justiça restaurativa & gênero

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    Multideia Editora Ltda.Rua Des. Otvio do Amaral, 1.553

    80710-620 Curitiba PR

    +55(41) 3339-1412

    [email protected]

    Conselho Editorial

    Marli Marlene M. da Costa (Unisc)

    Andr Viana Custdio (Unisc)Salete Oro Boff (UNISC/IESA/IMED)

    Carlos Lunelli (UCS)

    Clovis Gorczevski (Unisc)Fabiana Marion Spengler (Unisc)

    Liton Lanes Pilau (Univalli)Danielle Annoni (UFSC)

    Luiz Otvio Pimentel (UFSC)

    Orides Mezzaroba (UFSC)Sandra Negro (UBA/Argentina)Nuria Bellosso Martn (Burgos/Espanha)

    Denise Fincato (PUC/RS)Wilson Engelmann (Unisinos)Neuro Jos Zambam (IMED)

    Coordenao Editorial: Ftima BeghettoReviso: Wanderson Ciambroni Bona Littera Assessoria LingusticaCapa: Snia Maria Borba

    CPI-BRASIL. Catalogao na fonte

    Porto, Rosane Teresinha Carvalho

    P853 Justia Restaurativa & Gnero: por uma humanizao que desarticule aviolncia [recurso eletrnico] / Rosane Teresinha Carvalho Porto e MarliMarlene Moraes da CostaCuritiba: Multideia, 2014.

    154p.; 21 cmISBN 978-85-86265-99-0

    (VERSO ELETRNICA)1. Justia restaurativa. 2. Violncia contra as mulheres. I. Costa, Marli

    Marlene Moraes da. II. Ttulo.

    CDD 345(22.ed)

    CDU 344

    de inteira responsabilidade dos autores a emisso dos conceitos aqui apresentados.Autorizamos a reproduo dos textos, desde que citada a fonte.

    Respeite os direitos autoraisLei 9.610/98.

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    ROSANE TERESINHA CARVALHO PORTOMARLI MARLENE MORAES DA COSTA

    JUSTIA RESTAURATIVA&

    GNEROPor uma humanizao

    que desarticule a violncia

    Curitiba

    2014

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    PREFCIO

    Tive privilgio ao receber convite para ser o primeiro lei-tor desta encantadora obra sobre Justia Restaurativa e Gneroque, a partir de uma abordagem transdisciplinar, articula ques-

    tes sobre o poder feminino na lgica do outro generalizado, atransversalidade do gnero nas polticas pblicas como estra-tgia de superao da violncia e das assimetrias nas relaesentre homens e mulheres, propondo uma viso que alcanamltiplos sentidos e a prpria multidimensionalidade da justi-a restaurativa.

    As autoras so pioneiras na pesquisa acadmica sobrejustia restaurativa no Brasil com produo qualificada sobre o

    tema reconhecida inclusive no exterior. Registro, tambm, aoportunidade que tive em 2010 de compartilhar a autoria dolivro Justia Restaurativa e Polticas Pblicas: uma anlise apartir da teoria da proteo integral que estudou as primeirasiniciativas sobre o tema no mbito da Justia da Infncia e daJuventude no pas.

    Agora, as autoras nos oferecem novas possibilidades dereflexo na medida em que articulam temas complexos comognero, violncia, polticas pblicas e justia restaurativa,abordagens estas que resultam das pesquisas desenvolvidas nombito do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Polticas P-blicas do Programa de Ps-Graduao em Direito Mestrado eDoutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

    A obra aprofunda, no contexto da sociedade contempor-nea, os processos histricos de coisificao e dominao sobre

    a mulher que produziram estruturas sociais de subordinao ehierarquizao de gnero, gerando estigmas e prticas sociais

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    discriminatrias e intolerantes. Assim, os desafios da transver-salidade de gnero nas polticas pblicas, bem como a articula-

    o interinstitucional da rede de proteo, atendimento e justi-a colocam-se como imperativos para a consolidao de estra-tgias de emancipao.

    O consistente rigor tcnico, cientfico e metodolgico des-te livro no elimina o potencial criativo das autoras, que nosoferecem a deliciosa abordagem pela via das metforas comoPenlope, a charmosa e Dormindo com o Inimigo utilizan-do-as para evidenciar, no s as desigualdades de gnero, mas

    as complexas relaes de poder e expectativas de normalizaode comportamento pblico e privado impostos sobre as mulhe-res, desfiando os sutis enlaces das violncias cotidianas e o po-der da violncia simblica.

    Na abordagem sobre polticas pblicas demonstram queo reconhecimento jurdico dos direitos humanos no pontode partida para a garantia de equidade, mas caminho necess-rio para um sentido de vida multidimensional e, portanto, dejustia social. Contudo, no so quaisquer prticas de justiaque tm potencial para enfrentar estas novas formas de domi-nao, mas aquelas que sejam capazes de restaurar sensibili-dades e rearticular a fragmentao das relaes sociais partin-do da comunidade.

    Assim nos ensinam que enfrentar os pontos cegos das po-lticas pblicas depende do aspecto mais fundamental da de-

    mocracia, que a emancipao humana, permitindo, com a lei-tura da obra, pensar novas formas de encantar os resignados eresistentes num mundo de assimetrias e desigualdades geracio-nais e de gnero.

    Prof. Andr Viana CustdioProfessor do PPGD/UNISC

    Ps-Doutor em Direito Universidade de Sevilha/Espanha

    Doutor em Direito Universidade Federal de Santa Catarina

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    SUMRIO

    PREMISSAS INTRODUTRIAS..................................................................... 7

    Captulo 1

    O PODER FEMININO NA LGICA DO OUTROGENERALIZADO E DE AFETO NO MBITO PBLICO ........................ 171.1 Esboos da genealogia de dominao do discurso

    masculino nas histrias do feminino ........................................... 191.2 A corrida maluca da Penlope Charmosa: a cultura

    feminina das aparncias no iderio de consumo emdesvelar-se, revelar-se, descobrir-se ........................................... 25

    1.3 Dormindo com o inimigo: o poder simblico

    masculino e o flagelo da violncia domstica ........................... 34

    Captulo 2TRANSVERSALIDADE DE GNERO NAS POLTICASPBLICAS DADA A RUPTURA PELA VIOLNCIA DAASSIMETRIA NAS RELAES ENTRE HOMENS E MULHERES ...... 512.1 Os direitos humanos e fundamentais da mulher na

    ordem internacional ............................................................................ 52

    2.2 Transversalidade nas polticas pblicas de gnero ............... 752.3 A dimenso de gnero, ponto cego das polticas

    pblicas?................................................................................................... 82

    Captulo 3O SENTIDO MULTIDIMENSIONAL DE ABORDAGEM DAJUSTIA RESTAURATIVA PARA E ALM DOS GNEROS.............. 933.1 Aportes tericos sobre justia restaurativa:

    consideraes essenciais ................................................................... 95

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    3.2 Implementando na matriz curricular a disciplinarestaurativa nas escolas em face preveno daviolncia de gnero e a humanizao do outro dotadode gneros: ser um homem masculino e feminino noperde o seu lado masculino...................................................... 106

    3.3 O uso das prticas restaurativas para construirrelacionamentos saudveis: o crculomasculino/feminino ......................................................................... 121

    CONSIDERAES FINAIS.......................................................................... 141

    REFERNCIAS ................................................................................................. 145

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    Nenhuma luta jamais lograr xito sem que asmulheres participem lado a lado com os homens. H duas

    foras no mundo: uma a espada e a outra a caneta.

    H uma terceira fora, mais poderosa: a das mulheres.1

    1 YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala: a histria da garota que defendeu o direi-to educao e foi baleada pelo Talib. Malala Yousafzai com Christina Lamb.So Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 39.

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    Desde a conquista do sufrgio universal, o voto em 1932pelas mulheres, incitadas pelo movimento feminista, muitasmudanas significativas se deram na sociedade, em especial a

    retomada do controle do prprio corpo com questes em tornoda fecundidade e da libido. Em face disso, associada a neces-sidade de insero no mercado de trabalho, em um movimentoque se deu a partir do perodo ps-industrial, quando elas ocu-param as fbricas e desumanamente foram exploradas pelocapital, que tinha como seu dirigente a autoridade masculina.

    O que atualmente se indaga se o capital tem gnero ou

    independe daquele que possa servi-lo ou servir-se dele. Dequalquer sorte, no h de se negar que, a partir do sufrgiouniversal e da ocupao da mulher pelo feminino nas fbricas,espao at ento exclusivamente masculino, o olhar falocntri-co em relao ao feminino no seria mais o mesmo, passando,mais do que nunca, ao rememoramento do perodo flico e umsentimento de perda de objeto e insegurana, por no ser maiso nico provedor pelo mbito domstico, o que desvelou a bar-brie de dominao e subjugao, subverso do feminino emum embate desproporcional no campo simblico.

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    Nesse aspecto que se perquire a arquitetura do poderjurdico e poltico (sociojurdico) nas relaes assimtricas en-tre o homem e a mulher. interessante desconstruir esse po-der que, categoricamente, tem em seu ncleo dimenses dosaber conforme convenes preestabelecidas na sociedade,para melhor clareza e percepo da complexidade, retroali-mentado sistematicamente pela cultura patriarcal que, em vir-tude da dimenso, pode estar contaminando, interferindo naidentidade da mulher Beauvoir, o que, com o movimento femi-

    nista, pode ter sofrido um esvaziamento de sentido, aumentan-do ainda mais o distanciamento entre os universos feminino emasculino.

    Existem, sim, diferenas entre ambos, que, ligadas inde-vidamente ao gnero, podem no tratar de equidade, igualdadee justia, mas aumentar ainda mais a discriminao entre osseres humanos. sabido que gnero e mulher, assim como ou-tras categorias construdas socialmente, ultrapassam a relaomasculino/feminino e podem ser redefinidos socialmente nocampo simblico, em conformidade com o subjetivo do sujeitoe com a perspectiva histrica de uma sociedade. Portanto, g-nero no determinado individualmente e nem socialmente,basta verificar que, cotidianamente, as pessoas fazem interfe-rncias no seu corpo, inclusive nos lugares considerados sagra-dos pela sociedade, que so os rgos genitais. Logo, est ultra-

    passada a ideia de reduzir gnero s categorias sexo e biolgico.A coexistncia da mulher e do homem est na comple-

    mentaridade e no respeito complexidade do pensamento deum e de outro. Indo mais alm, denota-se cuidado com o dis-curso do poder para no manipular os sujeitos, esperando efei-to-respostas como resultado de controle nas condutas de com-portamento. O poder-saber das instituies constitui a arquite-tura de pensamento de uma sociedade, cabendo ao Direito re-definir e desconstruir tudo isso. Cada instituio exerce deter-minado poder, o qual perpassa de gerao em gerao pela

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    repetio de papis representaes dadas a cada sujeito noespao domstico (privado) e pblico. Esta prtica implica con-sequncias em relao a esse mpeto exerccio, a citar, porexemplo, a violncia como forma de estratgia primria con-forme o olhar eficaz de dominao sobre o outro.

    Para pensar sobre as representaes sociais que os sujei-tos (o homem e a mulher) exercem dentro da comunidade ouda sociedade, o que preliminarmente leva hiptese de cons-truo cultural do papel feminino, Foucault contribui dentro

    dessa abordagem, apresentando categorias significativas nalinguagem, como o poder do discurso: o disciplinador que doci-liza os corpos, por meio de padres culturais, enfatizando econduzindo na formao do certo e do errado, o que, contem-poraneamente, leva ao aprisionamento efetivo dos sujeitos,afastando o livre arbtrio e a autonomia do sujeito bem traba-lhada nos tempos atuais por Amartya Kumar Sen. Ao encontro

    disso, tm-se ainda contribuies riqussimas de Pierre Bour-dieu, que investe sua abordagem no poder simblico sobre oscorpos, e o enfrentamento disso correlaciona-se violnciasimblica quando sujeitos (homens e mulheres) aprisionadosem seus papis vivenciam o habitus constitudo de capitais: oeconmico, o social e o cultural. Esses capitais so moedas detrocas entre os indivduos na sociedade, que, cada vez mais,segundo Bauman, est individualizada, fragilizando e tornando

    as relaes ainda mais artificiais.Perscrutando a historicidade das conquistas da cidadania

    da mulher, observou-se, na antiguidade, que as mulheres esti-veram no centro do poder e, com a descoberta (conscincia) dohomem sobre o seu papel na fecundao e na vida do ser hu-mano, elas passaram a ser coisificadas e dominadas. Com isso, ohomem demonstrou que no soube compartilhar espaos de

    poder, ao contrrio, deixou evidente que a mulher deveria ape-nas servi-lo.

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    Categoricamente, o sentido de gnero dentro da justiarestaurativa est sob a luz da humanizao de justia social,que reconhece o homem e a mulher como protagonistas de suaprpria histria e sujeitos de direitos, por isso o olhar multidi-mensional da justia parte do enfoque comunitrio. Pelo fen-meno da globalizao, ambos os gneros sofrem fraturas e fla-gelos de violncia na sua identidade e individualidade; assim, areflexo proposta nesta obra, embasada em ideias ou estudosde cunho qualitativo e carter bibliogrfico, procura, inicial-

    mente, em seu primeiro captulo, descrever a genealogia dedominao masculina em arranjos histricos da concatenaode esquemas sociais, culturais, polticos e econmicos, com opropsito de desconstituir e desconstruir o poder femininoenquanto outro generalizado e de afeto no mbito pblico. Da-do o suporte do movimento feminista com o sufrgio universale o controle da fecundidade, a mulher reconquista a sua cida-

    dania feminina na sociedade.Porm, outros desafios surgem na sua trajetria que es-tremecem nos dias atuais o seu poder. Esses desafios esto re-lacionados ao mercado de consumo, que cobra o culto ao belo ea eternidade da juventude, bem como o adiamento da materni-dade. Dentro desse quadro, observa-se que a violncia tomaoutra forma, mesmo que, historicamente, ela tenha diminudona humanidade por conta da revoluo e humanizao dos di-

    reitos. Ou seja, o homem continua aniquilando o outro femininocomo reflexo de esvaziamento de sentir-se incapaz de conduzirsua prpria histria e de no conseguir dentro da posse conti-nuar escravizando ou sendo servido. Nessa esteira de pensa-mento, dada a contribuio dos direitos humanos e fundamen-tais da mulher na ordem internacional, que se abordou nosegundo captulo a transversalidade de gnero nas polticas

    pblicas em face da violncia de gnero. Por conta disso, reco-nhece-se que pensar em poltica de gnero legtimo, porque

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    contempla a leitura, o olhar sobre como as polticas pblicasdevem ser construdas no trato das relaes entre as mulherese os homens e quais so as repercusses que isso acarreta.

    No cenrio brasileiro, a incorporao da poltica de pro-moo da igualdade das mulheres via transversalidade de g-nero deve significar aos gestores pblicos no unicamente aincorporao dessa perspectiva em um ministrio ou secretariaespecfica de atuao na rea da mulher, mas deve se comuni-car com todas as polticas pblicas propostas pelo Estado, le-

    vando em considerao as especificidades e as demandas dasmulheres2. Neste aspecto, o terceiro captulo prope refletir osentido multidimensional de abordagem da justia restaurativapara e alm dos gneros como propositura, observando nasescolas que a adolescente jovem a nova vtima da violnciadomstica a implementao na matriz curricular da disciplinarestaurativa nas escolas em face da preveno da violncia de

    gnero e a humanizao do outro dotado de gnero. Dessa for-ma, o uso das prticas restaurativas (os crculos de construode paz) importante para estabelecer relacionamentos saud-veis no ambiente escolar entre meninos e meninas. Em outraspalavras, a justia e a educao so uma parceria para o resgateda cidadania.

    2 SECRETARIA DE POLTICAS PBLICAS PARA AS MULHERES. Polticas pbli-cas para as mulheres, 2012. Disponvel em: . Acesso em: 26 dez.2013.

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    O PODER FEMININO NA LGICA DOOUTRO GENERALIZADO E DE AFETO

    NO MBITO PBLICO

    Este primeiro captulo ir refletir acerca do poder femi-nino que pode instaurar-se no espao pblico e que muitoavanou, quando se observam as mulheres ocupando lugaresno mercado de trabalho. No entanto, o problema maior e pon-tual est nas estratgias de dominao pelo discurso do outro:

    e esse outro est, ou pelo menos deve estar, alm do masculino.No se quer aqui estabelecer um dilogo de disputas entre se-xos, construdas histrica e culturalmente; ao contrrio, objeti-va-se estabelecer algumas ligaes axiolgicas e paradigmti-cas, em um primeiro momento, sobre a denegao da condiofeminina de equidade pelo poder dominante e simblico, cen-trado na figura do masculino. Insta revelado pela teoria crtica

    feminista que o eu desprendido e reconhecido como abstratoportador de direitos prejudicado pela desigualdade, assime-tria e dominao que permeia a identidade privada desse eucomo sujeito dotado de gnero3. Ao encontro disso, Marx sepreocupou em estudar sobre a luta de classes: na relao desi-gual e de explorao entre os homens; sua discusso estavaacima da questo de gnero, perpassava pela lgica a instru-3 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crtica da

    Modernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. So Paulo: Rosa dosTempos, 1987. p. 17.

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    mentalizao do ser humano explorado e visto como objetopelo capitalismo. Significa dizer a relao objeto x objeto: a coi-sificao e subjugao do ser humano. De qualquer sorte, nose analisou o gnero, e sim o ser humano enquanto objeto deproduo e explorao capitalista. Por isso, importante notarque, como o conceito marxista de classe repousa numa estrei-ta traduo de produo e econmico4, a crtica feminista aomarxismo pouco contribui para a compreenso da cadeia es-truturante e alienante do capital que reduziu o homem a en-

    grenagem de mquina na fbrica, pouco importando ser ho-mem ou mulher. Isto tanto verdico que as mulheres foramrecrutadas pelas fbricas, tendo sua mo de obra explorada5.Nesses espaos de mbito pblico, as condies de trabalho,tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, eram desumanas,e foi nesse contexto que 129 mulheres tecels da Fbrica deTecido Cotton, de Nova Iorque, em 1857, decidiram fazer rei-

    vindicaes, o que resultou na primeira greve conduzida pormulheres. Isso gerou revolta nos patres, que decidiram porqueim-las vivas6. Em 1910, Clara Zetkin, grande defensora dosdireitos da mulher, props que o dia 8 de maro, data em queocorreu o massacre das operrias tecels em Nova Iorque, fos-se dedicado comemorao do Dia Internacional da Mulher.Perscrutando a partir desse recorte histrico, das operriastecels, de fato, quer-se analisar se, diante de avanos e con-

    quistas das mulheres pela sua cidadania feminina, realmente,nos atuais dias, a genealogia de dominao nas relaes sociaisesto alm do gnero, ou isso, no que tange ao seu reconheci-

    4 NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: Integrando o parentesco com o eco-

    nmico. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo ComoCrtica da Modernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. So Paulo:Rosa dos Tempos, 1987.

    5 Idem, ibidem.6 MONTEIRO, A.; LEAL, G. B. Mulher da luta e dos direitos. Braslia: Instituto

    Teotonio Vilela, 1998. (Coleo Brasil 3).

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    mento no discurso como um outro de afeto que pode orbitar noespao pblico, um obstculo a ser superado.

    Nesse delineamento, exige-se ainda vincular aos efeitosdo que decorre tudo isso a violncia simblica contra o femini-no, tanto no mbito domstico quanto no pblico, necessitandode construes mais consolidadas e epistemolgicas a respeitoo tema, para concatenar que a resistncia do outro, ao sobre-por-se ao eu feminino pela violncia, uma falha da razo hu-mana no sentido de justia. Desse modo, a ideia de uma justia

    social que reavalie e contemple o outro generalizado na comu-nidade pode ser dimensionado dentro da justia restaurativa.

    1.1 ESBOOS DA GENEALOGIA DE DOMINAO DODISCURSO MASCULINO NAS HISTRIAS DO FEMININO

    O modo como a anatomia do indivduo revestida que

    define o sujeito de gnero e no propriamente o corpo. Nessesentido, os papis sociais do feminino e do masculino so cons-trudos culturalmente pelo poder simblico dominante e mas-culino, que se reproduz e se perpetua nas relaes entre osgneros no mbito privado e no espao pblico. Significa tam-bm dizer que, segundo as feministas, o ncleo familiar en-quanto espao privado ou domstico no apenas local de re-produo simblica, descrito por Habermas, tambm espaode reproduo material, pois sofre interferncias e tambminfluencia tomada de decises no espao pblico7. Percebe-se,com isso, a tendncia de naturalizao e distino de masculinoe feminino, evidncias de ordem biolgica, que se reproduzemem todos os espaos sociais. Nesse vis, Butlher prossegue:

    7 NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: Integrando o parentesco com o eco-nmico. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo ComoCrtica da Modernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. So Paulo:Rosa dos Tempos, 1987.

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    As figuras do homem e da mulher, no entanto, no serestringem absolutamente condio do ser do macho e

    do ser da fmea, mas ultrapassam bastante esses limia-res. Trata-se, com efeito, de construes sociais e cultu-rais de grande complexidade, modeladas que so por re-gras e cdigos simblicos meticulosos. Em decorrnciadisso, preferiu-se criticar na contemporaneidade a cate-goria de sexo, marcada que seria essa concepo equivo-cada, para enunciar a de gnero, a fim de que se possamreconhecer efetivamente os procedimentos que lhe soconstitutivos. Formulou-se, assim, um projeto terico deproduo da identidade, que teve como condio histri-ca de possibilidade os movimentos gay e feminista, querelanaram num outro comprimento de onda os jogos deverdade (Foucault) constitudos pelo Ocidente.8

    Via de regra, a histria do ego masculino autnomo asaga desse sentido inicial de perda no confronto com o outro,

    pela experincia real da guerra, do medo, da dominao, ansie-dade e morte, bem como pelo estabelecimento da lei para go-vernar tudo9. necessrio realar que a constituio da autori-dade poltica civiliza a rivalidade do homem com o outro aodeslocar a ateno da guerra para a propriedade, da conquistapara a ostentao. Nesse aspecto, a lei reduz a insegurana, omedo de ser mergulhado pelo outro, ao definir o meu e o teu10.Segundo Butler, a dependncia radical do sujeito masculino

    diante do Outro feminino exps subitamente o carter ilus-rio de sua autonomia, significando fragilidade e fragmentaoda identidade do homem, que busca se autoafirmar valendo-se

    8 BUTLER, Judith P. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade.Traduo de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003.

    9 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crtica daModernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. So Paulo: Rosa dosTempos, 1987. p. 95.

    10 idem, p. 96.

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    da dominao11. No modo de vida patriarcal, o outro tudo queest alm do ego. Nossas prprias dimenses inconscientes sovistas como ameaas que precisam ser reprimidas. As outraspessoas so consideradas meros figurantes no espetculo domundo. necessrio explor-las e extrair delas o mais que sepuder, descartando-as em seguida, como fazemos com a terra eos seus frutos12. Foi, portanto, de Freud a Piaget que o relacio-namento com o outro ou o irmo visto como experincia hu-manizadora que ensina os seres humanos a tornarem-se soci-

    veis e adultos responsveis. Como consequncia dessa metfo-ra sobre a imaginao e a conscincia humana, tambm se her-daram muitos preconceitos filosficos, que de certa forma noreconheceram a magnitude do poder feminino13. Sob esseprisma a prpria constituio de uma esfera de discurso dopoder que bane a mulher da histria, empurrando-a para odomnio da natureza, da luz do pblico para o ambiente doms-tico, para o repetitivo fardo imposto culturalmente de alimen-tar e reproduzir. Por sua vez, a esfera pblica, a esfera da justia,d-se na historicidade, ao passo que a esfera privada, a esferado cuidado e da intimidade, imutvel e interminvel. Nessasesferas, a vida reproduzida e internalizada pelo ego masculino.Indo ao encontro do que foi dito, o contedo do outro generali-zado e do outro concreto constitudo por essa caracterizaodicotmica, herdada da tradio moderna. O ponto de vista do

    outro generalizado exige que enxergue o todo e cada indivduocomo um ser racional habilitado aos mesmos direitos e deveresque se deseja atribuir a si mesmo. Ao reconhecer o ponto de

    11 BUTLER, Judith P. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade.Traduo de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 8.

    12 MARIOTTI, Humberto. As paixes do ego: complexidade, poltica e solidarie-dade. So Paulo: Palas Athenas, 2000. p. 43.

    13 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crtica daModernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. So Paulo: Rosa dosTempos, 1987. p. 96.

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    vista do outro, se abstrai a individualidade e a identidade con-creta do outro14.

    O pensamento moderno ocidental um pensamento abis-sal. Consiste num sistema de distines visveis e invisveis,sendo que as invisveis fundamentam as visveis. As distinesinvisveis so estabelecidas por linhas radicais que dividem arealidade social em dois universos distintos: o universo destelado da linha e o universo do outro lado da linha. A diviso tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade,

    torna-se inexistente, e mesmo produzido como inexistente.Inexistncia significa no existir sob qualquer forma de serrelevante ou compreensvel. Tudo aquilo que produzido comoinexistente excludo de forma radical porque permanece ex-terior ao universo que a prpria concepo aceita de incluso,considera como sendo o Outro. A caracterstica fundamental dopensamento abissal a impossibilidade da copresena dos doislados da linha. Essa distino visvel fundamenta e caracteriza amodernidade ocidental como paradigma fundado na tensoentre a regulao e a emancipao social15.

    Nesse contexto, reconhecer a essencialidade do outrofundamenta o profundo apelo humanstico. Estou falando dealgo que possa livrar-nos de um padro de vida segundo o qualem muitos casos a palavra separada do real, a justia se preo-cupa menos com o sofrimento dos homens do que com a letra

    da lei, e esta, no raro, busca verdades que pouco ou nada tm aver com o cotidiano das pessoas16. Ningum faz nada sozinho.

    14 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crtica daModernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. So Paulo: Rosa dosTempos, 1987. p. 101.

    15 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para alm do pensamento abissal: das linhasglobais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul.So Paulo: Cortez, 2010.

    p. 32.16 MARIOTTI, Humberto. As paixes do Ego: Complexidade, poltica e solidarie-

    dade. So Paulo: Palas Athenas, 2000. p. 27.

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    Precisamos do outro desde que nascemos: ele quem confirmaa nossa existncia e a recproca verdadeira. Vislumbra-se,assim, que: No patriarcado, ser pobre considerado o sinalmximo de fraqueza. No dar sinais de debilidade um impera-tivo: proibido no ter dinheiro ou aparentar esse estado. Naperspectiva patriarcal, a pobreza explicvel pela falta decompetitividade e agressividade17. Tendo essa perspectivaem mente, a expresso matrstica foi introduzida pela ar-queloga lituana Marija Gimbutas, para designar culturas nas

    quais homens e mulheres viviam em cooperao e livres dediferenas hierrquicas de parte a parte18. Por outro lado, re-fora-se a cultura do patriarcado como sendo modo de apro-priao, atitude exploradora e extrativista com a terra, fertili-dade e procriao que influencia homens, mulheres e crianasao longo de toda a vida19. Dentro da metfora do outro concretoque repudia associar e compartilhar o poder com o outro femi-nino, o poder simblico masculino, quando propaga alguns dis-cursos estratgicos universais, como conduta de comportamentoa ser seguida entre os indivduos, materializa e aprisiona con-ceitos crticos dentro de ideologias, sendo ns, na relao, ooutro concreto, que se distancia do no pensado, no visto eno ouvido20. Muito embora as comunidades precisem denormas morais e universais, importante reexaminar o nopensado, abrindo o canal de dilogo e do discurso para instau-

    rao do outro generalizado feminino, que tambm conseguelidar com o afeto21. Em contrapartida, o feminismo identificado

    17 MARIOTTI, Humberto. As paixes do Ego: Complexidade, poltica e solidarie-dade. So Paulo: Palas Athenas, 2000. p.42-43.

    18 Idem, p. 42-43.19 Idem, p. 42-43.20 Idem, p. 42-43.21 BENHABIB, Seyla. O Outro Generalizado e o Outro Concreto. A controvrsia

    Kohlberg-Gilligan e a Teoria Feminista. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Dru-cilla (Coords.). Feminismo Como Crtica da Modernidade. Traduo de Natha-nael da Costa Caixeiro. So Paulo: Rosa dos Tempos, 1987. p. 103.

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    com a negatividade, uma espcie de confinamento categricodo outro feminino no discurso falocntrico. Isso permeia a se-guinte indagao: quem o feminino? Um outro desmedido onipresena do eu masculino. Nesse vis, destaca-se no inter-subjetivo feminino a sequela da mutilao do carter social damulher. Por sua vez, Freud, no que tange sexualidade, trata dacastrao dos corpos, de ambos os sexos, pois estes ingressamno reino simblico pelo mecanismo da castrao, bem comoda virilidade masculina22. Seguindo essa compreenso, a dife-

    rena biolgica entre o sexo masculino e o feminino d-se pelaconstruo social, de matrizes universais que formam arranjospor meio de smbolos convencionais e estruturantes entre ovulo, smbolo por excelncia da fecundidade feminina, e ofalo pela virilidade potncia sexual, mais os testculos23. Porsua vez, a relao de dominaodominado e quilo que osdomina pressupe percepes estruturantes impostas, de-sencadeando no dominado atos de conhecimento, inevita-velmente atos de reconhecimento, de submisso24. Tendo essaperspectiva em mente, Bakhtin (1986, 1993, p. 54), mencionadopor Santos, aduz que a arquitetura concreta do mundo atual dosatos realizados tem trs momentos bsicos: o Eu-para-mimmesmo; o Outro-para-mim; o Eu-para-o-outro. E, desse modo,constroem-se e refazem-se os valores, mediante um processoincessante de interao25. O que se preze na dicotomia da ativi-

    dade racional e simblica dos espaos que os sujeitos se inter-

    22 CORNELL, Drucilla; THURSCHWELL, Adam.Feminismo, Negatividade, Inter-

    subjetividade.In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismocomo crtica da modernidade. Traduo de Nathanael da Costa Caixeiro. Riode Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. p. 172.

    23 BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria HelenaKhner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 22.

    24 Idem, p. 22.25 SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;

    MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. So Paulo: Cortez, 2010.p. 586.

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    laam, a globalizao tende, nos atuais dias, a despersonaliz--los e adoec-los.

    Nessa tica, ressalta a lgica do outro generalizado e deafeto est em agir como indivduo e ver o outro como tal, sem amaquiagem dos gneros que o mundo l fora enfia goela abaixo,deixando tudo mais suave, pacfico e democrtico26. Por contadisso, o jeito desvelar, revelar e descobrir o que esconde acultura feminina envolta da corrida para ocupao e manuten-o de poder nos espaos sociais.

    1.2 ACORRIDA MALUCA DA PENLOPE CHARMOSA:A CULTURA FEMININA DAS APARNCIAS NOIDERIO DE CONSUMO EM DESVELAR-SE,REVELAR-SE,DESCOBRIR-SE

    A projeo do outro feminino, de si prprio, o maior de-

    safio a ser enfrentado na sociedade do consumo que trabalhacom o imaginrio social e dissipa a identidade do indivduo. Porisso, deve-se rememorar o poder da mulher na antiguidade atsua queda quando da ascenso do poder flico; e em dado mo-mento histrico ela retoma o seu lugar no espao pblico, dadoo seu reconhecimento de cidadania, pelo direito ao voto, masprincipalmente quando retoma o controle da reproduo hu-mana, ou seja, do prprio corpo. Com a descoberta da plula,

    essa mulher encontra em seu caminho outro caminho a percor-rer: a insero do mercado de trabalho e o falso mito da belezae da jovialidade. A histria da humanidade iniciou com o serfeminino, em que a mulher foi quem carregou o cromossomahumano primitivo, como o faz at os dias atuais. Assim, devidoa sua adaptao aos mais diversos ambientes, garantiu a sobre-vivncia e o sucesso da espcie, uma vez que tambm era

    26 BENSIMON, Carol. Dormindo com o inimigo. Zero-Hora, sbado, 7 de setem-bro de 2013.

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    incumbida da maternidade e, por fora disso, forneceu o est-mulo cerebral imprescindvel para o dilogo entre os sereshumanos e a sua organizao social27. Contudo, devido a suagrande importncia na evoluo da humanidade, j que somenteelas poderiam produzir novas vidas, eram reverenciadas, tidascomo deusas da natureza, ou seja, o domnio da natureza e daevoluo das espcies pertencia a elas. Desse modo, em comu-nidades primitivas, as mulheres eram, com grande frequncia,menos subjugadas em relao aos homens. Em virtude desse

    fato, essas mulheres tinham frequentemente melhores opor-tunidade de liberdade, dignidade e significao do que muitasde suas descendentes femininas em sociedades mais avana-das28. Entretanto, com a destruio da imagem da maternidadee da fertilidade ligada s mulheres, a dominao masculina ini-ciou o seu processo, outorgando o patamar de inferioridade mulher, tornando natural essa condio e denegando-lhe atmesmo a qualidade de ser humano. Nesse sentido, o eu mascu-lino levantou-se para aceitar o desafio do poder feminino; einiciando a guerra que haveria de dividir os sexos e as socieda-des por milnios frente, o homem buscou autoafirmao desua masculinidade pela morte e destruio de tudo o que fizerada mulher a Grande Me, Deusa, guerreira, amante e rainha.Instaura-se a vingana do Falo, com o surgimento da sociedadefalocrata29. Por outro lado, com a retomada do poder feminino,

    em meio conquista do sufrgio universal ou do corpo poltico,a mulher retoma espaos na sociedade, em especial pela suacriatividade e as habilidades, que no se encontram mais exclu-sivamente na fora fsica. Com efeito, a tecnologia de controleda natalidade possibilita mulher escolher quantos filhos querter, e quando. A mulher deixou de dedicar a maior parte de sua

    27 MILES, Rosalino.A Histria do Mundo pela mulher. Traduo de Barbara He-

    liodora. Rio de Janeiro: LTC/Casa-Maria Editorial, 1989. p. 19.28 Idem, p. 35.29 Idem, p. 47.

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    vida adulta fora muscular. Como estava fadado a acontecer, omonoplio masculino da poltica comeou a ruir30. Como afir-ma Del Priore31, o sculo XXI das mulheres quem informaso os filsofos, assim,

    [] de fato, elas esto em toda parte, cada vez mais vis-veis e atuantes. Saram de casa, ganharam a rua e a vida.Hoje trabalham, sustentam a famlia, vm e vo, cuidamda alma e do corpo, ganham e gastam, amam e odeiam.Quebraram tabus e tradies. No pouco para quem h

    cinquenta anos s tinha um objetivo na vida: casar e terfilhos. Ser feliz? Ao arrumar uma aliana no dedo, a feli-cidade vinha junto.

    Sob esse enfoque e com as diversas mudanas no seio dasociedade, questiona-se como se passa de um mundo ao outro. sabido que a tecnologia e a educao auxiliaram, mas no

    acompanharam toda a evoluo humana. Contemporaneamente,as pessoas esto inseridas na sociedade das aparncias pelosiderios miditicos e de consumo, pois o sinnimo de felicidadee sucesso est relacionado a esteretipos e padres de beleza.Nessa direo, o culto ao corpo, a intolerncia velhice e obe-sidade passa a ser reconhecido como nova forma de estigmaoe controle das mulheres. Por sua vez, as conquistas dos movi-mentos feministas parecem estar reduzidas a meras iluses32.

    Insta dizer que o diagnstico das revolues femininasat o sculo XX ambguo, pois, alm de apontar para conquis-30 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernizao, mudana cultural e

    democracia: a sequncia do desenvolvimento humano. Traduo de HildaMaria Lemos Pantoja Coelho. So Paulo: Francis, 2009. p. 327.

    31 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histrias de mulher. So Paulo: Planeta, 2013.p. 5.

    32 CABEDA, Sonia T. Lisboa. A Iluso do Corpo Perfeito: O Discurso Mdico naMdia. In: STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, DeniseRodrigues (Orgs.). Gnero e cultura: questes contemporneas. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2004. p. 149.

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    tas, tambm aponta para as armadilhas. Tambm no campo daaparncia, da sexualidade, do trabalho e da famlia, deram-seconquistas, mas tambm frustraes. De igual modo, a tiraniada perfeio fsica empurrou a mulher no para a busca de umaidentidade, mas de identificao33. Pois

    [] o corpo da mulher era visto com as marcas da exclu-so e da inferioridade. Cristalizada pelas formas de pen-sar de uma sociedade masculina, a evocao das imagensdo corpo e da identidade feminina, na pluma de diferen-

    tes autores, refletia apenas a subordinao: ele era me-nor, os ossos pequenos, as carnes moles e esponjosas, e ocarter dbil. A subordinao expressava-se, ainda, nacapacidade de reproduzir, quando solicitada pelos ho-mens. Contudo, na outra ponta dessa submisso, a mu-lher era senhora de beleza e sensualidade alis, belezaconsiderada perigosa, pois capaz de perverter os ho-mens; sensualidade mortal, pois se comparava a vagina aum poo sem fundo, no qual o sexo oposto naufragava.As noes de feminilidade e corporeidade sempre esti-veram, portanto, muito ligadas em nossa cultura.34

    Seguindo essa compreenso, a representao do corpo noimaginrio social percebida hoje como matria-prima oumquina imperfeita e frgil que pode ser reconstruda e torna-da perfeita pela cincia e pela tecnologia. Nos dias atuais,

    existem muitas mulheres viciadas em cirurgia, escravas dobisturi. Independentemente dos custos financeiros, dor, con-tuses grotescas, ps-operatrios complicados, elas no seafastam do projeto de perfeio do corpo. Crucialmente, reme-te-as ao outro lado do mito da beleza, o reforo representa-o que circula na sociedade sobre a relao de hostilidade e

    33 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histrias de mulher. So Paulo: Planeta, 2013.p. 176.

    34 Idem, p. 177.

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    inveja entre as mulheres35. Nesse contexto, a cultura do narci-sismo, vista como projeto existencial tpico da contemporanei-dade, gera um esvaziamento histrico, arruinando o sentido deuma continuidade histrica, fato que compromete a comunica-o e as referncias intergerenciais, culminando em solido doindivduo. Assim, segundo a autora, o sujeito perde o interessepelo futuro, que tem como meta abolir a velhice e prolongar avida indefinidamente. O indivduo , assim, induzido a buscaruma eterna juventude e a construir um projeto existencial mar-

    cado pela subjetivao narcisista36. Na busca por esse ideal,aumenta extraordinariamente o nmero de cirurgias plsticasentre as mulheres, sendo este fenmeno decifrado como novaestratgia de estigmatizao, domnio e desqualificao da fe-minilidade, produzindo reaes embravecidas dos movimentosfeministas e significativa produo terica a respeito da tem-tica hoje a mulher est restringida sua beleza37. A partir dadcada de oitenta, as mulheres entraram na briga por maiorindependncia na sociedade, contudo, ao invs de verem-selivres de regras, padres, comportamentos sociais, o que pareceter acontecido , na realidade, outra forma de aprisionamento,de discurso de dominao e de construo social pela busca docorpo perfeito, por meio de ritos saudveis como a boa alimen-tao, prtica de exerccios, uma vez que seus corpos no forammais vistos sob a tica da biologia, das cincias naturais, ou

    seja, um organismo que exerce uma srie de funes orgnicas.Assim, o que surpreendeu que se deu maior ateno, muitasvezes, possibilidade do corpo servir como precioso veculopara a manifestao de uma srie de preocupaes, caracters-

    35 CABEDA, Sonia T. Lisboa. A Iluso do Corpo Perfeito: O Discurso Mdico na

    Mdia. In: STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, DeniseRodrigues (Orgs.). Gnero e cultura: questes contemporneas. Porto Alegre:

    EDIPUCRS, 2004. p. 166.36 Idem, p. 155.37 Idem, p. 155.

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    ticas e reflexos sociais das pocas38. E, nos dias atuais, ainda quese busque uma aceitao dos diversos modos de viver, o que sepercebe , na verdade, a reproduo de determinados padresque so implicados s mulheres. E esses padres referem-se, deacordo com Arajo39, principalmente maneira de se compor-tar, de se vestir, insinuando, inclusive, a forma que o corpo fe-minino deve ter. A propagao destes padres desejados/suge-ridos pelos grupos, atualmente, realizado, muitas vezes, pelapublicidade, que se apresenta como canal extremamente efi-

    caz, atingindo diversos grupos sociais suscitando, em muitoseventos, mudanas de comportamentos.

    Essa utpica beleza do corpo feminino um dos produtosmais oferecidos pela publicidade, e com grande sucesso. Con-tudo, esse corpo costumeiramente vem revestido de uma sriede exigncias que transcendem a esttica e a moda, beirandoaquilo que avaliado como o ideal das mulheres, inclusive

    mostrando explicitamente modificaes culturais das socieda-des. Portanto, percebe-se que o corpo feminino, muito maisque o masculino, tem evidenciado as transformaes pelasquais as sociedades tm se deparado40. Desse modo, h intensapresena de anncios publicitrios que utilizam a imagem decorpos simplesmente como enfeites para a venda de produtos,no existindo relao alguma entre o objeto anunciado e o corpoexibido. Assim, ao atribuir mulher a preocupao com o mo-delo exteriorizado, ou seja, essas mulheres que somente figu-ram como padres de beleza em comercias, enfatizam os pra-zeres de ser bela e demonstram a necessidade de se obter pro-dutos que possam tambm corrigir algo que no foi concebido

    38 ARAUJO, Denise Castilhos de. Corpo Feminino: construo da mdia? Lecturas,Educacin Fsica y Deportes Revista Digital, Buenos Aires, ano 13, n. 120,

    maio 2008.39 Idem,40 Idem.

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    pela natureza. Uma vez que a beleza deixa de ser um dom dos

    deuses para algo que depende exclusivamente de cada mulher,ou seja, a beleza estaria ligada estritamente com a busca cons-tante por essa beleza. Portanto, segundo Santanna41, o embele-zamento representa mais do que somente acabar com a feiura,ele tambm reflete a promessa de poder encontrar-se com elamesma, visto que resistir compra de cosmticos, s aulas deginstica, aos regimes, s cirurgias, entre outros, significa, sobre-tudo, resistir a proporcionar para si mesma um prazer suple-

    mentar.A partir disso, na publicidade, h todo um estudo nosentido de tentar retomar aqueles esteretipos tidos como osmais populares. Contudo, essa busca incansvel por padres debeleza levam as mulheres, de certa forma, a se afastarem darealidade social em que esto inseridas. Para isso, a mdiabombardeia quase todo o tempo frmulas para se lograr ospadres de beleza, os esteretipos perfeitos, e so inmeras as

    pessoas que tentam dia e noite alcan-los, mas so poucas asque obtm sucesso.

    Nesse nterim, faz-se mister refletir sobre o que o mercadotem oferecido e vendido s mulheres enquanto ideal de beleza,sade e jovialidade. Tambm no mbito do trabalho, as exign-cias so cada vez maiores associando beleza, jovialidade e com-petncia. A Penlope Charmosa, criada por William Hanna e Jo-

    seph Barbera nos anos 70, do desenho animado Corrida Malu-ca, ilustra bem o outro lado da questo nodal da corrida aosbisturis: a necessidade de manter-se e consolidar-se no mer-cado de trabalho. A personagem apresentada como uma bo-nequinha rica herdeira. No se abala com nada! Usa as armasda seduo e da fragilidade e nunca deixa de pedir ajuda quan-do precisa. Porm, quando se v sozinha e em apuros, ela se

    41 SANTANNA, D. B. Cuidados de si e embelezamento feminino. In: ______ (Org.).Polticas do corpo. So Paulo: Estao Liberdade, 1995. p. 137.

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    vira com artifcios espertos e solues inusitadas. Seu grampo

    de cabelo usado em ltimo caso, para no desfazer seu pentea-do. Qualidades femininas? Sim! A criatividade, quando inventae d outra finalidade para as coisas42.

    Por conta disso, em que ponto do ideal feminino PenlopeCharmosa toca? Aquilo que o ideal clssico feminino se refere sua funo de enfeite e seduo; ou, no ideal moderno feminino,como participante da corrida flica? Talvez se conjuguem os doisideais, na dupla exigncia que a sociedade faz hoje mulher: queparticipe da corrida, lute para ganh-la, mas no esquea o ba-tom! S o batom? E o rmel? E o blush? As luzes? O corpo per-feito? E a roupa correta e na moda?43Por outro lado, a seduopela mulher tambm uma arma de acesso ao poder, por isso oculto ao corpo perfeito requer uma aprendizagem simblica,desde a postura, trajes, penteados propcios ao contexto44.

    A nova dominao, como o movimento de afirmao das

    mulheres, de orientao individualista, mas esta dominaoque transforma a mulher como consumidora, tornada maisvulnervel ainda por sua libertao provocada pela indepen-dncia financeira que lhe abre outros horizontes, maiores doque o casamento e a maternidade. Uma parcela crescente dapublicidade recorre de bom grado ao tema da mulher libera-da, que busca seduzir e agradar, preocupada em manter seu

    corpo em forma e torn-lo capaz de suscitar o desejo masculi-no. necessrio traar o mais claramente possvel a fronteiraentre essa mulher consumidora de bens e de utenslios, con-sumidora de produtos de beleza ou aqueles usados em acade-

    42 BRASIL, Maria ngela Cardaci. Penlope Charmosa. In: APPOA (Associao

    Psicanaltica de Porto Alegre). O valor simblico do trabalho e o sujeito con-temporneo. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 2000. p. 111.

    43 Idem, p. 111.44 BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria Helena

    Khner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 38.

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    mias, e a mulher que se constri ela mesma contra as foras de

    presso social e adquire uma conscincia de si. Consumo cons-trudo pelo sistema de oferta, j que as pesquisas de marketingpermitem antecipar a maior parte dos comportamentos45. Ocorpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado, mani-festa a disponibilidade simblica que, como demonstraraminmeros trabalhos feministas, convm mulher, e que combinaum poder de atrao e de seduo conhecido e reconhecido portodos, homens ou mulheres, e adequado a honrar os homens de

    quem ela depende ou aos quais est ligada, com um dever derecusa seletiva que acrescenta ao efeito de consumo ostenta-trio, o preo da exclusividade46.

    Evidentemente, na linguagem corporal ditada pelos pa-dres da moda, h um consenso: preciso diferenciar-se deduas figuras clssicas do feminino, a prostituta e a me. Pe-nlope Charmosa tambm est sempre impecvel e jamais de-

    siste da corrida, o que na vida real tambm pode desencadearuma srie de complicaes psquicas ou sade da mulher, aqual se cobra para no sair e continuar sendo trapaceada nessacorrida maluca. Algumas adiam e renunciam maternidade,outras abdicam de relaes duradouras ou estveis para foca-rem suas potencialidades no trabalho. No desenho animado, apersonagem Penlope retira do seu carro cor-de-rosa enguiado

    um monte de peas, procura daquela que teria provocado oproblema; quando a encontra, conserta-o com seu grampo, dei-xando todas as outras peas fora do carro e arrancando para acorrida velozmente. Percebe-se, com isso, que ela pode contor-nar a falta e livrar-se daquilo que parecia to necessrio, masque, como o mais frequente, no passa de inflao imaginria.

    45 TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Traduo de Francisco Mors. Pe-

    trpolis: Vozes, 2007. p. 49.46 BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria Helena

    Khner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 41.

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    Com essa metfora, quer-se mais que as mulheres investidas da

    Penlope usem mais seu grampinho para seguir na corrida,sem precisar desfazer por amor o trajeto j conquistado47. Nofazendo escolhas e renncias, mas agregando tudo ao seu car-rinho maluco: filhos, marido, estudos e trabalho.

    Dada a situao, as mulheres, ao escolherem ou agrega-rem sua vida o amor romntico, por uma questo paradoxal,diferenas culturais, insistncias de manuteno e aplicao deestratgias de dominao masculina, no percebem cotidiana-mente que, alm de habitar uma casa de forma mtua, dividemuma cama. Por isso, a metfora de se dizer que as mulheresdormem com o inimigo, quando este se vale do flagelo da vio-lncia e denega a cidadania, mutila de igual maneira a condiofeminina, bem como a possibilidade de se pensar em homem emulher, sujeitos dotados da condio alm do gnero.

    1.3 DORMINDO COM O INIMIGO:O PODER SIMBLICOMASCULINO E O FLAGELO DA VIOLNCIA DOMSTICA

    A situao das mulheres mudou. Mudanas lentas, semdvida. Os anos 1970 e 1980 foram emblemticos: elas entra-ram no mercado de trabalho, tomaram plula e queimaram su-tis. A revoluo no ficou sem resposta. O nvel de violncia

    contra mulheres aumentou e houve at quem matasse a suapor usar biquni, fumar ou assistir Malu Mader, srie de televi-so sobre uma mdica divorciada e emancipada. Contra as mu-danas, o que foi considerado castigo de pecados caiu doscus como um raio48. A palavra violncia, por si s, tem sido

    47 BRASIL, Maria ngela Cardaci. Penlope Charmosa. In: APPOA (AssociaoPsicanaltica de Porto Alegre). O valor simblico do trabalho e o sujeito con-temporneo. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 2000. p. 115.

    48 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histrias de mulher. So Paulo: Planeta, 2013.p. 6.

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    muito utilizada para expressar comportamentos de se viver em

    sociedade e, aparentemente, tornou-se um predicativo do jeitohumano de ser49. De igual modo, tambm um fenmeno queest interligado vivncia comunitria50. Sob essa lgica, tem--se a violncia perpetrada contra a mulher, destacando aquique os estudiosos utilizam termos distintos, entre eles: violn-cia contra a mulher, violncia domstica, violncia intrafamiliare violncia de gnero. No entanto, essas divises categricasdevem ser tratadas como sinnimos, pois, se observados de um

    ponto mais genrico, acabam complementando-se. interessante destacar o conceito trazido por alguns

    doutrinadores. A violncia contra a mulher refere-se ao alvocontra o qual a violncia dirigida. uma violncia que notem sujeito, s objeto; acentua o lugar da vtima, alm de suge-rir a unilateralidade do ato. No se inscreve, portanto, em umcontexto relacional51. Por outro lado, a violncia domstica

    prpria do espao privado, ocorre, pois, no mbito domstico,independente do sujeito, do objeto ou do vetor da ao52. Po-de-se enfatizar que o processo de ocultamento da violnciaperpetuada no espao protegido da casa guarda intrnseca re-lao com a naturalizao dessa forma de violncia facilmentemesclada ou superposta ao disciplinamento vinculado a prti-cas de socializao e com a sua cronificao, potenciada porum espao simbolicamente estruturado, tendo como corolrio

    a escalada da impunidade53. Em contrapartida, a violncia intra-49 STREY, Marlene Neves. Violncia e Gnero: um casamento que tem tudo para

    dar certo. In: GROSSI; Patrcia Krieger; WERBA, Graziela C. Violncias e Gne-ro: coisas que a gente no gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p.47.

    50 GUIMARES, Issac Sabb; MOREIRA, Rmulo de Andrade. A Lei Maria daPenha:aspectos criminolgicos, de poltica criminal e do procedimento penal.Salvador: Juspodivm, 2009. p. 11.

    51 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violncia mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souza

    de. Violncia de Gnero e Polticas Pblicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 23.52 Idem, p. 23.53 Idem, p. 25.

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    familiar ou familiaraproxima-se e confunde-se com a categoriaanterior, alm de levar em considerao o espao em que sereproduz, trata-se de uma forma de violncia que se processadentro da famlia54. A prpria legislao optou por utilizar otermo violncia domstica e familiar contra a mulher. Concei-tuando-a como qualquer ao ou omisso baseada no gneroque lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicol-gico e dano moral ou patrimonial e que ocorra no mbito daunidade domstica, no mbito da famliaou em qualquer relao

    ntima de afeto55

    .Observa-se, neste contexto, que a violncia um fenme-no multifacetal, s vezes disfarado de tradio ou moralidade,outras, dispensando qualquer mscara, mas o que se analisa que todas as formas possuem algum tipo de poder que permiteviolentar. Gnero, na sua acepo antropolgica, uma formaculturalmente elaborada para explicar a diferena sexual emcada sociedade, manifestando-se nos papis atribudos a cada

    sexo. Assim, esses papis no so inatos, mas so adquiridos.Embora a categoria gnero no esteja ligada ao sexo ou

    categoria social mulher, considera-se que, juntamente a outrasterminologias, o sentido de grito de dor a incessante buscapelo reconhecimento enquanto sujeitos histricos portadoresde desejos e de direitos56. A partir da ideia de que sexo umaconstruo social e inacabada, as feministas substituram emseu lugar o termo gnero, que em ingls gender. O uso desse

    termo possibilita a anlise das identidades, feminino e mascu-lino, sem reduzi-las ao plano biolgico, identificando essasidentidades conforme o perodo histrico57. Nos anos 1990, as

    54 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violncia mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souzade. Violncia de Gnero e Polticas Pblicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 24.

    55 Art. 5 da Lei 11.340/06.56 FINCO, Daniela; VIANNA, Cludia Consuelo. Meninas e meninos. In: PINTO,

    Graziela (Coord.).A mente do beb: o fascinante processo de formao do c-rebro e da personalidade. 2. ed. rev. e atual. So Paulo: Duetto, 2008.

    57 SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurdica: introduo a uma leitu-ra externa do Direito.So Paulo:Revista dos Tribunais, 2008.

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    pesquisas da historiadora americana Joan Scott contriburamcom os estudos brasileiros sobre as questes de gnero, a partirde crticas acerca do saber produzido pelas diferenas sexuais edos sentidos dados nos diversos espaos de socializao, desta-cando as instituies educacionais58. Era preciso compreenderque o espao social construdo pela funo e posio econ-mica e cultural dos seus agentes e que a educao distinta dadaaos homens e s mulheres equivaleria s distncias sociais59.Historicamente, gnero e sexo foram usados como sinnimos

    destinados a constituir a identidade de um indivduo. O sexo definido por caractersticas fsicas, biolgicas e fisiolgicas queseparam seres humanos em homens e mulheres, enquanto ognero associado identidade social e expressa um conjuntode fatores que vai alm da simples diferena biolgica ou fsica.Sob esse enfoque, o sexo estaria ligado exclusivamente funoreprodutiva e o gnero seria referente organizao social dasrelaes humanas, a partir da maneira com que cada cultura

    trata a diferenciao sexual e impe determinado tipo de com-portamento para cada um dos sexos. Por conta disso, ao abordaro tema gnero e sexo, no se pode deixar de tratar outro con-ceito a sexualidade ,visto a proximidade entre os conceitos eos temas.

    Para Foucault60, os significados atribudos sexualidadeso construdos por discursos que visam estabelecer parme-tros sobre o sujeito e sua relao com seu prprio corpo, inclu-indo seus desejos e prazeres. As prticas discursivas buscamdefinir as representaes do masculino e do feminino por meiodo modelo heterossexista e monogmico, fazendo com que oindivduo deixe de ser um ser naturalizado para se tornar um

    58 FINCO, Daniela; VIANNA, Cludia Consuelo. Meninas e meninos. In: PINTO,Graziela (Coord.).A mente do beb: o fascinante processo de formao do c-rebro e da personalidade. 2. ed. rev. e atual. So Paulo: Duetto, 2008.

    59 BOURDIEU, Pierre. Razes prticas.Campinas: Papirus, 1996.60 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade I: a vontade de saber. 18. ed. Rio

    de Janeiro: Graal, 2007.

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    objeto controlado. Por sua vez, a necessidade de concepo no

    linear entre sexualidade, sexo e gnero enfatizada por Britz-man61, uma vez que a quebra da linearidade vista como trans-gresso. Alm disso, importante observar que os sujeitos po-dem exercer a sua sexualidade de diversas formas. A aceitaode que as pessoas podem criar seu conceito prprio de sexuali-dade, seja este qual for, conduz ao reconhecimento da autoi-dentidade como algo inerente constituio do indivduo e afirmao de que no s a sexualidade normativa aceitvel.

    Logo, pela clssica definio de gnero, o conjunto de normas,valores e prticas, por meio das quais as diferenas biolgicasentre homens e mulheres culturalmente significada. Portanto, um elemento constitutivo das relaes sociais construdascom base nas diferenas percebidas entre os sexos62.

    Ao encontro disso, tem-se bem presente nas sociedades atendncia naturalizao das relaes sociais, com base na

    fisiologia dos corpos, que pela percepo social tm identida-des e papis bem definidos, ou seja, o que culturalmente com-pete ao homem e a mulher63. A cada um definido um papel deatuao na sociedade, pois, segundo Maturana64, as diferenasde gnero so somente formas culturais especficas de vida,redes especficas de conversaes. Portanto, as diferenas degnero atribudas pela cultura patriarcal no tm fundamento

    biolgico. Verifica-se, pois, algumas vezes, ainda presentes na

    61 BRITZMAN, Deborah. O que essa coisa chamada amor identidade homos-sexual, educao e currculo. Educao e Realidade,Porto Alegre, v. 21, n. 1, p.71-96, jan./jun. 1996.

    62 SCOTT, Joan. Gnero: uma Categoria til de Anlise Histrica. Educao eRealidade, Porto Alegre, Pannonica, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.

    63 FINCO, Daniela; VIANNA, Cludia Consuelo. Meninas e meninos. In: PINTO,Graziela (Coord.).A mente do beb: o fascinante processo de formao do c-rebro e da personalidade. 2. ed. rev. e atual. So Paulo: Duetto, 2008.

    64 MATURANA, Humberto R.; VERDEN-ZLLER, Gerda. Amar e brincar: funda-mentos esquecidos do humano. Traduo de Humberto Mariotti e Lia Diskin.So Paulo: Palas Athena, 2004.

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    sociedade a subservincia, a hierarquizao das relaes e o

    patriarcalismo, mormente porque muitas situaes pragmti-cas se traduzem na arraigada submisso. Sob esse prisma, es-sencial circunscrever a presente pesquisa em uma abordagemcrtica e consistente, despindo-se de preconceitos, discrimina-es e modelos obsoletos, levando-se sempre em considera-o as habilidades humanas, notadamente no que se relaciona capacidade que possuem, em todas as reas. O estudo do usodo termo gnero encontra explicaes no somente pela impor-

    tncia do movimento feminista nesse processo, mas por seucontedo, modernamente falando, crtico em relao s siste-mticas sociais e a opresso de determinados indivduos. Aobra de Beauvoir (O segundo sexo) um referencial histrico edelimitador de uma nova viso ou nova percepo, significandoo abandono da viso que inferiorizava as mulheres em relaoaos homens, muito embora seja imperioso ressaltar que a obra

    mais importante para o feminismo tenha sido de Judith Butler(Gender Trouble). O que leva seguinte observao: o desen-volvimento do pensamento cientfico e reflexivo para trans-formaes do universo feminino surgiram de uma gama depesquisadores e pesquisadoras, de maneira que at hoje o pro-cesso de transformao e reconhecimento da cidadania femini-na no est pronto e nem acabado65. indiscutvel que o con-

    ceito de gnero tem ganhado fora e destaque enquanto ins-trumento de fomento e de anlise das condies das mulheres.Porm, no deve ser utilizado apenas como sinnimo de mu-lher. O conceito usado tanto para distinguir e descrever ascategorias relacionais de mulherfeminino e de homemmasculino, ao mesmo tempo para examinar as relaes de de-sigualdades e de poder estabelecidas entre ambos, assim como

    65 DIAS, Felipe da Veiga; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Sistema Punitivo eGnero.Uma abordagem alternativa a partir dos direitos humanos. Rio de Ja-neiro: Lumen Juris, 2013.

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    para identificar as relaes desiguais intragnero presentes,

    sobretudo, entre as mulheres, seja de condio socioeconmica,racial, geracional, tnica, religiosa, regional entre outras66. Dessaforma, o assunto ora posto na pauta de discusso configura-sede extrema importncia, eis que no se pode continuar imerso,aguardando uma democratizao nas situaes prticas, mas oinverso, revigorar-se na busca de instrumentos potencializado-res e medidas eficazes de verdadeira igualdade entre homens emulheres. Para tanto, indispensvel que se compreenda a

    historicidade desse movimento feminista, uma vez que co-nhecendo o passado que se podem propor alternativas para umprotagonismo feminino em todas as ambincias. Para que issoseja possvel, a abordagem acerca da perspectiva de gnero,seja de dimenso distributiva ou de reconhecimento, precisa setransitar sobremaneira substancial no terreno rido das polti-cas pblicas, que muito embora sua meno e pesquisas no

    espao acadmico e pblico sejam recentes e tambm com ex-perincias mediticas; no h como refutar a fundamentalidadeda participao poltica dos atores sociais nesse cenrio fragili-zado e que carece ainda de maior interesse tambm por parteda coletividade.

    O movimento feminista muito contribuiu no Estado De-mocrtico de Direito para o reconhecimento da cidadania fe-

    minina e pauperizada, assim, relevante dentro desse debatedistinguir as polticas pblicas para as mulheres de polticas degnero, salientando que h uma relao conceitual da dimen-so distributiva nas polticas para as mulheres, bem como v-sea dimenso de reconhecimento nas polticas de gnero, pelomenos esse o iderio ou propsito quando se prima pela con-

    66 BRASIL. Secretaria de Polticas Pblicas para as Mulheres. Polticas pblicas

    para as mulheres, 2012, p. 2. Disponvel em: . Acesso em: 26 dez.2013.

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    solidao da cidadania feminina e, por sua vez, o empodera-mento da mulher. Assim, ao reunirem-se os conceitos de vio-lncia e gnero, neste terceiro conceito, de gnero, que o pr-prio termo gnero pressupe certa presso sobre os indivduospara que aceitem os padres culturais sobre o que ser homemou mulher, tem-se nas relaes de gnero a presena involun-tria de poder, ou seja, prevalncia de um sexo sobre o outro67.Almeida alerta para a ideia de que gnero possui duas catego-rias, a analtica e a histrica. A primeira porque gnero no

    constitui um campo especfico de estudos, tratando-se de ca-tegoria que fortalece a preocupao para a complexidade dasrelaes sociais. A segunda porque as relaes de gnero do--se de acordo com a organizao dessa vida social, e com o pas-sar dos tempos, ou seja, ao longo da histria, vo se estrutu-rando os lugares sociais de forma sexuada, surgindo as dico-tomias pblico x privado, produo x reproduo, poltico xpessoal68.O conceito de violncia de gnero deve ser entendi-

    do, portanto, como uma relao de poder. Demonstra-se que ospapis impostos aos homens e s mulheres pressupem rela-es violentas entre os sexos, fruto do processo de socializaodas pessoas69. Ressalte-se que essa prtica de violncia transmitida de gerao a gerao.

    A violncia de gnero se apresenta como forma mais ex-tensa e se generalizou como expresso utilizada para fazer re-ferncia aos diversos atos praticados contra mulheres comoforma de submet-las a sofrimento fsico, sexual e psicolgico,a includas as diversas formas de ameaas, no s no mbito

    67 STREY, Marlene Neves. Violncia e Gnero: um casamento que tem tudo paradar certo. In: GROSSI; Patrcia Krieger; WERBA, Graziela C. Violncias e Gne-ro: coisas que a gente no gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.p. 59.

    68 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violncia mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souzade. Violncia de Gnero e Polticas Pblicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 26.

    69 TELES, Maria Amlia de Almeida; TELES, Mnica de Melo. O que violnciacontra a mulher. So Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleo Primeiros Passos),p. 18.

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    intrafamiliar, mas tambm abrangendo a sua participao socialem geral, com nfase para as suas relaes de trabalho, sobpretenso de imposio de uma subordinao ao controle dognero. A violncia de gnero se apresenta, assim, como umgnero, do qual as demais so espcies70.

    Para tanto, a violncia de gnero acontece num cenriode disputa pelo poder, o que representa dizer que o uso da for-a torna-se um aliado necessrio para se manter a dominao.Entretanto, essa forma de violncia se mantm somente com a

    presena da violncia simblica, proporcionando a legitimaopara as relaes de fora. Nas relaes ntimas, essa dimensosimblica acaba sendo potencializada, pois ocorre num espaoprivado71. A famlia e o ambiente domstico representam ocampo perfeito para a reproduo da violncia de gnero.Quando a violncia se instala nas relaes familiares, sob a ti-ca da dimenso simblica, ela se reproduz e se amplia. Pode-seconcluir que essa forma de violncia tem por objetivo a efetiva-o da dominao, no se restringindo apenas aos dominados.Isso tudo acaba provocando a fragilidade da autoestima dosatores sociais, causando transtornos psicossomticos e certapassividade por parte das vtimas.

    Acontece que o impacto dessa violncia crnica acabacausando depresso, ansiedade e diversas manifestaes demal-estar para essas vtimas passivas, muitas vezes em razo

    da culpa absorvida pela prpria mulher. Por essa razo, im-prescindvel destacar que a violncia compe-se de trs fasesdistintas. A primeira acontece com a construo da tenso, co-meando com agresses verbais, cimes, ameaas e at des-truio de alguns objetos. Nessa fase, a mulher procura acalmaro agressor, acreditando que pode fazer alguma coisa para im-

    70 SOUZA, Srgio Ricardo. Comentrios lei de combate violncia contra a

    mulher. Curitiba: Juru, 2007. p. 35.71 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violncia mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souza

    de. Violncia de Gnero e Polticas Pblicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 29.

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    pedir os atos violentos do marido. Nesse momento, surge asensao de culpa da mulher; ela realmente acredita que, dealguma maneira, responsvel pelos atos do companheiro72.Em seguida, inicia-se a segunda fase, marcada por agressesmais graves, geralmente agresses fsicas. Esse momento re-cheado de descontrole e destruio. Essa a mais breve, pois,ao cessarem os ataques violentos, o agressor mostra-se arre-pendido, com medo de perder a companheira. Inicia-se ento aterceira fase. O homem pede perdo, compra presentes e jura

    que jamais acontecer de novo. Eis, novamente, o homem porquem um dia a vtima se apaixonou. A terceira fase, tambmconhecida como fase da lua-de-mel, marcada por um perodode calmaria, sem tenso acumulada. O prprio agressor acredi-ta que no mais cometer atos violentos contra a mulher queama73. Portanto, nessas relaes sociais conflituosas, que acon-tecem no reservado ambiente domstico, observa-se que asmulheres aprenderam sua identidade de gnero, silenciadas

    pela prpria sociedade, aceitam caladas os abusos cometidos.Esse complexo processo de naturalizar essas relaes conturba-das facilitada74 pela dinmica de se aprenderem/compreen-derem/reproduzirem interaes entre seres sociais que reatua-lizam desigualdades de classe, gnero e tnico-raciais. A violn-cia simblica , contudo, a forma perfeita para se exercer a do-minao masculina, em virtude, justamente, de obstaculizar acapacidade de reao das mulheres e dos prprios homens, em

    razo, principalmente, do modo de ser e fazer o gnero mascu-lino e feminino. A diviso entre os sexos parece estar na or-dem das coisas, como se diz por vezes para falar do que normal, natural, a ponto de ser inevitvel: ela est presente, ao

    72 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres Invisveis: violncia conjugal e novaspolticas de segurana. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999. p. 141.

    73 Idem, p. 141.74 POUGY, Lilia Guimares. Sade e violncia de gnero. In: ALMEIDA, Suely

    Souza de. Violncia de Gnero e Polticas Pblicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.p. 74.

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    mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, porexemplo, cujas partes so todas sexuadas), em todo o mundosocial e, em estado incorporado, nos corpos e no habitus dosagentes, funcionando como sistemas de esquemas de percep-o, de pensamento e de ao75.Nessa seara, torna-se necess-rio definir o habitus,em outros termos, tem a ver com a formade disposio praticamente apresentada como natural que re-side nas relaes, nos espaos e nos campos; constitui-se pelosrituais, pelos costumes, como tambm pelos mecanismos de

    poder. Assim, o sistema social como um emaranhado de tent-culos predisposto em campos constitudos por capitais de ordemsocial, econmica, poltica, cultural, formando entre si o capitalsimblico e, devido influncia que estes exercem como signos efiguras simblicas nas relaes pessoais, de tal maneira que pro-porcionam para que existam as trocas entre os agentes, a domi-nao masculina delimita e estabelece posies ou papis.

    Da a afirmativa eu sou uma mulher nos fez aprender

    que no existe identidade entre o eu que cria, que ama ou querejeita, e o eu que j est constitudo e que, por conscincia, visto pelo outro e se define por suas relaes com o outro. Asmulheres ainda esto muito presas ao mundo feminino tal co-mo ele foi criado pelos homens para formar um gneroque assubmeteu ao interesse superior da dualidade homemmulhere, consequentemente, da heterossexualidade. Ser uma mulherpara si, construir-se como mulher , ao contrrio, transformaresta mulher para o outro em mulher para si. Sim, as mulheresso seres sexuados, fmeas, s quais os homens deram certosatributos e tentam domin-los, ao passo que elas querem trans-formar-se em mulheres criadas por mulheres e, antes e acimade tudo, por elas mesmas76. A relao entre a mulher e o ho-

    75 BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria Helena

    Khner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.17.76 TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Traduo de Francisco Mors. Pe-

    trpolis: Vozes, 2007. p. 41.

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    mem cercada de paradoxos constitudos pelo processo cultu-ral, e que, na contemporaneidade, se luta pela mudana estru-tural e igualdade de gnero. Mas o que se tem constatado aresistncia masculina em dominar77, mesmo que pelo empregoda violncia domstica. No se quer aqui colocar a mulher ex-clusivamente no papel de vitimizao, ao contrrio, existemmulheres que tambm so responsveis pelo desencadeamentodessa circunstncia oprimente, eis que num primeiro momentono se reconhecem como agentes portadoras de direitos ou

    incorporam o papel masculino, vislumbrando a dominao.Acontece que as mulheres vtimas de violncia das mais diver-sas maneiras so rotuladas e estigmatizadas por alguns, se noa sua maioria, membros da comunidade. O entendimento dis-criminador que estar nessas condies uma escolha pessoal,que, se caso assim a mulher desejasse, poderia deixar de sofrernas mos do seu agressor. A indiferena que se d violnciadomstica preocupante; verifica-se nessa relao uma das

    piores violncias enraizadas nas questes de dominao mas-culina: a violncia simblica definida por Bourdieu como sendouma violncia suave, insensvel, invisvel a suas prprias vti-mas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente sim-blicas da comunicao e do conhecimento, ou, mais precisa-mente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em ltimainstncia, do sentimento78.

    Para Bourdieu, a relao homem e mulher se d no cam-po social, mais precisamente no campo familiar, pelo menos noque se refere violncia domstica. Logo, cada indivduo, peloprincpio de diferenciao, tem suas distines que podem sercaracterizadas como capital, o que quer dizer que cada um constitudo de capital econmico (diferenas financeiras ouequivalentes), capital cultural (educao), capital social e capi-

    77 BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria Helena

    Khner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 22.78 Idem, p. 7-8.

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    tal simblico79. Assim, os diferentes tipos de capital, em especialo econmico e o cultural, aproximam ou distanciam socialmen-te os agentes sociais. Entretanto, o campo em que convivem,devido ao capital peculiar de cada um, torna-se espao de dispu-tas simblicas. Consequentemente, quando o desequilbrio ou opoder de dominao impera, de tal maneira que a parte frgilda relao no d conta, surge a violncia simblica, a qual jun-tamente alienao do sujeito no deixa perceber a dominaoque advm do outro.

    Nesse contexto, a dominao masculina vista como umhabitus,aceito por todos os integrantes do campo social comoalgo natural, inclusive a mulher acaba reconhecendo essa supe-rioridade, mas a entende normal. Essa viso de normalidadeque se organiza nas diferenas de gnero, masculino e femini-no, instituindo o que cabe ao homem e aquilo que pertence mulher, faz com que os dominados compactuem com essa sutilviolncia, construindo-se dois mundos sociais hierarquizados.

    Os efeitos desse tipo de dominao se exercem mediantea percepo e a avaliao do que constitui o habitus, assim, algica da dominao masculina e da submisso feminina torna--se espontnea e extorquida ao mesmo tempo, podendo sercompreendida somente permanecendo-se atento aos efeitosduradouros que essa ordem social acaba exercendo nas mulhe-res e nos homens, harmnicas nessa invisvel imposio80. Ob-

    serva-se que as condies sociais que reproduzem essas ten-dncias fazem com que os dominados adotem o ponto de vistados dominantes, efetivando-se alheio vontade, demonstrandoum poder tambm simblico nas suas manifestaes. Verifica--se que a dominao s se perpetua por meio dessa cumplici-dade e que as mulheres acabam sendo excludas do sistema

    79 BOURDIEU, Pierre. Meditaes Pascalianas.Traduo de Sergio Miceli. Rio de

    Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 204.80 BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria Helena

    Khner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 49-50.

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    social. Tambm possvel a reproduo dessas formas de ex-cluso, na prpria famlia, na escola, na igreja e na diviso dotrabalho, enfim, nas disposies ditas femininas e masculinas.

    Segundo Pinker, a violncia faz parte da histria da natu-reza humana, observando seis tendncias de diminuio dofenmeno multifacetal e relacionando-as com cinco foras his-tricas, que servem de contributo para complementar o enten-dimento discorrido anteriormente sobre a violncia de gnero,que fragmenta o outro generalizado, identificado aqui como o

    poder feminino. Tal poder ainda tem sofrido incurses negati-vas pelo falo, que, mesmo em runas, encontra estratgias dediscurso e dominao para aniquilar a mulher. Nessa direo,na perspectiva das seis tendncias, a primeira delas se deu naescala milenar, demarcando a transio da anarquia das socie-dades caadoras, coletoras e horticultoras, nas quais a espciehumana atravessou a maior parte da sua histria evolutiva,para as primeiras civilizaes agrcolas com cidades e gover-

    nos, iniciados por volta de cinco mil anos atrs, sendo denomi-nada processo de pacificao de imposio de paz81. A segundatendncia, chamada de processo civilizador, abrangeu mais deum milnio e est documentada na Europa. Entre o final daIdade Mdia e o sculo XX, os pases europeus tiveram um de-clnio de 10 a 20 vezes em suas taxas de homicdios. Tambmocorreu o declnio de territrios feudais em grandes reinos comautoridade centralizada e infraestrutura de comrcio82. Por suavez, a terceira tendncia, intitulada revoluo humanitria,ocorreu na escala superior e teve incio na poca da Idade daRazo e do Iluminismo europeu nos sculos XVII e XVIII. Essefoi o momento dos primeiros movimentos organizados paraabolir as formas de violncia socialmente sancionadas como o

    81 PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violncia diminuiu.

    Traduo de Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.22.

    82 Idem, p. 23.

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    despotismo, a escravido, o duelo, a tortura judicial, a execuosupersticiosa, as punies sdicas e a crueldade com animais, efoi tambm a poca dos primeiros frmitos do pacifismo siste-mtico83. Aps a Segunda Guerra Mundial, deu-se a quarta ten-dncia, denominada pelos historiadores estado de coisas delonga paz. Os dois teros de sculo decorridos desde entoviram um avano histrico, as grandes potncias e os Estadosdesenvolvidos em geral pararam de guerrear entre si84. Nessecontexto, a quinta tendncia, chamada de nova paz, diz respeito

    ao combate armado, porm mais sutil. Embora para os leito-res de notcias possa ser mais difcil acreditar, desde o fim daGuerra Fria, em 1989, todos os tipos de conflitos organizados guerras civis, genocdios, represso por governos autocrticose ataques terroristas diminuram no mundo85. Para encerrar,a sexta tendncia, identificada como a revoluo de direitos,deu-se a partir da era ps-guerra, inaugurada simbolicamentepela Declarao Universal dos Direitos Humanos, em 1948, e

    testemunhou uma crescente repulsa pela agresso em escalasmenores. Relacionando as seis tendncias, tm-se as cinco for-as histricas, que so a fuso da psicologia e da histria, iden-tificando foras exgenas que favoreceram os motivos pacficosdo ser humano e que pautaram os mltiplos declnios da vio-lncia, quais sejam: o Leviat, o comrcio, a feminizao (pro-cesso no qual as culturas aumentaram seu respeito pelos inte-resses das mulheres), foras do cosmopolitismo e a escala ro-

    lante da razo, que pode forar as pessoas a reconhecerem afutilidade dos ciclos de violncia86. Por outro lado, continuaassustador o paradoxo entre a feminizao e o femicdio, aindamais quando se observam ndices crescentes de violncia con-

    83 PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violncia diminuiu.

    Traduo de Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.23.

    84 Idem, p. 23.85 Idem, p. 23.86 Idem, p. 26.

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    tra as mulheres jovens no Brasil, o que adiante ser abordado.Perscrutando segundo um recorte histrico das seis tendn-cias, em especial um olhar na feminizao, no se pode olvidarque a humanidade tem investido mecanismos para reduo daviolncia. No entanto, a trajetria no encerra e muito h a sefazer, conquistar e, principalmente, transformar os sujeitospela educao, de maneira que reconheam as futilidades dosciclos de violncia. Por conta disso, e em busca de alternativas,bem como dos avanos nas questes de gnero, analisar-se-o

    as implicaes das normativas internacionais e nacionais noreconhecimento da cidadania feminina, diante da feminizao eem face da desigualdade de gnero. Percebe-se que, em algunsEstados e pases, o outro fora reconhecido pelo processo darevoluo de direitos, por outro lado, o desafio est em efetivaruma convivncia compartilhada na comunidade por meio depolticas pblicas.

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    TRANSVERSALIDADE DE GNERONAS POLTICAS PBLICAS DADA A

    RUPTURA PELA VIOLNCIA DA

    ASSIMETRIA NAS RELAES ENTREHOMENS E MULHERES

    Muito embora os direitos humanos celebrem a condiode cidadania da mulher, o seu eu feminino continua fragmenta-

    do pelas violaes decorrentes das diversas faces da violnciaque encontra na sua gnese o poder de dominao simblico.Por conta disso, h necessidade de refletir sobre a efetividadedessas normativas internacionais que entornam a cidadania damulher, segundo a perspectiva do movimento feminista, queinfluenciou significativamente elaborao de polticas pblicasde gnero. De igual modo, tambm requer a concatenao dacidadania aos esquemas sociais, culturais, polticos e econmi-

    cos, tendo como aporte terico a Histria e a hierarquizaodas relaes estabelecidas entre homens e mulheres. Quandose fala em cidadania, no basta apenas compreender a trajet-ria histrica, preciso ir alm e entender o emaranhado com-plexo de interconexes ou a multidimensionalidade entre His-tria, Sociologia, Antropologia, Psicologia e Poltica, dentre ou-tras significativas reas. Assim, a cidadania, antes de vindicardireitos, deve eficazmente salvaguard-los. Ao encontro dissotudo, conectam-se as polticas pblicas, que em sntese so amaterializao da cidadania feminina dos sujeitos.

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    2.1 OS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS DA MULHERNA ORDEM INTERNACIONAL

    Na ordem internacional, tem se debatido muito sobre osdireitos humanos e fundamentais da mulher, a partir da Decla-rao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e os demaistratados e pactos, os quais, concatenados a ela, formam umsistema normativo global de proteo dos direitos humanos, nombito das Naes Unidas, com o objetivo de assegurar a dig-

    nidade da pessoa humana87. Nos ltimos tempos, a ideia de di-reitos humanos tem avanado significativamente, adquirindouma espcie de status oficial no discurso internacional, tambmse tornando parte importante da literatura do desenvolvimen-to. Entretanto, essa aparente vitria da ideia e do uso dos direi-tos humanos coexiste com certo ceticismo real, em crculoscriticamente exigentes, quanto profundidade e coerncia des-sa abordagem. Suspeita-se que exista certa ingenuidade em

    toda a estrutura conceitual que fundamenta o discurso sobredireitos humanos88.

    O sistema normativo dos direitos humanos, por sua vez, integrado por instrumentos de alcance geral (como os PactosInternacionais de Direitos Civis e Polticos e de DireitosEconmicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos dealcance especfico, como as convenes internacionais que bus-

    cam responder determinadas violaes de direitos humanos,como a discriminao racial, a discriminao contra a mulher, aviolao dos direitos da criana, dentre outras formas de viola-o89. Com o processo de especificao do sujeito de direito,

    87 PIOVESAN, Flvia. Temas de direitos humanos. So Paulo: Saraiva, 2010, p.263.

    88 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Traduo LauraTeixeira Motta: reviso tcnica Ricardo Doniselli Mendes. So Paulo: Compa-nhia das Letras, 2000, p. 261.

    89 PIOVESAN, Flvia. Temas de direitos humanos. So Paulo: Saraiva, 2010. p.263-264.

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    mostra-se insuficiente tratar o indivduo de forma genrica,geral e abstrata, pois as mulheres devem ser percebidas e iden-tificadas nas especificidades e peculiaridades de sua condiosocial. Importa o respeito diferena e diversidade, o quelhes assegura um tratamento especial. Nesse contexto que sereferencia o significativo papel do movimento feminista en-quanto movimento social, na incurso de conquistar os direitosde cidadania feminina na rbita dos direitos humanos e fun-damentais, concatenando algumas construes elaboradas so-

    bre os aportes tericos de cidadania, tendo-se, em sentido am-plo, a cidadania como o gozo pelas pessoas dos direitos civis,sociais e polticos.

    Seguindo o entendimento estrito de Scott, a ideia de cida-dania refere-se s regras conferidas pertena nacional, quepodem ser baseadas na linhagem (jus sanguinis), no territrio(jus soli) ou numa combinao de ambos90. Faz-se necessrio

    ressaltar que o fator espao-temporal influencia na concepode cidadania, a qual , muitas vezes, confundida com a catego-ria de democracia, ou seja, com o direito de participao polti-ca, de votar e ser votado. Porm, nem o voto garantia de cida-dania, nem a cidadania pode ser sintetizada ao exerccio dovoto. Entretanto, Manzini-Covre91defende que, para o exercciopleno da democracia, os direitos polticos so o pilar para aconquista dos direitos sociais e civis que auxiliam a definir a

    cidadania. Segundo Scott92, uma conceituao bastante usual dotermo cidadania a de T. H. Marshall93, encontrada em sua obra

    90 SCOTT, John (Org.). Sociologia:conceitos-chave. Traduzido por Carlos AlbertoMedeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 41.

    91 MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O Que Cidadania? 3. ed. So Paulo:Brasiliense, 1998.

    92 SCOTT, John (Org.). Sociologia:conceitos-chave. Traduo de Carlos Alberto

    Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 41.93 M