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JUSTIA RESTAURATIVAColetnea de ArtigosAlisson Morris Andr Gomma de Azevedo Chris Marshall Brenda Morrison Jan Froestad e Clifford Shearing Eliza Ahmed Mary P. Koss Chris Marshall, Jim Boyack e Helen Bowen Eduardo Rezende Melo L. Lynette Parker Pedro Scuro Neto Gabrielle Maxwell Mylne Jaccoud

Luiza Maria S. dos Santos Carvalho Philip Oxhorn e Catherine Slakmon Rachael Field Renato Scrates Gomes Pinto Renato Campos Pinto De Vitto Silvana S. Paz e Silvina M. Paz

Justia Restaurativa

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Mrcio Thomaz Bastos Ministro de Estado da Justia Carlos Lopes Representante Residente do PNUD - Brasil Srgio Rabello Tamm Renault Secretrio de Reforma do Judicirio

Comisso Organizadora Catherine Slakmon Universidade de Montreal Renato Campos Pinto De Vitto Secretaria de Reforma do Judicirio Renato Scrates Gomes Pinto Instituto de Direito Comparado e Internacional de Braslia - IDCB

MINISTRIO DA JUSTIA PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - PNUD

JUSTIA RESTAURATIVA

Slakmon, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justia Restaurativa (Braslia DF: Ministrio da Justia e Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento - PNUD).

A todos os autores que contriburam com um artigo para este livro, um sincero agradecimento pelo apoio nossa iniciativa. To all the authors who contributed an article to this book, in appreciation of their support for our initiative.

Renato Campos Pinto De Vitto, Catherine Slakmon e Renato Scrates Gomes Pinto

SUMRIOApresentao Srgio Rabello Tamm Renault e Carlos Lopes..................................................11 Prefcio...................................................................................................................................................13 PARTE I Questes Tericas......................................................................17 Captulo1- Justia Restaurativa Possvel no Brasil? Renato Scrates Gomes Pinto...........................................................................19 Captulo2-Justia Criminal, Justia Restaurativa e Direitos Humanos Renato Campos Pinto De Vitto........................................................................41 Captulo3-Justia restaurativa e seus desafios histrico-culturais. Um ensaio crtico sobre os fundamentos tico-filosficos da justia restaurativa em contraposio justia retributiva Eduardo Rezende Melo.....................................................................................53 Captulo4-Prtica da Justia - O Modelo Zwelethemba de Resoluo de Conflitos Jan Froestad e Clifford Shearing.......................................................................79 Captulo5- Justia Restaurativa - Processos Possveis. Mediao Penal - Verdade - Justia Restaurativa Silvana Sandra Paz e Silvina Marcela Paz.........................................................125 Captulo6-O Componente de Mediao Vtima-Ofensor na Justia Restaurativa: Uma Breve Apresentao de uma Inovao Epistemolgica na Autocomposio Penal Andr Gomma de Azevedo............................................................................135 Captulo7-Princpios, Tendncias e Procedimentos que Cercam a Justia Restaurativa Mylne Jaccoud.................................................................................................163

Captulo8 - Micro-justia, Desigualdade e Cidadania Democrtica. A Construo da SociedadeCivil atravs da Justia Restaurativa no Brasil Philip Oxhorn e Catherine Slakmon.......................................................................189 Captulo9 - Notas sobre a promoo da eqidade no acesso e interveno da Justia Luiza Maria S. dos Santos Carvalho.............................................................................213 Captulo10 - Chances e entraves para a justia restaurativa na Amrica Latina Pedro Scuro Neto.......................................................................................................227 PARTE II Experincias de Prticas Restaurativas.....................................247 Captulo11 - Justia Restaurativa: Um Veculo para a Reforma? L. Lynette Parker........................................................................................................249 Captulo12 - Como a Justia Restaurativa Assegura a Boa Prtica? Uma Abordagem Baseada Em Valores Chris Marshall, Jim Boyack e Helen Bowen..........................................................269 Captulo13 - A Justia Restaurativa na Nova Zelndia Gabrielle Maxwell .....................................................................................................281 Captulo14 - Justia Restaurativa nas Escolas Brenda Morrison.......................................................................................................297 Captulo15 - Padres de administrao da vergonha e da condio de intimidao Eliza Ahmed..............................................................................................................323 Captulo16 - Resposta da Comunidade. Ampliao a Resposta da Justia de uma Comunidade a Crimes Sexuais Pela Colaborao da Advocacia, da Promotoria, e da Sade Pblica: Apresentao do Programa RESTORE Mary Koss, Karen J. Bachar, Carolyn Carlson, C. Quince Hopkins.....................351

Captulo1 7- Encontro Restaurativo Vtima Infrator: Questes Referentes ao Desequilbrio de Poder Para Participantes Jovens do Sexo Feminino Rachael Field................................................................................................................387 Captulo18 - Pelo Amor de Deus! Terrorismo, Violncia Religiosa e Justia Restaurativa Chris Marshall....................................................................................................413 Captulo 19-Criticando os Crticos. Uma breve resposta aos crticos da Justia Restaurativa Alisson Morris...................................................................................................439 Relao de autores...........................................................................................439

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Justia Restaurativa

APRESENTAOA Secretaria de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia e o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD, tm desenvolvido, desde 2003, proveitosa parceria na rea da Justia. Dentre os vrios resultados obtidos a partir desse esforo comum, emerge uma preocupao especial: os meios alternativos de resoluo de conflitos. inegvel que eles constituem um instrumento de enorme importncia para o fortalecimento e melhoria da distribuio de Justia. Complementando o papel das instituies do sistema formal de Justia, os programas e sistemas alternativos podem representar um efetivo ganho qualitativo na soluo e administrao de conflitos, pelo que devem ser objeto de criterioso monitoramento e acurada avaliao, a fim de que as boas prticas sejam fomentadas e difundidas. A aplicao de tal modalidade de interveno no pas ainda , de uma forma geral, incipiente, como atesta o relatrio de pesquisa Acesso Justia por sistemas alternativos de administrao de conflitos. Note-se, porm, que no campo dos conflitos de natureza penal e infracional que nos ressentimos sobremaneira da ausncia de uma interveno diferenciada nos litgios. Da o interesse pelo modelo restaurativo que, na experincia comparada, se afigura como uma alternativa real para o sistema de justia criminal. Como se depreende do relato extrado pelos autores estrangeiros, no se trata apenas de uma construo terica, mas de um modelo j testado e incorporado por diversos pases e, ademais, recomendado pela Organizao das Naes Unidas. Neste contexto, e com o objetivo de avanar sobre a avaliao da forma pela qual o modelo pode se amoldar realidade jurdica e social brasileira, nasceu mais um fruto da parceria acima mencionada: o projeto Promovendo Prticas Restaurativas no Sistema de Justia Brasileiro. Esta iniciativa, envolve uma dimenso terica, consistente no aprofundamento da avaliao do modelo restaurativo, e uma dimenso prtica, que consistir no teste e avaliao das prticas restaurativas aplicadas no mbito da apurao de atos infracionais cometidos por adolescentes em conflito com a lei e no mbito dos Juizados Especiais Criminais, por meio de trs projetos-piloto. A publicao que ora apresentamos prope-se a disponibilizar, de forma pioneira em lngua portuguesa, diversos artigos focados em projetos j 11

implementados no mbito internacional, bem como na reflexo sobre seu aproveitamento para o sistema penal no Brasil e no Mundo. Assim esperamos contribuir para a consecuo de propsitos que norteiam a parceria encetada pelo Ministrio da Justia e PNUD: a construo de um sistema de justia mais acessvel e apto a intervir de forma mais efetiva na preveno e soluo de conflitos. Braslia, junho de 2005.

Srgio Rabello Tamm Renault Secretrio de Reforma do Judicirio

Carlos Lopes Representante Residente do PNUD

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Justia Restaurativa

PREFCIOA Justia Restaurativa emerge como uma esperana em meio ao crescimento do clima de insegurana que marca o mundo contemporneo, diante dos altos ndices de violncia e criminalidade. Parece evidenciar-se a necessidade de aprimoramento do sistema de justia, para que a sociedade e o Estado ofeream no apenas uma resposta monoltica ao crime, mas disponham de um sistema multi-portas, com outras respostas que paream adequadas diante da complexidade do fenmeno criminal. A difuso de prticas restaurativas em contextos nacionais diversos como Brasil, Argentina, Colmbia, frica do Sul, Nova Zelndia, Austrlia, Canad e Estados Unidos, suscita fascinantes questes sobre o sistema de justia em sociedades democrticas modernas. O que a justia restaurativa, e no que ela difere do sistema formal de justia? Como eles se conectam? Qual o impacto que ter a justia restaurativa para a sociedade e para o Estado? Quais os benefcios demonstrados e potenciais da justia restaurativa para os cidados e para o sistema de justia? Pode a justia restaurativa ser uma experincia bem sucedida em pases como o Brasil, onde o acesso justia permanece limitado para a maioria dos cidados e comunidades, e onde o sistema formal de justia tende a perpetuar mais do que eliminar as desigualdades scio-econmicas j existentes? Esta publicao, que buscar trazer luz algumas dessas questes, fruto de uma iniciativa realizada em parceria pela Secretaria de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia do Brasil e o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD, voltada a difundir os princpios restaurativos no pas. Para viabilizar esta publicao, convidamos renomados especialistas sobre justia restaurativa de todo o mundo para contribuir com esse propsito, e nossa chamada por artigos foi recebida de forma extremamente entusistica. Esta coletnea de textos acadmicos inclui contribuies de cientistas sociais, criminlogos, psiclogos, bem como de juzes, juristas e operadores do direito do Brasil, Argentina, Canad, Estados Unidos, Austrlia, Nova Zelndia, Inglaterra, e Noruega. O livro estruturado em duas partes. Na primeira, so abordadas questes tericas que gravitam em torno do debate sobre justia restaurativa. Na segunda, so tratadas as experincias desenvolvidas nos diversos pases que vm adotando prticas restaurativas, bem como estudos de casos de programas restaurativos especficos. 13

A anlise terica inicia-se com o artigo de Renato Scrates Gomes Pinto que, no captulo 1, procura introduzir alguns conceitos de justia restaurativa e discute a possibilidade de implementao do paradigma no Brasil, enfocando particularmente a questo de sua compatibilidade jurdica com a Constituio e a legislao vigentes no pas. No captulo 2, Renato Campos Pinto De Vitto amplia essa discusso ao abordar a correlao do modelo restaurativo com a doutrina de afirmao dos direitos humanos, situando-o dentre os paradigmas criminolgicos de reao estatal ao delito numa perspectiva histrica. No captulo 3, Eduardo Rezende Melo aprofunda a anlise, discutindo os desafios culturais e histricos na difuso e implementao da justia restaurativa e prope uma leitura crtica das fundaes tico-filosficas do paradigma em comparao com a justia retributiva. A seguir, no captulo 4, Clifford Shearing e Jan Froestad propem-se a contextualizar a justia restaurativa em termos de um conjunto nuclear de valores e de resultados associados. Argumentam que esta forma de pensar serve para abrir um espao conceitual que permite distinguir entre como estes valores so compreendidos em espaos diferentes, como o de justia criminal tradicional e o de justia restaurativa. No captulo 5, Silvana Sandra Paz e Silvina Marcela Paz discorrem sobre a perspectiva da relao entre mediao penal e justia restaurativa, identificando princpios para distinguir as vrias intervenes no campo da resoluo alternativa de conflitos. A seguir, abordam de forma categorizada, os possveis sistemas restaurativos e suas diferentes nuances. No captulo 6, Andr Gomma de Azevedo modelo de mediao vitma-ofensor e de suas caractersticas fundamentais, no contexto da justia restaurativa. No captulo 7, Mylne Jaccoud discute princpios, tendncias e debates sobre justia restaurativa e argumenta que o paradigma inclui orientaes e objetivos to diversificados que a justia restaurativa deve ser tomada como um paradigma fragmentado. No captulo 8, Philip Oxhorn e Catherine Slakmon examinam o relacionamento entre micro-justia, desigualdade e cidadania democrtica no Brasil e sustentam que a justia restaurativa representa uma arena importante para gerar o que eles definem como sinergia entre o Estado e a sociedade civil. No captulo 9, Luiza Maria S. dos Santos Carvalho, analisa questes sobre a formulao e implementao de uma poltica pblica voltada difuso de prticas restaurativas no Brasil. A seguir, no captulo 10, Pedro Scuro examina a interface entre justia restaurativa, segurana pblica e o financiamento internacional para projetos de justia comunitria e argumenta que, ao se transferir a administrao de algumas demandas de justia diretamente para os cidados e comunidades, se conduz auto-sustentabilidade. A discusso sobre as experincias de prticas restaurativas nos diversos pases inicia-se com o artigo de L. Lynette Parker que, no captulo 11, enfoca a 14 14

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evoluo da justia restaurativa na Amrica Latina, contemplando os avanos no Brasil, Colmbia, Mxico, Chile e Argentina. No Captulo 12, Chris Marshall, Jim Boyack, e Helen Bowen abordam a evoluo de justia restaurativa na Nova Zelndia e discutem os princpios fundamentais e valores adotados como paradigma para aquele pas. No Captulo 13, Gabrielle Maxwell avana na discusso do desenvolvimento e aplicao das prticas restaurativas na Nova Zelndia desde a justia juvenil at o sistema de justia criminal para adultos, e, mais recentemente, no mbito policial. No captulo 14, Brenda Morrison discute abordagens restaurativas responsivas como reguladoras da resposta a transgresses verificadas no ambiente escolar propondo um padro piramidal de estruturao de tais intervenes. No captulo 15, Eliza Ahmed investiga o nvel de ligao entre a capacidade dos jovens reconhecerem e administrarem a vergonha e a implicao destas habilidades como fatores que podem explicar seus envolvimentos em intimidao escolar. J no captulo 16, Mary Koss, Karen J. Bachar, Carolyn Carlson, e C. Quince Hopkins, discutem os xitos e desafios na implementao e avaliao do programa RESTORE, dotado de base comunitria e voltado para crimes sexuais. No captulo 17, Rachael Field fornece uma anlise crtica, baseada em um corte de gnero, para a aplicao dos modelos de encontros restaurativos para mulheres jovens infratoras, argumentando que esse pblico-alvo tm demandas especificas. No captulo 18, Chris Marshall discute as perspectivas da justia restaurativa para alm dos limites regionais e nacionais, propondo aplicaes inovadoras do modelo para vtimas e protagonistas de terrorismo religioso. Por fim, Alison Morris, no captulo 19, busca responder algumas das crticas endereadas ao modelo restaurativo, sugerindo que elas, por um lado, baseiam-se em vises equivocadas e que, por outro, omitem-se de avaliar o que a justia restaurativa alcanou e ainda poder alcanar, em contraposio com o que os sistemas criminais convencionais j atingiram. Os diversos assuntos tratados nos artigos acima referidos sugerem que a introduo de prticas restaurativas no sistema de justia brasileiro traduz, efetivamente, a possibilidade de se lograr um salto quntico na qualidade do trato da resoluo de conflitos. Tal introduo deve ser acompanhada de amplos debates, com a necessria participao da sociedade civil, fomentando-se a reflexo no s sobre a aplicabilidade do modelo no pas, como a necessidade de monitoramento e avaliao permanente dos programas implementados para que sua incorporao no se converta em mais uma iluso ou um mero paliativo, o que no seria nada desejvel para o nosso sistema formal de justia, que vivencia uma verdadeira crise de credibilidade. O modelo restaurativo, se bem aplicado, pode constituir um importante instrumento para a construo de uma justia participativa que opere real 15

transformao, abrindo caminho para uma nova forma de promoo dos direitos humanos e da cidadania, da incluso e da paz social, com dignidade. Esta coletnea, a primeira publicao brasileira que rene artigos de autores internacionais, nasce do intuito de estimular e qualificar o debate sobre o tema no meio jurdico e na comunidade acadmica brasileira.

Catherine Slakmon Renato Campos Pinto De Vitto Renato Scrates Gomes Pinto

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Justia Restaurativa

PARTE 1

QUESTES TERICAS

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Justia Restaurativa

Justia Restaurativa Possvel no Brasil?Renato Scrates Gomes PintoNo temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim que fazer algo melhor do que o Direito Penal... - Gustav Radbruch Introduo A exploso de criminalidade e violncia tem mobilizado o mundo contemporneo, que se v frente a um fenmeno que deve ser encarado na sua complexidade. Essa complexidade demanda criatividade. preciso avanar para um sistema flexvel de justia criminal, com condutas adequadas variedade de transgresses e de sujeitos envolvidos, num salto de qualidade, convertendo um sistema monoltico, de uma s porta, para um sistema multi-portas que oferea respostas diferentes e mais adequadas criminalidade. chegada a hora de pensarmos no apenas em fazer do Direito Penal algo melhor, mas algo melhor do que o Direito Penal, como pedia Radbruch. E nos perguntamos se a justia restaurativa no seria uma dessas portas, com abertura para uma resposta adequada a um considervel nmero de delitos. Nesse trabalho enfocamos o tema da compatibilidade jurdica da justia restaurativa com o sistema de Justia Criminal brasileiro, e externamos alguns pensamentos sobre sua possvel implementao no Brasil. Queremos ressaltar que tal compatibilidade no de ser apenas com nossa Constituio, nossa legislao e nossas prticas judiciais, mas tambm com o senso de justia e a cultura diversificada de nosso povo. Porisso no podemos copiar, ingnua e alienadamente, modelos estrangeiros, principalmente de pases cuja tradio jurdica difere da nossa, como o caso dos pases que adotam a common law. Nesse modesto ensaio, que no uma produo acadmica perfumada, nem recheada de informes estatsticos que muitas vezes retratam percepes e nem sempre realidades, estampa-se o grito de cidado frustrado e desencantado com o sistema, com que conviveu profissionalmente ao longo de vinte e sete anos, como operador jurdico, inicialmente como advogado e depois como defensor pblico, promotor de justia e procurador de justia. O trabalho se apresenta, inicialmente, com um enfoque conceitual, onde externamos o que nos parece ser a justia restaurativa. 19

Renato Scrates Gomes Pinto

A partir dessa tentativa de conceituao, esboamos um quadro comparativo do modelo restaurativo com o sistema convencional, dito retributivo. Finalmente, argumentamos que a justia restaurativa juridicamente sustentvel e compatvel com nosso sistema jurdico, e sugerimos algumas idias sobre como seria sua implementao no Brasil. O que Justia Restaurativa Abordagem Conceitual A Justia Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vtima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construo de solues para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo estritamente voluntrio, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaos comunitrios, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenrio judicirio, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores1, e podendo ser utilizadas tcnicas de mediao, conciliao e transao para se alcanar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegrao social da vtima e do infrator. importante ressaltar que com o advento da Lei dos Juizados Especiais Cveis e Criminais e do Estatuto da Criana e do Adolescente, tm sido adotadas prticas restaurativas no Brasil, mas no com sua especificidade, seus princpios, valores, procedimentos e resultados conforme definidos pela ONU. O paradigma restaurativo vai alm do procedimento judicial dos juizados especiais para resgatar a convivncia pacfica no ambiente afetado pelo crime, em especial naquelas situaes em que o ofensor e a vtima tem uma convivncia prxima, como pontua o juiz Asiel Henrique de Sousa, num estudo preliminar para a implantao de um Projeto Piloto em Braslia, no Ncleo Bandeirante2. Em suas reflexes, ainda no publicadas, acrescenta ele que em delitos envolvendo violncia domstica, relaes de vizinhana, no ambiente escolar ou na ofensa honra, por exemplo, mais importante do que uma punio a adoo de medidas que impeam a instaurao de um estado de beligerncia e a conseqente agravao do conflito. No debate criminolgico, o modelo restaurativo pode ser visto como uma sntese dialtica, pelo potencial que tem para responder s demandas da sociedade por eficcia do sistema, sem descurar dos direitos e garantias constitucionais, da necessidade de ressocializao dos infratores, da reparao s vtimas e comunidade e ainda revestir-se de um necessrio abolicionismo moderado. 20 20

Justia Restaurativa

A justia restaurativa um luz no fim do tnel da angstia de nosso tempo, tanto diante da ineficcia do sistema de justia criminal como a ameaa de modelos de desconstruo dos direitos humanos, como a tolerncia zero e representa, tambm, a renovao da esperana. E promover a democracia participativa na rea de Justia Criminal, uma vez que a vtima, o infrator e a comunidade se apropriam de significativa parte do processo decisrio, na busca compartilhada de cura e transformao, mediante uma recontextualizao construtiva do conflito, numa vivncia restauradora. O processo atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo, em que o Estado, figura, com seu monoplio penal exclusivo, como a encarnao de uma divindade vingativa sempre pronta a retribuir o mal com outro mal (Beristain, 2000). Como um paradigma novo, o conceito de Justia Restaurativa ainda algo inconcluso, que s pode ser captado em seu movimento ainda emergente. Para compreend-la preciso usar outras lentes alis, denomina-se Changing Lenses: A New Focus for Crime and Justice a obra de Howard Zehr (1990), uma das mais consagradas referncias bibliogrficas sobre a Justia Restaurativa. Segundo Zehr, o crime uma violao nas relaes entre o infrator, a vtima e a comunidade, cumprindo, porisso, Justia identificar as necessidades e obrigaes oriundas dessa violao e do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, Justia oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justia, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente teraputico seja alcanado. Para Pedro Scuro Neto, fazer justia do ponto de vista restaurativo significa dar resposta sistemtica s infraes e a suas conseqncias, enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputao, destacando a dor, a mgoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participao de todos os envolvidos (vtima, infrator, comunidade) na resoluo dos problemas (conflitos) criados por determinados incidentes. Prticas de justia com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparao, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relao convencional com sistema de Justia, significando, assim, trabalhar para restaurar, 21

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reconstituir, reconstruir; de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou infrao devem ter, se quiserem, a oportunidade de participar do processo restaurativo (Scuro Neto, 2000). Paul Maccold e Ted Wachtel propem uma teoria conceitual de Justia que parte de trs questes-chave: Quem foi prejudicado? Quais as suas necessidades? Como atender a essas necessidades? Sustentam eles que crimes causam danos a pessoas e relacionamentos, e que a justia restaurativa no feita porque merecida e sim porque necessria, atravs de um processo cooperativo que envolve todas as partes interessadas principais na determinao da melhor soluo para reparar o dano causado pela transgresso - a justia restaurativa um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de partes interessadas principais, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgresso ( McCold, Paul e Wachtel, 2003). A teoria conceitual proposta por esses autores procura demonstrar que a simples punio no considera os fatores emocionais e sociais, e que fundamental, para as pessoas afetadas pelo crime, restaurar o trauma emocional - os sentimentos e relacionamentos positivos, o que pode ser alcanado atravs da justia restaurativa, que objetiva mais reduzir o impacto dos crimes sobre os cidados do que diminuir a criminalidade. Sustentam que justia restaurativa capaz de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento e o ponto chave para a obteno e manuteno de uma sociedade civil saudvel. A idia, ento, se voltar para o futuro e para restaurao dos relacionamentos, ao invs de simplesmente concentrar-se no passado e na culpa3. A justia convencional diz voc fez isso e tem que ser castigado! A justia restaurativa pergunta: o que voc pode fazer agora para restaurar isso? O modelo restaurativo baseia-se em valores, procedimentos e resultados definidos, mas pressupe a concordncia de ambas as partes (ru e vtima), concordncia essa que pode ser revogada unilateralmente, sendo que os acordos devem ser razoveis e as obrigaes propostas devem atender ao princpio da proporcionalidade. A aceitao do programa no deve, em nenhuma hiptese, ser usada como indcio ou prova no processo penal, seja o original seja em um outro. 22 22

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As primeiras experincias modernas com mediao entre infrator e vtima, colocadas em prtica nos anos setenta, j apresentavam caractersticas restaurativas, na medida em que, em encontros coordenados por um facilitador, a vtima descrevia sua experincia e o impacto que o crime lhe trouxe e o infrator apresentava uma explicao vtima. A experincia neozelandesa, baseada nas tradies maoris, ampliou esses encontros (restorative conferences), para dele participarem tambm familiares e pessoas que apoiavam as partes. No Canad o modelo tambm inspirado nas culturas indgenas em que os protagonistas que se sentam em crculo e um papel passado de mo em mo, s falando a pessoa que est com esse papel na mo. A reunio se encaminha para um momento em que todos os participantes convergem na percepo que chegou o momento de se solucionar o conflito. J se pode dizer que, apesar de ser um paradigma novo, j existe um crescente consenso internacional a respeito de seus princpios, inclusive oficial, em documentos da ONU e da Unio Europia, validando e recomendando a Justia Restaurativa para todos os pases4. Os conceitos enunciados nos Princpios Bsicos sobre Justia Restaurativa, enunciados na Resoluo do Conselho Econmico e Social das Naes Unidas, de 13 de Agosto de 2002, so os seguintes5:

1. Programa Restaurativo - se entende qualquer programa que utilize processos restaurativos voltados para resultados restaurativos. 2. Processo Restaurativo - significa que a vtima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, participam coletiva e ativamente na resoluo dos problemas causados pelo crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo abrange mediao, conciliao, audincias e crculos de sentena 3. Resultado Restaurativo - significa um acordo alcanado devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparao, restituio, prestao de servios comunitrios, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e logrando a reintegrao da vtima e do infrator.

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Renato Scrates Gomes Pinto

Releva notar que o processo restaurativo s tem lugar quando o acusado houver assumido a autoria e houver um consenso entre as partes sobre como os fatos aconteceram, sendo vital o livre consentimento tanto da vtima como do infrator, que podem desistir do procedimento a qualquer momento.

Diferenas entre Justia Restaurativa e a Justia ConvencionalAs diferenas bsicas entre o modelo formal de Justia Criminal, dito retributivo (dissuasrio e deficientemente ressocializador) e o modelo restaurativo, so expostas em formato tabular para melhor visualizao dos valores, procedimentos e resultados dos dois modelos e os efeitos que cada um deles projeta para a vtima e para o infrator6. VALORESJUSTIA RETRIBUTIVA Conceito jurdico-nor mativo de Crime - ato contra a sociedade representada pelo E stado Unidisciplinariedade Primado do Interesse Pblico (Sociedade, representada pelo E stado, o Centro) - Monoplio estatal da Justia Criminal Culpabilidade Individual voltada para o passado - E stigmatizao JUSTIA RESTAURATIVA Conceito realstico de Crime - Ato que traumatiza a vtima, causandolhe danos. - Multidisciplinariedade Primado do Interesse das Pessoas E nvolvidas e Comunidade - Justia Criminal participativa Responsabilidade, pela restaurao, numa dimenso social, compartilhada coletivamente e voltada para o futuro

Uso Dogmtico do Direito Penal Uso Crtico e Alternativo do Direito Positivo Indiferena do E stado quanto s necessidades do infrator, vtima e comunidade afetados desconexo Mono-cultural e excludente Dissuaso Comprometimento com a incluso e Justia Social gerando conexes

Culturalmente flexvel (respeito diferena, tolerncia) Persuaso

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Justia Restaurativa

PROCEDIMENTOS JUSTIA RETRIBUTIVA Ritual Solene e Pblico Indisponibilidade da Ao Penal Contencioso e contraditrio Linguagem, nor mas e procedimentos for mais e complexos - garantias. Atores principais - autoridades (representando o E stado) e profissionais do Direito Processo Decisrio a cargo de autoridades (Policial,Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito - Unidimensionalidade JUSTIA RESTAURATIVA Comunitrio, com as pessoas envolvidas Princpio da O portunidade Voluntrio e colaborativo Procedimento infor mal com confidencialidde Atores principais - autoridades (representando o E stado) e profissionais do Direito Processo Decisrio compartilhado com as pessoas envolvidas (vtima, infrator e comunidade) - Multidimensionalidade

RESULTADOSJUSTIA RETRIBUTIVA Preveno Geral e E special -Foco no infrator para intimidar e punir Penalizao Penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, multa E stigmatizao e Discriminao JUSTIA RESTAURATIVA Abordagem do Crime e suas Conseqncias - Foco nas relaes entre as partes, para restaurar Pedido de Desculpas, Reparao, restituio, prestao de ser vios comunitrios Reparao do trauma moral e dos Prejuzos emocionais - Restaurao e Incluso

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Renato Scrates Gomes Pinto

JUSTIA RETRIBUTIVATutela Penal de Bens e Interesses, com a Punio do Infrator e Proteo da Sociedade Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime carcerrio desumano, cr uel, degradante e crimingeno - ou penas alternativas ineficazes (cestas bsicas) Vtima e Infrator isolados, desamparados e desintegrados. Ressocializao Secundria Paz Social com Tenso

JUSTIA RESTAURATIVAResulta responsabilizao espontnea por parte do infrator Proporcionalidade e Razoabilidade das O brigaes Assumidas no Acordo Restaurativo

Reintegrao do Infrator e da Vtima Prioritrias Paz Social com Dignidade

EFEITOS PARA A VTIMA

JUSTIA RETRIBUTIVA Pouqussima ou nenhuma considerao, ocupando lugar perifrico e alienado no processo. No tem participao, nem proteo, mal sabe o que se passa.

JUSTIA RESTAURATIVA O cupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa. Participa e tem controle sobre o que se passa.

Recebe assistncia, afeto, Praticamente nenhuma restituio de perdas materiais e assistncia psicolgica, social, econmica ou jurdica do E stado reparao Fr ustrao e Ressentimento com Tem ganhos positivos. Supre-se o sistema as necessidades individuais e coletivas da vtima e comunidade 26 26

Justia Restaurativa

EFEITOS PARA O INFRATOR

JUSTIA RETRIBUTIVA Infrator considerado em suas faltas e sua m formao Raramente tem participao Comunica-se com o sistema pelo advogado desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vtima

JUSTIA RESTAURATIVA Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e consequncias do delito Participa ativa e diretamente Interage coma vtima e com a comunidade

Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se com o trauma da vtima informado sobre os fatos do desinformado e alienado sobre processo restaurativo e contribui os fatos processuais para a deciso No efetivamente responsabilizado, inteirado das conseqncias do mas punido pelo fato fato para a vtima e comunidade Fica intocvel No tem suas necessidades consideradas Fica acessvel e se v envolvido no processo Supre-se suas necessidades

Sustentabilidade Jurdica do Paradigma Restaurativo como Poltica Criminal Respondendo s CrticasO paradigma restaurativo desafia resistncias, particularmente de operadores jurdicos alienados e presos idia de um Direito blindado contra mudanas, sob o argumento equivocado - de que ele desvia-se do devido processo legal, das garantias constitucionais e produz uma sria eroso no Direito Penal codificado. Na verdade, j existem, e afloraro ainda mais, muitos obstculos econmicos, sociais, culturais e jurdicos a esse paradigma emergente, na forma de incredulidade, desconfiana, confuso, incerteza, preconceito, etc. Mas h tambm respeitveis e consistentes questionamentos crticos7 nos debates realizados a respeito do tema8. Vozes respeitveis acenam com o argumento de que a Justia Restaurativa representaria um retorno ao perodo da Vingana Privada, num retrocesso histrico. 27

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A esse argumento responde-se que equivocado imaginar que antes do advento do perodo da Vingana Divina e Pblica s havia uma justia privada bestial. Zehr procura demonstrar que haviam prticas comunitrias de justia, com mediao e caractersticas restaurativas (Rolim, 2003) tanto que a Justia Restaurativa um resgate de algumas dessas prticas, sobretudo indgenas e aborgines, consolidadas por sculos9. No h, pois retorno, mas avano com recuperao de valores culturais perdidos, abandonados e negligenciados pelos historiadores. Tambm se observa a afirmao de que a Justia Restaurativa no tem o condo de restaurar a ordem jurdica lesada pelo crime, e nem mesmo pode restaurar a vtima. A essa crtica ela ope o argumento de que, na sua feio de procedimento complementar do sistema, a J.R. estar tambm recompondo a ordem jurdica, com outra metodologia, que leva a resultados melhores para a vtima e infrator, pois aquela recupera segurana, auto-estima, dignidade e controle da situao, e este tem oportunidade de refazer-se e reintegrar-se, pois ao mesmo tempo que o convoca na sua responsabilidade pelo mal causado, lhe oferece meios dignos para transformao, inclusive participando de programas da rede social de assistncia (Morris, Alison 2003). Uma outra crtica reside na afirmao de que nos pases aonde vem sendo experimentado o modelo, como na Nova Zelndia, de que a Justia Restaurativa desjudicializa a Justia Criminal e privatiza o Direito Penal, sujeitando o infrator, e tambm a vtima, a um controle ilegtimo de pessoas no investidas de autoridade pblica. A esse questionamento oponvel o argumento de o processo restaurativo no exerccio privado, mas o exerccio comunitrio portanto tambm pblico de uma poro do antes exclusivo monoplio estatal da justia penal, numa concretizao de princpios e regras constitucionais. O que ocorre um procedimento que combina tcnicas de mediao, conciliao e transao previstas na legislao, como se ver adiante, com metodologia restaurativa, mediante a participao da vtima e do infrator no processo decisrio, quando isso for possvel e for essa a vontade das partes. Releva lembrar que o acordo restaurativo ter que ser aprovado, ou no, pelo Ministrio Pblico e pelo advogado10 e ter que ser homologado, ou no, pelo Juiz. E nada disso revoga o princpio da inafastabilidade da jurisdio, ou seja, sendo o caso, tanto a vtima, como o infrator atravs de advogados como o Ministrio Pblico, de ofcio ou a requerimento do interessado, poder questionar o acordo restaurativo em juzo. Tambm se diz que a Justia Restaurativa soft, passando a mo na 28 28

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cabea do infrator, s servindo para benefici-lo e promover a impunidade. Ora, o grande clamor social contra a impunidade e a lenincia do sistema penal justamente contra o sistema formal e vigente. E a par disso, os estudiosos tm reiterado que j est ultrapassada a equivocada viso que o crcere o remdio para a criminalidade, e que as medidas alternativas so muito mais justas e eficazes como resposta para a maioria dos delitos, embora, ressalte-se, as penas alternativas enfocam mais a perspectiva do infrator, e tm sido desacreditadas, com o pagamento de cestas bsicas, no Brasil, numa desmoralizao da Justia, principalmente por se acabar privilegiando acusados com poder aquisitivo alto, fazendo as pessoas se sentirem at mesmo insultadas.

Compatibilidade Jurdica da Justia Restaurativa com o Sistema Brasileiro e sua Implementao no BrasilO modelo restaurativo perfeitamente compatvel com o ordenamento jurdico brasileiro, em que pese ainda vigorar, em nosso direito processual penal, o princpio da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ao penal pblica. Tal princpio, contudo, se flexibilizou com a possibilidade da suspenso condicional do processo e a transao penal, com a Lei 9.099/95. Tambm nas infraes cometidas por adolescentes, com o instituto da remisso, h considervel discricionariedade do rgo do Ministrio Pblico. Nos pases do sistema common law, o sistema mais receptivo alternativa restaurativa (restorative diversion), principalmente pela chamada discricionariedade do promotor e da disponibilidade da ao penal (prosecutorial discretion), segundo o princpio da oportunidade. Naquele sistema h, ento, grande abertura para o encaminhamento de casos a programas alternativos mais autnomos, ao contrrio do nosso, que mais restritivo11. Mas com as inovaes da Constituio de 1988 e o advento, principalmente, da Lei 9.099/95, abre-se uma pequena janela, no sistema jurdico do Brasil, ao princpio da oportunidade, permitindo certa acomodao sistmica do modelo restaurativo em nosso pas, mesmo sem mudana legislativa. A Constituio prev, no art. 98, I, a possibilidade de conciliao em procedimento oral e sumarssimo, de infraes penais de menor potencial ofensivo. Art. 98. A Unio, no Distrito Federal e nos Territrios, e os Estados criaro: I. Juizados especiais, providos por juzes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliao, o julgamento e a execuo de causas cveis de menor complexidade e infraes penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumarssimo, permitidos, 29

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nas hipteses previstas em lei, a transao e o julgamento de recursos por turmas de juzes de primeiro grau; A fase preliminar prevista no art. 70 e 72 a 74, da lei 9.099/95, pode ter a forma restaurativa. Da Fase Preliminar Art. 70. Comparecendo o autor do fato e a vtima, e no sendo possvel a realizao imediata da audincia preliminar, ser designada data prxima, da qual ambos sairo cientes. Art. 71... Art. 72. Na audincia preliminar, presente o representante do Ministrio Pblico, o autor do fato e a vtima e, se possvel, o responsvel civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecer sobre a possibilidade da composio dos danos e da aceitao da proposta de aplicao imediata de pena no privativa de liberdade. Art. 73. A conciliao ser conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua orientao. Pargrafo nico. Os conciliadores so auxiliares da Justia, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharis em Direito, excludos os que exeram funes na administrao da Justia Criminal. Art. 74. A composio dos danos civis ser reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentena irrecorrvel, ter eficcia de ttulo a ser executado no juzo civil competente. Pargrafo nico. Tratando-se de ao penal de iniciativa privada ou de ao penal pblica condicionada representao, o acordo homologado acarreta a renncia ao direito de queixa ou representao. Os dispositivos acima permitem ao juiz oportunizar a possibilidade de composio dos danos e da aceitao da proposta de aplicao imediata de pena no privativa de liberdade(art. 72), num procedimento que pode ser conduzido por um conciliador12. Tais dispositivos, interpretados extensivamente e com base na diretriz hermenutica do art. 5 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil, so normas permissivas e que legitimam a ilao de que esse procedimento pode ser encaminhado a um Ncleo de Justia Restaurativa. Se presentes, num caso considerado, os pressupostos de admissibilidade do processo restaurativo, sob o ponto de vista jurdico (requisitos objetivos e subjetivos a serem definidos em consonncia com a lei penal), seria o mesmo 30 30

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encaminhado ao Ncleo de Justia Restaurativa, para avaliao multidisciplinar e, convergindo-se sobre sua viabilidade tcnica, se avanaria nas aes preparatrias para o encontro restaurativo. Releva destacar um ponto que pode ensejar controvrsia relevante: o pargrafo nico, do art. 74, da Lei 9.099/95, dispe que o acordo de que trata o caput importa em renncia ao direito de queixa ou representao, nos casos de crime de ao penal privada ou pblica condicionada. Como um dos princpios da Justia Restaurativa revogabilidade do acordo restaurativo, a pergunta que emerge a seguinte: Como o acordo extingue o direito de queixa ou representao, e se o infrator descumprir o acordo restaurativo? Como fica o resultado restaurativo estabelecido anteriormente? Teoricamente, ento, seria juridicamente invivel o encaminhamento para a mediao restaurativa os casos de crimes de ao privada ou pblica condicionada, o que consubstancia uma gritante incoerncia, pois se a mediao restaurativa vivel nos crimes de ao penal pblica por qu no o seria para os crimes de ao penal pblica condicionada ou de ao privada? Contudo, trata-se de um falso problema, pois no h nenhum impedimento legal para a proposta de encaminhamento desses casos para o procedimento restaurativo, desde que a vtima seja informada de maneira clara e inequvoca de que acordo importar em renncia ao direito de queixa ou representao, de sorte que lhe restar apenas a busca da reparao cvel negociada. Outra janela para a alternativa restaurativa o instituto da suspenso condicional do processo, para crimes em que a pena cominada for igual ou inferior a um ano, para qualquer tipo de crime e no apenas aos crimes cuja pena mxima seja de 2 anos (ou 4 anos nos casos de delitos contra idosos). Um crime de estelionato, por exemplo, cuja pena varia de um a quatro anos, pode ser objeto de suspenso condicional do processo. Diz o citado art. 89, da lei 9.099/95: Art. 89. Nos crimes em que a pena mnima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou no por esta Lei, o Ministrio Pblico, ao oferecer a denncia, poder propor a suspenso do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado no esteja sendo processado ou no tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspenso condicional da pena (art. 77 do Cdigo Penal). 1 Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presena do Juiz, este, recebendo a denncia, poder suspender o processo, submetendo o acusado a perodo de prova, sob as seguintes condies: I - reparao do dano, salvo impossibilidade de faz-lo; II - proibio de freqentar determinados lugares; 31

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III - proibio de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorizao do Juiz; IV - comparecimento pessoal e obrigatrio a juzo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. 2 O Juiz poder especificar outras condies a que fica subordinada a suspenso, desde que adequadas ao fato e situao pessoal do acusado. 3 A suspenso ser revogada se, no curso do prazo, o beneficirio vier a ser processado por outro crime ou no efetuar, sem motivo justificado, a reparao do dano. 4 A suspenso poder ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contraveno, ou descumprir qualquer outra condio imposta. 5 Expirado o prazo sem revogao, o Juiz declarar extinta a punibilidade. 6 No correr a prescrio durante o prazo de suspenso do processo. 7 Se o acusado no aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguir em seus ulteriores termos. Portanto, tambm para as situaes que admitam a suspenso condicional do processo pode ser feito o encaminhamento ao Ncleo de Justia Restaurativa, pois a par das condies legais obrigatrias para a suspenso do processo, o 2o permite a especificao de outras condies judiciais - tais condies poderiam perfeitamente ser definidas no encontro restaurativo. Como j mencionado, alm da Lei 9.099/95, tambm o Estatuto da Criana e do Adolescente enseja e recomenda implicitamente o uso do modelo restaurativo, em vrios dispositivos, particularmente quando dispe sobre a remisso (art. 126) e diante do amplo elastrio das medidas scio-educativas previstas no art. 112 e seguintes do diploma legal. Tambm nos crimes contra idosos, o processo restaurativo possvel, por fora do art. 94, da Lei n. 10.741/03 o Estatuto do Idoso que prev o procedimento da Lei 9.099/95 para crimes contra idosos cuja pena privativa de liberdade no ultrapasse 4 anos. Mas preciso ter sempre presente que o procedimento restaurativo no , pelo menos por enquanto, expressamente previsto na lei como um devido processo legal no sentido formal. A aceitao, pelas partes, da alternativa restaurativa, por essa razo, no pode ser imposta, nem direta, nem indiretamente. As partes devem ser informadas, de forma clara, que se trata de uma 32 32

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ferramenta alternativa posta disposio delas, e sua aceitao, que pode ser revogada a qualquer momento, dever ser sempre espontnea. A participao dever ser estritamente voluntria. Por outro lado, devem ser rigorosamente observados todos os direitos e garantias fundamentais de ambas as partes, a comear pelo princpio da dignidade humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequao e do interesse pblico. Certos princpios fundamentais aplicveis ao direito penal formal, tais como o da legalidade, interveno mnima, lesividade, humanidade, culpabilidade, entre outros, devem ser levados em considerao. Na fase preparatria afigura-se aconselhvel se consultar primeiramente o acusado de sorte a se assegurar sua concordncia em participar e se vislumbrar a real possibilidade de um resultado efetivo do caminho restaurativo, no que toca ao infrator. Somente aps essa consulta se indagaria da vtima se ela concorda. Nesse momento muito importante no criar expectativas e tenso entre acusado e vtima. Os mediadores ou facilitadores devem ser preferencialmente ser psiclogos ou assistentes sociais, mas nada impede e qui possa ser melhor que sejam pessoas ligadas da comunidade, com perfil adequado, bem treinadas para a misso, pois mediadores ou facilitadores que pertenam mesma comunidade da vtima e do infrator, que tenham a mesma linguagem, certamente encontraro maior permeabilidade nos protagonistas para a construo de um acordo restaurativo. de primordial importncia que a audincia restaurativa transcorra num ambiente informal, tranqilo e seguro e os mediadores ou facilitadores devem estar rigorosamente atentos, observando se no h qualquer indcio de tenso ou ameaa que recomende a imediata suspenso do procedimento restaurativo, como em casos de agressividade ou qualquer outra intercorrncia psicolgica, para se evitar a re-vitimizao do ofendido ou mesmo a vitimizao do infrator, no encontro. Uma das questes mais sensveis a do desequilbrio econmico, psicosocial, e cultural entre as partes envolvidas nos processos restaurativos. Vtimas e infratores que se sentem estigmatizados, traumatizados, fragilizados, tais como pessoas econmica, social e culturalmente desfavorecidas os PPPs13, crianas, mulheres, idosos, negros, mestios em geral, homossexuais, artesos com aparncia de vadios, mendigos, dependentes qumicos, - tm que ter sua condio considerada e serem assistidas em sua condio de desvantagem e desamparo, para que sua fragilidade e vulnerabilidade no levem costura de acordos contrrios tica e aos princpios restaurativos. Como a implementao da Justia Restaurativa envolve gesto concernente administrao da Justia, as partes tm o direito de terem um servio eficiente (princpio constitucional da eficincia art. 37), com facilitadores 33

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realmente capacitados e responsveis, com sensibilidade para conduzir seu trabalho, respeitando os princpios, valores e procedimentos do processo restaurativo, pois uma garantia implcita dos participantes a um, digamos, devido processo legal restaurativo. No Brasil, o programa poderia funcionar em espaos comunitrios ou centros integrados de cidadania, onde seriam instalados ncleos de justia restaurativa, que teriam uma coordenao e um conselho multidisciplinar, e cuja estrutura compreenderia cmaras restaurativas onde se reuniriam as partes e os mediadores/facilitadores, com o devido apoio administrativo e de segurana. Os ncleos de justia restaurativa devero atuar em ntima conexo com a rede social de assistncia, com apoio dos rgos governamentais, das empresas e das organizaes no governamentais, operando em rede, para encaminhamento de vtimas e infratores para os programas indicados para as medidas acordadas no plano traado no acordo restaurativo. perfeitamente possvel utilizar estruturas j existentes e consideradas apropriadas, mas deve ser, preferencialmente, usados espaos comunitrios neutros para os encontros restaurativos. Os casos indicados para uma possvel soluo restaurativa, segundo critrios estabelecidos, aps parecer favorvel do Ministrio Pblico, seriam encaminhados para os ncleos de justia restaurativa, que os retornaria ao Ministrio Pblico, com um relatrio e um acordo restaurativo escrito e subscrito pelos participantes. A Promotoria incluiria as clusulas ali inseridas na sua proposta, para homologao judicial, e se passaria, ento, fase executiva, com o acompanhamento integral do cumprimento do acordo, inclusive para monitoramento e avaliao dos projetos-piloto e, futuramente, da Justia Restaurativa institucionalizada como uma ferramenta disponibilizada universalmente aos cidados e s comunidades.

ConclusoA impresso que se tem que apesar das vantagens que pode ter o programa, ele deve ser experimentado com cautela e controle, e deve estar sempre sendo monitorado e avaliado, com rigor cientfico. Cumpre reiterar que precisamos construir uma justia restaurativa brasileira e latino-americana, considerando que nossa criminalidade retrata mais uma reao social, inclusive organizada, a uma ordem injusta, cruel, violenta e, por que no, tambm criminosa. As diretrizes da ONU podem ser nosso norte, para trilharmos nossos caminhos, adaptando a Justia Restaurativa ao nosso contexto. O que se prope, aqui, um projeto brasileiro de Justia Restaurativa, 34

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como um produto de debates em fruns apropriados, com ampla participao da sociedade, para que seja um programa concebido e desenvolvido para funcionar e se ver legitimado. E releva atentar para a questo de que no somente a sustentabilidade jurdica e a compatibilidade do modelo com o sistema brasileiro que tm relevo, mas tambm a necessidade premente dele para o Brasil, onde manifesta a falncia do sistema de justia criminal e o crescimento geomtrico da violncia e da criminalidade, gerando, na sociedade, uma desesperada demanda por enfrentamento efetivo desse complexo fenmeno. Nosso sistema, em que pese algumas reformas, continua obsoleto, ineficaz e carcomido, sendo certo que a criminalidade dobrou nos anos 80 e triplicou nos anos 90 e continua a expandir e a aumentar a cada dia a descrena nas instituies democrticas, inclusive com o complicador da influncia da mdia sensacionalista mobilizando a opinio pblica rumo a uma atitude fundamentalista que agrava o quadro e produz uma sensao geral de insegurana. Acreditamos que possvel a Justia Restaurativa no Brasil, como oportunidade de uma justia criminal participativa que opere real transformao, abrindo caminho para uma nova forma de promoo dos direitos humanos e da cidadania, da incluso e da paz social, com dignidade.

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NotasPara os neozelandeses, no ocorre mediao, mas facilitao no processo restaurativo. Os argentinos usam a expresso mediacin. (Morris, Allison and Warren Young, 2001; Paz, Silvina e Silvana, 2000) 2 O Ncleo Bandeirante hoje uma circunscrio, em Braslia - um bairro agregado ao Plano Piloto, onde comeou o povoamento da nova capital, no final da dcada de 50, e que se chamava Cidade Livre 3 A propsito, Warat e Legendre (1995) lembram que a lei, no ocidente judaicocristo, cumpre um papel totmico, de superego da cultura, baseado no sentimento de moralidade culposa. 4 Veja os documentos no endereo eletrnico: http://www.restorativejustice.org/ rj3/rjUNintro2.html 5 Veja os documentos no endereo eletrnico : http://www.restorativejustice.org/ rj3/rjUNintro2.html 6 Essa anlise baseada nas exposies e no material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelndia, por ocasio do memorvel Seminrio sobre o Modelo Neozelands de Justia Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Braslia, em parceria com a Escola do Ministrio Pblico da Unio e Associao dos Magistrados do DF, em maro de 2004. 7 Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelndia, oferece uma fundamentada rplica s principais crticas justia restaurativa, num precioso ensaio publicado pelo The British Journal of Criminology. Confira em http:/ /bjc.oupjournals.org/cgi/content/abstract/42/3/596 8 O Instituto de Direito Comparado e Internacional de Braslia promoveu, em parceria com a Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio, dois seminrios sobre Justia Restaurativa: o primeiro, em 2003, convidando o Professor Pedro Scuro Neto e as Professoras argentinas Silvina e Silvana Paz; o segundo, em 2004, convidando o Ministro da Justia da Nova Zelndia, Sr. Phil Golph, e as Professoras da Universidade Victoria de Wellington, Gabrielle Maxwell E Allison Morris. Em 2004, houve, tambm, um importante seminrio internacional em Porto Alegre, promovido pelo Instituto de Acesso Justia. 9 Restorative Justice Information on Court-referred Restorative Justice. Publicao do Ministrio da Justia da Nova Zelndia, acessvel em http:// www.justice.govt.nz/crrj/ pg. 18 10 Ao contrrio do que se pode pensar, o Advogado no perde espao nesse processo, pois ele intervm desde a opo das partes pelo programa at na avaliao de sua validade, sob o ponto de vista jurdico, questionando-a, se for o caso. 11 Por essa razo afirmarmos, na introduo, que no podemos ingnua e aliena1

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damente querer copiar modelos estrangeiros, principalmente dos pases que adotam a common law, porquanto incompatvel com nosso sistema jurdico, que carece modificaes na legislao para acomodar sistemicamente o paradigma restaurativo. 12 A expresso valeria para o mediador ou facilitador restaurativo um profissional preferencialmente psiclogo, advogado, assistente social ou socilogodevidamente capacitado em tcnicas de mediao restaurativa. 13 Sigla correspondente a Pobres, Pretos e Prostitutas, de uso pejorativo no Brasil.

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Justia Criminal, Justia Restaurativa e Direitos Humanos *Renato Campos Pinto De VittoO que queremos com o nosso sistema criminal? Como deve se situar a vtima no processo penal? Como garantir sua incluso no processo, sem risco de retrocesso em relao proteo dos direitos humanos? Conscientes da profundidade destes questionamentos, no temos a pretenso de trazer respostas. Arriscamo-nos apenas a tecer algumas consideraes que parecem guardar pertinncia com o tema, a fim de fomentar o debate que se afigura no apenas oportuno, mas urgente e necessrio. Antes de mais nada, precisamos definir o que, de fato, se pretende construir por meio do nosso sistema de Justia: uma nao de jaulas ou uma nao de cidados. Segundo dados do Escritrio de Estatsticas Judiciais (Bureau of Justice Statistics) do Departamento de Justia norte-americano, havia em junho de 2003, 2.078.570 pessoas em prises federais ou estaduais naquele pas. Em 1995, a taxa de encarceramento por 100.000 habitantes era de 411, e em 2003 este nmero j equivalia a 480, o que nos indica que a democracia estado-unidense o regime que mais prende hoje no mundo, superando os nmeros da China e da Rssia. Se somarmos, ao nmero de pessoas encarceradas, o nmero de pessoas em regime de liberdade condicional ou probation chegamos incrvel cifra de quase sete milhes de pessoas. Impressiona o fato de que apesar de os negros representarem 12 % da populao do pas e os brancos 71% os negros so quase a metade da populao carcerria. Segundo Srgio Kalili1, em 2001, um em cada trs negros em torno de 20 anos de idade vivia trancafiado, em regime probatrio, condicional, ou aguardando julgamento. certo que o exemplo norte-americano representa uma situao extrema, mas que deve ser lembrada a fim de entendermos para onde caminhar. Se no plano da elaborao legislativa, vivemos no Brasil, nas ltimas dcadas, um movimento pendular entre o garantismo penal e a doutrina da lei e da ordem, os nmeros referentes ao sistema prisional preocupam: em 1995, ano de edio da alvissareira Lei 9.099/95, a populao prisional equivalia a 148.760. Em 2003, ________________* Este artigo baseado em palestra proferida no Seminrio Internacional Justia Restaurativa: Um caminho para os Direitos Humanos?, realizada em Porto Alegre - RS, nos dias 29 e 30 de outubro de 2004, promovido pelo Instituto de Acesso Justia - IAJ. Foi publicado originalmente em 2004 pelo referido Instituto.

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esse nmero mais que dobrou, atingindo 308.304 encarcerados. Nesse mesmo perodo, triplicamos o nmero de vagas do sistema prisional e quadruplicamos o nmero de estabelecimentos prisionais, mas o dficit de vagas subiu em 50%2. As estimativas disponveis indicam que, para estancar o dficit de vagas no sistema prisional, seria necessria a criao de milhares de novas vagas a cada ms no sistema carcerrio, o que representaria a necessidade de construo de quase uma dezena de novos presdios por ms. Essa realidade aponta para uma equao insolvel, na qual a perspectiva de encarceramento sobeja os recursos estatais finitos e insuficientes para acompanharem a progressiva necessidade de investimento em novas unidades prisionais. Ademais, no arriscado afirmar que o grau de efetividade dessa interveno estatal, que privilegia o encarceramento, muito baixo. No h dados seguros a sustentar a concluso que o encarceramento implica reduo das taxas de criminalidade ou reincidncia; ao contrrio, o carter dissuasrio da pena privativa de liberdade perde fora quando se ultrapassa uma determinada taxa de encarceramento, em razo da banalizao da medida. Desta forma, importante assentar que a pena no pode ser vista como fim em si mesmo, como o por grande parte da populao, mas que deve ser voltada pacificao das relaes sociais. Neste sentido, poucos resultados prticos tm sido colhidos no sentido de dotar o processo penal de meios de representar uma interveno efetiva e eficaz em conflito que se exterioriza por meio do crime. Este artigo prope-se a analisar uma das classificaes tipolgicas dos modelos de reao estatal ao delito para situar o modelo restaurativo no debate criminolgico, a partir do que se tentar estabelecer a relao desse paradigma com a doutrina de afirmao e proteo dos direitos humanos.

II Modelos ou paradigmas modernos de reao ao delitoConsiderando que podemos e devemos buscar alternativas atual tendncia, parece adequada a reflexo sobre as diversas formas de reao ao delito, para o que nos valeremos da classificao proposta por Molina. Como primeiro sistema apresentado, temos o chamado modelo dissuasrio, que mira to somente a sociedade e pe em relevo a pretenso punitiva do Estado, caracterizando-se por buscar cobertura normativa completa e sem fissuras, com rgos persecutrios bem aparelhados, e clara tendncia intimidatria. Nos dizeres de Molina, o modelo sujeita-se a enormes reparos em face de seu carter reducionista: pressupe que a punio efetiva elemento absolutamente apto a desestimular a prtica delitiva, mas desconsidera as vrias nuances do impacto psicolgico da aplicao da pena. Tal sistema ignora o carter secundrio do rigor nominal da pena nas variveis do mecanismo dissuasrio, 42 42

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reduzindo-o a uma mensagem meramente intimidatria descolada do contedo social e comunitrio da preveno. Pontue-se por fim que, neste modelo, o papel da vtima meramente acessrio diante da relao que se estabelece entre o Estado, detentor da pretenso punitiva, e o autor do fato criminoso. Assim, a satisfao da vtima e da comunidade, titulares do bem jurdico violado, passam ao largo de seu enfoque. Por outro lado, o modelo ressocializador, que surge como quele acima descrito, foca sua ateno na funo reabilitadora da pena em relao pessoa do infrator, agregando resposta estatal um valor-utilidade para o prprio infrator, que passa a ser considerado parte essencial e integrante de qualquer reao ao delito. Pugna pela reduo dos efeitos nocivos da pena em relao ao infrator por meio de uma interveno que se pretende positiva e benfica nos detentos e apresenta diversas nuances, seja do ponto de vista de sua construo terica, seja do ponto de vista de sua aplicao prtica, que no nos cabe aqui detalhar. Importa notar que os conceitos de ressocializao e de tratamento, que constituem o cerne do ideal ora enfocado, pela sua impreciso e ambigidade, foram e continuam sendo objeto das mais variadas crticas. Entendemos, no entanto, que, a despeito do baixo grau de eficcia dos modelos de interveno que se tentaram at hoje, o sistema constitui um inegvel avano cientfico cujo ideal no pode e no deve ser abandonado, seno aperfeioado mediante a soluo de questes que ainda no foram bem equacionadas3. Por fim, o modelo integrador se apresenta como o mais ambicioso plano de reao ao delito. Ele volta sua ateno no s para a sociedade ou para o infrator, mas pretende conciliar os interesses e expectativas de todas as partes envolvidas no problema criminal, por meio da pacificao da relao social conflituosa que o originou. Deste modo, pugna pela restaurao de todas as relaes abaladas, o que inclui, mas no se limita, reparao dos danos causados vtima e comunidade, a partir de um postura positiva do infrator. O modelo se corporifica pela confrontao das partes envolvidas no conflito, com a utilizao do instrumental da mediao, por frmulas que devem observar os direitos fundamentais do infrator. Mesmo tratando-se de um modelo incipiente e ainda no concludo, podemos afirmar que traz vantagens para todos os envolvidos no fenmeno criminal. Ao infrator porque enseja seu amadurecimento pessoal, a partir do enfrentamento direto das conseqncias aproveitadas pela vtima, predispondo-o a comprometer-se na soluo dos problemas que causou, o que no ocorre no processo penal tradicional, em que este encontra-se em uma instncia distante e alheia ao fato, protegido por uma estratgia ou possibilidade de defesa tcnica, que dilui a realidade do dano e neutraliza a vtima, desumanizando a relao social correspondente. No tocante vtima o modelo representa claros benefcios, na medida 43

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em que devolve-lhe um papel relevante na definio da resposta estatal ao delito e preocupa-se em garantir a reparao dos danos sofridos e minimizar as conseqncias do fato, o que evita a vitimizao secundria. Igualmente, do ponto de vista social, o sistema representa ganho ao caminhar em direo soluo efetiva do conflito concreto confiando no comprometimento das partes na busca de uma soluo negociada, o que de certa forma minimiza os efeitos negativos da viso distorcida de vitria do Direito em contraposio derrota do culpado, e traz um enorme potencial de pacificao social. Por fim, a resposta estatal advinda da correta utilizao do sistema ostenta a vantagem de se adaptar perfeitamente realidade que a provocou, sendo, portanto, potencialmente mais adequada e efetiva. A justia restaurativa, na acepo adotada para o presente artigo4, representa a aplicao prtica desse modelo, que, em termos tericos, o que mais se aproxima do que se deve esperar da interveno do Estado em reao ao fenmeno delitivo: uma tentativa de conciliar as justas expectativas da vtima, do infrator e da sociedade.

III Justia Restaurativa: princpios e contornos prticosUma vez situada a justia restaurativa no plano terico, devemos tentar delinear seus princpios e contornos prticos. Por certo no poderemos avanar alm do estabelecimento das linhas mestras do modelo, por duas razes: o sistema caracteriza-se por uma considervel diversidade, contemplando a realizao de crculos, painis e conferncias restaurativas, entre outros mtodos; o procedimento profundamente marcado pela flexibilidade, j este que deve ajustar-se realidade das partes, e no for-las a adaptarem-se aos ditames rgidos, formais e complexos, caracterizadores do sistema tradicional de justia. De incio cabe ressaltar que a prtica marcada pela voluntariedade, no tocante a participao da vtima e ofensor. Estes devem ser encorajados participar de forma plena no processo restaurativo, mas deve haver consenso destes em relao aos fatos essenciais relativos infrao e assuno da responsabilidade por parte do infrator. Pese embora no haja um momento rigidamente estabelecido dentro do organograma procedimental para sua realizao, podendo a prtica anteceder a prpria acusao, ocorrer antes ou aps a sentena ou no curso da prpria execuo da pena, deve haver indcios que sustentem o recebimento de uma acusao formal para que possa ela ser iniciada. A preparao do caso compreende as aes que so adotadas antes da realizao da prtica restaurativa, e tm uma importncia to fundamental quanto estes atos (conferncias, painis, crculos), tidos como o momento crucial do 44 44

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procedimento restaurativo. Para que se tenha condies de lograr bons resultados na aproximao da vtima e ofensor, deve ser dispensada cuidadosa seleo e preparao do caso para a realizao da prtica restaurativo, o que inclui anlise pormenorizada dos autos e outros atos investigativos voltados ao conhecimento das suas circunstncias, o que deve ser efetuado por profissional dotado de conhecimento multidisciplinar e capacitao especfica, a fim de se confirmar a possibilidade de aplicao da prtica quele caso concreto. Segue-se a tal anlise a realizao de contatos com as partes envolvidas, que visam a confirmao da adequao do caso prtica, bem como o esclarecimento destas em relao ao funcionamento da prtica restaurativa e identificao de pessoas prximas s partes, ou representantes da comunidade afetada, bem como sua preparao para tomarem parte na prtica restaurativa adotada. A prtica restaurativa em si, que deve reunir essencialmente vtima e ofensor e os tcnicos responsveis pela conduo dos trabalhos (normalmente denominados facilitadores), e pode incluir familiares ou pessoas prximas a estes, alm de representantes da comunidade, e os advogados dos interessados5, se o caso. Deve ocorrer preferencialmente em local neutro para as partes, e se desenrola, basicamente, em duas etapas: uma na qual so ouvidas as partes acerca dos fatos ocorridos, suas causas e conseqncias, e outra na qual as partes devem apresentar, discutir e acordar um plano de restaurao. Ressalte-se que fundamental assegurar aos participantes boa informao sobre as etapas do procedimento e conseqncias de suas decises, bem como garantir sua segurana fsica e emocional. Nesta ocasio o papel dos facilitadores muito importante, os quais devem ser to discretos quanto possvel, no sentido de no dominarem as aes do evento, mas conduzirem as partes no caminho de lograr, por seus prprios meios, o encontro da soluo mais adequada ao caso. H de ser resguardado o sigilo de todas as discusses travadas durante o processo restaurativo, e seu teor no pode ser revelado ou levado em considerao nos atos subseqentes do processo, o que inclui a prpria admisso da responsabilidade deduzida com o fim de deflagrar a prtica restaurativa. A impossibilidade de obteno de um acordo restaurativo, igualmente, no pode ser utilizado como fundamento para o agravamento da sano imposta ao ofensor. O eventual acordo obtido na prtica restaurativa deve ser redigido em termos precisos e claros, sendo que as eventuais obrigaes nele estampadas devem ser razoveis, proporcionais e lquidas, devendo prever as formas de se garantir o cumprimento e a fiscalizao das condies nele estatudas. de se ponderar que o plano restaurativo pode estar sujeito anlise judicial antes de sua homologao e por certo dever influir na definio da reprimenda aplicada quele caso concreto6. H que se reservar, ainda, especial ateno para as aes adotadas aps a 45

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prtica restaurativa, posto que o monitoramento do acordo e avaliao do seu cumprimento constituem etapas relevantssimas na consecuo dos objetivos do modelo.

IV Duas imagens em quarenta sculosJ familiarizados com o conceito de justia restaurativa, e saindo do plano terico, parece necessrio abordarmos a relao do modelo com a doutrina de proteo aos direitos humanos, o que nos remete a uma reflexo sobre o nosso atual estgio. Permitimo-nos, porm, invocar duas imagens, uma suposta e outra retirada da prxis forense, para pontuar historicamente o papel da vtima na formulao da resposta estatal ao crime. Imagem I: Babilnia, Sculo XVII a.C. Um indivduo aplica pessoalmente a pena destinada a outro, integrante da mesma classe social, agredindo-o no exerccio regular do direito que lhe confere a ducentsima clusula do Cdigo de Hamurabi: se algum parte os dentes de um outro, de igual condio, dever ter partidos os seus dentes. Sem prejuzo, ter ele assegurada uma compensao pecuniria, de acordo com a clusula 203 do mesmo diploma legal: se um nascido livre espanca um nascido livre de igual condio, dever pagar uma mina. Imagem II: Brasil, incio do Sculo XXI d.C. Seu Joo diz que aceita a proposta de composio civil sugerida por representante do Estado que conhecera h exatos trs minutos, a fim de no correr o risco de ser processado por violao do disposto no artigo 129, caput, do Cdigo Penal. Para isso ter que pagar um valor destinado ao conserto da prtese de sua companheira, trs parcelas de R$ 30,00, que dever depositar no banco oficial. Dona Maria, que, trs meses antes, em um agitado planto policial, solicitou providncias contra o companheiro que a agredira, providncias estas que se resumiram lavratura de termo circunstanciado, sai do Frum sem entender muito bem o que se passou. De tudo que foi dito naquela audincia, entendeu que deveria retornar dali a quinze dias para levantar, no banco oficial, a primeira parcela de R$ 30,00. Quatro meses depois voltaria presena do representante do Estado para confirmar que no recebeu as duas ltimas parcelas. Acrescentou, porm, que no pretendia tomar nenhuma providncias legal, j que o companheiro, com problemas crnicos de alcoolismo, ainda morava com 46

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ela e, no fim das contas, aquele valor seria destinado aquisio das provises bsicas do lar. Apesar de saber que o problema no tinha sido tratado nem resolvido, e que provavelmente voltaria a ter problemas, diz que Seu Joo melhorou seu comportamento depois da audincia e saiu do Frum orientada a retornar Delegacia de Polcia caso ivesse novos problemas. Quase quarenta sculos separam os dois episdios, aptos para confirmar que as diversas formas de reao ao fenmeno criminal constituem uma fonte segura para se desenhar o retrato de uma sociedade, em determinado corte de tempo e espao. Nesse interregno, o papel da vtima sofreu uma transformao extrema: de detentora do direito de punir, senhora da definio e aplicao da reprimenda, ela passou a mera coadjuvante na interveno estatal provocada pela ocorrncia de um fato tido como criminoso. Registre-se, porm, que em todo esse perodo se foram criando e estendendo a todos povos da terra, instituies jurdicas de defesa da dignidade humana contra a violncia o aviltamento, a explorao e a misria, como bem analisa Fbio Konder Comparato77 Em especial a partir do Iluminismo, tomou corpo movimento terico tendente construo e afirmao de um sistema de proteo aos direitos humanos, que no plano normativo representa um admirvel avano nas relaes sociais. No plano emprico, todavia, no se fazem necessrias maiores digresses para se concluir que as disposies vigentes em nosso direito positivo, voltadas para a incluso da vtima no processo e para o aumento da amplitude das conseqncias dessa interveno estatal, a fim de abarcar a atenuao das conseqncias do crime, no passam de tbias tentativas de reverso de um quadro claramente insatisfatrio. At mesmo as inovaes trazidas pela Lei 9.099/95, tidas como alvissareiras quando da edio da norma, visto que representaram um primeiro avano em busca do modelo integrador, hoje sustentam alguma integridade apenas em louvveis mas esparsos esforos de alguns operadores do direito que resistem bravamente desumanizao do processo penal, que impingida por uma srie de contingncias que no nos cabe analisar nessa estreita via. A partir desse mosaico adquire relevo a reflexo sobre o novo paradigma que representado pelas prticas restaurativas e como estas devem se relacionar com o fruto do processo de construo e afirmao histria dos direitos humanos. Registre-se que o modelo restaurativo no guarda, seguramente, nenhuma antinomia com o sistema de afirmao e proteo dos direitos humanos. Do contrrio, a justia restaurativa no pode ser concebida de forma dissociada da doutrina de proteo aos direitos humanos, j que ambas buscam, em essncia, 47

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a tutela do mesmo bem: o respeito dignidade humana. O amadurecimento do modelo trazido pela justia restaurativa deve precipitar uma discusso sobre quais so as expectativas dos protagonistas do acontecimento delitivo em relao s possveis formas de reao do Estado, e bom por isso tal paradigma guarda um potencial revolucionrio no que tange ao Direito Penal. Por decorrncia da prpria juventude do sistema em questo, a anlise de seus resultados diminuta e esparsa, mas as avaliaes disponveis indicam com segurana que o grau de satisfao das vtimas e demais envolvidos no conflito em relao ao processo em muito superior quando se aplicam prticas restaurativas. A correta aplicao do modelo, deve provocar, em longo prazo, uma mudana de concepo em relao ao papel do Estado no fenmeno criminal com a definitiva incluso da vtima e com o fortalecimento do papel da comunidade nesse processo. No entanto, em um contexto de proliferao da chamada cultura do medo e a amplificao, pelos meios de comunicao de massa, da doutrina da lei e da ordem, h que se cercar de todas as cautelas possveis para que o empoderamento da comunidade na busca das solues de seus prprios conflitos no se d em detrimento de todo o processo histrico de proteo e afirmao dos direitos humanos. Retomando as imagens que invocamos para situar a vtima nos diversos sistemas de resposta ao delito, nos deparamos com dois quadros insatisfatrios. No primeira a vtima muito integrada ao sistema, mas o contedo da resposta no representa um efetivo benefcio para ela, para o infrator e para a comunidade. No segundo exemplo, temos uma dbil e superficial tentativa de incluso da vtima no processo de elaborao da resposta do Estado, que se substituiu a ela no processo, a despeito da observncia dos direitos fundamentais do infrator; o contedo da resposta aqui igualmente se revela meramente simblico. Miremos, pois, num terceiro quadro em que a incluso da vtima seja efetiva, e proporcione uma resposta estatal que, garantindo a observncia irrestrita dos direitos fundamentais das partes envolvidas, represente um efetivo ganho para as partes que se viram envolvidas no conflito.

V ConclusoA Justia Restaurativa representa um novo paradigma aplicado ao processo penal, que busca intervir de forma efetiva no conflito que exteriorizado pelo crime, e restaurar as relaes que foram abaladas a partir desse evento. Assim, e desde que seja adequadamente monitorada essa interveno, o modelo traduz possibilidade real de incluso da vtima no processo penal sem abalo do sistema de proteo aos direitos humanos construdo historicamente. necessrio, porm, compreender corretamente os pressupostos teri48 48

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cos e principiolgicos das prticas restaurativas, a fim de que seja afastado o risco do modelo retributivo no estar embutido em um discurso supostamente progressista e garantista. Ressalte-se, neste diapaso, que h de ser repelida a viso reducionista que identifica a Justia Restaurativa com mecanismos de mera reparao pecuniria, ou submisso do infrator constrangimento ou humilhao. Da a importncia de no se descurar da indissociabilidade do sistema com o aparato de proteo aos direitos humanos. O modelo de justia restaurativa busca intervir positivamente em todos os envolvidos no fenmeno criminal. Pretende, destarte, tocar a origem e causa daquele conflito, e a partir da possibilitar o amadurecimento pessoal do infrator, reduo dos danos aproveitados pela vtima e comunidade, com notvel ganho na segurana social. Porm, o xito da frmula depende de seu correto aparelhamento. Por isso, e sem embargo da necessidade de se buscar novos meios para tratamento do problema penal, devemos estar atentos para o fato de a aplicao prtica do modelo restaurativo em nossa realidade envolver problemas de cunho operacional no tocante correta preparao da interveno e capacitao de tcnicos, sua integrao com programas securitrios e sociais, e ao monitoramento dos acordos obtidos, bem como avaliao do funcionamento da prtica, que constitui fator to importante quanto sua execuo. Assim, as iniciativas pioneiras que se desenham para a aplicao prtica da justia restaurativa levam consigo a responsabilidade adicional de enfrentar tais contingncias e super-las de molde a impulsionar a prtica em nosso pas, como alvissareira concepo de reao ao crime.

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NotasNao de Jaulas artigo publicado na revista Caros Amigos, ed. 52, julho de 2001. Editora Casa Amarela. 2 Segundo dados do Departamento Penitencirio Nacional do Ministrio da Justia, em 1995, havia 309 estabelecimentos prisionais, que disponibilizavam 65.883 vagas, restando um dficit de 82.877 vagas. Em 2003 havia 1.262 estabelecimentos prisionais, que disponibilizavam 179.489 vagas, restando um dficit de 128.815 vagas. 3 Molina prega que o ideal ressocializador deixar de ser um mito e um lema vazio de contedo quando, depois do oportuno debate cientfico, seja alcanado um elementar consenso em torno de trs questes bsicas: quais objetivos concretos podem ser perseguidos em relao a cada grupo ou subgrupo de infratores, quais os meios e tcnicas de interveno so vlidos idneos e eficazes em cada caso e quais os limites no devem ser superados jamais em qualquer tipo de interveno (ob. cit. P. 398). 4 Em uma acepo ampla, a justia restaurativa inclui aplicaes na esfera das relaes civis. 5 Registre-se que deve ser assegurado s partes o direito de obter o devido aconselhamento jurdico, em qualquer etapa do procedimento. 6 Na experncia neozelandesa facultado vtima consignar se deseja ou no ver o infrator preso por aquele fato, o que pode afetar a dosimetria da pena. 7 - Comparato, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos So Paulo: Saraiva, 1999 p. 1.1

RefernciasComparato, Fbio Konder, 1999. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos (So Paulo: Saraiva). Departamento de Justia americano, 2004. Bureau of Justice Statistics. Recuperado da internet em 11/10/2004, de: http://www.ojp.usdoj.gov/bjs/. Galeano, Eduardo. 2001. De pernas para o ar a escola do mundo ao avesso (Porto Alegre: L&PM). Garca-Pablos de Molina, Antonio, e Luiz Flvio Gomes, 1997. Criminologia Introduo a a seus fundamentos tericos, 2. ed. (So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais).

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Kalili, Srgio, 2001. Nao de Jaulas, in Caros Amigos 52 (julho) (So Paulo: Editora Casa Amarela). Ministrio do Desenvolvimento Social da Nova Zelndia, 2004 (maio). Acheiving Effective Outcomes in Youth Justice. Ministrio da Justia do Canad, 2004. Values and Principles of Restorative Justice in Criminal Matters. Recuperado da internet em 11/10/2004, de: http://fp.enter.net/ restorativepractices/RJValues-DOJCan.pdf. Ministrio da Justia da Nova Zelndia, 2004 (maio). Restorative Justice in New Zealand Best Practice.

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Justia restaurativa e seus desafios histrico-culturais Um ensaio crtico sobre os fundamentos tico-filosficos da justia restaurativa em contraposio justia retributiva Eduardo Rezende MeloAs buscas por solues alternativas ou complementares ao sistema tradicional de justia, sobretudo ao retributivo, vm encontrando nas prticas restaurativas um encaminhamento possvel a conflitos definidos legalmente como infracionais. Sua nfase volta-se, de um lado, procura por amparo s vtimas e ao atendimento suas necessidades, dando-lhe um papel ativo na conduo das negociaes em torno do conflito. De outro lado, busca no apenas a responsabilizao do causador do dano, valendo-se de recursos outros punio e sua estigmatizao, mas tambm, pelo encontro que se d entre um envolvido e outro no conflito, dar ocasio para o confronto de todas as questes que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua superao ou transfigurao. Trata-se, portanto, de uma discusso em torno do juzo sobre a relao interpessoal e do indivduo com a sociedade: notadamente sobre a fundamentao da ao individual e seus limites e do poder da sociedade e do Estado vista destas aes. Como pano de fundo a estas questes deveremos atentar estruturao de vida que estas aes e respostas refletem no seu dinamismo histrico e valorativo, bem como prpria fundamentao poltica da vida em sociedade. Este ensaio tem trs objetivos: 1) aprofundar os pressupostos filosficos e polticos do modelo retributivo: a sua relao com uma certa concepo tico-poltica, cujos termos podemos identificar pela defesa do universalismo e por um monismo valorativo e poltico; 2) refletir sobre as crticas filosfico-poltico-culturais a este modelo, abrindo-nos, numa interface com a justia restaurativa, a uma tica da singularidade, a um pluralismo valorativo e interpretativo, a uma relao participativa atenta justia social; 3) refletir sobre os pontos de contato entre justia e educao para a construo de uma proposta de justia restaurativa fundada na estruturao da rede de atendimento de servios pblicos em torno da escola e na experincia formativa dos 53

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envolvidos, sobretudo dos adolescentes que tenham cometido atos infracionais, voltada emancipao de seus atores e construo de uma sociedade democraticamente comprometida com seus problemas.

Os fundamentos filosficos do modelo retributivo assente na doutrina penal1 o reconhecimento de que Kant o pensador referencial na discusso e fundamentao do modelo retributivo. Se as discusses em torno deste modelo, no mbito do direito, cingemse, no mais das vezes, s funes atribudas pena e preocupao candente por parte de Kant de que, ao ser punido, o homem no seja funcionalizado vista de outros fins que no a resposta sua conduta, preservando, deste modo, sua dignidade enquanto homem, deixa-se, comumente, a pergunta pelo sentido da pena. Se a funo tem o significado tcnico de papel e caractersticas desempenhadas por um rgo num conjunto cujas partes so interdependentes, ou a um sistema de causas centradas nos mesmos objetivos gerais, o sentido a idia ou a inteno valorativa implicada no pensamento, que ora pode se expressar em uma definio, ora em uma intuio simples2. Se para a primeira a pergunta voltase ao para qu da pena, o segundo centra-se no por qu. Precisamos de uma brevssima introduo ao pensamento kantiano sobre o direito que, como sabemos, essencial para a fundamentao do positivismo jurdico formalista, especialmente o kelseniano para podermos compreender os pressupostos filosficos e culturais da pena e do modelo retributivo. Para Kant, o direito o conjunto de condies sob as quais o arbtrio de um pode se harmonizar com o arbtrio de outro, segundo uma lei universal da liberdade. Da que o princpio universal do direito expresse-se assim: Conforme com o di