de coleópteros e borboletas e, quando era de tarde, tomava um café com leite e biscoitos. Ele fumava cachimbo constantemente, e tinha um nariz grande, por isso eu o chamava, às vezes, de Elefante, e parecia que ele gostava.

Eu estudava no Liceu, a dois passos da Faculdade de Filosofia, onde Clerot convivia com os professores de geografia. A FAFI era nosso templo, todos nós do Liceu íamos lá para fazer a mesma coisa: aprender conversando com os professores. Otávio Sitônio sempre me acompanhava, íamos assistir a uma aula de Virgínius da Gama e Mello, depois eu ia diretamente à sala de mineralogia onde, deslumbrado, via no microscópio lâminas de minerais que o professor Abelci nos mostrava. Minha pintura abstrata começou ali. Obrigatoriamente procurávamos Leon Clerot para uma prosa, uma piada, um ensinamento.

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Num sábado de manhã um jipe parou na minha casa. Era ele, ia para a Pedra do Ingá, e me disse, “Raul, você precisa ver uma coisa bonita e importan-te pra sua pintura”. Pintura que ele achava estranha, mas respeitava como algo em formação. Vesti minha calça Lee com uma camisa cáqui, calcei uma basqueteira e me cobri com um boné. Fomos para lá. No jipe havia mais alguém dirigindo, eu ia atrás nos bancos de metal. A estrada era ruim e ainda andamos um bocado a pé, conversando, conversando. Demoramos a chegar, mas meu deslumbramento foi enorme. A Pedra do Ingá entrou para a minha vida e nela permanece até hoje. Soube depois que foi ele que, anos antes, tinha conseguido embargar a obra de uma construtora que es-tava destruindo o Sítio Arqueológico, fazendo paralelepípedos para calçar a cidade do Ingá do Bacamarte.

Mas Clerot não era apenas o defensor de nosso passado, era um artista re-quintado e dedicado, um surpreendente desenhista e projetista de arquite-tura. Uma vez me mostrou um projeto de uma casa neoclássica numa pran-cha aquarelada, algo de muito bom gosto e de perfeita técnica. Outra vez ele nos trouxe para expor na Faculdade de Direito, palco das mostras de pintura da época, uma aquarelista pernambucana de nome italiano, Aneliese Tu-liolla, que nos mostrou uma série de paisagens com trens, onde a fumaça se confundia com as estruturas da Gare do Recife, algo muito ao jeito de Mo-net, e das paisagens com canaviais por onde ela passou, na Zona da Mata.

Visitei-o certa vez no Museu do Estado, que estava instalado num dos mais belos sobrados das Trincheiras, no trecho da balaustrada que dá para a Ilha do Bispo. Parte do acervo que lá estava eram os fósseis de trilobitas e amo-nitas que ele colecionou. Perguntei de onde vieram, e ele me disse, apon-tando com o cachimbo para a Fábrica de Cimento Matarazzo que víamos no alpendre do Museu: “Parte veio de lá, eu os garimpei pessoalmente dos matacões de calcário que a fábrica puxa de dentro da terra, num acordo que fiz com a Matarazzo.” Imaginei aquele homem velho e austero, com chapéu de engenheiro na cabeça, dentro do caos das pedras demolidas procurando fósseis de baratas e conchas pré-históricas. Mas era sua razão de ser, seu modo de viver.

A última vez que fui vê-lo ele estava em cadeira de rodas, morando no Mi-ramar. Ele e sua mulher me mostraram uma imagem de Santa num trono, uma Madona. “É do Aleijadinho”, me disse. Parei para ver aquela obra pri-ma feita em jacarandá e prata. Mais uma vez me emocionei e agradeci por ter como amigo aquele homem parecido com um elefante, culto e sereno,

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mas enérgico e respeitado nacionalmente como um dos nossos grandes cientistas.

Enquanto ele pôde, manteve o Museu sob pau e pedra, desgastando-se com o poder, expondo-se a todas as dificuldades que a sociedade, já na época voltada para as coisas superficiais, lhe impunha. Hoje somos uma cidade sem um Museu Histórico. Onde ficaram aquelas amonitas? O que é feito de velhos quadros de paisagens que eu via no Museu com tanta emoção? Cadê as borboletas e besouros colecionados com tanto esmero em móveis com escaninhos próprios para eles? Onde está a fé nos homens e a esperança no futuro e nos meninos, para quem ele dedicou seu trabalho, onde estão hoje pessoas que fazem como ele: dedicam a vida à perpetuação da história? Cem anos de Clerot é um marco para a meditação...

Olinda, 2007

Leon Clerot e Elcir Dias.

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Ivan Freitas Nascido para a arte quando o Centro de Artes Plásticas já atuava, talvez seguindo as motivações pictóricas de seus amigos José Lyra e Hermano José, Ivan Freitas, ao gosto dos surrealistas, recorre à paisagem fazendo uma leitura nova, mas exata, da luz que banha a cidade. Falecido em 2008, seu último quadro é uma cena do Ponto de Cem Réis como era no seu tempo, onde se vê as figuras de José Lyra e Hermano José no primeiro plano.

Ivan Freitas deixou a Paraíba em 1957 em busca do Sul e do sucesso e tornou-se um dos expoentes da arte brasileira, mas seu gesto criador ficou aqui, como uma legenda que serviu de apoio às novas atitudes dos artistas ligados à Geração 59.

O Rio de Janeiro era então a capital do Brasil, centro da cultura nacional. A pintu-ra de Ivan, de inspiração surrealista, plasmava o espírito da província da época e traduzia, com um realismo poético pleno de fantasias, as paisagens da cidade. Ivan sempre foi um paisagista, mesmo na fase do abstracionismo simbólico que lhe deu fama nacional nos anos 70, ele transmitia o algo próprio da pintura de paisagem.

Naquela época Glauber Rocha defendeu a ideia de uma estética brasileira mais próxima do surrealismo do que da visão do realismo socialista que a esquerda im-punha. De fato, nossa poética verbal e visual não se acomoda aos traços clássicos belasarteanos, mas se aproxima do onirismo, do anarquismo e das visões do futu-ro que proporcionaram ao artista os mergulhos no inconsciente, que resultaram, como amálgama, no surrealismo e no dadaísmo.

Mas Ivan sempre pintou paisagem, no sentido lato da palavra. Por onde andou as paisagens foram com ele: as praias de Cabedelo nas noites de maré baixa onde apareciam ruínas, pedaços de muros decaídos, currais de peixes, andaimes inúteis, fragmentos de estátua (Heitor Cabral, seu amigo de infância em Cruz das Armas, contou que as pinturas de estátuas quebradas e espalhadas pela praia eram a ex-pressão de um amor rompido).

Os temas surrealistas de Ivan atingiam fortemente a sensibilidade dos poetas da época, e dialogavam frontalmente com a poesia de Vanildo Brito. Magníficas eram as pinturas do Adro da Igreja de Santo Antônio, no Conjunto Franciscano, onde um monge reza, tendo sua cabeça flutuando metros adiante, ou pequenos arruados onde insólitos objetos aparecem fora do lugar, ou ainda estranhas formas na beira da praia lembrando medusas, caramujos, esqueletos de peixes. Sempre a praia, si-lenciosa e solitária, cortada por sombras de pessoas localizadas num ponto de vista

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fora da tela. Os dois primeiros quartetos do soneto “Ode ao Cabo Branco III”, de Vanildo, parecem corresponder à sua paisagem da época: “Nas tardes oceânicas e puras / aparecias com teu dorso enorme, / transfigurando em música de vozes / a ma-gia das coisas nascituras. O bulício das vagas e dos rios / estava em ti. E no teu corpo vivo, / medusas, conchas, âncoras aladas, / alegre sal, areia e madrugadas.

Sua fase simbolista, que substituiu as paisagens surrealistas, tratou a textura, a pele da pintura. Alguns sinais das paisagens permaneceram recorrentes, como os gran-des planos que lembravam as praias desertas. O tom azulado das primeiras pai-sagens também caracteriza sua pintura. Na fase posterior à simbolista ele pintou grandes barragens, construções de muros ou fortalezas iluminadas por uma luz noturna. Depois veio a fase cósmica onde os exercícios com a luz se consolidaram como o grande tema de sua maturidade. Ivan adquiriu um grande domínio sobre os instrumentos de pintar a jato de tinta, como pistolas e sprays, e isto o levou a uma arte de nível tecnológico. Entre seus experimentos há uma série de objetos ci-néticos e que exploravam também a condução da luz através de prismas e cilindros

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de acrílico. Finalmente ele pintou paisagens hiper-realistas, principalmente do Rio de Janeiro e João Pessoa, onde a representação da luz discorda da luz real, produ-zindo efeitos surpreendentes. Já em 1963 Ivan iniciou uma carreira internacional quando participou da mostra “Arte de América y España”, em Madrid, promovida pelo Instituto de Cultura Hispânica, da qual participou também Hermano José e mais de 224 artistas latinoamericanos, a maioria de renome internacional. Em 1964 participou da “Brasilian Art Today”, em Londres, com catálogo escrito por Sir Robin Darwin e Marc Berkowitz, com mais 64 artistas, entre eles também Herma-no José e, ainda ao lado de Hermano, da “Bralianische Kunst Heute” em Bonn, com mais 51 artistas brasileiros.

No Rio, Ivan foi contratado pela Galeria Barcinski e começou a receber a melhor crítica. Mais tarde viajou para a Itália onde fez uma importante exposição em Tu-rim, e depois ganhou um prêmio internacional da ITT que lhe valeu uma viagem para Nova Iorque, onde pintou um mural na sede desta importante empresa de comunicações, residindo algum tempo naquela cidade, nascedouro da pop art.

Breno Mattos

Breno Mattos já havia encontrado nos anos 60 os caminhos da sua escultura atra-vés dos contatos feitos no Ateliê Coletivo do Recife. Abelardo da Hora, Wellington Virgolino, Corbiniano Lins, José Cláudio, Gilvan Samico, entre outros iniciavam lá um movimento sólido. Breno ensaiava o que seria a vanguarda da escultura nor-destina dos anos 50, modelando figuras que representavam as cenas de omissão social da época, ele foi o primeiro dos nossos artistas plásticos a se interessar pela pobreza e politizar sua arte. Foi dele a concepção da bandeira das Ligas Campo-nesas. De blusão furtacor à la James Dean, dançando Rock com a atriz Zezita de Sousa, que depois se tornaria sua esposa, Breno reunia em torno de si jovens in-teressados em teatro, literatura e artes plásticas. Em 1968 escrevi a apresentação de sua exposição no Teatro Santa Rosa, que ocupou todo o hall com esculturas em acrílico que tinham participado da Bienal da Bahia. O folheto de apresentação recebeu na capa uma fotografia de Manuel Clemente, o fotógrafo de vários filmes de Vladimir Carvalho. Nele eu situei Breno como o artista articulado que era com a arte brasileira de vanguarda:

Muito se fala em um novo renascimento nas artes plásticas. Verifica-se a in-tegração dos meios de comunicação e a ideia do quadro dentro das normas técnicas da pintura e as esculturas nos limites meramente formais deixam de fazer sentido. Os quadros com relevos e as esculturas pintadas são marcas

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da nossa nova objetividade, e de movimentos pelos quais ela se balizou como a pop art americana e a nouvelle figuration francesa, por exemplo.

Podemos dividir as tendências artísticas em caóticas e construtivas, ou me-lhor, em correntes ligadas a expressões emocionais – como o que pode ser visto na arte pré-histórica do período paleolítico, na arte barroca, no expres-sionismo e no abstracionismo –, ou no oposto delas, as correntes raciona-listas que podem ser vistas na arte neolítica, no mundo clássico e renascen-tista, no cubismo, no concretismo e todas as tendências do construtivismo. Mas sempre alguns artistas fugiram a esta regra, tentando dar ordem ao caos ou o caos à ordem. Este último procedimento, ao que parece, vigora nestes nossos tempos de guerra: subverter os valores formais para expressar nosso momento.

As novas esculturas de Breno Mattos se inserem nesta tendência. Utilizando materiais industriais recentemente inventados, como as chapas de acrílico, ele modela seus volumes rompendo quadrados perfeitos de acrílico aque-cido utilizando cones de madeira, num ato semelhante a um defloramento. Depois ele monta as partes defloradas compondo cubos, os quais apresenta nesta exposição, onde eles são montados pendurados por fios de nylon, sus-pensos no espaço. Este é o aspecto mais interessante da mostra, o momento em que ele usa a matéria e a linguagem modernas ao lado do sentimento instintivo do rompimento.

A civilização moderna produz novas imagens do mundo, imagens fantásti-cas, geométricas e ampliadas. Para alguns artistas essas imagens têm algo de místico dentro do ascetismo do aço e do concreto, da frieza feita de espa-ços vazios e ornatos indecifráveis. Os proclamadores dessa nova mística se apoiam no inútil e revelam sua beleza estática e interespacial. Para o homem urbano, produto da cidade nua e crua, a beleza é necessária até o ponto em que possa ser consumida e que ele possa participar do banquete. A arte ja-mais deverá (ou poderá) se desligar de sua abrangência pública, ainda mais hoje quando o aspecto humano de um ateliê é menos importante do que o aspecto desumano do mundo industrial.

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Archidy Picado

Archidy desde cedo rompeu com a norma vigente da arte acadêmica, a primei-ra fronteira de luta dos artistas da nossa pequena província. No Rio de Janeiro, onde trabalhava na Panair do Brasil, frequentou os cursos de Ivan Serpa e Faiga Ostrower no Museu de Arte Moderna e conheceu artistas importantes como Alu-ísio Carvão e Djanira, e as novas realidades que despontavam no campo das artes plásticas. De volta a João Pessoa ele instalou seu ateliê na casa de seu pai, o Tenen-te Picado, oficial músico da Polícia Militar, em Jaguaribe, vizinha à de Dr. Pedro Mattos, pai do escultor Breno Mattos, onde ele também tinha seu ateliê-oficina. O ateliê de Archidy era frequentado por Antônio Cândido, que depois se tornou diretor de arte das agências de publicidade pioneiras. Eu frequentava o ateliê de Archidy ao lado de Marconi Beniz, um interessante pintor geométrico que caiu no esquecimento, e também outros jovens aspirantes a artistas em busca de saber, e também com gente de letras, como John Eudes Brownsville, Milcíades Leal, e os poetas Vanildo de Brito e Rejane Sobreira.

Ninguém foi tão cobrado na João Pessoa de sua época por suas propostas pioneiras e suas interferências no olhar complacente da classe dominante do que o pintor e poeta Archidy Picado. Pouco conheceu das glórias devidas a sua arte. Pouco ou nada foi escrito e pesquisado sobre sua obra pictórica ou literária, até porque ele não prestigiava o mercado formal da arte. Sua obra, pequena diante da sua ansie-dade de criar, pertence hoje a seus familiares e seus amigos fiéis.

Ninguém, porém, mais generoso do que ele. Acolheu na casa de seus pais, no bair-ro de Jaguaribe, onde tinha seu ateliê, uma geração de artistas ainda adolescentes, ávidos por conhecer suas ideias e suas informações sobre as idas e vindas ao Rio de Janeiro para frequentar os cursos livres do Museu de Arte Moderna, foco da atualidade da arte brasileira na década de 50. No MAM, seus orientadores foram Ivan Serpa, Aluísio Carvão e Faiga Ostrower.

Um dos poucos reconhecimentos públicos ao seu trabalho foi a homenagem que lhe foi prestada postumamente no II Festival Nacional de Arte promovido pela Fundação Espaço Cultural da Paraíba através da Coordenação de Artes Plásticas, gerenciada pelo artista multimídia Diógenes Chaves, em 1998.

Constou a homenagem de uma exposição e uma mesa de debates, procurando resgatar o período entre os anos 60 e 90 em que os artistas de João Pessoa introje-taram a modernidade e a pós-modernidade, e se destacaram nacionalmente como um centro de produção cultural, condição esta que mantêm até hoje, mesmo que

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para isso tenham que nadar contra a correnteza do poder e das tradições menos progressistas e mais acadêmicas.

Abrir este baú de ouro em que se transformou a vida e a obra de Archidy foi como mobilizar as atenções do público para uma geração de artistas e pensadores respon-sáveis pela introdução no cotidiano, da pintura e do texto modernos e vanguardis-tas, das discussões entre forma e conteúdo oriundas dos movimentos concreto e neoconcreto, da poesia visual como o poema processo, do teatro do absurdo e ou-tras vertentes do teatro atual, da questão do regionalismo versus universalismo, da consciência ecológica, da cultura de massa, da crítica de arte, da produção do filme Aruanda e o Cinema Novo, dos conceitos de urbanismo e arquitetura como conhe-cemos hoje, da preservação da qualidade da vida, do rock and roll, das políticas cul-turais e de tantas outras coisas que propiciaram a visão do mundo que temos agora.

Ele não foi, certamente, o pioneiro da modernidade na Paraíba, mas foi quem des-pertou nos artistas plásticos de quarenta anos atrás, assim como no ambiente uni-versitário da época, as esperanças numa cultura e numa arte libertas das amarras acadêmicas que lhe condicionavam como simples apêndices da sociedade, e não permitiam sua expressão verdadeira, como toda produção artística precisa ser.

Archidy escreveu em João Pessoa as primeiras considerações teóricas de um pintor sobre a arte moderna. O texto seguinte é um manifesto que, embora contestável em suas posições deterministas, revela o espírito polêmico que conduzia a discussão teórica da época.

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Arte e devenirArchidy Picado

A tentativa de expor conceitos fundamentais de um manifesto revolucioná-rio artístico não poderá absolutamente implicar em leis técnicas gerais. Será sempre uma tentativa pessoal. Quando Mondrian estabeleceu também em manifesto um propósito de in-teira renovação, ele tratava de seu próprio estilo sem querer adeptos. E foi assim que o concretismo só existiu verdadeiramente em seus quadros, li-nhas retas e retângulos bem equilibrados em jogos de cores sóbrias. Os que vieram depois dele como continuadores da escola por ele criada nada mais fizeram exceto repeti-lo. Portanto, um manifesto lançado justamente numa crise como a que passamos tem um certo caráter individual. Pode também coadunar-se com os pontos de vista de outros artistas. Mas pode apenas refletir-se unicamente em nós que o estabelecemos. Achamos pois que a arte plástica não deve ser construída impassivelmente. Fria de objetivos naturais. Como a concha marinha faz lembrar o mar, assim também a arte, mesmo abstrata, deverá sugerir algo concreto. Ela não pode mais continuar a ser casualmente abstrata. Será planejada e então exigirá mais técnica e não somente isso, mas sobretudo a expressão. Com a expres-são, em particular, a pintura deixaria de ser complementar à arquitetura. Decoração seria outra arte. Poderia também fazer parte integrante da ar-quitetura. Por outro lado haveria mais acessibilidade da parte do povo em relação ao chamado hermetismo significativo da arte moderna. Esta seria melhor compartilhada por um público mais numeroso. Haveria uma ponte de comunicação entre o artista e o esteta que o admira Um quadro, por exemplo, só seria considerado uma obra de arte se comu-nicasse uma mensagem emotiva ao expectador. Uma mensagem de bele-za universal. Este êxito artístico iria depender ou do talento de um ou da sensibilidade do outro. Arte verdadeira tem de falar aos povos de todas as raças. Na pré-história, dentro das cavernas paleolíticas, ainda se encontram desenhos expressivos de grandes artistas, os porta-vozes para o futuro. A pintura volta então a ser documentária. Ela deve dizer alguma coisa digna de ser revelada.

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MORITURA NAVE

Vanildo BritoPara Archidy Picado, in memoriam

Das velas recolhidas, o navioestá cansado e arqueja lentoSabe que morre. E nem por issosofrede saudades. Ainda espera e sonha.A chegada da morte acresce-lhe aAltivez.Eis que o velho navio vai morrersolene como o sol da tarde. Arqueja lento o alígero navio.Vai sepultar a derradeira âncora.Muita névoa pesou sobre os seusaltos mastros,muitos caminhos no seu negrocasco.Agora sente o amargo sal do tempono imoto mar dos derradeirosastros. Nos céus, a Grande Ursa já correumais de cem vezes a estrelada rota;nos mares, os navios desarvoraesquecido de cais e de navegos.

Não está naufragando. Nem sequeraderna. Morre apenas, carcomidolentamente, marcas de marno seu corpo aderidas como fundossinais de muitas mortes e de muitasvidas.Nessa agonia não há vozesmarinheirasou sussurro do agudogume das quilhas transportando aságuasNão há lamentos nem salgadaslágrimassobre o seu corpo imenso e mudo.Arqueja lento o alígero navio.

Somente a pena de um poemaou a dourada pátinade uma pintura antigahá de salvar este barco sofrido,fixando seu rosto, seu ritmo,e a luz de seu ardente coração.Nem novo nem velho será,mas imagem perenenos ecos das memórias repetidas.

Já não morre o velho navio.

Tambaú, março de i985

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A Geração 59

Ponto de Cem Réis

João Pessoa era uma cidade simples e linda, com seu Ponto de Cem Réis não mais intacto, já contaminado pelo art deco talvez trazido pela revolução de 30, mas ain-da sem o buraco que o descaracterizou definitivamente. De “art deco” ele tinha dois abrigos em forma de rins, muito belos, forrados de vidros translúcidos. Juarez Batista um dia marcou um encontro comigo no café de João Madruga, que ficava num dos quiosques, dizendo: “Vamos nos encontrar no Rim de Madruga”. Lá, além de café, cachorro quente e bolo, se tomava hidrolitol, que era água gaseificada com sais de lítio (assim era vendido) retirada gelada do balcão por meio de um sifão. Madruga também era dono da cantina do Liceu Paraibano, amigo dos alunos que lá matavam a braba fome adolescente. O Ponto de Cem Réis era todo projetado na medida certa, um dos mais belos lar-gos urbanos de que tenho memória. Lá tudo se passava, todos passavam. Balduino Lélis já era envolvido com o nosso passado arcaico e cavalheiresco, Carlos Azevedo com suas sobrancelhas arqueadas sempre em sinal de alerta, os poetas da Geração 59, os pintores Ivan Freitas e José Lyra. No meio de todos, sempre à tarde, nas imediações da Sorveteria Canadá, passava para conversar o Professor Leon Clerot. Era o verdadeiro centro da cidade, lá havia uma praça de carros de aluguel, primei-ra versão dos táxis, na frente do relógio, e o Paraíba Palace Hotel, seu mais impor-tante edifício, que chamávamos de Paraíba Parece Hotel, que teve por muito tempo como porteiro o escritor Políbio Alves. Nele havia uma boate com uma varanda olhando para a Lagoa onde se dançava nos fins de semana com música de Long Plays tocados na radiola. Dez anos depois foi aberto o Hawaí Bar, uma toca fria e escura, abrigo dos bitiniques desesperados que, como seu dono Ronaldo Miner-vino, se escondiam vampirescamente do sol. Na calçada, coberta e com colunata à espanhola, do hotel ficava a Sorveteria Canadá, que não tinha nenhuma folha de tília vermelha como na bandeira daquele país, mas uma pintura de um casal de mexicanos dançando na parede. Todas as tardes a juventude dourada comparecia,

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foi lá que minha irmã Risoleta me apresentou a Ivan Freitas que, é claro, tomava seu conhaque no fim da tarde. Do lado da Duque de Caxias estava o Café Alvear, com sua deliciosa cartola e seus passantes que se viam estando do lado de dentro, às vezes carregando guarda-chuvas, o que inspirou Jomar a escrever no poema “Bistrô”: “... lá vão os homens, lá vão / cada um carrega a sua / particular solidão”. No edifício da esquina da Duque de Caxias com a Guedes Pereira funcionava a sede do IPASE, e do outro lado da rua, um pouco mais abaixo, para quem subia a rua ficava o Bar Querubim mas para quem descia era o Querubim Bar. O térreo do IPASE era um espaço expositivo privilegiado que sempre era cedido para exposi-ções importantes. Nele aconteceu o 1º Salão de Poesia, e uma exposição de gravu-ras polonesas trazidas através de intercâmbio que meu pai, diretor de cultura do Estado, estabeleceu com a Embaixada da Polônia, coisa só possível nos anos antes de 64. Lembro de Adalberto Barreto na minha casa, conhecendo as gravuras para uma matéria na ”A União”, pasmo diante das obras de Karel Capek e Alina Krosto-wska, uma pequena xilo e uma água forte de folha inteira, fantástica. Na outra esquina ficava o bar Duas Américas onde eu e Breno íamos tomar cerveja com ovos cozidos, o tira-gosto daqueles tempos que, aliás, ainda se usa em Paris, onde se vê no balcão de alguns bares espirais de aço inox ornadas de argolas onde se prendem os ovos, como árvores de Natal.

O Governador Pedro Gondim visitando a exposição de

gravadores modernos poloneses acompanhado do Prof Raul

Córdula e do Prof Pedro Nicodemos no térreo do IPASE.

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De muitos encontros com amigos no Ponto de Cem R éis me lembro de um com Vanildo Brito. Ele vinha com uma valise na mão, parou no meio da rua onde rara-mente passava carro, respirou fundo como se fosse um boi, com o nariz pra cima, e quando me viu disse: “Pária, que bom chegar a Tebas”. Perguntei: “E de onde você vem?” “De Babilônia”, respondeu Vanildo. Do outro lado o Cine Plaza das matinais do domingo, da frente do qual o bonde saía.

Lia-se na época a revista “Senhor” e o Caderno B do Jornal do Brasil, com a capa dedicada às artes plásticas, onde o porta maranhense Ferreira Gullar escrevia crí-tica de arte, e lá lançou seu famoso texto Teoria do Não Objeto, em pleno apogeu da discussão entre concretismo e neoconcretismo, o que veio a negar depois por razões políticas. Entre os artistas mais discutidos entre o Rio e São Paulo, núcleo do poder e da cultura, estavam Lígia Clark, Lígia Pape, Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Abraham Palatinik, Benjamim Silva, Antônio Bandeira, Aldemir Martins, Manabu

Os Párias, desenho de Raul Córdula 1960.

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Mabe, Volpi e os chamados “pintores primitivos” cujas maiores expressões eram Djanira e Heitor dos Prazeres. Na vizinha Recife os artistas importantes eram, além dos que faziam o Ateliê coletivo, Francisco Brennand, Reynaldo Fonseca, Adão Pinheiro, Anchises Azevedo, Montez Magno e Hélio Feijó; em Fortaleza Antonio Bandeira e Aldemir Martins (ambos já migrados para o Rio e São Paulo), Sérvulo Esmeraldo (em Paris), Zenon Barreto e Nearco; em Natal, Newton Navarro e Do-rian Grey, e em Maceió, Pierre Chalita. Na Secretaria de Educação e Cultura, a DDC – Divisão de Documentação e Cultu-ra cuidava dos assuntos inerentes à atuação dos artistas, de todas as áreas. A DDC lançou a Coleção Paraibana, a Feira de Livros na Praça João Pessoa, as Bibliotecas Populares nos bairros do Roger e de Jaguaribe, a Semana de Teatro da Paraíba, os Salões de Poesia, o Prêmio Augusto dos Anjos e o Salão de Artes Plásticas do Estado. A DDC apoiou o II Congresso Nacional de História e Crítica Literária coordenado por Virgínius da Gama e Mello (o I Congresso fora realizado em Bra-sília e contou com a presença de Pablo Neruda, já o que foi realizado aqui contou com a presença de Heitor Cony, Eneida, Leo Gilson Ribeiro, Ledo Ivo, e poetas e escritores de vários Estados). A DDC patrocinou a produção do tetatro local e a apresentação do teatro vindo de outros estados como o famoso monólogo de Pedro Bloch “As mãos de Eurídice” na brilhante interpretação de Rodolfo Mayer. Para tanto foi criado o Plano de Ação Cultural do Governador Pedro Gondim, gerenciado por meu pai que era também o diretor da DDC. Daquelas ações nas-ceram movimentos básicos para a construção do ambiente propício à discussão e produção das artes, como a Geração 59, que estava editando sua Antologia através da Coleção Paraibana. O primeiro Salão de Poesia (foram realizados dois, em 1959 e 1961), em homenagem ao poeta Augusto dos Anjos, foi o evento que propiciou meu contato com a Geração 59. A edição da antologia que marcou aquele grupo não foi ação isolada, meu pai lan-çou também o Boletim de Cultura, tablóide destinado a editar as novas ideias es-téticas, teóricas e críticas. A Geração 59, que mobilizou a vanguarda da época, tinha seu núcleo formado pelos 14 poetas editados na sua antologia: Celso Almir Japiassu de Lins Falcão, Ge-raldo Medeiros, Clemente Rosas Ribeiro, João Ramiro Melo, Jomar Morais Souto, José Bezerra Cavalcante, José Carlos Cabral, Jurandy Moura, Liana de Barros Mes-quita, Luiz Correia, Marcos Aprígio de Sá, Ronaldo José da Cunha Lima, Tarcísio Meira Cezar e Vanildo Ribeiro de Lyra Brito.

Vanildo Brito era o líder natural do grupo, o teórico e filosófico, responsável por

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articulações junto às instituições culturais da época, como a Biblioteca Pública, di-rigida pelo bacharel Geraldo Emílio Porto, o Teatro Santa Roza nas gestões dos di-retores Walfredo Rodrigues e Hélio Pedrosa. Nessa época a Faculdade de Filosofia da UFPB contava com professores como Milton Paiva e José Pedro Nicodemos, e com o escritor e crítico literário Virgínius da Gama e Mello no seu quadro docente. O jornal A UNIÃO publicou semanalmente, por mais de um ano, o suplemento literário “A UNIÃO nas Letras e nas Artes”, sob a editoria de Vanildo Brito. Através da DDC também foram editados os livros “A Construção dos Mitos” e “A Serpente Alada”, de Vanildo Brito. O Teatro Santa Roza, através do esforço do Grupo de Teatro Universitário, encenou as peças “A Serpente Alada”, “Andira”

Carlos Azevedo, Linduarte Noronha, Vanildo Brito e Ítalo Dália.

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e “Rebelião dos Abandonados”, de Vanildo Brito. José Bezerra Cavalcante escreveu, mas não editou a peça “A República”. Jomar Souto, porém, editou por conta própria o seu livro “Pedra de Espera”, Prêmio Augusto dos Anjos de Poesia.

Em 1959 a DDC realizou o 1º Salão de Poesia. O Salão era apresentado em forma de exposição dos poemas concorrentes ilustrados por mim e Wandick Figueira, desenhista precocemente falecido. Luiz Correia foi o poeta premiado e, estando ausente, Clemente Rosas recebeu o prêmio. Os dois participavam da Geração 59. Acompanhado do pintor Archidy Picado e do escultor Breno Mattos, naturalmen-te passei a fazer parte do Grupo. A Geração 59 tornou-se eclética com a partici-pação de artistas de outras categorias de arte como a nossa, do teatro, da música e também da ciência. O “Clube de Poesia”, um dos braços da Geração 59, foi o fórum de debates, o grê-mio que reunia seus poetas para a discussão teórica. Existiu desde janeiro de 1959 a 6 de novembro de 1960. Neste período seus associados realizaram doze sessões nas suas sedes improvisadas, na Rua 13 de maio, na 648, Rua Desembargador Souto Maior, Rua Camilo de Holanda, 499 e Rua Irineu Jóffili, 221. Os poetas Clemente Rosas Ribeiro e Vanildo de Brito foram designados respectivamente para os cargos de secretário e chefe de publicidade, sendo os seguintes os demais membros: João Ramiro de Mello, Jomar Morais de Souto, Luiz Correia, Liana de Barros Mesquita, Celso Almir, Ronaldo Cunha Lima, José Bezerra Cavalcante, Geraldo Medeiros e Tarcísio Meira César. Coincide com este momento no Nordeste o surgimento de associações e grupos também interessados na modernidade, e numa produção de arte com linguagem dirigida às questões sociais. É o caso do MCP – Movimento de Cultura Popular que existiu no Recife na primeira Prefeitura de Miguel Arraes, do TPN – Teatro Popular do Nordeste –, movimento liderado por Hermilo Borba Filho e Aria-no Suassuna, que possuía sua própria casa de espetáculo, da CEPLAR em João Pessoa, a Escola de Artes Plásticas Tomaz Santa Rosa que funcionou nos porões do Theatro Santa Roza em João Pessoa, e dos grupos de teatro amador como o Teatro do Estudante da Paraíba, o Teatro Universitário e o Teatro Popular de Arte, entre outros. Nessa mesma época, interligados por amizade e pelos mesmos interesses criativos, os jovens cineastas paraibanos Linduarte Noronha, João Ramiro Melo e Vladimir Carvalho trabalhavam na produção de “Aruanda”, filme que, segundo declarou Glauber Rocha, teria iniciado o Cinema Novo, e a partir de então desenvolveram na imprensa, através de uma Associação de Críticos Cinematográficos, um intenso

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trabalho de divulgação tendo à frente jornalistas como Wills Leal, Paulo Mello, Martinho Moreira Franco, entre outros.

Além dos 14 poetas, muitos outros artistas e intelectuais foram se agregando ao movimento ou ligaram-se a ele de alguma maneira, principalmente por admira-ção e respeito. Entre eles estavam os poetas e escritores Ademar de Barros, Carlos Moura, Eulajose Dias de Araújo, Jomard Muniz de Brito, Luiz Augusto Crispim, Luiz Carlos Cavalcanti, Maria José Limeira, Marisa Barros, Otávio Augusto Sitô-nio Pinto e Rejane Sobreira, os artistas plásticos Adaurí Camilo (também baila-rino), Celene Sitônio, Chico Pereira, Elcir Dias, Hermano José, Ivan Freitas (que conduziu com Vanildo o Clube do Silêncio), Leonardo Leal, Marlene Almeida, Pontes da Silva; os músicos Arlindo Teixeira, Hugo Osias, Pedro Santos; e gente de teatro como Paulo Pontes, Elpídio Navarro, Hugo Caldas, Elzo Franca, Lindau-ra Pedrosa, Lucy Camelo, Marcelo Borges, Raimundo Nonato Batista, Ruy Eloy e Zezita Mattos; professores da Universidade como Ângela Bezerra de Castro, Arael da Costa, Paulo Pires Braga, Serafim do Rego Filho; jornalista e cineasta Ipojuca Pontes; críticos literários Ítalo Dália, Waldemar Duarte; e os médicos Francisco Faria, Hugo Abath, Sóstenes Kerbrie – jovem médico também conhecido como Conde de Ritalina, e Wamberto de Miranda Henriques, que como psiquiatra era o guardião de nossa alma.

Retrato de Rejane Sobreira, desenho de Raul Córdula 1960.

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A Geração 59 foi responsável por polêmicas que agitaram o meio cultural no iní-cio da década de 60. São famosas as guerras de opinião entre o grupo e os seus eventuais opositores, como Virgínius da Gama e Mello, Alfredo Pessoa de Lima e Otacílio Cartaxo. Naturalmente foram surgindo novos poetas e novos movimentos, como Grupo Sanhauá, integrado por Anco Márcio, Marcos dos Anjos, Marcus Tavares, Marcus Vinícius e Sérgio Castro Pinto, responsáveis pelo surgimento de edições mimeo-grafadas, e a Edições Caravela, integrada por Archidy Picado, Jurandy Moura e o escritor e teatrólogo natalense Geraldo Carvalho. Em 1989 propus à Fundação Cultural de João Pessoa, que estava presidida pelo amigo Carlos Aranha, a realização de uma exposição iconográfica sobre os trinta anos da Geração 59. A exposição foi montada no espaço interno da antiga Faculda-de de Direito, na Praça João Pessoa, palco e espaço expositivo dos acontecimentos culturais nos anos sessenta. As melhores consequências desse evento foram as en-trevistas dadas por Vanildo Brito e Clemente Rosas, que publico a seguir. “Nós éramos o mundo” Entrevista de Vanildo Brito a Ângela Bezerra de Castro em “O Momento” de 28 de dezembro de 1989, por ocasião da abertura da exposição Geração 59 – 30 Anos, no claustro da Faculdade de Direito da UFPB.

Você foi idealizador e mentor da Geração 59. Teatrólogo e Crítico. Até que ponto a Geração 59 reflete suas convicções, sua personalidade, seu modo de ser? Honestamente não sei até que ponto as minhas ideias ou mesmo meu modo de ser se refletiram na Geração 59. Às vezes chego a pensar que até certo ponto formalizei teoricamente os anseios e tendências artístico-literárias do Grupo. No fundo éramos todos artistas que, tomando consciência de sua situação dentro do fazer literário paraibano, procuravam uma ideologia estática. É evidente que também sei que a introdução-manifesto da antolo-gia poética homônima e outros escritos de minha autoria publicados em A União nas Letras e nas Artes mostram as influências teóricas que experi-mentei e que certamente tiveram alguma influência no Grupo, desde o Sur-realismo até experimentos literários com o suprematismo, permeados com um nietzscheismo mais literário e diletante do que tecnicamente filosófico.

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Isto é o que se pode constatar na documentação jornalística. Mas é preciso ser levado em conta que uma atividade coletiva, embora muitas vezes possa ser iniciada com uma ideia consciente ou com várias delas, ou mesmo com uma influência pessoal, termina por assumir uma dinâmica própria. Isso também ocorreu na Geração 59. Com pouco mais de dois anos de publica-ção da Antologia, cada artista preferiu trilhar o seu próprio caminho. O Clube da Poesia de João Pessoa era uma espécie de núcleo gerador de ideias que alimentavam a Geração 59. Porque o limite máximo de 28 anos? É preciso que se diga agora – para ficar bem claro – que o Clube de Poesia de João Pessoa jamais se organizou formalmente, e nem mesmo informal-mente. Nunca passou de uma ficção jornalística... Realmente constituiu um núcleo dinamizador das ideias que alimentaram a Geração 59. Mas era ape-nas o título de uma coluna de jornal literário em que conceitos e debates eram concebidos e até imaginados, no sentido de manter vívida a coesão do Movimento. Quanto ao limite máximo de 28 anos para o ingresso no Clube – que nunca existiu – seria um emblema cronológico da nova geração, talvez um cabalístico “quarto septenário”. O Clube do Silêncio? Era mesmo uma necessidade ou apenas uma postu-ra exótica, mistificação para prestígio do intelectual? Talvez o Clube do Silêncio fosse uma necessidade de uma postura exótica. Se prestigiou o intelectual, não sei. Só posso dizer que não foi u’a mistifica-ção. Foi tão espontâneo como a nossa adolescência, que com ele se confun-dia às vezes. Embora aparentemente nada tivesse a ver com a Geração 59, o Clube do Silêncio é de certa forma seu nascedouro legítimo. Um nome mágico sob o qual se agrupavam os surrealistas paraibanos, já em 1957. Em 59 você considerava o concretismo “um verdadeiro aborto”. E acres-centava: “Morreu antes de vir a termo”. Agora, trinta anos depois, qual seu julgamento? O que me repugnava no Concretismo Literário (não obviamente no Con-cretismo Plástico) era a transposição ilegítima de valores e categorias das artes plásticas para as artes verbais. Improvisação irresponsável de um pe-queno grupo que detinha o então Suplemento Literário do Jornal do Brasil e que teimava representar a chamada “vanguarda “ na literatura. Este ainda é o meu julgamento, após trinta anos.O finado Concretismo literário não pas-

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sou de uma encenação bufa de pedanteria irresponsável, onde se confundiu novidade com originalidade e mudança com evolução.

Vocês se autodenominavam de moderna e novíssima poesia paraibana. O que vocês traziam de moderno ou de novo que a poesia brasileira não conhecesse? “Moderna ou novíssima poesia paraibana” tinha uma conotação local.Por outro lado, não nos importava o novo pelo novo. Realmente nada trazía-mos de novo ou de moderno que a poesia brasileira (ou portuguesa) já não conhecesse. Sofremos influências várias, desde Schmidt, Jorge de Lima, (do Invenção de Orfeu) aos poetas surrealistas portugueses. Mas nos considerá-vamos modernos na Paraíba dos anos cinquenta, onde o soneto parnasiano ainda imperava... Num primeiro instante, você como porta-voz da Geração 59 defende a arte como captação do belo, a arte que expressa o não-material. Num segundo instante, anuncia uma preocupação telúrica, uma retomada do regionalismo sem aquilo que você denominou de “chauvinismo da 1ª fase”. Especificamente, a quem se dirige essa crítica? Buscávamos uma ideologia estética que tanto nos refletisse como nos norte-asse. É bem verdade que, no início do Movimento, adaptamos uma estética platonizante, idealista; depois vieram as influências oriundas de Nietzsche do Zarathustra. Pensei uma divinização da Terra como categoria mística, sacralizada à maneira do Grão-Fetiche de Augusto Conte. Efetivamente imaginava ser o fetichismo mágico o fundamento último do poético, em que tudo, como nas estórias infantis e nas fábulas, vive e quer e sente e fala. Acontece que essas ideias acabaram inspirando, inesperadamente, um novo regionalismo. A crítica que dirigíamos ao “regionalismo da 1ª fase” era am-pla e genérica, e não visava nenhum romancista ou poeta em particular. Continuo achando-o “chauvinista”, convencional na sua desajeitada busca de uma identidade inexistente. O suprematismo foi uma tentativa de concorrer com o concretismo? De certa maneira, tentávamos por a nu os erros do Concretismo literário. O Suprematismo, como se sabe, foi um dos muitos direcionamentos do Abstracionismo Geométrico (ou formal)concebido pelo pintor russo Ka-simir Malevitch. A nossa intenção, ao propor um Suprematismo Literário,

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Poema de Vanildo Brito ilustrado por Raul Córdula, editado em “A União nas Letras e nas Artes”.

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foi transpor as categorias de elementaridade formal e cromática da extrema simplicidade da pintura suprematista para a arte poética, mas sem copiar- lhes a especialidade, categoria específica das artes plásticas. Assim a poesia suprematista seria essencialmente uma poesia de substantivos, com nada de verbo e adjetivo, de metáforas diretas, rápidas, despidas de qualquer re-tórica. Após a encenação de “A Serpente Alada” afirma-se em “A União nas le-tras e nas artes” que “com Vanildo Brito renasce o teatro paraibano”. E o “Auto da Compadecida”, sucesso nacional desde1957? Obscurecido? Nos anos cinquenta as peças teatrais aqui montadas eram de origem euro-peia ou norte americanas. Lembro-me da montagem de João Gabriel Bork-man, de Ibsen, pelo nosso Teatro de Estudantes,e que fez grande sucesso. Textos de Tennessee Williams eram também frequentemente encenados.Sabíamos, é claro, da existência de Ariano Suassuna, que sempre foi tido como pernambucano. É necessário dizer que a peça de Ariano que aqui foi montada nos anos cinquenta foi a universal “Cantam as Harpas do Sião”, anterior à conversão do teatrólogo ao credo regionalista. “Já estamos vivendo o momento desejado previsto por Nietzsche”. É uma afirmativa sua muitas vezes reiterada. Em que consistia este momento e quem o estava vivendo? O mundo ou a Geração 59? Nietzsche representava o questionamento de todos os mitos e todas as verdades. E, porque não dizê-lo – o questionamento do próprio questio-namento e até da dúvida. Daí certamente a sua aceitação pela Geração 59, mais como símbolo do que como pensador sistemático. Um anúncio, nunca a certeza de um sistema acabado. O culto de Nietzsche, através do Zara-thustra, chegou a constituir- se em um ritualismo leigo que a Geração 59 adaptou. Lembro-me das leituras coletivas e entusiásticas do Zarathustra, ao pôr-do-sol, à maneira de um coro trágico. O tema do eterno retorno era exposto e discutido coletivamente, como um sucedâneo ateu da imortali-dade da alma. Daí a nossa afirmativa de que era aquele momento anelado por Nietzsche – suas ideias discutidas e vividas pela juventude longe de sua Alemanha natal. E quanto ao mundo? Nós éramos o mundo. A Geração 59 se referia à Paraíba como “medieval” e ao sul do país como “grupelhos pseudo-literários”. Não era uma excessiva e perigosa auto su-ficiência que chegava a perturbar o senso das proporções?

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A Geração 59 não podia ter senso de proporções. Foi um brado român-tico bafejado de anti-intelectualismo surrealista e de revolta nietzscheana. Mas não creio que exagerássemos. E essa “perigosa auto suficiência era ale-gremente assumida. No viver “perigosamente” do herói nietzscheano. So-nhávamos reinventar o mundo literário da Paraíba. No fundo um sonho autonomista. Dizer não à hegemonia cultural do Sudeste do País, que pe-riodicamente impunha modismos transitórios, falsas novidades que eram somente pastiches dos vanguardismos europeus dos anos vinte. Poder-se-ia objectar que também adaptamos o Surrealismo. Mas ocorre que o Surrealis-mo, dessemelhantemente do Cubismo, Tachismo, do Dadaísmo e de outros ismos modernosos, constituía uma retomada contemporânea da longínqua tradição da arte fantástica, fundamentalmente enraizada na cultura ociden-tal. Porventura o alemão Bosch, o inglês Blake e os gongóricos ibéricos não foram surrealistas “avant la lettre? Existe uma poesia paraibana ou uma poesia escrita na Paraíba, ou por paraibanos? Não acredito em uma poesia paraibana, como não acredito numa poesia pa-raense, ou pernambucana. A literatura é caracterizada pelo idioma, a nossa língua comum é a portuguesa. Camões é tão nosso como Vinícius de Mo-rais ou Raul de Leoni; João de Deus, Cecília Meireles e Palmira Wanderley irmanam-se na mesma chama poética; assim Augusto dos Anjos e Antero de Quental. Falar em poesia paraibana é laborar num equívoco. Existe po-esia escrita na Paraíba, com forte representatividade na literatura de língua portuguesa. Isso já nos conforta.

Entrevista com Clemente Rosas

Publicada no Caderno 2 do “Correio da Paraíba”em 17 de março de 1990

Como foi para você o reencontro com a Geração 59, através da exposição comemorativa dos 30 anos deste movimento? Uma emoção e uma alegria muito grande. É gratificante saber que se lem-bram de nós, e que o que fizemos teve alguma importância para a vida cultural da Paraíba. Eu me recordo que, há doze anos, Otávio Sitônio pro-pôs alguma coisa parecida, a pretexto do que ele chamou “a maioridade da Geração 59”. À parte um certo artificialismo da data – dezoito anos não é

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propriamente um jubileu – o momento era bom. José Bezerra Cavalcante, o nosso Zé Garrote, havia voltado da Europa e visitava a velha província, o poeta Jurandy Moura dirigia o renascido Correio das Artes e o meu ami-go Vanildo Brito estava mais disposto a circular e a conviver do que hoje. Estivemos juntos, como também José Cabral e Raul Córdula que, segundo soube, provocou esta iniciativa de agora. Mas, naquele tempo, a coisa não vingou. Hoje, a lista dos desaparecidos aumentou – além de Marcos Aprígio, o primeiro a morrer, José Cabral, o próprio Jurandy e Tarcísio Meira César já não estão entre nós. E os outros estão dispersos, geográfica e espiritu-almente – o que é um pouco triste. Só mantenho convivência, mesmo à distância, com o Celso Japiassu, diretor da Denison Propaganda, no Rio, e o José Bezerra, executivo de empresa em São Paulo, dois amigos fraternos, cuja trajetória intelectual foi parecida com a minha. Assim, acabei vendo a exposição sozinho, o que foi uma sombra na minha alegria. De qualquer modo, fico imensamente grato a vocês, organizadores da exposição, cujo trabalho quero louvar, e cuja generosidade me comoveu. Naquela época você era um jovem de 19/20 anos. Qual a importância de haver integrado a Geração 59? Na verdade, eu era ainda mais garoto, quando entrei em contato com João Ramiro Mello, Celso Almir Japiassu e Orley Mesquita, no Liceu Paraibano: tinha 15 anos. E, desde os doze, “cometia” alguns sonetos e poemas de fei-ção parnasiana ou romântica, estimulado pela minha mãe. Ela, por sua vez, gostava de escrever, e escrevia bem: passou muitas horas de sua juventude na biblioteca de meu avô, que promovia tertúlias para os jovens intelectuais do “Grupo dos Novos”, liderados por Perilo d’Oliveira, aí pelos anos vinte ou trinta. Como vê, havia uma tradição de beletrismo na família... Aqueles amigos me “converteram” ao modernismo, falando de Bandeira, Drum-mond, Frederico Schmidt, quando eu só conhecia Bilac e Castro Alves. E acabei aderindo e publicando meu primeiro “poema moderno” em 1956, no Correio das Artes, sob a direção de Celso Novaes. Outros se seguiram, aos dezesseis, dezessete anos. A nossa antologia deveria ter saído em 1958, a im-pressão é que atrasou um ano, e fixou a marca 59. Por aí você pode imaginar a importância do convívio. Foi a a porta de entrada não só para a atividade intelectual mais criativa, menos “comportada”, mas também para a existên-cia aberta, de rebeldia, de questionamento das convenções, de procura de novos caminhos. Posso dizer que minha “aventura” intelectual, política e profissional começou ali.

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Sua produção era bastante diferenciada: poesia, narrativa e ensaio. Você ainda assinaria hoje o que escreveu ou rejeita esta fase, como alguns es-critores que publicaram quando muito jovens?

Escrevi poucos poemas, de vinte a trinta, no máximo, dos quais eu salvaria uma meia dúzia. Com aquela idade, é difícil ter maturidade verbal, dominar uma técnica própria. Hoje, posso identificar as influências, começando por Bandeira e Schmidt e terminando em João Cabral de Melo Neto. Além dis-so, alguns dos primeiros trabalhos, até razoáveis, estavam impregnados de espiritualismo, posição que logo abandonei.

Das crônicas, gênero onde eu me sentia muito à vontade, salvaria uma ou duas. No que se refere à ficção, escrevi apenas dois contos. Um deles ainda merece ser lido. Quanto aos artigos críticos e ensaios, já da última fase, e onde me fixei depois, acho que, embora “verdes”, podem escapar da cesta de papéis. Mas ressalvo que ninguém é bom juiz em causa própria. Vocês po-dem avaliar melhor, com a devida frieza profissional. E nos cabe acatar, com humildade, qualquer veredicto. Na idade em que estamos agora, a vaidade literária seria uma coisa ridícula. Como foi possível a conciliação entre as suas convicções ideológicas, en-tre os seus engajamentos políticos e o “espírito” da Geração 59? As coisas não aconteceram exatamente no mesmo tempo. A Geração 59, a que se seguiu a fundação do Clube de Poesia de João Pessoa – CPJP foi o primeiro momento de rebeldia, de fundo existencialista. Era a rejeição

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das convenções, dos dogmas religiosos, das regras repressivas da sociedade provinciana da época. Daí a exposição surrealista, as “neuras” para escan-dalizar os burgueses, as “rondas líricas” para beber, conversar e “puxar an-gústias”, a proclamação do “princípio da irresponsabilidade absoluta”, mais em teoria que na prática, devo reconhecer. Vivíamos o momento presente voltados para nós mesmos. Como bem disse Vanildo, nós éramos o mun-do. E procurávamos a nossa redenção. Mas houve o momento em que o vírus da conscientização social e a perspectiva política nos contagiou. Para mim, o processo foi deflagrado por um artigo de Malaquias Batista, que respeito e admiro até hoje, criticando a alienação dos poetas modernos e comparando-os a tripulantes de imaginários sputniks, girando em órbitas, longe do mundo real. Sentimos o impacto e fizemos a defesa do movimen-to, na base da condenação à arte dirigida, o que sempre foi correto. Mas, quase inconscientemente, a nossa poesia e os nossos contos foram se tor-nando mais “telúricos” e mais inseridos no contexto cultural nordestino. Nos primeiros anos sessenta, era quase impossível, no meio universitário, resistir ao engajamento. O apelo para a ação política era muito forte. E a literatura era apenas um débil instrumento. No meu caso, acabei passando à crônica política, no Suplemento “Paraíba Universitária”, depois à eleição para o Diretório Acadêmico, e acabei indicado para a UNE e entrando na Seção Juvenil do PCB. José Bezerra e Geraldo Medeiros tomaram caminhos semelhantes, e quase todos findaram mais ou menos comprometidos com as causas sociais (Vanildo foi uma das honrosas exceções). Passamos, assim, a procurar a nossa redenção através da redenção dos nossos semelhantes. Pelo momento histórico que vivíamos, a evolução era até previsível, e não se deu só conosco. Como explicar “O Operário em Construção”, de Vinícius de Moraes, se não pelo mesmo processo? Você considera, hoje, que a Geração 59 cumpriu o seu propósito de ino-var a poesia Paraibana? Sem dúvida. Antes de nós, o único movimento renovador de que se tem notícia foi a revista Era Nova, nos anos vinte, que, no entanto, se exauriu sem desdobramentos. O marasmo e o conservadorismo voltaram. Ao passo que nós fomos seguidos, logo depois, pelo Grupo Sanhauá, mais corajoso e mais perseverante, em matéria de vida literária, que o nosso, com as suas edições mimeografadas e a sua fidelidade à poesia. Desde então, com a aju-da do crescimento e da especialização da Universidade, a vida cultural da província não parou de se movimentar.

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Do Clemente ensaísta nós temos notícia. O poeta e o narrador ainda existem?

O narrador talvez esteja apenas hibernando. Tenho um projeto mais am-bicioso, de longo prazo, que, se tiver coragem e perseverança, um dia exe-cutarei. O problema é que a vida me fez muito racional, muito calculista, e resisto a investir tanto esforço em algo que, afinal, pode não dar certo. Assim, prefiro não falar muito a respeito. Quanto ao poeta, pela mesma ra-zão temo que esteja morto de verdade. Não que não leia nem aprecie mais poesia. Continuo “curtindo” bons poemas (para usar a palavra da moda), e até guardo recortes com os que me tocam mais de perto. E tenho admiração pelos colegas que permanecem fiéis àquela paixão da juventude. Mas, como disse, a minha experiência de participação política, e a atividade profissio-nal que a substituiu – o planejamento governamental – me fizeram perder aquela atitude essencialmente contemplativa, intuitiva, que permite extrair a beleza das coisas e transfigurar a realidade, indispensável aos poetas. Nós, planejadores e executivos, temos, por exigência de trabalho, que tentar sim-plificar a realidade e reduzi-la a esquemas lógicos. Como diz Paulo Honório, de “São Bernardo”, em suas reflexões finais, não somos maus. A profissão é que nos faz assim. Meu penúltimo poema, de 1961, é ilustrativo desse pro-cesso e reflete um breve momento de reencontro da atitude primitiva. Como nunca foi publicado, peço a permissão para divulgá-lo agora:

Pressinto o encanto antigo desta tardede pássaros cantando: as mesmas vozeso abandono das coisas que se cumprema transparência, sempre azul –moldura de criança correndo. Só eu mudei no velho quadroe por andar alheio e dispersotenho perdido os meus tesouros. Hoje porém os redescubroe nos limites do meu cárcereconstruo as minhas rotasapascento as minhas lembrançasno verde das campinas percorridase parto ao encontro da infância que retornacom a mesma ternura, ó minha amadados teus olhos oblíquos.

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É verdade que um de seus ensaios críticos repercutiu de tal forma em Ariano Suassuna que o levou a alterar a feição de um personagem?

Acho que posso confirmar isso. O ensaio “Subjetivismo e História” foi pu-blicado no Correio das Artes, em 1978, e está no livro “ A Nova Literatu-ra Paraibana – Crítica” editado por A União – Cia. Editora, em 1979. Ali, analisando a atitude de Virgínius da Gama e Melo e de Ariano em relação à revolução de 1930, procuro compreender os conflitos íntimos em que nosso mestre Suassuna se debateu, a partir da morte de seu pai, e que condiciona-ram toda a sua vida e sua obra literária. E que o levaram, pela sua descrença nos engajamentos, a retratar o estudante-politico Adalberto Coura, perso-nagem de “A Pedra do Reino”, como um fraco, sem convicções. Essa foi, pelo menos, a impressão que tive e comento, no trabalho, como um verdadeiro insulto à memória de tantos jovens idealistas, vários deles amigos meus, que se sacrificaram pelo seu ideal político. Estando depois com Ariano, ele me agradeceu o esforço de compreensão e interpretação do seu trabalho, e me mostrou os originais que estava revisando para a edição alemã, onde modificou um diálogo, para desfazer aquela impressão, que, segundo ele, não queria dar. O fato, que me gratificou profundamente, foi registrado em outro ensaio, “A Solidão de Ariano Suassuna”, onde analiso a trajetória dele, a partir daí, até a sua célebre despedida da atividade literária, em agosto de 1981. Mas ele foi ainda mais generoso comigo. Ao retornar à vida pública, a partir de 1986, revisando a posição e apoiando a candidatura de Miguel Arraes para o Governo de Pernambuco, reconheceu, em entrevista ao Di-ário de Pernambuco, em 16 de junho de 1987, minha contribuição pessoal para essa mudança. Eu não poderia ter maior recompensa, em meu traba-lho de crítico de ideias. E ganhei uma amizade que me honra muito, e me enriquece.

O estilo claro e simples que você mantém para falar de Economia política é consequencia do exercício literário?

Com certeza. Os trabalhos dos meus colegas economistas são, em geral, pesadões e insípidos. Só o leitor especializado resiste à tentação de abando-nar o texto, ou pular para as conclusões. Só os mais antigos, como Roberto Campos, Celso Furtado ou Mário Henrique Simonsen, de formação acadê-mica diversificada, têm um texto leve e agradável. Roberto Campos, então, por mais caturra e conservador que seja considerado, tem uma adjetivação elegantíssima, original, que faz lembrar até Eça de Queiroz. Mas não estou me comparando com esses figurões. Quero somente dizer que, em meus en-

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saios econômicos, não procuro ser apenas claro, seguindo a lição de Ortega Y Gasset, para quem “a clareza é a cortesia do pensador”. Tento também ser divertido, interessante. E a experiência com a literatura ajuda muito.

Se voltasse a escrever poesia, a solidão ainda seria um tema preferido?

É possível. Afinal, muitas solidões povoam a alma humana. A incapacidade de se comunicar plenamente com os seus semelhantes, tão bem retratada nos personagens de Gabriel García Marquez, é uma delas. Outra é mais contemporânea: a frustração do ideal socialista, na pureza e perfeição que imaginávamos, aliada à descrença do modelo capitalista como alternativa para a conquista da felicidade humana. Mas, de qualquer modo, não seria mais a solidão da adolescência. Aquela decorria da perda do mundo mágico da infância, o país do “faz de conta”, em que “quando pode ser onde, e onde é quando”, como está dito no poema de Paulo Mendes Campos, e, ao mesmo tempo, da dificuldade de conquistar o mundo adulto, em ser admitido nele.Para um adolescente tímido como eu fui, tudo era difícil, naquela pequena sociedade conservadora da João Pessoa dos “anos dourados”. A prática reli-giosa era uma servidão sofrida, atormentada, a iniciação sexual era traumá-tica, a realização sentimental, através de um simples namoro, era um ver-dadeiro desafio. Aquela solidão, felizmente, morreu com a juventude. Ou, talvez, infelizmente. Não temos saudade dos jovens que fomos? E não se diz que a felicidade é infecunda?

A questão existencial, na sua concepção, está separada ou se distingue da questão política?

Acho que as duas não estão separadas, embora não se confundam. Elas estão imbricadas, como dois conjuntos com uma área de interseção (per-doem o recurso à matemática, isso me ocorre muito raramente). Essa área comum é maior ou menor, dependendo das pessoas. No meu caso pessoal, é muito grande. Hoje, embora já não tenha militância partidária, nenhuma convivência que não envolva a preocupação com outras pessoas me esti-mula. Nenhum trabalho que não tenha uma dimensão política, no sentido mais amplo da palavra, me interessa. E não me animo a escrever sem que sinta que tenho um recado importante a dar, uma mensagem socialmente válida a transmitir. Para mim, apesar do meu estilo retraído, trata-se de “procurar a felicidade individual através da felicidade coletiva”, segundo a fórmula de García Marquez. Ou, pelo menos, através do bem de alguns semelhantes.

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Fala o poeta que emigrou

Texto de Carlos Cordeiro, correspondente de “O Momento” no Rio de Janeiro, a partir de entrevista com o poeta Celso Japiassu na ocasião da exposição “Ge-ração 59 – 30 anos”

Minha amizade data do remoto ano de 1956 quando, ele no Liceu, eu no Colégio Pio X, tentávamos concluir o curso secundário para enfrentar as cólicas do vestibular. Desde então a vida foi nos empurrando pelo mundo a fora: ele saiu de João Pessoa para a cidade mineira de Montes Claros; eu para o Rio; depois ele voltou para o Recife, eu para João Pessoa; ele novamen-te para Minas, dessa vez para a capital, onde se casou com uma mineira e formou-se em Direito; eu para Recife, onde também recebi um diploma em ciências jurídicas – e também casei-me. E finamente demos com os costados no Rio, onde vivemos até hoje, ele de sua brilhante carreira de publicitário, eu da improvável profissão de jornalista.

Ao longo de todos esses anos, estivemos juntos várias vezes. E nunca cansei de admirar sua fleugma britânica – que já me impressionava nos tempos pessoenses, e hoje condiz tão bem com sua cara de lorde inglês. O que mais me espantava, então como hoje, era saber que por baixo daquele discurso cartesiano latejava um vulcão de lavas políticas e existenciais, que felizmente entrava em erupção em forma de versos, ou na litragem mais exagerada de águas ardentes. Por isso, foi com curiosidade que o procurei para contar aos leitores de “O Momento” como foi esta trajetória de jovem ator do Teatro do Estudante e artista da Geração 59, até o premiado poeta e publicitário de hoje.

Do movimento de renovação artística promovido na Paraíba, em fins da década de 1950, por Vanildo Brito, Ivan Freitas e Breno Mattos, não se sen-te autorizado a falar, considera sua participação mínima. Mas lembra que todos foram muito influenciados por Hermano José, de quem receberam orientação estética e importantes indicações de leitura. Considera o movi-mento uma ânsia de mudança e de liberdade, que se não conseguiu abalar a província, teve o mérito de prenunciar a grande explosão da contracultura, que ocorreu na década de 60. Claro, ninguém era hippie na época, nem fa-lava ainda numa volta à natureza, até porque vivíamos numa cidade que era como um sítio urbanizado.

As leituras da época, meio desencontradas, iam de Nietzsche, lido sofrega-

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mente por Vanildo, a Augusto dos Anjos, de quem declamavam os poemas do EU sob os galhos de um gigantesco pé de tamarindo na Lagoa (ainda existirão essas sombras de outrora?). Lia-se muito Baudelaire, trazido para o grupo por Orley Mesquita, que folheava o Les Fleurs du Mal como quem percorre uma Bíblia. E outros “malditos”, como Poe – sabiam de cor vários poemas, principalmente “O Corvo” e “Annabel Lee” – o Wilde, menos os ro-mances e mais a poesia. E quem não viu o jovem Celso declamar comovido “The Ballad of Reading Gaol”, não pode fazer uma ideia clara do que eram os sonhos estéticos e humanitários desse grupo, que misturava alegremente materialismo histórico e surrealismo, poetas malditos e filósofos existen-cialistas, em discussões acaloradas que varavam a madrugada nos bares da Maciel Pinheiro, únicos a permanecer dignamente abertos sob a pasmaceira da então pacata João Pessoa.

Fala de experiências posteriores, que me parecem claras na sua poesia de O Texto e a Palha (65), Processo Penal (68), A Região dos Mitos (75). Sim, re-cenhece, há uma grande influência de João Cabral, cuja obra conhece muito bem, e Jorge de Lima, sobretudo “Invenção de Orfeu”. Em Cabral, a busca da palavra exata, o texto enxuto, para dissentimentalizar a poesia e torná-la mais reflexiva. Em Jorge, o misticismo, a religiosidade. Em ambos, a busca de uma linguagem própria, que se afirmará a partir de O Itinerário dos Emi-grantes, publicado em 1980 numa bela edição de Massao Ohno, ilustrada por Aldemir Martins e prefaciada por Fábio Lucas. Essa linguagem vai de-purar-se mais ainda em O Último Número (85) e no livro, ainda em preparo, Conversações com Dylan, em que as influências são mais difíceis de captar.

Mas não só as influências das leituras, há as imagens visuais, auditivas, so-noras, que se revolvem na memória (lembro da brilhante definição de Santo Agostinho: “A memória é o estômago da alma.”). Sim, concorda. “Invenção de Orfeu” ainda não foi devidamente lido pela intelectualidade brasileira. É um trabalho para séculos, como ocorre com “Os Lusíadas”, que a cada década suscita novos estudos e debates reveladores. Mas não concorda com Affonso Ávila, que no “Discurso da Difamação do Poeta”, define o poeta como um padre apóstata. Prefere a opinião de Borges, para quem os poetas estão sempre a escrever um mesmo poema, a reescrever, a acrescentar “algo novo”. E como conviver com a atividade empresarial, administrando uma das maiores agências de publicidade do País e o solitário exercício da Poesia? Não vê propriamente uma contradição, há dois fazeres diferentes, a poesia é uma forma de organizar a sensibilidade para perceber e expressar o mundo.Durante o período que vai da Geração 59, quando deixou João Pessoa, até O

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Ilustração de Hermano José para poema de Celso Japiassu.

Texto e a Palha, ocorreram diversos movimentos de vanguarda no Brasil: o Concretismo em 56, o Neo-Concretismo, dois anos depois, Violão de Rua, em 62, Práxis, no mesmo ano, Poema Processo, em 67, e o Tropicalismo, que explodiu tudo em 68. Se ao Concretismo e ao Poema Processo correspon-dem uma estética e uma poética em que predominam aspectos cromáticos

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e visuais, à Práxis e ao Tropicalismo correspondem a preocupação pelos aspectos semânticos e verbais e o desejo de avessar a ótica do artista. Como teriam sido seus trânsitos por essas vanguardas? Sinto um certo ar de enfado por minha teorização canhestra – Sempre desconfiei de vanguardas – diz – acho que têm um ar de última moda, começam sempre com um manifesto, em que querem encamisar todo mundo. De todos esses movimentos, o úni-co que deixou um saldo positivo para a poesia foi o Concretismo.

Toda geração de artista – explica – procura reinventar a roda, no caso a linguagem poética, e tem de ser assim, é dessa forma que se exercita a cria-tividade. Às vezes ocorrem excessos, como o Poema Processo, de resto um movimento muito mais ligado às artes plásticas que à poesia. Mas esses mo-vimentos são bons, prenunciam revoluções que fazem a humanidade andar. No Brasil atual, uma imensa crise cultural, reflexo de uma outra crise mais grave, política, econômica, institucional. As artes, e o País como um todo, estão sem rumo, ninguém sabe direito o que fazer, para onde ir. A busca desenfreada do mágico e do sensorial é um sintoma grave, mostra o estado a que chegamos, a uma espécie de doença mental coletiva. No meio de todo esse caos, Lula pode significar uma revolução. Se for eleito e o deixarem governar.

Pergunto se não há uma contradição entra a opinião favorável ao candidato de esquerda e seu propalado individualismo? Não há contradição em ser ideologicamente de esquerda e individualista no sentido estético, não que-rer assinar manifestos e pertencer a movimentos. Quanto ao Tropicalismo, acha que é um movimento ligado ao show-business, que nada tem a ver com a poesia. Embora concorde que Caetano é um letrista genial, não o vê como poeta, suas letras não prestam para serem lidas, têm que ser ouvidas. O que aliás ocorre com todos grandes letristas da música popular brasileira atual, Chico, Milton Nascimento, Gil. Uma coisa é música popular, outra é poesia, texto, palavra escrita e leitura silenciosa. Palavra do poeta.

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Arte e Poder

A União nas Letras e nas Artes

Dr. Pedro Gondim era Governador e poeta: o pensamento estava em alta. As opor-tunidades de trabalho para os artistas plásticos evidenciavam-se. Vanildo Brito passou a editorar o suplemento literário A União nas Letras e nas Artes, no lugar do Correio das Artes, com assistência do poeta e cineasta João Ramiro Melo. As artes gráficas que iluminavam o suplemento estavam restritas às antigas vinhetas, embora admiráveis, desenhadas para o Correio das Artes por artistas como Her-mano José, Ivan Freitas e Tomaz Santa Rosa. Sob a editoria de Vanildo Brito fui convidado para ilustrar o suplemento ao lado de Archidy, Pontes da Silva e Marcos Aprígio de Sá. Era a arena das batalhas modernas, o lugar onde sonhávamos com a arte como ela é hoje, o fórum de nossas angústias, e também de nossas vitórias. Nas oficinas da Praça João Pessoa, no lugar onde hoje está a Assembleia Legislativa, estava o edifício d’A UNIÃO, eclético, belo e imponente. Não possuía mais sua cú-pula e, diziam, sua águia de ferro adornava uma casa paraibana no Rio de Janeiro. Escadas helicoidais de madeira e ferro, soalhos de duas cores, janelas indiscretas olhando a praça, o retrato de José Américo em tamanho natural na parede. Ota-cílio Queiroz, Adalberto Barreto, Gonzaga Rodrigues, Severino Ramos, Dorgival Terceiro Neto e Linduarte Noronha vibravam cada vez que a seleção dente-de-leite do suplemento literário chegava com suas novidades, seus poemas recentes, seus desenhos esquisitos, suas teorias futuristas. Archidy Picado certamente dava muito trabalho a Coló e Tiné, os mestres da cli-cheria, com seus desenhos complicados para o olhar tão simples daqueles angélicos operários, precursores dos fotolitistas e dos editores eletrônicos de agora. Vanildo Brito e Jomar Souto incomodavam os linotipistas e os chapistas no afã de conseguir uma revisão perfeita, uma página bela, uma ideia clara.

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Vinheta de Santa Rosa.

Fazer o suplemento era uma aventura apaixonada, uma arenga constante de Juran-dy Moura com Clemente Rosas e José Bezerra Cavalcante em busca de um poema inédito, um esforço de Linduarte Noronha, Vladimir Carvalho e João Ramiro Melo para tornarem públicas as ideias do cinema. Era, sobretudo, o empenho heróico de pessoas hoje quase esquecidas, como Geraldo Carvalho, Wilton Veloso, Ítalo Dália, Rino Visani, Marcos Aprígio de Sá, Carlos Moura, Petrônio Castro Pinto (pai do grande poeta Sérgio Castro Pinto), e tantos outros que a memória não guardou, contribuindo com trabalho intelectual da melhor qualidade para a formação do saber e para o deleite da cidade. Fazer suplemento literário não é fazer jornalismo profissional, é fazer jornalismo vocacional, passional, amador, pictural, emblemático, messiânico. É fazer antijor-nalismo, não-jornalismo, mas para-jornalismo. Mas o suplemento é como o sal da salada diária, o açúcar do café vespertino, a pimenta da peixada. Sem o suplemento o jornal é chato, pardo, sem brilho. Dia desses, fui ver meu amigo José Nêumanne Pinto na sua fronteira de luta, a editoria do Estadão, em São Paulo. Naquela mega-redação aparelhada com tudo o que há de mais novo, eu pensava naqueles tempos de chumbo e calor das oficinas de A UNIÃO e me espantava, como sempre acontece, com o tempo. Todo aparato tecnológico de última geração, que me encanta, como pode me encantar o espíri-to humano, nada significava diante da lembrança daquelas máquinas impressoras instaladas ao rés do chão, untadas de graxa e pesadas como tratores, onde um dia deixei cair um cachimbo e vi-o ser triturado pelos dentes da catraca que pareciam rir para mim com aquela boca ávida de manchetes, notícias, sueltos, poemas, edi-toriais, fotos e ilustrações.

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Rondas líricas, performances e instalações Os circuitos das “rondas líricas” da Geração 59 incluíam a região limítrofe entre Tambiá e Roger, ou melhor, a Praça da Independência, passando pela Bica e indo até os fundos do conjunto franciscano. Esses caminhos inspiraram Jomar em al-guns poemas, “Itinerário Lírico da Cidade de João Pessoa”, seu mais conhecido livro. Ainda o escuto recitando “Entrecruzar de canteiros / nos jardins de Tambiá / aos olhos e às mãos da moça / despida no seu sofá. / Trescalam cheiro de vida / e cheiro de resedá. U’a moça delirando / na tarde de Tambiá.” Havia uma grande concentração de artistas e intelectuais morando no trecho entre a Praça Antonio Pessoa e a Rua Batista Leite, a dez passos da praça. Lá morava o escritor Wills Leal e seu irmão, o jornalista Teócrito Leal. No beco que liga a praça com a Batista morava Nébia Gadelha, muito amiga de Jomard Muniz de Brito, que toda semana chagava aqui vindo do Recife para dar aula na FAFI. Para quem vinha da Bica até a Batista Leite, a primeira das casas dos Parias era a casa de Marlene Almeida e suas irmãs Marli e Lucinha, em frente à oficina do mecânico Nélio Mon-teiro. Logo depois, mas do outro lado da rua, morava Virgínius da Gama e Mello com suas tias e sua biblioteca, e ao lado ficava a casa do Vereador Mário da Gama, primo de Virgínius. Na outra esquina era a casa de Jomar Moraes de Souto, o poeta da Capital das Acácias, e um pouco mais adiante estava a casa de Elzo Franca, ator, músico, diretor de teatro e, às vezes, pintor. Certa vez, havendo Marlene noivado com um rapaz “de fora”, muito antes de co-nhecer seu marido Antonio Augusto Almeida, resolvemos dar a ela um presente, mesmo sob os protestos de Virgínius. Ofereci então uma pintura feita num quadro negro velho que meu pai me dera, ainda novo. Era uma cena de praia com pesca-dores, mulheres e mar pintada em óleo com cera de abelha, técnica que chamáva-mos encáustica fria e que, depois das tintas sintéticas, não se usa mais hoje, o que é uma pena. Saímos de minha casa, eu e o poeta Carlos Moura, cria desgarrada da Geração 59 que depois foi pra Brasília – era época dos candangos – pra nunca mais voltar. Eu morava na esquina da Rua Almirante Barroso com a Maximiano de Figueiredo, e fomos levando o quadro, que é grande, até a casa de Elzo, onde nos concentraríamos sob o poder de duas ou três lapadas. Lá estávamos, então, ao lado de Elzo, Vanildo e Jomar, e saímos em passeata até a casa dela. Ao passar pela casa de Virgínius ele juntou-se a nós, com seu impecável terno de tropical azul marinho listrado e gravata de seda vermelha de listras, reclamando: “Ai, ai, Dolores, que coisa horrível, uma dama como Marlene se casar com um cavalheiro de outras plagas, ai, ai Dolores...! O que Virgínius temia não aconteceu, e o quadro ainda está na parede de Marlene.

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Era uma geração performática, fazia arte na rua e transformava atitudes do dia a dia em manifestações artísticas. Uma geração de atitudes antecipadas, além de seu tempo. Desde o Clube do Silêncio, Vanildo e Ivan Freitas surpreendiam a cidade com performances modernas de inspiração surrealista. Das procissões de tochas na Ponta do Cabo Branco à exposição surrealista de Ivan e Vanildo, este vestido de Ser, na Loja Maçônica, os paletós virados no aniversário da morte de Lorca, a papoula na braguilha de Orley Mesquita, as neuras e as rondas líricas e também a encenação do poema dramático de Vanildo intitulado “A Serpente Alada”, seu périplo por Campina Grande perguntando de casa em casa onde morava Vanildo Brito, tudo era performance. Não no sentido do desempenho, mas no sentido de criação artística; não no sentido de interpretação, mas no de composição; não no sentido da orquestra regida, mas a Jam Section. No meio cultural contemporâneo performance é uma categoria de arte. As instituições como museus e centros de arte, as galerias, as cidades, recebem a performance de artistas visuais como arte verdadeira e nova. Diferente do que acontece no teatro ou na música, onde a per-formance refere-se apenas ao desempenho dos artistas. A performance diz respeito ao corpo da pessoa ou do grupo, é uma extensão da body art, onde a arte é realiza-da no corpo – pintura corporal, tatuagem, iscaria, modelação cirúrgica –, mas não é apenas body art, que tem o corpo como suporte, porque na arte da performance o corpo é a própria arte. Da mesma forma eles faziam instalações. Pelo menos uma delas é conhecida, a da exposição surrealista da Loja Maçônica com a mortalha de Romeu e Julieta, os ovos e torqueses e os “cadáveres delicados” instalados nas paredes em faixas pintadas: “O amor é um caranguejo roxo tocando violino de prata na beira do mar”. Em meados dos 60 performances e instalações dominavam a cena. Foi a ins-talação “Tropicália”, de Hélio Oiticica, que inaugurou o Tropicalismo, foram seus parangolés que afirmaram a performance no Brasil, décadas depois do pioneiro Flávio de Carvalho passear por São Paulo vestido de saia. As instalações de Cildo Meirelles e Rosa Ribeiro, mulher de Jackson, fizeram furor no Salão Nacional de 67, e a performance de Antonio Manuel no Salão de 68, quando ele e uma amiga ficaram nus e desceram as escadas do MAM no dia da abertura do Salão, foram im-portantes ações de contestação à ditadura. A “Semana de Arte” no Aterro da Glória do Rio foi também fundamental como estratégia política através de performances do designer baiano Rogério Duarte com seus cães amestrados e as caixas cheias de manchetes de jornais com o carimbo PROIBIDO, que Antonio Manuel abria com um pé de cabra libertando as noticias. Outro grande momento foi o “Festi-val de Bandeiras da Praça General Osório”, quando Nelson Lerner, Hélio Oiticica, Gerchman, e muitos outros artistas levaram suas obras de protesto pintadas em bandeiras num verdadeiro carnaval.

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Jomard Muniz de Brito

Em muitos momentos a aproximação com Jomard Muniz de Brito foi motivo de singulares impressões. Duas delas, porém, foram-me extraordinárias. A primeira foi quando o conheci na João Pessoa de 1959, adolescente ainda, pales-trando com os doutos literatos da província sobre Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Foi na ocasião do Salão de Poesia e coincide com o apareci-mento da Geração 59. O poeta Jurandy Moura levou-me à Faculdade de Direito para ver e ouvir Jomard. Ali aprendi sobre poesia e metalinguagem, sobre texto e contexto, sobre modernidade versus novidade. Poucos anos depois, quando Jomard foi contratado pela Universidade como pro-fessor na Faculdade de Filosofia, ele explicou, tim tim por tim tim, aos poetas da-quele momento, a “bossa nova”, através da sequência de linguagens advinda da obra dos dois escritores do qual ele era especialista, da elegância da poesia mo-derna e síntese entre a música e a poesia na obra de Tom e Vinícius, enaltecendo

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a dimensão poética, qualidade que a música popular brasileira havia incorporado definitivamente. Jomard quebrou, por nós, o preconceito entre samba e soneto, gravura e jornal, pintura e botequim, cachaça e salão. A segunda grande impressão foi quando Jomard assumiu o Tropicalismo. Contra tudo e contra todos os que eram complacentes com a dita cuja (como ele chama-va a ditadura) que pariu aqueles tempos desconfiados e desconfortantes, e contra todos os mamadores da “vaca profana” que nos condena hoje a não mais mamar, Jomard disse não à tradição do poder, desafiou as verdades eternas das casas gran-des e enalteceu a senzala como o foco da cultura, o lado escuro da Lua, responsável pelas transformações da noite. Jomard investiu contra a hipocrisia armorial que elege a ingenuidade, filha da mi-séria e do abandono, como o mote da patética tragédia brasileira traduzida na do-minação do passado sobre o agora, no olhar voltado para ontem utilizado como estratégia de dominação. Em Inventário do Feudalismo Cultural Nordestino, manifesto tropicalista lançado em Olinda pela leitura de Gil e Caetano na Oficina 154, pouco tempo antes do exílio londrino dos dois, antes de Aquele Abraço, e de O Palhaço Degolado, filme e texto de autoria de Jomard, anticultural-perrepista-liberal, seu sentido anárquico se exacerbou colocando-o na posição do porta voz da expressão de quem não se alinha com os disfarces ideológicos, de “quem nasce lá na Vila”, de quem vive, como diz o profeta meu amigo, poeta e compositor Marcus Vinícius de Andrade, ao gosto dos anjos. Ele era e sempre foi um artista performático. No Nordeste é o maior deles.

Rádio Tabajara

O governador Flávio Ribeiro Coutinho faleceu e foi substituído por seu vice, Pedro Moreno Gondim. Morávamos em Campina Grande onde meu pai dirigia o Colé-gio Estadual, templo da educação na época. Doutor Pedro convidou meu pai para dirigir a Rádio Tabajara. Foi então que, com 15 anos, iniciei minha vida de artista profissional, porque ele me empregou na discoteca da Rádio. Naquele tempo não se tinha a noção de nepotismo que temos hoje. Assim pude conhecer por dentro os mistérios que encobriam a sonoplastia e o que significava uma programação musical. Passei a ouvir boa música e distinguir o que era bom do que não prestava, a mexer com equipamentos de áudio e saber o que é produção de rádio. Ainda não

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havia televisão, o mundo era mecânico e elétrico. Meus conhecimentos técnicos, embora empíricos e superficiais, serviram muito para, posteriormente, comparti-lhar com meu cunhado Rubens Teixeira suas produções teatrais, quando dirigiu o Setor de Teatro Universitário. Eu gostava muito do jornalismo radiofônico, assistia do aquário, que era um vidro que separava a cabine de áudio da parte externa, onde poderiam ficar diretores de jornalismo ou pessoas que iriam ser entrevistadas. Me tornei amigo de Linduarte Noronha, Paulo Rosendo e Marconi Altamirando.

A Rádio Tabajara era uma casa de espetáculo com programas de auditório onde atuava a Prata da Casa, isto é, os artistas locais que faziam parte do “cast” da emis-sora. Lá estavam Penha Maria, uma cantora mulata que lembrava a carioca Ângela Maria e era a estrela da Tabajara, Mário Lins, baterista da Orquestra Tabajara de Severino Araújo que tocou com Tommy Dorsey numa famosa turnê que fizeram aos Estados Unidos. O maestro Severino Araújo, que ainda hoje, com mais de oi-

Maestro Severino Araújo regendo a Orquestra Tabajara no Parque Solon de Lucena, em 1959.

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tenta anos, dirige sua orquestra, saiu da Paraíba anos antes para “vencer” no Rio de Janeiro, e venceu. Lembro que meu pai o contratou para tocar na Lagoa, num pa-lanque armado em frente ao Cassino, coisa inédita na época, a não ser no caso das retretas das bandas de música. Os espetaculares arranjos de Severino Araújo até hoje têm a mesma qualidade, dizia-se à boca miúda que o famoso arranjo de Elmir Deodato para “Assim falava Zaratustra”, tema de “2001 Uma Odisséia no Espaço”, na verdade era de Severino Araújo. No espetáculo da Lagoa a orquestra lançou um arranjo da música ainda desconhecida Chega de Saudade, com um espetacular solo de seu clarinete. É tão forte minha memória deste momento que, se soubesse o que sei hoje, acho que teria pensado num verso de Jorge de Lima que diz mais ou menos assim: “A flauta era tão natural na sua face agreste / que parecia sua própria língua esburacada de sons / e ventilada por uma brisa íntima.” O grande sucesso da Rádio era o programa de auditório de Pascoal Carrilho, nosso grande animador, desajeitado, grandão e zambeta, mas possuidor de um charme e um humor contagiante. Cimal era uma marca de macarrão da pequena indústria local, ele anunciava: “Come-se bem comendo Cimal. Era um grande improvisador, um dia, teve este diálogo: “Eu bebo Praianinha, Penha Maria bebe Praianinha, ela respondia “Ochente Pascoal! Aí alguém do auditório gritou: “Caneiro!”, e ele ime-diatamente: “A mãe do cidadão ali também bebe Praianinha”.Como faz falta programa de auditório...

O Liceu

Espaço de saber por excelência era o Liceu Paraibano, instalado no seu magnífico edifício art-deco da Avenida Getúlio Vargas, a mais bela rua da cidade na época. Lá estudávamos com as maiores figuras da intelectualidade: maestro Pedro Santos, poeta Geraldo Medeiros, professores João Viana, Diógenes Sobreira e a mãezona Daura Santiago, entre outros. O Liceu tinha uma cara moderna, o ensino público era na época melhor que o privado. Dona Daura era a Diretora, um núcleo de saber que apresentava uma abertura para os projetos culturais da cidade. O maestro Pedro Santos e o poeta Geraldo Medeiros, integrante da Geração 59 e depois Secretário de Estado, eram os res-ponsáveis pelo ensino de arte e literatura. Eles movimentaram o grêmio do Liceu de onde saiu o grupo de poetas que substituiu a Geração 59, o Grupo Sanhauá, que editava seus poemas em mimeógrafo numa atitude inserida na mais autêntica vanguarda. O grupo era formado pelo hoje maestro Marcus Vinicius de Andrade, poeta e planejador Marcus dos Anjos, pelos poetas e jornalistas irmãos Severino

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Marcos Tavares e Anco Márcio, e Sérgio de Castro Pinto, hoje doutor em literatura e professor da UFPB. As Edições Sanhauá foram o primeiro exemplo de pensamento alternativo em João Pessoa. Editavam o ineditável do ponto de vista da cultura oficial da época. O pa-pel para a impressão era conseguido por um amigo do grupo que trabalhava no IPASE, tudo era “descolado” com amigos. As capas dos livros eram impressas em papel de embrulhar carne, com artes gravadas em xilogravuras por Pontes da Silva e por mim, que também conseguia a impressão dos textos nos mimeógrafos do 1º. Grupamento de Engenharia, apesar da já vigente repressão militar. A murada que cerca o Liceu é guarnecida por um cano de ferro de grosso diâmetro. Lá sentavam-se alguns alunos antes e depois das aulas para conversar. Então eles eram a “turma do cano”, e seus maiores frequentadores eram Paulo Melo, Paulo “Ceta”, Gilvan Navarro, Aroldo Nóbrega e as lideranças da política estudantil que era forte atividade naqueles anos de democracia. Ali se planejou o futuro da hu-manidade, se lutou pela paz e pela justiça social, se definiram rumos políticos, se discutiu cinema e se criaram grêmios e associações. A Turma do Cano hoje está

Professores Waldo Lima do Vale, Raul Córdula, Augusto Simões e Daura Santiago do corpo docente do Liceu Paraibano.

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nos lugares de poder, como se pode ver pelos compo-nentes que minha memória permitiu citar. Entre os amigos da segun-da série do curso clássico estava Otávio Sitônio Pinto, poeta e jornalista da melhor qualidade do qual me orgu-lho de privar da amizade. Para ele escrevi no fim da década passada as seguintes palavras:

O fidalgo semiótico

Por ser magro e comprido, e olhar o horizonte com um ar de saudade, os amigos o apelidaram de Dom Quixote. Seu pai comprou um carro, um DKV Wemag, a Pequena Maravilha. Depois de servir à família nos afazeres diur-nos o carro tornava-se o veículo das rondas líricas dos poetas da Geração 59, na maioria filhos de famílias menos abastadas. Aquele automóvel, ama-do instrumento de grandes jornadas noite adentro, foi apelidado, natural-mente, de Rocinante (outra máquina querida como Rocinante foi o carro do pai de Breno Mattos, um Ford 47 que, quando funcionava, tornava-se um tapete mágico a nos conduzir à barraca de Merêncio, no Porto do Capim, e outros templos do prazer perdidos no passado. Um dia, por esquecimento dos seus líricos usuários, nasceu um mamoeiro no banco de traz, rompeu o teto e frutificou docemente.) Dom Quixote, ou melhor, Otávio Sitônio Pinto, nos presenteia com um pre-ciosíssimo livro intitulado, semioticamente, Caminhos de Toboso (Páginas

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Paraibanas - UEPB). Para quem não conhece Otávio Sitônio, o livro será apenas uma festa de beleza pura, poesia das grandes. Mas para quem já pri-vou do seu convívio, o livro é também uma festa, mas festa no sentido da celebração de uma geração que, embora vivendo entre o mar e o rochedo, tem ultrapassado heroicamente as adversidades, e saudado os momentos de rara, mas intensa, felicidade. Caminhos de Toboso é uma auto-festa, uma biografia semiótica, em louvor a meio século do prazer da palavra, da histó-ria, do soneto, dos amigos, da cidade de, como diz Jomar Souto, “amar-elos”, isto é, amar as ligações, os elos entre as pessoas, amar o outro. Lembro do verão de 58, quando chegava ao Liceu às 6h45 na manhã e inde-fectivelmente encontrava nosso fidalgo para uma prosa antes da aula. Num belo dia ele disse: “Pontualíssimo!” – Quem, eu?, perguntei. – Não, Raul, o verão, faz hoje exatamente um ano que os paus d’arco floriram como estão florindo agora. Olhei para o céu e ele estava azul-cobalto manchado do ama-relo de cádmio claro das flores dos ipês. Confesso que os rasgos de amarelos sobre azul das minhas pinturas recentes têm qualquer coisa a ver com aque-le momento da cidade das acácias de nossa adolescência. Um dia ele me telefonou perguntando sobre pentimento, um termo técnico de pintura que indica a revelação de um esboço, uma cor ou um testemunho de imagem que aparece, com o tempo e a oxidação da tinta, por baixo da camada de pintura definitiva. Os pentimentos são comuns na pintura antiga, quando os tecidos das telas eram materiais preciosos e os artistas não po-diam simplesmente abandonar a tela quando desistiam da imagem que es-tavam pintando, simplesmente pintavam outra coisa por cima. Hoje usa-se o pentimento como linguagem. A transparência de cores sobre cores, traços e figuras de criações anteriores, memórias de outros sonhos ou poemas, são como lembranças semiocultas que aparecem nas entrelinhas do poema, nas sobrecamadas das tintas, nos entretextos das narrativas. O livro de Otávio Sitônio é eivado de pentimentos, de pedaços de memórias de suas várias visões do mundo, seus amores, amizades e aventuras que afloram através do tecido da palavra como testemunhos de importantes, mas não definitivos momentos poéticos. Como numa pintura onde fragmentos de outros qua-dros se integram numa só composição, esses pentimentos contidos no livro de Otávio são partes de outros sentimentos convivendo nos poemas. Caminhos de Toboso é também um livro pictórico. A exaltação da imagem é tema presente na homenagem que faz a artistas plásticos como o fotógrafo Paulo Klein, a pintora Celene Sitônio o escultor Breno Mattos, e ainda nos

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temas como a natureza morta com frutas, com peixes e com aves. Mas é um livro pictórico principalmente pela descrição imagística dos temas que aborda, pela sensibilidade de uma alma sertaneja vivendo na borda do mar e refletindo sobre as diferenças destes dois mundos. Toda essa gente de 50 anos ligada às lutas políticas brabas como as Ligas Camponesas e os anos 60 de chumbo, ao rock rural e ao rock-repente, ao desenvolvimento da comunicação e da publicidade como profissão, ao ad-vento da modernidade na arte, conhece e conviveu alguma vez na vida com Otávio Sitônio. Seu livro nos dá um repertório de personagens fundamen-tais na preparação da cultura como se conhece hoje na Paraíba. Entre tantas outras pessoas ele se refere a Vanildo Brito, Raymundo Asfora, Figueiredo Agra, Luiz Augusto Crispim, Jomar Souto, Zezito Cabral, Sérgio Castro Pin-to, Virgínius da Gama e Mello, Germana Correia Lima e Beatriz. Não são exatamente os medalhões acadêmicos que se tornam temas de teses e co-mentários universitários, mas são alguns dos criadores da maneira atual de pensar nossa cultura, cidadãos que, como Otávio Sitônio, precisam ter suas obras tornadas públicas para a orientação e a formação de um público mais atento à arte como expressão da vida.

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Arte em palácio

Entre 1959 e 1961 dois Salões de Arte foram promovidos pela Secretaria de Edu-cação e Cultura do Estado. O primeiro teve ainda a promoção do Centro de Artes Plásticas, foi montado na antiga Faculdade de Direito e chamou-se 1ª. Mostra Pa-raibana de Arte Moderna. Foi minha primeira participação em um salão de arte, ao lado de Archidy Picado, Leonardo Leal, Jurandy Moura e Elzo Franca, que faziam pintura, o poeta Ademar de Barros que fazia escultura, Edésio Rangel que ganhou 1º prêmio, Adaurí Camilo, o dançarino que também pintava e ganhou o 2º prêmio, Breno Mattos, prêmio de escultura. O segundo foi montado na Biblioteca Pública e dele participaram quase todos os artistas que fizeram o primeiro. Os premiados fomos eu e Breno Mattos.

Governador Pedro Gondim com o ator Rodolfo Mayer e esposa em Palácio.

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A Biblioteca Pública era dirigida por Geraldo Emílio Porto. Assim como a Fa-culdade de Direito e o Theatro Santa Roza, era visada pelos jovens artistas que já reivindicavam espaços para mostrarem sua arte. Na casa de Geraldo reuniam-se intelectuais e artistas que iam à busca de sua rara inteligência, sua palavra brilhan-te e sua encantadora presença. Lá se encontravam diariamente Paulo e Ipojuca Pontes, Virgínius da Gama e Mello, Boaventura da Silva, Vanildo de Brito, Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, Dilermando Luna e o irmão de Geraldo, Mário Moacir Porto, que viria a ter um papel importantíssimo para a cultura local quando se tornou reitor da Universidade Federal da Paraíba. Lá o pintor Domenico Lazzarini, quando esteve aqui para nos ministrar uma oficina de pintura, encontrou o melhor terreno para suas polêmicas conversas sobre arte e filosofia. Assim como Rubens Saldanha, Antonio Bento e Simeão Leal, Geraldo Porto era um dos poucos intelectuais da Paraíba a se interessar por artes plásticas. Tinha conhecimento das polêmicas artísticas da época e era um entusiasta da moder-nidade que se instalava lenta e extemporaneamente. Ele brilhava com suas ideias: “A arte é o diálogo entre uma forma presa e um espírito liberto”, e cativava a todos com suas aventuras filosóficas quando discutia estética. Um dos temas recorrentes nas discussões com Geraldo Porto era a “vanguarda” da época, como as peripécias criativas do Clube do Silêncio e, posteriormente, da Geração 59.

Prof Raul Córdula, Hélio Pedrosa, Waldo Lima do Vale, Raul Córdula Filho, Wills Leal, Jomar Souto e Leonardo Leal na abertura do Salão de Pintura do Estado, 1960.

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O Grupo Santa Rosa

Resolvemos montar um ateliê coletivo. Breno já conhecia a experiência do Atelier Coletivo do Recife. Resolvemos fazê-lo na forma de uma escola de arte, aceitaría-mos alunos para desenho, pintura e escultura, e dar o nome de Santa Rosa (o nome Rosa com z, no teatro, vinha da grafia antiga que acompanhava o nome da Santa, e com s, do sobrenome do pintor Tomaz Santa Rosa, uma das glórias da arte parai-bana). Surgia então a Escola de Artes Plásticas Tomaz Santa Rosa. Nosso patrono Santa Rosa foi um modernista eclético. Pintor como ofício, mas também cenógrafo e artista gráfico. Nestas duas categorias ele foi um pioneiro e um renovador. Com seu cenário para “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues ele revolucionou a cenografia brasileira, e com as ilustrações para os livros da Editora José Olímpio, os de José Lins do Rego principalmente, ele contribuiu decisivamen-te para nossa arte editorial. Santa Rosa morreu na Índia, onde estava acompanhan-do Simeão Leal numa missão diplomática e cultural.

Em pé: João Ramiro Melo, Vladimir Carvalho, Cláudio Rodrigues, Othamar Gama, Breno de Matos, um amigo do grupo, Professor Olívio Pinto. Sentados: José Jesus, Jurandyr Moura, Leonardo Leal, Raul Córdula e Pontes da Silva.

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O Theatro Santa Roza era na época a mais ativa casa de cultura paraibana, onde aconteciam as Semanas de Teatro, eventos catalisadores de toda atividade cultural do Nordeste. Nós fazíamos os cenários das peças locais e, por vezes, atuávamos como atores, maquinistas, iluminadores, bilheteiros: éramos força de tração. Como toda ideia brilhante, foi numa mesa de bar que surgiu a disposição de se ocupar o Theatro Santa Roza com o tal ateliê coletivo. O grupo interessado era composto por mim, Breno e Archidy, na época já amigos inseparáveis, o poeta Jurandy Moura, o xilogravador Pontes da Silva, o cineasta Vladimir Carvalho que na época fazia belos entalhes em casca de cajá, o dentista e pintor Leonardo Leal, o escritor Bento da Gama Batista e o poeta Vanildo de Brito. Instalamo-nos num dos espaços dos porões, uma ampla sala onde funcionam hoje cursos de balé, para onde trouxemos nossos poucos apetrechos: móveis, cavaletes, pranchetas, argilas, tintas, pincéis, papéis, telas e tudo o mais que compunha o nosso pequeno mundo. Ainda sobrava espaço para os alunos de Breno que amassavam barro nas tardes de sábado, entre eles o poeta Ademar de Barros. Essa ocupação foi feita sem maiores problemas burocráticos através de entendimentos com Walfredo Rodrigues, im-portante fotógrafo que registrou a cidade desde os anos 20, e pintor de domingo, que na época estava deixando a direção do Theatro, e Hélio Pedrosa, o diretor que entrava. Fazíamos uma reunião semanal para discutir os estatutos que Vladimir Carvalho defendia com a perspectiva de tornar a coisa “entidade considerada de utilidade pública”. Entre goles de vinho e discos de Bach levados pelo musicólogo João do Ó, os estatutos nunca saíram. Mas saíram as mais brancas esculturas de Breno, os surpreendentes entalhes em casca de cajá de Vladimir Carvalho, óleos lindíssimos de Leonardo Leal, discussões sobre a vida e as artes quando lá chegava Archidy Picado contando as novidades lidas em revistas europeias, quadros de pei-xes e pescadores que marcaram minha entrada na pintura a óleo e geraram minha primeira exposição individual na Biblioteca Pública, fruto do caminho rotineiro que me forçava a passar todo dia em frente à casa de Geraldo Porto e conviver com ele, até seu honroso convite para ocupar aquele espaço. A exposição constava de 22 trabalhos sendo 10 óleos, 5 guaches e 7 xilogravuras. O folheto foi apresentado por Jurandy Moura e a mostra foi programada dentro dos festejos das “Festas Hen-riquinas”, evento em homenagem ao Infante Dom Henrique que Geraldo Porto promovia anualmente para saudar o espírito português e a travessia do Atlântico. A exposição foi entregue ao público no dia 10 de outubro de 1960.

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João Ramiro Melo, Archidy Picado e Vladimir Carvalho na exposição de Raul Córdula.

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Altmar Pimentel, João Ramiro Melo, Prof Dante Delone e Ítalo Dália.

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Bares

A cidade era pródiga em bares. Não os pasteurizados estabelecimentos comerciais de hoje, na maioria lugares sem alma e história. Mas bares e restaurantes plenos de personalidade, como o restaurante Jangadeiro que ficava em frente ao Hotel Tam-baú onde havia um grupo de enormes gameleiras, e onde e escritor americano John dos Passos bebia sozinho numa manhã de sol quando chegou Elcir Dias e o reco-nheceu. Contam que foram três dias e três noites de pura farra etílica e literária. Em Tambaú existiam as tascas, versões autênticas das barracas uniformizadas pela Prefeitura que temos hoje. O poeta Marcos Aprígio de Sá tem um poema sobre uma delas: “Olindina sentou-se em sua tasca / para fazer concorrência aos coquei-ros plantados por Deus.” Em 67, na visita que alguns críticos de arte e artistas fize-ram a José Américo, Mário Pedrosa, fugindo do festival de egos que se passava lá por dentro, me convidou para ver o que havia numa tasca que ficava na praia em frente, e tomamos cachaça com peixe frito debaixo de um coqueiro com o vento do Cabo Branco soprando sobre nós. Indo de bonde para Tambaú a gente saltava no ponto final, o largo onde ficava o Elite Bar, tomava uma sopa de cabeça de peixe com cerveja e ainda dava tempo de retornar no mesmo bonde.

No Largo do Metrópole, início da Av. Epitácio Pessoa, ao lado do cinema, ficava o Bar do Nazista, um paraibano velho e patético que ostentava um retrato de Hitler na parede. O Nazista era o bar preferido de Vanildo e Serafim do Rego, que morava perto, ali no Metrópole, virando a esquina do cinema. Por isso mesmo vários ami-gos juntavam-se lá para beber e falar de arte, política a poesia, como a escritora e poeta Maria José Limeira, a Musa de nossa vanguarda literária, autora de “Olho no Vidro”, “Aldeia Verde Além” e outros livros que a cidade esqueceu de ler, mas quem leu jamais esquecerá. Também iam lá os poetas Marcus dos Anjos, Zezito Cabral, Jurandy Moura e o escritor, na época homem de teatro, José Bezerra Filho, que agora, tocado como eu também pela febre da memória, escreveu um livro sobre o Metrópole.

Outro bar que encantava Vanildo ficava em Jaguaribe, em frente ao pátio da antiga feira que hoje abriga uma sucursal do inferno chamada de Centro Administrativo. Era o Bar 107 de onde saíamos depois da farra e voltávamos pra casa a pé cami-nhando pela balaustrada das Trincheiras vendo a fumaça da fábrica de cimento confundindo-se sutilmente com o breu. Não podíamos deixar Jomar de lado: “Ilha

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do Bispo da cidade baixa / – joia de pobre sacudida ao chão – / é a noite fria – eu sei – que te descobre / aos olhos verdes da divagação”. A Churrascaria Bambu ficava no bambuzal que ainda existe na Lagoa, era o “bar maior” onde Virgínius da Gama e Melo imperava como seu mais ilustre e querido freguês, tanto por sua presença, seu próprio consumo de cerveja, quanto pela pre-sença dos seus amigos e discípulos, que ficavam diuturnamente ao lado dele para não perderem nada de sua verve, elegância e inteligência. A Bambu era o centro de nosso pequeno mundo, lá se passavam todas as coisas, da política à criação de poemas e pinturas. E havia as verdadeiras conferências que Virgínius presenteava aos amigos como Paulo Mello, Jurandy Moura, Archidy Picado, Altimar Pimen-tel, Waldemar Duarte, Eilzo Mattos, Breno, Vanildo, Elzo Franca e tantos outros, como também havia arengas não menos brilhantes entre Mocidade e Mané Caixa D’Água. Foi numa dessas que Mocidade disse: “Mané, vamos ser doido, mas assim é demais.” Mané Caixa D’Água, aliás, Manuel José de Lima, que dizia ter nascido num “planti de cana”, vestia um terno de linho branco, embora roto, e declarava que na Paraíba somente ele e Renato Ribeiro Coutinho – o patriarca da época, usavam branco. Editava seus livros, hoje material para bibliófilos, e vendia à noite nos bares com muito sucesso, viveu disto até o fim. Mocidade, que em Patos, sua cidade natal, era conhecido por “Carne Verde”, por ser sarará e ter a pele verme-lha, cor de carne sem pele, era o doido do Governador João Agripino. Explico, os doidos paraibanos costumam ser adotados por personalidades políticas, como fez o Amigo Velho, ou melhor, o Governador Hernani Sátiro, que adotou Vassou-ra, ou melhor, Maria Isabel Bandeira Brasileira, que andava montada num cavalo carregando uma bandeira do Brasil tremulando no mastro. João Agripino adotou Mocidade. Os Gaudêncios adotaram Carbureto, e Caixa D’Água passou por todos incólume. Mas Mocidade nos deixou frases e atitudes de rara lucidez, como “Pra ser doido na Paraíba é preciso ter muito juízo.” Foi na Bambu que ouvi falar primeiro do escultor Jackson Ribeiro, paraibano de Teixeira que morava e trabalhava no Rio e que fora premiado no Salão Nacional de Arte Moderna. Jackson era o fenômeno artístico da época, elogiado por Mário Pedrosa entre outros críticos que o consagraram. Voltando ao nosso périplo boêmio, descendo a ladeira que dá no Theatro Santa Roza, em frente à antiga Assembléia Legislativa ficava o Bar Pedro Américo, aberto de dia e de noite sob o comando noturno do garçom Carioca, que tinha especial atenção pelo que ele chamava “gente da arte”, onde estavam incluídos os atores e os jornalistas. Lá tomávamos a sopa da madrugada ou o café da manhã regados a cerveja.

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Do outro lado da Praça Pedro Américo, numa transversal à Guedes Pereira, esta-va o Trianon, mais conhecido como Bar do Grego, do simpático casal Lui e Léo, ele consertador de geladeira e ela dona de casa e de bar, que depois da morte de Lui se formou em medicina e se foi para o Acre. Ela preparava pratos de nomes estranhos que não sabíamos sequer se realmente existiam na mesa grega, mas que foram incorporados à gastronomia boêmia paraibana daquele tempo, como “sopa avguê lêmono” e “guirvalachia”. Lui se dizia irmão do presidente da Academia de Letras da Grécia, tocava violão e cantava uma música grega intitulada “Canção de Fear” que todos, sem saber uma palavra de grego, cantavam onomatopaicamente, uníssonos noite adentro. Otávio Sitônio se lembra de outra canção linda que Lui cantava, “Quando saio a pescar”, de que gostava tanto que chegou a decorar o som das palavras: “Sei ki nai na psara opula, apto ailô”. Na Duque de Caxias, imediações do Ponto de Cem Réis, ficava o Bar Duas Améri-cas, o chope mais bem tirado da cidade, e a Casa dos Frios, onde se ia à procura de casquinhos de caranguejo, e o Bar de Lauro, com seu concorrido balcão. Descendo para o Varadouro encontrávamos o Hotel Globo, decadente e belo, com sua varanda olhando para o Sanhauá que brilhava sob a luz do ocaso, luz que quem soube interpretar foi Ivan Freitas na sua última fase de pinturas de paisagens. Todos nós o frequentávamos, mas os irmãos industriais Milton e Marcelo Veloso Borges, meus colecionadores, sempre que chegavam a João Pessoa me convidavam para uma cerveja de fim de tarde com o acompanhamento das empadas de camarão feitas com massa fina, iguaria que não se tem mais hoje. O garçom, que a memória não foi justa e esqueceu o nome, vinha nos servir delicadamente. Alguém sempre perguntava, para ouvir a mesma resposta: “como vai?” E ele: “Chupado da barata, arranhado da muriçoca, comido pela pulga... ” E ele nos servia,além das tais empa-das, posta de peixe frito, ensopado de camarão e caranguejo, camarão frito, agulha frita, sururu, casquinho de siri, chié no coco e ostra. Chico Pereira, menino enxe-rido, chegava de Campina na estação de ônibus que ficava na Praça Pedro Américo em frente ao antigo coreto, e descia correndo a Barão do Triunfo até o Hotel Globo, para não perder o pôr do sol. Depois do Hotel Globo só nos restava a barraca de Merêncio, na beira do Rio perto de pequeno ancoradouro, resquício do que restou da antiga construção do porto da Paraíba que o Presidente Epitácio pagou e nunca foi construído. Merêncio era um caboclo alto e forte, o que já que nos garantia segurança. Na sua barraca havia sempre dois “bois de fogo”, que eram latas cheias de bosta de boi seca pegando fogo, para espantar muriçocas, maruins e mucuins abundantes naquela ribeira. Sob uma lamparina de querosene lá se comia o melhor caranguejo com cerveja e ca-

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Livro de Maria José Limeira, projeto gráfico de Raul Córdula.

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chaça, e só tinha isso mesmo. Zé Bezerra Cavalcante, depois de fazer cem peitorais e cinquenta flexões com maromba, ia pra lá encontrar a gente e comer caranguejo como se fosse um barqueiro neolítico. Com nossas habilidades de artesãos e criatividades de “designers”, eu e Breno fa-zíamos ambientações, desenhávamos móveis e objetos utilitários. Assim fizemos o interior da Adega Del Alcaide Don Francesco de Castejón, do nosso amigo Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, o único homem de letras rico que havia na cidade. Usamos mesas e bancos de tábua de pinho queimado a maçarico, como eu havia aprendido no ateliê de Márcio Mattar, no Rio. Com isso não ganhamos dinheiro, mas o direito de beber e comer de graça. A mesma coisa fizemos no Maravalha Praia Clube, ajudados por Antonio de Pádua Carvalho que nos cedeu a sucata de lataria de VolksWagens batidos, que pintamos com tinta fluorescen-te, e fizemos composições sobre as paredes, formando painéis acesos fantasma-goricamente com luz ultravioleta, dando aos incautos a aparência de “caverna tecnológica”. Lá em baixo, na Rua Maciel Pinheiro, ficava a Zona. O Bar Tabajara era o limite dos dois mundos, a civilização e a barbárie. Muitas vezes para mim a barbárie estava em cima e a civilização em baixo, como quando visitávamos o cabaré de Berta, que tinha no seu quarto uma estante repleta de livros presenteados pelos amigos que conheciam sua paixão pela leitura. Era amiga de Jurandy, e por isso se tornou amiga de todos nós que a adorávamos como a bela prostituta que era, mas também, e principalmente, como a sensível mulher que sabia de cor poemas de Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, e que nos recebia à tarde em sua casa vestin-do combinação de Jersey negra e cabelos no boby, para recitais acompanhados de cerveja gelada, até a hora de abrir a “casa” e começar a noite. A partir daí, ela e suas meninas eram apenas profissionais. Tinha a casa de Normélia, o Cabaré New York e o cabaré de Hosana, onde eu e Vanildo íamos comer à noite um patético bife com farofa amarela, e ouvir o pianis-ta Roupa Velha tocar “Affecto de Mãe – valsa em seis partes e meia”. Roupa Velha usava um terno maior que ele, cabelos longos por falta de dinheiro para cortar, sapatos furados e gravata preta. Diziam que ele morava debaixo da marquise d’As Nações Unidas, a loja de tecido que havia na esquina do Ponto de Cem Réis com a Padre Meira.

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Têmpera de Flávio Tavares pintado no ateliê do Setor de Artes Plásticas do Departamento Cultural da UFPB, com pigmentos japoneses presenteados por Hayashi Kawamura.

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O Departamento Cultural da UFPB

No final do ano de 1962 o Reitor Mário Moacir Porto propôs ao grupo da Escola Santa Rosa a encampação de sua atividade didática pela Universidade. Ele acre-ditava que a ação cultural universitária tinha que partir daquele espaço e naquele tempo, aproveitando a emergente força criativa que se via emanar dos porões do Teatro. Não temos dúvida de que a influência de Geraldo Porto, seu irmão, foi decisiva para Mário Moacir tomar esta decisão. Foi criado assim o Departamento Cultural da Universidade Federal da Paraíba e à sua frente, como coordenador, foi colocada a figura competente e obstinada de Hildebrando Assis. Na fase de definições do Departamento Cultural, quando Archidy estava montan-do o Serviço de Artes Plásticas do Departamento, a sede dos acontecimentos era o sobrado de azulejos onde hoje funciona a Subsecretaria de Cultura do Estado, em frente à praça Dom Adauto. Lá estava todo o material adquirido pela Universidade para formar os ateliês: tintas, papéis importados, cavaletes, pincéis, tudo. O espaço era ótimo. Lá começamos a trabalhar em nossas propostas, que incluíam a produ-ção de nossa própria arte. Numa época e numa região em que não havia meios de um artista jovem adquirir material de qualidade para pintar, aquilo era fantástico. Hoje reconheço aquele começo como um privilégio Frequentávamos Olinda, para onde íamos visitar os ateliês dos artistas que lá se instalavam em torno do Movimento da Ribeira, na redescoberta daquela cidade que se tornou o polo de referência das artes plásticas que é hoje. Vicente do Rego Monteiro foi nomeado Secretário de Turismo do Prefeito Eufrásio Barbosa, o ini-ciador e incentivador de todo aquele movimentado momento artístico. A Vicente juntaram-se Adão Pinheiro, que logo viria substituí-lo como Secretário de Tu-rismo, Anchises Azevedo e Montez Magno, num velho sobrado perto do antigo mercado da Ribeira. Entre os vários acontecimentos daquele momento o que mais ecoou foi a transformação do Mercado da Ribeira em um centro cultural, com ateliês e galerias. Entre Recife, Olinda e João Pessoa, muita coisa estava acontecendo, muitas pesso-

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as encaminhavam-se nos ofícios da arte. Uns eram artistas, outros não, mas para todos a arte não se separava da vida. Mantínhamos intenso intercâmbio com os artistas de Olinda e Recife como João Câmara, Adão, Reynaldo Fonseca, Roberto Amorim, José Tavares, Sylvia Barreto e Anchises. Com o apoio da Cultura Fran-cesa, que funcionava na época no Parque Sólon de Lucena, realizamos uma ex-posição coletiva com artistas dos dois estados: João Câmara, Reynaldo Fonseca, Roberto Amorim e Sylvia Barreto, por Pernambuco, e Archidy, Carlos Ulisses, An-tônio Cândido e Hermano José, Breno Mattos e eu, por João Pessoa. A exposição foi produzida por Hildebrando Assis e antecipou-se à montagem do Setor de Artes Plásticas do Departamento Cultural da UFPB. Não posso omitir que o aprendiza-do dos ateliês de Olinda e Recife foi para mim muito importante. Nas vindas de Câmara a João Pessoa e nossos encontros na casa de Geraldo Porto, comentavam que só se falava em técnicas de pintura e em coisas absolutamente estranhas para os comuns dos mortais, tais como veladuras, glacês e imprimações de telas. Na Exposição da Cultura Francesa estavam denunciadas as tendências artísticas de cada um que, entre modismos absorvidos pelas leituras de revistas e jornais e as retomadas dos segmentos tradicionais da pintura, como no caso dos pernambuca-nos que se interessavam pelas maneiras flamengas de pintar, viam-se determinadas sequências que eclodiram no panorama da arte atual do Nordeste. Os paraibanos se situavam numa zona parda entre a mera expressão através da pintura e o jogo de linguagem envolvendo os fatos sociais do momento, ponto de partida da vanguar-da brasileira dos anos 60. O Departamento Cultural da UFPB se compunha de quatro Serviços (setores): Artes Plásticas, Música. Teatro e Cinema. A equipe básica era formada por Archi-dy Picado, Breno Mattos, Arthur Cantalice, Lourdes Medeiros, Vanildo Brito e eu (artes plásticas); Rino Vizzani, Joseph Kaplan, Arlindo Teixeira (música); Rubens Teixeira (teatro), Linduarte Noronha e Ipojuca Pontes (cinema). O DC foi insta-lado na Rua Princesa Isabel, ao lado do recém-inaugurado edifício da Reitoria, belo projeto do arquiteto Leonardo Stuckert. No início de 1963 fui convidado para integrar o DC como professor auxiliar do curso livre de desenho. O Serviço de Artes Plásticas se propunha a assumir a questão didática com ateliês montados com orientação de um artista, algo semelhante às oficinas e workshops de artistas que se faz hoje em todo o mundo, solução para escapar às orientações acadêmicas que estavam didaticamente atrasadas em relação ao ensino da arte. Sabíamos que havia muito que aprender, mas o entusiasmo que nos sobrava nos permitia abraçar aquela responsabilidade. Em março de 1963 foram abertas as matrículas para os cursos livres. Os ateliês de pintura, desenho, modelagem e escultura e iniciação nas artes plásticas, assim

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como o curso de história da arte, estavam devidamente montados dentro de pa-drões técnicos atualizados. Tivemos mais de 300 pessoas inscritas, ultrapassando o número de alunos da Faculdade de Filosofia, a mais numerosa da UFPB. A aula inaugural foi proferida pelo Reitor Mário Moacir Porto. E assim começamos. Entre os alunos inscritos naquele ano estavam alguns jovens que se destacaram como figuras de frente nas artes plásticas na cidade como Flávio Tavares, Regis Caval-canti e Celene Sitônio. Flávio e Regis entraram como alunos de iniciação às artes plásticas com a professora Lourdes Medeiros. Assumi a supervisão do Serviço e recebi os dois no ateliê de pintura, juntamente com Celene Sitônio, que se tornou minha assistente, entre outros alunos que mais tarde se tornaram artistas. Régis ainda menino já desenhava muito bem, assim como Flávio. Mas eu sempre achei que ele tinha algo de técnico, racional, e ele voltou-se mesmo para a arquitetura, tornando-se o famoso arquiteto que é hoje. Mas Flávio era diferente. Filho de Dr. Arnaldo Tavares, um dos artistas do Centro de Artes Plásticas, ele já se expressa-va artisticamente, seu desenho já era arte. Acompanho sua trajetória até hoje, em 1981 escrevi duas crônicas sobre sua pintura à guisa de texto crítico. Um deles eu reproduzo aqui:

Civitas Diabolis

Emergem de um mundo escondido cabeças coroadas de chifres, diademas brilhantes cercados de risos e dores. Sobra do banquete, a mosca gigante, o retrato na toalha. Bebe o leite deste peito, ilustre personagem: Flávio Tavares pinta o inferno que traz nos olhos, mostra a oculta guerra entre o bem e o mal como somente sabem mostrar os que veem, no fundo da alma, as cida-des do diabo. Os grifos e os monstros guerreiros, personagens assíduos de sua cena, nada mais fazem do que servirem à devoradora esperança. Eis que ela surge vestida de negro acariciando um pelágico felino, derrama sua face como uma pasta escorrendo entre os dedos sob o olhar de pedra de uma matrona ariana. Ela espreita satânica, equilibra-se no arame, se enrosca em gelados orgasmos. Às vezes, é um anão carregado na corcunda, outras, um animal antigo, ancestral. Num momento se decompõe de velhice, noutro, renasce numa jovem e bela mulher. Ela é pródiga em aparições terríveis... Num óleo de 1981 anjos decaídos protegem Saturno, o Cardeal de Ouro. Cruzam-se lanças e espadas, os olhares parados sob a luz azulada. Saturno olha o infinito, mas seu outro olhar nos vigia. O olhar que controla e seduz, o falso mirar através dos óculos de executivo pendurados no rosto, sob a mitra dourada. Na mão direita, o cálice de veneno oferecido para quem tem

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duas bocas, dois pesos e duas medidas: aquele que é o bobo da corte, o capa-taz. É o mesmo Saturno pintado por Goya, devorando os filhos. O poder da força destruidora, a vertente do nada, a morte da obra. Na alquimia, porém, o Rei devora seu filho quando o sal e o mercúrio se integram. É o delicado momento da sublimação, quando o homem maduro incorpora sua juventude à sua vida, como que num resultado terapêutico, sendo o filho devorado o símbolo de suas próprias experiências. Nesse pon-to, o Rei adoece e morre para o passado, renascendo depois, com seu filho (sua obra) para uma vida de felicidade. Mas esse momento muitas vezes não acontece, a obra não é concluída, a carne-de-sua-carne não é digerida e a morte deixa de ser uma passagem e se torna o fim inevitável. Eis que, quan-do assim acontece, tudo apodrece e se transforma em pó: o atanor, a pedra e a atmosfera da obra se destroem, como se destroi a alma da sociedade sob o julgo de Saturno, o tirano. Mercúrio catalisa as forças do Rei - seu pai - e de seu filho - o artista. É ele o elemento de ligação, o fio condutor da mensagem. É o meio, o que equiva-le dizer, em linguagem contemporânea, que Mercúrio é a mensagem, todo espírito independente sabe disso. Por isso mesmo ele é fonte de ideologia e de saber. Na arte semeada de símbolos do pintor Flávio Tavares, Mercúrio é a fonte articuladora, o motivo ou a vontade de denúncias, o arquiteto do terrível teorema que tem sua chave no passado e sua resposta no futuro, mas que existe no aqui e no agora como toda obra imóvel, como a pintura, que é como um canto de louvor aos mistérios. Para refletir sobre o ímpeto de criar que move a alma do artista, lembramos a narrativa de Hermes Trimegisto no Corpus Hermeticum quando ele diz que Nous, o Pai, criou com o fogo, sua matéria prima, um homem seme-lhante a ele. Nous sentiu tanto amor por esse ser, que era tão belo quanto ele, que o compreendeu como seu filho. O homem, sentindo o poder daquela criação, pediu permissão ao Pai para criar também pois reconhecera na face dele a luz advinda do prazer de criar. Naquele momento nasceu o artista. Isso nos ensina que a obra não é filha do artista, mas sua criação. A imagem do pai não significa necessariamente paternidade, assim como o ouro pode estar no cascalho, mas não ser o cascalho. O ouro pode ser filho da pedra, mas a escultura de ouro é criação do artista. Outra coisa que nos ensina Her-mes (Mercúrio) Trimegisto (três vezes mestre), o inventor dos hieróglifos e das artes antigas, é que a obra do Criador foi feita com o fogo, a energia transmutadora, como na obra alquímica. O espírito da obra é, portanto, o

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calor que impulsiona a matéria, dinamiza os átomos, organiza e desorganiza as estruturas num ir e vir eterno. Realizar a obra é deter esse fogo, mas dominar o saber, como fez Prometeu, é um pesado fardo, é estar sujeito a ser devorado por Saturno. Pintar é como congelar a labareda, manter a chama imóvel revelando seus segredos, parar a vida e encarcerá-la num gesto. A pintura de Flávio Tavares é isto: embora o abutre ronde seu fígado ou Sa-turno espreite no canto da tela com os olhos inchados de ódio e fantasiado de rei, ela é uma emanação do pai, não o pai genético, físico, social, mas o eterno, e por isso mesmo, inatingível. O gerador da vida, do conflito e do mistério.

Litografia de Flávio Tavares.

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Domenico Lazzarini O ambiente intelectual da época aceitava muito bem as investidas do DC/UFPB. Era o tempo da Churrascaria Bambu, centro da boemia artística da cidade. Os dias eram coroados com reuniões em volta das mesas comandadas por Virgínius da Gama e Mello, onde se comentavam, possuídos pelas virtudes da boemia, os sucessos e fracassos diários. O Plano de Ação Cultural de Pedro Gondim estava em plena atividade e não faltava apoio para as propostas, parcimoniosas na épo-ca, de projeção dos novos artistas paraibanos. Nós, orientadores sem orientação, chefes de ateliês livres, despreparados ainda para as tarefas que desempenháva-mos, começamos a necessitar de treinamento. Em conversa com José Simão Leal, uma das maiores personalidades culturais que tivemos, colecionador da boa arte contemporânea, crítico de arte e artista, que na época dirigia o Departamento de Documentação e Cultura do MEC, Hildebrando Assis foi motivado para trazer um artista experiente que nos capacitasse para nossas tarefas educacionais e extensivas. Precisava ser um nome que além de artista atuante fosse também um mestre da técnica e do conhecimento artístico. Quase que de surpresa, numa tarde de abril, chegou a João Pessoa o pintor Dome-nico Lazzarini, armado de apetrechos e vontade de trabalhar. No ateliê de pintura instalado em regime de tempo integral conhecemos pela primeira vez as técnicas antigas de esticar telas, imprimar, esboçar, fabricar têmperas com caseínas, ceras, ovos, gesso crê, alvaiade, solventes e óleos. Aprendemos a fabricar tintas a óleos com pigmentos que tirávamos lavando as tintas guaches importadas consegui-das aqui – tinta de qualidade era um grande problema para os pintores na época Aprendemos também a carpintaria da pintura e o acondicionamento de obras em papel. Mas o que mais importante Lazzarini nos ensinou foi a práxis da arte, a diferença entre arte e habilidade e o abismo entre o olhar moderno e olhar do passado.O grupo todo se reunia em volta do mestre que já tinha conquistado a simpatia dos intelectuais da época. Virgínius escreveu-lhe crônicas de amigo, Ge-raldo Porto recebeu-o em tertúlias na casa da ladeira. Ele fez amizade com quase todo o mundo intelectual da época, de Geraldo Porto a Virgínius da Gama e Melo e Hildebrando Assis, passando pelos orientandos e pelos poucos gourmets que na época existiam na cidade. Ele era um refinado cozinheiro e trocou muitas receitas com o chef do restaurante da sede do Clube Cabo Branco onde ele comia todos os dias. Entre seus amigos cariocas estava o escritor Lúcio Cardoso. Assistimos então a verdadeiros saraus teóricos e críticos na casa de Geraldo, entre Lazzarini, Virgí-nius e Waldemar Duarte sobre “Crônica da Casa Assassinada”, a mais importante obra daquele autor.

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O trabalho com Lazzarini era intenso, sete da manhã Lazzarini estava pontualmen-te no ateliê, e sobre sua mesa meia dúzia de desenhos acabados de ser feitos. Ele nos dizia que esta era uma lição de Picasso, que ele conhecera: “Todo dia, assim que acordar desenhe.” A passagem de Lazzarini por João Pessoa foi pródiga de bons acontecimentos. Além dos ensinamentos que recebemos, Lazzarini montou no DC o primeiro es-paço expositivo para a arte moderna da cidade, a Galeria de Arte Contemporânea, uma sala adaptada com painéis e iluminação adequada para exposições de pintura, gravura, desenho e escultura. A Galeria de Arte Contemporânea do Departamento Cultural da UFPB foi inaugurada com a exposição do mestre com todos os quadros pintados em João Pessoa.

Breno Matos, Zezita Matos, duas amigas, Domenico Lazzarini , Nelba Gadelha e Archidy Picado na exposição de Lazzarini que inaugurou a Galeria de Arte Contemporânea da UFPB, 1963.

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A Galeria de ArteVirgínius da Gama e Mello

Foi notável que a Galeria de Arte da Paraíba fosse inaugurada com uma mostra do pintor Domenico Lazzarini, consagrado universalmente, que se encontra aqui como orientador do curso de Artes Plásticas, em boa hora instalado pelo reitor Mário Moacir Porto. Trata-se de uma galeria pequena, mas de galerias pequenas anda o mundo cheio. Elas se engrandecem por longo trabalho de prestígio e seleção – galerias não nascem feitas. Poucas porém começam tão bem quanto a da Paraíba com uma exposição de alto nível – e raro a de província que tenha começado assim. Pelo menos Per-nambuco não teve essa glória. A inauguração foi legítimo sucesso. Sucesso de gente como se vê raro por aqui. Traje informal, mas o que se viu aqui foi todo mundo a caráter, sendo que o Vanildo Brito andejava de banco deslumbrante contrastante ao cinza de Raul Córdula Filho. Do naipe feminino, para falar apenas de gente da casa, quer dizer, do Departamento Cultural – a pintora Celene ondulava em corredio negro lembrando todo o romantismo das “damas de preto” enquanto a Diva Aquino se punha, como sempre, em maravilhoso show. Zita Marinho, viva, prestimosa, gentil, atenta, era uma espécie de anjo da guarda para o diretor Hildebrando Assis, sempre correto no elegante trato aos presentes. Inclusive a fina flor da pintura pernambucana – Francisco Brennand, Wellington Wirgolino, Wilton de Sousa, João Câmara, coman-dados por Ariano Suassuna. Disse coisas lindas o Vanildo Brito. E o povo viu os quadros com reações diversas. Houve quem se espantasse por que não havia retrato ou paisagem com coqueiros, cajueiros, bananeiras, mangueiras e outras árvores frutífe-ras. Havia apenas linhas e sombras variando em traço e cor. Daí ficou-se sabendo que pintura é algo mais que a Gioconda, apesar de magnificamente bela, e pode ser algo mais ou diferente das bojudas e apetitosas maçãs tão a gosto dos criadores de “naturezas mortas”. Foi o primeiro serviço da Galeria de Arte da Paraíba, que começou logo cumprindo, com segura elegância, o seu destino de apresentar o bom e variadamente – galerias são para isto.

O Norte, maio de 1963 Porém a burocracia mais uma vez venceu as ações da arte em procura da liberdade de criação. O novo diretor do Departamento Cultural, Sr. Otacílio Queiroz, chefe do coordenador Hildebrando Assis, contra tudo e contra todos mandou fechar a

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galeria justificando que o DC não tinha uma secretaria à altura de sua importân-cia, e nosso espaço expositivo foi transformado em uma sala para a sua secretária despachar para ele alguns ofícios por semana. Além da exposição de Lazzarini a Galeria realizou uma mostra de arte indígena da coleção de Balduino Lélis, e al-gumas mostras de trabalhos dos mais destacados alunos dos ateliês, como Celene Sitônio e Régis Cavalcanti. Paralelamente a estes acontecimentos, no Rio de Janeiro, Hermano José e Ivan Frei-tas apareciam. O primeiro participava da 1ª Bienal Americana del Grabado, em Santiago do Chile, que reunia os mais importantes gravadores da América Latina. Num belíssimo catálogo, a representação brasileira mostrava os pernambucanos Gilvan Samico, Assunção Souza, José Lima, Newton Cavalcanti, o paraibano Her-mano, e mais: Dora Basílio, Edith Bering, Anna Bella Geiger, Maria Bonomi, Adir Botelho, Miriam Chiaverini, Roberto Delamonica, Walter Marques, Fayga Ostro-wer, Moacyr Rocha, Marília Rodrigues, Rachel Stroesberg, Suliman, Isabel Pons, e Vera Mindlin. Somente estavam reproduzidas no catálogo as obras de Samico, Roberto Delamonica e Hermano José.

Virginius da Gama e Mello

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No final de 1963 o Departamento Cultural realizou a 1ª exposição de seus alunos. Um folheto tipográfico com apresentação do poeta Vanildo Brito documentou o acontecimento. O Curso de Introdução às Artes Plásticas mostrava 15 alunos de pintura, 3 de xilogravura, 12 de escultura e 10 do curso infantil. Mesmo sem a galeria o DC era um ponto de concentração de alunos e artistas, um sucesso de público e de realizações na área da cultura, o que se poderia chamar de um espaço cultural espontâneo, sem muito planejamento, mas detentor do charme das coisas feitas com vontade de dar certo. Em 1964 os ateliês do DC saíram da Rua Princesa Isabel e se instalaram num gal-pão construído especialmente numa área atrás da Faculdade de Filosofia. Eu e Breno ocupamos os excelentes espaços daqueles ateliês coletivos equipados com equipamentos necessários e suficientes para o nosso trabalho. Comigo estavam 11 jovens artistas, entre eles: Celene Sitônio, Flávio Tavares, Regis Cavalcanti, José Altino, Nadieje Paiva, João Leonardo Filho, Edílson Paiva e Terezinha Camelo. Zé Lucena (José Martins de Lucena) era o auxiliar técnico colocado pela Univer-sidade à nossa disposição. Limpava os pincéis, esticava as telas, arrumava tudo. De tanto ver o que se passava resolveu também pintar e começou a aproveitar as sobras de tinta que ficavam nas palhetas que ele limpava no final de cada dia, e transformou-se no artista que conhecemos hoje, autor de uma obra naif. Pura, autenticamente popular. Foi também neste ateliê que comecei a vender minha arte. Lembro-me das visitas dos colecionadores Maurílio Almeida e Marcelo Veloso Borges em busca de nossos quadros. Neste mesmo ateliê eu pintei um tríptico para o Restaurante do Clube Cabo Bran-co, no bairro do Miramar, encomendado pelo arquiteto Acácio Borsoi através do decorador Francisco Rodrigues. Certo dia o Presidente do Clube e Prefeito da ci-dade, Damásio Franca, não entendendo o que estava pintado, pediu a seu amigo Euclides Leal, hoje professor do Departamento de Artes da UFPB, que pintasse por cima do meu quadro algo que ele entendesse, e assim foi feito, mas ele não pintou por cima de minha tela de linho, rasgou minha pintura e esticou um pano de algo-dãozinho e nele pintou um garçom com um prato de lagostas. Fiz naquele ano alguns desenhos para ilustrar livros e revistas. Destaco o livro de contos “O cantar nos olhos” de Paulo Melo, editado em mimeógrafo pelo autor. No final do ano o Departamento Cultural fez sua 2ª exposição na Faculdade de Direito. Houve premiação dos alunos e o 1º prêmio foi dividido entre Guy Joseph e Cleofas Leunam. A mostra foi aberta pelo Governador Pedro Gondim, como era de praxe naquele tempo.

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Crônica do cotidianoGermana Vidal

Sete horas da manhã, está no ar o Setor de Artes do Departamento Cultural da UP. José Lucena, ontem simples funcionário, hoje pintor de talento, abre as portas à turma que vem chegando para as aulas. Dentro em pouco já nin-guém se entende: aqui um piano tocando, acolá o som de um violino, mais além um pincel que desliza sobre a tela misturando cores, criando, eterni-zando... Tudo doido, a gente vê pelos olhos vagos, sonhadores, de quem vive num mundo muito diferente. E não podia ser de outro jeito, que artista que não é doido, ou termina estourando, ou não é artista de verdade. Sentado no sofá prof Emílio Sobel escondido atrás de seus óculos escuros dá para pen-sar “Não, ele não está. Deve ter saído, podem crer.” E o ruído estranho? È o prof. Piero Severi mastigando gelo. Diz que sempre treina para as reviravol-tas da vida, amanhã pode não ser mais um violoncelista, irá comer vidro nas

Dr Arnaldo Tavares, Governador Pedro Gondim e Prof Lourdes Medeiros na inauguração da exposição dos alunos do Setor de Artes Plásticas na Faculdade de Direito.

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praças públicas. Será um artista de qualquer maneira. Alternativa não tem. E perguntem, para experimentar, que dia é hoje? Que logo uma voz distra-ída, a do Prof. Kaplan ou do Prof. Cussy, na certa lhes responderá: Sonata de Schubert. Ou Quarteto de Beethoven. De vez em quando chega alguém com os sapatos trocados. Como não falta quem fale sozinho. Quem ria so-zinho. Que o artista por si só se basta. E até sobra. Quando ele é toda uma orquestra, um coral inteiro, como o professor Arlindo Teixeira. E o mal é contagiante, saibam. Com pouco todo mundo está ficando doido, também. Prof. Reginaldo, por exemplo, que não era, já está bem iniciado, benza-o Deus. E assim também o secretário, a datilógrafa. Vai tudo ficando tan-tan, tudo de olhos na lua, pensando na imortalidade da alma. Os pais dos alunos, os alunos. Os alunos, pequenos artistas que, como é natural, devem honrar a classe bem cedo. Há um deles, de 13 anos – Hermano Assis – vai tocar hoje no auditório da Reitoria – vocês precisam de ver. Já não apenas doido, é furioso, tenho pra mim que é dos que rasgam dinheiro. Acreditem, leitores, o menino não é desse mundo de feijão com arroz. Coisas maravilhosas acontecem no Setor de Artes. Prof. Cantalice convidou o Professor Lázaro para uma coelhada na Praia do Poço. E Lázaro, muito preocupado: Será que devo comer coelho tendo essas minhas orelhas? Cele-ne Sitônio, sorrindo incompreendida fez uma quadra, que botou no quadro, falando em avena que não é aveia, em morena que não é ela, e nem eu, com h. E em consequencia os críticos de arte não manjaram nada. Ainda falaram na pintura, mas boiaram na poesia, entenderam tudo às avessas. E a inau-guração do café? Chegou Piero com um martelo, cortou a fita simbólica. Biscoitos Maria completaram a solenidade. E discursos comovidos. Dr. Hil-debrando Assis, o diretor, Artista com A grande, doido por excelência, pro-clamou sua satisfação, congratulou-se com o café. De repente parou. Ficou triste. Tinha assistido “Freud... Além da Alma”. E falou pessimista: Tenho a impressão que estou criando juízo! Por Deus, leitor, se isso não for mais uma bendita psicose, terá sido decerto, a mais triste das notícias que recebi nos últimos dias.

O Correio da Paraíba, 1965

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Samico, João Câmara, Jurandy Moura e Raul Córdula em reunião de professores do Setor de Artes Plásticas, em 1968.

Paulo Melo e Celene Citônio na Galeria de Arte Contemporânea da UFPB.

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Pintura de Raul Córdula da exposição da Galeria Verseau.Copacabana, 1965.

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Conversa com o poeta LuisCarlos Cavalcanti

Válidas são as apresentações que, num misto de surpresa e encantamen-to, impõem-se na fixação resoluta das grandes palavras. Daí, o artesa-nato da formalidade produzir os usuais calos da liberdade psicológi-ca da espera. O que habitualmente constitui uma mecânica de limites próximos e convencionais. Neste diagrama de situações comuns, é onde se sustêm as bases informativas da apresentação – que neste particular resume-se ao fato – no simples fato de o homem sempre ter alguma coisa importante a dizer. Os pintores de hoje encontram, de saída, um problema no confronto entre uma arte pura (arte pela arte) e uma arte engajada, confusão criada pelos críticos e pelos pintores intelectualizados. A meu ver, o pintor é mais um ho-mem que sente e faz do que um homem que pensa. O artesanato da pintura como preparação técnica ainda é e continuará a ser um grande início. Daí, para atingir o seu fim, o artista poderá estar ligado a uma fé coletiva como Orozco, Siqueiros e Rivera. Mas não teriam, certamente, os mexicanos mais força do que Morandi ou Bissier, que limitam seus mundos (ou suas fés) ao silêncio de seus jardins. É onde Raul afirma seu conceito de autocompromisso a verificar-se em sua fé – liturgia plástica de seus toques elaborativos – partindo a uma identidade em todos os modos de sua operação ao transcender-se. Eu, como jovem e nordestino, procuro me colocar na posição de nossa cul-tura – a “cultura” de nossa região. Depois, partindo do mais elementar con-ceito de pintura – pintura não cópia do panorama que se vê – procuro, com minhas figuras manchadas que têm um ritmo de caminhada, me identificar com o nosso dia-a-dia cheio de insatisfações. Identificar-se com isto não significa identificar-se com o nosso folclore, pois aqui também existe uma vida urbana.

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Raul vem demonstrando em suas composições um grotesco ascendente. Purificado, digamos. Esta característica é intencional, usada apenas na formação já objetivada ou vem da espontaneidade comum de sua har-monia? O grotesco, como é tratado universalmente – das cavernas à nova figuração – assume todos esses aspectos: como simples figura desenhada no muro, ou dentro da Arte, como verdadeiro estilo. Seria o grotesco espontâneo so-mente na pintura dos inconscientes, a pintura das crianças ou dos loucos?, Desde que se faça uma pintura cerebral, ou melhor, consciente, vai-se ver que o grotesco como engajamento, sem querer ser sartreano, representará o “absurdo cotidiano.” Os seus quadros têm uma unidade dentro do prefixo “circunstância” ou condicionam variáveis a novas formações pictóricas? A forma é variável sem nenhuma desvantagem para com a força interior da obra. Foi o que fez e vem fazendo Picasso, açambarcando todas as formas possíveis de pintar a sua figura. – monumento da Arte universal. Das cir-cunstâncias dependem a motivação e a temática de meu trabalho. Acredito que um artista em formação como eu pode honestamente cometer “pulos” em seus trabalhos desde que ele parta de uma pesquisa ou premissa cuida-dosa. Quanto às fases de sua pintura, há uma intenção particular de mudança, motivada pelo desejo de fazer coisas diferentes da sequência vista, ou é apenas uma tônica expressiva de novas sensações? É necessário dizer que sou um pintor de fases. Existem pintores que conser-vam uma mesma forma durante anos ou mesmo durante toda sua obra. É o caso (permita-me citar os mestres) de Matisse, Braque, Soutine. Outros evo-luem uma só ideia variando-a ou reduzindo-a: Mondrian Malevitch. Mas existem os pintores que mudam suas formas conforme as circunstâncias, é o caso de Picasso que evoluiu do impressionismo ao cubismo passando por todas as correntes artísticas (correntes racionais), hoje transcendendo ao próprio cubismo. Podemos dizer que a diferença de comportamento entre o artista que se conserva numa forma imutável e o que tem diferentes fases é característica do panorama artístico atual. Mas é necessário dizer que mu-danças formais não significam mudanças estruturais. As minhas várias fases de pintura que apareceram em pouco tempo se explicam melhor quando

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se considera a minha pintura como algo redutivo, isto é: eu inicio uma fase nova jogando com as tintas e com muita disposição para pintar. Durante o trabalho o tema se reduz e se simplifica. Chego ao ponto da simplicidade máxima. Neste ponto o tema está esgotado, chegou a hora de mudar de fase.Minhas primeiras fases partiram de figuras desenhadas ao léu, em busca de definição e estilo. Hoje pinto figuras com tratamento, digamos assim, abs-trato, depois de pintar por algum tempo apenas “abstrações”, reencontro-me com a representação da figura. Admite que haja adiante da condição de “aparência” – o real visto – uma “transparência”, ou digamos, um emolumento particular de além-cores em relação ao espírito afeito do contemplador? Em tese pintura é algo que se refere à percepção. A imagem pintada é aquilo mesmo, a cor e a textura, sem mais nada. O pintor combina cores e formas em busca da sua criação, e essa criação varia de intensidade conforme, é cla-ro, a sensibilidade do pintor naquele momento. Os dois casos – a primeira impressão e a entrada do contemplador na tela – são válidos e importantes para a compreensão da obra. Na pintura figurativa o contemplador não faz muito esforço para encontrar-se na tela, mas na pintura abstrata ou na nova figuração e outras correntes atuais o contemplador parece reagir (talvez pela vaidade da cultura burguesa de não querer admitir as coisas simples) achando de difícil entendimento toda aquela extrema simplicidade de tintas jogadas na tela pelos gestos do artista. Esta força que você classifica como “além-cores” existe e se condiciona à sensibilidade do artista, e ela deve fun-cionar na hora da elaboração do quadro.

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Mangue, pintura de Raul Córdula, coleção de Milton Velozo Borges, 1964.

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Aventuras do mercado

O casal de empresários Marcelo e Isabel Veloso Borges, e Milton Veloso Borges, irmão de Marcelo, ambos do ramo têxtil, proprietários da Companhia Paraibana de Tecidos, conhecida como Fábrica Tibirí, em Santa Rita e da Petropolitana de Tecidos, em Petrópolis, foram os mecenas da nossa arte moderna. Marcelo, viven-do no Rio de Janeiro, afeito à arte carioca, tinha no seu acervo obras de Portinari, Di Cavalcanti, Segall – eram também sócios da Klabin – Iberê Camargo e Scliar, entre outros astros da arte moderna brasileira. Milton possuía uma bela coleção de tapetes de parede do baiano Genaro de Carvalho, a maior referência da tecelagem moderna brasileira, e uma preciosa peça do tapeceiro belga Julien. Conhecendo minhas pinturas da coleção de Maurílio Almeida, Marcelo e Isabel aportaram um dia no meu ateliê-galpão da FAFI, se apresentaram, viram atentamente as pintu-ras e os desenhos, e compraram vários trabalhos. Logo depois me apresentaram a Milton que adquiriu três pinturas de uma série que expus na casa-galeria de Pedro Santos. Posteriormente eles conheceram as esculturas de Breno Mattos e Milton adquiriu um lote, depois foi a vez de Flávio, que já encantava olhares mais sensíveis com suas têmperas pintadas com pigmento que meu cunhado Kawamura me trou-xera do Japão e eu as dividia com os alunos. Marcelo foi o mecenas de Antonio Dias no momento de sua viagem para a França encaminhada por Jean Boguici e Ceres, comprou várias obras por preços genero-sos para Antonio.

Compradores do algodão sertanejo, certa vez me convidaram para acompanhá-los a Catolé do Rocha, para comer um osso corredor com fava na casa do patriarca dos Maia. Lá fomos nós embarcados num Cesna alugado a um jovem, mas competente piloto que fazia sua entrada no universo da política, era José Maranhão. Milton sentava na frente com Maranhão (assim o chamávamos), pois também era piloto e servira na aeronáutica americana, onde vivera. Eu e Marcelo vínhamos atrás. Era uma linda manhã de sábado, e o panorama visto de cima me inspirou a uma série de pinturas de paisagens aéreas, dela faz parte uma tela pertencente ao acer-vo da Pinacoteca da UFPB. Tudo ia muito bem quando Maranhão, com a maior tranquilidade, disse a Milton: “O primeiro carburador pifou, estamos voando com o de reserva, mas tudo bem, o Céu nos protege.” Marcelo, que não era piloto,ficou branco, Milton o acalmou: “Marcelo, se acalme, eu sei o que é isso!” Mal terminou de falar e Maranhão disse: “O de reserva pifou também, mas não se aperreiem, estamos vendo Caicó, e lá tem um aeroclube.” Quando terminou de falar a hélice

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parou. Marcelo gritou, “Vamos cair!” Maranhão, calmo, disse: “Estamos planando neste céu de Brigadeiro, aterrissaremos suavemente. Estávamos descendo, e vía-mos à frente a pista do aeroclube. De repente uma boiada começou a entrar na pista. Maranhão desviou o avião para a direita com a maior habilidade e tranquili-dade, e aterrissamos na estrada que passava paralela.

Márcio Mattar 1965 trouxe novos espaços e novas pessoas. Mudamo-nos de novo para a Rua Princesa Isa-bel, uma grande casa que comportava todos os setores do DC. A mim coube a garagem, am-pla e independente, ótima para nossos projetos arrojados. Havia na Paraíba uma missão dos Voluntários da Paz. Coube-nos o orientador Steve Hattenbah recém-formado pela escola de Desenho Industrial da Pensilvânia. Steve ficou responsável pelas aulas de desenho artís-tico, ou drawing, no conceito americano que se opunha ao conceito do design. Os cursos de desenhos eram divididos entre ele e o dese-nhista e chargista Artur Cantalice. Era o ano do Primeiro Decenário da UFPB e para comemorar o acontecimento o DC pro-

gramou uma exposição de seus professores e alunos. O cartaz foi programado em dupla, por mim e Steve, e foi, talvez, a 1ª peça gráfica produzida por um profissional de desenho industrial, na Paraíba, com o aproveitamento de maneira correta dos recursos da Imprensa Universitária. Dessa mostra participaram Celene Sitônio, Cleofas Sabino, Edílson Correia, Unhandeijara Lisboa, Guilherme Caldas, Guy Jo-seph, Flávio Tavares, José Lucena, Heidelice Cabral, João Moacir, José Altino, Ju-ventina Dias de Paiva, Nadieje Paiva, e Regis Cavalcanti. Eu participei ao lado dos professores, juntamente com Steve, Artur Cantalice e Archidy. Houve nessa mostra também um conjunto de pinturas das crianças orientadas por Lourdes Medeiros. 1965 foi também o ano da minha primeira exposição no Rio de Janeiro, na galeria Verseau, dos marchands Liliana Meneses e Leo Christiano Alsina, com o patrocí-nio do Governo do Estado. O catálogo foi apresentado pelo crítico de arte catari-nense Harry Laus, pelo amigo e artista plástico Antonio Dias e pelo poeta Vanildo

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Colar e anel de prata e pedra de autoria de Márcio Mattar.

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de Brito. O contato direto que eu tinha com Antonio e com os representantes da arte de vanguarda do Rio, como Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, Hélio Oi-ticica, Pedro Geraldo Escosteguy e Carlos Vergara, iniciou um relacionamento que possibilitou muitos outros projetos, como o Museu de Arte de Campina Grande e o Núcleo de Arte Contemporânea, como exemplo. No Rio eu me hospedava e trabalhava no ateliê do amigo Márcio Mattar, o famo-so design joalheiro responsável por geração de bons artistas-artesãos que, junto a Caio Mourão, Calabrone e Correia de Araújo iniciaram a joia brasileira. Flávio Tavares e Celene Sitônio ganharam do Plano Cultural Governador Pedro Gondim, como prêmio de estímulo, uma viagem ao Rio. Fui o responsável por acompanhá-los e protegê-los, tarefa difícil mas importante como ação educativa para Flávio, principalmente, pois ele não passava de um menino de 14 anos, e para Celene, que teve a oportunidade de ter um contato direto com a arte carioca. O resultado, para mim, foi ótimo, eles deslancharam, tornando-se mais seguros em suas artes e passaram a conviver com artistas mais velhos e experientes. Juntou-se naquele meio de ano no atelier de Márcio, no Rio Comprido, um grupo de paraibanos de tirar o chapéu: Jackson Ribeiro – recém premiado pelo Salão Nacional de Arte Moderna, e em vias de viajar para a Europa para cumprir o prê-mio de dois anos – e que já tinha executado sua escultura “Porteiro do Inferno” instalada hoje na rótula do Campus da UFPB –, sua mulher, a artista nascente curitibana Rosa Figueiredo, Flávio Tavares, Celene Sitônio, o fotógrafo Rafael Mo-roró, o jornalista Jório Machado, as irmãs Sônia e Raquel Ramalhete, Giles Jackard e eu, num lauto churrasco assado por Cachorro, um bailarino argentino, que era também hóspede de Márcio, juntamente com o arquiteto e ceramista neozelandês Peter Balin e o desenhista uruguaio Arturo Washington, que viajou comigo de vol-ta à Paraíba e que aqui passou um tempo trabalhando no nosso Setor de Artes. Esse ano foi importante para mim por todos esses fatos e ainda mais porque ganhei um prêmio que, na época, era uma preocupação séria dos artistas: o segundo Prêmio do Salão Mineiro, entregue no Palácio das Artes pelas mãos de Assis Chateau-briand. Presenteei o desenho premiado, intitulado “Palácio dos Anjos”, a Dr. Pedro Gondim, como reconhecimento pelo que ele fazia por todos nós, artistas modernos.

Meu amigo neozelandês

Numa reunião de trabalho a empresária Silvânia Dal Bosco, recém-chegada da Nova Zelândia, se declara encantada com aquele país austral habitado por maoris e ingleses. Nova Zelândia, formado por duas lhas. Parece uma

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bota como a Itália. Vizinho da Austrália, dono de uma natureza indescrití-vel, de fauna e flora estranhas e ricas. A conversa fez-me lembrar de Peter Balin, um inglês-neozelandês que conheci no início dos anos 60 no ateliê do meu mestre joalheiro, o escultor Márcio Mattar, nos bons tempos da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. O ateliê ficava num dúplex sobre a garagem da casa de sua mãe, na tradicio-nal rua Almirante Alexandrino do bairro do Rio Comprido. Hospedava-me com ele sempre que viajava ao Rio em busca de conhecimentos sobre arte. Foi lá que conheci Dust, pianista negro filho de um francês, que acendeu minha paixão pelo jazz quando compôs uma peça para um desenho meu in-titulado Depois do Azul. Lá conheci também Lee Chai Po, modelo chinesa mulher de Márcio, os escritores Cláudio Willer, Roberto Piva e Jorge Mau-tner, a modelo Duda Cavalcanti, a primeira brasileira a trilhar as passarelas internacionais e Gilles Jackard, seu namorado francês que veio a se tornar um dos grandes arquitetos de interiores residentes no Brasil. Frequentavam ainda a casa de Márcio os pintores Carlos Vergara, Evany Fanzeres com seu namorado e meu xará Raul Português, Antonio Dias, e o arquiteto Matias Marcier, filho do venerável pintor Emeric Marcier. Mas, sem dúvida, a figura de Peter pairava sobre todos por sua fleuma e sabedoria. Era um homem maduro, beirando os 50, e talvez já não esteja hoje entre nós. Peter possuía um currículo impressionante. Formado em arquitetura na Ín-dia, estudou cerâmica no Japão. Na Índia também participou da construção de Shandigardt, a cidade administrativa criada por Le Cobusier no Punjab. Seguiu o filósofo Hadju Krishnamurti como seu assistente em uma de suas peregrinações e ficou 5 anos ao seu lado. Sentindo-se isolado no interior da Índia, foi para a Inglaterra onde passou a ensinar em Summerhills, a escola que mudou a pedagogia no mundo introduzindo a ideia de liberdade sem medo. Mas Peter não se achava professor, embora fosse, ele queria ser um artista em tempo integral, um produtor de imagens, um articulador da moderni-dade. Mudou-se para a América e foi fazer cinema trabalhando na equipe de cenografia de West Side Story. Já que estava na América, depois do gran-dioso filme, quis ver o Brasil. Foi aí que nos conhecemos. Ouvindo-me falar do Nordeste Peter quis conhecer a Paraíba. Tinha, por necessidade, voltado a ensinar, e gostaria de orientar novos artistas, experi-mentar um novo mundo. Encaminhei sua proposta e currículo – o ano era

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1964 – para o Departamento Cultural, onde eu trabalhava dirigindo o ateliê de pintura. Debalde, na opinião de quem decidia na época, Peter só podia ser “comunista”, para querer se esconder aqui, ou então todo aquele currí-culo, embora fartamente provado, seria uma fraude. Dessa forma foi negada a possibilidade de termos aqui, naquela época, um professor de arte de al-tíssimo nível que teria ultrapassado as etapas teóricas e práticas do ensino e da discussão sobre a modernidade na arte, no âmbito da Universidade, em busca de uma expressão artística erudita. Dez anos depois fui trabalhar no México. Percebi que, mesmo sendo um país pobre com aspectos semelhantes ao nosso Nordeste, nas comunidades mais isoladas havia um nível de informação cultural surpreendente devido ao fato de ser o México um entroncamento do mundo, lugar por onde pas-sam inúmeras rotas entre Norte e Sul, pobres e ricos. Pensei no isolamento do Nordeste, que tem sobre si a Amazônia, ao lado o Oceano, e por baixo o Sul. Um lugar onde, segundo nosso Presidente Lula: “O que apavora não é a seca, mas a cerca.” Hoje, porém, penso que este isolamento tem muito a ver com nós mesmos, herdeiros da tradição do poder, que determinamos nossos destinos a partir de conceitos vigentes há cinco séculos. Como pode um país como a Nova Zelândia ter sua arte presente no mundo, com um cinema de primeira linha, artes plásticas que frequentam as melhores mostras mundiais, e o Nordeste, por outro lado, não estar presente, como devia, no próprio Brasil? Para sen-tir o peso deste isolamento basta ver os registros dos grandes acontecimen-tos artísticos brasileiros e conferir a nossa verdadeira participação. Quando se nega guarida a um artista como Peter Balin nega-se ao jovem artista da Paraíba o direito ao conhecimento. Quando se introduz um com-portamento apenas competitivo no meio artístico, como é o comportamento dirigido pelo mercado, sem a devida formação teórica e crítica, introduz-se a cisão, a divisão, a fragmentação numa atividade como a arte, que somente será viável se solidária. As pessoas que disseram não a Peter em 1964 eram artistas e intelectuais, mas não sabiam quem era Corbusier, nem Krishna-murti, e não sabiam de quanto precisavam do próprio Peter para aprender. Achavam que ele era um aventureiro, e tinham medo da aventura que é, em última análise, o grande trunfo da arte. Peter, muito mais do que um aventu-reiro, era um civilizador. Seguiu seu caminho, voltou para a Inglaterra e dele não tive mais notícias. Os anos de chumbo desviaram nossas vidas. A única lembrança que tenho dele é um álbum feito à mão, com fotos de mulheres

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indianas com trajes típicos, cerâmicas, mobiliário, quadros de sua autoria e desenhos de uma casa com o título em grafite: House in Hish Valley. Diz-se muito hoje que o artista trabalha contra a arte. Em “A Serpente Ala-da”, poema dramático de Vanildo Brito, no momento em que todas as coi-sas parecem não ter mais solução, a personagem principal diz: “Os homens algemaram-se, agora entreolham-se e perguntam pelo seu carcereiro”.

Olinda, abril de 1999

Mesa e Cerâmicas de Peter Balin.

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De volta ao Rio

Então me casei com Heidelice Cabral, uma moça inteligente e talentosa que estu-dava desenho comigo. Com medo de levar um fora de seu pai, Seu Severino, pedi a mão dela a Heitor, seu irmão, que, tão irresponsável quanto eu – afinal eu era um pé rapado –, concordou. Vivemos intensamente a aventura da arte, vivíamos arte o dia todo e todos os dias. Fomos morar no Rio de Janeiro onde ela estudou gravura com o artista pernam-bucano Assunção Souza e com Edith Bering. Eu trabalhei em televisões como ce-nógrafo, mas também pintei apartamentos pra viver, desenhei embalagens para indústrias, fui assistente de montagem de exposições no MAM, ajudei Sami Mattar nas suas produções gráficas. E ela sempre comigo. Frequentamos juntos ateliês dos amigos, museus e galerias. Ganhei prêmios, fiz exposições no Rio e em Belo Ho-rizonte, dei aulas no curso PraESDI, moramos em Santa Teresa e no Leme, e de-pois no Jardim das Acácias na casa onde Zé Ramalho, em baixo de um pé de Bou-gainville e várias papou-las (hibiscos), começou a compor sua canção “Jar-dim das Acácias”. Fizemos macrobiótica juntos, e ti-vemos Francis e Elisabeth. Antes de viajar para o Rio como tínhamos combi-nado, fui convidado por Heitor para criar uma escultura-mural para a fá-brica metalúrgica do qual era Diretor, a IMENSA, no Distrito Industrial. Era uma estrutura de 18 me-tros confeccionada em fer-ro pintado. Era um grupo de jovens industriais que tinha também como sócio Antonio Augusto de Al-meida, que se casou com Raul com detalhe da escultura da IMENSA.

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Marlene Almeida, de onde nasceu José Rufino, uma de nossas glórias artísticas. Mas quem executou mesmo o trabalho foi Breno de Mattos, com sua habilidade de mestre e sua solidariedade socialista. Trabalharam também os operários, sob a supervisão de Breno. Foi uma verdadeira batalha colocar a geringonça suspensa no frontal da fábrica.

Para Heitor, que com Ronald Queiroz era dono do Escritório de Planejamento – PLANESC, desenhei vários logotipos e identidades visuais de empresas de sua clientela. Cheguei até a montar um escritório em sociedade com Gustavo Rabay, e com ele desenhei um bom conjunto de sinais que circularam pelo universo indus-trial dos 60, empresas candidatas aos incentivos do famoso artigo 34/18 da SUDE-NE que isentava de impostos por vários anos as indústrias que se estabelecessem nos Distritos Industriais de João Pessoa e Campina Grande. A própria marca do PLANESC e as marcas da Agropecuária Carnaubinha, SUNAVE, CITRUS, FU-NESP – Fundação Cultural do Estado da Paraíba, Editora Universitária, na época, foram criadas por mim.

Mas foi 1966 o ano de trabalho intenso. Consegui emprego no departamento de cenografia da TV TUPI através de contato feito por Antônio Dias com Péricles Leal, o paraibano pioneiro da televisão que estava dirigindo a primeira produtora de vídeotapes do Brasil, o Telecentro da TV Tupi. Minha rotina de trabalho era 24 X 48, isto é: trabalhava por 24 horas e folgava 48. Conheci a TV Tupi em meio à loucura da produção, entre cenários dos programas de Chico Anísio, Moacir Franco, Chacrinha e Bibi Ferreira. Morando com Heide na Rua Aprazível, em Santa Tereza, eu pintava quando tinha tempo. Mesmo as-sim consegui não me perder de todo no mar pragmático e supérfluo da televisão. Participei do Salão Mineiro e tive uma Menção Honrosa, e do Salão Nacional de Arte Moderna. Participei também da Mostra Internacional da Arte de Vanguarda “Opinião 66”, segunda versão de “Opinião 65”, no Museu de Arte Moderna do Rio – MAM, ao lado dos vanguardistas brasileiros, entre eles Antônio Dias, Gerch-

PLANESC

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mann, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, Pedro Geraldo Escosteguy, Hélio Oiti-cica, Renato Landin, Ligia Clark, Adriano Aquino, Ângelo Aquino, e os franceses trazidos pelos marchands Jean Boguici – da Galeria carioca Relevo, e Ceres Franco – da Galeria parisiense L’oeil de Boeuf. Entre os artistas trazidos por eles estavam Cornelle, Racignac, Gaïtis, Foldes, Segui e Berni. E Heide sempre do meu lado integrada à condição de artista em que vivíamos. Olinda – Movimento da Ribeira Olinda brilhava com seus novos artistas: Tiago Amorim, Marcus Amorim, José Ta-vares, Jorge Tavares, Guita Charifker, Nei Quadros, Tereza Costa Rego, Humberto Magno, José Barbosa, Ypiranga Filho, Tiago Amorim, entre outros. Era o refúgio e o campo de luta ao mesmo tempo. Lá se trabalhava e festejava. O movimento de arte crescia em Olinda. Adão Pinheiro comandando a Galeria da Ribeira convidou-nos para uma exposição coletiva. Comandei de João Pessoa a mostra que contou, além de mim, com José Altino, Celene, Flávio Tavares, Gui-lherme Caldas e Regis Cavalcanti. Uma força grande foi dada por Elzo Franca na montagem da exposição. A abertura foi no dia 10 de julho e o catálogo escrito por Adão Pinheiro, que escreveu:

Olinda renasce das cinzas, e está brilhando ao sol. E seu coração bate na Ribeira. Neste imenso coração que é o Mercado da Ribeira, com seu pátio como um adro de igreja; suas colunas testemunhas da arqui-tetura colonial brasileira. Olinda renasce, mas não voltada para passado que não a oprime, antes lhe serve de leal conselho e apoio. Talvez, quem sabe, se esteja testando aqui em Olinda o esboço de um fu-turo Brasil que será novo, pela responsabilidade que ganhará seu povo. Novo como forma de adminis-tração, onda a causa pública será também matéria nossa, nossa vida e aspiração do melhor, nossos des-tinos. Um Nordeste que se conhece em sua essên-cia; nas suas carências e nos seus mananciais. Quem sabe não estaremos lançando a semente de outros intercâmbios? Hoje são artistas da Paraíba, irmãos nossos também como nós carregados dos proble-mas de existirem numa região que a cada passo nos

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pede definição. Repartindo o pesado encargo de darmos nosso depoimento como artistas do Nordeste, ao Brasil restante. O que marcamos em Olinda; uma administração florescente onde as artes complementam a vida e as ou-tras instituições sociais; restauradas que estão no devido lugar, por acaso não será esta a nova lição do Nordeste?

Adão Pinheiro, Olinda, 4 de julho de 1965

XV Salão Nacional de Arte Moderna O acontecimento mais importante daquele ano foi ser selecionado para o Salão Na-cional de Arte Moderna, que se transformou a partir da criação da FUNARTE no atual Salão Nacional de Artes Visuais, e era o porto seguro dos artistas brasileiros de talento. Comigo entraram Breno Mattos e Heidelice. Com grande importância no Rio de Janeiro, o Salão abrigou artistas do Brasil inteiro, o problema era a dis-tribuição dos regulamentos, que chamamos hoje “editais”, a tempo de chegarem às mãos dos artistas para eles se prepararem. O Rio de Janeiro naquele tempo era mais distante. Eu e Breno tínhamos contatos. O Salão de 66, sua 15ª versão, entre mais de cem artistas concorrentes, teve a par-ticipação de artistas que hoje são grandes estrelas da arte brasileira, como Amilcar de Castro, Abelardo da Hora, Antonio Dias, Ângelo de Aquino, Antonio Maia, As-cânio MMM, Carlos Vergara, Carlos Zílio, Evany Fanzeres, Marília Kranz, Renato Landim, Rubens Gerchman, Rubem Ludolf, Terus, Ubi Bava, Anna Bella Geiger, Farnese de Andrade, Lothar Charoux, Marília Rodrigues, Newton Cavalcanti, Ro-berto Magalhães, Vera Chaves Barcellos e Caio Mourão. Um time que hoje faria parte dos melhores acervos nacionais. Lá estávamos nós. Heide com pinturas pequenas, Breno com três esculturas de chapas de ferro pintadas que integram hoje o acervo do Museu de Arte Moderna Assis Chateaubriand, de Campina Grande. Eu fui selecionado para as categorias de pintura e desenho com as obras “Um ilustre personagem”, “O personagem reen-contra o passado” e “O personagem advinha o futuro”, em pintura, e “Cicatrizes no mundo”, “10 000 graus na Praça da Paz” e “Liberdade em desenho”. Ali já estavam as raízes de uma arte de protesto, de reação ao status político-militar e guerreiro que se estabelecera no País. Ali estava a semente da exposição que em 1968 foi censurada pelo conselho universitário na galeria do hall da UFPB. Alguns dos artistas que estavam no Salão mantêm relações profissionais e de ami-zade conosco, como o paraibano Antônio Dias, grande amigo desde aquela época

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e que integrou comigo, Paulo Sérgio e Chico Pereira o Núcleo de Arte Contempo-rânea – NAC nos anos 80, Gerchman, falecido em 2008, que fez exposição no NAC e na Galeria de Madalena Zaccara, Roberto Magalhães, que realizou um grande mural de cerâmica que está instalado na parede de trás do Teatro Severino Cabral em Campina Grande, Abelardo da Hora que tem um mural de sua autoria numa das fachadas da antiga Casa da Estudante Universitária, que antes fora a Escola de Enfermagem da UFPB, o que inspirou seu tema, Vera Chaves Barcellos que também expôs no NAC e Anna Bella Geiger, que deu várias oficinas no FENART.

Em João Pessoa o Departamento Cultural da UFPB tinha o desenhista Artur Can-talice na supervisão do Setor de Artes Plásticas. Gilvan Samico fora contratado para dirigir o ateliê de xilogravura, e sob sua sábia orientação estavam Terezinha Camelo, Miguel dos Santos, Celene Sitônio, José Altino, Miguel Ciavarella, Luis Andrade e Regis Cavalcante. Samico deixou um legado importante no ensino de sua nobre arte de cortar e estampar na madeira a imagem nela gravada. Continua-ram ligados à xilogravura Miguel Ciavarella, José Altino, Terezinha Camelo e Luis Andrade. Samico ainda premiou o público paraibano com uma exposição no Hall da antiga Reitoria no dia 22 de outubro daquele ano. O catálogo foi escrito por José Cláudio e Flávio de Aquino. A exposição constou de 37 peças do período entre 1953 e 1966. Samico continuou por mais alguns anos à frente do ateliê e ensinan-

Breno Mattos soldando na IMENSA uma das esculturas que participaram do XV Salão.

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do não apenas a técnica, mas o procedimento dos conteúdos teóricos e poéticos do gravador, suas atitudes e características dentro do universo das artes gráficas e plásticas. Celene Sitônio depois de seu aprendizado no ateliê de pintura passou a ser tam-bém orientadora de pintura. A oficina de história da arte estava a cargo de Archidy Picado. Celene acumulou um considerável currículo para uma jovem artista. Par-ticipou, desde 63, das seguintes mostras coletivas: Festival de Arte Universitária Paraibana em Natal e em Campina Grande; 1ª Exposição de Alunos dos Cursos de Artes Plásticas da UFPB; Salão Anual de Pintura do Museu do Estado, Recife. Em 64, exposição na Festa Universitária em Cajazeiras. Em 65, “6 Artistas Parai-banos em Olinda”, Galeria da Ribeira; III Exposição dos Alunos do Setor de Artes Plásticas da UFPB; Festa Universitária de Patos. Em 1966 fez também exposições individuais: na Faculdade de Filosofia comemorando os 13º e 14º aniversários da FAFI; Teatro Municipal de Campina Grande – apresentação de Juarez Batista; em Natal na Galeria Xaria; no Esporte Clube Cabo Branco em 1966. em Natal, na Ga-leria Sobradinho, em 1967. Entre os alunos de Celene e Archidy estavam novos talentos como Griselda Klupll, que se tornou arquiteta e fotógrafa, e hoje é professora da Escola de Arquitetura da Universidade da Bahia; Cleofas Leonam Sabino, engenheiro e pintor ligado às tendências vanguardistas na época, e Dr. João Moacir Pires, pintor curioso que iniciou seu trabalho na maturidade e realizou uma obra silenciosa, poética e sutil. Flávio Tavares ainda aparecia nas listas de frequência do curso, mas já tinha ga-nhado suas asas e partido para sua carreira como artista. Miguel dos Santos teve também uma rápida passagem pelos ateliês, mas também, embora frequentasse a classe de Samico, já possuía uma forte individualidade e uma inquietação que o levou a percorrer os caminhos admiráveis de sua arte. É daquele tempo sua paixão pela cerâmica, que o tornou um dos melhores artistas brasileiros neste campo. Afi-nal Miguel nasceu em Caruaru, tem DNA de ceramista, e seu instrutor de olaria foi Tota, grande artista do povo e nascido em Tracunhaém, outro território da cerâmica utilitária e artística. Mas não só de artistas eram compostos os cursos livres do Departamento Cultural, pessoas interessadas em arte também frequentavam as aulas de História, Desenho e Pintura, como a professora Carmem Isabel Carlos Silva, o empresário Saulo Bar-reto e o médico Gilvan Navarro, ocupantes de cargos no Governo do Estado e na Universidade Federal, ligados ao ensino artístico ou à promoção e produção da cultura.

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Como de costume, no fim do ano foi montada a IV Exposição de Artes Plásticas do Departamento Cultural, com artistas convidados como Nadieje Dias de Paiva, Edílson Correia Lira e Miguel dos Santos. Os prêmios foram concedidos a Grisel-da e Laurita Galvão. A comissão julgadora veio do Recife: Ariano Suassuna, José Cláudio e João Câmara. Entre os participantes do Salão vale destacar Zé Lucena, Terezinha Camelo e João Moacir. Duas exposições merecem destaque ainda nesse ano: na Reitoria, a Coletiva com Arthur Cantalice, Archidy Picado e Celene Sitônio, e a mostra do Grupo Etapa 6, na Biblioteca Pública do Estado com apresentação de Juarez Batista. Na capa do folheto de apresentação estava a palavra VERDADE escrita em xilogravura, e den-tro uma citação de Goethe: “Basta que o artista escolha um assunto, para que este deixe de pertencer à natureza”. Em setembro, vivendo a Paraíba a euforia das realizações cinematográficas com o filme “Menino de Engenho” de Walter Lima Júnior, um grupo local dispôs-se a produzir um curta metragem para representar a Paraíba no “Festival de Cinema Mesbla – Jornal do Brasil”. O argumento foi o poema “Contraponto sem Música”, de Virgínius da Gama e Mello, produção de Paulo Melo e fotografia de Machado Bittencourt. O filme foi exibido no Festival e marcou o início da produção de filmes experimentais na cidade. O maestro Pedro Santos, muito amigos de todos, montou uma galeria de arte em sua casa, na Rua Santo Elias, um espaço de encontro dos jovens que despontavam no acanhado cenário artístico. Eu e Flávio Tavares expusemos lá em vernissages coroadas pelas vozes e violão de Marcus Vinicius e Severino Marcos, que acaba-vam de compor em parceria o baião “Poeira”, música engajada nas brabas lutas so-ciais daquele tempo. Eles integravam o Grupo Sanhauá, juntamente com os poetas Anco Marcio, Marcus dos Anjos e Sérgio Castro Pinto e atuavam com as “Edições Sanhauá”, pioneira nas edições alternativas, para não dizer marginais, feitas em mimeógrafo pelo Brasil afora. Por aqueles dias estavam lançando a revista “Couro”, editada e ilustrada pelo xilogravador Pontes da Silva, que é até hoje um competen-te e respeitado editor.

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Pintura censurada de Raul Córdula - coleção Otacílo Cartaxo.

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Revista “O Cruzeiro”, outubro de 1967.

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O museu de Campina Grande

Num fim de tarde cinzento eu tomava cerveja no botequim do Machado, pra es-quecer o tenso dia de trabalho no Cassino da Urca, sede da TV Tupi. Para minha surpresa, vindo em minha direção, lá vinha meu pai, acompanhado de Edvaldo do Ó, seu amigo de Campina Grande. Edvaldo era o Reitor de uma fundação muni-cipal recém-criada em Campina Grande, a Fundação Universidade Regional do Nordeste. Edvaldo disse logo a que veio: convidar-me para, sob seu comando, diri-gir uma campanha destinada a conquistar para a guarda da Fundação o museu de arte da Campanha de Museus Regionais que o jornalista e empresário Assis Cha-teaubriand destinava à Paraíba. A Campanha era dirigida por Dona Yolanda Pen-teado, que arrecadava doações de obras de arte feitas por empresários, geralmente cariocas e paulistas, da maneira como Chateaubriand incrementava seus projetos, através de permutas por publicidade nos Diários Associados de sua proprieda-de. Sabíamos que três dos cinco museus programados já estavam decididos: os de Pernambuco, Bahia e Paraíba, faltava ainda negociar em cada um destes Estados a forma de recebê-los e mantê-los, não se tinha ainda ideia de como eles seriam implantados, nem que instituições seriam responsáveis por eles. Resolvi, depois de conversar com amigos e interessados no assunto, aceitar o con-vite. Fui nomeado então por Edvaldo o diretor do Museu de Arte de Campina Grande Assis Chateaubriand, entidade que ele criara para receber o acervo que Dona Yolanda Penteado destinaria à Paraíba. Enquanto trabalhava nas “demarches” dessa guerra de poder, fiquei ligado ao Ins-tituto Central de Artes, ensinando História da Arte e esperando pelas respostas das propostas feitas pelo Reitor Edvaldo, depois de discutidas comigo. Muita gente estava envolvida nisso, muita coisa acontecia, muitos planos eram projetados, até que um dia chegou a resposta definitiva do próprio Chateaubriand: o acervo e a gestão do Museu de Campina Grande estavam doados para o povo. Em 2004 o curador Marcus Lontra realizou no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília uma exposição do acervo dos três museus implantados pela Campanha de

Revista “O Cruzeiro”, outubro de 1967.

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Museus Regionais. Como sub-curador da coleção do Museu Assis Chateaubriand escrevi esta síntese de sua criação editada no catálogo:

Em 1966, já tendo consolidado a implantação do Museu de Arte de São Paulo, o empresário e jornalista Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, criador e patrocinador da Campanha Nacional de Museus Regio-nais, presidida pela Sra. Yolanda Penteado, decidiu instalar um museu em Campina Grande, polo importante de desenvolvimento no Nordeste, sendo também a Paraíba terra natal de Chateaubriand (outros museus foram des-tinados a Feira de Santana e Olinda). Em maio daquele ano o professor Pietro Maria Bardi visitou Campina Gran-de com o intuito de sondar as condições que a cidade teria para receber o Museu. Sua opinião foi decisiva para se concretizar a ideia de Assis Chateau-briand. Desde então criou-se um forte interesse por parte do empresariado local, tendo à frente o senhor Edvaldo de Souza do Ó, na época Reitor da recém criada Fundação Universidade Regional do Nordeste – FURNE, que pertencia à municipalidade, sendo Prefeito o Dr. William Arruda.

O plano era oferecer o espaço e os serviços da Universidade como contrapartida para abrigar o Mu-seu e seu acervo. Para tanto foi destinado o edifício onde funcio-nava a Reitoria, prédio tradicional localizado no centro da cidade. E assim foram encaminhadas as providências. Eu trabalhava no Rio de Janei-ro como cenógrafo da TV Tupi, onde recebi a visita de Edvaldo do Ó que foi me convidar para, com ele, assumir a campanha que provocaria a doação do Museu de Campina Grande à FURNE. Meu

papel seria motivar o empresariado local a investir dinheiro neste empre-endimento, fazendo algumas das doações de obras para o acervo e patroci-nando os trabalhos de reforma e adaptação técnica necessárias ao edifício, adiantando-se a outras instituições, inclusive ao Estado.

Chico Pereira.

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Edvaldo do Ó conseguiu convencer a equipe de Assis Chateaubriand e os empresários mecenas do Museu a aceitar a proposta da FURNE. Contamos com o apoio incondicional dos artistas e intelectuais paraibanos, especialmente do grupo Equipe 3, de Campina Grande, formado por Fran-cisco Pereira da Silva Júnior (Chico Pereira), Anacleto Elói e Eládio Barbo-sa, jovens afinados com a produção de arte que se fazia nos grandes centros. A ação que eu empreendia realizava-se em reuniões com empresários onde eu discursava sobre a importância de um acervo de arte como o que esperá-vamos chegar à cidade, as repercussões que isso traria em forma de prestígio junto ao meio cultural, acadêmico e empresarial, a valorização do futuro Museu como centro de cultura, e temas assim. Geralmente essas reuniões culminavam com a assinatura dos empresários num Livro de Ouro onde eram registrados os valores que colocavam à disposição do Museu. Ação paralela e imprescindível foi desenvolvida em contatos com a impren-sa visando esclarecer e motivar o grande público, com a edição de matérias e textos críticos sobre a arte, especialmente arte brasileira, sobre a vida e a importância dos artistas na sociedade e informações sobre museus de arte famosos do mundo. Nosso trabalho foi vitorioso: o Museu foi doado à FURNE, eu fui nomeado seu primeiro diretor. Iniciou-se a fase deci-siva, de recepção das obras e instalação do acervo no edifí-cio da Reitoria (onde o Museu funcionou até a construção do edifício no Parque do Açude Novo). Criado inicialmente com o Nome de Museu Regio-nal de Arte Pedro Américo, hoje Museu de Arte Assis Chateaubriand, ele foi inaugurado em 20 de outubro de 1967. Foram decisivas as presenças em Campina Grande de algumas perso-

Raul Córdula e Rubens Gerchmann

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nalidades, como o jornalista Irany Bastos, secretário particular do Assis Chateaubriand, impedido por motivos de saúde de se ausentar do Rio de Ja-neiro. Assis Chateaubriand não chegou a ver o Museu que implantou na sua terra, vindo a falecer pouco tempo depois de sua inauguração. Irany Bastos instalou-se no Rique Hotel e de lá dirigiu as operações de contatos com o empresariado carioca e paulista e as ações administrativas que dependiam dos Diários Associados, ao qual era ligado, e ações que diziam respeito ao trabalho da Campanha Nacional de Museus Regionais, tais como documen-tação dos doadores, seguros das obras, transporte, e tantas outras. Importante também foi a assistência técnica do museólogo Luiz Osaka, ain-da hoje técnico do MASP, que veio orientar a catalogação do acervo, a mon-tagem da mostra permanente e os rudimentos de museologia e museografia que recebeu a primeira equipe daquela instituição. Outra participação fundamental foi a do empresário e colecionador de arte Drault Ernanny, um dos maiores mecenas do Museu, responsável pela maior parte das doações e também por influenciar empresários a doarem obras caras de autores como Portinari e Vicente do Rego Monteiro, por exemplo. Importantíssima também foi a participação do Marchand Jean Boghici, da Galeria Relevo do Rio de Janeiro e, na época, curador da coleção de Drault Ernanny, a quem foi confiada a indicação de parte importante da seleção do

Alípio Dias (de frente), pai de Antonio, Antonio Dias e Solange Escosteguy (de perfil).

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acervo, aquela que se constitui na arte de vanguarda brasileira (nova objetividade) e francesa (nova figuração e movimento Olho de Boi). Jean Boghici, responsável pelo impulso na carreira internacional de ar-tistas como Antônio Dias e Rubens Gerchmann, veio pes-soalmente a Campina Grande conduzindo parte do acervo para prestigiar esta grande re-alização e manter contato di-reto com intelectuais, artistas, empresários e colecionadores de arte da cidade que se achava num período de franco desen-volvimento econômico.

A atuação mais dinâmica, porém, foi a do incansável Edvaldo do Ó, obs-tinado comandante daquela campanha que trouxe para Campina Grande este belo e precioso acervo de obras de arte, colocando-a na vanguarda das artes plásticas. O Museu foi inaugurado numa festa memorável, com a presença do poder político, militar, econômico e artístico. Personalidades como Tancredo Ne-ves, General Mourão Filho, Governador João Agripino, empresária Helena Harley Lundgren, Senador Alcides Carneiro, banqueiro Newton Rique, jor-nalista Hilton Mota, entre outros, ao lado de artistas e críticos de arte como Mário Pedrosa, Mário Barata, Antônio Dias e Solange Escosteguy, sua mu-lher, vindos especialmente de Paris, onde moravam, Rubens Gerchmann e a emergente grande artista Anna Maria Maiollino, sua mulher, Yanis Gaïtis, Jean Boghici, e artistas paraibanos e de outros estados. Era julho de 1967 quando as caixas com os primeiros quadros começaram a chegar. Em Campina Grande o ambiente fervia, os artistas de lá, principal-mente Francisco Pereira Jr., Eládio Barbosa e Anacleto Eloi, que formavam a Equipe 3, se incorporam ao grande projeto. As notícias da imprensa se sucediam, a curiosidade do público gerava ações onde fazíamos pequenas mostras de parte do acervo nas salas do museu já em condições de uso. Foi

Ministro Alcides Carneiro discurssando na inauguração do Museu ao lado do Governador João Agripino.

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um incansável trabalho de equipe que gerou a posse deste importantíssi-mo patrimônio que hoje pertence ao povo paraibano dentro da perspectiva de se criar um tipo de instituição que levasse ao público a possibilidade de participar aprendendo. O Museu abriu muitos caminhos, logo no início foi montada uma galeria de arte de iniciativa privada, o que bem denota o espírito de pioneirismo do povo da serra. Era a Galeria Facheiro, entregue ao público com uma coletiva de paraibanos com texto de apresentação de Chico Pereira.

*para o catálogo da exposição “Coleções do Brasil”,curadoria de Marcos Lontra e sub-curadoria do MAAC de Raul Córdula.

Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília - 2001

Mário Pedrosa A grande festa de inauguração do MAAC surpreendeu até mesmo os mais otimis-tas. Foi uma grande reunião política sob a guarda do Governador João Agripino, com presenças tais como as dos generais João Lyra Filho e Mourão Filho, o Depu-

O povo de Campina Grande na inauguração do Museu de Arte Assis Chateaubriand.

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tado Tancredo Neves, empresários paulistanos e cariocas doadores das obras mais caras, Drault Ernanny, Helena Lundgren, e tantas outras personalidades da elite brasileira da época. Mesmo com o povo de Campina do lado de fora do museu, tudo parecia estar na mais perfeita democracia. No dia seguinte o empresário Arthur Freire ofereceu a todos um almoço na sua Fazenda Maria da Luz, próxima à cidade. Este gran finalle teve fundamental impor-tância para nossas emocões, pois lá estávamos todos nós reunidos e descontraídos, avaliando o esforço de toda equipe, dos doadores e promotores daquele aconteci-mento. Os artistas de dentro e de fora, políticos, empresários, cantadores, embola-dores, dançarinos e forrozeiros. Contemplando a Serra da Borborema rompendo o horizonte sentimos uma ponta de orgulho, vimos um brilho de genialidade no olhar de Edvaldo do Ó e uma alegria imensa no sorriso de Chico Pereira.

Foi até possível imaginar como seria agora, quatro décadas depois, quando uma nova geração de artistas se forma em Campina Grande, onde não temos mais tan-tas distâncias a percorrer, onde o olhar transformador da pop art, da nova figura-ção, da arte armorial, do tropicalismo e todas as novas manifestações artísticas que desaguaram na arte contemporânea, este momento de perfeita liberdade de criar que vivemos hoje, se incorporaram definitivamente à cultura do homem nordes-tino. Uma mesa coberta de frutos, folhas e flores, verdadeiro monumento ao Tropica-lismo que nascia e dava seus primeiros passos. Era uma bela obra de arte que hoje chamaríamos de “instalação”, tinha saído das mãos da anfitriã. Mário Pedrosa pe-gou-me pelo braço e levou-me lá, profetizando: “Rasputin – era assim como ele me chamava – , você está diante da arte do futuro ...” Uma semana depois da inauguração do Museu, depois de uma festa enorme, decidi não mais ficar na Serra, voltei para João Pessoa e, em Tambaú, procurei recuperar o tempo em que não havia pintado. Em João Pessoa o DC continuava com o seu trabalho, mas naquele momento já se instituíam as atividades isoladas dos órgãos oficiais, as atividades industriais.

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Polícia de Campina e pinturas de Raul Córdula.

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Resenhas

Tropicalismo Foi naquela época que eclodiu o Movimento Tropicalista entre Recife e João Pes-soa. Numa sexta-feira, na nossa Faculdade de Filosofia, foi aberta uma discussão sobre o assunto. Participamos: eu estava lá com Jomard Muniz de Brito, Marcus Vinicius de Andrade, Carlos Aranha, Wills Leal, Jurandy Moura, entre outros, apoiados por um show do conjunto “Os Quatro Loucos”, que tocava as músicas

recém criadas e lançadas por Caetano, Gil, Torquato Neto e Tom Zé, os seguidores do movimento lançado no Rio a partir de um ambiente/objeto, que hoje chamarí-amos “instalação”, de autoria de Hélio Oiticica, intitulado “Tropicália”, exposto no Museu de Arte Moderna. Suspeito que nessa ocasião é que Caetano e Gil foram apresentados à obra e à pessoa de Hélio Oiticica. Eu mantivera contato com os

Raul Córdula, Willis Leal, Carlos Aranha, Jomard Muniz de Brito e Rui Dantas no debate sobre o Tropicalismo. Faculdade de Filosofia UFPB.

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artistas cariocas do tropicalismo desde a ocasião daquele encontro. Naquele tempo vários outros focos de criação ativa e questionadora existiam no Rio, como “Arte no Aterro”, acontecimento espontâneo liderado por Hélio Oiticica, a “Happening” de Antonio Manuel na abertura do Salão Nacional, quando ele e uma amiga fica-ram nus e desceram a escada helicoidal do MAM, o Festival das Bandeiras da Praça General Osório. Na Rua das Flores, centro do Rio, estava instalado o Mercado de Arte da Guanabara, que tinha a fantástica figura do nosso escultor Jackson Ribeiro como líder. Jackson estava recém-chegado da Europa onde usufruiu seu prêmio de viagem ao exterior conquistado no Salão Nacional de Arte Moderna. No Super-mercado de Arte e no atelier de Jackson na Rua da Lapa, reuniam-se os tropicalis-tas e discutiam-se os problemas da arte daquele momento. O manifesto lançado em Olinda fazia parte também deste contexto e foi assinado pelo mesmo grupo da Paraíba com a adesão de artistas de Natal. Antes, em João Pessoa, na reunião da Faculdade de Filosofia, saiu também um manifesto intitula-do: ”O Que é Nosso Tropicalismo Ou Vamos Desmascarar o Subdesenvolvimento” que foi assinado por Marcus Vinicius de Andrade, Carlos Antonio Aranha e por mim. Este dizia coisas como: ”Contra a miséria lançada em ”tecnicolor”, contra o cartão postal e o lugar comum; subdesenvolvimento não é curiosidade turística. É necessário combater, desmascarar e criticar a nossa realidade, ao invés de expressá-la festiva e pitorescamente.” Ou “Pela lucidez da loucura com as liberdades permi-tidas por ela” ou “Não há (no movimento) nenhuma proposição estética. O que existe é uma atitude ética, uma política cultural.” “E somos conscientes de nossa transitoriedade. Pois o momento é o hoje, o agora e o amanhã de manhã cedo.” Novos espaços Miguel Ciavarella, engenheiro argentino diretor da Fábrica de Cimento da Ma-tarazzo, que ainda existe na Ilha do Bispo, era o artista da vez. Com um trabalho de tendência surrealista e muita técnica ele praticava a xilogravura com um corte perfeito. No dia 27 de outubro, expôs na Galeria Pedro Américo, que funcionava na antiga Escola de Engenharia transformada no então Departamento Cultural da UFPB versão 67. O local tinha sido um belo edifício do século XIX, mas fora adap-tado para funcionar a Escola de Engenharia, e o resultado foi um horrível pardieiro que nem mesmo os engenheiros responsáveis pela obra aguentaram conviver com ele. Este edifício abrigou por anos o Departamento Cultural com seus cursos livres de artes plásticas e música. Miguel Ciavarella inaugurou a galeria com sua primeira exposição, com 17 xilogravuras e 14 óleos e um folheto desenhado e apresentado por Artur Cantalice. A Galeria atuou por muito tempo e foi o centro irradiador da

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melhor arte produzida na época. No mesmo ano a galeria expôs ainda 12 quadros do jovem pintor Marcus Vinícius, com folheto escrito por Vanildo Brito e por mim. No Theatro Santa Roza o xilogravador Unhandeijara Lisboa dirigia a Galeria de Arte José Américo de Almeida. Realizou muitas exposições, sempre muito bem cuidadas, como “Artesanato do Sertão Paraibano”, de 13 a 30 de maio, com mate-rial recolhido pelos Voluntários da Paz, Roberto D’Alessandro e Robert Frost em Patos, com peças de Dona Maria dos Bichos, Antonia Soares, Nazira, entre outros artesãos da região; no folheto, texto de Wills Leal, “Ex-votos” das coleções particu-lares de José Nilton da Silva e Unhandeijara Lisboa, recolhidos na Igreja da Penha, Igreja da Guia e Nossa Senhora da Boa Viagem e em Alagoa Grande, de 18 a 29 de abril, com apresentação de Altimar Pimentel, “Pinturas de José Lucena”, primeira exposição individual com 11 quadros e apresentação de Archidy Picado. Houve também uma mostra de violinos do “Luthier” Manuel Pontes da Silva, pai do gra-vador Pontes da Silva, e também uma mostra de bonecos do Teatro de Fantoches. Em 1968 a Galeria montou a 1ª Mostra Paraibana de Literatura com o lançamento dos livros: História de uma Prostituta, de Marie Thérèse, Introdução Sistemática ao Estado da Sociologia de Harry M. Johnson, O Áspero Amor de Renard Perez, as Minorias Eróticas de Dr. Lars Ullerstam. Sobre a obra pessoal do gravador Unhandeijara, escrevi nos anos 80 o texto que se segue:

Karimbada

A carimbada é um gesto humano tão antigo quanto a necessidade de grafar um sinal, assinalar, sinalizar, assinar, marcar, identificar, firmar, reconhecer, tomar posse, tocar, assumir. Tão antigo quanto a mão do homem suja de sangue e gravada na parede da caverna.Tão atual quanto uma xilogravura, uma litogravura, uma gravura qualquer, um jornal impresso, uma policro-mia, um impulso eletrônico, uma peça de metal estampado, um sinal de trânsito, um programa de TV. Karimbada, no entanto, é uma publicação do artista plástico Unhandeijara Lisboa, que já está em seu 4º número, onde outros artistas do Brasil e do exterior comparecem com suas páginas já impressas em forma cooperativa. O sentido artesanal da Karimbada é o movimento ao contrário no tempo, a meta-ação que questiona a mídia e se adequa às condições reais da econo-

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mia cultural local. Na era do off set o artista utiliza o carimbo (paleolítico) e se expressa em linguagem contemporânea. Esse esforço, esse nó na língua, estabelece o sentido crítico que Unhandeijara, como agente propulsor, de-sencadeia.

Correio das Artes, João Pessoa, 1982

José Altino Um espaço alternativo abriu suas portas: Lanchonete Carioca, que apresentou o gravador José Altino lançando seu primeiro álbum de xilogravuras intitulado “Um Sol do Bute”. Altino vinha da Bahia, onde trabalhou com Emanuel Araújo. Uma nota de “A União” de 28 de julho de 1967 dizia: “Deixando os grandes Salões a que se vem limitando a maioria dos artistas plásticos, Altino passará a expor em ambientes acessíveis ao povo, afirmando que o movimento não é novo, pois já existia no sul do país essa iniciativa que objetiva levar a arte para o meio cotidia-no, ao invés de limitar-se a uma espécie de público”. Altino também fez cartazes para teatro e outros eventos culturais usando suas gravuras como tema. Um ótimo exemplo foi o cartaz-programa da peça “O Auto da Cobiça” de Altimar Pimentel, dirigido por Luiz Mendonça, no auditório da Reitoria, em 1 de dezembro de 1967, como resultado do Curso de Arte Dramática do Theatro Santa Roza. A peça tinha trilha musical de Pedro Santos e cenários de Elpídio Navarro. O desejo de Altino era democratizar sua obra xilográfica, o que foi muito importante naquela época. Baseava-se em acontecimentos como, no Rio de Janeiro, o Supermercado de Arte, comandado por Jackson Ribeiro, os “Domingos de Arte” do MAM que tiveram à frente o crítico de arte Frederico Morais, e “Arte no Aterro”, onde os artistas ca-riocas enfrentavam as garras da ditadura. Proliferaram os álbuns de gravuras, era uma forma dos artistas mediarem suas criações com o povo. Altino até hoje é um operário da gravura, vive dignamente de sua arte como um artista e artesão – pois o gravurista é dos artistas visuais quem mais vive deste equilíbrio – e presenteia sempre a sociedade com suas belas criações. Em 1968 ele lançou na Galeria José Américo o álbum “Danação ou De como o sertanejo morre de fome”.

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Um sol do bute, xilogravura de José Altino.

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A SAPP e o happening Uma atitude democrática dentro do clima militar foi a criação da Sociedade dos Artistas Plásticos da Paraíba – SAPP, fundada naquele mesmo ano. Em reuniões sob minha presidência, Miguel Ciavarella, José Altino, José Lucena, Marden Ro-lim, Breno de Mattos, Cleofas Leunam, Manuel André Marques e Heidelice Cór-dula nos organizamos em torno de uma entidade para defender nossos interesses e implantar alguns serviços, visando à promoção da arte em João Pessoa. Era uma associação que ainda portava um formato cartorial, sindicalista, daí seus erros, mas também era uma sociedade de artistas dispostos a dividir com o público suas an-siedades e suas propostas para uma cidade que sofria grande repressão cultural no governo militar, embora .... A SAPP, que já havia organizado uma exposição na Galeria José Américo, produ-ziu um happening, nome que se dava na época ao que chamamos hoje de “perfor-mance”, na Sorvelanche 36, lanchonete situada na rua Miguel Couto. No happening aconteceria exposição coletiva da qual participei ao lado de Breno Mattos, José Altino, Marcus Vinícius, Unhandeijara, Heidelice Córdula, Celene Sitônio, Régis Cavalcanti, Guy Joseph, Manoel Marques, Pontes da Silva, Cleofas Leonam, Miguel dos Santos e José Lucena. O que deu o caráter de performance ao evento foi a pin-tura coletiva de uma grande tela, onde não seria vedada a participação pictural do público. Foi impresso um cartaz com o logotipo da SAPP, desenhado gentilmente pelo arquiteto Geraldo Gomes, e cada artista usava uma camisa de malha com uma rosa vermelha no peito, desenhada e impressa por Antonio Cândido. O happening aconteceu num domingo às 5 da tarde. Estava visitando a cidade uma represen-tação de estudantes americanos ligados ao programa Companheiros da América. Eles assistiam a tudo com muito interesse, falavam de happenings semelhantes que assistiram na Califórnia, citaram os nomes de Rauchenberg e John Cage, fotografa-vam tudo com entusiasmo e chegaram a participar da pintura coletiva. Encostado no balcão estava o Tenente Lindenberg, um galego alto e bem educado, oficial da Polícia Militar e Chefe da Casa Civil do Governador. Veio falar comigo, que me dirigia aos meus pares artistas. Disse: Vim ver sua “matinê”. Respondi: Lindenberg, pra nós é uma honra, só assim me sinto protegido.No auge da vibração, o grande quadro repleto de figuras, texturas e cor dominava o hall da lanchonete. Foi então que o ator Fernando Teixeira, envolvido nos sen-timentos antiamericanos comuns na juventude da época, despejou uma lata de esmalte sintético preto na cabeça de um dos jovens americanos que fotografava serenamente o acontecimento. Foi uma agressão típica do clima de insatisfação que vigorava na época. Em meio à confusão Lindenbeg veio até mim e disse: Desapare-ça que a polícia vem aí pegar você. Eu gritei “polícia!”, todo mundo debandou. Per-

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cebi que Lindenberg estava ali para proteger os americanos, mas foi um cavalheiro na hora H, um perfeito cavalheiro. Soube depois que o estudante americano saíra com alguns dos artistas onde estava o próprio Fernando, foram à casa de alguém para se limpar, passaram numa farmácia para comprar colírio, pois a tinta atingiu um olho, e foram beber noite adentro. Dia seguinte vejo em “O Norte” da Segunda-Feira uma bela foto do americano, de autoria de Cabeção, na primeira página. Alguém passou num carro e deixou um envelope com um convite de Adrião Pires, para almoçar na sua linda casa do Miramar e discutir com um professor americano, líder do grupo de estudantes, sobre como ficaria este caso diante dos prejuízos causados ao estudante. Ele queria que eu pagasse pela máquina fotográfica danificada e indenizasse o rapaz pelos danos físicos. Eu até que achei justo, pensei em fazer uma cota com os amigos performáticos. Mas o professor - não o rapaz pintado – impôs dois mil dólares, mil pela máquina e mil pela irritação do olho do estudante como pagamento. Dois mil dólares era muito dinheiro para nós. Por outro lado pensei como seria bom para a gente divulgar este fato nacionalmente, não apenas para nossas projeções como artistas no tempo da vanguarda, mas também como um marco político, uma posi-ção de repúdio contra os americanos que “produziram” o golpe de 64. Talvez fosse ingênuo pensar assim, mas se houvesse repercussão nacional seria uma forma de nos ombrear em poder, e tínhamos amigos críticos de arte como colunistas nos principais jornais do Rio. Disparei: “Está certo, dois mil dólares, mas eu fico com o direito de divulgar isto na imprensa nacional.” Adrião oportunamente nos convidou para a mesa e ninguém tocou mais no assun-to. Na hora do café, Adrião e o professor saíram da sala onde eu estava conforta-velmente sentado numa Poltrona Mole, móvel ícone do mobiliário moderno bra-sileiro, de autoria do designer Sérgio Bernardes. Adrião voltou sozinho e me disse: “Raul, o professor pede desculpas, mas não poderá retornar. Quanto à indenização, vamos botar uma pedra em cima disso.” Como fazem falta Adrião e Dona Creusa... O happening, porém, levou a Associa-ção à extinção, pois a tensão policial tornou nosso trabalho insustentável.

Resenhas Tendo deixado a Direção do MAAC, em 68 retornei ao Departamento Cultural da UFPB para lecionar Desenho Artístico. Tinha uma turma de alunos adiantados e procurava também discutir os problemas da arte daquele tempo. O fato importan-

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te foi a presença de um aluno muito especial, um presidiário que assistia às aulas duas vezes por semana chamado José Ramalho e que se destacou logo de início por trazer um talento indiscutível e um apego ao trabalho fora do comum. José Ramalho acabou sendo um artista comovente, e hoje, talvez, continue seu trabalho em alguma penitenciária ou mesmo em qualquer cidade do interior. Zé foi trazido ao DC pelo Tenente Lucena, que na época dirigia a Penitenciária Modelo do Es-tado. Conversei com o grupo de alunos sobre a condição legal de Zé Ramalho e eles concordaram em aceitá-lo para integrar-se no grupo e aceitei-o como aluno. Ele vinha às aulas conduzido por 2 soldados, condição que conseguimos superar apoiados por seu apego ao trabalho e sua crescente socialização. Estudou pintura com João Câmara, que nesse ano assumiu o atelier de pintura. A turma de desenho era especial: Roberta Sobreira Silva, Custódia Magalhães, Ednaldo, José Ramalho, Maria de Jesus, entre outros, continuaram seus trabalhos no campo das artes nos anos que se seguiram.

“O NORTE” da segunda feira.

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Em maio, uma importante exposição de Miguel Ciavarella teve catálogo escrito por Arthur Cantalice e constou de 14 xilogravuras. Eu começava a trabalhar para completar o orçamento familiar, insuficiente des-de o salário pago pelo Departamento Cultural na PROPAN, escritório montado pelos amigos Heitor Falcão e Elcir Dias para produzir publicidade, impressos em “off-set” e serigrafia. Na PROPAN foram criadas campanhas para o governo João Agripino, para empresas industriais e também produzidos trabalhos de artistas, como o livro-processo de Marcus Vinicius de Andrade – IDOLATRINA, e os ca-tálogos de Breno, de Miguel dos Santos e de José Lucena. Era uma minigráfica ligada aos artistas visuais. Elcir Dias foi seu Diretor de Arte. Com sua sobriedade e corretíssimo ofício, Elcir foi sempre um mestre do desenho, da caricatura e do humor inteligente que envolvia os personagens da cidade. Sobretudo Elcir foi um pioneiro da programação visual e do desenho gráfico. Com ele aprendi quase tudo. Ele também era jornalista, editou algumas páginas de humor e escreveu poemas desconcertantes, como este, que transformei em quadro que pertence hoje à Pina-coteca da UFPB:

“Há um grande consolo para os que vão morrerno próximo genocídio atômico: a bomba de nêutrons não dói.Disse sorridente o Presidente Carter num close de TV.”

Em julho, mais dois acontecimentos de destaque na Galeria do Teatro: lançamento do álbum de xilogravuras de José Altino “Danação ou De como o sertanejo morre de fome”, e a já comentada exposição de esculturas acrílicas de Breno de Mattos. A Galeria José Américo de Almeida lançou também o álbum de xilos ”5 Gravado-res Paraibanos” com gravuras de Unhandeijara Lisboa, Pontes da Silva, Terezinha Camelo, Miguel Ciavarella e José Altino. Este álbum congregou o que havia de mais importante na nossa gravura e foi a primeira publicação especializada que tivemos. A tiragem foi de 500 exemplares, sendo 100 numerados e assinados. A respeito de xilogravura, na Argentina, o Museo de la Xilogravura de La Plata em outubro de 69 convidou Terezinha Camelo e Pontes da Silva para expor suas xilos ao lado dos argentinos Barrera, Gagliardi, Loubert, Morales Ganuza, Piergiacomi, Rebuffo, Rueda e Vigo, este Diretor do Museu. Terezinha Camelo teve sua for-mação nos cursos que Samico ministrava no DC a partir de 64. Ela participou de todas as exposições dos alunos e ainda da “II Bienal da Bahia” em 68, e “8 Artistas Plásticos Paraibanos”, na Galeria José Américo de Almeida, em 69. Marcus Vinicius de Andrade ainda adolescente já demonstrava o talento do grande

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poeta e músico em que se tornou. Como músico-poeta ligado à Poesia Processo e ao Tropicalismo, ele ocupou o Theatro Santa Roza com uma exposição-processo intitulada “SCRASH”, ao lado de Wladimir Dias Pino, Dailor Varela, Iaperi Araú-jo, Falves da Silva, Marcos Silva, Álvaro de Sá, Hugo Mund Jr, Frederico Marcos, George Smith, Pedro Bertolino, Marcos Sampaio, Joel Câmara, Henri Correa, Sebastião Nunes, Anchieta Fernandes, Nei Leandro, e Neide de Sá. Livros foram queimados e foi lançada a candidatura de Manuel José de Lima, o popular e sau-doso Mané Caixa D’água, para uma cadeira na Academia Paraibana de Letras. O poema que Marcos Vinicius apresentou era formado por uma tampa de sanitário sobre textos acadêmicos. Participei da mostra riscando fósforos como “um agente incendiário”. No texto do catálogo estavam frases de alerta como: “nordestinimbe-cilidade: folclorizar o subdesenvolvimento para turistas”, “POEMAS se fazem com ideias, não com PALAVRAS”, “existe mais poesia num logotipo que nas obras de J.G. de Araújo Jorge, Mario Chamie e Vinicius de Morais”, assim por diante. 68 também foi o ano do TIGRE. Marcus Vinícius tinha composto a magnífica canção “Ponha um tigre no seu canto”, alusão ao slogan da ESSO. Muitos outros artistas continuaram este tema propício a uma crítica à colonização. Logo Unhan-deijara, para não fugir da regra, apressou-se a lançar o álbum: “Ponha um tigre na sua gravura!”, com cinco xilogravuras e tiragem de 150, com capa de papel de embrulhar carne ao estilo do Grupo Sanhauá e apoio da Secretaria de Educação e Cultura do Estado através da Galeria José Américo da Almeida, que estreou a Co-leção Gravadora Recentes da Editora Banguê Oficina, grande ideia, embora tenha ficado apenas na estreia. Editei dois posters-poemas com textos de Marcos Tavares e Vanildo de Brito, pes-soas com quem eu congregava meus pensamentos de artista crítico da realidade da época. A Reitoria da UFPB, na época espaço expositivo de prestígio, apresentou a ex-posição de pinturas e desenhos de Jean Pierre Chabloz, artista suíço que morava em Fortaleza desde 1940. A mostra de Chabloz constou de 46 obras de pintura e desenho. Ele foi o descobridor do pintor indígena acreano Chico da Silva, que despontou numa carreira internacional através de uma reportagem que Chabloz fez com ele numa revista de arte suíça. No dia 11 de novembro abriu a exposição de cerâmicas de Miguel dos Santos no espaço da Galeria Pedro Américo. A apresentação do catálogo foi um texto anô-nimo que dizia: “Miguel Domingos dos Santos é um ceramista ligado por raízes profundas à imagística popular. Suas formas (antropoformas) e suas cores são mais

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um estandarte contra a resignação e a indignidade. O onírico de suas cerâmicas é o grito mais alto dessa rica forma de arte no Nordeste. E o trabalho é lento, árduo, quente e paciente como uma religião”. Em seguida a galeria apresentou uma mostra de pinturas infantis de alunos da professora Lourdes Medeiros onde estava Flávio Gadelha, artista que despontou no Recife a partir dos anos 80 e hoje possui um magnífico ateliê de gravura e pintura em Gravatá. Dia 13 de dezembro a Galeria Pedro Américo abriu a mostra de José Lucena com catálogo escrito por Jurandy Moura. Esta exposição marcou a entrada de Miguel no comércio de arte que se iniciava em João Pessoa.

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Marcus Vinícius e Breno Mattos no Mercado de Arte da Paraíba.

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No adro da igreja de São Francisco aconteceu a “1ª Feira de Arte da Paraíba” com participação de 29 artistas, entre 21 e 28 de dezembro, com apoio da Prefeitura, da Universidade, da Secretaria de Educação, do CENPAR e do conjunto musical “Os Magnus”. Da comissão organizadora faziam parte Guy Joseph, Marden Rolim, José Altino, Cleofas Leunam, Unhandeijara Lisboa, Sobreira Rolim e Manfredo Caldas. O escultor Marden Rolim, irmão do ator Sávio Rolim, do filme “Menino de Enge-nho”, fez uma exposição individual de escultura no Clube Cabo Branco, no dia 21 de setembro com promoção do Lions Clube de João Pessoa. O catálogo foi escrito por Archidy Picado e Jurandy Moura. No currículo de Marden constavam todas as exposições coletivas como aluno de Breno Mattos no Setor de Artes Plásticas da UFPB, e ainda sua participação na Galeria José Américo, no “Happening” da Sor-velanche 36, na abertura do Museu de Campina Grande, no “Salão Universitário de Minas Gerais” e no “V Salão de Arte de Minas Gerais”. Guy Joseph lançou o álbum “América, América”, o primeiro impresso em serigrafia artística na Paraíba, com 5 pranchas e 3 cores impressas por Remo Promoções Ltda. Na página de rosto havia um poema de Marcus Tavares. Alguns novos artistas apareciam nos ateliês do DC, entre eles vale destacar Manuel Batista, Irenaldo e Assis Ângelo, que ao lado de José Ramalho, o apenado, frequen-tavam o ateliê dirigido por João Câmara e Celene Sitonio.

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Chumbo grosso

O Anjo Exterminador, de Raul Córdula, censurado - coleção Otacílo Cartaxo.

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Fui então convidado para expor no hall da Reitoria. A mostra consistia de três fases distintas: a primeira dedicada a desenhos que tratavam a violência em relação à paisagem, a segunda criticava os preconceitos enfocando a repressão familiar sobre comportamentos eróticos da juventude, onde a figura de um tigre aparecia como personagem-símbolo da repressão, a última fase denunciava a violência policial sobre os movimentos de rua daquele ano, e a morte do estudante Edson Luís no Restaurante Universitário do Calabouço, no Rio. No dia seguinte à abertura da mostra, o Conselho Universitário decidiu retirar a exposição daquele local por considerá-la “atentatória à moral e aos bons costumes”, e indigna de ser mostrada naquele “espaço nobre”. Os quadros foram retirados à tarde, quando atendia a uma visita dos alunos do Liceu encaminhados pelo profes-sor de arte para realizarem um trabalho escrito. Eu era um artista engajado, e por isso mesmo sofri as consequências de um estado autoritário e militar. Aquilo se repetiu com muitos outros artistas no tempo do AI-5. A Casa Civil do Governador João Agripino publicou uma nota repudiando a me-dida repressiva e oferecendo qualquer edifício público do Estado para que eu uti-lizasse para expor. Optei pelo Theatro Santa Roza, que vinha movimentando com muita liberdade sua Galeria José Américo. A exposição percorreu ainda o Recife, apresentada na Gafieira Amantes das Flores por iniciativa de Jomard Muniz de Bri-to e apoio do Caderno 4 do Jornal do Commercio, editado pelo jornalista e crítico de arte e cinema Celso Marconi. Em Olinda, também com produção de Jomard, na Oficina 154, ao lado de Marcus Vinicius de Andrade que lançava seu livro de poe-sia processo “IDOLATRINA”, desenhado por mim. Mas o fato mais importante da exposição foi a participação de Caetano Veloso e Gilberto Gil assinando o segundo manifesto tropicalista de autoria de Jomard “Inventário do Feudalismo Cultural Nordestino”. O manifesto foi lido por Gil e também assinado por mim, Marcus Vinícius e Carlos Aranha. Em 1998, trinta anos depois, escrevi esta crônica:

Primavera negra A primavera de 68 se anunciava pesada. Mesmo caminhando sobre o tapete fúcsia das flores de jambo da Rua Almirante Barroso ou sob o céu rosado das canafístulas floridas na Epitácio Pessoa, nosso olhar era tenso, nossos ouvidos atentos. “A primavera / filha que esperas / a primavera / te há de trair”, escreveu o poeta russo Alexandre Bloch, curiosamente lido com muita

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atenção naqueles tempos de chumbo. A primavera nos aprontava a traição do AI-5, criava o clima perfeito para um Estado totalitário: o reinado de Saturno sobre o Brasil. No corredor urbano da Avenida Getúlio Vargas, que ia da Faculdade de Filosofia (FaFi), passando pelo Liceu Paraibano até o Clube do Estudan-te Universitário (Cassino da Lagoa), o reinado era, então, dos estudantes secundaristas e universitários que clamavam por respostas, gritavam suas palavras de ordem, mostravam suas caras com a perplexidade e a inseguran-ça que anunciam a dor. O Liceu era uma usina de liberdade, a Lagoa nossa arena de luta. A Reitoria da UFPB, que funcionava na época no belo edifício da Lagoa projetado por Leonardo Stuckert, tinha programado para a galeria de arte instalada no hall uma série de exposições de artistas plásticos ligados ao seu Departamento Cultural, como Breno de Mattos, Celene Sitônio, Archidy Pi-cado. Eu estava entre eles, e chegou minha vez. A pop art foi um movimento artístico libertador de escala mundial. Sua influência se fez sentir do Brasil ao Japão. No Brasil foi estratégica a ação direta da linguagem proposta pela pop art na questão da ideologia através da arte. Podemos avaliar hoje a simplificação da leitura do símbolo que a pop art nos legou por intermédio da forma direta e popular de representar o mundo com influência das artes gráficas e da publicidade. A pop art trazia a linguagem perfeita para aqueles tempos ferozes, pois não era verbal, mas mesmo assim dizia mais que mil palavras. Fato digno de nota é que, pela novidade das novas linguagens que aqui se ensaiavam, nunca se viu espaços expositivos como galerias e museus funcionarem com sentido político tão coerente e forte como naquele momento cultural. Antropofagicamente devoramos e digerimos a linguagem do dominador americano e a transformamos na nossa forma de ser e pensar. Primeira-mente a influência da pop art se manifestou nos movimentos da vanguarda carioca e paulista, como a Nova Objetividade e a Escola Brasil, por exemplo, e posteriormente no Tropicalismo, que nasceu nas artes plásticas com a ins-talação Tropicália, de Hélio Oiticica, e floresceu definitivamente, libertando a expressão brasileira do preconceito com sua própria identidade. A exposição que fiz na primavera de 68 no hall da Reitoria da UFPB era um grito tropicalista de influência pop, como era preciso e correto num artista

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e ativista comprometido com seu momento, na difícil realidade do pré - AI-5. Apaixonado pela nova literatura americana pós beatniks, como os livros de Kerouac e Breadboure, fui encontrar em Henry Miller inspiração para o quadro Primavera Negra, um corpo negro sangrando, nádegas brancas de mulher num campo vermelho. Leitor de José Américo e José Lins, o Canga-ceiro Pop via o mundo através de um prisma no cabo de seu punhal. Ponha Um Tigre No Seu Canto, música do magnífico Marcus Vinícius de Andrade, inspirou uma série de Guardiões, grandes felinos que ameaçavam a quem se aproximasse de corpos de mulheres virgens e nuas. Memória Negra, no en-tanto, era uma série de pinturas que falavam mais diretamente, referiam-se à morte do estudante Edson Luiz, vítima de um tiro disparado pela polícia nos movimentos grevistas do Calabouço, no Rio de Janeiro. A exposição era composta por este repertório muito mais romântico e sincero do que explosivo. Os guardiões da Virgindade e Memória Negra não agradaram, porém, aos guardiões da moral e dos bons costumes que já preparavam psicologica-mente o momento crucial que culminou com o AI-5. No dia seguinte ao vernissage, às três da tarde, quando eu recebia alunos do Liceu para uma visita guiada à mostra, o Conselho Universitário reunido extraordinaria-mente decidiu, porém não por unanimidade, censurar a exposição. Alguns funcionários da segurança do prédio, coitados, receberam a incômoda mis-são de desmontar a exposição sob o tumultuado protesto dos estudantes lá reunidos. Os tempos de chumbo foram também de solidariedade. Os amigos Wills Leal, que traz a nobreza de caráter no próprio nome, e o poeta/pensador Jomard Muniz de Brito, o mais elegante dos anarquistas, redigiram o mani-festo “Por Uma Exposição Censurada”. O protesto tornou-se público e geral na cidade indignada. No dia seguinte à censura, uma nota da Casa Civil do Governador João Agripino, enquadrada na primeira página do jornal O NORTE, dava conta de que o Governador não admitia censura no seu Estado, e colocava à disposição do artista qualquer edifício público estadual para mostrar sua obra. A exposição foi remontada dias depois na Galeria José Américo de Almeida, do Theatro Santa Roza. Mas esta não foi a única demonstração de solidariedade. A perda que senti, apesar da dolorosa sensação de mal estar que qualquer censura pública provoca, não era uma perda pessoal. Os quadros não foram destruídos nem danificados pelos funcionários da universidade que, aliás,

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os trataram com o maior respeito que lhes era possível naquelas circuns-tâncias. A perda era a da consciência coletiva de liberdade que todos nós sentimos fugir de nossas vidas como água que escorre pelos dedos. Pior do que retirar os quadros das paredes foi retirar os quadros que estavam para nascer no coração, retirar de mim os projetos para o futuro. Imediatamente depois da censura, fui induzido por meus superiores a pedir demissão do emprego no Departamento Cultural sob a ameaça de prisão e outras terrí-veis aberrações que faziam parte do clima de terror político da época. Assim foi feito: pedi demissão através de uma carta seca e impessoal e me preparei para sair da cidade. Minha ideia era procurar emprego em São Pau-lo onde estavam duas irmãs também começando vida nova. Mas como? Sem dinheiro, sem contatos, com história política evidente? Foi então que, num final de uma tarde quente e cansativa, chegou ao meu ateliê o amigo Otacílio Cartaxo, notável escritor e juiz de direito nascido em Cajazeiras, para o qual eu tinha pintado um mural numa parede da sua residência, onde se via uma “ceia larga”, mas os comensais não eram Jesus e seus discípulos, mas Hegel, Marx, Lênin, Stalin, Roosevelt e outros líderes e pensadores do mundo oci-dental, todos brindando sob um céu de nuvens onde se viam as imagens de Dom Quixote e Sancho Pança rindo às gargalhadas. Otacílio separou quatro quadros e disse: “Não sei quanto eles custam ou quanto eles valem, mas quero-os pra mim. Veja se o dinheiro que tenho aqui dá para você fazer sua viagem.” Tirou do bolso uma maçaroca de dinheiro e a esparramou sobre minha mesa de pintura. Era uma boa grana, deixei uma parte com minha mulher e viajei para São Paulo à procura de emprego e de respostas que amenizassem minha alma tão ferida. A solidariedade de Otacílio foi um grande exemplo, norteou minhas ações daí por diante, nas aventuras nem sempre cavalheirescas em busca da sobrevivência de um jovem artista nos anos de chumbo.

Edson Luiz, o natimorto - quadro censurado de Raul Córdula.

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Noite de abertura da exposição censurada.

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Flávio Tavares José Caldas

Marcos Tavares

Hildebrando Assis

Mardem Rolim

Willis Leal

Jomard Muniz de Brito

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1964 - desenho de Raul Córdula, censurado.

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Catete Havia no Rio várias marcas de cerveja preta barriguda feita em fábricas de quin-tal nos bairros mais portugueses, como São Cristóvão e Botafogo. As de Botafogo eram mais conhecidas, como a Príncipe Negro, que existiu até, pelo menos, 1969, quando eu, Péricles Leal e Marcus Vinícius saíamos noite adentro em busca delas pelos botequins do Catete, numa época de muita penúria. E elas eram mais baratas. As cervejas tinham mosto, ficava uma coisa que parecia pipoca molhada no fundo da garrafa. Havia um botequim no térreo do Hotel Suíço, pensão de quinta categoria onde eu dividia um quarto com o Presidente – Marcos Vinícius fora nomeado Presidente pelo sonoplasta [hoje DJ] Eduardo Stuckert. Lá encontrávamos as tais cervejas, que bebíamos acompanhadas de sanduíche de pernil de porco cozinhado no domingo pelos donos espanhóis e curtido a semana inteira, até seu fim glorioso quando as carnes chegavam perto do osso, nos sábados. Quando não tínhamos dinheiro nos sábados, íamos de manhã à casa de algum amigo – escolhíamos dentro de uma escala planejada para que não houvesse repetição de dois sábados seguidos com um só amigo. Assim não deixávamos a fonte secar. Mas o bar dos espanhóis fechava à noite. Por isso quando a sede era noturna, que é que é sede de vícios também, caminhávamos até a Taberna da Glória, mesmo passando a perigosa delegacia da esquina da Rua Pedro Américo com a Rua do Catete, onde os homens vasculharam, ou melhor, deram um “baculejo”, em Naná Vasconcelos e em mim, que andávamos vendo as fachadas das casas com os olhos vermelhos numa manhã de sol. A noite era nossa, só voltávamos de madrugada, quando o gazeteiro negro subia o Catete vindo do centro, apregoando em voz forte as manchetes que ele mesmo inventava para vender “O Dia”: “Português apaixona-do engoliu um tijolo quente!” Além de visitar amigos dos estúdios de TV e cinema atrás de emprego, eu conse-guia de vez em quando, através de um amigo arquiteto, fazer a pintura de parede de um ou dois apartamentos e compartilhar o trabalho com meu amigo Arias, também ex-empregado da TV TUPI. Comprávamos duas latas de sardinha, duas bisnagas de pão francês, uma garrafa da preta barriguda, e levávamos nos sacos de papel do mercadinho. Escolhíamos os sacos cujo diâmetro medisse mais ou menos o diâmetro de nossa cabeça. Quando chegávamos à obra, tirávamos as coisas dos sacos, e fazíamos com eles dois chapéus para proteger os cabelos dos respingos da tinta. Os instrumentos eram de Arias: pincéis para os cantos e acabamentos, rolos,

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cabos e bacias. Tínhamos também lixas e espátulas para emassar. Para as portas, tinta a óleo e solventes, nas paredes tinta plástica, que era como nós chamávamos as tintas à base de PVC, solúveis em água. Jornais para resguardar o piso. No meio do dia a gente tirava da cabeça os chapéus de papel, organizava o espaço como se lá houvesse uma mesa invisível que, à guisa de toalha, cobríamos com folhas de jor-nal. Ali nós comungávamos com a sardinha – aberta com o canivete suíço de Arias – o pão e a cerveja, que já estava quente, mas que assim mesmo descia pela garganta como um néctar que aplacava nossa sede e nossa fome de trabalhador. Era um ban-quete, acompanhado pelas narrativas sevilhanas do meu amigo, um espanhol bem humorado que tinha nascido dentro do teatro, com pai, avô e tios ligados à cena e à contra regra. Depois, por alguns minutos, eu deitava no chão para descansar. Aqueles foram momentos de luta pela vida, depois de ter tido uma exposição de meus quadros censurada na Reitoria da Universidade da Paraíba e, por conta disso, ter que pedir demissão por imposição dos meus “chefes” e ir tentar sobreviver em outros terreiros. Lá estava eu no Rio de novo, a cidade que sempre abrigou a mim e minha família. Lá estava eu de novo como há trinta anos antes, quando chegamos, minha mãe e os cinco filhos, num pata-choca – assim eram chamados os hidroaviões da FAB –, e fomos morar numa pensão em Botafogo, e depois num apartamento em São Cristóvão. Um belo dia recebi na pensão um telefonema de Mário Monteiro, o chefe de ce-nografia da TV Globo, me chamando para integrar a equipe que produzia o III Festival Internacional da Canção, mega espetáculo realizado no Maracanãzinho. Lá fui eu de mala e cuia me hospedar numa rede armada nos porões do estádio, onde dormia, comia e tomava banho. Foi-me entregue a confecção dos painéis com os nomes das músicas que eram mudados manualmente pela contra regra quando cada música era anunciada. Eram placas de dois metros por dois, onde eu pintava em tinta azul, padrão da Globo na época, com um tipo também do mes-mo padrão, o nome da musica, autor e país, cada item numa placa diferente. Um trabalho gigantesco principalmente pela diagramação rigorosa das mais de cem peças pintadas.No final do trabalho, nas vésperas da estreia, Mário Monteiro me ofereceu a opor-tunidade de ser contratado. Pediu para eu conceber e realizar cenários para três shows musicais que faziam parte dos contratos com músicos estrangeiros, e tam-bém dos testes de cores que a TV estava implantando naquele tempo. Os shows eram do flautista Paul Horn, do conjunto de cordas belga Les Alexandrins e do íco-ne do americano que lutava pela liberdade e igualdade de raças Rick Havens, mais

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conhecido por sua apresentação no Festival de Woodstock quando cantou Freedom Freedom. Lá fui eu me embrenhar nos depósitos de cenários e contra regra em busca de elementos de cena para compor os ambientes, na forma mais improvi-sada que se podia fazer, com o que tivéssemos à mão. Encontrei algumas macro-fotos de revólveres, a arquibancada do programa do Chacrinha e algumas poleias pintadas de preto para dar a impressão de estruturas urbanas. Desenhei o nome dele em grandes letras e mandei recortar em compensado, elas ficaram iluminadas por trás formando silhueta no ciclorama, com isto fiz Rick Havens. O recurso do nome sobre o ciclorama era bom, usei para os outros. Para Les Alexandrins utilizei planos e cubos de fórmica branca e para Paul Horn recortes de árvores contra o fundo. Tudo simples, mas bem resolvido e enriquecido com a luz padrão da Globo. Cenário de show é na verdade ilustração, diferente de cenário de novela que tem a ver com a realidade. Com certo orgulho (por que não?) lembro a reação de Rick Havens, que andava com uma Bíblia debaixo do braço. Certamente ele perguntou a alguém quem ti-nha feito o cenário e apontaram pra mim, ele veio, bateu com a Bíblia na minha cabeça e disse qualquer coisa elogiosa e engraçada, segundo o que me contaram, com aquela boca cujos dentes tinham sido quebrados pela polícia novaiorquina. Os cenários cumpriram suas funções decorativas e pragmáticas, pois eu finalmente fui contratado. Mas isto faz parte de outras memórias.

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Efeitos da repressão política no Ponto de Cem Réis, 1969.

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Talvez pela idade em que estamos, talvez pelas nuvens que obscurecem, por momentos, o horizonte do nosso país e do mundo, a paisagem da vida nos parece mais bela quando olhamos para trás. Por isso, estas “Memórias do Olhar” do pintor Raul Córdula me sensibilizaram tanto. Memórias podem ser mais estimulantes e enriquecedoras do que obras de �cção. Sobretudo quando o autor não fala apenas de si, mas das suas circunstâncias, das pessoas, cenas e lugares que o marcaram e modelaram, em sua aventura existen-cial. É o que faz Raul, ao narrar as suas vivências nos anos 50 e 60 do século passado, na “capital das acácias” e no “Sul Maravilha”, para onde a intolerância dos “anos de chumbo” o levou, por algum tempo. E com isso dá nova vida a heróis obscuros e injustamente esquecidos, dos quais o melhor exemplo é o Professor Léon Clerot, sábio e artista a quem a Paraíba deve tanto, e ninguém sabe. Como membro da “Geração 59”, muito me grati�cou con�rmar como foi importante a nossa convivência com o então adolescente que procurava consolidar a sua opção pela vida artística, em um ambiente tão acanhado como o da João Pessoa de 50 anos atrás. Suas belas ilustrações �caram grudadas aos nossos poemas e contos, mas só ao ler seu livro “Fragmentos”, de comentários sobre artes plásticas, é que fui perceber como também nossas imagens,

expressões e ideias o impregnaram em seu trabalho de pintor. Agora, com este novo livro, e para grande honra nossa, essa percepção se completa. Pelas páginas do volume des�lamos todos nós – alguns até com direito à palavra, em entrevistas e artigos – e muitos dos que nos antecederam e sucederam, com todos os matizes: brilhantes, excêntricos, ousados, discretos, incompreendidos, audazes, atrevidos, toda uma gama de caracteres de que a Paraíba sempre foi pródiga. Quem o ler verá. E nele se encontrará, seja pessoalmente, seja por a�nidade espiritual com algum dos seus personagens. Memórias do Olhar. Um livro para ser lido como foi escrito: com emoção e saudade. Mas também – pois que o otimismo é indispensável à ação – na justa perspectiva de colher a doçura do passado para suavizar os caminhos do futuro.

Clemente Rosas

Alem do autor �guram neste livro Vanildo Brito, Clemente Rosas, Breno Mattos, Celso Japiassu, Jomar Souto, Ângela Bezerra de Castro, Otávio Sitônio, José Lyra, Mocidade, Flávio Tavares, Jomard Muniz de Brito, Leon Clerot, Marcus Vinícius

de Andrade, Hermano José, Virgínius da Gama e Mello, Domenico Lazzarini, Geraldo Emílio Porto, Reitor Mário Moacir Porto, Marcos Ribeiro Coutinho, Archidy Picado, Governador José Maranhão, Jurandy Moura, Samico, Chico

Pereira, Vicente do Rego Monteiro, Pontes da Silva, Maria José Limeira, Gover-nador João Agripino Maia, Marcelo e Milton Veloso Borges, Dona Daura, José

Madruga, Paulo Melo, Governador Pedro Gondim, Prof. Raul Córdula, Maestro Severino Araújo, Wills Leal, Luis Carlos Cavalcanti, Wladimir Carvalho,

Marlene Almeida, Linduarte Noronha, José Bezerra Cavalcante Adrião e Creusa Pires, Balduino Lélis, Maestro Pedro Santos, Elcir Dias, José Altino, Unhandei-jara Lisboa, Hildebrando Assis, Pedro Santos, Celene Sitônio, Carioca, Hosana, Roupa Velha, Péricles Leal, Berta, Mário Pedrosa, Juarez Batista, Heitor Cabral,

Vassoura, Márcio Mattar e outros igualmente notáveis.