13498 ondjaki trecho

21
ondjaki Os transparentes Romance

Upload: julia-garcia

Post on 17-Nov-2015

33 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Os transparentes

TRANSCRIPT

  • ondjaki

    Os transparentesRomance

    Transparentes 3A PROVA.indd 3Transparentes 3A PROVA.indd 3 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • Copyright 2013 by Ondjaki

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    CapaSabine Dowek

    Foto de capa

    RevisoThas Totino RichterAna Maria Barbosa

    [2013]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532 -002 So Paulo spTelefone: (11) 3707 -3500Fax: (11) 3707 -3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    OndjakiOs transparentes : Romance / Ondjaki. 1a ed. So Paulo :

    Com panhia das Letras, 2013.

    isbn 978 -85 -359 -2282-0

    1. Romance angolano (Portugus) i. Ttulo.

    13-04633 cdd -869.3

    ndice para catlogo sistemtico:1. Romance : Literatura angolana em portugus 869.3

    Transparentes 3A PROVA.indd 4Transparentes 3A PROVA.indd 4 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 9

    ainda me diz qual a cor desse fogoo Cego falou em direo mo do mido que lhe segu-

    rava o corpo pelo brao, os dois num medo de estarem quie-tos para no serem engolidos pelas enormes lnguas de fogo que saam do cho a perseguir o cu de Luanda

    se eu soubesse explicar a cor do fogo, mais -velho, eu era um poeta desses de falar poemas

    com voz hipnotizada o VendedorDeConchas acompa-nhava as tendncias da temperatura e guiava o Cego por entre caminhos mais ou menos seguros onde a gua jorran-te dos canos rebentados fazia corredor para quem se atrevia a circular por entre a selva de labaredas que o vento aoitava

    te peo, v voc que tens vistas abertas, eu estou sentir na pele, mas quero ainda imaginar na cor desse fogo

    o Cego parecia implorar numa voz habituada a dar mais ordens que carcias, o VendedorDeConchas sentiu que era

    Transparentes 3A PROVA.indd 9Transparentes 3A PROVA.indd 9 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 10

    falta de respeito no responder quela dvida to concreta que pedia, numa voz de carinho, uma simples informao cromtica,

    embora difcil e talvez impossvelo mido puxou de dentro de si umas lgrimas quentes

    que o levassem at a infncia porque era a, nesse reino des-prevenido de pensamentos, que uma resposta fl orida pode-ria nascer, viva e fi el ao que via

    no me deixe morrer sem saber a cor dessa luz quenteas labaredas gritavam com fora e mesmo quem fosse

    cego de ver devia sentir uma sensao amarela de invocar memrias, peixe grelhado com feijo de leo de palma, um sol quente de praia ao meio -dia, ou o dia em que o cido da bateria lhe roubou a animao de ver o mundo

    mais -velho, estou a esperar uma voz de criana para lhe dar uma resposta

    vista de perto ou de longe, a noite era uma trana em negrume e clausura, a pele de um bicho noturno pingando lama pelo corpo, havia estrelas em brilho tmido no cu, tor-por de certa maresia e as conchas na areia a estalar um calor excessivo, corpos de pessoas em cremao involuntria e a cidade, sonmbula, chorava sem que a lua a aconchegasse

    o Cego tremeu os lbios num sorriso triste no demora, candengue, a nossa vida est quase gre-

    lhadaas nuvens longe, o sol ausente, as mes gritando pelos

    fi lhos e os fi lhos cegos no viram a luz ftua dessa cidade a transpirar sob o manto encarniado, preparando -se para re-ceber na pele uma profunda noite escura como s o fogo pode ensinar

    Transparentes 3A PROVA.indd 10Transparentes 3A PROVA.indd 10 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 11

    as lnguas e as labaredas do inferno distendido numa ca-minhada visceral de animal cansado, redondo e resoluto, fu-gindo ao caador na vontade renovada de ir mais longe, de queimar mais, de causar mais ardor e, exausto, buscar a quei-ma de corpos em perda de ritmia humana, harmonia respi-rada, mos que acariciavam cabelos e crnios alegres numa cidade onde, durante sculos, o amor tinha descoberto, entre brumas de brutalidade

    um ou outro corao para habitar mais -velho, qual era mesmo a pergunta?a cidade ensanguentada, desde as suas razes ao alto dos

    prdios, era forada a inclinar -se para a morte e as fl echas anunciadoras do seu passamento no eram fl echas secas mas dardos fl amejantes que o seu corpo, em urros, acolhia em jeito de destino adivinhado

    e o velho repetiu a sua fala desesperada me diz s a cor desse fogo...

    Transparentes 3A PROVA.indd 11Transparentes 3A PROVA.indd 11 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 12

    Odonato escutou a voz do fogoviu -o crescer nas rvores e nas casas, lembrou -se das

    brincadeiras em criana, o fogo era feito com belos traados de plvora roubados na venda do padrasto, desenhos labi-rnticos em fi na quantidade, no cho, um fsforo depois in-cendiando a perigosa brincadeira at que, um dia, por curio-sidade e determinao, decidiu experimentar um pequeno carreiro na palma da mo esquerda. sem hesitar, acendeu a pele e a dor era essa a marca que agora acariciava en-quanto um fogo maior consumia a cidade numa gigantesca dana de amarelos a ecoar no cu

    o fogo urravaOdonato j no tinha fora para desenhar nos lbios um

    gesto mnimo de espanto ou o que fosse um vulgar sorriso, a temperatura chegava -lhe alma, os olhos ardiam por dentro

    chorar afi nal no tinha que ver com lgrimas, antes era o metamorfosear de movimentos internos, a alma tinha pare-des texturas porosas que vozes e memrias podiam alterar

    Xilisbaba... olhou as suas mos mas no as viu. onde ests, meu amor?

    no primeiro andar do prdio, Xilisbaba tinha o corpo en-charcado de gua para se proteger do fogo, respirava com di-fi culdade e tossia devagar como se no quisesse emitir rudos

    na mo apertava um pequeno pedao de sisal, imitando aquele que o marido tinha atado ao seu tornozelo esquerdo, o suor e os movimentos de Xilisbaba desfaziam a corda em fi apos empapados que depois lhe cobriam os ps, os demais olhavam para ela guiando -se pelos rudos e pela imagem ondulante dos seus cabelos

    Transparentes 3A PROVA.indd 12Transparentes 3A PROVA.indd 12 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 13

    l fora, gritavam vozes humanasas mos das mulheres atraram -se, gesto delicado, quase

    secreto, mais para dividir receios que temperaturasMariaComFora sentiu que devia invocar outras foras

    para aplacar as lgrimas da comadreno rosto de Xilisbaba as lgrimas escorriam em cau-

    dais regulares, MariaComFora buscou olhar o seu rosto, adivinhou -lhe os traos escarpas de sal , pressentiu -lhe a tristeza pelo ar libertada, quis tomar -lhe o pulso mas o bombear do corao de Xilisbaba, pensando no marido iso-lado no topo do prdio, era apenas um silencioso murmrio de veias

    Maria... quero ver o meu marido uma ltima vez... para lhe falar as coisas que uma pessoa cala a vida toda

    a mo de MariaComFora fez presso de conforto e Xi-lisbaba deixou -se escorregar encostando parede as suas roupas, os seus sapatos, os seus cabelos e a sua alma

    calma s, comadre, o fogo como o vento, grita mui-to mas tem voz pequenina.

    Transparentes 3A PROVA.indd 13Transparentes 3A PROVA.indd 13 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 14

    o Prdio tinha sete andares e respirava como uma enti-dade viva

    havia que saber os seus segredos, as caractersticas teis ou desagradveis das suas aragens, o funcionamento dos seus canos antigos, os degraus e as portas que no davam para lugar algum. vrios bandidos haviam experimentado na pele as consequncias desse maldito labirinto com passa-gens comunicantes de comportamentos autnomos, e mes-mo os seus moradores procuravam respeitar cada canto, cada parede e cada vo de escadas

    no primeiro andar, os canos rebentados e uma tremenda escurido desencorajavam os distrados e os intrusos

    a gua abundava, incessante, e servia a fi nalidades mlti-plas, dali saa a gua para o prdio todo, o negcio de venda por balde, lavagem de roupa e viaturas,

    AvKunjikise era das poucas a atravessar o alagado ter-ritrio sem molhar os ps nem nunca ter experimentado a tendncia de escorregar

    isto um rio dizia, sempre em umbundu s fal-tam peixes e jacars

    a velha chegou a Luanda dias depois da morte da verda-deira me de Xilisbaba e, no aguentando com a fome, ir-rompeu pela cerimnia fnebre confessando entre lgrimas a urgncia da sua necessidade, pediu desculpa pela sua atitu-de e, marcando o uso defi nitivo de um umbundu cerrado, olhou Xilisbaba no fundo dos olhos e falou

    posso rezar pela morte de quem morreu. a minha voz chega at o outro lado...

    Xilisbaba, que j sabia ler a vida pelo seu lado mais ver-dadeiro, acolheu a velha com um copo de vinho tinto, cedeu

    Transparentes 3A PROVA.indd 14Transparentes 3A PROVA.indd 14 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 15

    o seu lugar, pediu que trouxessem um prato de comida com o melhor calul do comba e teve o cuidado de prevenir que no servissem funji de mistura porque a senhora era como ela, precisava de fuba de milho para aguentar as loucuras e os ritmos de Luanda

    a tua me est a rir a velha falou a minha me agora s tu respondeu Xilisbabadurante o funeral, e depois das dvidas contradas para

    que a senhora tivesse os merecidos comes e bebes em sua honra, Odonato emagreceu para alm dos limites regulares da penria

    Xilisbaba notou que o marido se tornava mais silencioso, falava com os fi lhos, comentava assuntos banais com os vi-zinhos, procurava trabalho e ajustava as pilhas do rdio que no davam energia apesar dos banhos de sol

    mas todos os seus gestos, o caminhar pela manh, coar a cabea enquanto lia o jornal encontrado na rua, vestir -se ou espreguiar -se, todos esses gestos j no produziam rudo algum

    a mulher entendeu que, de certo modo, era o marido quem verdadeiramente estava de luto,

    no seu olhar estava distante, Xilisbaba viu -o ainda jovem e sonhador, atrevido com as mos e a boca, no tempo em que a surpreendia no primeiro andar alagado, ela a subir com a fruta, ele a esmagar a fruta no corpo da mulher que ria devido surpresa sabida de fi m de tarde

    Odonato movia apenas os dedos, os dedos da mo direi-ta acariciavam o anel na mo esquerda, Xilisbaba viu Odo-nato retirar o anel do dedo e guard -lo no bolso, o dimetro do dedo j no segurava o matrimonioso anel

    Transparentes 3A PROVA.indd 15Transparentes 3A PROVA.indd 15 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 16

    suspirou fundomolculas de oxignio inundaram o seu corao, depois

    as veias e a cabea, energias renovadas viajaram at s extre-midades do seu corpo mas o fenmeno j se havia desenca-deado

    o oculto como um poema chega a qualquer mo-mento.

    os seus ps estavam habituados a percorrer muitos qui-lmetros por dia, eram ps antigos num corpo jovem

    o VendedorDeConchas apreciava pisar a areia da Praia-DaIlha e o cho brilhante dos seus pesadelos noturnos, ti-nha casa na vizinha provncia do Bengo mas apaixonara -se desde cedo por Luanda, por causa do seu mar salgado

    chamava o mar de mar salgadoe olhava -o todos os dias com a mesma paixo, como se

    apenas ontem o tivesse conhecido com a pele e a lnguamergulhava devagar tocasse uma mulher , pro-

    vava o sal e revivia o espanto de sempre, mergulhava o tempo que os seus pulmes permitissem e o seu olhar aguentasse, conhecia as rochas e as canoas, os pescadores e as quitandeiras, tinha entranhado nas mos o odor quente do peixe -seco que ajudava a arrumar e, sobretudo, conhecia as conchas

    as conchascrescera no Bengo, de rio em rio, de cacusso em cacusso,

    Transparentes 3A PROVA.indd 16Transparentes 3A PROVA.indd 16 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 17

    mas um dia encontrou o mar salgado com as canoas, as varas de ximbicar e as conchas

    mais -velho, ainda me faa uma dessas varas de xim-bicar

    voc nem tem canoa, nem vai no mar ... eu quero uma vara para ximbicar na terra mesmo:

    vou ximbicar a vida!na PraiaDaIlha era tido como jovem esforado e ho-

    nestoajudava a carregar peixe, sempre com um sorriso de sim-

    patia e inocente seduo, vendia e fazia entregas, enviava sal e dinheiro para os familiares no Bengo

    os ps do VendedorDeConchas, ao longo dos anos, cris-talizaram -se como o fundo externo das canoas da Ilha, cacos e pregos apenas geravam uma ligeira comicho, mas apesar disso usava os chinelos de couro oferecidos pelo primo

    o fi o de missangas ao pescooo saco de conchas s costas, os olhos semicerrados que

    no mostravam segredosouvira falar de MariaComFora, dedicada a tantas ativi-

    dades fi nanceiras, e pensara que talvez pudesse interessar -se pelas suas conchas

    tinha -as de todas as cores e feitios, para uso prtico ou simples adorao, em tantos formatos e preos que era im-possvel cruzar com este jovem sem cair na tentao de guardar uma concha para uso imediato ou futuro: s mulhe-res falava devagar para dar espao imaginao e necessida-de de cada uma, aos fi scais de rua oferecia conchas de pen-durar no cabelo para ofertarem s suas amantes, aos homens fazia sugestes concretas para uso no escritrio ou nas via-

    Transparentes 3A PROVA.indd 17Transparentes 3A PROVA.indd 17 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 18

    turas, s mulheres dos embaixadores apresentava as conchas como objetos exticos que mais ningum se lembrava de ofe-recer no natal, aos fabricantes de candeeiros falava das vanta-gens das enormes conchas ocas e do efeito da luz sob aquele material martimo, aos padres exemplifi cava a diferena que aquilo faria num altar, s velhas recomendava como recorda-o, s jovens como penduricalhos originais, s crianas como brinquedos de fazer inveja a outras crianas, s freiras vendia conchas juntas em formato de crucifi xo, aos donos de restau-rantes vendia -as como pratos de aperitivos ou cinzeiros, s costureiras salientava o potencial criativo do material e os seus tintilantes rudos, s cabeleireiras fazia ver que as missangas j haviam passado de moda e, aos bandidos, o VendedorDeCon-chas desculpava -se rapidamente pelo facto de apenas trans-portar um saco cheio de coisas que no serviam para nada,

    foi num semforo vermelho que o VendedorDeConchas conheceu o Cego, fez deslizar o saco das costas para o cho e o Cego gostou do barulho das conchas

    voc ouve bem? no percebo voc ouve mesmo bem? escuto s normalmente. est a falar do barulho do

    saco? so conchas sei que so conchas. sou Cego mas conheo o barulho

    das coisas. no isso... ento o qu? que eu posso ouvir o barulho do sal dentro das conchaso VendedorDeConchas no soube o que dizer, o Cego

    no disse nadao sinal fi cou verde mas nenhum deles se moveu.

    Transparentes 3A PROVA.indd 18Transparentes 3A PROVA.indd 18 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 19

    Xilisbaba saiu do candongueiro com sacos de verdu-ras, acompanhada da fi lha Amarelinha, os lbios do Ven-dedorDeConchas fi caram srios, no compreendia o olhar de Amarelinha que transpirava e equilibrava outros sacos

    o que foi ento? perguntou o Cego no sei o VendedorDeConchas voltou a iar o sacoo barulho das conchas, ou do sal, chamou a ateno de

    Amarelinhao seu corpo passou junto dos dois, mas s o Cego soube

    pensar quantos cheiros levava aquele corpo: manga madura, lgrimas noturnas, ch preto e ch de raiz de mamoeiro ma-cho, dinheiro sujo, omo para a roupa, sisal antigo, jornal, poeira de carpetes, mufete

    me e fi lha caminhavam rapidamente em direo ao prdio, entraram desviando as poas perto da caixa vazia do elevador, Amarelinha arregaou um pouco o vestido e se-guiu a me que conhecia as escadas melhor do que ela

    cruzaram -se, no quarto andar, j muito ofegantes, com o vizinho Ed

    como , Ed, ests melhor? melhor j no fi co. pior tambm no tenho estado.

    vamos indo, dona Xilisbaba t bem queria ajudar, mas nem tenho foras ele abria as

    mos enormes em jeito de desculpa

    Transparentes 3A PROVA.indd 19Transparentes 3A PROVA.indd 19 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 20

    no te preocupes. j s faltam dois andares as guas l em baixo esto controladas? sim, tudo normalEd vivia permanentemente no quarto andar, e o trajeto

    mais longo que fazia era do interior do seu apartamento at ao corredor, para fumar e respirar o ar poludo de Luanda, caminhava com difi culdade e j fora visitado por especialis-tas internacionais interessadssimos no seu caso

    tinha uma gigantesca hrnia junto ao testculo esquerdo, aquilo que usa chamar -se mbumbi, que alterava de tamanho conforme as tendncias climatricas mas obedecendo tam-bm a fatores psicossomticos, motivo pelo qual era visitado por variada gama de estudiosos, desde as reas exatas s so-ciais, passando tambm pelos metafsicos, os curandeiros e at alguns curiosos. segundo se dizia, no aceitara os convi-tes de angolanos, suecos ou cubanos para fazer a operao porque ningum lhe oferecera ainda uma quantia que pu-desse cobrir -lhe o medo

    alm do mais, j estou habituado assim: cada um como cada qual...

    Amarelinha olhava para o cho, esperando que a me retomasse o flego para continuar

    a sua fi lha est cada vez mais bonita comentou Ed um dia destes vai nos apresentar o namorado dela

    Amarelinha fi cou atrapalhada, sorriu por gentileza, su-biram o resto das escadas em silncio

    no quinto andar vivia o CamaradaMudo, prestvel e si-lencioso, excelente cozinheiro de grelhados devido ao seu modo secreto de preparar o carvo, sobretudo no caso de haver pouco carvo

    Transparentes 3A PROVA.indd 20Transparentes 3A PROVA.indd 20 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 21

    do seu apartamento saa a msica muxima cantada por WaldemarBastos e Xilisbaba voltou a lembrar -se do marido

    o CamaradaMudo estava sentado porta a descascar ba-tatas e cebolas, dois sacos enormes, e Amarelinha espantou--se, uma vez mais, com a pacincia daquele homem para executar a tarefa

    todos sabiam que em matria de descascar o Camarada-Mudo era incansvel e perfecionista

    bom dia murmurou bom dia respondeu Xilisbabaos vizinhos recorriam sua afi ada navalha militar por

    hbito, as quitandeiras do rs do cho, que vendiam pinchos e sandes de po com chourio para os apressados tambm apelavam aos seus servios domsticos para preparar a bata-ta frita em leo cansado

    chegaram ao sexto andarAmarelinha largou os sacos porta de casa e bateu duas

    vezes, devagarAvKunjikise veio abrirum antigo regador metlico esperava Amarelinha no

    corredor e a fi leira de vasos coloridos foi cuidadosamente regada. Amarelinha tinha os mesmos gestos precisos e deli-cados como se fosse neta de sangue da AvKunjikise, e estas mesmas mos, tarde, ocupavam -se de fi os e missangas para inventar colares, anis e pulseiras medida das meninas que inventavam motivos para os comprar

    vamos fazer um bom negcio, minha queriducha dizia -lhe MariaComFora, a moradora do segundo andar tu entras com a mo das obras, eu fao a venda direta aos clientes

    Transparentes 3A PROVA.indd 21Transparentes 3A PROVA.indd 21 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 22

    sob o olhar atento do marido, Xilisbaba arrumava as coi-sas nos armrios da cozinha, Odonato observava as pessoas atentando aos modos das suas mos, gostava de ver a AvKunjikise cozinhar devagar, fi ngia ler o jornal mas ad-mirava a rapidez e a preciso dos gestos missangueiros da fi lha, ele mesmo havia sido habilidoso com a madeira mas as ocupaes dos tempos de funcionrio pblico haviam des-feito parte dessa sua sensibilidade

    carimbar documentos... foi isso que matou os meus gestos redondos

    Odonato observava as mos e os alimentos: tudo ofere-cido ou encontrado nos restos do supermercado onde algum conhecido trabalhava

    agora comemos s aquilo que os outros j no que-rem comentou

    pecado deitar fora comida ainda boa pecado no haver comida para todos concluiu

    Odonato, saindo da cozinha e dirigindo -se varandaolhou a cidade, a azfama catica de carros, gente que

    circulava apressada, vendedores, motas chinesas, grandes ji-pes, um carteiro, o carro que passou com a sirene ligada e um Cego de mos dadas a um jovem com um saco s costas

    preocupado? Xilisbaba aproximou -se o Ciente no d notcias, ningum sabe deleCienteDoGr, fi lho mais velho de Odonato, passou a

    adolescncia errando de bar em bar, foi scio de uma afama-da discoteca mas terminou como porteiro sempre atrasado, roubou agulhas numa farmcia chegando a costumeiro con-sumidor de herona e, na sua tardia juventude, inserido num

    Transparentes 3A PROVA.indd 22Transparentes 3A PROVA.indd 22 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 23

    grupo rasthfri de Luanda, conseguiu fi car -se pela diamba e pelos pequenos furtos

    desorientado por vocao, acordava cedo para ter mais tempo de no fazer nada, e alimentava a obsesso de vir a ter um jipe americano GrandCherokee, os amigos batizaram--no Ciente do GrandCherokee e rapidamente foi abrevia-do para CienteDoGr

    podemos fazer alguma coisa? apenas esperar que ele no faa mais nada.o Carteiro suava e usava um leno completamente mo-

    lhado para enxugar o suor, h meses que requisitara ao seu chefe, um mulato gordo de Benguela, uma moto para o seu rduo trabalho de distribuio

    uma moto? no me faas rir. se te dermos uma troti-neta j vais com sorte. se no queres o emprego, tem quem queira. uma moto... olha que esta!

    pensou o Carteiro que, por escrito, poderia ter mais sorte

    escreveu setenta cartas mo, em papel azul de vinte e cinco linhas, todas devidamente seladas e distribuiu -as pela clientela fi na do Alvalade, Maianga e Makulusu, no esque-cendo deputados, infl uentes empresrios e o prprio Minis-troDosTransportes

    explicou a relao dos fatores, a quilometragem que a sua ocupao implicava, as descontinuidades geogrfi cas e, invocando um improvisado mandamento internacional dos carteiros, requisitou, ao menos, uma bicicleta de dezoito mudanas com manuteno garantida pelos servios com-petentes mas

    nunca obteve uma resposta

    Transparentes 3A PROVA.indd 23Transparentes 3A PROVA.indd 23 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 24

    o teu servio distribuir cartas, no escrev -las riu -se o chefe

    o Carteiro decidiu fazer uma pausa, abriu o saco de cou-ro e escolheu uma carta ao acaso, abriu -a cuidadosamente e certifi cou -se de que trazia consigo um pouco da cola branca de farinha que usava para fechar as cartas que lia

    tinha uma letra bonita mas incerta e, nas margens, exis-tiam desenhos de pssaros e nuvens, outros sinais lembra-vam coordenadas geogrfi cas iguais s que havia estudado, no tempo dos portugueses, na sua cidade natal

    no vai um pincho quente, camarada Carteiro? perguntou MariaComFora enquanto fazia danar as brasas

    vai, se for assim de kilape, tou fraco de kwanzas kilape s fao com um adiantamento de cumb

    ela riu quer dizer, voc malandra! isso um contrakilape.

    isso pode -se fazer? aqui em Luanda h alguma coisa que no se pode

    fazer?o Carteiro engoliu a saliva da sede e a da fome juntas,

    MariaComFora sentiu pena, mas pena no dava dinheiro e a cidade estava demasiado cara para caridades

    a ler as cartas dos outros, camarada Carteiro? s uma distrao de distrair. eu fao como as crian-

    as: esqueo tudo logo a seguirMariaComFora mexeu nas brasas com os dedos, so-

    prou o carvo de modo certeiro e, entre os fi os da fumaa, olhou o Carteiro

    quem me dera ainda saber esquecer...o Carteiro fez uma careta, procurando expelir um pouco

    Transparentes 3A PROVA.indd 24Transparentes 3A PROVA.indd 24 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 25

    do calor, pediu um copo de gua, releu pedaos da carta e confi rmou que havia sido entregue nos correios da cidade do Sumbe

    boas notcias? nem sei dizer. quem mora aqui no quinto andar? o CamaradaMudo ele vai me dar boa gorjeta se eu subir? isso j no sei...o Carteiro parou no primeiro andar para habituar os

    olhos escuridoa gua acontecia por corredores invisveis, molhava os

    seus ps sobre sandlias gastasprimeiro sentiu uma tontura, uma tontura ao contrrio,

    no era a cabea que rodopiava, eram os ps que pareciam querer ensaiar minsculos passos de dana

    talvez seja fome, pensoua fome que traz aos humanos as mais bizarras sensaes

    e as mais improvveis aes, a fome que inventa capacidades motoras e iluses psicolgicas, a fome que desbrava cami-nhos ou promove desgraas, mas no,

    ele soube que era o local, porque havia ali um cheiro que no se deixava sentir e um vento que no queria circular, a gua, que se pressentia sem se deixar ver, obedecia a um fl u-xo que no era natural, talvez uma fora circular

    as coisas que uma pessoa pensa a meio do dia... ou da fome...

    os olhos habituaram -se escurido e pareceu -lhe estar isolado do mundo externo

    escutava os sons da rua como que fi ltrados, apenas trans-portando o essencial de cada conversa ou pensamentos

    Transparentes 3A PROVA.indd 25Transparentes 3A PROVA.indd 25 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 26

    ainda algum me vai acusar mas de estar a fumar diamba na hora do expediente

    a luz no tinha explicao de cor, inventava tons amare-los no branco sujo da parede, servia -se da gua para se rein-ventar em novos cinzas que no sabiam ser escuros; a gua devolvia aos olhos do Carteiro pequenssimos feixes azuis, avermelhados, cascatas concentradas

    o seu pensamento fi cou mais arejado, a fome abrandou se for assim, melhor fi car aqui um poucoquando se ia encostar porta do que antigamente fora

    um elevador, sentiu que um calor interno lhe nascia nos tes-tculos, h muito que no sentia a sensao assim to ntida, olhou para a entrada, depois para as escadas, ningum por perto

    passou a mo ao de leve pela cala, sentiu o seu pnis em quase desrepouso nas cuecas rotas, fechou os olhos, absor-veu uma vez mais aquela absurda frescura

    os seus testculos acordaramsentiu -se embaraado, cobriu a parte frontal do seu cor-

    po, respirou profundamente; pensamentos hmidos invadiam--lhe a mente, transpirava por dentro como se lhe chegasse um medo infantil, divertido

    s depois subiuestranhando o silncio,no via gente nos patamares, e surpreendia -o a ausncia

    de crianasouviu, quando chegou ao terceiro andar, uma voz que

    cantava uma melodia seca, certamente proveniente de um antigo gira -discos de quarenta e cinco rotaes

    era jazz

    Transparentes 3A PROVA.indd 26Transparentes 3A PROVA.indd 26 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM

  • 27

    ajeitou o pesado saco, mudando -o de ombro, e sentiu um agradvel alvio

    o lugar onde o saco havia feito presso dava lugar aos con-tornos normais da sua pele, fez movimentos circulares com os dedos, gostava de sentir que a pele voltava ao seu stio, acari-ciou tambm o outro ombro, o que agora se deformava

    a larga tira da sacola era feita de um material que s imitava uma corda robusta mas nunca lhe havia deixado mal durante todos estes anos, s os seus ombros sabiam dos se-gredos daquela textura, uma espcie de cicatriz provisria, resolvida com a alternncia de ombro e as carcias circulares

    ao menos uma bicicleta, j no digo uma motorizadaaproximou -se devagar, ajeitando o carto antiquado e

    poeirento que o identifi cava como trabalhador do Servio-NacionalDosCorreios, pegou novamente na carta e, com uma mirada certeira, confi rmou que tinha voltado a fech--la, fi ngiu reler um endereo

    quinto andar, prdio da Maianga, ao portador. ps: prdio com um buraco enorme no rs do cho. no haja dvidas

    o CamaradaMudo descascava batatas sem sorrir, afagava ocasionalmente o bigode farto, deixava os chinelos por perto mas era comum deslocar -se descalo, mesmo na presena dos vizinhos

    o Carteiro tossiualgures em Luanda, longe dali, um jac assobiou a mes-

    ma melodia que o gira -discos emitia, o Carteiro olhou para o CamaradaMudo com a faca afi ada na mo esquerda. a batata pingava uma gua j barrenta

    desculpe no chegar aos chinelos falou, fi nalmen-te, o CamaradaMudo

    Transparentes 3A PROVA.indd 27Transparentes 3A PROVA.indd 27 6/7/13 1:56 PM6/7/13 1:56 PM