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Luís Coelho

Fisioterapeuta mézièristaProfessor de Pilates

Investigador na área das raquialgias

O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo

Introdução ao conceito de Reeducação Postural

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Título: “O ANTI-FITNESS OU O MANIFESTO ANTI-DESPORTIVO. INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE REEDUCAÇÃO POSTURAL”Autor: Luís CoelhoPaginação: Maria João RicoImpressão: Fotolitaria, Lda.ISBN: 978-989-8086-25-9 Depósito legal nº: 1ª Edição: Novembro de 2008

©Contra Margem LdaRua Cidade de Setúbal 1569 - BPinhal General 2975-220 Quinta do CondeTelf/Fax: 21 087 63 95Telm: 91 966 69 18

[email protected]

“Vejo no relativismo uma doença dos pensadores, a qual consiste em acreditar que a opção entre duas doutrinas rivais é arbitrária,

porque a verdade não existe, ou porque não há nenhum meio de decidir, se entre duas teorias, uma é superior à outra.”

(Karl Popper)

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Índice

AgrAdecimentos....................................................................................................9

Prólogo..............................................................................................................11

introdução.........................................................................................................13

i -.DaDos.histológicos.e.funcionais.preliminares:.teciDos.conjuntivo.e.muscular....23

ii -.Diferentes.tipos.De.músculos...........................................................................35

iii -.posturas.De.“postura”...................................................................................44

iV -.intervenção.postural....................................................................................53

V -.o.métoDo.mézières.ou.a.revolução.na.ginástica.ortopéDica............................61

Vi -.o.métoDos.neo-mézièristas.............................................................................71

Vii -.implicações.Da.reeDucação.postural.para.a.prática.Desportiva........................90

Viii -.fitness.enquanto.“inDústria.cultural”.................................................. 115

conclusão................................................................................................... 123

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AgrAdecimentos

Todos os autores que lemos e relemos, de forma mais ou menos incessante, influenciam a nossa escrita. Daí que começaria por agradecer a feição desta obra a todos os autores e todos os indivíduos que de alguma maneira influenciaram a minha forma de pensar.

Neste contexto, um agradecimento é também devido a todas as pessoas que conheci no seio do mundo do fitness, e, em especial, às pessoas que me ensinaram ao longo de muitos anos, particularmente os mestres da Escola Superior de Saúde do Alcoitão.

Não poderia deixar de agradecer também ao pessoal com que trabalho no dia a dia, no Consultório e Clínica de Reabilitação, Lda. - Lisboa, que constituem, para além dos colegas terapeutas e médicos responsáveis, os próprios doentes/alunos das minhas aulas de reeducação postural. Foi com todos eles que se assumiu o meu caminho metodológico.

Agradeço, em geral, a todas as pessoas que são capazes de ler os meus escritos (incluindo os leitores do meu blog), e evitar atirar logo pedras, sem se questionarem, sem reflectirem. Isto inclui especialmente diversos membros de grupos minoritários. E não deixará sempre de ser nestes grupos que reside a Verdade...

Não poderia deixar de agradecer também ao Dr. José Luís Bernardino Rocha por toda a paciência necessária no decorrer dos últimos anos.

E, particularmente, à Dra. Helena Mineiro, agradeço a forma como abraçou o projecto deste trabalho, e o entusiasmo que manteve do início ao fim da feitura da obra.

Deixo quase para o fim um agradecimento fundamental aos meus pais, os quais, mesmo não compreendendo completamente a importância deste trabalho, e tropeçando no medo de que eu seja objecto de alguma forma de estigmatização,

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não deixam de me apoiar, sendo a força motriz mais importante da minha vida nos tempos mais problemáticos.

Aos meus amigos, velhos, novos e futuros, agradeço toda a companhia, e a ajuda no saborear dos prazeres da vida.

E, por fim, o agradecimento mais importante. À Vanessa Almeida, a quem dedico particularmente esta obra. A minha antiga companheira íntima e a minha eterna amiga Vanessa, um dos seres simultaneamente mais niilistas e mais sentimentais que conheço, é e será sempre a minha “alma gémea”, alguém que, apesar de tantas aventuras e desventuras, quero que herde todo o “objecto” da minha vida. Que os teus olhos continuem a brilhar (no amor) tanto agora como sempre brilharam!...

Luís Coelho

Contacto: [email protected]: http://www.reeducacaopostural.blogspot.comSite: http://www.reeducacaopostural.com

Prólogo

O termo anti-fitness surpreende pela suposta contradição que evoca nas nossas mentes. Nos tempos modernos, tem sido vendida a ideia de que o exercício físico é sinónimo absoluto de “saúde”. Aliás, fitness significa, num sentido mais ou menos etimológico, um “completo estado de bem-estar físico”, nas suas diversas componentes.

Nesta obra, teremos sempre em conta uma designação de fitness enquanto um conjunto de práticas físicas cada vez mais em voga, supostamente com um componente importante de auxílio da saúde. Veremos porque é que defendo que o fitness está muito longe de constituir um serviço à saúde humana. Para tal, apresento uma série de argumentos, todos eles com base em factos ou dados científicos basilares, assim como apresentarei, de forma séria, a minha visão teorética da coisa.

É, portanto, necessário dizer que esta obra é sobretudo um “manifesto”, uma tentativa de construção de um conceito, de transmissão de um entendimento. Este não é um livro de instruções. Não é um guia de treino, apesar de fornecer algumas bases do que será uma “revolução na metodologia do treino”. Este livro é uma obra de carácter teorético. Os seus objectivos são a passagem imperiosa de uma mensagem e da iniciação a uma pragmática, não de uma pragmática propriamente dita.

E é uma obra para ser lida com a mente aberta. E com toda a certeza de que a Verdade deve ser encontrada, não nas pressuposições de investigadores imperfeitos, e muito menos nas crenças das “maiorias” ensinadas por esses mesmos investigadores. A Verdade carece de uma epistemis adequada. E disso tentarei não me esquecer no decurso da escrita deste manifesto.

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introdução

O título da presente obra remete para o campo da inadequada compreensão do tipo “utilitarista”, o que é o mesmo que dizer que a grande maioria das pessoas não concordará sequer com o conceito que me proponho defender, nos seus mais básicos circunlóquios. Falar de desporto tem sido, nas últimas décadas, falar de uma espécie de milagre ou descoberta médica ultra-inovadora, um aglomerado de artifícios corpóreos tendentes à criação de um super-homem, de tudo capaz, com tangentes possibilidades físicas e/ou mentais. Aliás, a temática desportiva, seja pelas suas cambiantes psicossociais, seja pela crescente mediatização das competições que lhe estão associadas, tem dado lugar a um discurso assaz público, capaz de toldar os mais aprimorados espíritos da intelligentsia nacional e internacional.

Não pretendo, de forma alguma, com o meu discurso, barganhar a ideia de que o desporto é inteiramente mau ou que possui só consequências deletérias para o organismo biomecânico. O que pretendo realmente fazer é mostrar, de uma forma umas vezes científica, outras vezes inteiramente apodíctica (portanto, com base em axiomas), que, em termos músculo-esqueléticos, e somente nestes termos (que o mesmo será falar de um contexto determinado), o desporto actual e modernamente praticado possui mais inconvenientes que vantagens.

Pretendo, anunciar, que o desporto, e a actividade gímnica em geral, tal como nos é apresentado, constitui mais forma que conteúdo, mais aspecto que verdadeira inteireza, tendo, em si, todas as armas disponíveis para alimentar a patologia do “corpus” frágil que todos possuímos. Se especificarmos a “questão patológica” veremos, com algum nível de análise, que me refiro não tanto a um “curto prazo nosológico” mas mais a um “longo prazo estrutural”. Ou seja, quando falo das consequências nefastas que a actividade desportiva poderá ter para o corpo músculo-esquelético, falo essencialmente numa óptica relativa ao “longo prazo”, uma óptica

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ou dimensão de um “porvir” que não pode ser mais do que meramente previsto em termos especulativos.

Tentemos especificar melhor a última ideia. Sabemos que a ciência médica interessa-se fundamentalmente pela patologia “presente”. O seu modelo, que tem sido tantas vezes apelidado de “biomédico” ou “biomecânico”, consigna a “cura” de uma anomalia estrutural e/ou funcional. Raramente as “ciências da saúde” se têm interessado pela “prevenção” (seja primária, secundária ou terciária). E raramente essas mesmas ciências se têm interessado pelos aspectos, mais sublimes, da estrutura corporal enquanto aspectos definidores da saúde do “porvir” de determinado indivíduo. É certo que cada corpo é uma idiossincrasia, única e singular no seu todo. Mas também é certo que a ciência médica se tem interessado sobretudo pelos aspectos grupais (ditos nomotéticos) dessa mesma idiossincrasia. A ciência médica, muito pela forma como a mesma está teorética e institucionalmente cimentada, prima por um pensamento preferencialmente do “curto prazo”, por um esquema conceptual fundamentalmente funcional. Não se interessa muito pelo “andamento” de uma condição, pelo futuro de uma patologia, pelas consequências de um determinado comportamento e, sobretudo, pelo devir de determinada morfologia (relativa à forma ou estrutura corporal).

No parágrafo anterior deixei latente uma dicotomia. Trata-se do binómio, especialmente relevante, estrutura vs. função. Aproveitando a ideia do parágrafo, diria que a ciência médica se tem interessado especialmente pela “função” corpórea, e pouco pela estrutura. Mas, temos de deixar bem claro que tal é totalmente coerente, se tivermos em conta que, geralmente, a ciência que é praticada visa o “curto prazo funcional”, ou seja, visa a medição de uma série de variáveis, controladas preferencialmente numa população randomizada (ou aleatorizada), no contexto de estudos de mensuração de uma ou mais funções corporais. Daí que a “ciência” se interesse sobretudo pela função, pois tudo o que interesse ao design corpóreo remete para um campo de “longo prazo” que poucos têm a paciência ou a disponibilidade para escrutinar. Portanto, voltando ao binómio presente (estrutura vs. função), diria que somente a parte função é sabidamente conhecida, assim como apenas essa parte tende a ser aludida no respeitante ao “campo de actuação” da prática física. Contudo, o outro lado do binómio, o lado da estrutura, tem sido amplamente esquecido, senão

estultamente negligenciado. Geralmente, a discussão presente finaliza-se no ponto em que se entende, em que se assume que “a função faz o órgão” e que, como tal, tudo depende da função. Mas, o que havemos todos de fazer se ninguém reparar que, em toda esta história, provavelmente “o Rei vai nu”, e estamos todos a incorrer num erro crasso?... Ou, o mesmo será dizer, que havemos de fazer se, porventura, a função depende, de forma inextricável, da estrutura que a acomete?... Será que compreendemos suficientemente bem as implicações dessa possibilidade? Será que conseguimos mesmo atender à possibilidade de que tudo o que fazemos “agora” terá repercussão cumulativa no design músculo-esquelético do corpo, interferindo na função futura?... Diria que o contexto dos métodos fisioterapêuticos de Reeducação Postural, que iremos atender mais tarde, implica a compreensão de que é a estrutura que vence a “pressão dual” do binómio vigente.

Ainda no contexto da dicotomia estrutura vs. função, talvez não seja demais repetir que é a parte “função” do binómio que tem sido amplamente objecto de investigações, estudos maioritariamente de natureza experimental (ou quasi-experimental). No contexto desses estudos, é inegável que a prática física possui uma série de efeitos numa ou várias funções corpóreas. Portanto, quando falamos de funções como a força, potência muscular, resistência muscular, mobilidade articular, resistência aeróbia, e tantas outras, remetemo-nos para um conjunto de indicadores/variáveis funcionais relativamente fáceis de medir e de obter. No respeitante aos estudos relativos a esses mesmos indicadores, não é difícil adivinhar que o treino de força conduz ao aumento da força (medida, por exemplo, com um dinamómetro) e do volume (medido meramente por uma fita métrica) musculares ou que o treino de resistência aeróbia leve à diminuição da frequência cardíaca e da tensão arterial (em repouso), no médio prazo. E também não é difícil pressupor que estas mesmas funções corpóreas, treinadas até determinado ponto, levam à melhoria da saúde e qualidade de vida do indivíduo. Não obsto a essa evidência. Há, provavelmente, milhares de estudos relacionados com as funções referidas. E não há quaisquer dúvidas que a prática desportiva possui inúmeras vantagens para a saúde cardio-respiratória, óssea e até psicomotora.

A dúvida, nomeadamente aquela que proponho neste “manifesto”, prende-se com a saúde músculo-esquelética, num sentido geral, e com a saúde postural, num

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sentido restrito. Pois, é precisamente aí que a investigação existente ecoa no vazio e, partindo de uma série de pressupostos e de axiomas criados pelos paradigmas fisioterapêuticas de “Reeducação Postural”, acredito que há um enorme fosso teórico (e também pragmático) que pode e deve ser analisado.

O mesmo será dizer que, se atendermos à postura como design músculo-esquelético, poderei desde já dizer que esse mesmo design, na realidade de natureza mio-fascial, constitui um assunto de grande âmbito e complexidade, com fortes repercussões na questão “saúde” que nos pretendemos tratar. Ou seja, o paradigma dito postural possui uma repercussão inalienável naquilo que podemos designar como “saúde músculo-esquelética a longo prazo”. E, como veremos, não é despiciendo dizer que existe uma enorme ignorância, entre leigos e profissionais, relativamente àquilo que consigna à temática da Postura e da Intervenção Postural.

Esta obra começará por tratar a parte que considero mais proeminente em termos teoréticos: a natureza das estruturas musculares e fasciais, aquelas que, supostamente estão envolvidas no “desenhar” da nossa estrutura músculo-esquelética. Isto não antes de esclarecermos o postulado mais importante desta obra, que é também o postulado mais importante dos métodos de “Reeducação Postural” que iremos tratar no “manifesto”, nomeadamente que “o estado das estruturas miofasciais determina a forma e alinhamento das articulações”. Iremos, portanto, começar o nosso trabalho pela análise sucinta da natureza histológica (relativa aos tecidos humanos) de músculos e tecido conjuntivo, acabando num capítulo de análise do conceito ou postulado central do “trabalho postural” que advogo.

Só depois pretendo traçar um percurso que passa pela análise do conceito de “postura” e pela história geral dos métodos ditos de “Reeducação Postural”. Posso dizer desde já que, face à tão grande prolixidade de métodos de “intervenção postural”, aqueles que apresentam a grande inovação conceptual para o nosso trabalho correspondem aos métodos da Escola francesa, ou seja, todos os que partem do grande método, praticamente desconhecido em Portugal e no mundo anglo-saxónico, de Françoise Mézières, o método Mézières. Todos os outros métodos podem ser considerados como secundários àquele que levou a ideia de Globalidade ao seu máximo, e também àquele que criou o conceito de “cadeia muscular”.

Todas estas bases são fundamentais no sentido em que caminhamos na direcção de um propósito. Compreendendo aquela que pode ser entendida como a “Teoria

das Cadeias Musculares”, facilmente podemos começar a visar um conjunto imenso de implicações para o mundo da fisioterapia classicamente preconizada e da actividade física modernamente praticada. Aliás, para mim, as ditas implicações são tão óbvias que, todos os dias, me impressiono por ver tantos e tantos profissionais de Fisioterapia e de Educação Física a cometerem sucessivamente os mesmos erros e a caírem tão profundamente na ignorância cabal relativamente à temática da Globalidade e da Postura enquanto design corpóreo.

Não entendo as ditas implicações de uma forma muito mais completa do que aquele que foi o entendimento de Thérèse Bertherat sobre a mesma temática. O mesmo será dizer que o meu entendimento da prática desportiva não acrescenta, aparentemente, muito às ideias de Bertherat e à sua antiginástica. Todavia, o meu entendimento estende-se a um conjunto mais vasto de ideias e actividades, tomando as modalidades do tipo fitness como uma espécie de “alvo a abater”. Daí o conceito, por mim criado, de Anti-fitness. Veremos que, para mim, o conceito presente não se resume ao conjunto citado de implicações músculo-esqueléticas advindas do paradigma da “Reeducação Postural”. O anti-fitness é mais do isso; é uma reflexão sobre as práticas, progressivamente superficiais, que visam o treino compulsivo de um “corpo frágil” e a esteticização patológica desse mesmo corpo. É um conceito global, decorrente em muito da ideia de “alienação” sustida por tantos filósofos... alienação relativamente ao fitness enquanto prática destruidora da harmonia corporal e do equilíbrio psicofísico com esta relacionado. O anti-fitness constitui, portanto, uma “entidade ontológica” independente e relevante.

Da ontologia (relativa ao que há) passemos para o campo epistémico (relativo à teoria do conhecimento), com o qual pretendo finalizar esta introdução. É preciso atender que muitas das afirmações que profiro se baseiam em premissas e teorias, fortemente ligadas aos métodos de “Reeducação Postural”, um tanto ou quanto especulativos. Ora, se a temática “estrutural” se relaciona com o campo do “longo prazo longitudinal”, é logicamente difícil suster os métodos em análise por estudos verdadeiramente científicos. Ou seja, especificamente falando, o trabalho com o método Mézières ainda carece de um linha de estudos experimentais que atestem a “evidência” da “técnica”. O que não é de estranhar, pois, à semelhança da psicanálise e de tantos outros métodos de carácter fortemente conceptual, as metodologias de

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terapêutica global dizem respeito a aspectos muito abrangentes da Pessoa, sendo, portanto, difícil isolar variáveis e medir resultados. Não tenho dúvidas de que os mesmos existem e estão bem presentes nas mentes de terapeutas bem experimentados. Na realidade, para mim, toda a conversa da “falta de evidência” encerra, no seu âmago, a dificuldade em compreender um conjunto de pressuposições axiomáticas que têm sido tão importantes na edificação de grandes teorias do conhecimento. Que Karl Popper me perdoe se, por vezes, incorrer na falta de falsificabilidade científica. Ainda mais, porque tanto admiro este homem que soube dizer que Verdade há só uma e o que varia é a proximidade a essa Verdade.

Esta última premissa é especialmente relevante, pois, quando eu disser que acredito que, por exemplo, a musculação alimenta os “desequilíbrios musculares”, a par de tão grande evidência observacional cimentada, muitos outros dirão que essa é a minha verdade, e que, paralelamente à minha há muitas outras verdades. Por mim, dispenso tal pós-modernismo. A Verdade depende, obviamente, do homem que a “constrói”, mas há, indubitavelmente quem tenha a lógica e a Verdade mais perto de si.

Será que eu me considero “essa” pessoa? Será que vejo em mim algum tipo de destino messiânico? Como é óbvio, seria prejudicar-me demasiadamente se admitisse tal coisa. Perante a perplexidade da existência de tantos e tantos paradigmas (na lógica de Kuhn) e de tantas epistemis (na lógica de Foucault), somente convido os leitores a terem sempre presente a “dúvida” e a reverem copiosamente as suas ideias, tentando evitar as barreiras naturais que tendem a interpor-se. Na realidade, algumas das ideias que defendo vão contra o que a “maioria” advoga. E vão certamente contra um certo tipo de tradição. E, para além disso, muitas dessas mesmas ideias são contra-intuitivas, aumentando a vontade natural para não as aceitar. Convido qualquer um a pensar na quantidade de ideias contra-intuitivas que, inicialmente pura especulação, se tornaram um facto à luz da ciência mais rigorosa.

Gostaria de terminar esta introdução com uma contextualização, de natureza biográfica, considerada importante, para compreendermos a necessidade da escrita desta obra.

Devo dizer que é um tanto ou quanto irónico que escreva esta obra, nesta fase da minha vida, ainda mais porque fui uma criança particularmente sedentária,

daquelas que fazem das aulas de “educação física” o grande tormento semanário. A ironia reside no facto de que, após ter tido uma infância particularmente “inactiva”, tornei-me, na minha adolescência já tardia, um fervoroso praticante de desporto, em particular de musculação. Foi a prática da musculação que me ajudou a conceber uma ideia do corpo como constitutivo de um conjunto avultado de músculos, unidades da potência práxica, estruturas que aproximam articulações e que nos permitem a concretização de uma série de actividades. A musculação ajudou-me, naquela altura, a ver o corpo como um todo, cujos conjuntos musculares trabalham muitas vezes de forma sinérgica e associativa. Ajudou-me, em particular, a ter uma ideia de que grupos musculares compõem o corpo e a que tipo de “acções” esses grupos se destinam. Este tipo de conhecimento iria, de forma mais ou menos directa, mais ou menos indirecta, influenciar a minha entrada no curso de Fisioterapia, altura em que seria particularmente útil o meu conhecimento “rudimentar” da anatomia muscular. Diria que, para indivíduos completamente incultos em matéria de “desporto”, a prática de uma qualquer actividade física poderá ser vantajosa no sentido de poder dar um certo nível de consciência corporal. Por outro lado, essa mesma prática poderá tornar-se, num segundo tempo, cem por cento nefasta, ainda mais se estiver associada a uma entrega mais ou menos obsidiante.

Acontece que não precisei de muito tempo para perceber que a “força muscular” constitui apenas uma entre diversas funções corpóreas, e que o seu treino em elevado grau poderia fazer com que o corpo perdesse determinados atributos, principalmente flexibilidade. Durante o curso de Fisioterapia, constituí várias vezes “modelo” para os professores e colegas, exemplo perfeito do que uma prática rígida do desporto poderia levar em termos de “equilíbrio muscular”. O meu corpo estava absolutamente ingovernável, repleto de “desequilíbrios musculares”, chegando a haver estruturas musculares que realizavam tarefas de forma totalmente patológica e disfuncional. Rapidamente, ficou bem explícito que vários anos de musculação, apesar de terem dado ao meu corpo uma certa “estética musculosa”, tinham enchido a minha “capa” de diversos defeitos que só dificilmente se poderiam corrigir. Precisei de vários anos de curso para ter uma ideia mais ou menos “diferencial” da concepção de corpo músculo-esquelético. Mas, mesmo assim, mesmo com vários anos de curso e uns poucos anos de prática profissional, a minha ideia de “corpo” não diferia

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cabalmente da ideia de “corpo” que é partilhada pela maioria dos fisioterapeutas e profissionais de educação física.

Os profissionais da Motricidade partilham uma ideia de corpo enquanto estrutura constituída por um conjunto de diversos grupos musculares, mais ou menos “comunicáveis” entre si. Tanto o trabalho de “contracção”, quanto o trabalho de “distensão”, são vistos enquanto funções relativas a grupos musculares distinguíveis uns dos outros: flexores (aproximam duas superfícies ósseas) e extensores (afastam duas superfícies ósseas) do ombro e da anca, do cotovelo e do joelho, do punho e do tornozelo, e das diversas secções da coluna; abdutores (afastam da linha média), adutores (aproximam da linha média) e rotadores do ombro e da anca; etc. As diversas funções musculares são vistas como adstritas às funções articulares mais importantes, e o treino de pesos (e de todas as actividades que utilizam resistências), assim como o treino de flexibilidade, é visto em termos desses grupos musculares, um por um.

A visão de Globalidade muscular, ou seja, a visão de conjuntos estendidos de grupos musculares sinérgicos, e sobretudo a visão de Globalidade mio-fascial (um conceito mais lato que o anterior), não tem sido apanágio dos paradigmas de treino e do trabalho de fisioterapia convencional. Independentemente da pessoa ou patologia existente, o treinador ou o terapeuta gostam de fortalecer, tornar os músculos mais potentes e resistentes, e pensam sempre segundo o “raciocínio dos grupos musculares”, nunca segundo um raciocínio de... cadeias musculares, conceito que irá ser mais tarde tratado.

Dizia eu que, quando comecei o meu trabalho de fisioterapeuta, não via o corpo de uma forma muito diferente de um treinador que trabalha conjuntos de músculos. Aliás, os fisioterapeutas mais “experientes” que observava também não trabalhavam, em geral, segundo “uma outra forma de ver” as coisas.

Só muito mais tarde, quando abracei a área da Reeducação Postural, começando a ler os livros da “Reeducação Postural Global” de Souchard, comecei a perceber que as coisas poderiam ser vistas de uma forma diferente. E comecei, igualmente, a revalorizar a questão dos “diferentes tipos de músculos”. Precisei de vários anos de trabalho em “Reeducação Postural” para começar a perceber que o corpo possui uma identidade global bastante mais completa do que a “identidade” que nos servem nos cursos de base de Fisioterapia e Motricidade. E precisei de bastante

tempo para começar a entender certos argumentos de fisioterapeutas especialistas em “Reeducação Postural”, assim como a natureza fundamental do trabalho reeducativo.

A ordem dos capítulos deste livro reflecte, de alguma maneira, a ordem com que fui “integrando” muitos desses conceitos. Essa mesma ordem também reflecte a necessidade de uma certa coerência conteudística. Convido os leitores a fazerem um trajecto pela obra, um trajecto necessariamente de “mente aberta”, pois só assim se poderá verdadeiramente entender a natureza do conhecimento.

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A “histologia”, ou seja, o estudo dos tecidos biológicos, constitui terreno fundamental do nosso percurso. Obviamente, não interessa discorrer muito sobre o tipo de tecidos que compõem o organismo humano. Aliás, à nossa visão “global” do corpo interessa, sobretudo, um conjunto de dois tecidos: o tecido conjuntivo e o tecido muscular.

O tecido conjuntivo ou conectivo compõe, de forma dominante, as articulações, as peças anatómicas que permitem os eixos de movimento.

Bienfait1, na sua obra “Os desequilíbrios estáticos”, apresenta uma descrição sucinta deste tipo de tecido, descrição que vai ao encontro da nossa “perspectiva”. O tecido conjuntivo é, portanto, constituído por um conjunto de células denominadas “blastos”, cuja função é a secreção de duas proteínas de constituição: o colagéneo e a elastina. Estas duas proteínas possuem alguma capacidade regenerativa, mas, enquanto a elastina (proteína de longa duração) constitui uma forma estável, o colagéneo (proteína de curta duração) modifica-se durante toda a vida. Segundo Bienfait, é nestas proteínas que se situa a maior parte da patologia do conjuntivo (sendo esta especialmente relevante para as alterações estruturais). No interior do tecido conjuntivo, as duas proteínas formam fibras, as quais contribuem para a substância matricial da estrutura articular. Agora, é fundamental perceber a dinâmica deste conjunto de fibras, a qual tem sido tantas vezes negligenciada por tantos profissionais. Sublinhem-se as seguintes palavras. A “dinâmica” estrutural do tecido conjuntivo depende totalmente do mecanismo funcional das fibras anteriormente mencionadas. Bienfait refere a “dinâmica da elastina” como estando dependente do “estado de tensionamento” do tecido (p.15): (a) “se a tensão suportada pelo tecido é contínua e prolongada, as moléculas colaginosas e os feixes conjuntivos alongam-se”; (b) “se o tecido suporta tensões curtas mas repetidas, as moléculas colaginosas

i - dAdos histológicos e funcionAis PreliminAres: tecidos conjuntivo e musculAr

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instalam-se em paralelo. As fibras colaginosas e os feixes conjuntivos multiplicam-se”. O caso (a) refere-se ao fenómeno de crescimento do tecido, nomeadamente ao “alongamento” do tecido. O caso (b) refere-se à compactação do tecido, ou seja, à densificação do tecido proteico. O caso (a) deriva da força contínua e progressiva de alongamento. O mesmo será dizer que o crescimento ou alongamento do tecido depende da submissão do mesmo a uma tensão longitudinal progressiva e continuamente realizada. É a primeira pista que damos para a forma como deve ser feito o alongamento, muito particularmente importante para quando falarmos da fáscia (estrutura essencialmente constituída por tecido conjuntivo). O caso (b) deriva da submissão do tecido a repetidos estados de tensões curtas, o que aparece fortemente relacionado com o trabalho de força do tecido muscular. Assim sendo, o trabalho de força leva à compactação tecidular, e, indubitável e axiomaticamente demonstrado pela “ciência histológica”, leva à diminuição progressiva da elasticidade. Isto remete-nos para um campo extremamente polémico da discussão envolvendo o treino de força vs. treino de flexibilidade. Os dados apresentados levam-nos a supor que, realmente, o mito de que o treino de força leva a uma diminuição progressiva da flexibilidade tem sentido de existir. Muitos autores contrapõem a este “mito”, defendendo que o facto de o músculo ser mais forte não significa que se torne menos flexível... mas, todavia, nós ainda nem chegámos à parte relativa a esse tipo de tecido (muscular). Ainda estamos a falar de um tipo sistematicamente gorado de tecido biológico, que é o tecido conectivo.

Kisner & Colby2, na sua mítica obra “Exercícios terapêuticos”, preferem falar de um tipo de tecido não contráctil, falando, de duas “forças” relacionadas com a flexibilidade deste tipo de tecido: sobrecarga e distensão. É academicamente bem conhecida a chamada “curva sobrecarga-distensão”, a qual demonstra existir uma certa proporcionalidade entre a sobrecarga ou força exercida no tecido conjuntivo e a distensão obtida no mesmo, até que, após determinado limite de força, a distensão diminui, havendo, mais tarde, a possibilidade de ruptura do tecido.

Vários factores influenciam a “curva sobrecarga-distensão”, e estes podem ser revistos em Kisner e Colby: elasticidade, dureza, deformação, rigidez estrutural, produção de calor (conhecida por histeresis) e fadiga.

A “curva sobrecarga-distensão” pode e deve ser interpretada de formas muito

diferentes. Em geral, podemos resumir as coisas desta maneira: é necessário um determinado tipo de força de deformação para que o tecido inicie o seu “alongamento”. À medida que essa força for ocorrendo, aquando de um leve alongamento, o tecido funciona na porção elástica da curvatura. Esta “pequena deformação” produz uma série de alterações reversíveis no tecido conectivo, que o mesmo será dizer que “ocorrerá completa recuperação dessa deformação normal caso a sobrecarga não seja mantida” (Kisner & Colby, p. 151). Se a sobrecarga continua para além do ponto anterior, acabamos por entrar na “amplitude plástica” da deformação tecidular, ocorrendo uma forma mais permanente de alongamento. Entretanto, se é aplicada uma carga máxima e é atingido o ponto de força máxima o tecido acabará por falhar, havendo a possibilidade de ruptura.

Se compararmos a deformação do “tecido não contráctil” com o esticar de um elástico, podemos presumir que uma deformação fraca e não mantida leva à recuperação completa da “elasticidade”; uma deformação mais persistente leva ao aumento da amplitude ou da flexibilidade do citado elástico, e uma deformação “demasiadamente persistente” leva à “distorção” das propriedades do referido elástico.

Importante será ter em atenção que é totalmente científica a noção de que tanto a força como o tempo de deformação tecidular influenciam a capacidade de deformação permanente do tecido.

Há, aliás, uma fórmula de deformação, que é a seguinte:Índice de deformação = Força aplicada / Coeficiente de elasticidade x TempoO Índice de deformação é conhecido como fluage, sendo que este é um estado

normal ou fisiológico dos tecidos dependente directamente da Força e do Tempo.Factores como o calor submetido ao tecido (por exemplo, na forma de exercício)

e a idade cronológica influenciam o Coeficiente de elasticidade. O primeiro aumenta-o, enquanto que o segundo diminui-o. O aumento do Coeficiente de elasticidade leva à diminuição da fluage, o que significa que tudo o que aumente a elasticidade, como o calor na forma de exercício físico, diminui a capacidade de deformação permanente do tecido.

Este facto é especialmente relevante e aponta para um dos mais importantes aspectos “revolucionários” a ter em conta no respeitante a uma “nova” metodologia

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de treino. O alongamento, que é comummente realizado a quente e no final do treino, só é verdadeiramente eficaz e factível se for efectuado a frio. Ou seja, uma deformação permanente do tecido anteriormente falado só pode ser conseguida se o treino de flexibilidade for realizado sem a presença de factores que aumentem o Coeficiente de elasticidade.

Philippe Souchard3, o pai da Reeducação Postural Global, chama a todo este “facto” o Paradoxo do Coeficiente de elasticidade. Em artigo meu, intitulado “O treino da flexibilidade muscular e o aumento da amplitude de movimento: uma revisão crítica da literatura” (revista Motricidade, volume 3, n.º4, 2007)4, desmonto os aspectos mais científicos relativos ao paradoxo referido, sendo que faço uma revisão dos estudos relacionados com a utilização do calor como factor auxiliar no aumento da flexibilidade. Concluo que a maioria dos estudos aponta para a não comprovação de que o calor produza um efeito significativo no aumento da flexibilidade.

Claro que estas afirmações estão, de certo modo, relacionadas com uma série de discursos mais ou menos polémicos. A primeira questão a ter em conta é a da própria validade da minha “revisão da literatura”. Será que eu fui completamente objectivo na “recolha” dos estudos mencionados? A minha mente diz que sim, mas pode ser meramente acto (mental) defensivo. Outra questão prende-se com o grau de aceitação de ideias pouco consentâneas. Na realidade, não há verdadeiramente razões genuinamente científicas para pressupor que o treino de flexibilidade tenha de ser realizado a quente. Essa ideia tradicional advém da pressuposição, da lógica, da intuição de uma série de “especialistas”. Mas essa mesma pressuposição tão lógica e intuitiva contradiz a lógica de uma equação científica, o que, mais uma vez, demonstra que, por vezes, a ciência é contra-intuitiva. Temos, portanto, que uma série de “cientistas” afirmam e advogam teorias que não são apoiadas por uma lei física basilar. As suas teorias baseiam-se não em factos objectivos mas sim em intuições de estatuto inteiramente subjectivo, sendo que, a meu ver, muitos dos cientistas da área da “motricidade humana” têm realizado um mau serviço a respeito dessa dada “ciência”. Para além disso, muitos defensores da ideia de que o treino de alongamento deve ser realizado a quente referem que o treino a frio aumenta o risco de lesão, pois a elasticidade do tecido a alongar é menor. Ora, para além de não existir qualquer prova científica desta asserção, deve ser dito que, obviamente,

o treino de flexibilidade tem de ser adequado à tal “curva sobrecarga-distensão” anteriormente apresentada. Vários factores influenciam a elasticidade, e, perante os citados factores, podemos (e devemos) treinar a flexibilidade com um nível de sobrecarga suficientemente forte para que haja uma deformação mais permanente, e suficientemente fraca para não correr o risco de lesões por distensão ou ruptura. Este “princípio de trabalho” deve estar presente independentemente do tipo de factores que influenciem a elasticidade do tecido. Para além disso, poderei ainda argumentar que o “calor” embota a sensação de dor, a qual ajuda a guiar a sensação de alongamento (e do seu limite), sendo que, na realidade, é o treino a quente que se torna (coerentemente) perigoso.

A principal implicação da existência de tecido conjuntivo é a de que o alongamento deve ser suficientemente prolongado de modo a que o citado tipo de tecido possa “deformar” permanentemente. Por outro lado, certos autores, como Bienfait, não concordam que se deva mexer com a fluage tecidular, argumentando que essa é uma propriedade fisiológica dos tecidos que não deve ser modificada. Ora, esta assunção vai de encontro à ideia de muitos autores que referem que o verdadeiro treino de flexibilidade (ou seja, o verdadeiro treino de aumento das amplitudes de movimento) não deve ser realizado, e somente o “alongamento” (muitas vezes referido como “diferente” do trabalho de “flexibilidade”), sem vistas à deformação permanente, deve ser realizado. Por mim, devo dizer que não acredito na possibilidade reeducativa de um método que não inclua o treino de flexibilidade propriamente dito. Ou seja, acredito que o treino de flexibilidade deve ser realmente e seriamente executado, se quisermos uma modificação mais “real” do estado de tensão dos tecidos (e, portanto, da “consequente” postura corporal). Veremos que os métodos de Reeducação Postural se baseiam num tipo de alongamento necessariamente lento e progressivo, sem o qual não é possível haver mudança real dos aspectos da estrutura mio-fascial. Mas retomaremos mais tarde esta questão.

Se as propriedades mecânicas do tecido não contráctil são importantes, não podemos esquecer as propriedades relativas ao tecido muscular. Todavia, as propriedades ditas mecânicas do tecido muscular ou contráctil dependem sobretudo dos componentes de tecido conectivo, ou seja, quando falamos das propriedades relacionadas com a “deformação” muscular estamos fundamentalmente a referir-nos

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às propriedades mecânicas de deformação do tecido conjuntivo (tecido este que está na composição sectária-anatómica dos conjuntos musculares). Estas foram já tratadas.

Mas, ainda assim, há que referir outras propriedades, nomeadamente as propriedades ditas “neurofisiológicas” do tecido muscular. Trataremos das mesmas depois de referirmos alguns componentes do tecido muscular.

Os músculos constituem a unidade motriz do nosso corpo. Lembro perfeitamente as aulas de anatomia, nos tempos de estudante do ensino superior, em que os músculos eram estudados sobretudo nas suas vertentes anatómicas relacionadas com as inserções ósseas. Tínhamos que saber, para cada músculo, a sua “origem”, “inserção” e “acção” (cinesiológica). Na realidade, podemos estudar os músculos de formas muito diversas, assim como podemos ver o sistema muscular também de formas muito diversificadas. Os meus antigos professores de anatomia encorajavam o estudo “analítico” dos músculos, mas com desenhos globais dos mesmos.

Ou seja, se tínhamos que saber as inserções e acção de cada músculo em particular, era dada preferência ao estudo “imagético” mediante a utilização de imagens de conjuntos musculares (como as imagens da figura 1) e não tanto de músculos individuais.

Dou um certo “realce” a esta temática por motivos que iremos compreender adiante. Na realidade, a maioria dos livros de anatomia de texto, como os livros do prof. Esperança Pina, visam o estudo de músculo a músculo, quando o mais correcto e “fisiológico” seria estudar “conjuntos musculares”, algo que se aproxime daquilo que mais tarde iremos designar por “cadeias musculares”.

A visão analítica dos músculos domina o mundo da medicina e da “saúde” em geral. É quase sistémico o acto de julgar os males músculo-esqueléticos em termos de músculos ou tendões específicos, e raramente se atende à realidade patológica de um “conjunto muscular”. Por outro lado, em termos funcionais, é comum referir os flexores e os extensores, os abdutores e os adutores, os rotadores, entre outros “realizadores” funcionais.

Dentro dos possíveis, devemos ver o corpo como um todo. Somos verdadeiramente uma espécie de gabardina de músculos, os quais se ligam uns aos outros em termos anatómicos pelas aponevroses (tecido fascial), e, em termos mais funcionais, pelas inserções ósseas comuns. Temos centenas de músculos ditos agonistas (realizadores do movimento), outros que contrariam a acção destes (antagonistas) e músculos que colaboram no processo funcional (sinergistas). Um mesmo músculo pode ser agonista, antagonista e sinergista, mas nunca tudo ao mesmo tempo. E, assim, o corpo aparece desenhado com uma série de “capas” musculares, umas mais superficiais, outras mais profundas, todas elas numa interacção mais ou menos contígua.

A história da anatomia humana releva para um campo extremamente profundo do conhecimento médico e científico. Gostaria só de salientar a importância de Andrés Vesálio (1514-1564), o mais importante anatomista de sempre. Para além de ter sido um grande investigador, foi igualmente um grande ilustrador, e é bem conhecida a excelência das suas imagens de conjuntos musculares. Aliás, como se pode ver pelas figuras 2 e 3, Vesálio tinha já uma visão extremamente global do aparelho muscular, uma visão que só seria historicamente “igualada” em pleno século XX com algumas famosas “imagens” das “cadeias musculares”.Fig.1 - Imagem simplificada do sistema muscular (plano superficial).

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Em termos fisiológicos, poderei dizer que é tarefa hercúlea descrever os pormenores do funcionamento neuromuscular do aparelho músculo-esquelético. Aliás, não é minha intenção escrutinar aqui de forma elaborada temas que podem ser encontrados em quaisquer livros de anátomo-fisiologia.

O tecido muscular que nos interessa é conhecido por tecido muscular estriado esquelético. Este mesmo tecido constitui a propriedade “carnal” da estrutura esquelética. A figura 4 desmonta as partes constituintes do tecido muscular e tecido conjuntivo associado.

O músculo é revestido por uma fina camada de tecido conjuntivo - o perimísio. Por sua vez, o epimísio divide o músculo em secções ou feixes musculares. O feixe divide-se também, por sua vez, em secções, as fibras musculares, também elas rodeadas de tecido conjuntivo. Portanto, um músculo é constituído por um conjunto avultado de fibras musculares, dividindo-se cada uma em miofibrilas contrácteis, sendo estas constituídas por dois tipos principais de proteínas: a actina e a miosina.

Entretanto, é importante dizer que as miofibrilas são constituídas por unidades funcionais denominadas sarcómeros, os quais incluem um sistema de filamentos; estes filamentos deslizam entre si, encurtando o sarcómero aquando da contracção muscular e aumentando o seu comprimento aquando da “distensão”.

Kisner & Colby descrevem muito bem a resposta mecânica da “unidade contráctil” ao alongamento. Resumindo, podemos dizer que, quando o alongamento é realizado passivamente, o alongamento inicial ocorre no componente elástico em série. Após certo ponto, ocorre um comprometimento mecânico das pontes transversas à medida que os filamentos - anteriormente referidos - se separam com o deslizamento e ocorre um alongamento brusco nos sarcómeros (Flitney e Hirst, 1978, citados por Kisner & Colby). Quando a força de alongamento é libertada cada sarcómero recupera o seu comprimento de repouso. É a esta “energia potencial elástica” do músculo que se dá o nome de elasticidade, propriedade igualmente imputável ao tecido conjuntivo. O mecanismo de alongamento mais permanente, relacionado com o já referido trabalho lento e progressivo de flexibilização, está relacionado com o aumento do número de sarcómeros em série.

Estes factos são de natureza “física” e, portanto, claramente científica. Também é científico o facto de haver um aumento da quantidade de tecido conectivo aquando da imobilização do músculo em posição de contracção, assim como é científico igualmente o facto de esse aumento tecidular ser acompanhado de uma redução no número de sarcómeros (Tabary et al., 1972; Tardieu et al., 1982; Threlkeld, 1992; citados por Kisner & Colby). Daqui a afirmar que o trabalho de contracção muscular, associado ao processo de fortalecimento muscular, resulta no mesmo tipo de redução do número de sarcómeros, não me parece que exista grande distância teorética.

Se a natureza mecânica funcional do tecido muscular é relevante, não deixa de ser igualmente crucial referir alguns aspectos da natureza neurofisiológica do tecido

Fig. 2 - Imagem de Vesálio. Fig. 3 - Imagem de Vesálio.

Fig. 4 - Partes constituintes do tecido muscular.

perimísio

músculo

feixe muscular

fibra muscular miofibrila

miofilamentosarcômero

sarcolema

endomísioepimísio

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contráctil. É importante relembrar que existe uma relação directa entre o córtex cerebral e os neurónios que inervam os conjuntos musculares, mediada pelo sistema piramidal, assim como existe uma relação entre as zonas subcorticais do encéfalo e outro género de neurónios que inervam os músculos, mediada, desta vez, pelo sistema extra-piradimal e, em baixo, pelo sistema Gama. É no contexto deste sistema que devemos referir a existência de um conjunto de fibras musculares, colocadas bem no centro do músculo, que trabalham como censores ou medidores sensíveis ao grau e velocidade de alongamento muscular. Refiro-me ao fuso neuromuscular. Este “fuso” detecta variações na velocidade e duração do alongamento muscular, activando, em resposta a esse alongamento, o chamado reflexo miotático, o qual conduz à contracção muscular. O aspecto relevante de todos estes dados neurofisiológicos é que, se for realizado um alongamento brusco, produz-se, em resposta, uma rápida contracção muscular, o que significa que, se se pretende realizar uma deformação tecidular mais permanente, e portanto evitar essa mesma contracção muscular defensiva, o alongamento deve ser realizado lentamente. Por outro lado, o alongamento lento faz disparar o órgão sensitivo do tendão (Órgão Tendinoso de Golgi), levando este, por meio do chamado reflexo tendinoso de Golgi, à produção de um relaxamento muscular.

Os pormenores e respectivos autores podem ser consultados em Kisner & Colby. Importa, sim, afirmar que estes dados são muito mais do que meras pressuposições, constituindo dados já liminarmente aceites, relacionados com as bases fisiológicas mais preliminares.

Importa, já agora, acrescentar que a contracção muscular vigorosa produz também a activação do reflexo tendinoso de Golgi, levando alguns autores a presumir que a contracção pode, em certa medida, ser utilizada como veículo de relaxamento muscular. Tem sido essa a “base” teorética de certos métodos de trabalho da flexibilidade como o contract-relax e o hold-relax do PNF (Facilitação Neuromuscular Proprioceptiva), método um pouco na moda dos profissionais do fitness, já conhecido há várias décadas entre os fisioterapeutas. Também tem sido essa a base de vários métodos de “relaxamento progressivo” como o “relaxamento muscular progressivo de Jacobson”. Em ambos os métodos, é utilizada a contracção muscular vigorosa seguida de relaxamento como veículo do aumento do estado de

relaxação muscular. No meu já citado artigo da revista Motricidade apresento um quadro de resumo de estudos que atestam a credibilidade científica do PNF enquanto método de incremento da flexibilidade. Por outro lado, não podem ser gorados todos aqueles estudos que demonstram que a seguir a uma contracção mantém-se sempre um estado de tensão latente ao nível do músculo, não sendo possível o mesmo relaxar por completo (proponho a consulta da revisão de Rosemary Payne5 na sua obra “Técnicas de relaxamento”). Ora, acontece que alguns estudos muito recentes referem que a eficácia do PNF no aumento da flexibilidade não se deve afinal à activação do reflexo tendinoso de Golgi (como se pensou durante décadas), mas sim devido à existência de um prévio mecanismo de inibição pré-sináptica do sinal sensorial do fuso neuromuscular 6.

Aliás, já vários estudos mediante a utilização de medições electromiográficas (método de medição dos inputs neuromusculares) tinham demonstrado que a seguir a uma contracção o músculo não relaxava por completo, o que, demonstra que, independentemente do processo envolvido no “contrair-relaxar” deve ser questionada a eficácia da contracção muscular como veículo para o relaxamento e flexibilização. Veremos que os paradigmas de Reeducação Postural não incluem a utilização das técnicas “de contracção” referidas. E isso deve-se sobretudo ao facto de a Escola francesa de onde vem a maioria desses métodos ser um pouco alheia aos estudos referidos (os quais são de origem anglo-saxónica).

Acabamos este capítulo com a referência à electromiografia. E é com “medições electromiográficas” que se traçou definitivamente um novo e importantíssimo percurso na compreensão da “fisiologia muscular”, nomeadamente na distinção entre duas grandes naturezas de músculos: os músculos tónicos e os músculos fásicos. O assunto é de tal forma importante e crucial que merece um capítulo próprio. Veremos, portanto, no próximo capítulo os principais aspectos relativos às diferentes naturezas musculares. Sublinho desde já que só mediante a compreensão adequada dessa “natureza muscular diferencial” é que é possível traçar o caminho que este livro - e toda a minha teoria - se propõe. Portanto, não negligencie o próximo capítulo como tantos profissionais da motricidade têm surpreendentemente feito.

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Bibliografia (I)

1. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento fisioterápico. São Paulo: Summus editora.

2. Kisner, C. & Colby, L. (1998). Exercícios terapêuticos: fundamentos e técnicas (3ª edição). São Paulo: Editora Manole Ltdª.

3. Souchard, Ph-E. (1981). Le champs clos. Paris: Maloine.4. Coelho, L. (2007). O treino da flexibilidade muscular e o aumento da amplitude

de movimento: uma revisão crítica da literatura. Motricidade, 3(4): 22-37.5. Payne, R. (2003). Técnicas de relaxamento. Um guia prático para profissionais de

saúde. Loures: Lusodidacta.6. Chalmers, G. (2004). Re-examination of the possible role of Golgi tendon organ

and muscle spindle reflexes in proprioceptive neuromuscular facilitation muscle stretching. Sports Biomech, 3(1): 159-183.

ii - diferentes tiPos de músculos

É de admirar que, nos tempos que correm, ainda existam cursos da área da motricidade que relevam para segundo plano a temática da classificação dos diferentes tipos musculares. Ora, é um facto que os músculos do nosso corpo não são todos iguais. Eles diferenciam-se em muitas características e esses mesmos caracteres relevam para diferentes tipos de classificação, uns nem sempre compatíveis com os outros.

Há imensas referências bibliográficas relativas ao tema. Por mim, poderia cair aqui no acto de “revisão da literatura” intensiva e tornar todo este texto hiper-científico. Pois é certo que muito há a dizer sobre as classificações dos tipos musculares. Poderia, inclusive, fazer aquilo que tantos “investigadores” fazem: plagiar um artigo já realizado, mudando uns verbos aqui e uns substantivos acolá, e citando as referências do “meu” trabalho como genuinamente consultadas, fazendo de conta que as mesmas não estavam já referidas no artigo de base. Por uma qualquer compulsão de ordem eticista, prefiro citar o artigo para onde olho neste momento. Chama-se “Classificação e adaptações das fibras musculares: uma revisão” e é de Viviane Minamoto e de uma revista brasileira (Fisioterapia e Pesquisa 2005; 12(3):50-5)1. Este mesmo artigo explica, de forma sucinta, os diferentes tipos de classificação das fibras musculares, com a necessária contextualização científica.

É certo que, em geral, existem diversas formas de classificar as fibras musculares. E tudo varia segundo o critério científico que é atendido. E esse mesmo critério prescreve um modelo ou contexto de investigação determinado.

É de realçar que a primeira classificação dos diferentes tipos de fibras musculares remonta ao ano de 1873, quando foi utilizada a coloração do músculo (Ranvier): as fibras foram classificadas como brancas ou vermelhas. E essa coloração está intimamente ligada à constituição estrutural e funcional das células que compõem

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esses tecidos. A coloração vermelha está ligada à alta concentração de mioglobina e com a grande densidade de vascularização do tecido. Estes músculos de fibras essencialmente “vermelhas” serão, portanto, músculos de actividade mais “constante” do que músculos com menor concentração de mioglobina (músculos brancos). Assim, os músculos de coloração vermelha estão associados àqueles que são de natureza a realizar actividades preferencialmente aeróbias, como todas as actividades que implicam uma activação prolongada ou por tempo indefinido. Estes mesmos músculos de coloração vermelha tendem a ser, noutros termos, consentâneos com os músculos ditos slow-oxidative, com fibras do tipo I, de contracção lenta e com alta resistência à fadiga.

No quadro 1 apresentamos uma tabela, adaptada de Minamoto1, que relaciona os diversos tipos de classificação de dois grandes grupos de músculos.

Quadro 1. Terminologia utilizada para a classificação dos diferentes tipos de fibras musculares (Minamoto, 2005).

Vemos pela análise do quadro 1 que existe uma forte correlação entre os diferentes tipos de fibras musculares.

Mas para quê analisarmos de forma tão científica e tão demorada estas classificações? Queremos, não obstante o enfado que esta teoria possa causar, deixar bem sublinhada a certeza científica e factual da existência de dois grandes tipos de fibras musculares: umas relacionadas sobretudo com actividades musculares constantes e outras relacionadas sobretudo com actividades musculares inconstantes.

A distribuição numérica e proporcional do tipo de fibras musculares por cada músculo vai permitir perceber qual a natureza funcional dominante desse mesmo músculo. É preciso deixar bem preciso que há dois grandes tipos de músculos no corpo humano: os músculos que possuem maior proporção de fibras musculares de um tipo e os músculos que possuem maior proporção de fibras musculares do outro tipo. Essa proporção é altamente viciosa e depende sobretudo da função exercida pelo músculo. Ou seja, a proporção de fibras musculares de um determinado tipo em dominância relativamente a outro tipo depende totalmente da raiz funcional do músculo ou grupo muscular em questão. E essa mesma função depende das “ordens” que esse mesmo músculo recebe de níveis neuronais que lhe são bastante superiores.

Assim sendo, há que referir a existência de músculos tónicos e de músculos fásicos. Os músculos tónicos possuem uma alta proporção de fibras de contracção lenta, sendo que os mesmo tendem a ser pluri-articulares (ou seja, cruzam várias articulações); são músculos fundamentalmente posturais e portanto de natureza anti-gravítica (ou seja, responsáveis pela manutenção ou sustentação do corpo contra a gravidade). Os músculos fásicos possuem uma alta concentração de fibras musculares de contracção rápida, com um papel fundamentalmente anaeróbio ou inconstante. São responsáveis pela produção da maior parte das acções motrizes voluntárias.

Portanto, vamos dizer o mesmo de uma forma diferente. O corpo aparece desenhado com dois grandes conjuntos musculares. Um conjunto é composto por músculos de tonicidade ou activação constante, possuindo uma função postural. É o caso da maioria dos músculos ditos paravertebrais (músculos posteriores da coluna) e da quase totalidade dos músculos da região posterior do corpo. Estes músculos, designados de tónicos, possuem uma activação fraca mas constante, tendem a

métodos de clAssificAção dAs fibrAs musculAres

Autor(es)/Ano terminologiA dA clAssificAção dAs fibrAs

Coloração

Bioquímico

Histoquímico

Fisiológico

Metabolismo

Limiar de fadiga

Imunohistoquímico

Ranvier / 1873

Peter et al / 1972

Guth & Samaha / 1969

Brooke & Kaiser / 1970

(Vários)

Ogata / 1958

Kugelberg & Edstrom

/ 1968

Staron / 1997

Pette et al / 1999

Vermelha

Slow-oxidative

Tipo I

Contracção lenta

Oxidativo

Alta resistência à

fadiga

Myosin heavy chain I

Branca

Fast Glicolitic/Fast-

Oxidative Glicolitic

Tipo II e subtipos

Contracção rápida

Glicolítico

Baixa/moderada

resistência à fadiga

Myosin heavy chain II

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estar presentes em zonas profundas do corpo e compõem as chamadas “cadeias musculares”. Por estarem em constante activação, estes músculos possuem uma tendência inequívoca para se encontrarem encurtados (portanto, muito contraídos). Os músculos fásicos são de activação fundamentalmente consciente e voluntária, sendo que trabalham somente quando ordenamos a sua actividade (os tónicos possuem uma activação fundamentalmente inconsciente e involuntária). São os músculos da força, mas como só se activam esporadicamente não têm grande tendência para o encurtamento.

É preciso atender ao seguinte: as diversas medições dos impulsos neuromusculares - feitas mediante a utilização da electromiografia - têm demonstrado a realidade inquestionável da função dos músculos tónicos vs. músculos fásicos. É, portanto, inquestionável que os músculos posturais estão em activação quase permanente, enquanto os músculos fásicos só se activam quando os mandamos mover determinada articulação. Os estudos electromiográficos também têm demonstrado que é possível os músculos fásicos chegarem a um completo estado de repouso ou relaxamento, mas tal é praticamente impossível de ocorrer com a musculatura tónica.2-5

Sabe-se actualmente que os músculos tónicos estão presentes fundamentalmente na zona posterior do corpo, enquanto que a musculatura fásica é sobretudo anterior. Qualquer semelhança com a natureza da cadeia muscular postural posterior - identificada primacialmente por Françoise Mézières - é pura coincidência... poderíamos dizê-lo, apenas com um fim totalmente humorístico. Pois é tão certo que a musculatura postural está sempre em tensão que todos os dias me espanto ao verificar nas prescrições fisiátricas a presença de algo como “fortalecimento dos extensores”. Ora, se a musculatura postural é de natureza tónica, então a sua activação é inquestionavelmente um facto. Para quê estimular uma musculatura cuja activação é constante?... Para quê activar uma musculatura que já possui uma tendência inefável para o encurtamento?... De facto, a musculatura posterior tem um aspecto de fraqueza, mas tal deve-se unicamente ao facto de que, sendo a musculatura tónica constituída essencialmente por fibras musculares de contracção lenta, esses músculos não têm a capacidade para crescer ou hipertrofiar. Daí o seu aspecto algo asténico. Mas não passa tal aspecto de pura ilusão. Essa musculatura aparentemente fraca está, na realidade, numa activação quase permanente; de tal forma que, mesmo deitados, os músculos posturais de sustentação mantêm uma actividade remanescente.

Estes factos, que são - para mim - extremamente básicos, são esquecidos todos os dias por todos os profissionais de saúde e educação física que teimam em querer fortalecer músculos extensores da coluna. Ao fazerem-no estão a criar condições para a criação de novos encurtamentos e de um esgotamento tónico da musculatura posterior. Pois a verdade é que o tal “endireitamento” das costas, associado de forma superficial à “boa postura” está dependente da capacidade de activação tónica da musculatura extensora da coluna (posterior), e esta capacidade está dependente de algo que podemos designar de maleabilidade tónica. Aumentando a tensão de músculos já tendencialmente tensos estamos a diminuir essa capacidade. E estamos a contribuir para a fadiga dessa musculatura, por super-activação.

E quão visionária foi Françoise Mézières quando percebeu que as deformidades posturais advinham dessa mesma super-solicitação tónica. Quão inteligente foi esta senhora ao prever o “erro” presente no trabalho de activação ou fortalecimento de músculos tendencialmente encurtados...

Bem, demos agora mesmo já uma série de pistas acerca do que são os métodos de Reeducação Postural, sobretudo aqueles que têm por base o método Mézières. Veremos mais tarde que Françoise Mézières, sem conhecer necessariamente bem a diferença teorética entre músculos tónicos e músculos fásicos, soube perceber que a deformidade estava relacionada sempre com “excessos musculares” da musculatura posterior.

O tratamento segundo o método também não difere muito da assunção base de que os músculos tónicos, por estarem já excessivamente retraídos, devem ser alongados, enquanto que os fásicos devem ser fortalecidos.

Souchard6 veio mais tarde lidar mais à vontade com os conceitos tratados. São dele as seguintes palavras que resumem os objectivos de tratamento ou “princípios de intervenção” da Reeducação Postural Global: (1º) Só as posturas activas em alongamento podem devolver aos músculos hipertónicos, rígidos e dolorosos a sua força, comprimento e flexibilidade; (2º) É necessário alongar os músculos da estática [tónicos] e os músculos suspensores, encurtando-se os músculos da dinâmica [fásicos]; (3º) Só as posturas de estiramento progressivo cada vez mais globais permitem alongar todos os músculos rígidos, assim como reencontrar a retracção de origem.

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Estas frases são fundamentais e expressam os objectivos fundamentais do trabalho em Reeducação Postural. Expressam, também, o objectivo de trabalho em qualquer abordagem física que possua a “saúde” como fundamento primacial. Ora, é indubitável que os diferentes tipos de desportos e actividades de fitness não possuem no “alongamento” o seu modelo base de trabalho. Na realidade, muitos instrutores de fitness são completamente alheios à realidade da distinção teorética tratada neste capítulo. E os que a conhecem simplesmente não sabem muito bem como lidar com os conceitos vigentes. Por exemplo, quando Souchard fala de “fortalecimento dos músculos da dinâmica”, eventualmente as pessoas poderão pensar que podemos fortalecer músculos anteriores com pesos ou resistências. Mas tal presunção é um erro, pois sempre que realizamos uma actividade que envolva contracção muscular contra resistências, estamos, sem qualquer possibilidade de o evitar, a estimular os músculos da estática. Os dados provenientes da electromiografia5 não deixam margem para dúvidas de que até os mais pequenos esforços, quando realizados contra resistências, envolvem o esforço da musculatura tónica, a tal musculatura que deveria somente ser alongada e relaxada.

É por este motivo que defendo que a maioria das actividades de fitness, em especial a musculação, desrespeitam as leis fundamentais da postura e do trabalho postural.

A assunção de que o trabalho de força levaria ao surgimento de deformações e “compensações” (reacções de substituição inadequada da actividade muscular), inquinando a possibilidade de se realizar um trabalho de facilitação da função apropriado, é comum também à maioria dos paradigmas de tratamento em reabilitação neurológica, principalmente aquele previsto pelo método Bobath.

O método Bobath constitui o mais famoso método de intervenção fisioterapêutica em condições neurológicas como a paralisia cerebral ou os AVCs. O método em questão, desenvolvido pelo casal Bobath, defende o treino da facilitação de padrões funcionais de movimento, mediante a precedente inibição do tónus anormal. Não devemos esquecer que, mais tarde ou mais cedo, a maioria dos doentes com lesão cerebral desenvolve condições de hipertonia, ou seja, desenvolve reacções relacionadas com o excesso tónico. Esse mesmo “excesso tónico” tende precisamente a aparecer em músculos de natureza tónica, estática e/ou postural, e é de tal forma estrénuo que pode aparecer sob a forma de padrões específicos de actividade.

Ora, é normal que o método Bobath, assim como muitos outros paradigmas de intervenção neurológica, advoguem a realização de um trabalho de inibição tónica, sem o qual é impossível obter a função “normal”.

Todos os terapeutas que trabalham com o método em questão sabem que o “fortalecimento muscular” é total heresia, pois o mesmo só poderá levar a mais deformações e/ou compensações corporais. O que eu sugiro é a interpretação da teoria de Bobath à globalidade do funcionamento corporal, incluindo as pessoas sem lesão neurológica. E assim sendo, não será difícil perceber que o trabalho de fortalecimento muscular jamais poderá ajudar na edificação postural, e portanto, no tratamento da deformidade e/ou da raquialgia.

E estas pressuposições são de tal forma inequívocas que é difícil entender por que é que ninguém vê que, em história de tratamento de dores da coluna (raquialgias), o “Rei vai nu”. Talvez se deixem levar pelos tais aspectos de aparente fraqueza muscular...

O motivo pelo qual os médicos se mantêm agarrados ao paradigma “fortalecimento” é diferente do motivo pelo qual os profissionais da motricidade mantêm o mesmo tipo de modelo. Os médicos mantêm-se nesse modelo essencialmente porque possuem um tipo de ignorância que o Sistema ajuda a alimentar (e quando me refiro ao Sistema, refiro-me ao Estado que retira importância ao trabalho da Fisioterapia e alimenta a prossecução desse trabalho com meros papeis de “prescrição médica”). Os profissionais de educação física mantêm-se nesse modelo essencialmente porque não conhecem outro, portanto mais uma vez a ignorância a permanecer no Sistema...

Outro conceito que os ditos profissionais ignoram é o de “desequilíbrio muscular”. Na realidade, quando falamos de uns músculos com tendência para o encurtamento e outros com tendência para o relaxamento, estamos a referir-nos à emergência da possibilidade de existência de um desequilíbrio muscular. Um “desequilíbrio muscular” tem sido definido em termos da existência de um músculo ou grupo muscular muito encurtado levar à inibição e alongamento do seu antagonista (músculo ou grupo muscular com a acção inversa). Portanto, podemos dizer que o corpo aparece gerido por um conjunto mais ou menos avultado de desequilíbrios musculares. O simples facto de a zona posterior ser fundamentalmente tónica (porque é essa zona que nos “endireita”) e a zona anterior ser fundamentalmente fásica ou dinâmica leva-nos a

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pensar que o equilíbrio corporal assenta num gigantesco estado de “desequilíbrio muscular”. O desequilíbrio muscular é tanto maior quanto mais acrescida for a décalage entre as “forças musculares” oponentes. E a deformidade postural advém do tamanho progressivo dessa mesma décalage, ou seja, a deformidade postural é tanto maior quanto maior for a relação hipertónica/hipotónica entre as diferentes “faces” do corpo.

O objectivo de tratamento em Reeducação Postural não é muito mais do que a tentativa de criar um maior equilíbrio. Ou seja, mediante a inibição dos músculos hipertónicos e a estimulação dos hipotónicos tenta-se dar um maior equilíbrio postural ao corpo. Veremos mais tarde que o conceito de “desequilíbrio muscular” e que a noção de reequilibração postural são apanágio sobretudo dos métodos ditos “neo-mézièristas” de intervenção.

Mas gostaria de deixar já bem explícita a questão funcional dos músculos posturais. Se o tónus postural é necessário para o requerido “endireitamento postural” não será um contra-senso inibir esse mesmo tónus? Não será contra-indicado trabalhar no sentido de inibir a musculatura tónica/estática? A resposta pode ser encontrada no conceito, tão caro a Mézières e a Souchard, de hegemonia. O que acontece é que as reacções ditas normais à sobrevivência humana acabam por, facilmente, ser exageradas pelo próprio corpo, até ao ponto em que perdem o seu sentido de existir. Assim sendo, se uma quantidade mínima de tónus é necessária à função “anti-gravítica” da musculatura postural, o normal é encontrar um estado de super-activação constante e desinibida. Assim sendo, urge controlar as reacções de sustentação postural referidas.

Ora, podemos acabar este capítulo referindo a primeira definição possível de postura. Assim sendo, podemos definir postura como o conjunto global das reacções de equilíbrio muscular existentes numa interacção constante e abrangente no corpo.

Veremos que quando falamos de postura ou morfologia (relativo à forma) estamos, em muito, a referir-nos à natureza neuromuscular de um conjunto avultado de processos corporais.

Bibliografia (II)

1. Minamoto, V. (2005). Classificação e adaptações das fibras musculares: uma revisão. Fisioterapia e Pesquisa, 12 (3): 50-55.

2. Burke, J.F. (1973). Electrode placement and muscle action potentials amplitudes. Physical Therapy, 53(2): 127-131.

3. Gollnick, P.D., & Matoba, H. (1984). The muscle fiber composition of skeletal muscle as a predictor of athletic success. An overview. American Journal of Sports Medicine, 12(3): 212-217.

4. McLean, L. (2005). The effect of postural correction on muscle activation amplitudes recorded from the cervicobrachial region. J Electromyogr Kinesiol, 15(6): 527-535.

5. Gurfinkel, V. et al. (2006). Postural muscle tone in the body axis of healthy humans. J Neurophysiol, 96(5): 2678-2687.

6. Souchard, Ph-E. (1981). Le champs clos. Paris: Maloine.

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A questão que se coloca logo é: porquê definir “postura”? Qual a importância que a mesma tem para o nosso manifesto? O que acontece é que quando falamos de postura falamos de um conjunto multidimensional relativo ao design corpóreo. Ou seja, falamos de todas as características, mais neurológicas ou mais músculo-esqueléticas, que interferem com o “desenho” ou formato do corpo.

Ora, devemos conceber esse mesmo desenho enquanto a “estrutura” basilar do corpo, que mais não é que o conjunto estrutural das articulações, influenciadas por um conjunto de forças dadas às mesmas pelos músculos e respectiva tonicidade.

Essa mesma “estrutura” irá determinar o tipo e grau de mobilidade articular e de função geral, assim como o conjunto das patologias relacionadas com as últimas.

Portanto, tudo o que acontece em termos funcionais, e em específico, em termos desportivos, é, de alguma forma, condicionado pela “postura”, assim como a personalidade humana condiciona o comportamento. E qualquer actividade motora será mais ou menos problemática, ou desgastante a nível articular, dependendo da “estrutura corporal” de base.

Para entender por que é que o treino de força implica um conjunto de efeitos deletérios sobre o corpo, é preciso primeiro perceber um pouco a natureza das forças musculares (que já referimos) e aquilo em que resulta esse “jogo” de forças, ou seja, a postura.

Diversos investigadores têm dado luz a múltiplos métodos de “intervenção postural” sem que uma definição conceptual de “postura” tenha sido aprioristicamente relevada; daí que muitas das confusões metodológicas e pragmáticas dos vários métodos de “correcção postural” nunca tenham sido adequadamente resolvidas. Por exemplo, tanto no método Pilates quanto no Stretching fala-se de “postura”, mas em ambos os métodos realizam-se conjuntos de metodologias físicas dissemelhantes,

iii – PosturAs de “PosturA”

sendo que uma se centra mais na força do centro do corpo e a outra se centra mais na flexibilidade. Iremos tentar ordenar todos estes diversos campos semânticos e idiomáticos.

Comecemos pela caracterização do termo “postura”. Este possui um significado original de “posição, atitude ou hábitos posturais”1. Por “postura” podemos entender, em termos práticos, “a posição optimizada, mantida com característica automática e expontânea, de um organismo em perfeita harmonia com a força gravitacional e predisposto a passar do estado de repouso ao estado de movimento”; funcionalmente, pode ser considerada como “o conjunto de relações existentes entre o organismo como um todo, as várias partes do corpo e o ambiente que o cerca”; substancialmente, porém, vai de acordo com “um complexo sistema de muitos moldes, no qual intervém, além do carácter biomecânico, um conjunto de variáveis” (p.22).

Enquanto “posição corpórea”, “postura” pode referir-se tanto à posição relativa a um tempo determinado, tendo como exemplo o conjunto das curvaturas vertebrais funcionais, como à posição relativa a uma estrutura determinada, admitindo agora como exemplo o conjunto estruturado (ou virtualmente estruturado) das curvaturas vertebrais (ditas anatómicas).

Efectivamente, quando falamos de “postura” podemos estar a referir-nos a um “fenómeno” consubstanciado por diferentes perspectivas/dimensões e níveis. Tribastone1 refere-se a planos, comparando os mecanismos de controlo postural com os mecanismos de controlo do movimento (a postura pode ser, inclusive, definida como um conjunto incomensurável de múltiplos e microscópicos movimentos -definindo-se esta como uma perspectiva ‘dinâmica’ da postura). Temos, portanto, o plano anatómico, relativo à organização racional da actividade perceptivo-motora, alcançada a partir de movimentos, e com a normalização do conjunto das cadeias cinéticas, actuando na reequilibração das tensões miofasciais e das cadeias articulares; o plano neuromotor, relativo às sensações proprioceptivas e às variáveis aferentes de controlo postural; e o plano psicomotor, relativo à organização do esquema corporal, alcançada a partir da percepção consciente e do conhecimento do próprio corpo, das suas modalidades de funcionamento e da sua organização espacio-temporal.

No respeitante aos mecanismos de regulação da postura, estamos a entrar num terreno essencialmente “neurológico” que é composto por um conjunto de quatro

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níveis1: 1) centros superiores, que compreendem o cérebro, o cerebelo e o tronco cerebral; a esses chegam as informações provenientes principalmente dos fusos neuromusculares, dos mecano-receptores articulares, dos órgãos tendinosos de Golgi, e também da retina, da pele e do vestíbulo (responsável pelo equilíbrio); 2) interneurónios, motoneurónios alfa e gama, contidos na espinal medula (zona central e inferior); 3) músculo e todos os factores que influenciam a resposta contráctil (referimo-nos, como sabemos, essencialmente a músculos posturais, ou seja, músculos de controlo essencialmente inconsciente); e 4) fusos neuromusculares, órgãos tendinosos de Golgi, vestíbulo e receptores sensoriais.

Diferentes métodos de “intervenção postural” agem sobre uma ou mais partes dos referidos níveis de controlo postural. Daí que um processo de “reeducação postural” nunca possa limitar-se só à dimensão neurológica ou só à dimensão muscular per si. Por outro lado, os diferentes níveis de controlo postural, pelo facto de estarem intimamente relacionados, influenciam-se mutuamente, sendo de esperar que a intervenção num nível acarrete mudanças na totalidade dos níveis de controlo.

Por exemplo, o paradigma de Bricot2 refere-se sobretudo ao nível neurológico, sendo que a sua intervenção (postural) acarreta modificações a nível proprioceptivo (relativo à sensação corporal), regendo-se esta pela administração de palmilhas de reprogramação postural, pela modulação do receptor ocular e/ou pela intervenção ao nível do receptor dento-oclusal. Apesar de um tanto ultrapassado, o modelo de Bricot constitui ainda plataforma obrigatória do estudo da posturologia (esta entendida num sentido lato).

Tentemos, agora, definir o conceito de postura “normal”.Para Bricot2, a postura normal significa a ausência de forças contrárias e a presença

de relações harmoniosas entre as diferentes componentes esqueléticas. O resultado será a inexistência de dor.

Já que pretendemos referenciar o paradigma Mézières, vamos referir o que é a postura perfeita para o método com o mesmo nome. A Madame Mézières costumava referir-se às formas das obras de arte renascentista enquanto “formas de dimensões perfeitas”. O trabalho em Mézières constitui um esforço de retorno à “morfologia perfeita”, conhecida como a bela forma. As proporções da bela forma correspondem ao número de ouro (em relação a √5 +/− ½) para o qual todos deveríamos tender.

Para termos uma ideia do que Mézières entendia como a bela forma basta atendermos à imagem modelo do David de Miguel Ângelo (fig. 4).

O conceito de postura “normal” apresenta, no paradigma “componencial” de Marcel Bienfait, a existência de um completo equilíbrio entre os centros de gravidade de cada uma das peças ósseas que constituem o esqueleto dito “integral”. Aliás, para os diversos proponentes das perspectivas “analíticas” do conceito postural e respectiva intervenção, a postura significa essencialmente o encadear harmónico de um conjunto de segmentos. Estes são, para Bienfait, organizados segundo dois sistemas: um sistema ascendente - equilíbrio estático assegurado pelos membros inferiores e pelo tronco, e um sistema descendente - adaptação estática assegurada pela região cérvico-cefálica e pelo tronco 3.

Fig. 4 - A bela forma.

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Todas as alterações relativas à postura dita “correcta” correspondem a paramorfismos, se as alterações são temporárias e reversíveis, e a dismorfismos, se as alterações se consideram fundamentalmente irreversíveis1 (claro que esta classificação não preenche os quesitos conceptuais do método Mézières, já que para o mesmo a linha teórica que separa as tais “dismorfias” dos referidos “paramorfismos” é assaz espúria). Alguns autores referem-se a três graus possíveis de “deformidade”: o primeiro grau constitui a “atitude” ou paramorfismo, facilmente tratável pela Fisioterapia reeducativa, o segundo grau constitui a dismorfia parcialmente corrigível, e o terceiro grau refere-se às deformidades que não devem ser objecto de alongamento, e que só podem ser eficazmente tratadas mediante a realização de cirurgia ortopédica 3.

Para Bricot2, mais de 90% dos indivíduos apresentam um desequilíbrio postural. Para o autor, os desequilíbrios posturais comportam planos: o plano de alinhamento escapular e das nádegas, com aumento das curvaturas; o plano escapular posterior; o plano escapular anterior com dorso plano; e os planos alinhados com diminuição das curvaturas.

É de reter também a classificação postural de Kendall, dentro das quais são paradigmáticas as “kyphosis-lordosis posture”, “sway back posture” e “flat back posture” (fig. 5).

Fig. 5 - Classificação da postura segundo Kendall.

As deformidades posturais consideradas mais importantes são a cifose (curva de concavidade anterior) aumentada (fig. 6), a lordose (curva de concavidade posterior) aumentada (fig. 6), a escoliose (desvio lateral da coluna, no plano frontal) (fig. 7), os pés planos ou cavos, os pés, joelhos e ancas varos ou valgos (desvios relativamente aos eixos verticais), em hiperextensão (recurvatum) ou em flexão (flexum).

Claro que segundo o modelo de Bienfait a deformidade está presente no mero desequilíbrio de uma única peça óssea. O desequilíbrio de uma peça é sempre compensado pela reequilibração de outra peça, portanto num novo desequilíbrio; daí que um pequeno desequilíbrio pode dar origem a grandes deformidades. E daí também que uma intervenção analítica, adequada ao desequilíbrio de cada peça afectada, no sentido da consequência para a causa, possa ser, na visão de Bienfait, suficiente e necessária ao tratamento do paramorfismo.

Interessam ao nosso “modelo” de trabalho sobretudo as “deformidades” cuja origem seja do tipo “muscular”. Mas não devemos esquecer que uma deformidade - por exemplo, certas dismorfias congénitas - não tem de ser necessariamente de ordem miofascial. Por outro lado, é possível que certas deformidades, inicialmente ósseas por excelência dêem origem a deformidades de predominância miofascial.

Entretanto, vale a pena criar uma divisão entre deformidade de natureza muscular e deformidade de natureza fascial. Assumindo sempre que a fáscia é uma estrutura mais difícil de “moldar” (pois, constitui um conjunto de músculos, articulações e aponevroses), mais ligada à “forma” vista como “estruturada”, podemos dizer que, inicialmente um paramorfismo ou já uma dismorfia possui uma componente somente muscular. Entretanto, também se pode falar na “estruturação” do paramorfismo numa verdadeira dismorfia. Essa estruturação consiste, segundo Bienfait, na inclusão de estruturas fasciais na “deformidade”, quando até ali era mais uma questão de “tonicidade muscular”. Para este autor, o tratamento de uma deformidade bem estruturada, ou seja, aquela que já envolve a fáscia, não pode significar uma correcção relevante. Aqui, e como veremos mais à frente, Bienfait desacredita o método Mézières, dizendo que o mesmo não é capaz de conseguir tamanhas correcções de “dismorfias”. Por outro lado, como veremos nos próximos capítulos, e como já dissemos atrás, o método Mézières relativizará toda essa questão das “dismorfias”, afirmando que toda a deformidade é virtualmente recuperável (isto, se estiver “em

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jogo” uma causalidade nos tecidos moles, e não uma deformidade óssea congénita).Não quero entrar em mais pormenores sem que percebamos verdadeiramente

o contexto histórico da “intervenção postural”, em geral, e do método Mézières e seus “filhos”, em particular.

Fig. 6 - Postura cifo-lordótica.

Fig. 7 - Escoliose numa criança.

Quanto à avaliação postural, esta pode ser meramente observacional, mas pode também fazer uso de instrumentos e metodologias complexas1. A mais utilizada pelos clínicos é indubitavelmente sustida pela observação naturalística em real time. É a partir dessa observação, e não esquecendo nunca a “imagem”, eventualmente quimérica, fornecida pela bela forma, que o terapeuta mézièrista irá conduzir a sua acção, sempre com vista à aquisição da morfologia “perfeita”.

Sem desprimor das definições apresentadas, diria que tanto as classificações existentes de ‘postura’ como as enunciações definidoras da sua “normalidade” vs. “anormalidade” caem no erro de considerar a “postura” como um arquétipo concreto, objectivo e bem definido. A meu ver, a “postura” está para o corpo como a “personalidade” está para a mente. Assim como é difícil definir a normalidade/anormalidade do funcionamento personalístico, segundo um ponto de vista psicologista, também é difícil definir os critérios de normalidade da “postura corporal”. A “postura” é, tal como a personalidade, essencialmente uma idiossincrasia, um

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“corpus” definidor de um conjunto intrincado de factores psiconeurológicos, psico-emocionais, músculo-esqueléticos e neuromusculares, variáveis, muitas vezes radicalmente, de sujeito para sujeito. Portanto, a tentativa de classificar a postura “normal” vs. “anormal” é, apesar de útil do ponto de vista nosológico, dispensável segundo o ponto de vista “dinâmico” e “morfoanalítico”.

No próximo capítulo iremos atender ao conceito (geral) de intervenção postural, assim como ao conceito mais específico de Reeducação Postural, pré-requisitos ao entendimento das bases do método Mézières.

Bibliografia (III)

1. Tribastone, F. (2001). Tratado de exercícios correctivos aplicados à reeducação motora postural. São Paulo: Editora Manole.

2. Bricot, B. (2004). Posturologia (4ª edição). São Paulo: Ícone Editora.3. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento

fisioterápico. São Paulo: Summus editora.

iv – intervenção PosturAl

Não é minha intenção formular, neste capítulo, uma história da ginástica, mesmo que queiramos especificar a nossa abordagem como a “ginástica de correcção postural”. Afinal de contas, a história do desporto é quase tão antiga quanto a história da civilização. Aliás, se não nos esquecermos de certas práticas milenares como o Yoga e artes marciais como o Tai-chi, então temos pano para mangas quase de tamanho indefinido.

Nos tempos anteriores à nossa Era, tínhamos já a funcionar uma série de actividades do tipo desportivo, associadas a competições de maior ou menor nível. Por exemplo, os Jogos Olímpicos, a competição multi-desportiva de maior nível, vêm, como é sabido de um tempo anterior à civilização helénica. Naquele tempo, os jogos e as competições estavam irrefutavelmente ligadas à necessidade de emulação, à necessidade de afirmação dos povos e até das raças. Temos, portanto, o desporto ao serviço de uma série de razões de ser de ordem mais ou menos competitiva, algo que se vai manter ao longo de milénios.

A história dos diversos desportos - individuais ou grupais - pode dar azo a uma série de argumentos, assim como a pormenores mais ou menos importantes de cariz histórico. Não interessa traçar aqui a história dos diversos desportos. Interessa somente dizer que não há um único desporto que tenha sido inventado com um fim de “saúde”. Todos os desportos parecem estar mais ou menos direccionados para a consecução de um ou mais objectivos, quase todos de ordem mais ou menos mentalista, mas nenhuma actividade desportiva foi inventada de propósito para servir a saúde humana.

Por outro lado, certas actividades orientais, como o Yoga, foram criadas com a intenção de criar um cômputo fisicalista numa prática fundamentalmente espiritual e mentalista. O Yoga é interessante no sentido em que estava já associado à crença

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de que o formato corporal dependeria de uma actividade muscular essencialmente estática, movida por princípios de alongamento global e progressivo. Os princípios do Yoga têm milénios de existência e, ainda assim, aproximam-se bastante dos princípios da Reeducação Postural. Aliás, é curioso ver como tantos fisioterapeutas RPGistas se recusam a falar do Yoga e das suas possibilidades terapêuticas (em termos posturais), como se tivessem medo que o Yoga criasse uma espécie de “nuvem” ao seu método.

Tal receio não se justifica, pois o conceito moderno de “postura”, necessariamente inclusivo da diferenciação entre musculatura tónica/estática e musculatura fásica/dinâmica, é do total ou quase total desconhecimento dos instrutores de Yoga. Ou seja, apesar de o Yoga ser portador de alguns princípios de intervenção “visionários”, não faz uso das noções fisiológicas mais basilares. No Yoga, trabalham-se extensores do tronco e flexores do tronco mais ou menos com a mesma disponibilidade. Tudo feito por instrutores que não são adequadamente formados, e não possuem conhecimentos suficientes sobre a distinção entre os diversos tipos musculares. Dizendo de outra maneira, o Yoga não discrimina os tipos de musculatura. Para mais, exagera o trabalho de extensão do tronco, trabucando a força da musculatura posterior, a tal musculatura que, segundo a distinção já realizada entre musculatura tónica e musculatura fásica, não deve ser fortalecida. Isto para não falar de todas aquelas torções, supostamente realizadas para diminuir o nível de cifose dorsal...cem por cento ineficazes por motivos que iremos explicar mais tarde...e cem por cento perigosas para indivíduos que sofram de hérnias discais.

Como este capítulo se dedica sobretudo à “intervenção postural”, não é minha intenção perder muito mais tempo a explicar que praticamente quase todos os desportos existentes foram inventados antes da invenção da electromiografia, e portanto, quase todos os desportos foram inventados antes de possuirmos os dados fisiológicos da distinção “tónica” vs. “fásica” que possuímos na actualidade. Também não pretendo perder muito tempo a explicar que este nosso livro se dedica sobretudo à “ginástica” e não tanto ao “desporto” em geral.

Caminhando pelas noções de “ginástica”, a referência à figura de Per Henrik Ling (1766-1839) não deixa de ser obrigatória. Na realidade, este senhor sueco, o qual viria a firmar as bases programáticas da ginástica moderna (dita “sueca”) viveu também

numa época em que pouco se sabia sobre a natureza das estruturas anatómicas e das funções por estas permitidas. Assim sendo, penso que não será difícil provar que a “ginástica moderna”, ainda parcialmente movida pelos princípios de Ling, não possui qualquer tipo de relevância para a intervenção dita “postural”. Aliás, todos aqueles princípios de ginástica centrada na mobilidade das articulações e do alongamento feito no fim do treino advêm, muito, das pressuposições deste senhor que viveu num tempo já há muito passado.

O que é perfeitamente incrível é que ainda actualmente tantos e tantos fisioterapeutas, assim como professores de educação física, continuem a mover as suas abordagens por princípios seculares. Como é possível que, dado o conhecimento do binómio “tónico vs. fásico”, tantos profissionais continuem a realizar ginásticas de correcção que se baseiam somente na mobilidade da coluna e outras zonas com deformação?... A meu ver, tal nesciência advém, única e exclusivamente, da fraca vontade de evoluir para caminhos mais desenvoltos.

Devo dizer, neste momento, que o conceito de “correcção postural”, assim como o conceito de “ginástica estática”, é extremamente lato e dado a inúmeras interpretações metodológicas. Ou seja, no início do século XX, eram já inúmeras as referências a ginástica de “correcção postural”, assim como a “ginásticas estáticas”, mas tais conceitos estavam, em termos práticos, ainda muito longe de possuírem o sentido que actualmente possuem.

Em 1947, no ano em que Françoise Mézières iria criar o seu método, esta senhora publicou a obra “La gymnastique statique”1, na qual falava um pouco sobre todas essas ginásticas “estáticas”, com objectivos pretensamente de “intervenção postural”.

Alguns destes métodos aparecem bem explicados no capítulo “Escoliose” da obra de Tribastone2.

Os métodos “ginásticos” referidos pelo autor para o tratamento das escolioses são os seguintes:

a) O método Niederhöffer, centrado no trabalho inicial de fortalecimento e continuado de relaxamento dos músculos envolvidos nos desequilíbrios musculares próprios da escoliose;

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b) O método Schroth, centrado na tentativa de colocar em equilíbrio todas as deformações envolvidas nas grandes deformidades, baseando-se em exercícios de tomada de consciência, associados a exercícios respiratórios e de treino de força muscular estática;

c) O método Klapp, baseado na colocação de posições específicas na postura de quadrupedia;

d) O método do Instituto Ortopédico Pini, baseado no trabalho em alongamento completo e encurtamento incompleto dos músculos paravertebrais do lado da concavidade, e no trabalho em encurtamento completo e em alongamento incompleto dos músculos do lado da convexidade escoliótica;

e) O método do Psoas, baseado na convicção de que as escolioses dorso-lombares e lombares podem obter uma vantagem terapêutica de contracção isométrica do músculo psoas (inserido superiormente na lombar e inferiormente na anca), do lado da concavidade escoliótica, ajudando, portanto, na diminuição dessa concavidade;

f) O método Gimnasium, baseado na utilização de um conjunto de rolos piruteantes, os quais favorecem a contracção muscular simétrica;

g) O Estruturalismo Psicomotor;

h) A Reeducação Proprioceptiva Neuromuscular;

i) A Ginástica Proprioceptiva; e

j) As Técnicas de Desequilíbrio.

Estas últimas técnicas representam a passagem, fundamental em termos históricos, de um tipo de ginástica mais centrado em princípios músculo-esqueléticos por

excelência para um tipo de ginástica mais centrado em princípios neurológicos e de treino sensorial-proprioceptivo.

Graças a Deus, Tribastone não perdeu tempo a pensar na possibilidade de o método Pilates poder ter algum tipo de efeito nas escolioses. A verdade é que um método centrado na força abdominal, mesmo sendo centrado na força dos abdominais profundos (transverso abdominal, soalho pélvico), não pode ter qualquer tipo de influência numa coisa tão complexa quanto a escoliose.

A escoliose tem sido vista como o modelo fundamental do trabalho de Reeducação Postural, pois é uma perturbação indelevelmente ligada à temática dos desequilíbrios musculares, e, muito precisamente, correlaciona-se sempre, independentemente da sua origem, com um “excesso” da musculatura posterior.

Considerada por Françoise Mézières3 como uma deformidade secundária à lordose, Souchard4 deu-lhe uma importância enorme, relegando-lhe a atenção de várias formações especializadas.

Os estudos recentes tendem a considerar a escoliose como um desequilíbrio muscular de proporções variadas, mas todas as investigações dão relevo à existência de excessos ou contraturas musculares na etiologia da escoliose idiopática (primária, sem causa aparente).5-8

Daí a lógica da ginástica estática, centrada sobretudo no trabalho de fortalecimento muscular estático ou isométrico, não possuir já grande razão de ser. Portanto a crítica formulada por Mézières em 1947 a esses diversos tipos de ginástica tem a sua conveniência.

O facto de muitas dessas “ginásticas” moverem-se já pelo paradigma da “Estática” representa um tipo de evolução que a maioria das actividades dos ginásios modernos desconhece. Ainda assim, essas mesmas ginásticas davam excessiva ênfase ao trabalho de força muscular, sem terem verdadeiramente em linha de conta o binómio “tónico vs. fásico”, negligenciando o aspecto mais importante da Estática: o alongamento.

Mais ou menos paralelamente a esse tipo de “ginásticas estáticas”, os métodos centrados no alongamento tecidular também tiveram o seu lugar na história. Mas esta não é já a “história da ginástica”, é mais a “história da terapêutica global”, associada, primacialmente e em termos ditos “miofasciais” aos osteopatas dos finais do século XIX.

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A importância do alongamento dos tecidos moles viria a ser formulada várias vezes pelos osteopatas, os quais compreendiam bem o papel do “tecido conjuntivo” no estado de tensão do corpo e no “design” das articulações e da postura global.

Em especial, uma estrutura que engloba vários componentes musculares e conjuntivos - a fáscia - viria a ser importancionalizada cabalmente pela osteopatia preliminar. E todos os diversos métodos anglo-saxónicos de trabalho postural viriam a integrar a fáscia como componente fundamental da dinâmica da Globalidade.

Em especial, devemos referir o método da “Integração estrutural” ou rolfing, criado pela Doutora Ida Rolf (1896-1979).9,10 Esta bioquímica viria a criar um método extremamente inovador, baseado no tipo de massagem mais profunda e global existente à face deste planeta. O rolfing constitui um método inovador, o qual viria a influenciar todos os métodos anglo-saxónicos ditos de “Reeducação Postural”, incluindo os “Trilhos anatómicos” de Myers11.

É de sublinhar o facto de que passei, agora a falar já do conceito de “Reeducação Postural”. Para mim, a história dos métodos de “Reeducação Postural” começa com a noção de globalidade miofascial cedida pelos osteopatas americanos dos finais do século XIX. E estes mesmos métodos viriam a desenvolver-se de forma independente tanto no mundo anglo-saxónico quanto no mundo francófono.

No mundo anglo-saxónico, os tratamentos ditos “globais” constituíram, durante muito tempo, diversos tipos de terapia manual e/ou massagem que constituem manobras analíticas no caminho da globalidade. Só muito mais tarde, os proponentes das metodologias relacionadas com os “trilhos miofasciais”, as quais são baseadas naquela que podemos designar de “teoria do sistema fascial humano”, viriam a fazer uso de métodos globais de alongamento de “cadeias musculares”. Esta noção de “trilho”, assim como o método de trabalho utilizado (centrado no alongamento global), perdeu a corrida “ideológica” para a Escola francesa, nomeadamente a escola de Mézières.

Podemos dizer que os anglo-saxónicos iniciaram as viagens de “exploração do Espaço”, mas foram os franceses os primeiros a “chegar à lua”. Pois foram estes que, pelas mãos de Françoise Mézières, criaram o conceito de “cadeia muscular”, que mais não é do que um conjunto entrelaçado de músculos e tecido conjuntivo,

organizados globalmente de modo a formar um “trilho” ou “cadeia” dominante e de natureza inquestionavelmente tónica ou estática.

Mas atenção!... Não é Françoise Mézières que vai ligar a temática científica dos músculos “tónicos vs. fásicos” à sua noção de “cadeia muscular”. Isso, quem o faz é Souchard. Mas dos méziéristas e “neo-mézièristas” falaremos bastante nos capítulos que se seguem. Aliás, os próximos capítulos são precisamente dedicados a explicar as bases da revolução mézièristas, assim como a história do surgimento dos métodos discípulos.

Para mim, a verdadeira Reeducação Postural, os verdadeiros métodos de “intervenção postural”, as únicas ginásticas com verdadeiras potencialidades em saúde e Postura, correspondem sobretudo aos métodos baseados nas teorias de Françoise Mézières, e, naquilo que podemos designar como “teoria das Cadeias musculares”.

Como já afirmei, para mim, uma ginástica só pode ser considerada “para a saúde humana” se respeitar as leis posturais, o que significa que só podemos aceitar, em nome da saúde humana, as ginásticas posturais baseadas na “teoria das Cadeias musculares”. Como é a Postura que subjuga todas as restantes normas de funcionamento corporal, como é a Postura que representa a Estrutura humana, como a Psique representa a Estrutura psíquica humana, então somente poderei considerar como “sãs” as “ginásticas” baseadas nos princípios do “alongamento global” e nunca as ginásticas estáticas sem discernimento da “teoria das Cadeias musculares” e muito menos as ginásticas do tipo fitness, dinâmicas, feitas para perder calorias, mas não para respeitar as “leis do corpo”.

Gostaria de dizer que este capítulo “fica em aberto”. Ele será terminado nos vários capítulos seguintes, principalmente nos dois próximos, nos quais falarei dos diversos métodos de Reeducação Postural.

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Bibliografia (IV)

1. Mézières, F. (1947). La gymnastique statique. Paris: Vuibert.2. Tribastone, F. (2001). Tratado de exercícios correctivos aplicados à reeducação

motora postural. São Paulo: Editora Manole.3. Mézières, F. (1949). La révolution en gymnastique orthopédique. Paris:

Vuibert.4. Souchard, Ph-E. (2003). As escolioses. Seu tratamento fisioterapêutico e

ortopédico. São Paulo: É Realizações.5. Karski, T. (1996). Contractures and growth disturbances in the hip and pelvis

as the cause of “idiopathic scoliosis”. Biomechanical considerations. Chir Narzadow Ruchu Ortop Pol, 61(2): 143-150.

6. Karski, T. (2002). Etiology of the so-called “idiophatic scoliosis”. Biomechanical explanation of spine deformity. Two groups of development of scoliosis. New rehabilitation treatment; possibility of prophylactics. Stud Health Technol Inform, 91: 37-46.

7. Karski, T. (2004). Biomechanical factors in the etiology of idiophatic scoliosis: two etiopathological groups of spinal deformities. Ortop Traumatol Rehabil, 6(6): 800-808.

8. Karski, T. (2006). Recent observations in the biomechanical etiology of so called idiophatic scoliosis. New classification of spinal deformity - I-st, II-nd and III-rd etiopathological groups. Stud Health Technol Inform, 123: 473-482.

9. Rolf, I. (1977/1990). Rolfing. A integração das estruturas humanas. São Paulo: Martins Fontes.

10. Feitis, R. Ida Rolf fala sobre rolfing e realidade física. São Paulo: Summus editorial.

11. Myers, T. (2003). Trilhos anatómicos. Meridianos miofasciais para terapeutas manuais e do movimento. São Paulo: Editora Manole.

v - o método mézières ou A revolução nA ginásticA ortoPédicA

A compreensão dos princípios do método Mézières implica o entendimento da postura sobretudo como o resultado funcional do equilíbrio “estático” entre as cadeias musculares. Mas o que são afinal as cadeias musculares? E de que maneira as mesmas contribuem para desenhar a forma do corpo, para moldar a sua estrutura? Vamos tentar responder a estas questões no contexto da explicação da história do método Mézières.

A história do método em questão releva de determinados acontecimentos e observações que são do bom conhecimento do terapeuta mézièrista.

A própria Mézières (fig. 8) conta na sua obra “L’homéopathie française”1 (traduzindo): “Quando numa magnífica manhã de primavera de 1947, nós vimos entrar no nosso consultório uma paciente apresentando uma soberba ‘cifose’, nós estávamos bem longe de pressentir que a nossa profissão e o destino de toda uma legião de doenças iam ser mudadas. Tratava-se de um sujeito longilíneo, muito alto e magro. Um colete de couro e ferro não havia conseguido parar, como esperado, a progressão da doença”.

Nesta época, a ginástica postural clássica era, como já vimos, realizada com base nas leis fisiológicas que aceiram o papel do fortalecimento muscular. E foi esse mesmo tipo de trabalho que foi feito inicialmente com a doente. Mézières refere: “Nós tentámos, naturalmente, os exercícios de ‘endireitamento’ e o trabalho dos músculos dorsais com vista a fortalecer os extensores do tronco, mas a rigidez era tal que nada era possível realizar. Deitando, então, a nossa doente, no chão, em decúbito dorsal, nós realizámos a flexão dos ombros e vimos, para nosso espanto, produzir-se uma enorme lordose lombar. Para não acrescentar um mal à cifose já presente, nós realizámos a báscula posterior da bacia e, para nosso novo espanto, vimos a hiperlordose lombar esquivar-se e deslocar-se para a nuca”1 (fig.9).

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Fig. 8 - Françoise Mézières (1909-1991).

Fig. 9 - Lógica das compensações musculares.

Depois de repetida várias vezes a experiência, Mézières e os colegas acabaram por admitir uma verdade que viria a ser anunciada como uma nova lei: que “todo o encurtamento parcial da musculatura posterior leva a um encurtamento de todo o conjunto desta musculatura”, o que corresponde à noção de cadeia muscular, onde

“toda a modificação de comprimento no sentido do alongamento ou no sentido do encurtamento de parte da musculatura tem repercussão sobre todo o conjunto”.

Françoise Mézières acrescenta: “Tanto que como o alongamento da musculatura lombar se traduzia pelo encurtamento da curvatura cervical, a lei é que o alongamento de um qualquer músculo posterior leva ao encurtamento do conjunto de toda a musculatura posterior”1. É o que costumamos chamar de compensação.

“Então, para esta paciente, nenhum músculo posterior era demasiadamente fraco ou longo, nem mesmo os da região cifosada; pelo contrário, todos estavam curtos, rígidos e fortes demais. O sujeito não era de forma alguma esmagado pela acção da gravidade (noção clássica), mas sim achatado pela sua própria força, a dos seus músculos dorsais. Era preciso, ao invés de fortalecer esta musculatura, descontraí-la, alongando de uma ponta à outra da coluna vertebral, como se se tratasse de uma lordose”.1

Actualmente sabemos que a “cadeia posterior”, identificada pela primeira vez por meio das observações de Mézières, inclui um comportamento dinâmico, o qual integra um conjunto muito avultado de estruturas musculares, como o diafragma e, até mesmo, a musculatura anterior. Esse comportamento dinâmico integra um conjunto de inúmeras compensações, geradas por mecanismos protectores, sendo que estes são devidos ao denominado reflexo anti-álgico à priori. Veremos, igualmente, mais à frente que a noção de “cadeia muscular” (e também dos seus constituintes) diferenciou-se um tanto com a prossecução teorética dos diversos métodos de linha “mézièrista”.

Entrámos, efectivamente, num conjunto de noções variadas que inicialmente Mézières não dominava completamente. A fisioterapeuta resumia, efectivamente, as suas observações em duas partes: (1) a musculatura posterior comporta-se como um só músculo e (2) ela é sempre forte de mais, curta de mais, potente de mais. E, para os proponentes de Mézières, o princípio preliminar de que todas as deformações têm origem num encurtamento da musculatura posterior manteve-se incólume até à data.

Deve, também, ser acrescentado que a própria Françoise Mézières terá cedo percebido que existia uma sinergia importante entre a musculatura posterior e o diafragma e os músculos rotadores internos dos membros (cadeia muscular ântero-interna).

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Assim sendo, a desmontagem dos princípios far-se-ia na forma de um “tripé de intervenção”, com vista à harmonização muscular na forma da morfologia perfeita ou bela forma: deslordose, expiração e desrotação (fig. 10 e fig. 11).

Fig. 10 - Françoise Mézières tratando uma doente. É visível a aplicação do princípio da deslordose.

Fig. 11 - Françoise Mézières deslordosando e desrodando uma doente.

Da observação iniciática de Mézières1 do paciente cifótico, referida atrás (conhecida como o “princípio de observação”), Mézières tira diversas conclusões (mantemos, agora, o original francês): (1) « Il n’est que des lordoses »: a cifose (e a escoliose) não é possível sem uma acentuação das lordoses e é vista como a sua consequência. A lordose constitui a origem de todas as deformações do ráquis e dos membros. Para além disso, ela ocorre em todos os movimentos de extensão e nos movimentos de grande amplitude dos membros. (2) « La lordose est mobile et coulisse sur le corps tel un anneau sur une tringle à rideau. » (3) « Les membres sont solidaires du tronc et le creux poplité constitue, en dehors du rachis, une troisième concavité postérieure liée aux lordoses rachidiennes. » (4) « Tout est compensation lordotique. »

(5) « La lordose s’accompagne toujours de la rotation interne des membres. » (6) « La morphologie thoracique est conditionnée par certains mouvements de la tête et des membres supérieurs. » (7) « La lordose coexiste toujours avec le blocage du diaphragme en inspiration. »

As conclusões de Mézières levaram a que a autora enunciasse oficialmente um conjunto de seis leis na sua obra “Originalité de la Méthode Mézières” (1984)2: Primeira lei: « Les nombreux muscles postérieurs se comportent comme un seul et même muscle (Une chaîne musculaire se définira comme étant un ensemble de muscles polyarticulaires et de même direction, qui se succèdent en s’enjambant comme les tuiles d’u toit) »; Segunda lei: « Les muscles des chaînes sont trop toniques et trop courts (il n’y a donc rien qu’il faille renforcer) »; Terceira lei: « Toute action localisée, aussi bien élongation que raccourcissement, provoque instantanément le raccourcissement de l’ensemble du système »; Quarta lei: « Toute opposition à ce raccourcissement provoque instantanément des latérofléxions et des rotations du rachis et des membres (lógica das compensações) »; Quinta lei: « La rotation des membres due à l’hypertonie des chaînes s’effectue toujours en dedans »; Sexta lei: « Toute élongation, détorsion, douleur, tout effort implique instantanément le blocage respiratoire en inspiration. »

O esquema 1, apresentado seguidamente, representa o “anel Mézières”, o qual resume os princípios referidos anteriormente.

esquemA 1: “Anel mézières”

A musculatura posterior é demasiado forte e demasiado curta.

Porque a musculatura posterior se comporta como um só músculo.

CompensaçõesDevido ao reflexo anti-álgico à priori

¶ Deformações congénitas ou primitivas¶ Patologias¶ Trauma¶ Dores

Deformações

Em lordose

Rotação dos membros

Bloqueio diafragmático

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Do Esquema apresentado, podemos dizer que, para Mézières, todas as deformações ocorriam a partir de uma ou mais lordoses, sendo que esta(s) estaria(m) associada(s) à rotação dos membros (relacionada com o encurtamento do psoas e outros músculos sinergistas) e ao bloqueio diafragmático (associado ao encurtamento do diafragma e dos diversos músculos suspensores das vísceras, incluindo musculatura sinergista com inserção superior na coluna cervical). O tratamento segundo Mézières corresponderia precisamente a toda a acção de alongamento muscular global e prolongado com vista à deslordose, desrotação e desbloqueio diafragmático (os princípios fundamentais de trabalho de Mézières, assim como os princípios da “revolução na ginástica ortopédica” viriam a ser formulados iniciaticamente na sua obra “Révolution en Gymnastique Orthopédique”3). O tratamento mézièrista consiste precisamente num conjunto de posturas que possibilitam o tratamento iniciático de um “bloco superior” da “cadeia posterior” (constituído pela cabeça, coluna cervical, cintura escapular e membros superiores, e coluna dorsal até T7) e, logo de seguida, ao tratamento do “bloco inferior” da “cadeia posterior” (coluna de T7 até ao cóccix, cintura pélvica e membros inferiores) (fig. 12).

Na realidade, o tratamento segundo Mézières poderá consistir meramente o trabalho respiratório com incidência na expiração, processo essencial à obtenção do relaxamento de todas as cadeias musculares (pois todas estão relacionadas, directa ou indirectamente, com o diafragma). Algo tão simples quanto o trabalho expiratório mantido durante 30 minutos ou mais pode significar a essência de um tratamento. Portanto, nada em Mézières tem a ver com a “estética” do fitness. No método Mézières (e, como veremos mais tarde, também em Souchard), as posturas de tratamento podem ser mantidas durante vinte, trinta ou mesmo quarenta minutos, pois essas mesmas posições constituem um sucedâneo de múltiplos alongamentos sucedidos no tempo, e prolongados ao longo de determinada amplitude (articular). O trabalho é, portanto, longo, árduo e algo doloroso; não tem nada a ver com o que é ou não “bonito” ou com o que é ou não “agradável”. É tudo parte de um processo extremamente controlado, ajustado e pensado.

Fig. 12 - Postura de trabalho com o método Mézières.

A cadeia muscular posterior era vista como a estrutura principal a trabalhar. O conceito de “cadeia muscular” não aparece inicialmente na obra de Mézières. As “cadeias musculares” vão sendo “formuladas” ao longo da obra da autora: a cadeia braquial, a grande cadeia posterior e a cadeia ântero-interna são postas em evidência por Mézières, enquanto que a cadeia anterior do pescoço é posta em evidência por Nisand (futuro criador da “Reconstrução Postural”) e aceite, mais tarde, por Mézières (ver figuras 13 e 14 com imagens clássicas, respectivamente das cadeias musculares posterior e anterior, e imagens seguintes das cadeias musculares tidas em conta).

Fig. 13 e fig. 14 - Imagens clássicas dos conteúdos principais das cadeias musculares anterior e posterior.

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Fig. 19 - Cadeia anterior do pescoço.

A obra e método de trabalho de Mézières parte de um postulado patogénico: « La forme conditionne la fonction et la douleur est à envisager comme un signal d’alarme d’une déformation qui aurait atteint son seuil d’acceptabilité. » O princípio terapêutico da Globalidade é proposto bastante cedo pela autora e consistia no já referido “tripé de tratamento”. As posturas de alongamento deveriam ser realizadas com “alongamento global de todas as cadeias musculares envolvidas”, através de “contracção isométrica excêntrica”.

O conceito de “cadeia muscular”, enquanto um conjunto avultado de estruturas musculares (e fasciais) que compõem um “todo” em determinadas regiões do corpo viria a ser entendido de diferentes maneiras por diferentes autores. Veremos, no próximo capítulo que os diferentes discípulos de Mézières viram as “cadeias” de diferentes maneiras. E, entretanto, só nos anos 90 é que os anglo-saxónicos viriam a falar de “trilhos” miofasciais, e, mais tarde, viriam a estabelecer a sua relação com os meridianos chineses.

O que fica do método Mézières é sobretudo a noção primacial de “cadeia muscular”, utilizada, nos tempos que correm, de forma algo gratuita, e a noção de tratamento pela Estática mediante a realização do alongamento global. Veremos que

Fig. 15 - Cadeia muscular posterior (plano superficial).

Fig. 16 - Cadeia muscular posterior (plano profundo).

Fig. 17 - Cadeia muscular ântero-interna.

Fig. 18 - Cadeia muscular braquial.

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autores como Souchard viriam a cientificar um pouco mais os conceitos de Françoise Mézières, ou pelo menos, a adaptar os seus conceitos e princípios a uma gíria mais relacionada com as “novidades” da fisiologia.

Importante será também dizer que, provavelmente, o grande postulado da Reeducação Postural consiste, precisamente, no facto de que o design músculo-esquelético, ou seja, o tipo de alinhamento e formato das estruturas articulares, está dependente do estado de tensão das cadeias musculares. Este estado de “tensão” pode referir-se a duas dimensões: (a) dimensão miofascial por excelência, a qual respeita ao comprimento dos tecidos moles, e (b) dimensão neuromuscular, a qual respeita não tanto à flexibilidade miofascial mas mais à tonicidade muscular, ou seja, à resistência tónica que os músculos contrapõem durante o processo de mobilização ou alongamento. A prática clínica demonstra que, por vezes, pessoas extraordinariamente flexíveis possuem deformidades. Poderíamos explicar isso com o facto de essa hiperflexibilidade significar um tipo específico de desequilíbrio muscular, estando ou não associada a uma retracção muscular a algum nível antagonista. Mas como explicar os casos de pessoas com grande flexibilidade da cadeia muscular posterior e que, mesmo assim, possuem, por exemplo, hiperlordose lombar? Ora, a meu ver há duas possibilidades de explicação: uma é a da existência de uma retracção ou encurtamento muscular numa zona muito específica da cadeia muscular posterior (neste caso, a zona lombar, ou então, relacionada com a cadeia posterior, a cadeia ântero-interna); a outra explicação reside na tal questão da tonicidade. Pode existir grande flexibilidade muscular, mas, ainda assim, esses mesmos grupos musculares podem ser particularmente “tensos” e “hipertónicos”. Essa hipertonia não tem de ser obrigatoriamente acompanhada de retracção miofascial estrutural, pelo menos num primeiro tempo...

Bibliografia (V)

1. Mézières, F. (1972). L’homéopathie française. Ed. G. DOIN. 4 - 195.2. Mézières, F. (1984). Originalité de la méthode Mézières. Paris: Maloine.3. Mézières, F. (1949). La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert.

vi – o métodos neo-mézièristAs

As técnicas ditas “mézièristas” constituem todas aquelas que advêm directa ou indirectamente do trabalho de Françoise Mézières.

Mézières ensinou a sua arte desde os finais dos anos 50 até à sua morte em 1991. Perto do fim da sua vida, ela estimou o número de terapeutas com o seu curso como sendo de cerca de mil e quinhentos. Esta cifra é meramente aproximativa e não pode deixar de ser moderada pelo facto de os seus cursos não possuírem programa, avaliação de conhecimentos ou registo das presenças dos formandos. Ou seja, não eram necessárias muitas “condições” e/ou critérios para que um terapeuta fosse considerado “mézièrista”.

A proliferação de escolas paralelas tornou-se inevitável, isto desde os anos 60. Em 1990, Mézières declarou: « Je m’indigne en voyant une multitude de kinésithérapeutes prétendre améliorer, voir enseigner ma méthode, alors qu’il y a fort peu de praticiens qui l’aient réellement assimilée »1. O fenómeno da proliferação de escolas (e do método em si) amplificou-se consideravelmente após a publicação do livro de Thérèse Bertherat2 “Le corps a ses raisons” (1976), traduzido para português para o desapropriado título “Dê saúde ao seu corpo: a saúde pela antiginástica” (Europa-América). A obra de Bertherat (ver fotografia na fig. 20) era toda ela de “inspiração” mézièrista, sendo que incluía um capítulo inteiro dedicado ao método de Mézières. Foi esta mesma obra que permitiu a criação da fama relativa ao método, aliás um tipo de “(re)conhecimento” que a própria Mézières não pretendia. Depois da obra de Bertherat ter conhecido um sucesso mundial de vendas, Mézières recebeu o prémio da “Legião de Honra”, e passou a ser ouvida na rádio e vista na televisão. A sua fama aumentou de forma descontrolada, algo que a própria Mézières não pretendia. Tanto ela como os fisioterapeutas mézièristas pretendiam manter o método dentro das lides clínicas e académicas, sendo que não gostaram que o método passasse a fazer

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parte da “opinião pública” (aliás, ainda muitos terapeutas mantêm esta tendência para manter determinada “arte de intervenção” no “segredo dos Deuses”, dificultando, muitas vezes, a assunção de um conjunto muito avultado de vantagens relativamente ao conhecimento de “novos” campos de conhecimento e terapêutica).

Fig. 20 - Thérèse Bertherat.

Quanto às obras de Bertherat, estas foram feitas para o grande público, possuindo o erro da simplificação abusiva. Porém, é de realçar a capacidade que Bertherat teve para explicar o método a todos os que não possuíam formação especializada. Para além disso, a autora teve, mais do que qualquer outro, a capacidade para compreender as verdadeiras implicações que o método Mézières possui para o mundo do desporto em geral. Em todas as suas obras, e principalmente em “Le repaire du tigre”3, Thérèse Bertherat conseguiu traduzir, com grande engenho, o conjunto dos erros e “deformações” que os métodos gímnicos modernos - e a maioria dos desportos de carácter assimétrico - alimentam. Aquilo que para Bertherat foi apelidado de “antiginástica”, e que, como já percebemos, pode ser apelidado de anti-fitness, consiste precisamente no acalentar da ideia - contra-intuitiva mas científica - de que o treino de força muscular, apanágio das práticas desportivas contemporâneas - poderá

resultar num excesso mio-fascial com consequências reumatológicas deletérias no longo prazo.

Regressando à questão da proliferação de escolas, o que aconteceu inicialmente, e fortemente após a publicação da obra de Bertherat2, é que, visto que o nome “Mézières” estava fortemente inflaccionado, todos os autores que introduziram ideias interessantes no método recusavam-se a abandonar a apelidação “Mézières”. Tudo isto levou a que Mézières acusasse os diversos autores de adulterarem o seu método e de utilizarem o seu nome como um viático1.

Por volta dos anos 80, Françoise Mézières fez proteger o seu nome através do Institut National de la Propriété Industrielle, o que obrigou os autores referidos a utilizarem outras denominações para apelidarem os seus “métodos”.

No final, alguns anos depois de Mézières ter registado o seu método, muitos outros métodos do tipo “mézièrista” surgiram: (a) vários métodos que se reclamam como sendo independentes do método Mézières, apesar da evidência demonstrar que são métodos dependentes de Mézières e pouco diferentes - teorética e pragmaticamente - do original. É o caso do método de Ph-E Souchard (um antigo assistente de Mézières, que, inclusive, ensinou e escreveu sobre o método), a Reeducação Postural Global (RPG); (b) as técnicas de antigos alunos de Mézières, ditas “método Mézières”, mas que, no fundo, apresentam diferenças significativas relativamente ao método original. É o caso dos métodos ensinados pela Association des mézièristes d’Europe, pela Association Mézièriste Internationale de Kinésithérapie (AMIK) ou pela Association des Mézièristes du Nord. O método ensinado por estas associações já não é completamente congruente com o método original, como é advogado pelas mesmas. É o resultado de uma - provavelmente lógica - evolução relativamente ao original; (c) técnicas que se reclamam como sendo de origem “mézièrista”, mas que não escondem o facto de apresentarem “evoluções” relativamente ao original – tanto no plano teórico como no plano prático - evoluções que justificam a mudança de apelidação do método. É o caso do método das “Cadeias musculares e articulares” de Godelieve Denys-Struyf (uma importante retratista e escritora sobre o método Mézières), o método das “Cadeias musculares” de Leopold Busquet e a “Reconstrução Postural” de Nisand.

Voltemos à “antiginástica” de Bertherat. Mais do que um método (de trabalho grupal), é sobretudo um conceito. Um conceito relacionado com as implicações

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- pouco percebidas - que os princípios mézièristas possuem para toda a “ginástica ortopédica”. Thérèse Bertherat não deixou de perceber, mais do que qualquer outro, que a Reeducação Postural poderia trazer uma série de implicações para o mundo da prática desportiva. Para ela, nem técnicas como a “eutonia de Gerda Alexander” ou o método reeducativo de Feldenkrais eram suficientemente bons e comparáveis à excelência de Mézières. O seu método de trabalho grupal advoga a consciencialização corporal, por meio do alongamento do tipo Mézières, como meio para atingir a excelência pessoal. É, portanto, um método de vocação quase psicoterapêutica. Ele prevê alguns dos princípios de métodos futuros como o relaxamento da sofrologia e o método “Corpo e Consciência” de Courchinoux.

Importante será dizer que Bertherat recusa o conceito de “ginástica suave” ou “ginástica doce” para o seu método (e muitos outros da linha mézièrista). A sua “ginástica” envolve imensas estruturas de âmbito psicofísico, assim como um considerável poder de concentração, não podendo ou devendo ser vista como uma ginástica “doce”.

Entretanto, referimos também a Reeducação Postural Global de Ph-E Souchard. Este é provavelmente o método mais conhecido de todos. Muita coisa pode ser dita sobre o mesmo. E é claro que não é minha intenção constituir um resumo dos princípios do método; muito pela razão de que a maioria desses princípios, supostamente “descobertos” por Souchard, são princípios do método Mézières. Convido qualquer um a ler a obra de Souchard “Le champs clos - Bases de la Rééducation Posturale Globale” e a comparar os princípios do RPG com os princípios preliminares do método Mézières. É de lamentar que Souchard raramente refira a “mãe intelectual” do seu método, ainda mais porque o mesmo ensinou o método durante dez anos e escreveu sobre o mesmo. Não é criticável que Souchard tenha criado o seu próprio método. Ainda mais porque as suas posturas de trabalho (o seu método inclui oito posturas de alongamento) são claramente inovadoras. Portanto, apesar de as posturas do RPG não acrescentarem nada em termos metodológicos ao método Mézières, são bastante imaginativas, inovadoras e eficazes (ver posturas em fig. 21).

Em termos teoréticos, Souchard vai dar mais atenção à(s) cadeia(s) anterior(s) do que Mézières; por exemplo, se para Mézières não há cifose sem lordose, para Souchard a cifose poderá constituir-se como uma entidade autónoma relativamente à lordose, com cadeias anteriores envolvidas em independência da cadeia muscular posterior. Para Souchard há dois grandes conjuntos de “retracções” globais: posterior e anterior. As posturas de trabalho variam segundo as alterações existentes. Se analisarmos bem essas “posturas” veremos que algumas são iguais às posturas de Mézières, mas esteticamente mais belas e “politicamente” mais correctas; por exemplo, na postura “sentada” é mantida a curvatura lombar neutra, enquanto que essa curvatura tende a ser “deslordosada” no método Mézières (ver exemplos nas figuras 22 a 27). Talvez Souchard tivesse em conta as novas linhas de estudos “funcionais” que privilegiam a “utilização da coluna neutra”. Aí, o autor talvez tivesse esquecido a máxima de Mézières “a saúde é o resultado da forma perfeita”, pois, segundo a filosofia dos métodos vigentes, a forma prevalece sobre a função.

Fig. 21 - Posturas do RPG (1. rã no chão com fechamento dos braços; 2. rã no ar com fechamento dos braços; 3. postura sentada; 4. rã no chão com abertura dos braços; 5. postura de pé contra a parede; 6. rã no ar com abertura dos braços; 7. postura “bailarina”; 8. postura de pé).

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Fig. 26 e fig. 27 - Postura de Mézières e a “correspondente” ‘postura sentada’ do RPG de Souchard.

Para além do que fica dito, Souchard vai ter em conta a existência de cadeias musculares um pouco diferentes das do método original. Mas aí, ele não inova tanto quanto outros autores.

Aliás, a maioria dos autores “neo-mézièristas” vai possuir uma noção de “bloco” e de “cadeia muscular” muito diferente da original. Dissemos, anteriormente, que o tratamento segundo Mézières incluía primariamente o bloco superior da cadeia posterior e só depois o bloco inferior. Ora, tanto o método de Souchard como o método de Busquet (“Cadeias musculares”) tentam dar uma ênfase de maior globalidade aos tais “blocos”, trabalhando os dois “blocos” ao mesmo tempo, na medida do possível. Aliás, enquanto o tratamento segundo Mézières é feito num colchão, o tratamento segundo Souchard acaba por ser feito - individualmente -numa mesa própria, a qual permite colocar em tensão todas as cadeias musculares simultaneamente (principalmente quando utilizado o sistema de polias).

Resta dizer que, sendo o método mais conhecido, é a obra de Souchard que tem permitido expor muitas bases da “teoria mézièrista” ou “teoria das cadeias musculares”. O autor publicou cerca de duas dezenas de obras, muitas delas com mais imagens que texto, e todas elas com uma certa tendência para ser recalcitrantes. Algumas são fundamentais, como a já citada “Le champs clos” e também a recente obra “As escolioses. Seu tratamento fisioterapêutico e ortopédico”4. Outras advêm da necessidade de criar um método mais adaptado à realidade desportiva como o “Le stretching global actif”5 (o Stretching Global Activo constitui um método grupal baseado igualmente em posturas de alongamento e princípios ditos “mézièristas”; foi feito a pensar sobretudo nas necessidades dos desportistas). As suas obras foram traduzidas para o português do Brasil e podem ser encontradas nas livrarias especializadas. Em certos países, como o Brasil, o método de Souchard é considerado muitas vezes como original, sendo que é este que acaba por ser vítima de plágios e de tantos e tantos “formadores” a ensiná-lo. Neste mesmo país em particular, o ensino do método de Souchard atingiu proporções de merchandising avassaladoras.

Importa, ainda, dizer que a noção de “cadeia muscular” para Souchard acrescenta um pouco a Mézières, no sentido em que Souchard valoriza a diferenciação entre musculatura tónica e musculatura fásica de uma forma que Mézières não valorizou.

Importa também referir que, se Souchard refere a existência de cadeias dinâmicas,

Fig. 22 e fig. 23 - Postura de Mézières (à esquerda) e a “correspondente” ‘rã no chão’ do RPG de Souchard (à direita).

Fig. 24 e fig. 25 - Postura de Mézières e a “correspondente” ‘rã no ar’ do RPG de Souchard.

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então Busquet (fig. 28) vai dizer que somente existe uma cadeia estática: a grande cadeia estática posterior. Todas as outras cadeias musculares são sobretudo de natureza dinâmica.

Fig. 28 - Leopold Busquet.

A obra de Busquet é bastante prolixa. Inicialmente, a sua única obra traduzida para português, nomeadamente a “A pubalgia”6, constitui uma importante referência dentro da linha de Mézières. Mas é estranho que Busquet praticamente nem sequer refira o nome de Mézières em praticamente toda a sua obra7.

Busquet acrescenta uma série de estruturas formadas por tecido conjuntivo à sua “cadeia estática posterior”. As outras cadeias - cadeias flexoras e extensoras, cruzadas anteriores e cruzadas posteriores - são de natureza dinâmica, ou seja, são constituídas essencialmente por músculos fásicos, os quais, nestas cadeias, permitem a interligação dinâmica e funcional entre os membros superiores e os membros inferiores.

De espantar está também a linha de cadeias “neuromeníngeas” e “viscerais” em que Busquet vai colocar realce. A sua obra possui uma grandeza de conhecimento anatómico que qualquer outro mézièrista não possui. Num ponto de vista dos métodos “neo-mézièristas” é aquele que, segundo uma linha “orto-reumatológica” possui a maior completude.

Neste ponto, é preciso referir que, se utilizássemos um critério de categorização dos métodos “neo-mézièristas” diferente do utilizado atrás, poderia dizer que há, sobretudo, métodos de linha mézièrista de natureza ortopédica (RPG e “Cadeias Musculares”), de natureza psicossomática (“Cadeias musculares e articulares” de Godelieve Denys-Struyf e “morfoanálise” de Peyrot) e métodos de natureza neurológica (“Reconstrução Postural”). Apresento, agora, esta nova categorização,

pois os métodos de Godelieve Denys-Struyf8 e de Peyrot são de tal forma “diferentes” que só com muito esforço podemos considerá-los como métodos da linha da postura e/ou da motricidade humana. Esses métodos dão importância ao ser humano na sua totalidade psíquica e somática, e relacionam, de forma ímpar, a postura com os estados psicológicos (e vice-versa). Por exemplo, Godelieve Denys-Struyf, grande retratista de posturas, delineou a existência de cinco tipos de posturas, uma dupla, portanto seis estruturas posturais, designativas de seis tipos particulares de personalidade, as quais dependeriam da cadeia muscular mais solicitada (posturas PM, AM, PA-AP, AL e PL).

A postura PM (póstero-mediana) é, provavelmente, uma das mais modelares estruturas posturais patológicas. Nesta estrutura, o equilíbrio adoptado impele o corpo para a frente, sendo que é a actividade dos músculos posteriores que garante a sustentação da atitude. É observável em todas aquelas pessoas que aparentam possuir umas costas bem esticadas, uma lordose geral facilmente verificável.

É muito comum entre os atletas e os instrutores de fitness, os quais chegam a pensar que esta é uma postura louvável.

Fig. 29 - Postura PM (póstero-mediana).

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Esta postura pode resultar de uma motivação e de uma escolha, sendo característica das pessoas que desejam possuir um grande controlo sobre a sua vida e a dos outros; é, no fundo, uma postura de combate defensivo, que favorece a ideação e a acção. O seu tratamento depende muito mais do que a inibição do seu padrão neuromuscular característico; eventualmente, na tentativa de contrariar a postura defensiva da pessoa, esta reage com ainda mais tensão, pois, no fundo, é a sua própria identidade que está em jogo. A solução parece estar na regularização das tensões, na modelagem. A musculação, algum Pilates e algum Yoga poderão agravar esta estrutura particular.

A postura AM (ântero-mediana) resulta da actividade dos grupos musculares anteriores, os quais garantem o suporte de um desequilíbrio para trás. Esta postura é extremamente característica, sendo que conjuga a hiperlordose lombar (excessivo arqueamento da coluna lombar) com uma compensatória hipercifose dorsal (inclinação anterior do tórax). As pessoas com a postura AM estruturada tendem a viver na espera, limitando o imprevisível. Se a postura é resultado de uma imposição, então ela releva de um problema de auto-estima, uma dificuldade na relação com o exterior, uma tendência ao fechamento e uma atitude de derrota.

Fig. 30 - Postura AM (ântero-mediana).

As opções terapêuticas variam consoante a natureza causativa da postura: a postura pode ser o resultado de uma “personalidade constitucional profunda e realizada”, pode resultar de uma “personalidade relacional ou de fachada” ou então pode ser o resultado de uma “personalidade adquirida mal vivida, em dificuldade”.

A dupla estrutura PA-AP (póstero-anterior - ântero-posterior) é aquela que mais se aproxima da estrutura de músculos profundos e anti-gravíticos, contribuindo, portanto, para a manutenção de determinado alinhamento vertebral e determinado padrão de achatamento articular. Esse achatamento é mínimo se existir um bom equilíbrio corporal. Por outro lado, se existir um fraco equilíbrio, criar-se-á um padrão específico de trabalho muscular profundo exagerado e desinibido, de modo a contrariar a tendência para a queda, criador de tensões e diminuidor da mobilidade articular. Uma atitude PA-AP não forçada, correcta, alinhada, rigorosa e, no entanto, flexível e agradável, constitui o padrão ideal, estando associado às personalidades mais flexíveis e assertivas. Em especial, a estrutura AP constitui uma espécie de estrela central de todas as outras estruturas, o eixo de todas as personalidades, representando uma personalidade lançada para a maturidade, para a liberdade responsável e consciente.

Fig. 31 - Postura PA-AP (póstero-anterior - ântero-posterior).

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A postura AP é aquela que precisa mais de ser preservada, pois é o padrão que permite a acção e a busca práxica da realização; é a estrutura que busca o devir, permitindo o confronto das forças depressivas da morte. A ginástica, o desporto em geral, a dança e as artes marciais, realizados num espírito lúdico e despreocupado, permitem o desabrochar da AP. Mas o seu desenvolvimento está também dependente do acolhimento da mãe AM, do apoio do pai PM e do suporte celestial PA.

Restam as estruturas secundárias AL (ântero-lateral) e PL (póstero-lateral), vistas nos planos frontal e horizontal (as cadeias mais dinâmicas e relacionais, semelhantes às cadeias cruzadas de Leopold Busquet). A primeira associa-se ao fechamento e à retracção, ao medo e à introversão. Já a segunda associa-se a um outro tipo de tensão, mais posterior, mas permite a abertura, a expansão e a extroversão (é este o tipo de cadeia que é mais trabalhada nas extensões, aberturas e torções do Yoga). Possivelmente, estas duas estruturas interagem no mesmo corpo; AL relacionada com a dominância do membro superior direito e PL relacionada com o apoio no membro inferior esquerdo (isto, claro, para os indivíduos destros). A dinâmica destas estruturas importa à compreensão de todas as assimetrias corporais, assim como das escolioses.

Fig. 32 - Postura AL (ântero-lateral).

Fig. 33 - Postura PL (póstero-lateral).

Estas estruturas pertencem ao eixo horizontal, um eixo relacional, enquanto que as anteriores pertenciam ao eixo vertical da personalidade.

O trabalho global das “cadeias musculares e articulares” GDS impõe a sempre impartível relação do terapeuta com o doente e deste com o seu próprio corpo. O trabalho terapêutico deve partir da sempre necessária consciencialização da estrutura, de modo a perceber o seu dinamismo e a inverter alguns dos aspectos que caracterizam a sua patologia. E nunca devemos esquecer que todo o indivíduo é irredutível a uma tipologia, resultando o seu padrão postural e comportamental de uma combinação muito própria de elementos das diversas estruturas tratadas.

É de Godelieve Denys-Struyf a frase “a estrutura governa a função e submete o psiquismo”. A sua concepção de postura enquanto entidade psicossomática holística é fundamental à compreensão integral do ser humano. A sua “visão” releva de uma orientação mais psicologista do método Mézières; e leva-nos a entender até que ponto o conceito de Mézières é abrangente e tende para uma visão globalista do ser humano, visão - aliás, também posta em evidência por Thérèse Bertherat - mais próxima das abordagens psico-corporais e psicomotricistas do que da actividade desportiva tida no seu frio “fisicalismo” quase anti-humano.

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Em matéria de métodos neo-mézièristas, o mais desconhecido de todos é, indubitavelmente, a Reconstrução Postura 9-18 de Nisand (fig. 34), o que é bastante injusto, pois este é simultaneamente o mais fiel e o mais evoluído dos métodos pós-Mézières. É, como já dissemos, o mais fiel dos métodos, pois é aquele que mais respeita as bases teoréticas do método original; é, também, o mais científico dos métodos, pois, estando ligado à Universidade Louis Pasteur - Strasbourg, é aquele que mais respeita os critérios de uma necessária cientificidade; é também o método com os princípios mais inteligentes, pois foi o único que - finalmente - compreendeu a “postura” enquanto entidade primacialmente neurológica. Ora, era preciso ter surgido este método em 1992 para finalmente percebermos - os poucos que sabem sequer da existência dele - que a postura não é talvez tanto o resultado de uma maior ou menor flexibilidade mio-fascial; se calhar, a postura depende, mais do que da elasticidade dos músculos, do seu tónus (e jamais podemos esquecer que é através das variações de tónus que o sistema nervoso comunica com o sistema muscular).

Fig. 34 - Michaël Nisand, pai da Reconstrução Postural.

A Reconstrução Postural difere do método Mézières em diversos aspectos, nomeadamente: (a) Enquanto Mézières se referia à existência de três cadeias musculares posturais (a grande cadeia posterior, a cadeia ântero-interna - diafragma e psoas - e a cadeia braquial), Nisand acrescenta e descreve pormenorizadamente uma nova cadeia muscular - a cadeia anterior do pescoço. (b) Nisand propõe

uma nova interpretação da lógica das compensações corporais, salientando a importância de um conjunto de respostas neurológicas aquando do movimento (respostas evocadas) e o contributo dos centros neurológicos centrais para o surgimento das deformidades. Assim sendo, o tratamento passa não só pelo alongamento global das cadeias musculares (Mézières), mas também pelo trabalho de consciencialização corporal com base na estimulação neuro-sensorial (ou seja, na modificação do padrão de excitabilidade muscular das cadeias posturais), de modo a que os alongamentos possuam um efeito de neuroplasticidade adaptativa eficaz e não só um efeito de modificabilidade temporária do tónus. (c) O método da Reconstrução Postural propõe uma outra forma de interpretar o aparecimento de dor. A dor não tem origem na própria deformidade, mas sim na incapacidade que a estrutura hipertónica (rígida) tem de se deformar. A partir destas diferenças, o método de tratamento por Mézières por meio do estiramento em “contracção isométrica excêntrica” transforma-se num meio de tratamento por “solicitação activa induzida”, ou seja, da postura trabalhada passivamente passa-se para um trabalho de carácter mais activo, mediante a facilitação de padrões de postura por meio de “pontos-chave” (à semelhança do papel dos mesmos “pontos-chave de controlo” do método Bobath de tratamento das disfunções neurológicas), partes do corpo que são sujeitas a movimentos de grande amplitude com o objectivo de induzir ou solicitar determinado padrão postural. As posturas em Reconstrução Postural são obtidas, portanto, a partir de pontos periféricos precisos, e são mantidas não por tempos necessariamente muito prolongados (Mézières), mas até ao ponto em que se verifique a normalização tónica. O agravamento da dismorfia é, ao contrário do que ocorre com o método Mézières, uma condição obrigatória para se obter a postura normal, é um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural “correcto”. Diferenças metodológicas levam a diferentes técnicas, sendo que muitas das manobras mézièristas foram modificadas ou suprimidas: o mézièrista tende a evitar as compensações, enquanto que o “reconstrutor” tende a lidar com todas as posturas que possam ser efectivas no sentido de se obter uma inibição do padrão; o mézièrista identifica a dismorfia como algo “anormal”, enquanto que o reconstrutor identifica a dismorfia como um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural vantajoso; o mézièrista tende a encontrar uma postura correctiva e a mantê-la o

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máximo de tempo possível, enquanto que o reconstrutor tende a manter a “postura” só até que exista exaustão e extinção da resposta evocada (normalização tónica); as autoposturas são impensáveis na Reconstrução Postural (o que levanta uma série de questões relativamente ao trabalho de Reeducação postural em grupo), pois o próprio sujeito não consegue educar as suas próprias reacções tónicas correctivas; os proponentes da Reconstrução Postural não falam de “correcção morfológica” como os mézièristas, mas sim de “restauração morfológica”, a qual tem por base não o alongamento mio-fascial correctivo mas sim o alongamento com vista à normalização de padrões de activação tónica das cadeias musculares.

Com todas estas inovações, o modelo de Nisand (porque é de um “modelo” que efectivamente se trata) constitui o mais inovador de todos os métodos de Reeducação Postural. É, provavelmente, o mais neurológico dos métodos e também o mais contra-intuitivo dos mesmos.

Infelizmente, de todos os métodos, este é o único que carece de uma atitude de “comercialização” e de exploração para além da Universidade Louis Pasteur. Ou seja, é um método condenado à reclusão teorética. O que não pode deixar de se considerar como antitético.

Vemos, portanto, que, em termos de evolução, os métodos de Reeducação Postural de linha mais orto-reumatológica evoluem para uma visão da “cadeia muscular” cada vez mais próxima da visão fascial. É o caso dos métodos anglo-saxónicos e do método de Busquet, estes bem comparáveis entre si.

Dentro desta linha evolutiva, podemos incluir a Integração Funcional de Bienfait19, método que irá valorizar o trabalho analítico de alongamento miofascial e de descompressão articular (por meio daquilo que o autor designa de pompages). Este método vem revalorizar o papel da terapia manual, salientando a necessidade de uma intervenção necessariamente individualizada do doente.

Por outro lado, outra evolução possível constitui a via neurológica. Ou seja, o que a Reconstrução Postural vem dizer é que o tipo de “diminuição dos excessos musculares” que é necessária constitui a “inibição do tónus”. Podemos, igualmente, dar, de novo, ênfase a métodos de cariz proprioceptivo, questionando a eficácia de actividades mais lúdicas, psicodramáticas, psicomotricistas e psicossomáticas, as quais podem, de alguma maneira interferir com o “estado tónico” do sujeito.

As implicações que este - e todos os outros métodos - possuem para a “dinâmica desportiva” e do axioma “exercício é saúde” são muitas e carecem de uma análise em capítulo próprio (capítulo VII).

Mas gostaria de acrescentar mais um ponto a este capítulo. Temos falado de diferentes métodos de trabalho. Temos referido diferentes paradigmas de intervenção. Mas, se calhar, não temos sido suficientemente claros em afirmar que os diferentes métodos devem ser entendidos sempre dentro de determinado contexto sócio-histórico, não deixando, obviamente, de existir uma série de elementos em comum entre métodos supostamente divergentes. Por exemplo, as “cadeias musculares” são semelhantes aos “trilhos miofasciais”, e, ainda assim os conceitos desenvolveram-se de forma independente. Outro exemplo, os pontos corporais de trabalho na Reconstrução Postural fazem lembrar os “pontos-chave de controle” do método Bobath (que mais não são do que partes do corpo - mais sensitivas - utilizadas para induzir o movimento periférico). As pompages de Bienfait lembram muito certas tracções do método ortopédico de Cyriax. E muitos dos princípios da Reeducação Postural são, como já tivemos oportunidade de ver, semelhantes aos princípios do Yoga. E podíamos continuar eternamente. Portanto, daqui podemos tirar uma série de conclusões. E uma delas é a de que devemos, sobretudo, tentar compreender os aspectos mais simplistas dos métodos, fazendo a necessária integração mentalista, aumentando a nossa compreensão basilar das coisas e diminuindo a nossa insegurança (a mesma que nos leva a fazer tantas e tantas formações pós-graduadas, ajudando formadores e empresas a encherem os bolsos de dinheiro). Outra conclusão é a de que constitui uma obrigação ética e intelectual aquela que podemos designar a “necessidade de integração metodológica”; na realidade, é pena que tantos fisioterapeutas não realizem esse espantoso trabalho de comparação dos diferentes métodos, tentando integrar conceitos e mostrar semelhanças metodológicas. Por exemplo, tanto o conceito de Bobath como a teoria das “Cadeias musculares”, métodos desenvolvidos de forma independente, possuem uma mesma forma de ver a práxis neuromotora, nomeadamente a inibição da tensão prévia ao processo de actividade motora dita “facilitada”. Por exemplo, Bobath era totalmente contra a utilização de pesos nos seus doentes neurológicos, pois a actividade resistida alimentava a “actividade anormal”, as “compensações” e as “reacções associadas”

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relacionadas com a hipertonia. Ora, vejam os pontos em comum com os princípios do “conceito de Mézières”. É fundamental que alguém pegue nos dois conceitos e crie uma teoria, simples e abrangente, da actividade muscular segundo a perspectiva Globalista. Esse é um passo para o futuro!

Bibliografia (VI)

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ortopédico. São Paulo: É Realizações.5. Souchard, Ph-E. (1996). O stretching global ativo. A reeducação postural global

a serviço do esporte. São Paulo: Editora Manole LTDA.6. Busquet, L. (1985). A pubalgia. Lisboa: Europress.7. Busquet, L. (1996). Les chaînes musculaires. Kine Plus 57: 19-25.8. Denys-Struyf, G. (1995). Les chaînes musculaires et articulaires: la méthode

G.D.S. Paris: Maloine.9. Nisand, M. (1997). Le traitement des algies vertébrales par la Reconstruction

Posturale. La lettre du médecin rééducateur.10. Publication périodique de l’ANMSR (Association Nationale des Médecins

spécialistes en Rééducation).11. Nisand, M. (1997). Formation continue: Premier stage de Reconstruction

Posturale à Genève. Le Magazine 97.12. Nisand, M. (1997). La Reconstruction Posturale: une physiothérapie normative

de la forme. Mains Libres, la revue Romande de physiothérapie.13. Jesel, M. (1999). Reconstruction Posturale. Concept; traitement des

dysmorphismes et des algies du tronc et des membres. KS 387.14. Jesel, M.; Callens, C.; Nisand, M. (2001). Rééducation fonctionnelle dans les

cervicalgies communes selon la méthode de reconstruction posturale: concept et aspect technique. KS 417.

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18. Nisand, M. (2006). La méthode Mézières: un concept révolutionnaire. Paris Éditions Josette Lyon.

19. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos. Fisiologia, patologia e tratamento fisioterápico (3ª edição). São Paulo: Summus editorial.

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vii - imPlicAções dA reeducAção PosturAl PArA A PráticA desPortivA

Começaria por dizer que, dentro do conjunto dos métodos neo-mézièristas, há aqueles que seguem uma linha mais comercial de divulgação e aqueles que seguem uma linha mais conservadora de desenvolvimento. Em particular, métodos como a “antiginástica” de Bertherat e a “Reeducação Postural Global” auferem de uma fama a nível mundial, a qual tem permitido criar um número incomensurável de cursos e formações com preços simplesmente indescritíveis. Para além disso, tanto a “antiginástica” quanto o “Stretching Global Activo”, filho do RPG, tornaram-se métodos de utilização grupal e massificada, a qual, não querendo diminuir a sua importância, não possui o mesmo grau de eficácia que os métodos verdadeiramente individuais.

Diria que todos os métodos neo-mézièristas possuem a robustez e a vitalidade de uma metodologia inovadora, que não deixou de possuir, principalmente no mundo francófono, a capacidade de criar uma verdadeira “revolução na ginástica ortopédica”. Por motivos de coerência histórica, de parcimónia científica e de pureza metodológica, diria que é devido ao método Mézières o seu necessário e inalienável reconhecimento enquanto método fundador de um conceito também ele fundador. Não critico, contudo, todos os esforços de inovação, tanto teorética quanto pragmática, relativamente ao mais puro método original. A evolução constitui um caracter especificamente humano, e de tal forma o é, que é raro um método não brotar numa nova linha mais ou menos independente, mais ou menos autónoma, de métodos-filhos e /ou novas metodologias.

Direi, contudo, que o conceito de trabalho postural com base no alongamento global das estruturas miofasciais (organizadas em cadeias) com vista à reestruturação morfológica caracteriza a totalidade dos métodos de linha mézièrista, pelo menos aqueles que se relacionam mais com os profissionais da motricidade.

É, igualmente, preciso entender que a base científica dos métodos em análise é real, sendo que os estudos que envolvem a electromiografia não deixam margem para dúvidas de que a actividade tónica dos músculos de natureza postural é mais persistente e menos “moldável” que a actividade tónica dos músculos de natureza fásica. O mesmo será dizer que a diferenciação teorética da musculatura humana em dois grandes tipos - músculos tónicos/posturais e músculos fásicos/dinâmicos - essencial para a prescrição metodológica dos métodos da linha de Mézières, é já considerada mais “facto” que “teoria”, o que releva de uma grande importância para a consubstanciação conceptual dos métodos de trabalho em Mézières. Claro que não é despiciendo o argumento - utilizado por tantos - de que o facto de existirem músculos de natureza postural não obriga à utilização de uma ginástica do tipo “estática”. Ora, penso que esta questão começa a ganhar novos contornos científicos na actualidade, sendo que tem sido inalienavelmente demonstrado que os músculos de natureza “tónica” são mais “sensíveis” a um trabalho também ele tónico, enquanto que os músculos de natureza “fásica” são mais “sensíveis” a um trabalho dinâmico (que os diferentes desportos de resistência e força/potência muscular tão bem demonstram). Aliás, o conceito de ginástica “estática” e/ou “postural” é anterior à revolução de Mézières, sendo que ganhou importantes contornos científicos com a introdução e desenvolvimento do método Pilates. Não devemos esquecer, igualmente, que a primeira obra de Françoise Mézières - “La gymnastique statique” (1947) - é anterior ao princípio de observação que levaria à criação do seu método.

Tudo isto demonstra que o conceito de “ginástica estática” não é derivado de Mézières e da sua revolução. O que realmente deriva da “revolução mézièrista” é a nova metodologia de “ginástica estática”, a qual, até ali se centrava especialmente no treino de força muscular, e a partir dali, viria a centrar-se no trabalho de alongamento muscular global.

Importante será também dizer que a ideia de que a postura e/ou morfologia estaria relacionada com o estado de comprimento-tensão dos grupos musculares também não é apanágio criador de Mézières, pois, no mundo anglo-saxónico, a dita ideia já vigorava nas ginásticas mais clássicas. Aliás, durante décadas, acreditou-se que o trabalho do transverso abdominal ou dos rectos abdominais levaria à diminuição da hiperlordose lombar (já, naqueles tempos pré-Mézières, considerada como “malade

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postural”). Só mais tarde, Souchard viria a deixar bem claro - melhor que a própria Françoise Mézières - que o treino, seja estático, seja dinâmico, de um qualquer músculo e/ou grupo muscular jamais poderá permitir o trabalho de “correcção” de uma deformidade, mesmo que seja funcional. O autor associa isso ao facto de não existir, no nosso corpo, um sistema muscular de “antagonismo puro”, ou seja, a acção de determinados músculos não poderá contrariar completamente a acção de outros conjuntos musculares. Eu acrescentaria que, sendo o músculo transverso abdominal um músculo de inserção posterior lombar e anterior abdominal, ele jamais poderia ter o efeito de “deslordosar” a coluna (aliás, os mézièristas mais clássicos até acreditam que o trabalho do transverso abdominal tem um efeito lordosante e que, como tal, deve ser evitado).

Fig. 35 - Músculo transverso abdominal.

Quanto aos músculos flexores dinâmicos do tronco, sendo dinâmicos nunca poderiam contrariar a acção de uma musculatura estática (posterior).

Fig. 36 - Músculos superficiais da parede abdominal (Netter).

Este é um bom argumento para tantos e tantos desportistas e terapeutas que acreditam que o treino dos músculos anteriores dinâmicos do tronco (rectos abdominais) poderá fazer com que aumente a cifose dorsal. Como poderá aumentar a cifose dorsal por esse mecanismo, ou seja, como poderá constituir-se determinado design postural se estamos a falar de músculos de natureza dinâmica e não estática/postural?...

Outra coisa que é importante ter em conta diz respeito ao método Pilates. Sendo essencialmente um método de treino da força abdominal profunda - e da capacidade de activação dessa mesma musculatura -, principalmente do músculo transverso abdominal, temos de colocar a hipótese de a actividade deste mesmo músculo ter realmente um efeito lordosante, e, portanto, o Pilates passar a ser uma actividade contra-indicada ao trabalho de Reeducação Postural propriamente dito... E já que falamos de Pilates, podemos igualmente citar que a sua prática, por este e outros motivos, não faz sentido se não incluir o trabalho de alongamento ou stretching, ainda mais porque os níveis mais avançados do treino de Pilates implicam a existência de um certo nível de flexibilidade muscular.

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Para perceber o perigo do treino abdominal, próprio de várias actividades físicas, incluindo o Pilates, é preciso ter uma ideia da relação biomecânica que os abdominais estabelecem com outras áreas corporais. Na realidade, os abdominais, principalmente os profundos, possuem uma função importante de estabilização da coluna lombar. Se a exigência sobre a lombar aumenta - por exemplo, pela acção de afastamento do membro inferior - os abdominais contraem e fornecem um “ponto fixo” à coluna lombar. Porém, sempre que a exigência sobre a coluna for muito grande os abdominais perdem a capacidade para realizar tal estabilização, aumentando o nível de deformidade na lombar, que é o que muitas vezes acontece num treino abusivo e descontrolado do Pilates. Por outro lado, um bom instrutor de Pilates será capaz de se aperceber do perigo de “deformação” quando ele estiver próximo de acontecer. Mas há ainda uma outra realidade a ter em conta: é que, por melhor que o instrutor seja, não é possível eliminar muitas das compensações que o corpo realiza aquando do treino abdominal, o que torna tudo muito mais contra-indicado ou impróprio para a saúde dita “postural”.

Fig. 37 - Treino abdominal (excessivo) com compensação lombar.

Fig. 38 - Prancha de Pilates com excessiva activação lombar.

Portanto, até aqui já citei uma série de mitos e as contradições existentes nos mesmos. Mas não fiquemos por aqui. Vamos analisar a ideia - clássica e hegemónica - de que o trabalho de “correcção postural” carece de “fortalecimento muscular”. Ora, o que a experiência dos mézièristas tem demonstrado é que o fortalecimento muscular, mesmo que somente dirigido à musculatura fásica (o que é, aliás, impossível, pois não há forma de isolar completamente o trabalho da musculatura dinâmica relativamente à musculatura postural), tem por resultado o aumento do tónus da musculatura de natureza postural. Ora, é esse mesmo exagero tónico que se pretende inibir com o trabalho de “reeducação postural”. Portanto, por exemplo, o trabalho de fortalecimento dos extensores do tronco, com vista à correcção de uma hipercifose dorsal, é cem por cento irracional. E isto por várias razões. Primeiro que tudo, como se pode fortalecer músculos essencialmente tónicos (músculos extensores do tronco e musculatura adutora das omoplatas) com exercícios de fortalecimento dinâmico? Não é muito lógico, pelas razões já apresentadas. Mas, ainda assim, visto que dissemos que o trabalho dos músculos fásicos comportaria o trabalho co-sinérgico dos músculos posturais, ainda podemos pensar na possibilidade de exercícios de fortalecimento abdominal e de fortalecimento dos extensores do tronco poderem ter como resultado o encurtamento dos músculos extensores. A experiência tem demonstrado que, geralmente, esse trabalho de força irá somente levar à criação de uma nova deformidade. Ou seja, a correcção da cifose, ou não é simplesmente conseguida, ou então, é conseguida à custa do encurtamento da musculatura extensora, ou seja, à custa de uma nova deformidade (com todas as

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consequências sintomáticas que tal acarretará). O trabalho de força muscular, pura e simplesmente, não é correctivo, pois tem sempre como consequência a criação de tensão numa musculatura de natureza já por si hipertónica. Aqui surgem muitas questões. Uma delas consiste no facto de a maioria dos atletas possuir um semblante de “endireitamento” do tronco, belo e atractivo. Ora, esse mesmo “endireitamento” do tronco constitui, a meu ver, algo comparável ao açúcar da alimentação: é belo, sabe bem, tem bom aspecto (pois já foi útil em tempos passados), mas faz mal (pois já não se adequa às necessidades do Homem presente). Os atletas, pelo facto de possuírem intensa actividade física, desenvolvem muita tensão nos extensores do tronco. Isto acontece, claro está, porque todo o trabalho de força muscular - no qual é exímio o conjunto de desportos contemporâneos - irá criar a hegemonia de tensão da musculatura postural, ou seja, o trabalho desportivo irá super-solicitar o trabalho postural. Isto leva a que os extensores do tronco da maioria dos atletas fiquem demasiadamente encurtados, dando-lhes uma aparência de “direitos”. Ou seja, a grande maioria dos atletas possui o tal aspecto hegemonicamente belo, à custa de uma deformidade (de retracção muscular) em rectificação ou” lordose dorsal”. Talvez isto explique que estes mesmos atletas “direitinhos” sejam altamente vulneráveis a dorsalgias e cervicalgias, assim como ao aparecimento de hérnias discais.

Fig. 39 - “Agachamento”, exercício paradigmático da musculação com excessivo trabalho de extensão.

Por tudo o que fica dito, e por muito mais, posso e devo dizer que o “endireitamento postural” constitui uma ideia supramente mitificada. Não só a “bela forma” ou “postura correcta” não consiste numa “postura direita” (ao contrário do que quase toda a gente acredita, incluindo especialistas da área), como essa tal “postura direita” constitui um erro postural inacreditavelmente dominante. Se há coisa que os mézièristas demonstraram, sem margem para dúvidas, é que a ideia de que devemos manter uma “postura direita” e de que toda a nossa higiene postural se relaciona com o “estar direito” constitui um mero e estulto mito. Tendo em conta a natureza funcional da cadeia muscular posterior, a postura “correcta” consiste, na realidade, em toda a postura que permita o alongamento muscular posterior (sem exageros, é claro...) e o trabalho de inibição tónica das hegemonias musculares prevalecentes. Assim sendo, é bastante comum os mézièristas recomendarem aos seus doentes que estes se sentem com a lombar bem apoiada, se não cifosada. Mais tarde, Souchard, temendo o nível de contra-intuição presente nesta ideia, viria a trair os princípios de higiene postural mézièrista, preferindo, muitas vezes, a colocação da coluna lombar numa posição neutra (ou seja, com manutenção da curvatura lordótica “normal”). Diria que o treino de correcção de uma hiperlordose somente poderá ser conseguido com o trabalho de ablação total da curvatura, o que corresponde não propriamente à inversão da curvatura (como muitos críticos de Mézières têm sugerido), mas sim à eliminação de qualquer nível de lordose, mesmo a funcional (ou seja, consiste, mais uma vez, no princípio mais genuinamente mézièrista, a deslordose). Mas voltando às questões da “higiene postural”, talvez seja pertinente dizer que, para os mézièristas, a postura “ideal” de “descanso” consiste, na realidade, na postura do “cocheiro” (estou a referir-me verdadeiramente ao “curvado” cocheiro). Todo o trabalho de “endireitamento” somente irá criar uma hiper-solicitação do trabalho muscular da cadeia muscular posterior, o que, a longo prazo irá traduzir-se na fadiga e consequente “encurvamento”. Ou seja, o trabalho de força da musculatura extensora irá, pela natureza de trabalho neuromuscular desta musculatura, criar um nível de fadiga tal, que a pessoa irá, lentamente tender para a cifose. Quer isto dizer que, ao contrário do que a intuição nos poderia fazer pensar, o trabalho dos extensores do tronco ainda vai aumentar mais a cifose (a não ser claro que, como acontece com os desportistas, se crie a retracção hegemónica da

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musculatura entre as omoplatas, o que levaria a um “endireitamento patológico”). É preciso entender que a capacidade de “endireitamento postural” está dependente do bom funcionamento tónico da musculatura extensora postural, o que, tendo em conta o que sabemos do funcionamento deste tipo de músculos, significa a capacidade de manter a contracção por períodos prolongados de tempo sem criar fadiga. Ou seja, o “endireitamento postural” será tanto maior quanto mais flexíveis forem os músculos posturais; a capacidade para manter a contracção está fortemente dependente da capacidade elástica da musculatura. Significa, então, que, quanto mais flexível for a musculatura postural, mais capacidade tem a mesma de gerar uma contracção anti-gravítica persistente. Aliás, as minhas observações têm-me dado a entender que a facilidade para nos mantermos “direitos” advém do comprimento da cadeia muscular posterior, ou seja, advém da flexibilidade da musculatura posterior. E isto não é novidade alguma, pois, qualquer bom observador poderá facilmente ver a diferença na forma como uma pessoa flexível se senta, relativamente a uma pessoa menos flexível. Compare-se, por exemplo, as senhoras com os senhores. Quem tem, geralmente, maior capacidade para manter uma postura sentada direita (com pernas esticadas)? As senhoras, que são mais flexíveis? Ou os senhores, que são mais “fortes”?... O princípio mais primacial de observação leva-nos a verificar que são as senhoras as que possuem mais facilidade em obter determinadas posturas, o que advém da sua maior flexibilidade miofascial.

Recomendo, em termos de treino desportivo, a realização dos diversos exercícios com diminuição da curvatura lombar. Mas mesmo assumindo que um bom instrutor ajuda o seu aluno a manter uma postura de “deslordose”, não há cuidado algum que retire a essa mesma actividade física a sua tendência para o “fortalecimento”, o estatuto de “deformadora”. Ou seja, é real que muitos instrutores actuais ajudam os seus alunos a diminuir o nível de tensão sobre a coluna, mandando os utentes dobrarem os joelhos ou deslordosarem a lombar. É, admito, uma evolução positiva no campo do fitness. Mas, ainda assim, de pouco serve tal evolução, pois o carácter “deformador” de certos desportos, como as actividades resistidas, está incutido no contexto próprio dessas actividades.

Gostaria, entretanto, de referir, mais uma vez, o Pilates. Como actividade de força do centro do corpo, diria que, pelo facto de o Pilates trabalhar a força “de dentro para

fora”, esta actividade é, de facto, inovadora, constituindo, a meu ver, o menor mal entre vários males. Mas, à semelhança do Yoga e de muitas outras actividades físicas, há várias escolas de Pilates. De uma forma simplista diria que as escolas clássicas defendem um tipo de treino mais “duro”, com a lombar necessariamente sempre assente no colchão, enquanto que as escolas modernas defendem a realização de uma prática menos “dura”, e portanto, com menos compensações, mas com a coluna lombar em posição neutra. Ora, por motivos já apresentados, defendo o trabalho do Pilates tal como protagonizado pelas escolas modernas, ou seja, um Pilates controlado, com menor probabilidade de deformação e/ou compensação corpórea. Com o risco de ser menos interessante, é indubitável que o Pilates apresentado por certas escolas como o “Pilates Institute” é exponencialmente mais seguro que muitos outros. Porém, não concordo, de forma alguma, com o princípio da “coluna neutra”. Entendo, pelos já apresentados motivos relacionados com a “deslordose”, que o Pilates deve ser praticado sempre com a coluna lombar completamente assente no colchão ou, em geral, em estado de “deslordose” ou alongamento. Trata-se do necessário “colocar em tensão” de uma estrutura cujos músculos são tendencialmente fortes, curtos e hipertónicos.

Fig. 40 - Coluna lombar assente no colchão.

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Já que falamos mais uma vez de “força”, devo dizer que a ideia de que as lombalgias estão associadas à falta de um “reforço muscular” é, por tudo o que foi dito, falaciosa. E a todos aqueles que poderão apresentar linhas de estudos que demonstram essa relação, eu apresento linhas de estudos que contradizem essa mesma relação, assim como muitas outras linhas de estudos que relacionam flexibilidade, morfologia, mobilidade, e muitos outros factores, com a presença/ausência de dor. Diria que ainda estamos muito longe de atingir uma plena maturidade metodológica que permita atribuir credibilidade suficiente às diversas linhas de estudos existentes. O mesmo será dizer que, atendendo ao que tenho visto em tantos e tantos artigos, pouco se sabe verdadeiramente, em termos científicos, sobre a relação entre os diversos factores biomorfológicos e a raquialgia.

Aliás, atendendo a que à maioria dos estudos realizados falta um grupo controlo ou a necessária aleatorização da amostra, não posso deixar de afirmar que a ciência que se faz por aí é ainda extremamente imatura. Isto para não esquecer o facto de, mesmo nos estudos considerados como sendo “de qualidade”, é impossível controlar o efeito Pigmaleão da investigação, ou seja, o efeito relacionado com a influência que as expectativas pessoais do investigador terá no surgimento dos resultados.

Se somarmos a tudo isto certos actos próprios da investigação científica, como o plágio, a invenção, ou o mero acto de sobrevalorização de uns estudos em desprimor de outros, podemos ter bem em conta que devemos desconfiar de tudo o que é processo científico. Em termos gerais, os cientistas, nos seus estudos, nem que seja por um efeito Pigmaleão inconsciente, tendem a concluir aquilo que desejavam concluir.

Prefiro, pessoalmente, mergulhar na natureza apodíctica das bases conceptuais de um método revolucionário como o método Mézières. E é no seio dessa mesma natureza que o princípio revolucionário de que as deformidades posturais e as raquialgias são devidas aos excessos musculares e/ou tónicos e não à fraqueza toma aspecto de uma verdadeira “lei” de estudo etiopatogénico e de intervenção terapêutica.

Importante será acrescentar que, na actualidade, principalmente no campo teorético da “Reconstrução Postural”, parece que tudo o que dissemos sobre excessos musculares está relacionado mais com o “tónus em si mesmo” do que

com o “comprimento muscular”. Assim sendo, as deformidades e dores ósteo-musculares advêm sobretudo da incapacidade que as estruturas musculares têm para criar “pontos” de modificabilidade tónica.

Ora, neste ponto, importa referenciar novamente o paradigma de Bricot. Ou seja, se vamos passar a valorizar mais o campo “neurológico” do trabalho postural, não podemos deixar de sublinhar a importância do trabalho terapêutico com base no treino proprioceptivo e de equilíbrio e no relaxamento psicofísico. Aliás, se a “postura” depende fortemente de uma capacidade de “controlo neurológico central”, que, sendo essencialmente subcortical, é de natureza fundamentalmente inconsciente, então devemos, tal como o fez Bernard Bricot, valorizar o papel do trabalho “neurológico”, percebendo, de uma vez por todas, que a ordem “consciente” e “voluntária” para “endireitar” as costas de nada serve. Ora, se o mecanismo de controlo postural é inconsciente de que serve mandar alguém “endireitar-se”?... A experiência tem demonstrado que as metodologias que fazem uso de estratégias de controlo consciente da posição corporal são ineficazes. Diria que certas metodologias de “actividade física” que privilegiam o “global” ao invés do “analítico”, e o “motor” ao invés do “físico”, como a dança, a psicomotricidade, o relaxamento, as artes marciais e todas as actividades que façam uso das capacidades de equilibração e de coordenação neuromotora, poderão ter mais eco no trabalho de “reeducação postural”. Portanto, para além das metodologias mais fisicalistas, todas as outras mais psiconeurológicas possuem uma importância provavelmente fulcral.

Gostaria de referir que, muitas vezes, principalmente quando temos novos alunos nas nossas aulas, as nossas tentativas de “endireitar” e alinhar o utente levam a que o mesmo fique mais tenso do que se o deixássemos simplesmente em paz. Ora, por vezes, é preferível não sermos excessivamente exigentes para com os utentes, pois a “tomada de consciência” do corpo e da postura envolvem um processo de automatização, o qual é necessariamente delongado.

Portanto, temos que uma intervenção a nível reumatológico, na presença da “deformidade postural” e ou de sintomas raquidianos, passa por um trabalho necessariamente ecléctico, centrado fundamentalmente no paradigma Mézières, o que inclui também a sua componente psicofísica e de integração neuro-sensorial.

Como vimos, para o paradigma em análise, todas as deformidades posturais

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possuem origem em “excessos” da musculatura essencialmente posterior. As lordoses são a origem. As escolioses estão sempre correlacionadas com um excesso muscular da musculatura lordosante (os mesmos músculos paravertebrais que estão envolvidos na flexão lateral, e eventualmente, na rotação dos corpos vertebrais da coluna, são também os músculos mais poderosamente envolvidos na “lordose”). E as cifoses, essencialmente deformidades meramente “aparentes”, resultam também de uma compensação lordótica, que, eventualmente, pode ser devida à acção de contrariação “directa” da lordose, seja devido à acção do diafragma, seja devido à acção dos músculos rotadores internos, ou da acção mais “indirecta” das cadeias musculares anteriores (sempre relacionadas com a “posterior”, relação mediada pelo diafragma).

Vimos, também, já bastante atrás, que a o conceito de postura “normal” e de postura “anormal” não é correcto, visto que ninguém possui uma postura perfeita. Portanto, no campo “postural”, raramente alguém é isento de hegemonias musculares, raramente alguém possui uma postura dita “normal”, e raramente alguém possui características “perfeitas” de flexibilidade muscular. Ora, o que tudo isto vai implicar é que a linha teorética que divide “saúde” de “deformidade” é extremamente espúria, se é que chega a existir. Ou seja, todos nós somos “doentes posturais” em potência e, portanto, tudo o que fica dito para as pessoas com deformidades posturais relevantes, mantém-se oportuno para a totalidade das pessoas, pois todos nós possuímos algum grau de “deformidade postural”. O mesmo será dizer que, em termos analíticos, todos nós possuímos determinada idiossincrasia, e somos tanto mais saudáveis quanto melhores as condições de bom alinhamento e a proximidade à “bela forma”. E todos devemos tender para a “bela forma”. E tudo deveríamos fazer para criar tal tendência, a qual não deixa de se aproximar do conceito kantiano de “perfectibilidade” humana.

Por exemplo, o mecanismo patológico da artrose está intimamente relacionado com a “postura”. Os médicos tendem a relacionar a “artrose”, ou qualquer outro processo degenerativo, com a osteoporose e outros factores de desgaste articular. Mas, eu diria que, se a postura fosse perfeita, se o alinhamento fosse perfeito, nunca teriam estado presentes factores relevantes de desgaste articular. Ou seja, a “perfectibilidade” é condição do bom funcionamento articular. E essa “perfectibilidade”

está dependente da “forma” e, portanto, dos factores miofasciais e neuromusculares que com ela se relacionam. Se a pessoa possuir algo perto da “bela forma”, e não vier a ter alguma condição reumatológica e/ou orto-traumatológica relevante que modifique as condições de alinhamento articular, é pouco provável que venha a sofrer de qualquer tipo de condição degenerativa. Acrescentaria que estas mesmas pessoas também são aquelas que podem praticar actividades como “andar”, “correr” ou “saltar” com a menor probabilidade de virem a criar problemas articulares decorrentes de deformidades (a não ser que o excesso de prática desportiva modifique o panorama tónico-muscular presente). Por outro lado, o que dizer da “saúde” de alguém que possua um certo nível de desalinhamento e/ou deformidade (mesmo que não notória)?... Será que as pessoas com um nível mínimo de deformidade poderão praticar actividades físicas com o mesmo à-vontade que as pessoas que possuem grande nível de “bela forma”?...

Aquilo que tenho defendido é que não. Ou seja, deverá haver, para a maioria das pessoas, uma diminuição cabal da tendência para a prática de desportos como os de carácter assimétrico e as actividades de fitness, pois, estando estas actividades grosseiramente centradas no trabalho da “força muscular”, acabarão por funcionar como uma porta de entrada para a criação de tensão muscular e consequente deformidade. Atenção: não pretendo negar a evidência que tantos estudos (ditos funcionais) têm lançado sobre determinadas vantagens que advêm da prática desportiva. Falo só em termos “posturais”, “estruturais”, “morfológicos”, ou, mais globalmente, “músculo-esqueléticos”. E o que defendo é que, ao contrário do que muitos preconizam, a actividade desportiva, principalmente as novas modalidades do fitness, potenciam o exacerbar de hegemonias musculares que se queriam refreadas. E isto é tanto mais verdade quanto maior a tendência que o indivíduo possui para a tensão muscular e a retracção mio-fascial.

Em particular, certos desportos, como a musculação, constituem, provavelmente, um factor importante de criação de desequilíbrios musculares relevantes. Analisem-se as “posturas” dos culturistas e retirem-se as necessárias conclusões...

Já Françoise Mézières, no seu “Originalité de la Méthode Mézières”1, dizia que « a la différence de toutes les autres méthodes, ma méthode: 1º ne s’adresse qu’à élasticité musculaire; 2º ne fait jamais de musculation; 3º tient compte de la

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morphologie normale; 4º n’exerce jamais l’inspiration; 5º ne fait jamais d’exercice analytique; 6º ne fait jamais d’exercice perpendiculaire à l’axe rachidien; 7º ne s’adresse qu’au physique. » E quem a conheceu, diz que Mézières não simpatizava sequer com o Yoga. O que é perfeitamente compreensível, pois, estando repleto de posturas em (hiper)lordose, e de fortalecimento dos extensores do tronco, torna-se extremamente anti-mézièrista (fig. 41).

Fig. 41 - Postura de Yoga, com hiperlordose lombar.

Portanto, depois de percebermos que tanto o método Mézières como os métodos neo-mézièristas não gostam do trabalho de força, aqui está este autor a generalizar o conceito à totalidade dos praticantes de actividade física. A actividade física, principalmente a actividade intensa e/ou com fins competitivos, constitui uma porta de entrada para a “deformidade”. E o atleta inteligente é, indiscutivelmente, aquele que treina a sua flexibilidade!...

Mas as questões não se resumem ao carácter de maior ou menor fortalecimento muscular. A questão relaciona-se em muito com o típico trabalho de mobilidade articular. O trabalho de mobilidade/mobilização articular é realizado sistematicamente

pelos fisioterapeutas e outros profissionais da motricidade. Consiste, na realidade, no modelo de trabalho dos terapeutas com doentes com artroses ou processos inflamatórios. Pergunto se estes profissionais chegaram a perceber se o seu utente teria as condições de alinhamento articular requeridas para esse mesmo trabalho. Vamos ter em conta um exemplo. Qual será, na realidade, o resultado da mobilização de um joelho excessivamente valgo ou varo? Se num joelho valgo há aproximação das superfícies externas da articulação e se num joelho varo há aproximação das superfícies internas, será que uma actividade tão simples como a marcha não poderá ajudar no desgaste das superfícies mais próximas (incluindo todo o conteúdo articular como a cápsula articular e as cartilagens)? Provavelmente, andar um ou dois quilómetros não provocará grande diferença, mas se somarmos essa mesma actividade repetida dia a dia, semana a semana, ano a ano, ao final de vários anos, os efeitos ditos “cumulativos” serão, provavelmente, relevantes... Podemos generalizar este exemplo para qualquer outro tipo de “desalinhamento”, e principalmente para actividades mais intensas como o “correr” ou a realização de qualquer outra actividade com relativo impacto...

Na realidade, especialidades médicas como a “medicina desportiva” ou a própria “fisioterapia desportiva” existem somente porque o desportista é extremamente dado a lesões. Já todos devemos ter ouvido falar nas Lesões por Esforço Repetido (LER)!... E há todo um conjunto extremamente avultado de lesões próprias do excesso de actividade física. A maioria das actividades gímnicas, principalmente se realizadas em termos “competitivos”, colocam o corpo humano sob grande stresse. E o que é certo é que nem mesmo esses profissionais da Medicina Desportiva e da Fisioterapia Desportiva têm consciência de que o corpo é suficientemente frágil de modo a preocuparmo-nos cada vez mais com todas as condições de prevenção e/ou evicção dos esforços deletérios. E se têm essa consciência, então fingem que não a têm pois não dá jeito ao médico ou terapeuta que o seu atleta passe a ter muito menos lesões. Chego a este ponto e afirmo, sem margem para dúvidas, de que a fisioterapia desportiva existe somente para criar condições para que o atleta - ser inconsciente - volte o mais rápido possível para a actividade, a qual, seria mais sensato, simplesmente evitar; o fisioterapeuta desportivo existe para criar condições para que o desportista volte a assumir o mais cedo possível “carne para canhão”

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para a actividade desportiva competitiva. Um bom fisioterapeuta - que não será decerto o fisioterapeuta do desporto - será um ser consciente, que tem a obrigação ética de desencorajar a realização de uma actividade física que está a demonstrar ser perniciosa para o atleta. O bom fisioterapeuta aposta na prevenção, e aposta na Verdade, não na criação de condições de fisioterapia não reeducativa, focada sobretudo em sintomas e apenas nos mesmos, e concentrada na criação de condições de agravamento da condição geral do desportista. Vamos atender a um exemplo que considero ser paradigmático: a ligadura funcional. Se um atleta realiza um mecanismo de entorse, distendendo os tecidos moles da zona externa do tornozelo, é muito comum o fisioterapeuta colocar no atleta uma ligadura elástica que permitirá reduzir a amplitude dos movimentos dolorosos, permitindo a realização dos movimentos não problemáticos. Ora, já algum terapeuta se perguntou se esta mesma ligadura não irá sujeitar a estrutura a um jogo artificial de tensões? Já algum terapeuta se perguntou se esta mesma ligadura não aumentará o nível de stresse sobre as estruturas que está a libertar, o que parece ser uma consequência óbvia da limitação dos movimentos problemáticos?... E poderia continuar a efectuar perguntas, sem nunca mais cessar...

Por isto e muito mais, vemos que nem sempre a actividade desportiva se correlaciona com a saúde, pelo menos se nos restringirmos à saúde músculo-articular.

Gostaria de, chegado a este ponto, referir uma importante obra da literatura médica. Trata-se da obra “O homem é um animal assimétrico. Especulação sobre um estudo antropométrico efectuado em jovens atletas”2, e é do médico especialista em ortopedia e medicina desportiva Leandro Massada. Esta obra, para além de possuir informações preciosas sobre postura, simetria corporal e deformidades posturais, explica, de uma forma bastante científica, um pouco aquilo que venho citando em todo este texto, ou seja, que a actividade desportiva estrénua acarreta grandes esforços para as estruturas articulares. Para além disso, a obra de Leandro Massada apresenta dados bastante concretos sobre a forte incidência de deformidades posturais, como escolioses de curvatura dupla (deformidades do tipo “assimétrico”), em atletas de desportos do tipo “assimétrico”. A obra inclui, também, uma importante revisão de estudos que referem a existência de deformidades diversas em actividades desportivas variadas. É um livro obrigatório, que considero um complemento fundamental ao

meu manifesto. Para além disso, ainda poderia acrescentar todas as obras – existem centenas - que se dedicam ao estudo das dores e lesões próprias de cada actividade física.

E já que falámos da obra de Leandro Massada, referente a jovens desportistas, é preciso referir alguns aspectos relativos ao desenvolvimento dito “ontogenético” (desenvolvimento juvenil). Não devemos nunca esquecer que o bebé é totalmente cifótico e que o desenvolvimento acarreta o aumento das curvaturas lordóticas. Daí que Bienfait3 considere as lordoses cervical e lombar como curvaturas secundárias (e, de facto, a cifose é apenas aquilo que resta do desenvolvimento das lordoses). O que é preciso entender é que quase toda a deformidade postural, assim como a “normal” “maturidade postural”, está já presente no final da adolescência, consistindo esta fase (principalmente o “pico de crescimento em altura” que dura maioritariamente dos 12 aos 14 anos de idade) um importante período de aquisição do equilíbrio postural. De facto, o período adolescente é riquíssimo em “desequilíbrios musculares”, pois, a verdade é que a maturação óssea faz-se de forma assimétrica e desproporcionada, levando a que a deformidade possa facilmente ocorrer ou manifestar-se nesta época (através de um excesso tónico desinibido). Eu próprio tenho, em conjunto com outros investigadores, estudado os factores de risco envolvidos no aparecimento de raquialgias em adolescentes4,5. E é bem verdade que a prevalência de dores da coluna em jovens é bastante acentuada. Proponho a leitura dos artigos citados, os quais incluem uma revisão de estudos relacionados com a realidade vigente. O facto de a postura possuir um “desenvolvimento” precoce, atingindo um certo nível de “estruturação” até ao final da adolescência, leva-nos a assumir que, não só os desportos de competição devem ser evitados nas idades jovens, como todo o esforço com vista a uma correcta “intervenção postural” deve confluir numa palavra muitas vezes negligenciada: a prevenção. Em particular, apesar de os fisioterapeutas de Reeducação Postural acreditarem, quase todos, na possibilidade de reestruturação postural em qualquer idade, a verdade é que tudo indica que, quanto mais tarde se iniciar o esforço reeducativo mais difícil se torna o processo de tratamento da deformidade. Como veremos na Conclusão, importa falar cada vez mais de Educação Postural ao invés de Reeducação Postural. Aliás, Bienfait sublinha a importância da prevenção, sublinhando, por exemplo, que as deformidades posturais de terceiro

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grau, as verdadeiras dismorfias, não possuem qualquer tipo de recuperação do tipo fisioterapêutica (somente a cirurgia ortopédica pode ajudar).

Ora, a solução para tudo o que foi dito não passa, propriamente, pela evicção da actividade desportiva, apesar de em muitos casos tal ser recomendável. Passa, sobretudo, pela realização de actividades ligeiras, suaves, com carácter essencialmente cardiovascular. E essas actividades deverão ser acondicionadas a toda uma nova metodologia de trabalho físico.

Ou seja, pretendo dizer que actividades que fazem uso “directo” da força da cadeia muscular posterior, como a natação, a musculação e o Yoga, deveriam ser proibidas aos padecedores de raquialgias. Jamais deveriam ser recomendadas, que é o que uma miríade de profissionais de saúde ainda faz. E essas mesmas actividades são, a meu ver, desaconselhadas a qualquer pessoa, a não ser àquelas que possuam condições de flexibilidade excelentes.

Outras actividades, como a maioria dos desportos de carácter assimétrico, e a quase totalidade de práticas do fitness, possuem igualmente uma incomensurável irracionalidade, pelos mesmos e outros motivos que já apresentei.

Por outro lado, certas actividades cardiovasculares, como o simples “andar” podem ser muito benéficas para a saúde, mas mesmo estas deverão ser inseridas num novo plano de treino físico. Pois, até mesmo esse “andar” poderá apresentar malefícios num indivíduo que apresente deformidade. Não será assim tão estranho pensar no que acontece a um joelho excessivamente valgo ou excessivamente varo, após horas de marcha ou mesmo meia hora de corrida (como vimos atrás)... Por outro lado, o jogo de forças articulares deletérias poderá ser beneficiado de um trabalho preliminar de alongamento. Esse mesmo plano ou metodologia é diferente da tradicional e consiste na realização, pela ordem que vou apresentar, do seguinte leque de actividades: 1º relaxamento; 2º alongamento global; 3º mobilidade articular; 4º força do core e trabalho facilitado das extremidades, 5º alongamento global e 6º relaxamento. Portanto, inicialmente, têm de ser criadas condições de relaxamento das estruturas miofasciais, através dos métodos de relaxamento. Somente este relaxamento inicial irá facilitar o alongamento. Só depois deverá ser realizado o alongamento. Este deve, tal como já foi dito (anteriormente), ser feito a frio, global e progressivamente por períodos prolongados de tempo. O relaxamento e o

alongamento libertam as estruturas articulares. Só nesta altura, quando a posição e alinhamento articulares forem menos viciosos, deverão ser realizadas as actividades de mobilidade (actividades cardiovasculares, ginásticas de mobilidade), as quais deverão ser necessariamente suaves. E só no fim de todas as estruturas estarem adequadamente “libertas” de tensão, é que se pode pensar na realização do treino de força. Este deve privilegiar o trabalho do “centro do corpo”, como no Pilates, e o trabalho “facilitado” das estruturas à periferia. De modo a não se acabar o trabalho físico em posição de encurtamento, deve-se voltar a alongar globalmente (com os cuidados necessários ao alongamento a quente) e acabar com o relaxamento.

Portanto, a minha “utopia” de treino consiste num conjunto de “atletas” que alongam logo de manhã, por longos períodos de tempo, antes de realizarem qualquer outro tipo de actividade física. Só depois de estarem criadas as boas condições de alinhamento esquelético é que se torna “racional” realizar muitas das actividades motrizes típicas do fitness.

Nos meus grupos de “Reeducação Postural”, trabalho sempre segundo a metodologia que apresentei. Na fig. 42 é visível um conjunto de doentes a alongarem a cadeia muscular posterior.

Fig. 42 - Alongamento da cadeia posterior, em grupo, numa classe no Consultório e Clínica de Reabilitação, Lda. - Lisboa.

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A fig. 43 apresenta os mesmos doentes treinando o alinhamento e mobilidade da coluna em rolos correctivos.

Seguir-se-iam o treino de força central, apenas se houver tempo para tal componente...

Ora, é indubitável que este novo “esquema” de trabalho físico implicaria, em termos da “minha utopia”, uma série de mudanças. Neste novo esquema, a saúde passaria para primeiro plano, enquanto que a “estética”, a “moda” e toda a efemeridade patente na indústria do fitness passariam para segundo plano.

Este tipo de metodologia também obrigaria a que os treinadores e professores passassem a dispor de um conhecimento mais alargado da “teoria das cadeias musculares”, das novas formas de alongamento, e das necessárias implicações metodológicas do mesmo baseadas no conceito de Mézières. E também implicaria o erradicar do mito do “endireitamento postural”, já anteriormente aludido.

E especificamente para os fisioterapeutas, gostaria de dizer que, por mais ocupados que os mesmos estejam com o seu excesso de doentes, nada (ou quase nada) impede que se realize algum trabalho de alongamento global antes de passar à realização das mobilizações e dos exercícios autónomos. Como veremos no próximo capítulo, a

verdade é que a fisioterapia actual constitui um processo crescentemente massificado, sendo que, não havendo tempo para aplicar terapias manuais aos doentes, é comum aplicar-lhes instruções para a realização de exercícios activos. Mas, a meu ver, não há nada que impeça a realização precedente de alguns minutos de alongamento. Por exemplo, no caso de uma artrose, antes de se passar à mobilização do membro e aos vários exercícios de força (que não recomendo nas artroses, pois os exercícios de fortalecimento irão ajudar a criar tensão em estruturas que já estão por si tensas e demasiadamente “colapsadas”), recomendo a realização de algum alongamento global por uns meros minutos. Esse alongamento permitirá libertar mais a articulação, a qual “fará” posteriormente um trabalho de mobilização menos vicioso.

Em termos mais específicos, recomendo que tenhamos em conta a ideia de “blocos” da cadeia muscular posterior. Todos os problemas da coluna vertebral, tórax e membro superior, deveriam ser tratados inicialmente com a correcção da posição da cabeça e coluna em geral e o trabalho respiratório (com insistência na expiração). No caso de haver um problema no ombro, seja de cariz inflamatório, seja de cariz degenerativo, recomendo, na maioria dos casos, a realização de manobras de descompressão articular (e podemos, mais uma vez, referir as pompages de Bienfait), assim como técnicas ditas “harmónicas” que ajudam a criar “espaço” nas superfícies articulares e a mobilização articular dita “acessória”. Só depois faz sentido passar ao trabalho de mobilidade, seja passiva, seja activa. Portanto, no caso de existir, por exemplo, uma tendinite ou qualquer outro estado inflamatório do membro superior, passar directamente ao trabalho de mobilidade (o que é extremamente comum ver nas clínicas que por aí abundam) pode constituir um erro. Primeiro é necessário libertar a articulação, constituindo nesse “acto” o alongamento um papel primordial.

No caso de se tratar de um processo inflamatório ou degenerativo do membro inferior, recomendo, antes de mais nada, o alongamento do bloco inferior da cadeia posterior. Por exemplo, antes de nos pormos a mobilizar um joelho com artrose, não custa nada, realizar o alongamento global dos membros inferiores por meros minutos. Fará toda a diferença, posso garanti-lo. A fig. 44 demonstra-me a alongar uma doente naquele que considero o alongamento mais paradigmático do método Mézières. Eventualmente, uma postura de Stretching Global Activo, autónoma, também poderá ajudar nos nossos intentos (ver fig. 45).

Fig. 43 - Trabalho no rolo correctivo, em grupo, numa classe no Consultório e Clínica de Reabilitação, Lda. - Lisboa.

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Fig. 45 - Exemplo de uma postura de Stretching Global Activo.

Aliás, penso que muitas vezes a razão pela qual certas artroses demoram tanto tempo a conhecer uma melhoria sintomática prende-se, precisamente, com o facto de os terapeutas ou instrutores moverem uma articulação sem pensarem no seu primacial realinhamento. Ora, não terei primeiro de pôr tudo no seu lugar e só depois passar à “função”?... Portanto, mais uma vez, a meu ver, a estrutura domina a função.

Também no meu trabalho com grupos realizo sempre o mesmo ciclo global alongamento - mobilidade - força. Começo sempre as minhas aulas com um qualquer alongamento global da cadeia posterior. Depois, efectuo o plano lógico de alongamento: inicialmente o alongamento das cadeias anteriores e, depois, o alongamento das cadeias posteriores (ou seja, vou do efeito para a causa). Dentro dos possíveis tento adequar os alongamentos executados à especificidade de cada membro do grupo. Só depois realizamos diversos exercícios de mobilidade vertebral e das articulações proximais. Só por último é que realizo o trabalho de Pilates, incluindo os exercícios mais adequados à “dinâmica” do grupo. A “estética” da aula fica para segundo plano. Primeiro está a metodologia. Não estou flagrantemente preocupado com a “forma” da coisa, apesar de que é isso que faz com que as pessoas voltem ou não no dia seguinte.

O método Mézières e os métodos neo-mézièristas lançam-nos uma série de pistas relativamente a um novo conceito de “cultura física”, menos centrada na performance e na robustez muscular e mais centrada na estrutura com base na “bela forma”.

Esta “bela forma” nada tem a ver com um corpo “musculado”, um corpo dito de fitness. Esse “corpo”, dominantemente considerado “belo”, remete-nos para o já citado exemplo do “açúcar”. O corpo musculado atrai-nos porque a nossa genética associa esse corpo a uma forma de supremacia biológica. Mas, nos tempos “racionais” que actualmente vivemos, já não faz muito sentido existir esse género de corpo. Infelizmente, tal como veremos no próximo capítulo, tanto o fitness quanto outras indústrias continuam a perseguir um conceito dito “dionisíaco” de vivência e sociedade.

Fig. 44 - Alongamento global do bloco inferior da cadeia muscular posterior, com controlo das compensações.

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Bibliografia (VII)

1. Mézières, F. (1984). Originalité de la méthode Mézières. Paris: Maloine.2. Massada, J.L. (2006). O homem é um animal assimétrico. Especulação sobre

um estudo antropométrico efectuado em jovens atletas. Lisboa: Editorial Caminho.

3. Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento fisioterápico. São Paulo: Summus editora.

4. Coelho, L., Almeida, V., & Oliveira, R. (2005). Lombalgia nos adolescentes. Factores de risco psicossociais. Estudo epidemiológico na região da grande Lisboa. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 23(1): 81-90.

5. Almeida, V., Coelho, L., & Oliveira, R. (2006). Lombalgia inespecífica nos adolescentes. Identificação de factores de risco biomorfológicos. Estudo epidemiológico na região da grande Lisboa. Re(habilitar) - Revista da ESSA, 3, 65-86.

Independentemente do tipo de sistema teorético ou metodológico que queiramos seguir no domínio do trabalho com o utente, é indubitável que a intervenção individualizada é a que mais se aproxima da utopia que todos desejamos. Uma intervenção centrada exclusivamente na realidade idiossincrática do doente é a única que permite a adaptação aos problemas presentes e a adequação a uma realidade de natureza individual.

Quando temos um utente em mãos, que tanto pode ser o doente de fisioterapia como o utente do ginásio, temos, se munidos das mínimas condições de autonomia profissional, o poder para modificar o fenotipo desse mesmo indivíduo. Podemos mexer com os diversos sistemas que integram a sua Pessoa. Podemos moldar todos os componentes que determinam a sua individualidade psicofísica. E aí, a nossa intervenção será provavelmente diferente consoante o sujeito que temos em mãos.

Aliás, quando tenho um indivíduo em mãos, quando determinada pessoa se entrega à minha intervenção, não perco tempo e começo logo a avaliar todas as componentes fundamentais que integram o processo de intervenção. Avalio todos os dados que considero relevantes para ter uma ideia da Estrutura dominante do sujeito. Vejo o indivíduo como um todo e toco-lhe de modo a perceber como o seu corpo interage com a minha própria práxis. A acção motora só é pedida se for estritamente necessário. Na maioria das situações, a minha intervenção é fundamentalmente passiva e envolve tanto o alongamento global adstrito a todo o processo como certas manobras analíticas de terapia manual.

Considero que poucos mais profissionais do que o fisioterapeuta possuem os conhecimentos adequados e a práxis necessária para desenvolver este tipo de intervenção adequada à especificidade problemática de cada indivíduo.

viii - fitness enquAnto “indústriA culturAl”

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O que existe no dia a dia da verdade clínica/fisioterapêutica e na realidade dos ginásios é a completa massificação de todo o processo referido. O que significa que, regra geral, tanto o fisioterapeuta no seu domínio clínico quanto o instrutor de fitness no seu domínio gímnico não dispõem do tempo necessário para realizar uma correcta intervenção dita individuada do utente.

Vejamos o contexto dos fisioterapeutas. Como o Serviço Nacional de Saúde paga muito pouco pelas diversas intervenções (entendidas formalmente em termos de códigos), realidade abstrusa também generalizável à maioria dos subsistemas e seguros, para que clínicas, institutos e hospitais possam sobreviver ou mesmo tentar ter algum lucro, é necessário que as mesmas preencham as horas de trabalho dos terapeutas de diversos doentes. Em certas clínicas, o fisioterapeuta chega a tratar dez doentes por hora.

Por outro lado, não obstante a realidade numérica dos doentes a tratar terem a sua importância, não podemos esquecer que a grande maioria dos fisioterapeutas permanece num sistema de subsistência técnico-científica relativamente a um médico fisiatra (ou outro tipo de médico).

Todas estas razões levam a que a grande maioria dos fisioterapeutas trate os seus doentes recorrendo ao exercício físico activo (outras abordagens mais analíticas como os agentes físicos, as massagens e a electroterapia, são usualmente realizadas por auxiliares de fisioterapia, profissionais sem formação superior, e, portanto, mais “baratos” para o Sistema). Ou seja, como não há tempo/dinheiro nem autonomia para tratar doente a doente, mediante a utilização de poderosos métodos de perfil reeducativo, o fisioterapeuta comummente trata vários doentes essencialmente por meio de ordens de realização de exercício físico. Para além disso, muitos fisioterapeutas desconhecem, de todo, as leis Mézières. Alguns são conhecedores da Reeducação Postural Global ou de outros métodos neo-mézièristas; mas a realidade é que a grande parte desses terapeutas não chega verdadeiramente a integrar as “lições” que esses métodos têm para dar. E uma das lições é precisamente que a intervenção adequada envolve um constante processo de avaliação e intervenção estrutural, coisa que é relativamente demorada e necessariamente individual.

Portanto, os fisioterapeutas mantêm-se ignotos relativamente à dimensão interventiva e teorética geral dos métodos de Reeducação Postural, ou, não se

mantendo assim tão ignotos, não utilizam a filosofia desses métodos ou, simplesmente, por falta de tempo ou possibilidade, não utilizam os princípios desses métodos. Os poucos terapeutas que tentam utilizar os princípios dos mesmos tendem a ser fortemente repelidos pelo Sistema, pois ora são “inteligentes” de mais para o mesmo, ora são demasiadamente lentos no tratamento dos doentes, ou porque simplesmente desrespeitaram “ordens superiores”. A frustração que estes poucos fisioterapeutas sentem é do meu total entendimento. Infelizmente, continuando o Sistema a funcionar como funciona, tudo permanecerá sem solução...

Aliás, a realidade é que o Sistema continua a funcionar de modo a encarar os fisioterapeutas como mera força de trabalho, meros trabalhadores manuais, profissionais sem qualquer possibilidade de agir segundo um processo constante de utilização do raciocínio clínico.

Quanto aos instrutores de fitness, podemos dizer que a sua quase totalidade numérica desconhece os princípios da “teoria das Cadeias musculares”, e assim sendo, nunca irão permitir ao doente que o mesmo seja tratado segundo uma filosofia de “integração estrutural”. Mesmo quando os doentes são tratados pelos personal trainers, vemos que poucas coisas diferem da realidade já clássica e tradicional da coisa. Ou seja, o instrutor vai induzindo o exercício até que no fim realiza o conjunto de alongamentos...nunca de natureza global.

É bastante irónico ver que, ultimamente, certos instrutores começaram a empregar termos como “cadeia muscular posterior” e “alongamento global”. Não tenho muito bem a certeza onde aprenderam tais conceitos, mas a tentativa destes profissionais de integrar os citados conceitos na sua prática é, no mínimo, burlesca. Ainda não vi em toda a minha vida um instrutor a aplicar a um utente (aqui perde-se, infelizmente, o termo “doente”) um qualquer alongamento dito “global”. Mas são estes mesmos instrutores ou personal trainers que chegam a ganhar financeiramente o triplo daquilo que ganha um fisioterapeuta. São estes mesmos profissionais que lidam, não raras vezes, com os “senhores do dinheiro”, aqueles que pretendem, sobretudo, ser apaparicados.

De facto, a indústria do fitness é, nos tempos que correm, bastante mais lucrativa que a “indústria da saúde”. E o mesmo acontece com o Wellness e a estética em geral. As simples “massagens” vendem e rendem mais do que uma qualquer

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sofisticada técnica de fisioterapia. Aliás, é costume dizer que “para massagens há sempre dinheiro!”. Portanto, os fisioterapeutas, mesmo sendo profissionais muitas vezes de alto gabarito, possuem muito menos possibilidades de lucrar, isto se admitirmos que se mantêm no mundo da saúde (e esta realidade é cada vez mais acutilante, ainda mais porque o número de fisioterapeutas portugueses tem crescido exponencialmente... consequência da abertura desregrada de escolas, muitas delas com uma qualidade questionável).

Em termos gerais, e tomando um pouco a temática do início do capítulo, aquilo que a “máquina industrial”, seja do Sistema clínico, seja do mercado do fitness, pretende é a completa massificação de todo o processo de lidar com os utentes. Uma intervenção centrada nos pormenores fundamentais da “integração estrutural”, necessariamente individualizada (e longa), cai para dar origem ao trabalho físico feito com turmas de dez, vinte ou trinta indivíduos (ou então a grupos de doentes da ordem dos seis a dez por hora). E essas turmas fazem todas o mesmo, seguindo sempre mais ou menos as mesmas premissas de trabalho.

Acho graça quando um instrutor diz que, mesmo possuindo uma turma, adapta os exercícios à individualidade de cada aluno. Ora, o que os métodos de Reeducação Postural, e outros como os métodos de intervenção neurológica, dizem é que é preciso realizar ajustes (corporais) constantes no seio de uma actividade contínua de observação clínica e avaliação morfológica. Este processo é dinâmico e constante, exigindo uma completa individualização do tratamento. Ora, perante tais factos, como é possível defender que a individualidade é respeitada no seio de grupos de utentes?...

A “massificação” é, portanto, a palavra de ordem relativamente ao trabalho que se realiza na indústria clínica e do fitness. E é essa mesma massificação que permite que um instrutor ganhe, muitas vezes, 20 euros por uma aula de Pilates. Esse mesmo instrutor, o qual nem precisa de ser obrigatoriamente licenciado, ganha mais do dobro do que a maioria dos fisioterapeutas, adequadamente licenciados, ganha numa hora de trabalho também ele “massificado”.

Em especial, em ginásios como o Holmes Place, é possível encontrar instrutores de musculação a ganhar 15 euros à hora. E estes são, regra geral, formados pelo próprio Holmes Place, formados para servirem essa grande máquina industrial que

este franchising constitui. Esses mesmos instrutores não possuem, na sua grande maioria, conhecimentos preliminares e metodológicos suficientes para perceberem a complexidade envolvida na unicidade estrutural de cada utente. Não possuem capacidades para agirem de diferente forma segundo os diferentes utentes que lhes aparecem. Não podem, portanto, dar uma componente clínica, ou uma componente de individuação necessária, aos seus utentes. Não podem agir segundo determinada morfologia. Aliás, é comum os instrutores de fitness ensinarem os exercícios aos utentes sempre da mesma maneira, independentemente do tipo de utente que lhes aparece.

Por exemplo, um instrutor de musculação ensina um determinado exercício sempre da mesma maneira, independentemente de ter um homem musculoso ou um outro homem com uma escoliose. Não se adequa às diferenças, o que é normal, pois, não possui o conhecimento necessário para tal tipo de adequação. Está formado apenas para a “metodologia do exercício” não para a visão necessariamente holística e individuada do utente... doente.

Mas mesmo partindo do princípio que temos à frente um bom instrutor, adequadamente formado, e com bons conhecimentos sobre “morfologia”, é pouco possível, como instrutor de fitness que é, que esteja bem consciente da complexidade da temática postural por que todos nos movemos. Se estiver, estará muito provavelmente a trair uma série de princípios de natureza pessoal.

É preciso ainda dizer que, visto que o Sistema é muito pouco flexível e que, regra geral, os fisioterapeutas não tendem a ser muito bem aceites no mundo do fitness, a tendência é para que estes profissionais se mantenham concentrados no mundo clínico. E nesse mesmo mundo, tão massificado como é, numa realidade em que vários doentes têm de ser tratados simultaneamente, não há grandes possibilidades para que o fisioterapeuta possa mostrar as suas verdadeiras potencialidades; ou seja, como os doentes são muitos, e também porque continua a haver uma certa subjugação do fisioterapeuta ao médico especialista, raras são as vezes em que o terapeuta pode empregar técnicas mais sofisticadas, precisamente aquelas que dão à Fisioterapia o seu estatuto de grande e promissora cientificidade. Assim sendo, pelos motivos apresentados, as pessoas não chegam, em termos gerais, a conhecer as verdadeiras potencialidades da Fisioterapia. E assumo sempre a Fisioterapia no seu

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significado mais lato, o qual é inclusivo de muitas técnicas comummente identificadas com as terapias não convencionais. O resultado de tudo isto é que, mais cedo ou mais tarde, os doentes, ao aperceberem-se das limitações do Serviço Nacional de Saúde, tendem a procurar outras soluções, o que fornece aos profissionais das medicinas não convencionais e aos profissionais do fitness uma grande oportunidade de investimento. Como, ao abandonar o SNS o utente já está preparado para gastar mais dinheiro, acaba mesmo por investir nas exorbitâncias dos ginásios.

O problema da já referida massificação de tratamento dos utentes nos ginásios é bastante complexo, envolvendo uma série de temáticas de ordem económico-financeira que não gostaria de pormenorizar.

Mas, ainda assim, fico chocado quando me dizem que, em Portugal, o Fitness é um mercado que vale 330 milhões de euros anuais. E este valor nem se aproxima dos valores relativos a Espanha, país europeu que mais lucra com o Fitness. Voltando a Portugal, saiba-se que há, no nosso país, cerca de 1.400 clubes, os quais mobilizam cerca de 16.000 colaboradores e 600.000 praticantes. Portanto, mais de meio milhão de portugueses está nos ginásios a preparar-se para constituir o conjunto dos futuros clientes da Fisioterapia. Pudera! Provavelmente, quando perceberem que a Fisioterapia ancora num sistema de exercício não muito diferente do que se faz no fitness, e que os mesmos fisioterapeutas mal têm tempo para colocar as mãos nos doentes, acabarão por voltar para os ginásios, para as mãos dos instrutores.

Vejamos outros dados. Há cerca de 40.000.000 de praticantes a nível Europeu, dos quais cerca de seis milhões são alemães. No Brasil, há cerca de sete mil “academias” e mais de dois milhões de praticantes; aliás, o Fitness constitui um dos maiores centros de negócios do continente americano e o maior centro de negócios da América Latina.

Portanto, podemos concluir que o lobbie dos ginásios, assim como o lobbie do Fitness, conseguiu passar a sua mensagem. E, junto desse lobbie, temos uma série de outros negócios, como o Wellness, as medicinas não convencionais, a moda e a estética. Tudo negócios que movem milhões e empregam uma série de indivíduos. E, para além do mais, ainda temos uma série de outras indústrias, incluindo certas universidades, como todas aquelas que estão associadas a esses tão prolíficos estudos que demonstram a vantagem do exercício para a saúde.

Mais uma vez digo que não é minha intenção afirmar o contrário do que milhares de estudos e todo um grande Sistema industrial dizem. Não tenho “nome” suficiente para arriscar tanto. Mais uma vez, digo que é somente na dimensão músculo-esquelética que apresento as minhas renitências relativamente às vantagens de determinadas formas de exercício.

Claro que esses mesmos profissionais do fitness nunca aceitarão aquilo que eu digo, pois estão de tal forma embrenhados no Sistema que já não há espaço nas suas cabeças alienadas para qualquer outra possibilidade factual.

Se o mercado do Fitness, assim como as mais variadas “indústrias do corpo”, alimentam o “bem estar” com base numa forma traiçoeira de escapismo mentalista, e se, no fundo, este mesmo mercado poderá ter consequências deletérias dificilmente mensuráveis, tal não passa, na perspectiva desses milhares de empregados desse mercado, de uma visão alucinada e delirante de alguns “intelectuais”.

Aliás, a maioria dos filósofos da Escola de Frankfurt foram, em algum tempo, considerados seres delirantes, quando, no fundo, estes mesmos senhores somente revalorizaram o papel de algo que se pode chamar de “alienação social”.

Em especial, Adorno e Horkheimer criaram o conceito, perfeitamente adequado para a nossa discussão, de “indústria cultural”.

Para compreender estes filósofos, é preciso ter a noção, relativamente sub-reptícia, de que, nos tempos actuais, o corpo assume-se como uma “obsessão” com um lugar central, talvez porque é nele que se inscrevem as possibilidades de “embelezamento” do self, em condições de debilidade interior.

Adorno e Horkheimer, ao cunharem o conceito de “indústria cultural”, puderam revelar o carácter sistémico do mesmo, o qual se engendra com a acção conjunta e integrada dos vários meios de difusão cultural, que a tudo confere um ar de semelhança. A medida em que, sob o poder do monopólio, toda a cultura de massas é idêntica; a indústria cultural impõe às diversas gerações bens padronizados para satisfação imediata das suas necessidades caracterizadas como iguais e supérfluas.

A educação do corpo realizada pela Educação Física, enquanto disciplina pedagógica, destinou a sua intencionalidade, tendo a ginástica como conteúdo formativo chave. Pois, o conteúdo da ginástica fortalecia o seu carácter de “cientificidade” que se constituía numa sólida base para a formação do “homem novo”, necessário à

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implantação e consolidação do capitalismo. Aliás, não é despiciendo o facto de o exercício físico ser considerado como uma peça fundamental do desenvolvimento financeiro. Enquanto trabalhadores, o exercício possibilita a melhoria da capacidade física dos homens-máquinas industriais, para além de possibilitar o lazer, ou seja, a alienação relativamente a esse mesmo trabalho. O exercício possibilita também a formação da disciplina, a qual é necessária à força de trabalho capitalista.

Mas eu não vejo as coisas tanto em termos do exercício favorecer a máquina industrial. Eu vejo mais as coisas em termos de o exercício físico, e principalmente o fitness, fazer parte dessa mesma máquina industrial. O Fitness, pela forma como é vendido e praticado, relaciona-se perfeitamente com o poder da forma, da imagem, de uma utopia (tendo o corpo belo como inalienável objecto quimérico) e do espectáculo (lembremos a “Sociedade do espectáculo” de Guy Debord). É um fenómeno claramente adstrito às sociedades capitalistas. E enquanto fenómeno próprio das “sociedades do capital”, a prática desportiva lembra a sempre presente divisão classista da sociedade (afinal de contas, a inscrição em ginásios, as cirurgias estéticas, o Wellness, não são para todos!).

Em ginásios como o Holmes Place ou o VivaFit, a acção de promoção de determinada actividade é simplesmente inebriante. E os trabalhadores, em particular os instrutores, parecem saídos de uma máquina fotocopiadora ou de clonagem. Agem todos como elementos de uma indústria desumana. E no seio dessa indústria não há lugar para o Eu se afirmar. É que a verdadeira intervenção dita “física” junto do doente/utente tem de ser algo muito próprio do terapeuta/instrutor. Um instrutor igual a todos os outros, a agir como uma cópia de um conjunto de instrutores todos iguais, todos formados da mesma maneira e com os mesmos erros, não poderá jamais fazer a diferença. Como pode um ser não autónomo constituir a diferença também ela de natureza autónoma? O acto de “tratar” determinado utente advém de uma sempre necessária capacidade de racionalizar, de pensar para além da “regra”, de agir para além do “comum”. Se os instrutores de fitness bebem todos “da mesma cartola”, como é possível dar ao utente dos ginásios a possibilidade de alicerçar a diferenciação e a visão individuada das coisas?...

conclusão

Chamar ao meu texto “manifesto anti-desportivo” é obviamente um exagero. Mas é um exagero necessário! É indubitável que o desporto possui inúmeras vantagens. Mas, se nos ativermos aos aspectos músculo-articulares, há uma série de “dados” que devem ser tidos em conta. Pois é certo que não é categórico que o desporto produza só bons resultados. E penso que o demonstrei sem margem para dúvidas.

É claro que o meu “discurso” não é nem nunca será aceite pelas maiorias. Pois é certo que essas maiorias irão sempre permanecer um tanto ou quanto alienadas pelo peso de uma máquina extremamente opressiva que é a do Fitness. E com o Fitness vem todo um conjunto de elementos associados à exagerada esteticização de uma sociedade em regressão. Se Nietzsche estivesse por “estes lados”, voltaria a firmar a diferenciação, já clássica, entre sociedades dionisíacas, levadas pelos impulsos, e as sociedades apolíneas, mais racionais. Devíamos estar a caminho de uma necessária e “humana” racionalização do nosso comportamento global, mas a verdade é que estamos ainda regidos por muitos impulsos e princípios de vida instintiva. Daí a forma como se está a tomar tão a sério o “aparato do corpo” e a necessidade de bem parecer. E nesta mesma sociedade da “forma”, certos métodos mais ligados à verdadeira globalidade do ser acabam por medrar face ao peso opressivo da Imagem relacionada com os diversos métodos da “indústria do corpo”.

O Fitness é apenas um dos vários aspectos de “esteticização” da sociedade, pois é bem certo que tudo no Fitness é mais imagem que conteúdo, a começar pelos instrutores dos grandes ginásios, formados por uma poderosa máquina de “lavagem cerebral”.

A Reeducação Postural, enquanto método, e o Anti-fitness, enquanto conceito por mim criado, constituem elementos de uma sociedade “real”, feita de conteúdo,

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mas que só é percebida por aqueles que fazem questão de enfrentar todos os “lados” da realidade.

Assim sendo, a Reeducação Postural não é apenas mais um método em que se tem formação. É toda uma forma de ver a realidade da actividade física. É todo um contexto de “desalienação” que poucos atingem, incluindo muitos terapeutas com formação na área. Aliás, a maioria dos terapeutas holísticos mais não são do que mestres daquilo que denomino de “imagética social”. Por exemplo, as medicinas não convencionais, não obstante a sua grande importância conteudística, estão poderosamente associadas a todo um processo de mitificação, quase deificação.

Também quase deificados têm sido os argumentos de que o desporto é bom para a saúde. São tão reais quanto aqueles instrutores e/ou terapeutas que dizem que o seu método ou terapia não possui efeitos secundários, quando na realidade até “beber água” pode possuir efeitos adversos.

É normal, e isso eu não nego, que as pessoas, regra geral, se sintam melhor com a prática desportiva. Nem que seja pela acção da libertação de determinadas hormonas no organismo. É normal que as pessoas sintam que o treino de pesos as ajudem nas suas lesões articulares. Nem que seja pelo efeito do mero “aquecimento” tecidular. É normal que as pessoas se sintam “levadas” pelos milhares de estudos que dizem bem da actividade física. Nem que seja pelo facto de não serem estudos longitudinais, atentos ao aparecimento de lesões no longo prazo... Muitas coisas são “normais”. Também é normal que o meu “método” produza dores e possíveis pioras. Aliás, basta mexer num corpo há muito preso nas suas deformações e adaptado às suas compensações para que o mesmo produza algum género de reacção sintomática. O corpo tem realmente as suas razões!... Mas nem sempre tem razão nas suas razões. É preciso lutar contra certas hegemonias, que mais não são do que a razão do corpo levada a um exagero que o próprio corpo não consegue medir. E quando se trata de perturbar um “equilíbrio” que o corpo atingiu, mesmo que incorrecto, tal pode ter um efeito de “crise” maior do que aquela que levou os utentes a procurarem a nossa ajuda.

Em matéria de terapias, devo dizer que todos os fisioterapeutas sabem, bem lá no seu íntimo, que muitas terapias, incluindo métodos contraditórios, dão resultados. Na realidade, quase tudo dá resultado, basta que o doente acredite que o método

é eficaz. E para o doente acreditar basta o terapeuta ter verdadeira fé no seu acto. Até na ciência essa “fé” interfere, colocando, a meu ver, todo o processo científico em questão...

O Anti-fitness é sobretudo uma reacção própria da racionalidade humana. É uma visão para além do óbvio, para além do que o Sistema nos quer impingir. Aliás, esse é o mesmo Sistema que quer afirmar os instrutores de fitness como profissionais de saúde. Mas, como o tempo mostrará de forma algo implacável, tenha o fitness o significado que tiver, este não é, nem nunca será, verdadeiro sinónimo de saúde.

Claro que, como muitos dirão, esta é apenas a “minha” verdade, não necessaria-mente mais verdadeira do que a dos outros. Somente chamo a atenção para o facto de que raramente a Verdade está nas mãos do Sistema; raramente a Verdade está nas mãos da opinião majoritária. Se assim fosse as Elites, não obstante todas as reticências relativas à sua natureza, não fariam qualquer sentido.

Esta questão da Verdade é extremamente relevante. Por exemplo, a Reeducação Postural constitui essencialmente uma grande Teoria, cujo principal postulado poderia ser, por exemplo, o de que “a estrutura e alinhamento articulares dependem do estado de tensão dos tecidos miofasciais”. Ou, por outras palavras, a saúde articular depende de boas características de flexibilidade miofascial e de tonicidade neuromuscular. E se, por exemplo, encontrar excepções à regra, como indivíduos com grandes deformidades articulares, sem possuírem tensão muscular relevante? (É o caso de muitos indivíduos com formas severas de artrite e espondilite). No fundo, nada muda, pois eu nunca disse que esse postulado servia para todas as situações. De facto, a forma e alinhamento das articulações depende grandemente dos tecidos moles como os músculos, os quais têm uma função de tirantes mecânicos, mas isso não quer dizer que a deformidade articular não possa ter outras causas. Temos, igualmente, o exemplo das deformidades congénitas. Porém, a grande maioria das deformidades associadas ao genético/congénito são, de facto, verdadeiramente adquiridas, e de natureza fundamentalmente muscular. E é precisamente nestes casos que faz sentido falar de uma intervenção “reeducativa”.

Gostaria de acrescentar algo sobre o conceito “reeducativo”. De facto, ainda mais se tivermos em conta que certos autores consideram que a verdadeira dismorfia está permanentemente estruturada e é inalterável, devemos, se calhar, ter em conta

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que nem sempre é de Reeducação Postural que se trata o nosso trabalho. Se calhar, mais importante que o processo reeducativo, é o processo preventivo, e, portanto, Educativo. Mais do que recuperar uma dismorfia, aquilo de que falamos realmente quando falamos dos métodos de (Re)educação Postural, desde os mais globais até aos mais analíticos, é da prevenção da dismorfia (que pode significar o evitar que um paramorfismo se torne uma dismorfia). No fundo, toda esta conversa do Anti-fitness assenta precisamente na importância da prevenção. A Educação Postural significa, no contexto do fitness, uma nova atitude face à actividade física, a qual permitirá, a meu ver, prevenir muitas lesões futuras. E uma grande discussão poderia sair daqui se quiséssemos discutir o papel da “prevenção” no mundo da Saúde portuguesa...

Deixo este “manifesto”, o qual não passa de uma introdução geral ao “anti-fitness”. Poderia, se quisesse, escrever um livro de mil e uma páginas. Nesse livro, procederia à análise de exercício a exercício, e dos erros neles presentes. Mas essa é uma tarefa demasiadamente prática, concreta e árdua para ser realizada pela palavra escrita. Deixo, então, somente um instrumento, mais simples, que tem como função dar a “outra face” da realidade. Quem quer aceitá-la aceita-a, quem não quiser não é, de forma alguma, obrigado a fazê-lo.

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