trecho do livro "o olhar de milo"

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MILO

Milo sentou diante do computador atento ao ruído abafado da mangueira dos bombeiros. Eles tinham acabado de autorizar a entrada na casa.

— Quero uma lista de casas de repouso.— A Vovó não pode ficar até o Natal?A Vovó era avó de Papai e bisavó de Milo, mas todo mundo a

chamava de Vovó.Milo virou a cabeça e olhou para as luzinhas mágicas enroladas

no corrimão que ia até o quarto de Vovó. Ele teve essa ideia quando a viu tentando encontrar o interruptor de luz.

Mamãe virou a cabeça de Milo para que ele a olhasse nos olhos e disse:

— Não.— Mas...— Não insista — Mamãe falou, fechando a boca com o polegar

e o indicador. “Não insista” era a expressão favorita de Mamãe.— Mas, Mamãe, o incêndio foi culpa minha, eu devia ter

descido para verificar. E era verdade. Todas as manhãs, quando Vovó saía do quarti-

nho no sótão e descia as escadas até a cozinha para fazer sua xíca-

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ra de chá com leite, era tarefa de Milo garantir que tudo corresse bem. Ele ficava deitado na cama, atento aos sinais:

1. O tilintar da caneca xadrez de Vovó quando ela a tirava do porta-canecas.

2. O barulho da tampa do vidro com os saquinhos de chá sendo aberta.

3. O chacoalhar dos talheres enquanto ela procurava sua co-lher favorita, aquela feita de prata com o cabo meio torto.

4. A chaleira sendo enchida (apesar de que Milo sempre tentava lembrar de enchê-la na noite anterior porque os pulsos de Vovó eram fracos e ela tinha dificuldade para segurar a chaleira cheia de água).

5. O clique da chaleira sendo ligada.6. Uma pausa.7. A água aquecendo, o vapor empurrando a tampa, o borbu-

lhar da água e depois outro clique.8. Às vezes, depois do terceiro sinal, Vovó esquecia que ti-

nham uma chaleira e abria a gaveta das panelas e enchia uma panela e acendia o fogo. Essa era a deixa para Milo tirar o corpo da cama e descer. Eles tinham um fogão a gás e Vovó não estava autorizada a usá-lo.

Milo não sabia por que não tinha ouvido o barulho da gaveta de panelas naquele dia. Devia estar com sono ou talvez Vovó tives-se sido muito cuidadosa para não fazer barulho; mas, quando sen-tiu uma palpitação no peito indicando que Vovó precisava dele e Hamlet começou a se esgoelar na garagem por ter engolido muita fumaça, era tarde demais: a cozinha estava pegando fogo.

— Não é responsabilidade sua cuidar da Vovó — Mamãe falou.

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Ela se inclinou e beijou Milo na cabeça. Mamãe vivia fazen-do isso: repreendia e depois beijava. Ela estava cheirando a coisas queimadas e perfume viscoso e sono.

— Quando tudo isto acabar, vou deixar Hamlet ficar na casa. Milo se inclinou sob a mesa e fez um carinho entre as orelhas

de Hamlet. Ele só tinha sido autorizado a ficar lá em cima porque estava assustado com o fogo. Milo odiava o fato de Hamlet ter que viver sozinho na garagem, um lugar frio e úmido, sem nenhu-ma janela. Ninguém deveria viver assim. Mas se Milo tivesse que escolher entre Hamlet ficar fora da garagem ou Vovó continuar com eles, escolheria a Vovó. Hamlet entenderia.

Mamãe olhou para a tela do computador por cima do ombro de Milo.

— Não queremos nenhum lugar pomposo, Milo; a Vovó não iria gostar.

Por isso Milo digitou “casas de repouso não pomposas” no Google, mas o Google não entendeu e perguntou: “você quis di-zer casas de repouso pomposas?”.

Depois que Milo deixou Vovó em segurança na entrada de carros e abriu a porta da garagem e tirou Hamlet da gaiola e o entregou a Vovó, voltou para dentro de casa e gritou: “Fogo! Fogo! Mamãe! Incêndio!”.

Mamãe desceu a escada correndo e saiu da casa, com o rosto inchado e sem maquiagem. Ao se deparar com Vovó, não pergun-tou como ela estava e também não disse que estava aliviada por ver Hamlet em segurança e não disse a Milo que ele havia agido corretamente salvando todo mundo. Ficou gritando e repetindo as mesmas palavras, várias vezes:

— Esta foi a gota d’água! Esta foi a gota d’água!

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Milo e Vovó sabiam o que significava essa gota d’água: que Vovó ia para uma casa de repouso.

Mamãe bateu com uma unha rosa lascada na tela do com-putador.

— Esses quartos são muito grandes — ela disse. — Vovó vai se sentir perdida.

Por isso Milo fez uma busca para encontrar casas de repou-so com quartos pequenos. Mas aí pensou em todas as coisas que Vovó tinha lá em cima, como a gaita de foles de Vovô e o unifor-me dele e as caixas com cartas que ele havia escrito para ela e o mapa de Inveraray e a foto do barco de pesca e o radinho, e que ela gostaria de levar tudo.

— Acho que não tem nada.Se Milo fizesse Mamãe sentir que isso seria um aborrecimen-

to, talvez ela desistisse.— Ah, pelo amor de Deus, Milo. — Mamãe olhou para o

alto da escada, na direção do quarto da Vovó, e coçou o pescoço. Depois se abaixou e sussurrou: — Você só precisa encontrar um lugar barato.

Mamãe escreveu a palavra barato no verso de um envelope e o colocou diante de Milo para que ele não esquecesse. Milo passou o dedo sobre a palavra; ela havia pressionado o lápis com tanta força que as letras saltavam do papel.

— Tenho que fazer um pouco de chá para os bombeiros.Ainda de camisola (aquela de babado parecida com as corti-

nas da cozinha, pelo menos antes de as cortinas pegarem fogo e se transformarem em mariposas pretas no piso de linóleo), Mamãe desceu a escada correndo. Milo ouviu a porta do armário abrir e o farfalhar do pacote de biscoitos. A chaleira tinha derretido, por isso Milo não sabia como Mamãe ia ferver a água para o chá.

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Milo não deixaria Mamãe prender Vovó em uma casa de re-pouso. Apenas ia fingir que aceitava, e então Mamãe se acalmaria e perceberia que o lugar da Vovó era ali, no quartinho que Papai havia feito para ela no sótão, e que Milo era a melhor pessoa para cuidar dela. Então eles teriam um Natal digno, os quatro: Milo, Vovó, Hamlet e Mamãe.

Milo examinou a lista de casas de repouso. Todas tinham no-mes ligados à natureza, como Casa de Repouso Luz do Sol, Lar das Palmeiras e Solar Caca de Passarinho. Esta última, ele inventou.

Milo digitou “casas de repouso caras” no Google e esperou abrir a página.

— Encontrou alguma coisa? — Mamãe perguntou da escada.O cheiro de queimado tinha impregnado o tapete e as corti-

nas e as paredes e agora estava fazendo a garganta de Milo coçar.Ele tossiu e gritou:— Quase!— Quando encontrar, me dê o número dos telefones e eu

agendo uma visita.Milo não respondeu.Acima dele, as tábuas do assoalho rangeram e a água fez a

tubulação tremer. Ele esperava que Vovó tivesse lembrado de fe-char a torneira. Assim que terminasse aquela lista idiota, subiria e diria a Vovó que não ia deixar Mamãe chutá-la para fora de casa de jeito nenhum. Ia pensar em um plano para que ela ficasse, e não apenas para o Natal.

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LOU

Lou fechou os olhos. Ela sentiu Milo segurar a respiração, ouviu o zumbido dos pensamentos dele, viu quando ele apertou os olhos e ficou observando fixamente a tela. Desde que ele fora diagnosticado, ela aprendera a ver o mundo como ele: através do buraco de uma agulha. Agora que tanta coisa estava desaparecen-do de sua mente, engraçado como o que Milo via parecia mais próximo e mais nítido.

Ouvia as pancadinhas dos dedinhos no teclado. Então isso era suficiente, algumas pancadinhas no teclado para encontrarem um novo lar para ela.

Sentiu as batidas do coraçãozinho de Milo mais pesadas na-quela manhã. Ela devia tê-lo preparado, devia tê-lo ajudado a ver que estava na hora de ela ir embora.

Lou abriu os olhos, levantou-se e foi olhar pela janela do quar-to. Viu Sandy na entrada da casa, a calcinha entre os pneuzinhos levantando a camisola. Homens de botas e capacetes amarelos andavam de lá para cá sem tirar os olhos dos buraquinhos de ce-lulite marcados na calça azul de Sandy.

O senhor Overend, do outro lado da rua, puxou as cortinas do quarto. Aquele homem estava sempre dormindo ou espionando

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ou assobiando. Fazia cinco anos que Lou o escutava e ainda não tinha conseguido entender a melodia.

E o barulho dos tamancos de Sandy no chão da cozinha, o tac-tac-tac, como se ela estivesse sapateando. Sempre mostrando e gritando para Milo fazer as coisas que Andy deveria estar ali para fazer.

Lou inspirou profundamente. Era impressionante como tudo estava impregnado do cheiro de fumaça úmida, de compensado queimado, de plástico derretendo. Baixou os olhos e examinou as mãos: restos de cinzas marcavam sua linha da vida.

Ela esfregou as mãos e imaginou a provocação de Milo: “Você não seria uma boa criminosa, Vovó. Deixa muitas evidências”.

Sua esperança era de que, pelo menos dessa vez, Milo não percebesse o que ela havia feito.

Mas era a coisa certa a fazer, não era? Um ato definitivo, algo grande, para convencer Sandy de que ela precisava ir embora. E também era o certo a fazer em relação a Milo; ele já estava cui-dando dela há muito tempo.

Havia custado a encontrar os fósforos. E também não tinha sido fácil encontrar o ângulo certo para riscá-los. Com aqueles de-dos bobos, desajeitados. Mas então a chama saltou de suas mãos como um pássaro. Pegou a ponta solta do rolo de papel-toalha, um pássaro branco, que depois virou um pássaro negro com asas de papel, as penas cinza caindo ao seu redor.

E então a mão de Milo na sua, macia como massa de bolo, levando-a para fora da casa. “Tudo bem, Vovó, está tudo bem.”

Lou foi até o banheiro e parou em pé diante da pia. Abriu a torneira e ficou observando a água escorrer entres seus dedos, as cinzas descendo pelo ralo.

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Seus olhos ardiam. Uma lágrima caiu em sua mão.Querido, Milo querido.“Não chore, Vovó”, ela o ouviu dizer.Lou olhou para o reflexo no espelho e viu as chamas dan-

çando em volta da sua cabeça. Como é mesmo que tudo havia acontecido?

Um acidente. Sim, um acidente, foi o que ela disse aos bombeiros.

O fogão. Foi isso.“Esqueci que tínhamos uma chaleira elétrica”, ela escreveu,

ainda sem voz. “Idiota, fui muito idiota.” Então o botão apareceu na imagem da grande chama, uma lufada repentina, um pedaço de papel perto demais.

Sim, um acidente. “Vou dizer para a Mamãe que fui eu”, Milo falou, sabendo como

Sandy reagiria. Então colocou a pílula branca na palma de sua mão. Ele nunca esquecia, nem mesmo em uma manhã como aquela.

Horas esperando no frio.A sirene do carro dos bombeiros. O barulho surdo das botas

pesadas, um exército alagando a casa. E depois entrar de novo, trinta e dois degraus até o alto, passando pelo quarto de Milo, passando pelas luzinhas mágicas que ele havia colocado para ela, e subir, subir até o quarto sob o teto, tal qual uma Rapunzel.