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Organizadoras Izabel Cristina Feijó de AndradeMarina Patrício de Arruda

Itinerários de Práticas Docentes no Ensino Superior: Saberes e Experiências

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Epígrafe

Ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar as possibilidades para a

sua própria produção ou a sua construção.Paulo Freire

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Bibliotecária Responsável: Dênira Remedi – CRB 14/1396

I89 Itinerários de práticas docentes no ensino superior : saberes e experiências / organizadoras, Izabel Cristina Feijó de Andrade, Marina Patrício de Arruda ; Annabel Cristini Feijó Peres ... [et al.]. – São José, SC : ICEP, 2015. 157 p.

ISBN 978-85-68386-07-1

1. Ensino superior. 2. Professores - Formação. 3. Educação

permanente. 4. Prática de ensino. 5. Transdisciplinaridade. I. Andrade, Izabel Cristina Feijó de. II. Arruda, Marina Patrício de. III. Peres, Annabel Cristini Feijó.

CDU 371.13

Capa e DiagramaçãoZuraide Maria Silveira

Designer Gráfico

Tiragem100 exemplares

ApoioGEPESVIDA

www.gepesvida.com.br

Editora

ISBN 978-85-68386-08-8

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Organizadoras

Izabel Cristina Feijó de AndradeMarina Patrício de Arruda

Autores

Carlos Fermino de PauloCarmen Lúcia Fornari Diez

Elisete Lemos MachadoGeraldo Augusto LocksGeraldo Balduíno Horn

Izabel Cristina Feijó de AndradeLeandro Rogério PinheiroLeda Lísia Franciosi PortalLucia Aulete Burigo Sousa

Lucia Cecatto de LimaLurdes Caron

Mareli Elaine GraupeMaria Selma GroschMarilu Diez Lisboa

Marina Patrício de ArrudaMelania Sartori Villani

Neide de Melo Aguiar SilvaPatricia dos Santos PucciSimone Rafaeli Pacheco

Siomaraci Ferraz da Silva BressaVanice dos Santos

Wanderléa Pereira Damásio Maurício

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Sumário

Prefácio Leda Lisia Franciosi Portal ..............................................................11

Apresentação Izabel Cristina Feijó de Andrade e Marina Patrício de Arruda ........13

Transdisciplinaridade e autoformação: o despertar no caminho dos formadores transdisciplinaresIzabel Cristina Feijó de Andrade e Leda Lísia Franciosi Portal ......17

Karol e o ressoar do silêncio: inquietações de um pesquisador que vai à escolaLeandro Rogério Pinheiro ...............................................................33

Questões de gênero no ensino fundamental: percepções de orientadoras educacionais sobre gênero e sexualidadeLucia Aulete Burigo Sousa e Mareli Elaine Graupe ........................51

Historicidade e bases fundantes da escola municipal de educação básica mutirão – Lages (SC) - 1981-1996Elisete Lemos Machado e Marilu Diez Lisboa ..............................73

Constituição da docência e formação continuada de professores: política e interlocuçõesMaria Selma Grosch e Neide de Melo Aguiar Silva .......................93

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Práticas Docentes em educação ambiental na Educação Infantil em área de abrangência do Aquífero Guarani Lages (SC)Patricia dos Santos Pucci e Lucia Cecatto de Lima .......................109

Itinerários comuns por caminhos diferentes: Educação do campo e as escolas multisseriada em Lages, sc.Geraldo Augusto Locks e Simone Rafaeli Pacheco ......................129

Retomada do conceito de diálogo no percurso de docente pesquisadoraVanice dos Santos ..........................................................................147

Educação permanente e a possibilidade de auto-organização profissionalMelania Sartori Villani e Marina Patrício de Arruda .....................163

Avaliação de desempenho e por performance: limites e possibilidadesSiomaraci Ferraz da Silva Bressan e Lurdes Caron ......................183

“Ainda não”: alfabetização na educação de jovens e adultos, tecnologias e suas implicações no processo de aprendizagemWanderléa Pereira Damásio Maurício ...........................................233

TEMPUS FUGIT: Qual o Tempo da Escola?Carmen Lúcia Fornari Diez, Geraldo Balduíno Horn e Carlos Fermino de Paulo ...................................................247

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11Itinerários de Práticas Docentes no Ensino Superior: Saberes e Experiências

Prefácio

O que me levou a aceitar escrever este Prefácio? A resposta a essa pergunta encontro em dois importantes e significativos aspectos: conhe-cimento e apreço as suas organizadoras e tema por elas escolhido para ser, nesse livro, apresentado e discutido nos capítulos que o constitui.

Quanto ao primeiro aspecto, dedico e direciono minha resposta, a cada uma das organizadoras que, em diferentes tempos e espaços, compartilharam comigo momentos de suas vidas bem como estudos e pesquisas em torno de questões que nos afligiam e afligem enquanto educadoras universitárias que somos.

Com Izabel, tive o privilégio de conviver em aulas de diferentes disciplinas e em encontros de orientação de sua Tese de Doutorado e Pós-doc. E lá se passaram 7 anos de muitos estudos, leituras, discus-sões, dúvidas, inquietações em torno de um tema que nos aproxima e apaixona: Inteireza do Ser.

Tema que traz em seu bojo múltiplos e complexos constructos que o entretecem, tais como: transdisciplinaridade; autoformação; au-toconhecimento; ampliação de consciência; dimensões constitutivas do Ser, destacando entre elas a Espiritual, instiladora do sentido da vida.

Sua dedicação e crença na possibilidade de Práticas Docentes do Ensino Superior, que encaminhem para uma Educação em uma pers-pectiva da Inteireza do Ser, nosso e de nossos alunos, incentiva-nos e inspira-nos a continuar nela investindo, tendo, nos resultados de nossas investigações, um aceno de sua realização ser uma possibilidade.

Com Marina, uma convivência de menos tempo, mas não menos profunda e significativa na realização de seu Pós-doc, enfatizando, em sua investigação, o tema da Educação Permanente que, como o próprio

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nome anuncia, alerta para a responsabilidade de todo o Ser Humano que, ao nascer, assume o compromisso com o seu processo permanente de Educação. O tema explorado por Marina encontra em nossa incom-pletude, inacabamento e possibilidade de permanente vir a ser, a justifi-cativa convincente de sua relevância.

A segunda resposta para meu aceite, o tema aqui socializado – Práticas Docentes no Ensino Superior – uma tradução dos saberes cons-truídos e experiências vivenciadas por seus protagonistas. Práticas Do-centes que estão clamando por um olhar atento e sensível em suas ações propositivas e repercussões propiciadas para uma ressignificação que se faz necessária e urgente de novos encaminhamentos. Encaminhamentos que oportunizem outros rumos para a Educação do Ensino Superior para que tenha como prioridade propiciar espaços de construção de um Ser Humano de Inteireza que pense, sinta, signifique e aja na perspecti-va de estar cumprindo com o verdadeiro sentido da vida.

A contribuição propiciada pela leitura desse livro, nas mensa-gens de cada um de seus capítulos, muito mais do que os temas neles trazidos, é a possiblidade de indagações que suscita: Em que práticas docentes venho investindo? Que propósitos tenho nelas? Para que luga-res elas tem me levado? Que resultados delas tenho colhido? O que elas tem me revelado? Que outras possibilidades vejo nelas agregar?

É com imensa satisfação, que apresento esse livro, produto da união de interesses e temas que se inter-relacionam em cada um dos Iti-nerários de Práticas Docentes no Ensino Superior nele ofertadas. Cada Itinerário desvela, em suas entrelinhas, Saberes e Experiências de seus autores, que, acredito, trará ao leitor uma agradável e enriquecedora leitura em cada uma de suas páginas.

Tenham todos uma produtiva leitura.

Drª Leda Lísia Franciosi PortalPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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13Itinerários de Práticas Docentes no Ensino Superior: Saberes e Experiências

Apresentação

O conteúdo desse livro indica o compromisso de um grupo com a partilha de experiências vivenciadas no Ensino Superior. Os textos que apresentamos nesta coletânea foram elaborados tendo como eixo principal das discussões a formação docente e incluem horizontes vis-lumbrados por professores no ensino, nas pesquisas e nos projetos de extensão que retratam a expansão de práticas inovadoras, inter e trans-disciplinares.

Ao evocar a interdisciplinaridade, textos marcam pontos de vista sobre as diferentes temáticas, considerando que professores têm modos de andar a vida (CANGUILHEM, 2009) , modos que emergem do pró-prio modo como a vida acadêmica é produzida coletivamente. Assim, o que despontou de forma muito clara nas discussões foram os desafios de professores do ensino superior, aqueles que emergem das práticas de ensinar, pesquisar e intervir. Conforme Benevides de Barros (2001) estas seriam sempre novas práticas, novas dobras no mundo em que as informações são transformadas para produzir outras subjetividades, novas formas de andar a vida.

Ao longo da leitura dessa coletânea, firmou-se a articulação de alguns conceitos como Docente, Saberes docente e Formação docente. Distintos mas complementares na prática e na reflexão. Assim, quem aprendeu a “pensar por pedacinhos”, como sinalizou Eduardo Galeano, terá que aprender a articular ideias que se complementam, que não fi-cam mais presas em fronteiras instituídas por um paradigma disjuntivo

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e reducionista. O itinerário docente acontece no ensino mas também se materializa em projetos de pesquisa e extensão.

A docência é plena de saberes e se constitui como tríade que integra saber didático, saber experiencial e saber existencial. O saber pedagógico não se reduz à didática de ensinar, mas se configura como um saber plural articulado à pesquisa e à extensão. O que se discute, então, são razões práticas que levem os professores a manter seu com-promisso com a formação de profissionais problematizadores e reflexi-vos capazes de intervir junto à realidade em que se encontram. Nesse encaminhamento, o ensino se distingue como ponto de partida para a construção do conhecimento; a pesquisa, a busca curiosa do desconhe-cido a partir de conhecimentos pré-existentes; e a extensão traduzida na importância do conhecimento compreendido e ampliado como inter-venção no contexto social.

A interdisciplinaridade também se apresenta como característica das ideias que aqui reunimos e apresentamos. Um ensino significativo capaz de aguçar a pesquisa e a intervenção funciona como um pro-cesso de retroalimentação consciente voltado à formação do homem por inteiro. Nos itinerários de práticas docentes também chamou-nos atenção a preocupação dos professores sobre a formação de um profis-sional reflexivo porque é esse profissional que se torna imprescindível na resolução dos problemas cotidianos.

O compromisso da interdisciplinaridade na formação de profes-sores das Instituições do Ensino Superior pode favorecer a mudança e apoiar uma articulação decisiva entre ensino, pesquisa e extensão para que essas práticas possam se voltar às várias instâncias de produção da vida.

A produção científica, conforme encaminhamos, opera como agente de conhecimento, uma coletânea se destaca por espalhar ideias e discussões promovendo o olhar crítico e reflexivo do docente e seus acadêmicos. Essa é uma partilha que fortalece produtores de saberes e

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15Itinerários de Práticas Docentes no Ensino Superior: Saberes e Experiências

práticas que amplia as possibilidades da pesquisa como itinerário de aprendizagem para o ensino superior.

Esse livro guarda o registro de algumas experiências particula-res, criativas e significativas que colaboram com o desenvolvimento profissional numa perspectiva mais humanista e orientada para os va-lores sociais.

Izabel Cristina Feijó de AndradeMarina Patrício de Arruda

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Transdisciplinaridade e Autoformação: O Despertar no Caminho dos Formadores Transdisciplinares

Izabel Cristina Feijó de Andrade/PUCRS/EduSer1

Leda Lísia Franciosi Portal/PUCRS/EduSer2

Início da Conversa

Esse artigo tem o propósito de discutir os fundamentos episte-mológicos da transdisciplinaridade que podem estar vinculados ao pro-cesso de autoformação para os formadores transdisciplinares. Nesse contexto, buscamos dialogar com a “autoformação, que é um compo-nente da formação considerado como um processo tripolar, pilotado por três princípios: si (autoformação), os outros (heteroformação), as coisas (ecoformação)” (GALVANI, 2002, p. 1), sustentada pelos pressupostos da transdisciplinaridade.

Assim, apresentamos a autoformação como uma possibilida-de do caminho que se entrecruza com outros percursos, os quais vão proporcionar uma transformação na formação a partir da abordagem transdisciplinar. Esta abordagem combina com uma visão global sã e equilibrada da condição humana de existência, na qual corpo, mente e espírito estão contidos na inteireza do ser.

1Dra em Educação pela PUCRS; 2Dra em Educação pela PUCRS;

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18 Izabel Cristina Feijó de Andrade | Marina Patrício de Arruda

Nessa direção, Moraes (2004) enfatiza que o grande entrave da formação, em geral, está no modelo de ciência dominante num certo momento histórico e nas teorias da aprendizagem que a fundamentam e que influenciam a prática pedagógica, enquanto diálogo interativo entre o modelo da ciência e as atividades pedagógicas desenvolvidas. Pautada nessa perspectiva encontramos subjacentes, referenciais de educação fundamentados em teorias do conhecimento que explicam a relação com a natureza, com a própria vida, e, também, a manei-ra de aprender e compreender o mundo, mostrando que o formador constrói o conhecimento a partir de como percebe a realização desses processos.

No entanto, consideramos que muitas das teorias do conheci-mento tratam a formação dos educadores a partir de soluções exter-nas, e isso não nos parece viabilizar a transformação integral do ser-sendo-educador. Vários sistemas de educação nos parecem ter falhado por considerarem que a existencialidade ou os aspectos humanos não fazem parte do processo de formação. E isso impediu que os educado-res se apropriassem, na própria existencialidade, da possibilidade de se conhecerem, compreenderem, desmistificarem e desprogramarem suas práticas adestradas no processo de sua formação. Esse modelo de fabricação-adestramento engessou a vivência e os acontecimentos exis-tenciais dos educadores.

Santos (2004) propõe que o processo da formação dos educa-dores seja compreendido como complexo, pois a prática pedagógica universitária torna-se passível de ser alterada ao associar as implicações da ciência à complexidade do ensino superior. Para isso, ressaltamos a importância de uma educação transdisciplinar.

As proposições de Moraes (2004), Santos (2004) nos auxiliam na reflexão sobre a inovação da formação dos educadores, porque al-teram as concepções de homem, de ser humano, de aluno, de ensino e de aprendizagem, que passam a ser compreendidas como um sistema auto-organizativo e integral, um ser-sendo uno/múltiplo.

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19Itinerários de Práticas Docentes no Ensino Superior: Saberes e Experiências

Em nosso propósito de crescimento e desenvolvi-mento, temos a capacidade de levar o self, a cul-tura e a natureza a modos cada vez mais elevados, amplos e profundos de ser, expandindo de uma identidade isolada do “eu” para uma mais plena de “nós” até outra, ainda mais profunda, de “to-dos nós” – com todos os seres sencientes em toda parte – à medida que a nossa própria capacidade para a Verdade, a Bondade e a Beleza se aprofun-da e se expande; uma consciência ainda maior, com alcance ainda mais amplo, que é percebida pelo self, incorporada à natureza e expressada na cultura. (WILBER, 2006ª, p. 51).

Isso nos remete a ressituar a formação dos educadores, desfazen-do as estruturas ainda rígidas e fechadas desse fazer no ensino superior. Se o que impulsiona a nossa reflexão é a proposta de que o conhecimen-to se realiza por um movimento auto-organizativo e integral, começo a redesenhar um novo perfil para nossas caminhadas – práticas inovado-ras no ensino superior, fundamentadas nos princípios da complexidade e da transdisciplinaridade na busca de si e de nós, na busca de sentido, de conhecimento e na busca da felicidade. (JOSSO, 2004).

Queremos acentuar que buscamos entender o processo de forma-ção/autoformação dos educadores centrado na inteireza do ser, em que a construção do conhecimento não resulta apenas de experiências trazi-das de fora para dentro, de exigências externas, mas de dentro para fora, do próprio educador, a partir de seus interesses, de suas necessidades, de seus valores, imaginação, intuição, crenças, saberes, vinculando-se às suas próprias experiências.

Ainda não conhecemos o caminho por completo, mas as incer-tezas, as dúvidas e as transformações híbridas se fazem presentes na caminhada. Por isso, precisamos fazer as seguintes questões: Quem é o formador transdisciplinar? Será ele o homem complexo em permanen-te vir-a-ser? Será ele o homem do futuro? A quem ele serve? Tem ele consciência do seu propósito existencial? Onde o formador encontraria alimento para se entusiasmar por sua ação educacional?

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Para essas análises recortamos da tese “A inteireza do ser: uma perspectiva transdisciplinar na autoformação de educadores/pu-crs/2011 (ANDRADE, 2011)”, os depoimentos sete formadores trans-disciplinares para uma reflexão mais profunda, mesmo sabendo que as interpretações aqui socializadas, são tesouros encontrados no caminho e que contribuíram para analisar os fundamentos epistemológicos da transdisciplinaridade que podem estar relacionados à autoformação. Mas, deixamos claro: esse é um ponto ainda provisório, em que cada qual poderá encontrar outras pistas para outros tesouros. As análises foram feitas a partir da categoria emergente a seguir descrita:

Transdisciplinaridade, Complexidade e Autoformação — O Despertar No Caminho

Considerando o questionamento proposto para discutir a autofor-mação e a inteireza do ser: Que fundamentos epistemológicos da trans-disciplinaridade podem estar vinculados ao processo de autoformação e para a inteireza do ser?, lançamos para os formadores entrevistados a indagação sobre “o que é transdisciplinaridade?”. Para eles, a trans-disciplinaridade está “muito mais na essência das pessoas do que nas palavras: é questão de tolerância e atitude”. É saber esperar e ser flexí-vel. “Está relacionada ao termo hólons, assim como ao termo sistem en-tendido como totalidade”. Complementando, a “transdisciplinaridade é o mundo e nossas conquistas. O homem dicotomizou tudo em gaveti-nhas. Mas, a transdisciplinaridade está entre, através e além de tudo”.

Assim, o formador transdisciplinar envolve o desejo e a vontade em orientar-se e gerir-se. Conforme Josso (1988, p. 50), “o ser em for-mação só se torna sujeito no momento em que a sua intencionalidade é explicitada no ato de aprender e em que é capaz de intervir no seu pro-cesso de aprendizagem e de formação para favorecer e para reorientar.” Isso vem ao encontro do depoimento de outros entrevistados quando afirmam que: “Os educadores, quando conscientes de sua função e de

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seu propósito, buscam de forma autônoma seu aprimoramento cons-tante.” “Quando somos chamados pela nossa consciência, temos que ter autonomia e companheiros que nos apoiem..”

Desse modo, a formação não opera no vazio, configura-se como ação dialógica em movimento retroativo/recursivo/holográfico que, por sua vez, constitui-se em tomada de consciência de que se é sujeito/ob-jeto transdisciplinar simultaneamente da formação. “Sempre conscien-tes de nossa função no mundo, conscientes da dimensão do sagrado, somos conduzidos conscientemente ao aperfeiçoamento constante que nos faz refletir-agir-ser-ter-compreender-amar num ciclo permanente. Isso faz parte de nós”. Essa perspectiva expressada por um formador entrevistado vem ao encontro do conceito de que se autoformar é operar uma dupla apropriação do poder da formação: tomar consciência desse poder (ser sujeito) e, ao mesmo tempo, aplicá-lo a si mesmo, sendo objeto de formação biocognitiva para si mesmo.

É literalmente de uma autoformação através da in-vestigação (ou reflexão) sobre a ação (ou experi-ência) que estamos falando. A abordagem biocog-nitiva é um complexo ecossistema que concebe a interação entre a auto (autoformação), os outros (heteroformação) e o mundo (ecoformação). A au-toformação não é independente, mas um processo de retroalimentação em que ambiente e recursão sobre ela ganham significados sobre os elementos temporais das diferentes experiências de vida e de conhecimentos práticos e teóricos, experienciais, existenciais e simbólicos. Esta articulação per-manente de vida e de conhecimento caracteriza a autoformação como um processo biocognitivo (GALVANI, 2008, p. 11).

Em consequência de tal premissa, temos o formador como um sujeito/objeto biocognitivo, capaz de se produzir por meio da ampliação da consciência e de transformar sua prática, sendo agente de sua própria

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formação, a partir das relações dialógicas e recursivas que estabelece ao longo de sua existência. O conhecimento ocorre, então, na práxis da vida (prática, teórica, experiencial, existencial e simbólica), e, por isso, precisa ser inserido no contexto de sua vida. Nessa perspectiva, esse sujeito forma a si próprio, em uma aventura pessoal e profissional.

Nesse sentido, a capacidade do formador transdisciplinar para autogerir o seu projeto existencial, levando em conta a relação com os outros (hetero) e com o seu ambiente (eco), a partir de seus dese-jos e necessidades, é condição ímpar da autos, especialmente “quando o formador toma consciência da complexidade de seu poder, quando participa da sua autoformação transdisciplinar, vê e enxerga outra possibilidade de estar no mundo, outra possibilidade de ação, de rela-ção existencial com os outros, trilha outra história”. A autoformação refere-se, então, a essa consciência do formador para detectar, avaliar e decidir de que perfil de formação necessita e onde e como pode de-senvolvê-lo. Portanto, inserir a autoformação no âmbito de pré-ocupa-ções transdisciplinares e complexas exige, antes de tudo, imbuir-se de atitude de pesquisador diante do objeto/sujeito transdisciplinar que se apresente como construtor de metodologia, de que advirão novas arti-culações dos conhecimentos estabelecidos e dos sentidos dados, insti-tuidores de outra realidade.

Percebemos que a autoformação contempla essas três relações – transdisciplinaridade, complexidade e própria autoformação – que orientam seu próprio processo existencial. A autoformação não é, por conseguinte, um processo independente, mas de retroação sobre os acontecimentos e sobre si mesmo a partir das experiências de vida e conhecimentos, das práticas e dos conhecimentos teóricos, das experi-ências existenciais e dos significados simbólicos […]. Essa articulação permanente entre a vida e o conhecimento caracteriza a autoformação como um processo biocognitivo, biológico e vital na experiência, na didática e na existencialidade do formador transdisciplinar.

O formador transdisciplinar necessita convencer-se de que tem

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de ir à procura do saber existencial a partir da consulta a diversas fon-tes de informação existentes. O enfoque da autoformação do formador transdisciplinar aponta serem a autonomia e a participação as formas colaborativas de aprendizagem. Ele é um sujeito aprendente, um orga-nizador do trabalho consciente, mas, também, sensível.

Uma profunda mudança atitudinal intercala-se em uma mistu-ra singular, produzindo ideologia, visão de mundo, valores e atitudes idiossincráticas, realimentando sua maneira de ser-sendo-no-mundo-com-os-outros. Quando o formador transdisciplinar age, o ser pessoal o alimenta e é retroalimentado por ele. Portanto, a autonomia deve ser também compreendida como um processo de construção permanente que entrelaça muitos elementos: pessoais, contextuais e formativos.

Em uma visão integral, a autoformação percebe o formador no centro do processo educativo e fora dele, como num holograma con-siderando-o como o eixo fundamental que envolve uma formação da pessoa por si própria, sobre si própria, e isso conduz à inteireza da vida, com a multiplicidade das experiências vividas ao longo do tempo. É a vida o local privilegiado da autoformação, em que se desenrola uma história pessoal na relação com um contexto social específico. E, para entender e aceitar esse processo, é essencial a reforma do pensamento.

Surge aí uma impossibilidade lógica: Quem educa os formado-res? A resposta emerge, em grande parte, do exercício de ampliação de consciência. Por isso, urge que o formador repense sua prática peda-gógica a partir de sua própria formação; desperte para a autoformação e para a auto-organização. Em outras palavras, é fundamental ampliar o diálogo entre a ciência e os saberes da vida. É necessário, portanto, investir na formação de intelectuais abertos, capazes de refletir sobre a cultura em sentido mais amplo; profissionais encorajados a religarem suas disciplinas e investirem em reformas curriculares, para reunirem natureza e cultura, homem e cosmo, construindo uma aprendizagem que reponha a inteireza da condição humana. Esse poderia ser o primei-ro caminho para uma reforma curricular transdisciplinar. Isso requer

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o redimensionamento das relações do formador com as forças (densa, sutil, causal e não dual) que o constituem em todos os seus níveis de realidade, em que a complexidade o determina, ao mesmo tempo em que lhe é endógena.

Ao debruçarmos sobre este tema constatamos o quanto ainda é preciso construir-se na caminhada, em uma relação de cumplicidade, conforme a fala de um formador transdisciplinar entrevistado, quando retrata o que é transdisciplinaridade: “É tudo aquilo que está entre, através e além das disciplinas, numa relação de cumplicidade. É como se fosse uma rede complexa de relações que não se completa nunca, mas que tem sentido na sua formação”.

Assim, dialogo no caminho vivido, com tesouros deixados por outros caminhantes contemporâneos que ofereceram pistas para a cons-trução do nosso próprio caminho. A partir dos estudos das obras de Edgar Morin (2005), Pascal Galvani (2008) e Ken Wilber (2007) per-cebemos a dimensão existencial e a necessidade de se compreender a si mesmo, a realidade e as relações com o mundo material e espiritual. Como síntese dessas obras, compreendemos que a perspectiva trans-disciplinar vem ao encontro do que a humanidade precisa (nesse caso, ressignificação dos formadores), ou seja, outro paradigma para convi-ver, ver, sentir, significar, ter, ser e atuar, em que a autoformação, por natureza, reavalie o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na produção do saber.

Outros interlocutores da caminhada se constituíram em influên-cia importante para eu compreender a questão da formação dos edu-cadores e seus vários aspectos. Entre eles, destacamos Gaston Pineau (2004) e Marie-Christine Josso (2004). Esses autores fazem ressoar a procura de uma construção epistemológica para além da ciência ma-crofísica, em direção à construção integral e transdisciplinar, capaz de conjugar os saberes produzidos e cultivados pelos seres humanos em todos os tempos e lugares. Também auxiliam a desnudar e apresentar a inadequação dos modelos explicativos desses últimos séculos sobre

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as questões educacionais e, consequentemente, a refletir sobre as con-sequências de um conhecer frágil, descontextualizado e organizado em compartimentos cada vez mais separados da vivência e da experiência dos educadores.

Os estudos de Josso (2004) sempre me chamam a atenção e se mostram partícipes da ideia de que o formador precisa ser considerado na sua existencialidade, na sua formação e na sua história de vida, o que legitima a necessidade da compreensão das bases subjetivas de sua formação.

Caminhantes desse estudo, buscamos entender o sentimento, a imaginação, a reflexão e a criação que nos impulsionavam ao desejo de conhecer parceiros que possam perceber a riqueza, a alegria e a beleza da existencialidade do ser humano. Esse desejo transcende o eu e busca no nós a imagem da inteireza do ser para simbolizar e concretizar um referencial integral de autoformação de educadores, combinando várias dimensões, que chamamos de “aspectos humanos”.

Essa noção de existencialidade ligada à complexidade emergiu dos dados encontrados pelos avanços das ciências naturais, principal-mente da biologia e, também, de novos dados encontrados por alguns campos das ciências humanas, em especial a antropologia, como afirma um dos formadores transdisciplinares entrevistados que diz que “(...) a complexidade faz parte da própria existência e da própria vida”, faz-se presente no individual, no comportamental, no social e no cultural, con-forme apresentado por Wilber (2007) nos quadrantes. Nesse sentido, Morin (2000, p. 207) afirma que

[...] o pensamento complexo é, pois, essencial-mente o pensamento que trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. É o pen-samento capaz de reunir (complexus: aquilo que é tecido conjuntamente), de contextualizar, de glo-balizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de reconhe-cer o singular, o individual, o concreto.

Dessa forma, entendemos que, por meio do pensamento com-

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plexo, em um movimento de inclusão (global) e exclusão (individual), temos um formador interrogante que, diante desse mundo complexo, em acelerado processo de transformação, tenta encontrar um novo cen-tro ou uma nova ordem-desordem, considerando a relevância das dúvi-das, das incertezas e das amarras. Às vezes, como nos diz um formador transdisciplinar entrevistado: “temos que abrir nossas amarras, para poder ver melhor a dimensão transdisciplinar, porque está relacio-nada àquilo que fomos, somos e seremos. Lógico, temos que lembrar que nossa consciência ajuda bastante. Quanto mais ampliarmos nosso olhar, nossa consciência sobre o mundo e sobre nós mesmos, mais con-seguiremos ser transdisciplinares e perceber a complexidade do que é estar no mundo” .

Nessa perspectiva, é complementar a ideia de que a “transdisci-plinaridade é exatamente quando alguns pensadores começam a se dar conta da complexidade dos fenômenos”, respeitando suas diferenças e especificidades e incorporando o conhecimento popular, ancestral, pre-sente na sociedade. Essa “ideia de que tudo está ligado em tudo”, em uma rede de conexões transdisciplinares, implicada inteireza do ser.

A transdisciplinaridade, a complexidade, a autoformação e a bus-ca de sentido são “palavras que fazem parte de nosso contexto na for-mação e na nossa vida. Estão todas interligadas e interconectadas num fazer transdisciplinar”. A transdisciplinaridade, para os formadores entrevistados, é uma propriedade que emerge de relações complexas, que envolvem muitos seres, pessoas e sistemas em rede. Dessa rede, surge sempre alguma coisa que não é ela, mas é algo que vem dela. É uma rede que denominamos de complexa porque muitos elementos são diferentes, antagônicos e complementares.

Essa complexidade tem nos levado a buscar saídas para uma exis-tencialidade pautada em novos valores e modos de pensar, agir, sentir, significar e ser, pois os momentos vivenciados de incertezas, dúvidas, avanços tecnológicos e globalização vêm exigindo outro olhar sobre si, sobre o outro e sobre a própria vida. O que percebemos é que o mundo

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vem se transformando a partir de questionamentos e desdobramentos do pensamento pré-moderno, moderno e pós-moderno, consolidados nas concepções de mundo atuais.

A autoformação dos educadores torna-se, então, função dos pro-cessos da evolução humana. Mas função de síntese, de regulação, de organização de diversos e heterogêneos elementos – físicos, fisiológi-cos, psíquicos, sociais, que constituem o ser vivo, em unidade viva, per-manente e contínua. A autoformação corresponde à dupla apropriação do poder de formação: é tomar nas mãos esse poder, tornar-se homem, mas é também aplicá-lo a si mesmo, tornar-se objeto de formação para si mesmo. Nesse processo, o formador se torna autorreferencial.

Fica evidente, então, que os fundamentos epistemológicos da transdisciplinaridade podem estar vinculados ao processo de autofor-mação, pois ela envolve, conforme alguns formadores transdisciplina-res entrevistados, espiritualidade, inteireiza do ser, níveis de realidade e subjetividade. “Se a autoformação é busca de si com o outro nas relações internas e externas, é fundamental que a transdisciplinarida-de possa auxiliar nesta busca, pois propõe o resgate de dimensões que estão entre nós, em nós e além de nós”.

Para os formadores transdisciplinares entrevistados essa con-dição “só se consegue numa possibilidade introspectiva de ser e de várias dimensões transpessoais: sensíveis, individuais, do eu mesmo; dimensões culturais relacionadas às vivências no espaço físico em que estamos inseridos e dimensões transdisciplinares que envolvem os di-versos saberes nos quais somos convidados a socializar.” Para comple-mentar, buscamos em outro entrevistado a relação que “pensar em au-toformação, numa relação complexa, é pensar na busca da consciência de si e, para isso, é preciso considerar os níveis de realidade: criativo, sensitivo, intuitivo, amoroso numa estratégia transdisciplinar”.

Assim, o formador trandiscipllinar, sua missão e seu destino se mostram presentes. Não se pode perder tempo e esperar que todos mu-dem para a mudança se efetivar. O seu destino é a superação de poder olhar-se no espelho e se reconhecer.

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Ao perceber a autoformação como algo principal na transdisci-plinaridade buscamos, consequentemente, trabalhar com outro nível de consciência e outras dimensões do ser humano. Então, a transdiscipli-naridade torna-se o viés da essência de nossa evolução, especialmente “quando você perceber que este é o caminho, ele não terá mais volta, e tudo o que estiver ao seu redor será influenciado também, é o que cha-mamos de atitude transdisciplinar”. Nessa perspectiva, os fundamen-tos da transdisciplinaridade, quando organizados em estrutura aberta de pesquisa-formação-ação abrem espaços para a descoberta de novas formas de conhecer e de aprender e para uma relação entre as pessoas e delas com o meio que valorize sua inteireza.

Considerações finais

Podemos considerar que numa prática autoformativa integral, é necessário considerar todos os níveis e todas as dimensões, e que tem como eixo elementar para trabalhar com os educadores: a ampliação da consciência; vagarosamente, vão tendo acesso aos níveis cada vez mais sutis da consciência, assim como ficando mais atentos às dimen-sões formativas integrais do ser humano: individual, comportamental, social, cultural e espiritual. Com isso, consideramos que nenhum dos elementos componentes da vida pode ficar de fora, se desejamos proce-der a uma formação integral.

Cabe, nesse caso, ressaltar que os níveis de consciência que apa-receram nos depoimentos dos formadores entrevistados não são sim-plesmente fases por que eles passam, mas capacidades e estratégias de atuação permanentemente disponíveis que, uma vez emersas, são ati-vadas conforme as próprias necessidades e ainda estão em permanente ampliação.

É o cuidado com a dimensão autoformadora integral que o ajuda-rá a revelar sua sensibilidade, sua intuição, seu imaginário, sua vontade de realizar algo diferente, que ajudam o formador a penetrar na zona de

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não resistência, tanto sua como de seus alunos. Para Nicolescu (2003), esta é também conhecida como a zona do sagrado. É ali que o for-mador transdisciplinar penetra com toda sua percepção, sensibilidade, imaginação, intuição e consciência e se realiza como tal ao expandir os seus níveis de percepção e de consciência no sentido de compreender o que acontece em outro nível de realidade docente/discente. A com-preensão desses processos colabora para aceleração de seu processo humano-evolucionista. Para penetrar no campo do sagrado, com sua intuição, sensibilidade e imaginação, o formador precisa saber articular e reconhecer a existência de outros tipos de conhecimento e de outras realidades.

O encantamento com a imagem, a escuta, a socialização de expe-riências sobre a vivência realizada faz florescer abundantes significados e significantes, que ultrapassam a simples relação dos aspectos formais. Torna-se imperioso, nesse sentido, um olhar sensível, luxuoso, curioso, inquietante, que por meio da falta de sossego atribui significado. Um olhar que, durante grande período da história, foi-nos negado, porque carrega em si uma realidade complexa, subjetiva, caracterizada pela marca de quem olha. Facilitar a educação do olhar para enxergarmos a nós mesmos, além das dimensões socioculturais, é nosso o desafio como educadoras transdisciplinares.

Podemos considerar também que a subjetividade encontrou lugar e valor, todavia não se trata de um individualismo ou personalismo, mas antes se concretiza como um processo em que a dimensão autoforma-tiva somente ganha contorno e sentido quando inscrita nas interações sociais e na produção da intersubjetividade. Nesse sentido, aprender a ser formador transdisciplinar implica saberes e experiências que extra-polam os conteúdos, pois mobiliza valores, ideais e utopias que confi-guram atitudes a serem construídas, significadas e experienciadas.

Realizar pesquisas dentro desse caminho é olhar luxuosamen-te para as condições da autoformação também dos formadores. Nessa possibilidade de criar e recriar a vida, criar e recriar a educação, criar e recriar a formação é que acreditamos que se pode vivenciar a alteridade,

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qual seja produzir alterações em si, no outro e com o outro e no mundo, onde as trilhas e tramas dos saberes, atitudes e sentimentos estão sendo experienciados. E, nessa vivência, vislumbramos possibilidades de au-toformação, mas vinculada à formação do outro, à liberdade de pensar, de apontar e criar alternativas de mudança. É nessa busca de sentidos que a construção de conhecimentos, a vivência de valores na e para a autoformação do educador, mostrou-nos com variação na nitidez, as cores da crítica, da ética, da estética, afetando-nos com a amorosidade e a beleza do ato de educar.

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Karol e o ressoar do silêncio: inquietações de um pesquisador que vai à escola

Leandro Rogério Pinheiro3

Início da Conversa

O texto que segue é uma narrativa de encontros e perplexida-des experienciados durante a realização de atividades de pesquisa e de extensão que coordeno, nas dependências de uma escola pública mu-nicipal sediada no bairro Restinga, extremo sul de Porto Alegre/RS. Junto de meus orientandos de graduação, realizei encontros com edu-candos da modalidade ‘Educação de Jovens e Adultos’ (EJA), no turno da noite, com o intuito de promover a produção de ensaios fotográficos e rodas de conversa sobre seus cotidianos e os temas sobre os quais gostariam de dialogar.

Tínhamos, então, pelo menos dois propósitos principais. Primei-ramente, compreender como aquelas pessoas vinham construindo suas

3 Dr em Educação

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identidades, destacando suas redes de pertencimento e sociabilidade no lugar e, além disso, suas tomadas de posição em relação à escola. E m segundo lugar, era nosso objetivo também que as atividades comparti-lhadas na escola se configurassem como dinâmicas reflexivas em que, ao visibilizarem e narrarem seus cotidianos, os educandos pudessem (re)elaborar suas experiências desde as perguntas de quem chega e, de certa forma, é “estrangeiro” naquele ambiente.

Nesse sentido, nos limites deste artigo, trago uma breve discus-são sobre o caminho percorrido, destacando, desde a experiência de uma das personagens de nosso trabalho, questionamentos que nos to-maram como educadores e que são concernentes à relação que os jo-vens estabelecem com a instituição escolar (e, mais especificamente, com a EJA) na atualidade.

Na sequência assim, resumirei os referentes de nossa iniciativa para, em seguida, apresentar o itinerário biográfico de Karol, uma das jovens educandas que integraram as atividades que promovemos. In-tegra-se a isto uma problematização do espaço de possíveis de nossa interlocutora e, em articulação, reflexões sobre os sentidos atribuídos à escola.

Os referentes e o percurso

Procurávamos compreender que ‘identidades’ nos comunicavam os educandos, tomando esta noção como inspiração para interpretar as formas como os sujeitos, entre práticas e relações cotidianas, produ-zem e definem suas experiências na interação com o outro. E é bom frisar, estou trabalhando, aqui, com a identidade produzida ao nível da individuação, conforme problematizado por Alberto Melucci ao que denomina o “jogo do eu”. A metáfora do jogo está a nos sinalizar para as mudanças e incertezas vivenciadas por indivíduos interpelados por escolhas e renuncias, circunstanciados em uma sociedade de intensa circulação de informações (MELUCCI, 2004).

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A identidade é compreendida como um campo no qual o sujeito produz identificações múltiplas, conforme vetores de reconhecimento e de diferenciação de si em que atuam e contrastam auto e hetero-defini-ções. Então, para as relações que experenciamos na atualidade, Melucci (2004) destaca a propensão a uma produção individual e reflexiva das identidades, ambientadas em contextos que, a uma só vez, são cres-centemente urbanos e culturalizados, tendem ao desencantamento em relação aos “mitos modernos” e dispõem as pessoas a uma pluralidade de grupos de participação potencial. Nestes termos, o autor menciona que a “identidade de um eu múltiplo torna-se identização” (p. 65).

Interessa apropriar, aqui, a interpretação de Melucci acerca da propensão reflexiva atribuída à produção identitária individual. Não se trata de assumi-la a priori, ou mesmo de reportar diretamente o cenário por ele esboçado às vivências dos sujeitos que viemos a conhecer no bairro Restinga. Nossa atenção tem se voltado aos itinerários constru-ídos pelos sujeitos e às formas pelas quais integram disposições para a prática e elaborações reflexivas no trato da incerteza e do múltiplo, ainda que estes se apresentem mais pela interposição da precariedade de condições, pela instabilidade dos laços com institucionalidade e/ou na virtualidade das possibilidades de escolha.

Trata-se de compreender estes sujeitos desde os espaços de ação que partilham e, nestas arenas, desde as relações sociais que cons-troem. Assim, estivemos a saber dos cotidianos e de algumas das táticas dos sujeitos (CERTEAU, 2011) para compreender a reflexividade ope-radas por eles, na forma de um auto-confronto com as condições que os circundavam e, além disso, ao modo de uma construção narrativa de si, ao explicar e justificar escolhas articulando pertenças que orientavam seus enunciados.

Para tanto, nossas buscas em campo foram organizadas desde uma sequência de encontros. Íamos quinzenalmente à escola, na Restin-

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ga Velha. De março a agosto de 2015, consolidamos rodas de conversa com quatro educandos4 da Educação de Jovens e Adultos no turno da noite, quando falamos sobre seus hábitos e rotinas, sobre a circulação no bairro e suas redes de sociabilidade.

Inicialmente, usamos imagens fotográficas aportadas por nós ou trazidas de casa pelos educandos, para evocar impressões e memórias. Depois, passamos a um mapeamento dos espaços que frequentavam, buscando promover discussões sobre suas experiências no bairro e fora dele. Tais conversas representaram uma Início da Conversa ao trabalho que proporíamos aos educandos: a realização de ensaios fotográficos. Os educandos recebiam câmeras descartáveis (27 poses) para registrar elementos do cotidiano que desejassem partilhar com os expectadores de suas fotos em exposição que organizaríamos na sequência, em espa-ço público do centro da cidade.

Foram dois ensaios seguidos de rodas de conversa sobre as preferências e renúncias dos fotógrafos, quando nos apresentavam os percursos e as motivações para registro e, também, nominavam suas produções. Na primeira edição, definimos tema livre e deixamos que cada participante trouxesse suas ênfases. Na segunda, delimitamos coletivamente: pedimos que sugerissem temáticas e afirmaram vários em tom reivindicativo – “educação”, “saúde”, “cuidado com animais”, “natureza” –; então, sugerimos que estes fossem abarcados no assunto “Restinga”, o que foi prontamente aceito.

A culminância do trabalho na produção de imagens foi a pro-posição de que os educandos fizessem intervenções livres sobre algu-mas das fotografias feitas nos ensaios. Orientamo-los a tomarem como inspiração as narrativas que produziram quando nos apresentavam as fotos nas rodas de conversa ou, então, que projetassem ali seus desejos

4 Os educandos eram moradores do entorno da instituição: duas mulheres idosas com idade entre 55 e 60 anos, ambas com extensa trajetória como empregadas domésticas; um jovem de 34 anos que, além de aluno, era monitor na escola que acolheu nossas ativi-dades; e Karol, a jovem cujo itinerário apresentarei neste texto.

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de mudança. Foi este um caminho para ampliar as bases de narração, extrapolando o uso da palavra para comunicar interpretações sobre as realidades que se indiciavam nas imagens.

A apropriação de imagens no processo se deu por pelo menos dois motivos. Primeiramente, consideramos o apelo contemporâneo da produção de imagens nas elaborações identitárias, tomando-o por sua contribuição para aproximação com os sujeitos e, também, para amplia-ção das possibilidades de evocação de narrativas sobre seus percursos e seus cotidianos. Em associação a isso, dados os usos culturais das ima-gens fotográficas, orientadas ao registro do “digno” de ser visibilizado (MARTINS, 2009), aventamos a hipótese de que o comunicado desde as fotos poderia ser não só contrastado com informações oriundas de outros motes de interlocução, como traria um convite enfático para as pessoas se posicionarem reflexivamente acerca dos cotidianos experen-ciados, ao escolher o que deixar “em registro” e expor.

As informações construídas nesses diálogos foram complementa-das, ainda, por entrevistas narrativas (JOVCHELOVITCH, 2002) feitas com cada um dos participantes, de modo a oportunizar aos educandos também a elaboração de percursos biográficos. Efetuamos também a observação de algumas práticas na escola, durante horários de intervalo de alunos e de professores. Precisávamos saber mais das dinâmicas do espaço em que realizamos nossas atividades e, desta forma, fizemos desses momentos uma alternativa para diálogos informais sobre rotinas e desafios do trabalho naquele lugar. Por fim, realizamos uma entrevista com o vice-diretor da escola, objetivando obter mais dados sobre a his-tória daquela unidade e sobre as condições de trabalho da modalidade EJA.

Desde o contraste dos itinerários narrados e destes com os frag-mentos que nos chegaram nas histórias e causos enunciados nas diver-sas rodas de conversa, procuro narrar, aqui, a singularidade em um dos percursos biográficos. Antes, porém, passarei a uma contextualização do lugar de nossas interlocuções.

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O contexto de nossos encontros

Iniciemos por uma rápida descrição da localidade onde se situa a escola. A Restinga está localizada no extremo sul do município de Porto Alegre, a aproximadamente 25 km de distância do centro da cidade. Por conta de políticas tecnocráticas de higienização e de valorização de áreas urbanas centrais implementadas nos anos 1960, foram removidos para lá contingentes que residiam nas chamadas vilas de “malocas”, resultantes, sobretudo do processo de êxodo rural iniciado a partir dos anos 1940 (AIGNER, 2012).

Difícil precisar o tamanho atual da população dessa região. Os dados oficiais indicam que há cerca de 60 mil habitantes (OBSERVA-POA, 2010), mas não estariam computados aí os residentes em áreas ir-regulares. Entidades que atuam na localidade costumam trabalhar com uma estimativa de mais de 150 mil habitantes, o que faria deste o bairro mais populoso de Porto Alegre. Em que pese as conquistas dos mora-dores e a notória organização cultural e política naquela localidade, o bairro ainda carece de melhores serviços públicos e a população ainda está entre as mais empobrecidas da cidade.

A escola a qual nos referimos está localizada na Restinga Velha. Foi fundada no final dos anos 1980, sendo que a EJA foi criada por vol-ta de 2000. Os estudantes que a frequentam são moradores do bairro, oriundos dos arredores da unidade escolar. Atualmente, esta recebe 924 alunos matriculados e conta com um quadro de aproximadamente 80 professores para os três turnos (manhã, tarde e noite), sendo que este tem se reconfigurado repetidamente, em função da rotatividade dos do-centes, desejosos de um local de trabalho menos suscetíveis a situações de precariedade e violência5.

A EJA, no período da noite, teve em torno de 150 estudantes ma-triculados no início do ano, mas não chegava ao número de 40 os alunos com frequência regular em agosto. Segundo comentava o vice-diretor,

5 Nas conversas com os educandos, expressava-se o receio pela circulação nas ruas do bairro, em função das disputas entre os grupos de traficantes e a interdição implícita a registros visuais nas proximidades dos locais onde estes atuavam.

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a evasão tem sido bastante elevada no correr dos últimos seis anos e, em muitos casos, associa-se à necessidade de priorizar as possibilidades de trabalho. Neste sentido, a relação entre instituição escolar e alunos, aqui, remete-nos à caracterização feita por Zago (2012) acerca da es-colarização nos meios populares, em geral, tensionada pela demanda precoce por investimento em ocupações remuneradas e, além disso, perpassada por uma expectativa de que a escola amplie ou qualifique as condições laborais.

Ademais, nos últimos 10 anos, a Educação de Jovens e Adultos dessa escola vem passando por mudanças no perfil dos estudantes num processo de “juvenilização”, articulando-se a um processo iniciado já nos anos 1990 no Brasil. Neste cenário, a redução da idade mínima para conclusão dos ensinos fundamental e médio (18 para 15 anos e 21 para 18 anos, respectivamente) ambientou um processo de migração interna de jovens que, por um lado, associa-se as buscas da instituição por regu-larizar o fluxo escolar dos estudantes ou por reencaminhar alunos con-siderados “indisciplinados” e, de outro lado, integra-se à demanda dos educandos por aceleração da carreira escolar, motivados pelas situações de “fracasso” na escola regular, pelo constrangimento de estar entre estudantes menores e pelas urgências cotidianas a que a escolarização não consegue responder (ANDRADE, 2008; SILVA, 2010).

Tal condição tem repercussões no cotidiano institucional. Não raro, os professores e os alunos adultos da escola onde atuamos mani-festavam descontentamento com os comportamentos dos jovens, deno-minando-os como “bagunceiros” e “desinteressados”. De outra parte, as juventudes pareciam requerer espaços para suas formas de sociabi-lidade e expressão cultural. Nas ocasiões em que aguardava pelos edu-candos no pátio, observava as movimentações do intervalo e a presença massiva de jovens. Ficavam pelo pátio conversando e comentando o que viam nos celulares. Quando tocava o sinal para que retornassem às salas de aulas, ninguém se movia e era preciso que o vice-diretor se posicionasse a exigir o retorno. Segundo me contou, esta situação teria se tornado rotina.

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Tal situação se aproximava do relatado por Schneider (2013) acerca das dinâmicas de inclusão/exclusão na EJA. Afirmava ela que as posições relacionais ocupadas por alunos adultos e jovens na escola associam-se a um modelo cuja ênfase está em reconhecer aquele que “quer estudar”, articulando apelos por obediência e críticas à indisci-plina. Os jovens seriam associados normalmente a esta, ao passo que os mais velhos teriam assento entre os que desejam o estudo. “Lugar” e “não-lugar” na escola se estabelecem de maneira relativa, contudo, e um bom resultado obtido por jovens em uma atividade avaliativa pode-ria colocar em tensionamento a hierarquia de reconhecimento. Assim, um cenário de conflitos que vale problematizar não pela assumpção dos propósitos institucionais, mas pela compreensão do arbitrário e con-tingencial de um modelo e da pertinência das buscas operadas pelos sujeitos nos espaços educacionais.

Nesse sentido, antes de julgar a postura dos jovens alunos, vale identificar que experiências e que sentidos estão em jogo e podem pro-vocar nossa compreensão.

Desde um itinerário, o espaço de possíveis

A composição do grupo de participantes em nosso projeto osci-lou bastante durante nossa imersão. Houve quem iniciasse nas primei-ras conversas que desenvolvemos e não continuou; outros ingressaram no decorrer, mas também não permaneceram. Notamos que o envolvi-mento dos estudantes se coadunava à relação estabelecida com a escola. Em meio às adversidades de seu contexto, deixavam de frequentar a instituição ou ingressavam em diferentes momentos do período letivo; nosso projeto navegou conforme as oscilações da frequência escolar.

Contudo, quatro educandos permaneceram a maior parte do tem-po, ainda que com algumas ausências eventuais. Dentre estes, tomarei o caso de um dos jovens com quem interagimos para narrar seu itinerário biográfico, analisando o cenário de suas práticas, que nomino por hora “espaço de possíveis”.

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Karol e as perguntas em aberto

Como muitos de seus colegas, Karol morava nas cercanias da escola onde nos encontrávamos. Residia com tios e um primo, na casa da avó. Frequentava a residência também seu irmão mais velho, que vivia não muito longe dali. Ingressara na EJA em março de 2015, aos 19 anos de idade, depois de diversas tentativas sem êxito no ensino fundamental regular.

É possível afirmar que o itinerário biográfico narrado por ela, de forma geral, expunha um acesso precário a recursos sociais, incluindo-se aí a existência de um arranjo familiar com acesso vulnerabilizado à renda, moradia e escolarização e o trânsito deste por diferentes espa-ços na busca por trabalho, remuneração, ou mesmo de vivências menos conflitivas. Na ocasião da entrevista, contou-nos que até os cinco ou seis anos teria vivido na Restinga Velha. A primeira alteração de resi-dência veio por conta de conflitos de seu pai no bairro. Passaram a re-sidir em Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre, onde foram acolhidos por uma tia. Ficaram lá por pouco mais de um ano e retorna-ram à capital, segundo alegou, por conta de novos conflitos de seu pai.

Passaram a morar no bairro Lomba do Pinheiro, zona leste da capital, também em uma localidade de periferia. Viviam em terreno de sua avó, cujo uso era compartilhado com outros parentes, em diferentes casas. Karol voltou a morar na Restinga por um período de aproxi-madamente um ano por conta de uma separação temporária dos pais, acompanhando sua mãe. Depois, retornou com ela à Lomba.

Recentemente, em decorrência de seu ingresso na EJA, a jovem passou a residir na casa onde a entrevistei. Mas, mesmo antes disso, disse que costumava frequentar bastante o domicílio de sua avó, de forma que seu itinerário demonstrava reiteradamente que crescera sob os cuidados de um arranjo familiar extenso, lembrando as dinâmicas familiares e redes de reciprocidade que Fonseca (2004) refere em rela-ção aos grupos populares. É que eu, tipo, ficava com o coração na mão. Tipo, gostava de ficar aqui, mas também queria ficar perto dos meus pais. (Julho/2015)

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O cotidiano de Karol estava organizado sobremaneira pelo arran-jo familiar. Estudava à noite e, pela manhã, ela se ocupava de levar e buscar seu primo de sete anos à escola. À tarde, ajudava a tia e a avó na preparação de alimentos que vendiam. Sua rotina tendia a práticas usu-ais entre mulheres, na ocupação com tarefas domésticas e do cuidado, como extensamente argumenta a literatura da área, contribuindo para formar disposições culturalmente imputadas ao feminino6 (BRUSCHI-NI, 2007).

Além de configurar o espaço de atuação predominante de mi-nha interlocutora, a condição de gênero ambientava a vivência de re-lativa moratória social (ANDRADE, 2014), dado que permanecia sob proteção de familiares e, a rigor, não tinha precisado enfrentar indivi-dualmente as exigências do mundo do trabalho e/ou da subsistência em incursões externas ao âmbito doméstico. Vale considerar, ademais, que ela integra a realidade vivenciada pelos jovens nos últimos anos no país, de redução do envolvimento precoce com trabalho e de ampliação do tempo dedicado à escolarização (IBASE, 2010).

Karol começou os estudos quando criança, na Lomba do Pinhei-ro. De maneira explícita, afirmou que não gostava de ir até a escola. Em sua narrativa, articulava a isso algumas táticas para evitar a frequência à instituição. As mudanças de residência teriam contribuído para frag-mentar sua escolarização, mas mencionou também que se ausentava muito e isso a teria feito acumular reprovações, em uma carreira escolar atravessada por intermitência e hesitação.

Eu ficava no colégio, mas não gostava de ir pro colégio. Eu não prestava atenção. Daí eu ia ro-dando, rodando e foi indo. Como eu não gostava, eu pegava o ônibus, fazia uma volta e voltava pra casa e dizia que não tinha aula. É que agora [na EJA] tem gente na mesma situação que eu. Tipo,

6 Aliás, a manutenção de um quadro de imputação de tarefas iniciado precocemente na socialização compunha também as trajetó-rias das demais participantes mulheres do projeto, ambas com mais de 50 anos de idade. Não é o intuito, aqui, discutir as questões de gênero e as possíveis nuances entre os grupos etários representados. Apenas desejo realçar a recorrência histórica de uma caracterização socialmente produzida.

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parou de estudar, são já grandes. No colégio, de tarde ou de manhã, tem aquelas coisas das crian-ças: ah, já é grande e está nessa série. Tem essa gozação, né.

Na atual escola e na modalidade da EJA, disse se sentir mais à vontade. Todavia, essa educanda se mostrava uma pessoa bastante tí-mida durante nossas dinâmicas coletivas e eram poucas as suas palavras ao longo das conversações. Por algumas semanas, assumiu a função de monitora na escola no turno da manhã. Porém, deixou a ocupação alegando receio em relação à agressividade das mães dos alunos que, por ventura, fossem repreendidos. Expressou, certa feita, uma intenção vacilante de enviar seu currículo a uma loja, mas frisou que não gostaria de atuar como atendente; preferiria envolver-se com a organização do estoque.

Comentou ser uma pessoa “caseira” e suas atividades, para além da movimentação para a escola, resumir-se-iam a sair com familiares, indo a festas em que houvesse música sertaneja. No mais, afirmou fazer uso intenso do celular e da internet, acessando Facebook e Whatsapp sobretudo. Neste último aspecto, Karol se aproximava das práticas de seus colegas jovens, conforme observava na escola. Indiciava-se dis-cretamente, também, uma integração à condição juvenil contemporâ-nea, caracterizada, dentre outros aspectos, pela valoração da sociabili-dade e da fruição artística e musical (CARRANO, 2007).

É, mais o WhatsApp, quando alguém me chama, daí eu respondo. [...] Geralmente coisas longe, tipo, que tu não sabe. Tipo, tem uma prima tua que tu não vê; daí ela posta coisas e tu vê como está indo a vida dela, assim [...]. Praticamente eu passo o dia inteiro com os fones de ouvido escu-tando música. [...]. Às vezes eu já começo de ma-nhã e vou até de tarde, na hora de ir pro colégio. O dia todo escutando música. A minha vó fica, tipo, mexendo comigo, porque eles falam comigo e eu não respondo, porque estou ali escutando música.

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Apesar da discrição e da timidez, Karol se mostrava uma pessoa vaidosa e fazia questão de cuidar sua aparência e suas vestimentas antes de sair para as aulas. Sua atenção diária aos livros, à música, ao celular e à internet, com destaque ao acesso a redes sociais, indiciavam inte-resses e um tipo de reflexividade, na mimese mediada pelos artefatos culturais que acessava e compartilhava em interações virtuais.

O ensaio fotográfico que produziu parece ter sido tributário do que relatei acima. As fotos foram realizadas na casa onde morava e figuravam principalmente: seus parentes e seus animais de estimação; os livros que costumava ler, incluindo-se aí exemplares de livros de Fernando Pessoa e da saga Crepúsculo; e seu celular. Provocada pela oportunidade do registro imagético, sua fala discreta evocou temas afe-tivos, destacando aquilo com que se ocupava em seus dias. Observada como “aluna”, entretanto, parecia predominar o silêncio e as reticên-cias. Ficavam as perguntas pelo lugar da escola entre os ‘possíveis’ que sua experiência esboça.

O silêncio de Karol ou... reflexões sobre os sentidos da escola

A presença de Karol era discreta e ela se dispunha a falar apenas quando solicitada, mas não poderia perder de vista que, por algum mo-tivo, ela manteve sua frequência, levando até nós insistentemente o seu silêncio. E, é preciso reconhecer, há o risco de impormos interpretações quando o outro cala e nos deixa à deriva nas inquietações. Ainda assim, tentarei esboçar, aqui, a compreensão dos sinais que, segundo entendo, não estavam nas palavras, mas nos gestos e nas escolhas. Penso que os sentidos da escolarização precisam ser buscados nas experiências cons-truídas pelos educandos. Embora não configure argumento inovador, parece-nos que provocações concernentes merecem destaque ainda, es-pecialmente no contexto de juvenilização retratado antes.

Em meios populares, as motivações verbalizadas para ingressar

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na EJA têm se associado a expectativas um tanto práticas, como a de que esta amplie alternativas no mundo do trabalho, ou que possibilite melhores condições de trânsito pela cidade, mediante domínio de có-digos de leitura/escrita (ANDRADE, 2008; SANTOS, 2003). E podia observar que Karol verbalizava preocupações em relação aos estudos aludindo suas possibilidades no mundo do trabalho. Depois de uma trajetória escolar fragmentada por mudanças de residência e por frequ-ência insuficiente, sem ter concluído o ensino fundamental, a transfe-rência para a EJA pareceu resultar numa espécie de “segunda chance”, sem os constrangimentos de frequentar o ensino entre alunos menores.

Se os educandos de sua faixa etária tinham a escola também como espaço de sociabilidade, Karol tendia a priorizar a rede relacional vinculada a sua família. Se os demais alunos jovens eram criticados por adultos e professores pela indisciplina, pela infrequência e/ou pela instrumentalização do vínculo7, ela mantinha frequência com o espaço escolar, dizia sentir-se à vontade na EJA e frequentava as aulas, em ge-ral, de forma reservada. Embora seja um comportamento menos deses-tabilizador da rotina escolar, considero que entre os “ruídos” daqueles e as reticências desta há relações a serem estabelecidas.

Se os jovens que chegam à escola na atualidade têm na sociabi-lidade, na fruição artística e simbólica e na produção-partilha horizon-talizada de saberes as ambiências preferenciais de suas existências e o campo privilegiado para vazão de suas reflexividades; se seus processos de socialização conquistam relativa autonomia em relação às institui-ções, com destaque aos grupos de pares, e a reversibilidade passa a compor seus itinerários desde, entre outros aspectos, os apelos da cir-culação intensificada de informações e as instabilidades do mercado de trabalho (DAYRELL e CARRANO, 2014), é necessário reconhecer que a relação com a escola e com o que pretendem os professores pre-cisa de problematização.

7 Os professores citavam que haveria alunos interessados em realizar matrícula em função das oportunidades de trabalho que a exigiam como requisito. Nestas condições, a frequência às aulas era reduzida.

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Dentre as preocupações mais recorrentes entre os jovens na atu-alidade estariam a violência (46%), a qualidade da educação (37%) e dificuldades relativas ao emprego (37%) (IBASE/POLIS, 2010). Pode-ríamos considerar, a partir daí, que as juventudes atribuem lugar rele-vante à escola em suas projeções. Então, a questão relativa ao suposto “desinteresse” dos alunos (muitas vezes formulada pelos professores), poderia ser provocar a uma interpretação diferenciada, orientando-nos a perguntas pela forma preferencial de relação com o saber e com o Outro, a exemplo do que sugere a etimologia da palavra “interesse” (“estar entre”), como costuma salientar em suas palestras o professor Paulo Carrano. Acredito que, é a necessidade de protagonismo e/ou im-plicação com as experiências pessoais que pede lugar quando aqueles que chegam, e denominamos “alunos”, estão imersos em dinâmicas po-tencializadoras de reflexividade.

A diversificação (ainda que virtual) dos espaços/grupos de cir-culação e a dessincronização dos ritos de passagem dispõem, de outra parte, tensionamentos à elaboração de projetos de vida (CAMARANO, 2006; DAYRELL e CARRANO, 2014). Como ancorar escolhas quan-do as opções não cessam de surgir ou a instabilidade e a incerteza se avizinham? Como fazê-lo se as referências do mundo adulto parecem frágeis e a juventude parece tomar o horizonte da idealização na so-ciedade? Inquietar ou silenciar-se podem ser ambas reverberações do auto-confronto e do receio dos jovens, ao serem pressionados a cami-nhar quando o terreno parece movediço e os anseios e/ou as necessida-des exigem voos expeditos. Aí, precisamos ter em mente as evocações relacionadas à escolarização e à forma de temporalidade de interpõe, vinculada ao futuro, à transição e ao projeto.

Então, voltando aos diálogos com Karol, suas práticas cotidia-nas navegavam entre o instigado pelo desejo, nas sociabilidades e na fruição, e as buscas por segurança, circunstanciadas no contexto de vulnerabilidade em que vivia e nos apelos sociais por definição de um projeto. Sua participação em nossa iniciativa indiciava preocupação em concluir a escolarização, mas as atividades propostas aí pareciam ca-

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recer de sentido que não fosse o de atender uma exigência em muito relacionada ao mundo do trabalho e à subsistência (familiar e juvenil). O contexto familiar a amparava neste sentido, mas isso não tornava menos incerta a aposta na carreira escolar e menos difusos os possíveis efeitos da escolarização em seu contexto de precarização. Pelo contrá-rio, avançar nos estudos não poderia representar um distanciamento das relações familiares (e da ambiência sócio cultural que a acolhia), na forma como problematiza Charlot (2002)?

A ausência de sentido parece ser agravada no contexto de vi-vência de sua situação juvenil. Se para as pessoas adultas e idosas com quem dialogamos, as “idas e vindas” no percurso de escolarização eram mencionadas com pesar, assinalando a inculcação do fracasso inclusive, Karol demonstrava preocupação em cumprir o exigido simplesmente, e seguir com o que lhe era significativo. Neste sentido, percebia sinais de descentramento da instituição escolar e as reticências pareciam ques-tões pelo que poderia estar lá.

A escola poderia ser alternativa para produção dos projetos bio-gráficos e para a experiência de laços de sociabilidade e solidariedade e não o arbitrário discursivo em terreno vulnerabilizado e onde o futuro tem a forma de instabilidade. De uma parte, é necessário reconhecer que a instituição pouco pode fazer pela educação em terreno em que os demais direitos são violados sistematicamente; de outra, é preciso observar que a escola, em que pese a continuidade de sua relevância social, tende a ser mais uma alternativa em itinerários cujas instâncias de socialização se diversificam. As palavras de Carrano (2007) podem ser provocadoras neste sentido:

Talvez seja possível pensar as possíveis reorgani-zações curriculares não apenas como estratégias funcionais de favorecer o ensino-aprendizagem, mas como políticas educativas e culturais que per-mitam reorganizar espaços e tempos de comparti-lhamento de saberes, ampliar a experiência social pública e o direito de todos às riquezas materiais

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e espirituais das cidades. Por que não pensar o currículo como tabuleiro de xadrez, onde algu-mas peças se movem com alguma previsibilidade e linearidade e outras peças como cavalos, reis e rainhas que fazem movimentos surpreendentes. [...] É assim que enxergo o desafio cotidiano de organização de currículos flexíveis capazes de co-municar aos sujeitos concretos da EJA, sem que com isso se abdique da busca de inventariar per-manentemente a unidade mínima de saberes em comum que as escolas devem socializar. (p. 10)

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CAMARANO, Ana. Transição para a vida adulta ou vida adulta em transição? Rio de Janeiro: Ipea, 2006.

CARRANO, Paulo. Educação de jovens e adultos e juventude: o desafio de compreender os sentidos da presença dos jovens na escola da “segunda chance”. Revista Reveja, 2007

CHARLOT, Bernard. A relação com a escola e o saber nos bairros populares. Perspectiva, v. 20, n especial, jul-dez/2002, p. 17-34.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2011.

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IBASE. Pesquisa sobre juventudes no Brasil – Pesquisa Juven-tudes sul-americanas: diálogos para construção da democracia regional. Rio de Janeiro: IBASE, 2010.

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MARTINS, José de S. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2009.

MELUCCI, Alberto. O jogo do eu. São Leopoldo: Editora UNI-SINOS, 2004.

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SCHNEIDER, Sônia. Esse é o meu lugar... esse não é o meu lu-gar: inclusão e exclusão de jovens e adultos na escola. Educação e Sociedade, v. 34, n. 122, jan-mar/2013, p. 227-244

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Questões de gênero no ensino fundamental I: percepções de orientadoras educacionais sobre gênero e sexualidade

Lucia Aulete Burigo Sousa8 Mareli Elaine Graupe9

Início de Conversa

O interesse em pesquisar a temática de relações de gênero nas percepções dos orientadores das escolas Básicas do Município de Lages (SC) surgiu a partir da trajetória pessoal e profissional dos pesquisado-res. É de anuência que a escola tem sido marcada profundamente pelo modo como são produzidas as diferenças e as desigualdades de gênero em suas pronunciações, juntamente com marcadores sociais, a exemplo de sexualidade, raça, etnia e classe. No entanto, deveria constituir-se es-paço formador de sujeitos livres para o exercício da cidadania e da equi-dade. Para Freire, “Educar é construir, libertar homens e mulheres do determinismo, passando a reconhecer o seu papel na história, conside-

8 Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional - Faculdade Internacional de Curitiba - Lages SC 600 horas (2004). 9 Doutora em Educação e Cultura. Pós-Doutora em Interdisciplinar em Ciências Humanas; Pós-Doutra em Antropologia Social.

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rando a sua identidade cultural na sua dimensão individual e coletiva”. Nesse sentido, para o mesmo autor, “Sem respeitar essa identidade, sem autonomia ou sem levar em conta as experiências vividas, o processo educativo será inoperante e constituirá somente um conjunto de me-ras palavras, despidas de significação real” (2003, p. 18). Para Freire, educar é possibilitar o rompimento de padrões e modelos hegemônicos ao oportunizar os estudantes situações de aprendizagem baseadas nas relações humanas, na construção da liberdade, cidadania e equidade.

Entende-se que as relações de gênero no contexto educacional, juntamente com outras não menos importantes (de raça, etnia, classe e orientação sexual), são indispensáveis para essa construção cidadã a ser desenvolvida por aqueles que fazem parte dos processos educacionais, seja na função de orientador/as seja de formadores, mestres ou aprendi-zes. Contudo, embora essa necessidade, ainda há muito a ser desenvol-vido em forma de políticas públicas e ações dos agentes educacionais para que se possa entender e perceber a escola como esse espaço de construção e desenvolvimento de sujeitos livres e políticos de direito.

A coleta e análise de dados seguiu o proposto por Mayring, Tri-viños e Flick e constituiu-se como estudo qualitativo, com revisão de literatura e pesquisa de campo. A partir do objetivo proposto, a pesquisa empírica foi desenvolvida sob o método de entrevista focalizada, por apresentar a possibilidade de um diálogo que facilita a interação entre duas ou mais pessoas, em uma troca de informações e dá sentido à rea-lidade que abrange os sujeitos (FLICK, 2009). A entrevista, segundo a literatura, oportuniza uma conversa aberta com os sujeitos pesquisados. Quanto à origem da entrevista focalizada, Flick relaciona que “[...] um dos mais influentes no desenvolvimento deste método foi Robert Mer-ton e Patricia Kendall em 1946 e em 1984, em campos da pesquisa de comunicação” (2009, p. 143). Nesse sentido, a entrevista com roteiro “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...] além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).

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A entrevista foi realizada em quatro escolas municipais com res-pectivas orientadoras escolares. Foi elaborado um questionário e após a aprovação do CEP iniciou-se os contatos com escolas e orientado-ras. O critério de escolha teve por base o trabalho de orientação das participantes da pesquisa na função de orientadora escolar há mais de cinco anos na rede municipal de ensino. As escolas e orientadoras fo-ram identificadas com codinomes e as orientadoras nominadas como: Orientadora “A”; Orientadora “B”; Orientadora “C” e Orientadora “D”.

Quando realizou-se a pesquisa, a Escola Municipal de Educação Básica (EMEB) Brilhante atendia 26 turmas no período diurno, do Pré Escolar ao 9º ano do Ensino Fundamental, e uma turma no período no-turno, contabilizando 635 alunos. Possuía 55 profissionais nas diversas funções. A orientadora dessa escola trabalha há 12 anos nessa função. Na EMEB Topázio estudavam 553 alunos, incluindo da Pré Escola ao 9º ano do Ensino Fundamental, atendidos por 67 profissionais. A orien-tadora também já está nessa função há mais de 12 anos. A EMEB Tur-quesa atende 550 alunos, do Pré Escolar até o 9º ano do Ensino Funda-mental, e tem 52 profissionais. A orientadora trabalha nessa função há 15 anos, na mesma escola. A EMEB Opala atende 600 alunos e tem 40 profissionais distribuídos entre as turmas do Pré Escolar ao 9º ano do Ensino Fundamental. A orientadora dessa escola trabalha há seis anos nessa função.

Questões de gênero nas escolas: revisão de literatura

As escolas, intituladas instituições sociais - de onde herdamos uma educação ocidental, com estruturas organizacionais orientadas por questões administrativas e pedagógicas, condicionadas em diferentes aspectos à política e à economia, ambas marcadas pelo modelo capita-lista de gestão -, apresentam rupturas e descontinuidades significativas no que tange às diferenças entre os sexos. Há muitos discursos sobre a importância da educação na contemporaneidade. Contudo, entendemos

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a necessidade de outros modos de pensar, criar e aprender a desaprender o processo de ensino e aprendizagem nas práticas pedagógicas. Conse-quentemente, nossos alunos concebem, percebem, aprendem por vieses diversos dos nossos. Sendo assim, as diferenças são aceitáveis e con-sideradas positivas. Estamos referenciando, portanto, outros modos de aprendizagens e conhecimentos, pois “[...] Os processos de produção do conhecimento estão ligados aos processos de produção de subjetivi-dades” (SLEVINSKI, 2006, p. 153). Considerando gênero como uma construção social, faz-se importante construirmos a escola como um espaço de novas compreensões numa relação entre educação e cultura. Nessa perspectiva, Sacristán (2001, p. 123) afirma a ambivalência da escola que se constitui um desafio por envolver “[...] a realidade com a qual devemos contar e problema para o qual há respostas contrapostas”. Desse modo, caracteriza “[...] uma chamada a respeitar a condição da realidade humana e da cultura, forma parte de um programa definido pela perspectiva democrática”. Isso envolve “políticas de inclusão so-cial e se opõe ao domínio das totalidades únicas do pensamento moder-no”. Para o mesmo autor,

Ordem e caos, unidade e diferença, inclusão e ex-clusão em educação são condições contraditórias da orientação moderna. [...] E, se a ordem é o que mais nos ocupa, a ambivalência é o que mais nos preocupa. A modernidade abordou a diversidade de duas formas básicas: assimilando tudo que é diferente a padrões unitários ou “segregando-o” em categorias fora da “normalidade” dominante (SACRISTÁN, 2001, p. 123-124).

Essas reflexões permitem entender que, nas escolas, há dificul-dades em se trabalhar com as diferenças, ficando somente marcadas a homogeneização e padronização, diferenciando os alunos quanto a co-nhecimentos, estereótipos, reproduzindo papéis postos pela sociedade

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(CANDAU, MOREIRA, 2011). As autoras reportam-se quanto ao que é função da escola no que diz respeito à responsabilidade perante os alunos, famílias e comunidade em geral. Entende-se, então, que à es-cola cabe definir seus objetivos e metas no coletivo, oportunizando um espaço de conhecimento dinâmico, ativo e principalmente sem discri-minações, sendo assim referência na construção do sujeito em cidadão com plenos direitos igualitários.

Com o objetivo de aprofundar relações de gênero na educação, retomamos o conceito de gênero, sob as palavras de Carvalho, ao en-tender que:

[...] gênero não é um conceito que apenas descre-ve as interações entre homens e mulheres, mas uma categoria teórica referida a um conjunto de significados e símbolos construídos sobre a base da percepção da diferença sexual e que são utilizados na compreensão de todo o universo observado, incluindo as relações sociais e, mais particularmente, as relações de gênero entre ho-mens e mulheres. Esse código pode também ser-vir para interpretar e estabelecer significados que não têm relação diretamente com o corpo, com a sexualidade, nem com relações entre homens e mulheres, categorizando, em termos de masculi-no e feminino, as mais diversas relações e alteri-dades da natureza e da sociedade, conforme cada compreensão cultural e histórica (CARVALHO, 1999, p. 405).

Nas colocações da autora, gênero não se refere apenas ao sexo, mas a um conjunto de símbolos construídos sobre a base da percepção da diferença sexual, ou seja, é muito mais do que isso, ele expressa as construções sociais, culturais e históricas. Essas situações foram iden-tificadas nas falas das orientadoras participantes da pesquisa, conforme será apresentado na sequência deste texto.

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Questões de gênero e sexualidade nas escolas sob a percepção da orientação educacional

Quando, nas entrevistas, tratamos sobre gênero com as orien-tadoras, solicitamos que falassem sobre as diferenças de tratamento existentes na escola entre meninos e meninas no que diz respeito às questões de gênero. A complexidade do termo nos permitiu observar que são diferentes as possibilidades de compreensão desse conceito por parte das entrevistadas.

Para a orientadora “A”, por exemplo,

Por mais que o professor tenha uma formação inovadora, mas em algumas coisas ele coloca essa questão de que menino tem que agir assim, meni-na tem que fazer isso, menina não pode sentar em determinada posição na cadeira, menino pode, e eu tive isso bem evidenciado há dois anos, quando organizamos no contraturno uma aula de artesana-to. Quando fizemos o convite, fizemos para todos. O que aconteceu evidenciou o grupo mais femi-nino, mais as meninas vieram e aí vieram alguns meninos do quinto ano participar. A mãe disse que podia, então vieram. O que aconteceu, os outros meninos disseram, vocês são mariquinhas, costu-rar, fazer fuxico é coisa de menina.

As palavras dessa orientadora indicam que a questão de gênero é condicionada a padrões de poder que foram construídas ao longo do tempo e permanecem na sociedade atual. As colocações da orientadora “C” ajudam a esclarecer esse arraigamento de situações discriminató-rias em relação a gênero, quando se autoavalia e percebe que acaba reproduzindo ideias e representações sobre masculinidade e feminili-dade, frutos de todo um contexto social e cultural voltado à orientação diferenciada de meninos e meninas.

Às vezes eu mesmo me pego dizendo (que coisa feia). Uma menina fazendo isso, para a menina

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isso não combina, e quando eu digo que não com-bina com a menina, automaticamente eu digo para menino combina, entende? Então, ainda existe essa diferença, que existem coisas que são espe-cificamente para mulher e coisas que são especifi-camente de homem, mas no sentido de atividades, de atribuições (ORIENTADORA “C”).

Se a presença de um pensamento social, cultural e histórico se revela na fala de uma pessoa que está à frente de um processo educacio-nal, e cuja função é a de orientar os sujeitos da escola, provavelmente com mais frequência ele estará presente nas ações desenvolvidas pelos sujeitos. A orientadora “C” destaca que ela mesma reproduz as diferen-ças de comportamento entre masculino e feminino, mostrando que en-tre professores, orientadores e gestores isso ocorre de modo constante, sendo um dos exemplos a fila para entrada em sala de aula: “Enquanto escola, a gente faz isso quando forma as filas, porque a escola faz fila de meninos, e fila de meninas, aqui na escola é feito, são separadas por turmas e cada turma tem a fila dos meninos e a fila das meninas” (ORIENTADORA “C”).

Essas palavras revelam que as escolas contemporâneas trazem e marcam comportamentos masculinizados para meninos e feminilizados para as meninas e, assim, as atividades rotineiras continuam a reprodu-zir diferenciações entre os sexos. Observamos também nessa respos-ta a questão da formação de filas, separando os meninos das meninas. Contudo, faz-se importante lembrar que isso caracteriza uma tradição secular no sistema educacional brasileiro, muito frequente na história das escolas e resultante de um modelo de internato praticamente extin-to. Todavia, o costume de organizar os alunos em fila continua sendo reproduzido nas escolas públicas do Ensino Fundamental I.

Ao falar sobre as diferenças a respeito de meninos e meninas, a orientadora “D” salientou que, “[...] entre as meninas [...] já houve um grande avanço. Eu não sei se é porque as mulheres hoje em dia estão em outra posição de igualdade com os homens”. Embora haja indícios

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nessa fala da existência de igualdade entre homens e mulheres, na sequ-ência a mesma orientadora estabelece a diferença ao comparar meninos e meninas quanto à intelectualidade: “[...] o menino eu sinto sim que ele é mais intelectual, ele é mais expressivo”. O valor do masculino como o sujeito que pensa, que raciocina e portanto se destaca está presente na maioria dos estudos relacionados para o referencial teórico desta disser-tação como um dos aspectos que tendem a diferenciar homens e mulhe-res. Sendo o homem o ser pensante, cabe a ele o trabalho, o comando. Sendo a mulher “menos intelectual”, cabe-lhe a função de subalterna, pensamento secular que permanece enraizado na cultura e sociedade do século XXI. Isso leva-nos a pensar que a escola, centro do saber, da intelectualidade, se coloca à margem de uma cultura da igualdade que vai aos poucos ganhando corpo por meio dos movimentos sociais.

Segundo Louro,

Na contemporaneidade, “novas” identidades cul-turais obrigam a reconhecer que a cultura, lon-ge de ser homogênea e monolítica, é complexa, múltipla, desarmoniosa, descontínua. Um novo movimento político e teórico se pôs em ação, nas últimas décadas, e nele as noções de centro, de margem e de fronteira passaram a ser questiona-das (2002, p. 1).

Ao situarmos a escola como espaço de valorização do saber, da diversidade e convivência diária com o diferente, dada à heterogenei-dade dos sujeitos que a frequentam, identificamos que traços culturais, neste caso as relações de gênero no que tange à diferença entre homens e mulheres, ainda estão enraizados na cultura escolar. No entanto, dadas as mudanças em andamento por consequência dos movimentos de luta e valorização da equidade de gênero, esse comportamento de distinção entre os sexos quanto à igualdade precisa ser questionado e ultrapassa-do para que os sujeitos da escola possam levar essa ideia à família e à sociedade, o que pode contribuir para uma efetiva mudança quanto à

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igualdade, que não distingue os homens pela capacidade e as mulheres pela subalternidade.

De acordo com Miguel e Grossi,

A categoria “processo de mudança” [...] parece mais adequada para pensar o momento pelo qual estão passando homens e mulheres em suas re-lações e constituições de processos identitários. Ao pensar nas relações de gênero e no processo de constituição de identidade masculina, torna-se inevitável abordar a temática da dominação mas-culina e a consequentemente subordinação femi-nina. [...] Nestes novos modelos seria valorizada a inteligência, a sensibilidade e a capacidade de lidar com novas tecnologias (MIGUEL, GROSSI, 1995, p. 29).

Por isso a importância que atribuímos à escola como espaço de informação e formação de sujeitos. Se essa instituição situar em seu currículo os movimentos de mudanças de comportamentos e valores encontrados em outras instâncias sociais, no sentido da igualdade entre masculino e feminino, talvez os processos educativos possam contri-buir para a formação de sujeitos conscientes de que não existe supe-rioridade do homem sobre a mulher, mas que há sujeitos capazes em direitos e deveres. Para Miguel e Grossi, “O gênero se constitui em cada ato da nossa vida, seja no plano das ideias seja no plano das ações. O tempo inteiro a gente está constituindo o gênero no nosso próprio coti-diano” (1995, p. 9). Se pensarmos sob a perspectiva da constituição de uma identidade masculina e outra feminina no sentido da superioridade de um sobre o outro, tendemos a manter hierarquicamente ações prio-ritárias ao sexo masculino, como sendo aquele que precisa de força, de comportamento machista.

O importante a ser observado nessa questão não é somente o que está presente no cotidiano escolar e sim o que está escrito nos documen-tos e nas ações dos responsáveis pelos processos educativos, seja nas

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funções burocráticas ou nas pedagógicas. Na sala de aula identificam-se comportamentos diferenciados, o problema está no fato de que o con-texto administrativo da escola não consegue gerir essa mudança porque não está preparado para o diferente. E isso se observa nas percepções das entrevistadas, citando como exemplo as palavras da orientadora “D”, quando ressalta a visibilidade das mudanças entre os alunos e mes-mo entre professores e em alguns casos nas famílias dos alunos. São homens sensíveis, pais diferentes do modelo tradicional, de provedor pecuniário, homens desempregados, mães que assumem a família em todos os aspectos. No contexto dos alunos, segundo essa orientadora:

[...] hoje a gente não vê mais isso, até a gente acha difícil ou incomum uma criança chegar e dizer que não quero rosa, antes a gente ouvia muito isso, é coisa de menina, é azul e de menino e hoje não, eles se sentem bem mais livres para fazer suas escolhas e tanto meninos quanto as meninas brincam. Mas essa separação graças a Deus esse muro está caindo (ORIENTADORA “D”).

Essa orientadora, ao expressar sua compreensão do espaço es-colar e das atitudes constantes no cotidiano dos alunos, revela que as mudanças são possíveis, estão ali, na sala de aula, no recreio, nas famí-lias, na comunidade de entorno. Seus reflexos são sentidos na escola, mesmo que não seja na totalidade, mas encontramos uma percepção que identifica modificações quanto às questões das cores, por exemplo, como diferencial do sexo dos alunos, o que representa uma descons-trução de representações historicamente construídas para cada gênero. Durante muito tempo a cor marcou e dividiu os universos feminino e masculino, sendo o rosa emblemático para a identificação feminina. Em sua percepção, a orientadora “D” demonstra, por meio de sua ex-periência profissional, que já consegue identificar pequenas mudanças de comportamentos nos alunos em questões que socialmente definem meninos e meninas, segundo padrões reforçados pela sociedade, pela família e a própria escola.

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Se há mudança em relação os alunos, no que diz respeito os pro-fessoes não se pode afirmar o mesmo. Nos relatos das orientadoras foi observado que os professores se eximem dessas discussões por não se sentirem preparados para abordar relações de gênero e sexualidade na sala de aula. Também não se sentem à vontade em conversar sobre homossexualidade, diferenças, aceitação de outra, embora as escolas contem com profissionais da educação cuja opção sexual é a homosse-xualidade.

A escola, espaço de socialização de sujeitos e do saber, por essa característica também se constitui lugar possível de manifestações, de-sejos e opiniões de alunos quanto a diferentes abordagens sobre uma variedade de temas. No caso do questionamento sobre essas situações, as respostas das entrevistadas revelaram uma constante de dúvidas em relação ao poder dado a professores e alunos. Isso foi situado na com-paração entre docentes e discentes, com a colocação de que os profes-sores, por serem adultos e qualificados, conseguem com mais facilidade espaços para exporem opiniões e sugestões os colegas e gestores. Nesse sentido, situam-se nas percepções das entrevistadas certos privilégios para a exposição de opiniões, mas pouco se fala de gênero e sexualida-de, também não se concretiza uma proposta para que professores e alu-nos construam ações e reflexões sobre essa temática, mesmo reconhe-cendo que isso esteja presente no cotidiano dos espaços educacionais.

Em duas das escolas pesquisadas, por exemplo, conforme de-poimento das respectivas orientadoras, praticamente inexiste abertura os alunos para questionamentos, discussões, exposição de dúvidas ou certezas sobre sexualidade. Isso se deve, conforme nossa análise basea-da nos estudos efetuados para esta dissertação, no receio dos docentes, orientadores, gestores em discutir situações sobre as quais não se sen-tem seguros. Daí nos reportarmos aos estudos de Britzman (2000) sobre as questões que envolvem a sexualidade e a proposta da autora de um trabalho que permita aos sujeitos da escola entenderem que a sexualida-de é inerente ao ser humano, negá-la constitui uma forma de negar a si e ao outro. Para que isso seja superado, dentre outras questões relaciona-

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das, destacamos com a autora que trabalhar essa temática requer muito mais do/a professor/a do que tem sido desenvolvido nas escolas e exige desde o reconhecimento da proposta da escola até a compreensão de si e do que se entende por sexualidade:

O modelo de educação sexual aqui proposto exi-ge muito das professoras e dos professores. Em primeiro lugar, elas e eles devem estar dispostos a estudar a postura de suas escolas e a ver como essa postura pode impedir ou tornar possíveis di-álogos com outros professores e com estudantes. As professoras precisam perguntar como seu con-teúdo pedagógico afeta a curiosidade do/a estu-dante e suas relações com os/as estudantes. Elas devem estar preparadas para serem incertas em suas explorações e ter oportunidades para explo-rar a extensão e os surpreendentes sintomas de sua própria ansiedade [...] deve também haver uma disposição de parte das professoras para desen-volver sua própria coragem política, numa época em que pode não ser tão popular levantar questões sobre o cambiante conhecimento da sexualidade [...] (BRITZMAN, 2000, p. 80).

Observa-se, no modelo proposto à tarefa básica dos professores para iniciar uma discussão sobre sexualidade e temas decorrentes, a im-portância em conhecer as diretrizes escolares, entender o discurso vei-culado por meio de documentos e o discurso verbal dos sujeitos que as-sumem funções além da sala de aula. Interessa saber que esses sujeitos refletem seu trabalho na prática pedagógica docente. Implica também em saber sobre o próprio trabalho, o discurso e conteúdo que domina e de que modo esse conhecimento pode ou não incitar a curiosidade dos alunos ou abrir espaço para que a diferença não seja alvo de críticas, de isolamento ou preconceito.

Cabe os docentes conhecerem a si para reconhecer o outro, seus desejos e anseios. Caso contrário, torna-se, ao nosso entender, inviável

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a discussão sobre sexualidade na sala de aula e a aceitação de que in-dependente de escolhas, todos são sujeitos de direitos. Não sendo desse modo, continuaremos a nos deparar com situações a exemplo das que trouxemos para esta discussão e tão arraigadas no contexto de pelo me-nos duas das escolas pesquisadas. A observância dessas questões po-derá, no entanto, oportunizar à escola o diálogo entre seus sujeitos e a efetivação da mesma como espaço democrático no qual todos possam expressar sua individualidade, questão abordada na sequência desta análise.

Conforme observado na leitura das falas das orientadoras edu-cacionais pesquisadas, a escola é percebida como local de formação e informações, sendo de certo modo reconhecida como importante ins-tituição para a ocorrência de movimentos em favor de mudanças so-ciais, dentre elas a diminuição de discriminações, de diferenças e de preconceitos. Isso nos remete ao pensamento de Aquino ao destacar que “[...] sem escola não há cidadania sustentável, nem há desenvol-vimento possível: não há transformabilidade nem social nem humana” (1998, p. 140). Isso significa entender que os espaços educacionais de-vam promover participações ativas e democráticas em questões diárias de professores, alunos, gestores e demais profissionais envolvidos no processo educacional. No entanto, quando se trata dos alunos, a obser-vação da orientadora “C” revela que

Ao aluno é mais restrito. Enquanto o aluno e professor, a gente ainda não tem esse preparo de receber do aluno crítica. Quando o aluno coloca para a gente a opinião dele e essa opinião vem contrária daquilo que a gente pensa, aí tem as suas restrições.

Essa ideia é contundente na fala da orientadora “D”: “[...] efe-tivamente não professora [...]. A gente ainda não abre espaço para os alunos”.

Na escola da orientadora “B”, observa-se o discurso da participa-

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ção de todos, ou seja: “[...] eu vejo que na nossa escola as crianças têm bastante espaço, bastante abertura para falar, opinar e colaborar com sugestões, inclusive de algumas coisas de diferente para acontecer na escola”. Situação semelhante ocorre na escola em que trabalha a orien-tadora “A”, segundo a qual nesse espaço educacional.

Os alunos são ouvidos quando nós fazemos o per-fil do professor. Então cada turma tem quatro re-presentantes, esses do sexo masculino e feminino, e colocam suas angústias sobre comportamentos, questão da metodologia utilizada pelos professo-res e também dos comportamentos dos demais colegas. [...] e no dia a dia o espaço utilizado para ouvir os alunos é a sala da gestora, as mães cos-tumam dizer que têm que pegar fichas porque as crianças têm essa liberdade para vir conversar, para colocar as informações né, e até as angústias, conflitos que tenham ocorrido ou passado por eles em sala de aula.

Uma análise das colocações das entrevistadas indica que a escola ainda permanece espaço contraditório e dividido quanto às questões de gênero em relação à possibilidade de abertura para o diálogo às diferen-ças quando se trata dos alunos.

Na pesquisa, nos deparamos com duas escolas nas quais os alu-nos não possuem praticamente o direito de expor suas ideias e suges-tões quanto às atividades e propostas de ações cotidianas. Nesses espa-ços, as discussões sobre gênero e sexualidade são silenciadas, negadas os alunos. Em duas das escolas pesquisadas encontramos possibilidades e até situações concretas de abertura à discussão tanto para professores quanto para alunos no planejamento e sugestões de atividades a serem desenvolvidas durante o ano letivo.

Na reflexão sobre essas colocações, buscamos em Louro (1997) uma possível definição para o que ocorre nas escolas que tanto pode ser indicativo de mudanças para o combate à discriminação, às diferenças

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quanto pode ser a revelação da permanência de ideologias historica-mente enraizadas na sociedade que distinguem masculino e feminino conforme padrões construídos sob a vigência de uma concepção pa-triarcal de mundo. Para essa autora, “[...] Na medida em que a escola se compromete em termos de conhecimentos e amplia os horizontes inte-lectuais numa perspectiva honesta, ela não tolhe as possibilidades de a pessoa desenvolver a consciência crítica, mesmo que ela não trabalhe em cima disso” (1997, p. 74). No entanto, ao analisar a escola do modo como se apresenta, para a autora,

Não há dúvidas de que o que está sendo proposto, objetiva e explicitamente, pela instituição escolar, é a constituição de sujeitos masculinos e femi-ninos heterossexuais - nos padrões da sociedade em que a escola se inscreve. Mas, a própria ên-fase no caráter heterossexual poderia nos levar a questionar a sua pretendida “naturalidade”. Ora, se a identidade heterossexual fosse, efetivamen-te, natural (e, em contrapartida, a identidade ho-mossexual fosse ilegítima, artificial, não natural), por que haveria a necessidade de tanto empenho para garanti-la? Por que “vigiar” para que os alu-nos e alunas não “resvalem” para uma “identida-de desviante”? Por outro lado, se admitimos que todas as formas de sexualidade são construídas, que todas são legítimas mas também frágeis, tal-vez possamos compreender melhor o fato de que diferentes sujeitos, homens e mulheres, vivam de vários modos seus prazeres e desejos (LOURO, 1997, p. 81-82)

O observado é o fato de que a escola repassa em suas práticas e discursos quanto à sexualidade a ideologia de relacionamentos heteros-sexuais. Essa constatação se deu também ao analisarmos o discurso das orientadoras escolares, percepção que revela não somente um pensa-mento próprio, mas que se aplica a outros sujeitos e contextos escolares. Ao mesmo tempo em que se diz reconhecer a existência da diversidade,

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também se condiciona comportamentos a um padrão. Ainda são poucos os professores que reconhecem, e às vezes com insegurança, que não há um único modo de viver a sexualidade - homem e mulher - e que ser homossexual não significa ser degenerado, condenável.

Nossa análise nos permite afirmar que as escolas apresentam ainda um discurso retrógrado, centrado na imagem dos alunos sob a perspectiva do problema quando se trata da sexualidade fora do padrão preestabelecido, das dificuldades proibitórias, de seu sucesso no traba-lho. Em muitas ocasiões, acaba-se frustrando o aluno e impedindo-o de desenvolver opinião crítica. Isso pode oportunizar a formação de futuro cidadãos em gerações robotizadas, frutos de uma sociedade de supremacia do poder. Conforme o depoimento da orientadora “B”, sua escola trabalha de forma a valorizar os desejos e anseios dos alunos, permitindo espaços para a participação da comunidade escolar nessa rotina. Para Madureira,

É no espaço aberto pelas contradições que pode-mos vislumbrar o caráter dinâmico das institui-ções escolares e, em um sentido mais amplo, da própria sociedade. A prática reflexiva se desenvol-ve a partir do confronto com a realidade concreta e contraditória das instituições e não no interior de instituições idealizadas, fora do tempo e do espa-ço (MADUREIRA, 2007, p. 92).

Nesse sentido, o reconhecimento de uma escola democrática vem ao encontro da necessidade de mudanças de comportamentos, práticas e atitudes que são urgentemente vistas como imprescindíveis por profes-sores, alunos e demais profissionais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, caracterizando mais um dos desafios das instituições educacionais.

As participantes da pesquisa realizada situaram algumas evidên-cias sobre a escola que apontam para os desafios a serem superados por seus sujeitos. Para a orientadora “D”, “[...] na escola a gente fala tanto

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em avanços e ainda não mudou nada, parece que a escola está parada, ela não consegue avançar junto com as crianças, até mesmo pela tec-nologia que oferece hoje ao aluno o desenvolvimento, e ele é proibido de usar na escola”. Na continuidade de sua fala observa-se que “[...] o mundo avançou e a escola não consegue avançar, de repente porque continuamos ainda no quadro e giz e o caderno, porque é mais fácil, não gera polêmica, não preciso me preparar muito”.

O pensamento da orientadora “A” situa a escola em um momento de mudança que pode ser tanto a perspectiva de um futuro diferencia-do quanto a permanência das condições encontradas no espaço escolar neste início de milênio.

A educação passa por um momento que está no pico da coisa, ou acontece uma coisa muito séria, uma revolução, e as coisas voltam realmente a ca-minhar, ou vamos entrar em um caminho que re-almente nós vamos evidenciar a falência. [...] vai ter que ter mudança não sei de que forma ou se os governantes vão ter um olhar mais diferenciado. O que a gente percebe é que antes os problemas mais graves eram lá no ensino médio, e agora a gente tem lá na educação infantil [...] (ORIENTA-DORA “A”).

Essas percepções são representativas de discursos constantes de professores que estão nas salas de aula e sentem insegurança, dificulda-de e estranhamento com o novo, ou, nas palavras de Teixeira e Pádua, “[...] até com a presença nas escolas de indivíduos e grupos que buscam maximizar seus interesses e valores e acabando por impedir de maneira irresponsável, as mudanças necessárias às novas demandas nas esco-las” (2009, p. 156). Apesar de todas as conquistas sobre aprendizagem, diversidade e tecnologia, para citar alguns exemplos, observamos que a escola precisa enfrentar grandes desafios para que ocorra mudança significativa em seus espaços e diminuam as situações e práticas de discriminação e preconceito.

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Considerações finais

Os dados alcançados sobre as percepções das orientadoras educa-cionais sobre as discussões sobre questões de gênero e sexualidade nas escolas direcionam à necessidade de mais estudos desde a sala de aula até a formação continuada de professores, envolvendo toda a sociedade e o Estado para que possamos repensar posicionamentos quanto ao eu e ao/à outro/a. Isso poderá nos levar a uma reconstrução de conceitos próprios e coletivos para que cada um de nós, educadores, possamos trabalhar com nossos alunos as questões de gênero e orientá-los sobre o valor do sujeito como ele é e não como desejamos que seja. Precisamos entender e nos fazer entender que o modo como percebemos o mundo é orientado por conceitos e preconceitos históricos que tendemos a per-petuar quando não aceitamos a diferença.

A leitura das vozes, gestos, atitudes, olhares permitiu identificar como as temáticas relativas a gênero ainda incomodam, desestruturam e desestabilizam os sujeitos que trabalham nas escolas. A instituição escolar continua a refletir e a reproduzir sujeitos sociais que pregam conceitos sob uma perspectiva de normalidade reconhecida pelas orien-tadoras como ideia/pensamento/verdade ultrapassada. De certo modo, contrário a esse pensamento que se mantém a despeito das mudanças sociais, reconhecemos nas orientadoras a necessidade de modificar o conceito de sociedade formada por homens e mulheres e que a cada um cabe um determinado comportamento. Observamos a consciência de seguir em direção à convivência com a diferença que faz de cada sujeito um ser único e com direitos iguais aos de todos.

Desse modo, considera-se o compromisso da escola para a di-minuição de preconceitos e discriminações. Isso implica em modificar a condição dos profissionais da educação em conflito entre a dinâmica apresentada e trabalhada nas escolas e a necessidade de sair da aco-modação e buscar auxílio nas instituições formadoras que promovam reflexões e discussões que dêem suporte ao trabalho em sala de aula para o combate à homofobia, ao sexismo, ao racismo etc.

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A mudança, no entanto, não se dará somente a partir do sujeito que está em sala de aula como mediador de saberes, ela precisa ser inscrita legal e teoricamente nos documentos escolares, nos projetos do Estado e na legislação que rege a educação no Brasil.

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Historicidade e bases fundantes da Escola Municipal de Educação Básica mutirão – Lages (sc) - 1981-1996

Elisete Lemos Machado10

Marilu Diez Lisboa11

Início da Conversa

Este capítulo aborda estudo realizado para obtenção do título de mestre, no Programa de Pós-graduação stricto sensu em Educação (PPGE) da Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC), no pe-ríodo entre 2012 – 2014, de autoria de Elisete Lemos Machado, sob a orientação da Prof. Dra. Marilu Diez Lisboa.

O interesse que gerou sua realização surgiu do desejo em refletir sobre as práticas pedagógicas adotadas desde a criação da Escola Mu-nicipal de Educação Básica Mutirão (EMEB), fundada em 1981, que se estenderam, mesmo que incluindo mudanças, até 1996.

O Bairro Habitação e a EMEB Mutirão surgiram em um contex-10 Mestre em Educação pela Universidade do planalto Catarinense - PPGE - UNIPLAC 2014.11 Professora Dra. Educação na Universidade do Planalto Catarinense - PPGE-UNIPLAC

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to histórico situado sob o regime ditatorial militar que se instaurou na década de 1960, no Brasil e em outros países da América do Sul, carac-terizado por lutas de classes e movimentos sociais. Na cidade de Lages, esses movimentos foram marcados de forma contundente, principal-mente no final da década de 1970 até o final desse período histórico, quando da democratização do Brasil.

A autora deste estudo elegeu seu projeto de pesquisa a partir de sua trajetória profissional e pessoal, visto suas vivências e de sua família como cidadãos construtores do bairro onde a escola pesquisada se situa – Bairro Habitação - e sua experiência como professora, por 29 anos, no Sistema Municipal de Educação, antiga Rede Municipal de Ensino, sendo professora alfabetizadora por 14 anos consecutivos na EMEB Mutirão. Após esse período exerceu funções administrativas nessa escola, como: secretária, diretora auxiliar e gestora do Centro de Educação Infantil Municipal Mutirão (CEIM).

O valor que a EMEB Mutirão possuía, à época de sua concepção e implantação era incomum para aquela comunidade, devido aos seus fortes vínculos - comunidade e escola – em razão à forma como ambas se constituíam. Os pais de alunos não mediam esforços para contri-buírem com a escola, participando junto à diretora e o corpo docente, colaborando e tomando decisões no que dizia respeito à melhoria da qualidade do ensino e ao patrimônio da escola. Comunidade e EMEB entendiam o significado da união de esforços na construção do contexto comunitário e da educação, presente como formal – escolar – e não formal. “A participação na escola gera aprendizado político para a par-ticipação na sociedade em geral” (GOHN, 2011, p. 347).

Por meio da análise documental foi possível observar que se ins-tituiu à época uma ação mais efetiva da sociedade, na luta por espaços de participações nas decisões do bairro e da escola, vinculada a um mo-vimento que ocorria na comunidade lageana, propiciada por iniciativa do governo municipal da época.

Nesse cenário, fica claro que a EMEB Mutirão foi instituída na

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comunidade a partir de práticas pedagógicas inovadoras, com a partici-pação e colaboração da população do bairro, tendo em vista o sentimen-to de pertencimento da comunidade que à época lá vivia.

Enquanto moradora do bairro desde a infância, essa pesquisa-dora se preocupava com o fenômeno social de empobrecimento da sua população, vítima de um modelo de sociedade desigual e injusta, ao mesmo tempo em que observava tratar-se de um grupo movido pelo desejo de ter melhores condições financeiras e sociais, com o qual se identificava. E por acreditar que o ser humano é capaz de transformar a realidade, comunga com Freire (1986, p.4) quando afirma que “O papel do trabalhador professor/cidadão se dá no processo de mudança em si, mas num domínio mais amplo. Domínio do qual a mudança é uma das dimensões”. Para esse autor não podemos ficar na ignorância e no co-modismo, pois é necessário sair e mostrar que há condições e força. Se somos marginalizados por um Estado que oprime, há também muitas pessoas dentro deste contexto que pensam e agem, pois “Mudança e estabilidade resultam ambas da ação, do trabalho que o homem/sujeito exerce sobre o mundo [...] ao responder os desafios [...] cria se um mun-do: o mundo histórico-cultural” (FREIRE, 1986, p.46).

Acreditando e tendo vivenciado práticas pedagógicas baseadas na Pedagogia Problematizadora de Paulo Freire, a pesquisadora op-tou por reavivá-las nas discussões fundamentadas cientificamente, por meio do presente estudo, visando uma avaliação mais profunda, tanto no passado quanto no presente, quanto às práticas adotadas no projeto pedagógico da EMEB Mutirão. Esse reavivar significa fundamental-mente contribuir com a comunidade do Bairro Habitação e da EMEB Mutirão, no sentido de abrir caminhos para outros pesquisadores que se disponham a investigar o mesmo objeto de estudo, propiciando a possibilidade de renovação permanente das práticas pedagógicas ali desenvolvidas.

Este estudo teve como objetivo geral resgatar as práticas pedagó-gicas desenvolvidas entre 1981 e 1996 na EMEB Mutirão, fundadas na

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Prática Educativa Libertadora de Paulo Freire, no sentido de comprovar cientificamente sua proposta teórica colocada em prática na concepção dessa escola, com base na participação comunitária.

E como objetivos específicos:1. Investigar qual(is) a(s) origem(ens) determinante(s) para a

implantação das práticas pedagógicas na escola Mutirão.2. Resgatar a possível relação entre as práticas pedagógicas ado-

tadas pela EMEB Mutirão e as práticas de participação co-munitária, ambas exercidas pela população de moradores do Bairro Habitação, no período entre 1981 e 1996.

3. Levantar se houve e quais referenciais teóricos e legais que serviram como base para as práticas pedagógicas instituídas no período estudado.

Este capítulo está estruturado em quatro momentos: o primeiro, expondo brevemente fundamentos teórico-metodológicos utilizados para desenvolver o estudo; o segundo, trazendo um breve histórico do Bairro Habitação e da EMEB Mutirão; o terceiro momento apresentan-do os referenciais teóricos fundantes das práticas pedagógicas institu-ídas na EMEB Mutirão - entre 1981 e 1996; e como quarto momento, serão expostas as considerações finais.

Fundamentos Teórico-Metodológicos

O presente estudo parte do levantamento de documentos con-cernentes à trajetória histórica, desde a construção do prédio da EMEB Mutirão, quando da constituição do Bairro Habitação, buscando nas fontes documentais dados reveladores que legitimam a importância do estudo da História no campo da Educação.

No passado, a linha epistemológica positivista, que dominava as ciências sociais, dividia a teoria da prática, e o sujeito do objeto, para que o pesquisador mantivesse uma neutralidade em relação à pesquisa. No presente, o pesquisador em ciências sociais não mais necessita estar

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afastado do objeto de pesquisa, pode interagir como sujeito, pois sabe-se que muitas vezes ele é parte integrante do seu objeto, como é o caso do presente estudo.

[...] tanto a pesquisa-ação quanto a pesquisa in-tervenção articulam pesquisador e campo de pes-quisa, porém quer-se apresentar esta última como uma variação significativa, ainda que sutil, do projeto político que ensejou a formulação dessas duas novas estratégias de investigação participa-tiva. E é no contexto do projeto em que se insere a pesquisa-intervenção que a análise de implica-ção merece ser destacada. [...] (PAULON, 2005, p. 17-18).

Para a autora, o pesquisador pode tomar posse dessas duas estra-tégias, tanto da pesquisa-ação como da pesquisa-intervenção, sabendo que ele não é neutro, pois está inserido no contexto de sua pesquisa. As-sim ocorreu ao realizar-se a pesquisa no Bairro Habitação e na EMEB Mutirão. Esta está centrada na área da História e Educação, sendo tam-bém fundamentada no campo da Sociologia, restrita a um recorte tem-poral, desde o momento histórico em que o município de Lages passa a ser governado por uma administração inovadora, que trouxe como polí-tica a participação do povo na gestão, que recebeu como denominação o slogan “A Força do Povo”.

Para Alves (1988) a auto-organização popular é o fundamento dessa prática administrativa, social e política. Ela reverte o centro das decisões: “não são burocratas mordômicos que decidem à revelia do povo o que é melhor para a coletividade, mas é o povo organizado que ‘toma a apalavra’ através do trabalho de suas associações” (1988 p.8).

Cabe aqui inserir o conceito de implicação, uma vez que a autora do projeto desta pesquisa fez parte da construção do bairro, em modo de mutirão, e da EMEB estudada. Este conceito se expressa como en-gajamento pessoal e coletivo tendo em vista o contexto, a história fami-liar, o pertencimento, entre outros fatores. Os processos de implicação

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envolvem cinco diferentes instâncias: desejo, vontade, decisão, ação e mediação (BARBIER, 1985).

No presente caso, ao pesquisar historicamente o Bairro Habita-ção e a EMEB Mutirão, efetivou-se um processo de unir teoria e práti-ca, considerando que o objeto de pesquisa fez parte da trajetória de uma comunidade contextualizada em um momento histórico e da história de vida da autora/pesquisadora. Inclui, portanto, um envolvimento genuí-no com a temática que poderá se tornar num caminho para ações futuras em prol da comunidade e da escola estudada.

A pesquisa documental, aqui adotada, centra-se na leitura e aná-lise de documentos sobre fatos históricos.

Segundo Gil:

A pesquisa documental é muito semelhante com a bibliográfica. Algumas diferenças, contudo, podem ser assinaladas: a pesquisa bibliográfica costuma ser desenvolvida como parte de uma pesquisa mais ampla, visando identificar o co-nhecimento disponível sobre o assunto [...] Já a pesquisa documental, de modo geral, constitui um fim em si mesma, com objetivos bem específicos, que envolvem muitas vezes testes de hipóteses (GIL,2002, p. 87- 88).

A comprovação científica pela pesquisa documental traz indica-ções de posturas e práticas adotadas, bem como de concepções, repor-tando ao passado histórico de lutas que se traduziram pela via do inte-lectual e dos movimentos sociais.

Os dados desta pesquisa foram levantados por via de documen-tos, tais como: fotos, plantas baixas, atas, depoimentos recebidos por correio eletrônico, jornais, editais, portarias, pareceres, bem como ou-tros documentos que validaram a fala da pesquisadora. Esses dados fo-ram analisados por meio de análise de conteúdo, utilizando categoriza-ção, proposta por Laurence Bardin (1977).

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No sentido de clarear o entendimento sobre as categorias encon-tradas foram elaborados quadros explicativos.

Breve Histórico do Bairro Habitação e da Emeb Mutirão

A criação da EMEB Mutirão foi concebida para atender as ne-cessidades de saber elaborado, pois o aprendizado das experiências de vida não eram suficientes para a formação dos sujeitos na comunidade do Bairro Habitação. Pode-se afirmar que o aprendizado que se dá nos bancos escolares é precedido pelo processo de socialização, desde os primeiros contatos do sujeito com o mundo. Assim, os movimentos or-ganizados nas relações sociais que o homem estabelece se constituem como uma das formas de aprendizagem, entre os demais que fazem parte do cotidiano, mas não dispensando a educação formal.

Na educação formal sabemos que os educadores são fundamentalmente os professores, embora as ações de todos (as) os (as) profissionais que atuam na escola têm caráter educativo por seu sentido e significado. Na educação não formal, há a figu-ra do educador social mas o grande educador é o “outro”, aquele com quem interagimos ou nos in-tegramos. Na educação informal, os agentes edu-cadores são os pais, a família em geral, os amigos, os vizinhos, colegas de escola, a igreja paroquial, os meios de comunicação de massa etc. (GOHN, 2010, p. 16-17).

O ser humano constrói seu processo de conhecimento, e se de-senvolve, na troca contínua com seus pares. A escola é um espaço onde ele recebe o conhecimento de maneira brevemente elaborado, porém é nas demais relações sociais que o homem se constitui como sujeito, reconhecendo e transformando a sua realidade.

A história aqui contada, vivida por grande parte dos moradores

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que no presente residem no Bairro Habitação, tem valor singular. Mo-ram no bairro muitas pessoas que lá nasceram e cresceram e, hoje adul-tos, fazem-se presentes em quase todos os setores da cidade de Lages e arredores – indústria - comércio etc. Alguns são professores na rede municipal e estadual de ensino, inclusive na EMEB Mutirão e no Cen-tro de Educação Infantil Mutirão (CEIM).

A construção do Bairro Habitação foi realizada em mutirão pela comunidade local e a mesma prática foi adotada na construção da Escola. Essa ação foi orquestrada pela administração pública municipal, que cha-mou o povo para participar e apontar as necessidades e alternativas que poderiam ser implantadas para o desenvolvimento da cidade e do bairro. Segundo Neto (2002) o Grupo Escolar Municipal Mutirão (GEM Muti-rão), assim chamada à época, foi construída de forma diferenciada das demais, sendo instituída em 1981, pela administração Dirceu Carneiro12, e logo tornando-se referência na rede municipal e no Brasil.

Foi nas obras do Mutirão que vi pela primeira vez [...] a construção da escola comunitária, que tem um lindo desenho em rosácea e pode ser ergui-da por módulos de salas com capacidade para 40 alunos cada uma, à medida que as necessidades surgirem (ALVES 1988, p. 57).

Nesta linha de pensamento, a autora afirma, ainda, que na década de 1980, Lages foi palco de uma administração diferente, que contra-punha a ordem estabelecida pela ditadura militar, tendo como filosofia o compartilhamento de sonhos, ideias e projetos, e dando ao povo o direito de opinar e decidir.

Tanto o bairro como a escola, em sua fase inicial estavam inseri-dos em uma política pública de ação comunitária implantada pela admi-nistração local da época. As casas dos moradores, assim como a escola, foram construídas com ajuda mútua entre os seus habitantes moradores e a comunidade de Lages.

12 Dirceu Carneiro. Prefeito de Lages(SC) no período entre os anos de 1977 a 1982

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A ação comunitária ali empreendida criou laços fortes de amiza-de, respeito e solidariedade entre os primeiros moradores e, posterior-mente, junto aos demais que ali iam chegando de diversos locais. Mui-tos vieram do interior do Município, resultado do êxodo rural, e outros de bairros mais distantes, que então se expandiam na periferia de Lages.

Esses laços fortes constituíram uma marca registrada do bairro, que se tornou conhecida na Serra Catarinense, pois deram ao bairro – e por extensão à escola – uma identidade ímpar, pelo fato de se fundirem nas atividades, necessidades e interesses comunitários. Se por um lado os alunos eram as crianças do bairro, por outro a escola era dirigida e movimentada pelos próprios moradores, que atuavam como seus me-rendeiros, serventes e fiscais.

O motivo de sua construção foi o grande número de crianças existentes na comunidade, sendo que o bairro não dispunha de uma uni-dade escolar própria para atender às crianças, filhas de famílias de baixa renda. Assim, bairro e escola nasceram juntos e interligados, sendo a história de uma, parte da história do outro.

O que chamava atenção era a originalidade do projeto e como foi idealizado para ser desenvolvido pelo próprio povo. Anos depois, viu-se como o bairro cresceu, acompanhando o desenvolvimento da cidade, ao mesmo tempo em que a escola foi ampliada para atender agora não só ao Bairro como, também, às crianças da redondeza.

A motivação da equipe que gerenciava a prefeitura, particular-mente na gestão Dirceu Carneiro, era de atuar de modo novo, partici-pativo, antecipando-se em grupo na descoberta de projetos pioneiros, analisando e procurando implementar esses projetos [...] “gerando um fenômeno-referência em gestão municipal”. Neto13 (2013, p. 2) descreve que houve um interesse nacional em conhecer os projetos lageanos por parte de muitos técnicos, políticos e estudiosos de todo o país.

Essa realidade de envolvimento coletivo no bairro evocou o sen-timento de inclusão na comunidade, na medida do pertencimento dos

13 Manuel Nunes da Silva Neto. Secretário Municipal de Educação de 1973 a 1982, Lages - SC

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habitantes à igreja, à escola, à associação de moradores, à escola de samba e ao time de futebol.

Assim também ocorreu com a educação. A necessidade da cons-trução de uma escola foi decidida por unanimidade. O novo bairro não poderia receber os moradores sem garantir às crianças um lugar para estudar. Então deu-se início a história peculiar do GEM Mutirão.

O projeto arquitetônico foi concebido pelo arquiteto Gonçalo Guimarães14 tendo as salas de aula em forma de trapézios e hexágonos que formavam como que o miolo de uma flor, sendo que o hexágono maior simbolizava o caule. Um espaço que fugia ao tradicional e, por-tanto, ao conceber essa forma de construção rompia-se não só com o espaço físico tradicional, de salas uma do lado da outra em um longo corredor, mas principalmente se criava um contexto para uma nova prá-tica pedagógica. “A tradição pedagógica insiste ainda hoje em limitar o pedagógico à sala de aula, à relação professor – aluno, educador – educando, ao diálogo singular ou plural entre duas ou várias pessoas.” (FREIRE, 2005, p.11).

Segundo Alves (1988), as paredes foram erguidas com restos de tijolos e barro foi utilizado como argamassa. As paredes das salas/am-bientes eram salpicadas, sem reboco, e o piso era de lajota (uma espécie de telha). Participavam do mutirão mulheres, homens e crianças, toda a comunidade, inclusive os futuros professores, que na oportunidade já haviam sido contratados pela prefeitura.

O espaço, concebido conforme descrito acima favorecia a intera-ção, possibilitando o encontro de alunos e professores no pátio, ou seja, no miolo da flor. As edificações harmônicas dos ambientes como eram chamadas as salas de aula, tornavam o pátio extensão das salas, onde muitas vezes aconteciam as rodas de discussão dos temas geradores.

O mobiliário foi pensado no sentido de tornar as salas um espaço democrático, ou seja, não havia carteiras enfileiradas, o que remete ao individualismo. Existiam mesas coletivas que reuniam em torno de oito

14 Gonçalo Guimarães - Arquiteto da cidade do Rio de Janeiro, fez a planta do GEM Mutirão em forma de flor no ano de 1979.

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crianças. A disciplina era vista com outro olhar, não havia silêncio abso-luto, mas um murmúrio de troca. O professor era provocado a variar as atividades e o ambiente era propício para o trabalho em equipe.

Queríamos uma escola libertária, desde a planta baixa até suas práticas e relações no seu interior. Extremamente, não havia cerca, nem muros, sepa-rando a escola da comunidade, de modo a permitir a maior integração das crianças com suas casas e das famílias de moradores com a escola. [...] A população circularia livremente entre as salas. A escola deveria ser referência da comunidade (NETO, 1996, p. 4).

Segundo Neto (1996), a escola não deveria estar separada da co-munidade e um muro no seu entorno representaria uma “prisão”, uma barreira física que isolaria a comunidade da escola e vice-versa. Na fala de Neto fica claro que a escola deveria ser aberta, mantendo total integração com a comunidade. O Grupo Escolar Municipal (GEM) Mu-tirão, à época de sua construção, apresentava todas essas característica e fazia parte, efetivamente, da vida comunitária.

A comunidade havia conquistado poder de decisão e ação. As lideranças mobilizaram os moradores, que junto com funcionários da prefeitura deram início às obras em regime de mutirão, utilizando restos de demolições e materiais de construção, fruto de doações da sociedade lageana. O GEM Mutirão foi construído para ser diferente desde sua planta baixa até o saber elaborado.

Por meio do projeto pedagógico intitulado “escola aberta” foi constituída uma prática diferente da escola tradicional. Esta partia da realidade do próprio aluno, já que nela a aprendizagem se dava a partir dos temas geradores até a construção coletiva do saber, agregando, pau-latinamente, saberes sistemáticos, sendo sua estrutura física decisiva para o alcance desses objetivos.

Em 18 de março de 1981 foi inaugurado no Bairro Habitação o

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Grupo Escolar Municipal Mutirão – GEM Mutirão –, segundo o De-creto 709 e código de criação 029.530. Na data de 21 de maio de 1981, por meio do decreto de número 745, foi instituído a pré-escola. Esta foi criada no sentido de atender à comunidade, em específico às mães que trabalhavam fora do lar. O horário integral permitiu a entrada das mães dos alunos no mercado de trabalho, pois os filhos seriam atendi-dos pela creche.

Locus pedagógico

Segundo documentos pesquisados, o GEM Mutirão teve o início de suas atividades pedagógicas com uma equipe dinâmica, porém com pouca experiência na área da educação, em virtude dos seus professo-res estarem iniciando suas carreiras no magistério. Havia uma unidade entre escola e poder público, pois muitas ações teriam que ser traba-lhadas entre essas duas esferas. O suporte da estrutura administrativa por parte da Secretaria da Educação e a estrutura didático-pedagógica assumida pelos professores e diretora da escola reforçaram a impor-tância das ações coletivas, “vistas como somatório de competência e atitudes, canalizadas para os objetivos da instituição como um todo” (COUTINHO s.d, p.1).

O GEM Mutirão, como toda instituição de ensino, no momento em que se iniciaram as atividades pedagógicas precisava formular suas prá-ticas, contemplado a participação da comunidade e dos alunos, tendo em vista a forma como a escola foi criada: no modelo de gestão democrática. Cabe salientar o que se entendeu como gestão democrática, partindo do que Gadotti postula: “um preceito constitucional” (2013, p. 1).

[...] em 1991 o documento da Proposta Curricular contém tema específico sobre PPP denominado: “Contribuição para um Plano político- Pedagógi-co Escolar” o qual refletia o processo de redemo-cratização política do País. [...] este fato mostrou

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uma antecipação na importância da elaboração dos PPP nas escolas, mesmo antes da obrigação por força da lei, que viria a ocorrer no ano de 1996 (GADOTTI, 2006 p. 37-39).

Faz-se importante evidenciar que, antes de se tornar lei, a de-mocracia participativa já estava sendo aplicada na cidade de Lages-SC pela administração pública, nos anos de 1970-1980.

As experiências que o sujeito/cidadão adquire na vida cotidiana e social colaboram para ele se transformar. Esta possibilidade de transfor-mação fica muito clara na Pedagogia Problematizadora de Paulo Freire, adotada como norte no GEM Mutirão.

Trazendo a discussão da Pedagogia Problematizadora de Paulo Freire, para se compreender os movimentos sociais ocorridos em La-ges, constata-se que, mesmo que articulados pelas políticas públicas do município foi a classe oprimida, sem trabalho, moradia e educação, que agiu com consciência e passou a buscar seus direitos, pois não basta essa condição ser oferecida uma vez que ela depende da ação da socie-dade para fazer o movimento de transformação.

Paulo Freire, em sua obra, entende que é a partir da história de vida do sujeito, inserido na sua cultura, que ele, juntamente com a es-cola, será capaz de fazer a mudança e as rupturas que ela pressupõe, saindo da ignorância, da alienação, e entender que ele é o transformador do seu meio.

Considerações finais

A análise documental realizada no presente estudo constituiu de-safio, visto que muitos documentos foram extraviados e, ainda, alguns registros sobre a construção do GEM Mutirão, bem como do Bairro Ha-bitação, mostraram-se controversos. Além disso, o material documental mostrou contradições em relação aos relatos orais, que não foram con-siderados para a presente pesquisa, mas ocorreram informalmente uma

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vez que a autora trabalhou como professora da escola durante 29 anos. Os registros encontrados mostram que a escola veio se redimen-

sionando ao longo do tempo, reformulando suas ações, contando com a participação da comunidade, de acordo com seus anseios e interesses pelos projetos de construção e melhorias, elaborados em conjunto. A investigação apurou que a gestão democrática esteve presente tanto nos princípios pedagógicos quanto nos preceitos da instituição educacional, não se restringindo apenas à escola, mas procurando atingir todos os níveis da comunidade e, indiretamente, do município de Lages.

Convém lembrar que gestão democrática escolar, em todas as instâncias, tem como princípio fundamental a organização dos proces-sos, fortalecendo seus espaços de participação, tanto os já instituídos como os que estão por se instituir. Desta forma pode-se compreender o envolvimento dos moradores no processo de constituição e manutenção tanto do Bairro Habitação como da EMEB Mutirão.

Visto que a escola estudada sempre foi campo de experimentos, a começar pelo layout do prédio, e principalmente pelas práticas peda-gógicas desenvolvidas desde sua concepção, cabe considerar uma ques-tão fundamental: na pesquisa documental, principalmente por meio das atas, ficou evidente que o auxílio financeiro provinha de diversas pro-moções organizadas pelos moradores do Bairro Habitação, juntamente com os funcionários do GEM Mutirão, sendo que a comunidade e polí-ticos locais se uniram em torno da realização de projetos estabelecidos pela escola e comunidade. Caracteriza-se aí um processo comunitário nitidamente democrático, participativo.

Baseadas nas experiências desenvolvidas pela comunidade e es-cola, que foram concebidas com base na Pedagogia Problematizadora de Paulo Freire, as práticas pedagógicas se fundamentaram na pedago-gia libertadora, tendo como princípio que os alunos interagissem direta-mente com a comunidade e os professores ministrassem suas aulas com os recursos oferecidos pelo meio.

Cabe salientar que as práticas desenvolvidas e articuladas entre

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o GEM Mutirão e a comunidade do Bairro Habitação demonstram as relações sociais assumidas pela ação dos homens, mulheres, jovens e crianças responsáveis pela transformação de si próprios e, consequen-temente, da sua realidade.

Nesta mesma direção, constata-se que o diretor e os professores participavam dos eventos realizados em períodos extraclasses, inclusi-ve em finais de semana à noite, para que a comunidade pudesse parti-cipar das práticas pedagógicas desenvolvidas na escola, a exemplo do retiro das mães, que acontecia todos os anos, assim como o retiro dos pais, entre tantas outras práticas. Os dados encontrados deixam muito claro que, além da educação formal, a informal estava presente. Assim, pode-se concluir que a escola era vista como um espaço comum a to-dos, sendo aberta para outros tipos de saberes, concebida e utilizada como um patrimônio comum a todos.

Quanto à tomada de decisões, fica claro na presente pesquisa que havia, à época, fácil acesso aos políticos responsáveis pelo município, sendo que a comunidade, representada pelo CPP, exercia a liberdade de tomar decisões independentemente da burocracia existente no sistema educacional, o que se transformou após a Carta Constitucional Brasilei-ra de 1988 e se estende até os dias atuais.

Foi possível observar claramente nos documentos pesquisados a importância dada à formação dos professores(as) da EMEB Mutirão, contribuindo para que se tornassem mais conscientes da importância do seu papel como formadores de cidadãos. Como parte desta preo-cupação, esses eram orientados para desenvolverem práticas de ajuda mútua, não somente no que dizia respeito à aprendizagem dos alunos como, segundo registro acima, no seu desenvolvimento como cidadãos.

Finalizando, pode-se afirmar que os objetivos do estudo foram atin-gidos, visto a riqueza que os documentos pesquisados e analisados trouxe-ram, não obstante tenha havido dificuldades em reavê-los em sua comple-tude. Igualmente foi efetiva e muito rica a abertura de caminhos que foram possíveis a partir do planejamento investigativo da pesquisadora.

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Os documentos, em seu todo, provaram o quanto a pesquisa da história de um processo, no caso o da criação da EMEB Mutirão é ne-cessária, uma vez que sedimenta os fatos e, além de servir à memória de uma comunidade ou de uma sociedade, mostra caminhos mais certeiros para a construção do seu futuro.

Esse futuro não pertence necessariamente às previsões que o ser humano projeta, dependendo também de variáveis imprevistas. Quando se estuda a sociedade, em qualquer de suas dimensões, fica evidente que as mudanças se dão a partir de muitos fatos que dependem desde as tendências sócio históricas mais amplas até os interesses de pequenos grupos. O período histórico de 1981 a 1996, estudado, foram emblemá-ticos em nosso país, tendo sido marcado por uma transição de governos ditatoriais para uma sociedade democrática.

Com este pano de fundo, a prática educativa libertadora de Paulo Freire tomou um lugar importante em Lages, com características de luta, uma vez que propunha uma transformação apropriada e radical no combate aos princípios autoritários adotados pelos governos militares que então assumiam o poder. Democracia traz em seu bojo a participa-ção coletiva nas decisões, exatamente o que ocorreu com a construção do bairro Habitação e da EMEB Mutirão.

Tal processo democrático se constitui num movimento perma-nente de afirmação dos princípios de participação, que carece de apren-dizado. Não está posto, se constrói. Assim tem sido a quanto à realidade brasileira, assim foi com bairro Habitação e com a EMEB Mutirão.

O que este estudo mostrou, não obstante trazendo algumas con-trovérsias, vem ao encontro do que está na voz das pessoas que par-ticiparam deste movimento. Ainda presente no cotidiano da escola, do Bairro Habitação, na cidade de Lages, a voz do povo se manifesta apoiando, criticando, debatendo e recordando o que se passou na escola no momento histórico estudado.

Uma vez concluído o estudo realizado como pesquisa para a ob-tenção do título de mestre desta autora, no Programa de Pós-Graduação

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Stricto Sensu em Educação da Universidade do Planalto Catarinense – PPGE/UNIPLAC - 2014, nasce uma oportunidade para a construção de um futuro, forjado no presente, com base num passado agora cientifica-mente recordado. O desejo da pesquisadora e é que ele possa servir para a continuidade do processo de existência da EMEB Mutirão, alicerçan-do novos projetos que, mesmo diferentes, porque circunstanciados em outros momentos históricos, possam se ancorar em sua historicidade, valorizando uma identidade construída, tendo como base o sentido da humanização da sociedade.

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FREIRE, Paulo. Educação como prática para a liberdade. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

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GADOTTI, Moacir. Escola vivida, escola projetadas. 2 ed. Cam-pinas: Papirus, 1995.

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GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador so-cial: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010.

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NETO, Manuel Nunes da Silva. Memórias para a história da Es-cola Mutirão: Bairro Habitação – Município de Lages. Estado de Santa Catarina. Curitiba, abril, 1996.

________. Depoimento enviado a pesquisadora via e-mail – Curitiba, junho de 2013.) [email protected]

________. Entrevista para Ana Inês. Curitiba, dependências do CEFÚRIA, 01.0utubro.2002

PAULON, Maianieri Simone. A análise de implicação como fer-ramenta na pesquisa-intervenção. Psicologia & Sociedade, p. 18-25, set-dez, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scie-lo php?script=sci_arttext&pid=S010271822005000300003&ln-g=pt&tlng=pt> Acesso em 20.01.2014.

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Constituição da docência e formação continuada de professores: políticas e interlocuções

Maria Selma Grosch15

Neide de Melo Aguiar Silva16

Início da Conversa

A constituição da docência tem sido objeto de reflexão por parte de pesquisadores, estudiosos e equipes gestoras da educação em todos os ní-veis de ensino. Trata-se de uma temática deveras complexa que permeia também os discursos e a ação dos agentes escolares, passando a integrar o imaginário social acerca de escola, seus construtos e seus sujeitos.

Na educação básica, em especial, a docência e sua problemática inscrevem-se no contexto dos avanços, retrocessos e rupturas na elabo-ração e implementação de políticas educacionais, na alternância de go-vernos e mudanças de gestão. Assim, o conhecimento de relações histo-ricamente travadas entre a sociedade, em sua totalidade, e a consciência dos sujeitos professores, pode tornar possível um reconhecimento de pensamentos e sentimentos delimitadores do perfil profissional.

15 Doutora em Educação e Docente do PPGE da UNIPLAC. 16 Doutora em Educação Matemática.

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Frente a esse cenário, uma análise das políticas e práticas de for-mação continuada pode estar associada às condições de constituição da autonomia intelectual do professor. Um grupo hegemônico e com solidez teórica para enfrentar as rupturas decorrentes do jogo político e alternâncias de governo, que inferem sobre o processo de constituição da docência, e constitui pela efetiva participação do coletivo dos pro-fessores, como sujeitos envolvidos nas políticas de sua própria forma-ção. (ARENDT,1993; SAVIANI,1989).

A política, enquanto jogo discursivo e relações de poder de uns sobre os outros e sobre os elementos que constituem a ação, é condi-ção inalienável do processo de comunicação singular de cada sujeito que compreende o que faz e infere sobre o sentido do que faz. Em de-corrência das vivências e do exercício na profissão, o professor vai se constituindo na docência. Ela faz sentido, torna-se própria e, por isto mesmo, legítima, quando gestada na pluralidade do coletivo, por meio da palavra viva e da ação vivida, em uma comunidade docente politiza-da, criativa, criadora e com domínio de conhecimento.

A constituição da docência é também alicerçada pela formação continuada, enquanto um processo gradual, incessante, democrático e participativo. Segurança no exercício da docência e interesse por pro-cessos contínuos de formação são fatores intercorrentes, associados à formação acadêmica inicial e à ação das instituições formadoras, re-conhecidamente situadas como eixo articulador das potencialidades de um povo e uma região.

A docência e seus intervenientes constituem-se, sob esta perspec-tiva, como condição e como ato que se tornam públicos através do exer-cício na profissão, dos discursos, dos registros e das interações entre os sujeitos, refletidos sobre e na ação pedagógica. Nesse movimento de transformação prático-revolucionária das relações sociais no espaço es-colar, o professor modifica as circunstâncias e afirma seu domínio sobre elas, ampliando a capacidade de responder ao próprio condicionamento e abolir as condições que o condicionam.

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Assim, discorrer sobre a docência implica, dentre outros aspec-tos, em abordar dois pilares da formação docente: o lócus de formação inicial e continuada e as políticas de formação. É sobre eles que se de-bruçam as discussões promovidas neste ensaio.

Formação para a docência e suas problemáticas

A formação do professor é condição para o exercício da docên-cia, constituindo-se como espaço de reflexão teórica. No planejamento da atividade pedagógica o conhecimento embasa a prática, e a prática por sua vez alimenta as possibilidades de ampliação da teoria, exigindo uma constante relação entre pensamento e ação. Na formação inicial, os professores têm a instrumentalização para o trabalho; na formação continuada vão adequando sua formação às exigências da prática peda-gógica cotidiana (VÁZQUEZ, 1968).

A formação inicial culmina com o fim da trajetória acadêmica; a formação continuada se estende ao longo da profissão. No decurso da experiência profissional e na busca de compreensão para a atividade do-cente, os professores se deparam com situações que exigem um retorno à teoria. Precisam, e com alguma frequência, ir além de pressupostos anteriores, o que permite avanços na formação inicial e posicionamen-tos a respeito da prática como constitutiva da reflexão teórica. Assim, o trabalho docente se constrói a partir da prática social, oferecendo condi-ções de ampliação dos conhecimentos necessários à docência e abrindo possibilidades para sua transformação.

Na constituição da docência incidem também as políticas de formação. Quer estejam voltadas à formação inicial, ou continuada, as políticas apresentam indicadores de ação que, uma vez implementados, podem incorrer na ampliação de estratégias pedagógicas com o coletivo de educadores em exercício da profissão.

A habilitação para o exercício profissional é tarefa das institui-ções de educação superior. Embora lacunar e às vezes deficitária, a for-

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mação inicial é delimitada pela ação institucional e seus aparatos de regulação. A educação básica, por sua vez, não conta com a estrutura didática e pedagógica necessária à viabilização de projetos de formação continuada. Intermediados pela educação superior, ou outras instâncias formadoras, os projetos nem sempre são coerentes com as necessidades que emergem de conflitos entre os objetivos dos professores e as expec-tativas dos estudantes a respeito do que é necessário aprender para lidar com questões cotidianas.

Assim, elementos como currículo, duração, fomento e sistemáti-ca de avaliação, comuns na formação inicial, carecem de condições de discussão e também de negociações a cada projeto de formação conti-nuada, em especial quando gestados em contextos próprios da educação básica.

O financiamento, em especial, é ponto nevrálgico na construção e continuidade de projetos de formação continuada. Embora venha se consolidando como política pública de qualificação dos profissionais no quadro do magistério, a liberação de recursos financeiros pode se depa-rar com entraves relativos a metas, urgências ou interesses específicos de cada contexto.

A gestão dos recursos, por si só, nem sempre se traduz em ga-nhos para o processo formativo, tendo em vista a oferta crescente de serviços que carecem de fundamentação teórica, bem como a opção por pacotes de metodologias descontextualizadas ou atreladas a promessas de solução de problemas comuns no cotidiano escolar. Conforme Gatti (2008), muitas das iniciativas públicas de formação continuada no setor educacional realizadas no Brasil por volta do ano 2000 adquiriram a feição de programas compensatórios, e não propriamente de atualiza-ção, aprofundamento e avanços do conhecimento.

Frente a esse cenário, há crescente preocupação do poder público quanto às condições qualitativas de oferta de cursos na formação con-tinuada, com orientações mais claras para qualificação dos processos formativos e dos formadores. Esta preocupação em “criar balizas onde

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elas não existiam ou reformular orientações quando estas parecem não mais atender às condições de qualidade pensadas para as atividades desenvolvidas, é resultante de um processo histórico em que ações se desenvolvem e criam impasses e questionamentos pela forma como são praticadas”. (GATTI, 2008, p. 68). Para Andaló (1995, p.188),

[...] os cursos de aperfeiçoamento, pretendendo ser um dos meios de recuperar a competência dos educadores, da forma como vêm sendo ofe-recidos, têm se mostrado, além de dispendiosos, ineficazes. [...]elaborados à distância da realidade das escolas, partindo de teorias escolhidas pelos técnicos do sistema, acabam se tornando receitu-ários inócuos, de cunho tecnicista, incapazes de transformar de modo efetivo a ação cotidiana.

Na contracorrente dos ensejos dos professores situam-se, muitas vezes, os conteúdos selecionados como objeto de formação. Mento-res e proponentes de cursos de formação continuada “[...] que visam à mudança em cognições e práticas, têm a concepção de que, oferecendo informações, conteúdos, trabalhando a racionalidade dos profissionais, produzirão, a partir do domínio de novos conhecimentos, mudanças em posturas e formas de agir”. (GATTI, 2003, p.192).

Conhecimentos prévios, representações, saberes comuns ao gru-po, histórias de vida, bem como expectativas dos professores em rela-ção à formação, são elementos que propulsionam ou entravam resulta-dos. Contextualizar, levantar necessidades e avaliar resultados antes de prosseguir, representam ações imprescindíveis em qualquer proposta de formação.

Os professores são, segundo Gatti (2003, p. 192),

[...] pessoas integradas a grupos sociais de refe-rência nos quais se gestam concepções de educa-ção, de modos de ser, que se constituem em repre-sentações e valores que filtram os conhecimentos

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que lhes chegam. [...] ,adquirem sentido ou não, são aceitos ou não, incorporados ou não, em fun-ção de complexos processos não apenas cogniti-vos, mas socioafetivos e culturais.

Desse modo, a constituição da docência não se dá pela associa-ção simples de motivos ou motivações externas, mas pela conjugação de fatores de complexidade marcante, como história de vida, interesses, conhecimento, políticas públicas, condições de trabalho e outros.

Uma mudança de paradigmas, que situe a docência como uma condição de formação, não se dá apenas no plano objetivo da imple-mentação de políticas educacionais alternativas, mas também no plano subjetivo das ideias. As mudanças passam por construções só compre-endidas quando as decisões tomadas no cotidiano da realidade escolar estiverem embasadas em consequente assimilação do compromisso éti-co e moral com o exercício profissional.

De acordo com Heller (2004, p. 158), a ruptura e construção de uma nova ordem culminam em um processo de catarse, que “se con-substancia como um instante de homogeneização moral que não perde sucessivamente validez, depois do qual não posso viver como antes”. Desse modo, as consequências extraídas de uma mudança de concep-ção incorrem na suspensão das particularidades, reordenando, a partir de uma base moral descoberta, uma nova hierarquia de valores.

Ação docente, formação e conjuntura políticaAs políticas públicas de formação de professores requerem cada

vez mais informações e análises das experiências voltadas para o de-senvolvimento de projetos de qualificação docente. Como foco de in-vestimentos vem sendo avaliadas questões de alta complexidade, por exemplo, o direito de todos à educação, a função social da escola, as práticas escolares como construtos de qualidade social e a função do-cente na definição da justiça e da equidade.

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Por um lado os professores, como sujeitos no processo educa-cional, agem na mobilização de mudanças e destacam reformas neces-sárias; por outro, a materialização das políticas e a construção de di-retrizes apresentam indicadores de participação. Nesse movimento de circularidade, a participação dos professores se dá comumente de modo indireto e a política, ainda que dita democrática e represente interesses majoritários, nem sempre constitui a identidade geral.

Assim, desacertos entre a elaboração e implementação de polí-ticas aumentam a distância entre o que se diz no contexto das práticas educativas e o que se define como diretriz para a educação em âmbito político organizacional. A materialização das metas requer alinhamento entre as diretrizes e a efetividade das práticas, incidindo de modo direto na formação do professor e no exercício cotidiano da docência.

Os processos de formação sofrem rupturas e solução de continui-dade nos seus projetos, principalmente quando ocorrem mudanças de gestão ou alternância político partidária nos governos. Percursos, ações e consequências são muitas vezes desconhecidos, em sua essência, pe-los próprios professores participantes do movimento, tendo em vista as condições e a cultura de não participação popular no planejamento das políticas públicas.

A impossibilidade de participar como sujeitos da sua história e a conquista de uma consciência de classe, ou falta dela, em determinado período e contexto histórico, dificultam a construção de um pensamento de totalidade e de determinações mais amplas no fazer docente cotidia-no. Mudanças exigem do professor a construção de arcabouços teóri-cos, o que amplia suas possibilidades de reflexão a respeito das políticas e seus movimentos mais efetivos.

A ação pedagógica é também ação política. Ela se realiza entre os pares de um coletivo escolar, como um ato que se torna público através do discurso materializado no registro cotidiano e refletido sobre e na constituição da docência. De acordo com Arendt (2005a), a ação é uma das categorias fundamentais à condição humana e representa não só

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uma possibilidade de liberdade, enquanto capacidade de reger o próprio destino, como também forma única de expressão da singularidade indi-vidual. A ação é a fonte do significado da vida humana. É a capacidade de começar algo novo que permite ao indivíduo revelar a sua identidade e conquistar autonomia profissional.

A constituição da docência, conforme afirma Grosch (2011), requer políticas públicas, ações de governo e respostas específicas do coletivo de professores. A superação de fragilidades e surgimento de uma nova ordem, que é movimento recorrente no cotidiano docente, se estabelece à medida que os profissionais teorizam a própria prática e traçam metas de continuidade.

Essa é uma competência que não se concretiza com treinamen-tos em massa ou aligeirados; ao contrário, demanda questionamentos, reflexão individual e coletiva, pensamento crítico e criativo, produção própria e qualificação da ação. Exercitar essa competência implica con-solidar espaços de constituição da identidade docente.

A LDBEN 9394/96, art.61, inciso I e II, determina como critérios de formação docente “[...] a associação entre teorias e práticas, inclu-sive mediante a capacitação em serviço; aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades” (Brasil, 1996). Outras diretrizes mais específicas foram progressiva-mente ampliando o cenário das políticas de formação profissional para a docência.

De acordo com Sheibe (2004), na década de 90 do séc. XX vi-veu-se um quadro de reformulação política e econômica do sistema e, consequentemente, de ajuste nas políticas públicas de educação. Apesar da redução do papel do Estado, intensificou-se seu papel controlador e regulador. Ainda que decorrentes de um longo processo histórico de participação dos educadores, as reformulações e as propostas foram rejeitadas pelo governo, instaurando-se uma reforma mais afinada às políticas de ajuste assumidas pelos idealizadores do modelo imposto pelo Banco Mundial.

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Assim, inferem sobre a constituição da docência uma gama com-plexa, e não raro, inusitada, de fatores. Eles perpassam a singularidade do professor, assim como transitam pela generalidade dos interesses. A construção da docência como uma necessidade que sustenta a ação pedagógica, pode colaborar no exercício do discernimento e, conse-quentemente, na ampliação do poder do professor na função de formar e educar.

Docência: condição de formação profissional, pessoal e política

As práticas desenvolvidas na escola são, essencialmente, práti-cas sociais. Desenvolvida no âmbito da escola, a prática pedagógica depende do entorno social e está sujeita às influências e determinações do mundo do trabalho. A formação, como sinônimo de constituição da docência, é compreendida a partir das condições objetivas do trabalho do professor.

No exercício da docência os professores têm como fundamento primeiro a sua formação inicial. A continuidade da formação depende de condições concretas que viabilizam movimentos de discussão e per-manente construção de conhecimentos voltados à docência. A docência se constitui como espaço de ação pautado na reflexão teórica e na pre-paração para o exercício cotidiano da profissão.

No espaço da docência, que é progressiva e cuidadosamente construído pelo professor em seu contexto, o conhecimento embasa a ação, e esta por sua vez alimenta as possibilidades de ampliação da re-flexão, exigindo uma constante relação entre pensamento e ação. O pla-nejamento da ação pedagógica é constitutivo e constituinte da docência.

A consolidação da docência está associada à construção de co-nhecimentos que, historicamente acumulados, são gestados e continu-amente ressignificados por um coletivo pensante. À luz de concepções teóricas, e norteadas por metodologias que possibilitem reflexão, as

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práticas dos professores são determinadas e determinantes dos rumos a serem seguidos em seu espaço de ação.

Discutidas, refletidas e compreendidas a ponto de incorporar o conhecimento como uma segunda natureza, as concepções dos profes-sores culminam na constituição da docência. Trata-se de um processo de catarse, conforme defende Gramsci (1966; 2004), Heller (2004) e Saviani (1989).

Embora se deparem com soluções de continuidade, a constitui-ção da docência situa-se sempre em uma perspectiva de crescimento pessoal e profissional. Segundo Heller (2004, p. 9), “quando o valor constituído numa determinada esfera ou num determinado sentido per-de a altura ou o estágio alcançado, passa a existir apenas como possibi-lidade, mas não é inteiramente aniquilado” (grifos da autora).

A irreversibilidade das ações no processo de constituição da do-cência passa pela apropriação do conjunto das experiências vivenciadas, desde o início da carreira ao longo do exercício da profissão. De acordo com Arendt (2005b, p. 244) “nem mesmo o olvido ou a confusão, que podem encobrir com tanta eficácia a origem e a responsabilidade de qualquer ato isolado, são capazes de desfazer um ato ou suprimir-lhe as consequências”.

A trajetória profissional implica diretamente na constituição da docência como um espaço formativo, ainda que não se estabeleça de modo consciente os parâmetros do processo. Aquele que age nunca sabe exatamente o que está fazendo, e “o processo por ele iniciado jamais termina inequivocadamente num único ato ou evento, e seu verdadeiro significado jamais se revela ao ator, mas somente à visão retrospectiva do historiador, que não participa da ação” (ARENDT, 2005b, p.245).

A constituição da docência se dá agregada à constituição do su-jeito, em uma perspectiva histórico cultural. Rever as condições que a determinaram implica rever a história, em sua totalidade. Para Lukács (2003, p. 141) “ao se estudar fatos históricos, não basta fazer uma des-crição do que os homens pensaram, sentiram e desejaram efetivamente

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sob condições históricas determinadas em situações de classes deter-minadas”.

Assim, a consciência individual e a condição docente perseguida pelo professor estão interligadas com a totalidade da sociedade. Pela interação “torna-se possível reconhecer os pensamentos e os sentimen-tos que os homens teriam tido numa determinada situação da sua vida, se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente essa situação”. (LUKÁCS, 2003, p. 142).

Sobre a forma como as novas concepções se difundem tornando-se populares, numa substituição do velho pelo novo, ou de uma com-binação entro o novo e o velho, Gramsci (2004) afirma que há uma influência da forma como a teoria é exposta pela autoridade de quem a apresenta, na medida em que é reconhecida e apreciada, mas também da participação do mesmo contexto daquele grupo em que se apoia e no qual se sustenta. O processo de mudança de concepções apresenta-se como um terreno perigoso quando não é acompanhado de uma reflexão crítica sobre as teorias em estudo relacionadas com o contexto social dos sujeitos da formação que se encontram num momento de avaliação entre o que é conhecido e o que se apresenta como inovador.

Esta perspectiva permite visualizar a imponderável insignificân-cia do ser humano que sozinho não consegue desencadear nada signi-ficativo, condição necessária ao ato de compreender a si mesmo e às suas ações, numa relação íntima de coerência entre o discurso e a prá-tica. Essa compreensão, segundo Arendt (1993, p. 40) “[...] trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliando-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa de novo”. Esta condição é a maneira especificamente humana de estar vivo, “porque toda pessoa necessita reconciliar-se com um mundo em que nasceu como um estra-nho e no qual permanecerá sempre um estranho, em sua inconfundível singularidade”.

De acordo com Kosik (1976, p. 23), “o homem vive em muitos

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mundos, mas cada mundo tem uma chave diferente, e o homem não pode passar de um mundo para outro sem a chave respectiva”. Des-sa forma, sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo de apropriação da realidade, os conceitos e concepções veiculadas nos en-contros de formação podem ser apropriados de forma difusa, caótica, provocando insegurança no desempenho dos professores, colocando-se em discussão os objetivos de uma formação continuada que teria em princípio o objetivo de proporcionar aos professores oportunidades de evolução, emancipação e autonomia intelectual. Para tanto é necessá-rio partir da prática social, como defende Saviani (1989), considerando que, nas palavras de Kosik: “a história só é possível quando o homem não começa sempre do novo e do princípio, mas se liga ao trabalho e aos resultados obtidos pelas gerações precedentes”. (1976, p. 218).

A mudança de paradigmas não se dá apenas no plano objetivo da implementação das novas políticas educacionais, mas também no plano subjetivo das ideias; passa pela mudança de visão que só pode ser compreendida quando as decisões tomadas, no cotidiano da realidade escolar, estejam embasadas numa consequente assimilação do compro-misso ético e moral com o exercício profissional.

Considerações

O desenvolvimento da docência, no sentido técnico e político de apropriação de conhecimentos específicos e qualificação para o exercí-cio profissional é necessário à configuração da profissão de professor. Amparado por políticas públicas, pelas instituições formadoras e por seus próprios posicionamentos o professor vai constituindo o seu es-paço. Mas não se trata de uma construção atemporal, padronizada, ou tampouco solitária.

A ação docente se realiza no coletivo. A convivência, ou viver com, é condição necessária ao professor no exercício da profissão, in-termediando ações com objetivos comuns e em estreita relação de coe-

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rência entre o que se diz e o que se realiza. A constituição da docência está pautada no exercício da compreensão, como uma atividade inter-minável, em constante mudança e variação. Esta fluência infere sobre o potencial de aprendizagem do professor para lidar com a realidade, conciliar-se com ela e sentir-se como uma de suas partes integrantes.

O grupo cultural e o universo político onde o professor desenvol-ve suas potencialidades fornecem-lhe o universo de significados e pos-sibilitam a formulação de conceitos e categorias de conhecimento que lhe serão próprias. Desse modo, conceitos, pressupostos teóricos, ações políticas e ensejos de intervenção estão associados com as problemá-ticas do cotidiano escolar, imbricados no exercício diário da profissão docente.

As práticas escolares, como a prática social, se fundam na rela-ção entre a experiência individual e as experiências acumuladas pelo conjunto da sociedade ao longo da história. Assim, a constituição da docência não se desenvolve desassociada das políticas, haja vista a condição conceitual de política como ações de governo pautadas em interesses e movimentos sociais de base, e que irão produzir efeitos específicos. Elas incidem diretamente no campo de ação do professor e, consequentemente, no seu fazer docente.

As mudanças, quando não são discutidas exaustivamente – até que se alcance um nível aprofundado de entendimento e compreensão das concepções de mundo, de sociedade, de homem, de educação, e de escola, criam desconforto e insegurança. Do desequilíbrio resultam resistências, implícitas ou explícitas, comprometendo o processo de im-plementação de políticas que não tomaram como sujeitos da proposta aqueles que de fato fazem a Educação na escola, e vão materializar, ou não, estas políticas em ações concretas no cotidiano escolar.

A formação continuada de professores tem mais possibilidades de êxito quando se privilegia a participação efetiva dos sujeitos da for-mação. Persegue-se assim uma perspectiva de construir conhecimentos a partir da relação dialética entre a teoria e a prática, tomando os fenô-

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menos educativos em sua totalidade, suas contradições e, em grande medida, suas determinações histórico-sociais.

Se nem todos os professores têm acesso amplo e irrestrito aos processos formativos – incluindo o planejamento, implementação e avaliação, podem formar-se resistências que fragilizam os suportes das políticas educacionais que se pretende implantar, comprometendo as-sim o processo democrático de participação dos sujeitos da formação continuada de professores. E, em consequência, compromete também a qualidade da educação que se sustenta no acesso, permanência e su-cesso dos alunos na escola pública.

Quando os sujeitos dos processos de formação compreendem e interiorizam os conceitos e concepções de uma proposta educacional, passam a ter acesso a essas significações que, por sua vez, servirão de base para que possam significar suas experiências. Serão essas signifi-cações resultantes que constituirão suas consciências, mediando desse modo suas formas de sentir, pensar e agir. No entanto, a formação dessa consciência não ocorre de forma independente dos fatos sócio-históri-cos, do contexto em que atuam.

A prática docente é histórica, reflete um complexo processo de apropriação, que envolve tanto a história individual de cada professor, como a história das práticas sociais educativas. Trata-se, portanto, de um processo de construção seletivo, onde se reproduzem, se ratificam ou se rejeitam a tradição e as concepções anteriores, e individual ou coletivamente, se elaboram novas práticas.

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Práticas docentes em educação ambiental na educaçãoInfantil em área de abrangência do Aquífero Guarani – Lages (sc)

Patrícia dos Santos Pucci17

Lucia Cecatto de Lima18

Início da Conversa

O objetivo deste artigo é apresentar resultados de pesquisa so-bre as práticas docentes de Educação Ambiental do CEIM Bairro Santa Cândida, relacionando a percepção ambiental dos professores a respeito dos impactos ambientais causados na área de abrangência do Aflora-mento do Aquífero Guarani. No bairro onde se encontra o CEIM, há área de Afloramento do Aquífero Guarani (águas subterrâneas) e tam-bém há um córrego de uma das nascentes do rio Carahá (águas su-perficiais). Não existe saneamento básico no bairro, assim, os resíduos despejados e jogados pelos esgotos residenciais no entorno do Aflora-mento do Aquífero Guarani, podem causar doenças às pessoas que to-mam desta água ou a usam para realizarem tarefas do dia a dia e podem ainda contaminar o Aquífero Guarani. Como o bairro encontra-se em 17 Mestre em Educação pela Universidade do Planalto Catarinense.18 Doutora em Engenharia Ambiental É professora e coordenadora adjunta do Mestrado em Educação - PPGE/UNIPLAC.

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área industrial, também tem os esgotos industriais, que possuem produ-tos químicos. Não é incomum a existência de ligações clandestinas de esgoto doméstico e industrial a rede pluvial.

A pesquisa possibilitou analisar a questão da percepção ambien-tal dos professores, esta que é “[...] um conhecimento concebido a partir da percepção que o sujeito tem sobre seu entorno. A percepção am-biental é, portanto, o processo de apreender o ambiente, protegendo-o” (LIMA 2007, p. 48).

As práticas docentes ambientais dos professores podem contri-buir para a melhoria da qualidade ambiental local, onde os mesmos poderão vir a reconhecerem-se como integrantes do Meio Ambiente, compreendendo assim as dimensões complexas ambientais, sociais, culturais, políticas e econômicas. Observando as consequências que a indevida utilização e destino dos resíduos sólidos e líquidos podem cau-sar ao Meio Ambiente como um todo, buscamos desenvolver estudos sobre a relação homem/ natureza no convívio com as águas existentes no bairro.

A Lei 9.795/99, da Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) dispõe que a Educação Ambiental tem que estar presente em espaços formais, por isso, ao analisarmos as percepções e práticas do-centes ambientais dos professores, no espaço formal, que é a escola, observamos quais foram suas concepções a respeito das questões am-bientais locais.

A problemática ambiental e as ocupações urbanas irregulares em áreas de águas superficiais e subterrâneas nos trazem uma série de de-bates e apreensões sobre o cuidado com o Meio Ambiente e a qualidade de vida da população. Assim, pela percepção ambiental o ser humano poderá compreender que está inserido no ambiente e que este faz parte de sua vida, e como tal necessita ser preservado e conservado.

Águas Superficiais: Rio Carahá – Lages (SC)

O surgimento de muitas cidades ocorreu pela proximidade com

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os rios, onde estes tinham utilidade para o homem, tanto para sua lo-comoção quanto para sua alimentação. Porém, com o desenvolvimento das cidades, a facilidade do comércio na venda de produtos agrícolas e o começo da construção de estradas, deu-se menos importância para os rios, vendo-os apenas como forma de lazer para pescar ou banhar-se no calor. Hoje em dia, a maioria de nossos rios perdeu suas funções, tornando-se somente depósito de resíduos e esgotos a céu aberto.

No Brasil, percebe-se visivelmente que com o crescimento desordenado, os rios situados em grandes cidades perderam muitas funções, para se tornarem receptáculos, ou seja, depósitos de lixo, e estão sufocados pela ocupação das margens e com alto nível de poluição. As transformações com o processo de urbanização trouxeram modi-ficações aos corpos hídricos (SANTOS; MOREI-RA; ALMEIDA, 2010, p. 4).

O Rio Carahá tem jurisdição no município de Lages, e alguns de seus bairros foram construídos perto deste rio, provavelmente pela água estar mais próxima da população. Com o crescimento populacional, houve o aumento da produção de esgotos que são despejados todos os dias neste rio, sem nenhum tratamento dos mesmos. As principais fon-tes de poluição acontecem pela falta de saneamento básico e sistemas de tratamento de esgotos no município; ou seja, os resíduos urbano e industrial; a ausência total ou parcial das matas ciliares em algumas áre-as de suas margens, prejudicando a capacidade de retenção das águas das chuvas.

Em seu percurso, o Rio Carahá recebe grande parte do esgoto da cidade, sendo que seus três afluentes: os Rios Santa Helena, Ipiranga e Passo Fundo, contribuem com um pequeno volume de água, mas que contém grande carga de esgoto do-méstico e industrial, que unindo-se gradualmente

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as galerias pluviais e tubos de esgotos liberados diretamente no rio, [...] sem o devido tratamento (MASCARENHAS et al., 2006, p. 18).

De acordo com a Secretaria de Planejamento e Coordenação (SEPLAN) da Prefeitura do município de Lages, existe um córrego de uma das nascentes do Rio Carahá, no bairro Santa Cândida, este que se encontra ao lado do Afloramento do Aquífero Guarani, no meio de ro-chas e a vegetação, localizada entre as Avenidas João Pedro de Arruda e Papa João XXIII.

O ser humano explora os bens naturais para seu benefício, sem preocupar-se com a sua indevida utilização, agindo como se estes fos-sem recursos inesgotáveis. A Educação Ambiental local pode contribuir para a qualidade ambiental do bairro, e seus moradores podem divulgar a respeito da preservação e conservação das águas superficiais do rio Carahá, reconhecendo-se como integrantes do Meio Ambiente, enquan-to participantes no processo da melhoria local.

Há também alguns problemas que vem ocorrendo em função da ocupação desordenada local, o que gera degradação ambiental, tais como, possível contaminação da área de abrangência do Aquífero Gua-rani, este que é rocha porosa de um dos maiores reservatórios de água doce subterrânea do mundo; desmatamento da mata ciliar e construção de casas em áreas verdes.

Algumas famílias do bairro não dão destino adequado aos resídu-os sólidos que produzem, deixando-os jogados em lugar inapropriado, principalmente sobre o Afloramento do Aquífero Guarani e no seu en-torno, contribuindo assim para a poluição ambiental do local.

A questão do lixo vem sendo apontada pelos am-bientalistas como um dos mais graves problemas ambientais urbanos da atualidade, a ponto de ter-se tornado objeto de proposições técnicas para seu enfrentamento e alvo privilegiado de progra-mas de educação ambiental na escola brasileira (LAYRARGUES, 2005, p. 179).

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A crise ambiental é um assunto muito discutido na atualidade, onde os constantes desastres ecológicos e a exploração irracional dos recursos naturais obrigam a humanidade a procurar alternativas para tentar reverter este quadro, pois não é só a qualidade ambiental que está sendo ameaçada, mas a própria sobrevivência do planeta.

Águas Subterrâneas: Aquífero Guarani

O Aquífero Guarani, segundo o Ministério do Meio Ambiente (2008), é uma das maiores reservas de água doce subterrânea do Pla-neta. Ele é um Aquífero transfronteiriço, está localizado na América do Sul, estendendo-se pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.

As águas subterrâneas apresentam algumas propriedades que tor-nam o seu uso mais vantajoso em relação ao das águas dos rios: são fil-tradas e purificadas naturalmente através da percolação, determinando excelente qualidade e dispensando tratamentos prévios; não ocupam es-paço em superfície; sofrem menor influência nas variações climáticas; são passíveis de extração perto do local de uso; possuem temperatura constante; têm maior quantidade de reservas; necessitam de custos me-nores como fonte de água; as suas reservas e capacitações não ocupam área superficial; apresentam grande proteção contra agentes poluidores. O uso do recurso aumenta a reserva e melhora a qualidade; possibilitan-do a implantação de projetos de abastecimento à medida da necessida-de (WREGE, 1997 apud BORGHETTI; BORGHETTI; ROSA FILHO, 2004, p. 102).

[...] O aquífero pode apresentar potencial para o abas-tecimento público e especialmente para o uso como água termal. Embora muitos municípios abasteçam-se com a água do aquífero, em alguns locais ela mos-tra-se inapropriada para o consumo humano, bem como para o uso na irrigação ou indústria, devido ao grande volume de sais e outras substâncias químicas nocivas (BOND-BUCKUP, 2008, p. 19).

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Segundo Borghetti; Borghetti; Rosa Filho (2004), as águas sub-terrâneas ocorrem abaixo da superfície terrestre, onde preenchem os po-ros das rochas sedimentares, ou as fraturas, falhas e fissuras das rochas compactas, contribuindo para manter a umidade dos solos, fluxo dos rios, lagos e brejos. Ainda podemos contar com a fala de Bond-Buckup (2008, p. 19) esclarecendo e complementando que, “[...] mesmo es-condidas, elas fazem parte do ciclo hidrológico. Ao infiltrar-se no solo, a água percorre as rochas até acumular-se. Os aquíferos subterrâneos podem reter a água durante muito tempo ou alimentar rios e nascentes”.

A estrutura do Afloramento do Aquífero Guarani, no bairro San-ta Cândida mostra-se como um Aquífero poroso e livre, apresentando zonas de recarga direta ou de Afloramento, onde “pequenas faixas aflo-rantes dos arenitos, consideradas como Zona de Recarga Direta (ZRD) do SAG, ocorrem na porção oriental de Santa Catarina e são consi-deradas como áreas com alta vulnerabilidade a contaminação” (AL-MEIDA; SILVA, 2011, p. 2). As águas subterrâneas acham-se mais protegidas da contaminação que afetam lagos e rios por estarem abaixo da superfície da terra, porém também sofrem com os impactos ambien-tais provocados pelas ações antrópicas da população, tais como: Conta-minação e Superexplotação ou superexploração de Aquíferos.

Metodologia do EstudoO estudo teve como base a pesquisa de campo, que nos aproxima

dos elementos que contêm a matéria em análise e os sujeitos envolvi-dos. Fizemos saídas com visitas ao local a ser pesquisado para registro fotográfico e observação a fim de trazermos informações e a coleta de dados para a análise de conteúdo.

A abordagem metodológica empregada na pesquisa foi de cunho quantitativo e qualitativo. Para a realização desta pesquisa, foram aplica-dos questionários semiestruturados junto aos cinco professores do CEIM Bairro Santa Cândida. Minayo (2004, p. 108) considera que o questio-

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nário semiestruturado “combina perguntas fechadas (ou estruturadas) e abertas, onde o entrevistado tem a possibilidade de discorrer o tema pro-posto, sem respostas ou condições prefixadas pelo pesquisador”.

O questionário utilizado com os professores do CEIM teve como objetivo identificar a percepção ambiental local que estes profissionais apresentam, e também conhecer quais são as práticas pedagógicas com relação à Educação Ambiental.

Para a obtenção do consentimento voluntário, usamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), informando as normas aos participantes, conforme o modelo proposto pelo Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos (CEP/UNIPLAC), tendo em vista a Normativa nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, com protocolo nº 073-13.

Com a coleta de dados em mãos, organizamos as anotações do caderno de campo pertinentes a respeito do material recolhido na pes-quisa e buscamos destacar os principais detalhes da mesma. A fim de que se tenha uma análise e discussão adequada dos dados, é necessário que o pesquisador possua domínio no assunto em que está trabalhando, sendo que o seu “objetivo é trazer à tona o que os participantes pensam a respeito do que está sendo pesquisado, não só a minha visão de pes-quisador em relação ao problema, mas é também o que o sujeito tem a me dizer a respeito” (MARTINELLI, 1999, p. 21).

Para manter o sigilo dos sujeitos, optamos por dar nomes de flores (Quadro 1), representados com legenda, F1 ao F5 para os professores:

Quadro 1: Legenda dos sujeitos da pesquisa

AZALÉIA .............................................. F1BOCA-DE-LEÃO ................................. F2BROMÉLIA .......................................... F3CAMOMILA ......................................... F4CAMÉLIA ............................................. F5

Fonte: Pesquisadora (2013).

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Os sujeitos escolheram o nome de flor para representá-los, pois foram motivados pela aproximação com o tema ambiental.

Resultados da Pesquisa Realizada com os Professores

PERFIL DOS SUJEITOS PESQUISADOS

Profissão dos sujeitos pesquisadosOs professores Azaléia (F1) e Boca-de-Leão (F2) são Estagiárias

Auxiliares; Bromélia (F3), Camomila (F4) e Camélia (F5) são Profes-sores Regentes efetivos.

Convidamos as Estagiárias Auxiliares, que também foram agrupadas como professores, pelo motivo de que no CEIM Bairro Santa Cândida são poucos sujeitos para a pesquisa: duas Professoras Regentes e uma Coordenadora, que é professora; e também porque as estagiárias são as únicas que moram no bairro Santa Cândida, diferen-te da Coordenadora e das Professoras que moram em outros bairros da cidade.

Escolaridade dos sujeitos pesquisadosCom relação à escolaridade, F1 e F2 estão no Ensino Médio; F3,

F4 e F5 possuem Ensino Superior completo e Pós-Graduação na área da Educação.

Nos dados colhidos constatamos que a maioria dos sujeitos pes-quisados possui nível superior completo. A Lei Complementar de La-ges, nº 353/11, discorre no seu Art. 4º que, para o exercício da docência na Educação Infantil e nos anos iniciais ou ciclos correspondentes do Ensino Fundamental, exige-se como qualificação mínima, a seguinte formação “[...] obtida em nível superior, em curso de licenciatura de graduação plena, admitida como formação mínima a oferecida em nível médio, na modalidade Normal” (Magistério).

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Idade dos sujeitos pesquisadosA média de idade dos professores pesquisados é de 34,6 anos.

Análise a partir dos dados coletados com os questionários

Questão 1. O que a Senhora entende por Educação Ambiental?

Observamos que a maioria respondeu o que entendiam a res-peito, apenas F2 respondeu que não sabia. Segundo F1, F3, F4, F5, EA é: uma educação em que a natureza está presente. É cuidar do verde, separar os resíduos e os esgotos que são precários, precisa-mos ter mais atitudes diante de um assunto importante para nossas vidas.

Ao analisarmos as suas falas, percebemos que o seu entendimen-to ainda está reduzido, visto que,

A Educação Ambiental não se limita a ensinar plantar uma árvore, arrumar o papelzinho no lixeiro, escovar os dentes com a torneira fecha-da, apresentar procedimentos individuais como prática de EA “conservadora”. Fazer Educação Ambiental envolve outras questões, abrange cri-ticidade, reflexões, debates, contradições, conhe-cimento, e é também revelar os interesses de dife-rentes grupos sociais [...] (SANTOS, 2011, p. 22, grifo da autora).

Por meio da EA, o professor pode encontrar soluções e refle-xões críticas a respeito da questão ambiental, e contando com a parti-cipação dos alunos, terá evoluído rumo à conscientização e sensibili-zação, tornando-os capazes de construir seus próprios conhecimentos, problematizando-os, possibilitando assim um planejamento de atitudes de transformação da realidade atual, já que, “a supremacia do conheci-

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mento [...] deve ser substituída por um modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto” (MORIN, 2000, p. 14).

Questão 2. As professoras do CEIM Bairro Santa Cândida podem contribuir para a melhoria da qualidade ambiental local?F1 disse que os professores não podem contribuir para a me-

lhoria da qualidade ambiental local. Para F2, F3, F4, F5 a melhoria da qualidade ambiental local é feita mediante não jogar lixo no chão, separar corretamente o lixo, fechando a torneira na hora da higiene das crianças, através de projetos com os pais e a comunidade local. Nesta questão, constatamos que a maioria disse que contribuem. Morin (2000, p. 56) reflete que,

A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indiví-duo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social.

Analisando a reflexão do autor, percebemos que é pela cultura da sociedade que se faz a melhoria da qualidade ambiental do local onde estamos inseridos, desenvolvendo assim, um papel fundamen-tal na formação dos cidadãos conscientes de amanhã, ou seja, dos alunos. Por esse motivo não nos é permitido ficar parados diante dos problemas que envolvem a todos, e como educadores reflexivos, podemos incluir em nossas ações a responsabilidade, o respeito e a preservação ao Meio ambiente, pois, “as ações no Meio Ambiente são de importância e de urgência, as alavancas precisam ser mo-vidas, imediatamente, escola, professores, aluno, sociedade [...]” (LIMA, 2007, p. 42).

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Questão 3. No bairro Santa Cândida existe uma rocha de Arenito Botucatu que origina o Afloramento do Aquífero Guarani. A Senhora a conhece?Apenas F3 respondeu que conhece a rocha de Arenito Botucatu.

Observamos que a maioria “não conhece” a rocha de Arenito Botucatu que origina o Afloramento. Morin (2000, p. 64) discorre que,

O que agrava a dificuldade de conhecer nosso Mundo é o modo de pensar que atrofiou em nós, em vez de desenvolver, a aptidão de contextuali-zar e de globalizar, uma vez que a exigência da era planetária é pensar sua globalidade, a relação todo partes, sua multidimensionalidade, sua com-plexidade — o que nos remete à reforma do pen-samento, [...] necessária para conceber o contexto, o global, o multidimensional, o complexo.

Ainda, Morin (2000, p. 16) salienta que, “será preciso indicar o complexo de crise planetária [...], mostrando que todos os seres huma-nos, confrontados de agora em diante aos mesmos problemas de vida e de morte, partilham um destino comum”. As áreas de Afloramentos do Aquífero Guarani possuem suscetibilidade com relação às atividades antrópicas causadas pela urbanização e pela industrialização, por isso, é necessário o monitoramento destas águas subterrâneas para se evitar sua contaminação com produtos químicos e resíduos sólidos ou líqui-dos. Também há a necessidade de estratégias para o desenvolvimento da percepção ambiental por parte da população do seu entorno, para a conservação das rochas destes Afloramentos.

Questão 4. A Senhora conhece o destino dado ao saneamen-to (esgoto sanitário) e aos resíduos sólidos do CEIM Bairro Santa Cândida?F1 respondeu que não conhece. F2, F3, F4, F5 dizem que o esgo-

to é da rede pública, os resíduos é feito a separação e destinados à coleta

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pública. Identificamos que 80% dos professores disseram conhecer o destino dado ao esgoto sanitário e aos resíduos sólidos produzidos no CEIM. Morin (2000, p. 71) relata que,

[...] os dejetos, as emanações, as exalações de nosso desenvolvimento técnico-industrial urbano degradam a biosfera e ameaçam envenenar irre-mediavelmente o meio vivo ao qual pertencemos: a dominação desenfreada da natureza pela técnica conduz a humanidade ao suicídio.

Com relação aos resíduos sólidos, a Prefeitura Municipal en-carrega-se da coleta. A produção de resíduos sólidos é um fenômeno inevitável e infelizmente, o crescimento industrial e populacional não é acompanhado com rigor, por uma tecnologia de remoção, transfor-mação e reaproveitamento dos resíduos resultantes da intensa atividade humana, sendo eles deixados junto a terrenos baldios, encostas e cursos d’água, provocando doenças e agressões ao meio ambiente, por isso necessitamos ser responsáveis pelo destino adequado do lixo que gera-mos, evitando assim inúmeros danos à nossa saúde.

No bairro Santa Cândida não existe saneamento básico. Jacobi (2008, p. 40) alerta que,

A insuficiência da rede de coletores de esgotos em algumas regiões resulta no despejo de esgo-tos a céu aberto, em ligações clandestinas na rede pluvial e no lançamento do esgoto in natura(sic) nos córregos e rios. A situação da infraestrutura de drenagem de águas pluviais da cidade é pre-cária [...].

O homem não é educado para reduzir o consumo, ao contrário, é estimulado a consumir cada vez mais, sendo ele o maior responsável pela crise ambiental no nosso planeta, como confirma Leff (2001, p. 190) “a crise ambiental atual mostra essa negação dos limites da pro-

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dução que, em vez de resignificar a vida econômica, persiste em sua compulsão á repetição numa obsessão pelo crescimento infinito”.

Questão 5. A Senhora realiza alguma (s) prática (s) pedagógica (s) no CEIM Bairro Santa Cândida relacionada ao Meio Ambiente?F1 e F5 não realizam práticas pedagógicas no CEIM relaciona-

das ao Meio Ambiente. F2, F3, F4 dizem que ensinam as crianças que não se podem jogar lixo no chão, cuidar das plantas, da água e dos animais.

Identificamos que 60% dos professores relataram realizar as prá-ticas pedagógicas no CEIM. Porém, estas práticas pedagógicas ainda estão descontextualizadas, pois, segundo Loureiro (2004), estão volta-das apenas para a solução de problemas de ordem física do ambiente.

Assim, a emergência de formação continuada e permanente evi-dencia-se à medida que quase metade dos professores não realiza práti-cas pedagógicas de Educação Ambiental, e os que realizam, ainda são desarticuladas e unidimensionais. Então, este aperfeiçoamento permiti-rá aos professores reverem suas práticas pedagógicas ambientais, sendo motivados a estudarem e pesquisarem sobre o assunto.

De acordo com Loureiro (2004, p. 81):

A falta de percepção da Educação Ambiental como processo educativo, reflexo de um movi-mento histórico, produziu uma prática descon-textualizada, voltada para a solução de problemas de ordem física do ambiente, incapaz de discutir questões sociais e categorias teóricas centrais da educação.

Concordando com a reflexão do autor, as práticas pedagógicas necessitam desenvolver atitudes que possibilitem assumir uma posição crítica e participativa do aluno, com relação às questões ambientais, onde o mesmo desenvolva a percepção de que os recursos naturais po-

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dem acabar um dia e o seu uso inadequado afetará também as gerações futuras. Ao professor carece então, contextualizar a sua prática pedagó-gica, considerando a multidimensionalidade da realidade, posicionando seu conhecimento na área ambiental de forma que o aluno compreenda e apreenda sobre as relações homem/ natureza, e sinta-se inserido na realidade complexa de seu mundo.

Questão 6. O (A) Senhor (a) entende como importante trabalhar Educação Ambiental (água, saneamento, etc.) em um CEIM? Todos os professores entendem como interessante trabalhar Edu-

cação Ambiental em um CEIM. F1, F2, F3, F4, F5 dizem que é para cuidar da natureza, preservarem o planeta, os gastos com a água, só desta forma podemos tentar fazer algo para o futuro das crianças.

A Educação Ambiental ainda é pouco explorada nos CEIMs de Lages, talvez pelo fato da maioria dos professores não possuírem o co-nhecimento para desenvolverem suas atividades pedagógicas voltadas para a questão ambiental. Se os professores tiverem este conhecimen-to, poderão proporcionar aos alunos um desenvolvimento na área am-biental contando com a participação dos pais e observando a realidade local, provocando discussões e reflexões críticas a respeito do papel de cada um em relação ao Meio Ambiente, auxiliando-os para outra visão de mundo, um mundo sustentável, com qualidade ambiental para a população.

Talvez, desta forma, a EA consiga sair de um lu-gar muitas vezes situado à margem da escola (ati-vidades extraclasse que ocorrem no tempo “livre” dos professores e alunos, por exemplo) para ter alguma ação de transformação sobre o que pode-ria se chamar “núcleo duro” da formação de pro-fessores e da organização das práticas escolares (CARVALHO, 2004, p. 60).

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O homem e suas relações com o Meio Ambiente, a valorização e o respeito à natureza são características próprias da Educação Am-biental, sendo assim, ela necessita ser discutida na Educação Infantil trazendo consigo uma ampla visão da educação, esta “que é ao mesmo tempo transmissão do antigo e abertura da mente para receber o novo, encontra-se no cerne dessa nova missão” (MORIN, 2000, p. 72), con-tribuindo, assim, para o entendimento complexo do Meio Ambiente.

Considerações Finais

Buscamos com o estudo compreender qual a percepção ambien-tal dos professores do CEIM Bairro Santa Cândida na área de abran-gência do Aquífero Guarani – (Lages-SC) e suas práticas docentes com relação à Educação Ambiental.

Mediante o perfil dos professores pesquisados, observamos que a maioria tem nível superior completo, com pós-graduação, o que propor-ciona um amplo conhecimento em diversas áreas. Porém os seus conhe-cimentos ainda são reduzidos com relação à Educação Ambiental, pois estão com discurso baseado no senso comum, sem a elaboração de um saber ambiental. Segundo Telles; Arruda (2011, p. 31)

É através do saber ambiental que se inscrevem e se expressam processos ecológicos e culturais, econômicos e tecnológicos. É este saber que gera sentidos e mobiliza os atores sociais a se posicio-narem diante do mundo. O saber ambiental leva a marca da língua e da história; um saber prático que, somado a representações míticas, significa-ções, traços culturais e aprendizagens cotidianas levam o homem a cuidar ou não de seu meio am-biente e de seu destino comum.

Ao analisarmos as práticas pedagógicas de EA realizadas pelos professores, percebemos que estão descontextualizadas, voltadas ape-

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nas para soluções de problemas de ordem física do ambiente (LOUREI-RO, 2004), sem uma reflexão crítica sobre as questões socioambientais, com dados isolados, sem situá-los no seu contexto, carecendo o pro-fessor posicionar seu conhecimento na área ambiental de forma que o aluno compreenda e apreenda sobre as relações homem/ natureza, e sinta-se inserido na realidade complexa de seu mundo. E “[...] é impor-tante destacar, aqui, que se entende que as questões socioambientais locais, ou seja, o cotidiano da comunidade, deveriam estar inseridas de forma permanente nas práticas pedagógicas e não somente vistas como um projeto, uma ação ou uma atividade” (FRANZOI; BALDIN, 2009, p. 101).

Percebemos também a necessidade de mais aperfeiçoamento, por parte da Secretaria da Educação do Município de Lages, de cursos, pa-lestras, debates, para os professores de Educação Infantil, a respeito de saberes sobre Educação Ambiental, para que estes possam construir a sua aprendizagem junto aos seus alunos.

Com relação ao Afloramento do Aquífero Guarani existente no bairro Santa Cândida, somente um professor disse ter conhecimento deste local, que fica a apenas quatro quadras do CEIM onde leciona. A falta de percepção ambiental do entorno do CEIM por parte dos pro-fessores, não é só falha deles, pois este assunto não está dentro das dis-cussões do seu planejamento diário. Como Lages faz parte do Sistema Integrado Aquífero Guarani/Serra Geral, estes professores poderiam ter sido qualificados sobre esta região singular, possibilitando assim um aprofundamento e práticas pedagógicas sobre o tema, esclarecendo para eles, para os alunos e também para a comunidade em geral, sobre a necessidade de preservar e conservar este lugar.

Neste sentido espera-se com este estudo que as Práticas Docentes em Educação Ambiental na Educação Infantil em área de abrangência do Aquífero Guarani – Lages (SC) passe a fazer parte das preocupações dos gestores para compor os cursos de formação, bem como elemento dos currículos na formação inicial.

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Itinerários comuns por caminhos diferentes:Educação do campo e as escolas multisseriada em Lages, SC.

Geraldo Augusto Locks19

Simone Rafaeli Pacheco20

Início da Conversa

Este texto é um recorte de dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico da Universidade do Planalto Ca-tarinense (PPGE/UNIPLAC), com o adendo de reflexões atualizadas. O itinerário histórico de práticas sociais de seus autores, como é proposta neste trabalho, caracteriza-se por um deles ser professor integrante do colegiado e a outra, egressa do Programa em 2013. Ambos encontra-ram-se por uma identidade comum, mas por trajetórias diferentes no tempo e no espaço de seus projetos de vida. Isto traduziu-se pela in-terlocução na orientação do projeto de dissertação, por terem origem no campo, oriundos da modalidade de escola multisseriada e profissio-19 Doutor em Antropologia Social e Pos-Doutorado em Educação.20 Mestre em Educação pela Universidade do Planalto Catarinense.

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nalmente serem docentes respectivamente no ensino superior e na rede municipal de educação de ensino de Lages, SC. O trabalho está ancora-do no Grupo de Pesquisa em “Educação e Desenvolvimento Territorial: políticas e práticas”, tendo uma das suas Linhas de Pesquisa “Educação do Campo”, do PPGE/UNIPLAC, liderado pelo professor coautor deste estudo, no qual todos são pesquisadores. Iniciamos apresentando alguns dados que apontam para o cenário atual das escolas rurais comparados com as escolas urbanas brasileiras, em termos de números de unidades, de matrículas e o nível de formação dos professores que atuam em es-colas do campo. Isto permite fazer um paralelo posterior com o cenário das escolas do meio rural do município de Lages. Os dados também nos encorajaram na escolha deste tema, pois embasados na pesquisa tivemos a percepção de que no município de Lages, desenvolve-se uma política educacional bastante diferenciada sobre a escola multisse-riada em relação a muitos outros municípios brasileiros que passaram a fechar, paralisar ou nuclear suas escolas. Seguimos contextualizando o campo empírico da pesquisa, com a apresentação de dados históricos, do território educacional das escolas e examinamos finalmente suas práticas pedagógicas. Para tal empreendimento, utilizamos a pesquisa etnográfica onde a método da observação participante e a descrição das práticas pedagógicas constituíram o texto etnográfico. Sendo impossí-vel neste espaço apresentar o conjunto do estudo realizado acerca das escolas multisseriadas existentes no meio rural do município de Lages, apresentamos à guisa de conclusão, apontamos para alguns avanços e lacunas no desenvolvimento da política educacional desenvolvida atu-almente pela Secretaria Municipal de Educação de Lages.

A modalidade da escola multisseriada oferecida especialmente, no meio rural brasileiro, historicamente tem sido a forma de acesso ao ensino formal a uma significativa parcela dos povos que vivem e tra-balham no campo. Com a política de nucleação de escolas do campo, a partir de meados de 1990, milhares dessas unidades foram fechadas e seriadas nesses núcleos. Entre outras razões, este fato tornou-se pauta

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de organizações e movimentos sociais do campo e de universidades protagonistas do que veio se constituir no Movimento Nacional da Edu-cação do Campo, seguido da política pública da Educação do Campo ancorada na Secretaria de Educação Continuada, Diversidade e Inclu-são Social (SECADI) do Ministério de Educação a partir de 2002.

Não obstante o desenvolvimento desta política pública por mais de uma década, o cenário atual das escolas do campo pode ser identi-ficado com os seguintes dados. Segundo o MEC (INEP/MEC, 2013), o número de escolas rurais que atendiam a Educação Básica em 2013 era de 70.816, frente a 119.890 escolas do meio urbano. Comparado aos dados de 2003, quando existiam 103.328 escolas no meio rural, em 10 anos houve o fechamento de 32.512 escolas do campo. Em contra-partida, o número de escolas urbanas cresceu: em 2003, havia 108.605 escolas em funcionamento e, em 2013, a quantidade de escolas no meio urbano subiu para 119.890. Observando o número de matrículas, em 2013, do total de 50.042.448 matrículas da Educação Básica no Brasil, 5.970.541 eram de escolas rurais e 44.071.907 de matrículas pertenciam a escolas situadas no meio urbano. E do ponto de vista da formação dos professores, que atuam no meio rural, os dados do Censo Escolar 2010 (CENSO, 2010) demonstram que de pouco mais de 300.000 docentes, 75% atuam atuavam nas séries iniciais, 46,4% nas séries finais e 11,3% no Ensino Médio. Destes professores, 13,3% possuíam apenas o nível médio e 49,9 tinham formação de nível superior. Os dados indicam o total de 63,2% dos professores atuantes no meio rural brasileiro sem uma formação adequada.

Partindo deste panorama mais amplo, interessa-nos analisar na sequência a realidade das escolas multisseriadas vinculadas à Secreta-ria de Educação do Município de Lages. A apresentação do território educacional é fundamental enquanto construção histórica e cultural do locus no qual se insere o campo da nossa pesquisa. Locks (2010, p. 7) afirma que o território constitui-se “[...] pelo conjunto das relações exis-tentes entre os indivíduos na identificação de seus problemas, dilemas,

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contradições presentes na vida social e também na busca de soluções”. Assim, também a questão do território se constitui como intrínseca à “[...] natureza da vida social”, portanto é “[...] dinâmico, complexo, di-versificado”, o que requer “[...] um olhar atento e crítico para sua com-preensão e construção”. Em outras palavras, para esse mesmo autor, “[...] o território é a casa onde vivemos, trabalhamos e fazemos nossa história”.

Na constituição da territorialidade, portanto, a escola multisseria-da apresenta aspectos relevantes e peculiares. Dentre eles, destacamos a forma como se dá a ocupação e a estruturação deste espaço educacio-nal, ao considerarmos que a instituição dos municípios é caracterizada também pelos espaços geográficos estabelecidos por meio de processos sociais, econômicos, políticos e administrativos, onde os sujeitos cons-troem seus territórios, sua identidade e dinamizam sua cultura. A escola em sua materialização física aponta para a presença e ação do Estado na comunidade rural. Para essas comunidades a escola externaliza a presença do Estado enquanto instituição pública. Portanto, além de se constituir em espaço formal de educação, trata-se de um símbolo do Estado-nação e um patrimônio cultural a ser preservado.

O Município de Lages localiza-se na região Sul do Brasil, no Estado de Santa Catarina. Possui área física total de 2.632 Km², sendo o maior município do Estado em extensão territorial, dos quais 222,4 Km² na área urbana e 2.421,6 Km² na área rural (IBGE, 2010). É con-siderado município polo da região serrana, principalmente no que con-cerne à prestação de serviços públicos às comunidades pertencentes a Associação dos Municípios da Região Serrana. No que se refere aos as-pectos populacionais21, possui 156.727 habitantes, sendo que 153.937 (98,2%) residem no espaço urbano e 2.790 (1,8%) no espaço consi-derado rural, distribuídos nos distritos de Índios e Santa Terezinha do 21 De acordo com os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): “A população rural no Brasil é de 29,37 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). A base de dados é de 2011 e mostra que a população residente rural representa 15% da população total residente no País, que é de 195,24 milhões de pessoas. Em Lages, a ocupação rural corresponde a 1,8% dos mais de 156 mil habitantes da cidade. Nos municípios da Amures, cerca de 70% das pessoas que moram no campo, são agricultores familiares” (grifos nossos). Informações disponíveis em: <www.ibge.gov.br/censo 2010>. Acesso em 08 de julho de 2013 às 14h.

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Salto. Possui densidade demográfica de 59,6 hab/km², conforme censo demográfico do IBGE (2010).

Convém lembrar que não encontramos a denominação de Escola Multisseriada para as Unidades Escolares do Sistema Municipal de En-sino estudado. Oficialmente, sua designação é EMEF (Escola Munici-pal de Ensino Fundamental), segundo o Decreto Municipal nº 6668/02, da Secretaria Municipal da Educação22. Nossa análise parte do número de matrículas nas escolas multisseriadas de Lages, conforme pode ser visualizado no quadro abaixo.

Matrículas nas escolas multisseriadas em Lages

(Fonte: Setor de Estatísticas da Secretaria Municipal de Educação de Lages - SC)

Pode-se verificar que o número maior ou menor número de ma-trículas não tem determinado o fechamento de escolas como tem ocor-rido em outros municípios onde a política paralisação, fechamento e 22 A Instrução Normativa nº 004/02 de 04 de junho de 2002, estabelece que as denominações oficiais dos estabelecimentos de ensino do Sistema Municipal de Ensino de acordo com o Decreto n 6658/02.

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consequente nucleação de escolas intracampo ou em sedes municipais tem sido a regra geral na região do Planalto Catarinense. A tomada de decisão acerca do que fazer com as escolas cujas matrículas vem se reduzindo, tem sido predominantemente técnica e econômica em de-trimento de critérios didáticos e pedagógicos. As razões da redução de matrículas são diversas, mas sua análise foge do foco deste estudo.

São nos territórios apresentados no Gráfico abaixo que as Es-colas Multisseriadas estão inseridas para atender às comunidades do espaço rural. Em tal contexto e espaço, concentram-se, de acordo com os dados disponibilizados pelo Censo Escolar 2012 (INEP) e pelo Setor de Estatísticas da SME, 26 das 602 escolas multisseriadas catarinenses. Também, pode-se observar o número de professores em cada uma des-tas unidades escolares.

Docentes em escolas multisseriadas de Lages (SC)

(Fonte: Setor de Estatísticas da Secretaria Municipal de Educação de Lages - SC)

As escolas multisseriadas em geral possuem um professor, à ex-ceção da EMEB Índios e EMEF Salto do Caveiras, com dois docentes

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cada uma, para atender à legislação que prevê um docente para acompa-nhar alunos com deficiência que necessitem de cuidados diferenciados.

Quanto à política pública da Educação do Campo e consequente manutenção das escolas multisseriadas, o município de Lages disponi-biliza dados23 nos quais salienta que,

Na Educação em Lages, as escolas do campo, sempre tiveram papel relevante no desenvolvi-mento do município. Para a maioria das famílias que residem na zona rural, a escola de Ensino Fundamental é a única oportunidade de protago-nizar a qualidade e emancipação de seus filhos. A Escola tem buscado contribuir para a construção de uma sociedade sustentável, e para isso tem pro-curado respeitar os saberes técnicos, humanos e ambientais, oferecendo conhecimentos que visam fortalecer valores e a sensibilidade para consigo mesmo e o outro, considerando as diferenças dos grupos humanos e valorizando os diferentes sa-beres. [...] Em virtude da extensão territorial de nosso município, muitos alunos, utilizam vários meios de locomoção, em algumas localidades tem linha de transporte escolar.

Observa-se nessas colocações a relevância da escola multisse-riada para as comunidades rurais deste município. Essa necessidade de oferecer estudo aos filhos é uma das características da população brasi-leira que acredita na educação como caminho para um futuro melhor do que as condições sociais impostas principalmente às classes populares. A justificativa do município também traz essa ideia, da escola como possibilidade de emancipação social e, para isso, desenvolve-se, nessas escolas, segundo esse discurso, uma educação voltada à emancipação dos sujeitos do campo, situação averiguada na pesquisa empírica.

Vale aqui pontuar sobre algumas características peculiares das

23 Informações disponíveis em <http://www.seml.com.br/educacao_campo.php>. Acesso em 04/05/2013.

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escolas multisseriadas de Lages, no intuito de descrever como se orga-nizam para atender à demanda de alunos, adaptando calendário escolar, horários de funcionamento e a utilização do transporte escolar24, con-forme as especificidades de trabalho no campo, que requer tempo de-terminado para plantio e colheita, por exemplo, momento no qual toda a família geralmente trabalha em conjunto. Nesses casos, um calendá-rio que esteja adequado principalmente às características do trabalho agrícola tende a valorizar tanto o trabalho no campo quanto manter a escolarização dos filhos dos sujeitos do campo.

Os caminhos que levam à escola multisseriada no município de Lages: estrutura física, material e adequação à demanda

Quanto à estrutura física das escolas multisseriadas de Lages, a informação fornecida pela Coordenação do Setor da Educação do Cam-po da SML foi a de que a maioria é composta por uma sala de aula, um banheiro e uma cozinha, no mesmo prédio, podendo ser construções que variam entre madeira, alvenaria e pedra ardósia. Todas possuem energia elétrica e água encanada, contam com um pequeno acervo de li-vros, revistas e jogos didáticos fornecidos pela Secretaria Municipal da Educação e também pelo MEC, via PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola). Há também em cinco unidades escolares parques infantis alocados pela Secretaria Municipal e construídos em parceria com a comunidade.

Em quatro unidades escolares – EMEF Antonieta de Barros, EMEF Iara Bianchini Ávila, EMEF Professora Eni Rosa dos Santos e EMEF Visconde do Araguaia - o calendário escolar foi adaptado para regime integral por três dias da semana, sendo que em três destas escolas alguns alunos utilizam o transporte escolar para ida e volta da escola. 24 O Art. 28 da LDB Nº 9394/96 permite a adaptação do calendário escolar a população rural, desde que respeite a carga horária mínima e o cumprimento dos dias letivos. Assim como a Resolução CNE/CE 1 que “Institui Diretrizes Operacionais para a Edu-cação Básica nas Escolas do Campo, em seu Art. 7§ 1º.

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Devido à distância entre as escolas e a residência dos alunos, em outras nove escolas, alguns alunos também utilizam o transporte esco-lar, mas mesmo assim continuam sendo multisseriadas, demonstrando o deslocamento intracampo dos alunos conforme previsto no Artigo 4º, em seu Parágrafo Único, das Diretrizes Complementares, Normas e Princípios para o Desenvolvimento de Políticas Públicas de Atendi-mento da Educação Básica do Campo que preconiza: “Quando se fi-zer necessária a adoção do transporte escolar, devem ser considerados o menor tempo possível no percurso residência-escola e a garantia de transporte das crianças do campo para o campo”.

Nas escolas multisseriadas com mais de quinze alunos, a Secreta-ria de Educação disponibiliza um agente de serviços gerais, responsável pela preparação da alimentação escolar e limpeza da escola. Isso ocorre em quatro das 27 unidades multisseriadas desse território educacional. Nas demais unidades escolares, esta função é exercida pela professora. A EMEF Macacos possui também um segundo professor25 para atender ao aluno com deficiência devidamente matriculado na escola regular de ensino. A garantia de um segundo professor para auxiliar o atendimento para alunos portadores de necessidades especiais está regulamentada no Art. 1º, da Resolução nº 2, que estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o atendimento de políticas públicas de aten-dimento da Educação Básica do Campo, de 2008, em seu Parágrafo 5º:

Os sistemas de ensino adotarão providências para que as crianças e os jovens portadores de neces-sidades especiais, objeto da modalidade de Edu-cação Especial, residentes no campo, também te-nham acesso à Educação Básica, preferentemente em escolas comuns da rede de ensino regular.

Convém salientar que a SME no momento em que foi realizada 25 Segundo professor é aquele que possui entre outras atribuições acompanhar integralmente o aluno com necessidades especiais em todas as atividades pedagógicas, promovendo a integração do mesmo com toda a turma e assistindo aos demais alunos com a mesma atenção. Dado retirado do Projeto Segundo Professor para alunos Portadores de Necessidades Especiais. Atendendo ao que preconiza o Art. 208, Parágrafo III, da Constituição Federal.

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esta pesquisa possuía um setor específico de Coordenação de Educação do Campo, coordenado por uma professora com título de Mestre (UNI-PLAC) e um Supervisor Escolar Pós-graduado em Educação do Campo (UFSC), responsáveis pelo atendimento a professores, articulação de formação continuada e paradas pedagógicas, organização de documen-tos administrativos e pedagógicos e a adequação das atividades educa-cionais, no período de hora-atividade26 do professor com os projetos Explorer Literatura e Produção de Textos.

Em todas as escolas multisseriadas há, para alunos e professores, netbook individual, sendo que os professores recebem capacitação para trabalhar com esta ferramenta e repassar aos alunos esses conhecimen-tos. Porém, em algumas dessas escolas, não há acesso à internet, situa-ção que se justifica em função da não disponibilidade de linhas telefô-nicas nessas comunidades. A EMEF Salto do Caveiras possui, além de Laboratório de Informática, Assistência Pedagógica, com um professor específico para atender aos alunos.

Mesmo considerando que as inovações tecnológicas permitem outras possibilidades de contato dos sujeitos do campo necessitamos considerar que há comunidades rurais, inclusive escolas, que ainda não possuem telefone por antena ou rádio e nem mesmo antenas transmis-soras de sinais. Outro aspecto a ser considerado é que quando tratamos de populações rurais não estamos nos referindo aos médios e grandes proprietários rurais, que por certo possuem facilidades de água tratada, energia elétrica, telefone por antenas ou rádio. A população a qual nos referimos em geral é aquela que reside no campo e vive do trabalho no campo como agricultores familiares, arrendeiros, peões ou agregados, cujos filhos estão matriculados na escola do campo. O fato de os gover-nos, federal, estadual e municipal disponibilizarem materiais eletrôni-cos, computadores e professores para trabalhar com os alunos também a partir das inovações tecnológicas não é garantia de que os professores

26 Hora-atividade é o período reservado ao professor para realizar estudos, planejamento e avaliação, incluída na carga horária de trabalho previsto no Art. 67 da LDB 9394/96 em seu inciso V e regulamentado pela SEML por meio da Instrução Normativa Nº 002, de 18/03/2011.

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consigam viabilizar seu trabalho, haja vista as dificuldades de manejo destas tecnologias.

Em cinco Unidades Escolares há um Professor habilitado para a disciplina de Educação Física. Nas demais unidades escolares, o pro-fessor regente ministra essa área sob a forma de recreação escolar, por não ter habilitação específica.

Conforme prevê a legislação vigente, 20% da jornada de traba-lho dos professores é destinada para hora/atividade, ou seja, atividades extraclasses27, que são distribuídas em disciplinas de Educação Física, Literatura e Produção de Textos. Nas escolas onde não existe outro pro-fessor para suprir essa carga horária, o professor regente recebe aula excedente para trabalhar também nessas áreas do conhecimento. No espaço empírico desta pesquisa, somente onze escolas multisseriadas possuem outro professor para ministrar essas aulas, portanto, em dezes-seis escolas, os professores regentes recebem aula excedente28.

O corpo docente é constituído somente por mulheres. Portanto, uma profissão absolutamente feminizada. Dentre elas, vinte são con-cursadas e nove são ACT (Admitido em Caráter Temporário). Das vinte e nove professoras, vinte e uma delas moram na comunidade onde são docentes. As outras oito professoras residem em Lages, demonstrando assim pouca rotatividade de professores, uma vez que a opção por tra-balhar nessas escolas é das próprias docentes, por residirem na comuni-dade ou proximidades. O fato de estar em contato direto com a comuni-dade na qual a escola está inserida e onde esses docentes desenvolvem suas práticas pode ser um fator diferencial no trabalho dos profissionais que atuam em escolas do campo. Isso porque têm oportunidade de co-nhecer a realidade de cada um de seus alunos no cotidiano e espaço onde elas acontecem. Este fato converge para o Marco Regulatório da Educação do Campo quando o mesmo pressupõe que cada escola con-27 As atividades extraclasses são aquelas dentre outras, destinadas a preparação de aulas, planejamento, estudos, correção de provas, avaliação de trabalhos, registro de notas, atendimento aos pais e inerentes à profissão do professor, correspondentes a 20% de sua carga horária.28 O Art.321 – CLT refere-se à remuneração das aulas excedente onde prevê que sempre que o estabelecimento de ensino tiver necessidade de aumentar o número de aulas marcado nos horários, remunerará o professor, findo cada mês, com uma importância correspondente ao número de aulas excedentes.

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sidere a identidade sociocultural dos sujeitos que vivem e trabalham do meio rural. O Movimento Nacional pela Educação do Campo também considera relevante pedagogicamente a moradia do professor no local onde é oferecida a educação no meio rural.

Tendo em vista a Lei Complementar nº 353, de 03 de fevereiro de 2011, que dispõe sobre o Plano de Carreira e de Remuneração do Ma-gistério Público Municipal de Lages, os professores concursados que trabalham em escolas multisseriadas são parte integrante deste plano e os demais, ACT, recebem seus vencimentos de acordo com o que institui a Lei nº 11.738, que prevê como remuneração mínima o piso sa-larial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica.

Quanto à titulação e formação docente, ao nos referirmos sobre os professores com Ensino Médio, quatro (ou 13,8%) deles são con-siderados não habilitados, portanto leigos, por não terem habilitação específica para o exercício do magistério. Destes, dois estão matricula-dos em curso de nível Superior (Pedagogia). Dois (ou 6,9%) possuem somente o curso Normal/Magistério e os demais, em número de vinte e três (79,3%), possuem curso Superior com Licenciatura em Pedagogia, colocando Lages acima da média estadual em todos os níveis. Em âm-bito nacional, como já referido acima, a disparidade para cima é maior, dado que 63,2% dos professores em 2010, atuantes no meio rural não apresentavam formação adequada; 13,3% possuíam apenas o nível mé-dio e 49,9% tinham formação de nível superior (sem licenciatura).

A maioria das escolas multisseriadas funciona em um único pe-ríodo e espaço, agrupando crianças dos Anos Iniciais do Ensino Fun-damental. Os professores trabalham 20h semanais ou, em alguns ca-sos, complementam as outras 20h nas unidades escolares que oferecem Educação Infantil (creche) no contraturno, o que ocorre em quatro uni-dades escolares.

Convém salientar que quatorze professores possuem pós-gradu-ação na área da Educação e, destes, dois possuem pós-graduação em

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Educação do Campo NA Universidade Federal de Santa Catarina. O município disponibiliza bolsa de estudo para os professores que dese-jarem adquirir titulação superior e pós-graduação, independentemente se forem professores concursados ou ACT, incentivando assim a con-tinuidade da formação acadêmica desses docentes. Para reiterar essas informações, consideramos que o município de Lages se diferencia nesta política em relação a outros municípios quando desenvolve ações no sentido da formação de professores, embora tenhamos consciência de que a formação geral nem sempre garante as especificidades ou a formação pedagógica apropriada, em conjunto com oportunidades de atualização e aperfeiçoamento exigidas pela Educação do Campo, con-forme preconizado na Resolução nº 2, de 28 de abril de 2008.

Conforme dados coletados junto à Secretaria Municipal de Edu-cação, todas as escolas multisseriadas possuem Projeto Político Peda-gógico, discutido em conjunto com os professores e posteriormente complementado com a participação do coletivo escolar nas comunida-des, considerando as particularidades existentes em cada uma, abran-gendo os aspectos da atividade escolar que compreendem currículo e avaliação, capacitação dos professores, administração e organização da escola. Contudo, não podemos deixar de refletir que as informações e ações desenvolvidas pelo Estado, neste caso a Secretaria de Educação e a realidade pedagógica das escolas multisseriadas são convergentes, o que pode ser comprovado no momento em que confrontamos os dados teóricos e documentais com a prática cotidiana e as informações obti-das com os sujeitos pesquisados a esse respeito, constatações descritas adiante neste mesmo capítulo.

Considerações finais

Para efeito deste texto, omitimos a descrição etnográfica dos as-pectos físicos, materiais didáticos, rituais e práticas pedagógicas iden-tificados em cada escola estudada. Entretanto a temos presente e dela

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parte as análises que seguem. As primeiras observações em relação ao contexto e local da pesquisa trouxeram informações sobre as comunida-des, configurações culturais, sociais e econômicos. O segundo momen-to consistiu no (re)conhecimento dos sujeitos da pesquisa. A terceira etapa do trabalho voltou-se para os contatos e observações sobre o coti-diano das práticas pedagógicas objeto de nossas reflexões.

A presença de Outros Sujeitos nos remete a cole-tivos concretos, históricos, as classes sociais e os grupos subalternizados, os oprimidos pelas dife-rentes formas de dominação econômica, política, cultural. Remete-nos também a suas crianças e adolescentes. Os coletivos segregados no padrão de trabalho, de acumulação, de ocupação da terra, de poder/saber. Fazendo-se presentes não como pacientes, passivos e submissos, mas em ações, resistências, lutas e organizações, e se fazendo presentes como atores na cena escolar, social, política, cultural e na produção de saberes (AR-ROYO, 2012, p. 37).

O campo de nossas observações nos fez sentir como sujeitos que se colocam no espaço onde se desenvolvem práticas sociais, onde se pratica ações coletivas. E a escola multisseriada constitui um exemplo de coletivo que trabalha em conjunto para que os processos formati-vos nelas desenvolvidos tenham sucesso. Também foi nesses espaços que identificamos práticas pedagógicas descontextualizadas, ou seja, da formação a partir do livro didático disseminador de valores urbanos ou distantes da realidade local, dos exemplos fora do contexto dos alunos, das disciplinas, do material pedagógico.

Contraditoriamente a isso, encontramos sujeitos que trabalham juntos, estudam juntos, aprendem uns com os outros, do mesmo modo que as professoras se esforçam para agrupar seus alunos divididos em quatro, cinco níveis de ensino em um mesmo espaço e para dar conta do trabalho que, em outro espaço com outra modalidade de ensino, como a

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escola seriada, seria atribuição de um professor para cada turma. Con-forme Barros et al (2010, p. 31), para que o Estado e as Instituições de Ensino Superior, principalmente, possam interferir nas escolas do campo, são diferentes os desafios, dentre eles “[...] a necessidade de investigação das diferentes formas de organização do trabalho pedagó-gico realizadas em uma turma diferenciada por idades e aprendizagens, como forma de conhecer os saberes docentes construídos nesse trabalho pedagógico”. Esta pesquisa investigou as escolas multisseriadas inse-ridas no contexto rural e as práticas pedagógicas nelas desenvolvidas como forma de compreender essa dinâmica.

Nossas observações nos trouxeram mais dúvidas do que certe-zas, mas pudemos confirmar que as práticas pedagógicas nessas escolas oscilam entre a educação formal, historicamente compreendida como educação rural, ou seja, generalista e urbanóide, e as iniciativas peda-gógicas conforme preconizado pelo Marco Regulatório da Educação do Campo quando procura desenvolver conteúdos contextualizados tendo presente a especificidade, diversidade e complexidade da realidade e dos sujeitos do campo.

Santos e Moura entendem que,

[...] mesmo fortemente influenciados pelo para-digma curricular seriado, não podemos desconsi-derar a existência de uma “pedagogia das classes multisseriadas”, caracterizada por uma prática pedagógica fundada nos saberes construídos nas relações e mediações que se estabelecem no in-terior das classes multisseriadas, cotidianamente (SANTOS e MOURA, 2010, p.44-45).

Das confirmações que obtivemos, a mais relevante delas está na importância da manutenção dessas escolas para as comunidades nas quais estão inseridas. Elas são constituintes dessas localidades, con-tribuem para o desenvolvimento e a qualidade de vida das pessoas no campo, dão possibilidades de educação para os filhos dos sujeitos do

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campo e contribuem para manter uma cultura peculiar e que tem rele-vância às pessoas que moram no campo.

Considerando as práticas pedagógicas e o quadro dos professo-res, entendemos que há bastante a ser feito para que a Educação do Campo para o espaço rural do município de Lages se efetive nas escolas multisseriadas pesquisadas e isso pode ser encontrado na formação dos professores que vão trabalhar nessas escolas. Que seja um trabalho ini-cial direcionado para os princípios políticos pedagógicas da Educação do Campo nas Instituições de Ensino Superior e continuado por meio de políticas públicas sobre responsabilidade dos três entes federados, condizentes com as necessidades de formação dos sujeitos do campo para trabalharem na docência. Entendemos como necessário também o esforço do docente no sentido de manter-se atualizado, de conhecer as diretrizes que vão fundamentar sua prática para que possa, no cotidiano da sala de aula, adaptar o saber institucionalizado às necessidades dos sujeitos do campo. Para Azevedo e Queiroz (2010, p. 70), “[...] o traba-lho com turmas multisseriadas requer dos professores um grande esfor-ço e habilidades pedagógicas para lidar com [...]” as peculiaridades e a diversidade que envolvem alunos de idades e níveis de conhecimento diferenciados, o que os pais esperam do trabalho docente, a influência da escola e do professor no cotidiano das comunidades rurais e, princi-palmente, a função da escola situada no campo e aos sujeitos que nele habitam.

Compreender isso e colocar em prática a Educação do Campo de fato requer um trabalho a ser realizado em conjunto com todas as ins-tituições e sujeitos envolvidos com esse processo – o consórcio União, Estado e Município, Secretaria Municipal de Educação, União Nacio-nal dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), gestores, pro-fessores, alunos, pais e a comunidade rural na qual a escola se encontra inserida - e, principalmente, que as ações decorrentes levem em conta o que o sujeito do campo pensa, seus interesses e suas necessidades em relação ao que será realizado na escola do campo. Como foi pos-

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sível observar, a política educacional voltada para a Educação Básica no meio rural promovida pela Secretaria de Educação do Município de Lages, se distingue em muitos aspectos em relação aos números e demandas nacionais, ou seja, a na manutenção das escolas do campo, o nível de formação acadêmico de seus professores, em muitos aspectos pedagógicos também converge para o Marco Legal da Educação do Campo, entretanto, muitos desafios a serem enfrentados estão no cami-nho. Apontamos dois que para são interconectados, sendo um na esfera das metodologias e conteúdos adequados às realidades dos sujeitos, o outro em relação à formação específica dos docentes. Desejar-se-ia que os mesmos acessassem à Licenciatura em Educação do Campo, para uma compreensão mais abrangente da escola do campo quando a Edu-cação do Campo, conforme preconiza seu Marco Legal, é assumida pela política pública municipal de educação.

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AZEVEDO, Márcio Adriano, QUEIROZ Maria Aparecida (orgs.). Políticas de educação (a partir dos anos 1990) e traba-lho docente em escolas do campo multisseriadas: experiência em município do Rio Grande do Norte. In: ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel; HAGE, Salomão Mufarrej (orgs.). Escola de direi-to: Reinventando a escola multisseriada. Belo Horizonte: Autên-tica Editora, 2010. p. 61-72

BARROS, Oscar Ferreira et al. Retratos de realidade das escolas do campo: multissérie, precarização, diversidade e perspectivas. In: ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel; HAGE, Salomão Mufar-rej (orgs.). Escola de direito: reinventando a escola multisseriada. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p. 25-33.

BRASIL, MEC/INEP/Deed. Censo Escolar de 2012. Instituto de Pesquisas Anísio Teixeira – INEP, 2012.

CENSO ESCOLAR 2010. Todos pela Educação. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/um-terco-dos-profes-sores-do-campo-tem-formacao-inadequada/n1597739247169.

html.Acesso em: 20 jul.2015.

LOCKS, Geraldo. Projeto Educação do Campo: Novas Práticas. Lages: Centro Vianei de Educação Popular, 2010.

INEP. Dados do Censo Escolar 2013. Disponível em <http://por-tal. Inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-sinopse>. Acesso em: 18 jul.2015.

BRASIL. Resolução CNE nº 02, de 28 de abril de 2008. Estabe-lece diretrizes complementares, normas e princípios para o de-senvolvimento de políticas de atendimento da Educação Básica do Campo.

SANTOS, Fábio Josué Souza, Moura Terciana Vidal (Orgs.). Po-líticas educacionais, modernização pedagógica e racionalização do trabalho docente: problematizando as representações negati-vas sobre as classes multisseriadas. In: ANTUNES-ROCHA.

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Retomada do Conceito de Diálogo no Percurso de Docente Pesquisadora

Vanice dos Santos29

Início da Conversa

Pensar itinerários é pensar, lembrar o percurso, ideais, apostas e, também, teorias que buscamos para fundamentar as práticas do-centes. Várias são as possibilidades de desenvolver um tema, e como nessa proposta trabalharemos com percursos no constituir-se profes-sor pesquisador, optamos pela leveza do ensaio. Além disso, optamos em desenvolver esse texto como um ensaio, pois nossa intenção aqui é compartilhar um dos conceitos que em nosso percurso foi se revelando premente: o diálogo.

As reflexões que doravante desenvolveremos, situam-se no cam-po da filosofia e educação. Estas estão circunscritas pela formação na área da filosofia e na área da educação, também na prática docente – e de pesquisa – em filosofia e educação.

Fazendo uma retrospectiva, procurando pela constituição dos 29 Doutora em Educação.

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campos de saber, encontramos na Grécia Antiga a Filosofia e nesta, a atenção para com a formação dos cidadãos. A Pedagogia como uma disciplina é uma das consequências da Modernidade, assim como de-mais ciências. Cabe ressaltar que a relação entre filosofia e educação sofreu movimentos. Inicialmente a filosofia contemplava várias di-mensões da vida, como por exemplo, questões da educação, ética, retórica e da política. Mesmo após a demarcação em áreas do co-nhecimento distintas, filosofia e educação estão imbricadas. Tal modo de confluência da filosofia, como conhecimento de fundamentos, nos processos educacionais contribui com conceitos como natureza, ho-mem e mundo, por exemplo. Tais conceitos adentram na educação, estando presentes, de modo evidente ou velado, em concepções acer-ca dos temas da educação também em questões como: o que é educar, para que educar, quem pode educar. De outro modo, aproximações entre filosofia e educação podem manifestar-se quando nos ocupa-mos com a tarefa da educação, com o pensar-agir do docente, com a pesquisa em educação pois ambas – filosofia e educação - se ocupam com questões epistemológicas (do conhecimento) e éticas (princípios norteadores para o nosso agir).

Na esteira das aproximações entre filosofia e educação, a fim de proceder a uma breve retomada do conceito de diálogo no per-curso de docente pesquisadora, este texto está organizado em três partes. Na primeira parte, como breve panorama de onde emergirá a questão do diálogo, retomamos (1) aspectos da formação inicial do professor, contemplando projetos de educação/formação per-passados por dimensões éticas e políticas. Na segunda traçamos (2) considerações sobre a condução do exercício docente em proces-sos educativos, especialmente sobre a racionalidade orientadora nos processos educativos e a necessidade do diálogo. A partir disso, na terceira parte, pensaremos (3) sobre diálogo em múltiplas facetas: na interlocução com os pares, como método do mestre e; como ine-rente a vida na ágora digital.

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Formação inicial do professor: perscrutando filosofia e educaçãoNa intenção de recuperar traços da trajetória do pesquisador do-

cente, em especial como foi surgindo a necessidade de observar, com-preender e empreender atitudes pedagógicas orientadas pelo conceito diálogo, abordaremos a formação inicial.

Iniciar a formação acadêmica exige muitas decisões, dentre elas a escolha pela área a estudar – para depois trabalhar. Mas, dependendo da área isso não é suficiente. Em alguns casos é preciso ainda decidir, na graduação, entre bacharelado e licenciatura. Para essa decisão, que à princípio pode ser considerada apenas de caráter particular, questões epistemológicas se apresentam. Tal deve-se ao fato que a pergunta - ba-charelado ou licenciatura – carrega em si relações do sujeito para com o conhecimento. Então a questão transforma-se em: trabalhar com o conhecimento (pesquisa e/ou aplicabilidade deste) ou com o conheci-mento em seu caráter educativo/pedagógico?

Dado o foco deste texto, nos dedicaremos a traçar considerações sobre a licenciatura, pois que o bacharelado não habilita para ser profes-sor. O que, de modo geral, habilita para ser professor? É necessário que o futuro professor estude disciplinas da pedagogia, que pense educação sob múltiplas facetas: filosofia, história, sociologia, psicologia, didáti-ca, legislação, metodologia do ensino, por exemplo.

Bem, àquele que opta pela licenciatura também cabe dedicar-se à determinado campo de conhecimento. E mais, pois além dos estudos específicos do campo a lecionar, pressupõe-se como necessário que co-nheça os fundamentos da educação.

O caráter pedagógico da filosofia

Reconhecer (re)aproximações entre filosofia e educação foi pos-sível somente após percorrer parte do caminho. Estar cursando licen-ciatura em filosofia, por si só não garante a compreensão imediata das

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vinculações entre filosofia e educação. Essas foram se revelando passo a passo, quando do estudo de um e de outro texto filosófico. Nestes, a cada tema, a cada conceito, lá estavam questões e argumentos que miravam numa vida melhor. E o que pretende a educação se não a vida melhor?

Bem, reconhecer que há algo em comum não significa negar es-pecificidades, nem tentativas de reduzir ao mesmo. De algum modo, aponta para um projeto comum. Adentrando nos caminhos da licencia-tura, somos levados a pensar nos projetos educativos. Destacaremos brevemente três projetos educativos: 1) paideia; 2) humanitas e; 3) bil-dung.

O projeto educativo da paideia reconhecido como projeto grego de formação do homem a fim de desenvolvê-lo em sua integralidade. Esse ideal de formação compreendia aspectos históricos, aspectos espi-rituais, filosóficos, ou seja, o ideal de civilização da cultura grega. Nesse contexto, ideal significa a busca pela excelência humana. No período clássico da Paideia – século IV a.C. – à filosofia interessava modos de viver orientados pelo bem, pelo justo, pelo verdadeiro. O filosofar im-plicava então em colocar a si mesmo em questão. Assim a ênfase estava em modos de saber almejando o melhor que podemos ser. Assim sendo, na concepção de formação da Paidéia30, filosofia e pedagogia estavam imbricadas, pois ambas tinham a formação humana como ideal. Nessa concepção de homem como ser ético e político, era relevante ainda o autoconhecimento. Formação abarcava contemplação e ação.

A humanitas latina desenvolve-se no contexto da Roma imperial. Nesta, uma forte ideia da difusão dos valores dessa sociedade porque civilizada, em contraposição aos povos bárbaros. Neste contexto inicial da humanitas31, presente está a ideia de que o homem tem em si uma disposição para aprimorar-se, tornando-se cada vez mais humanizado. Entendendo que essa formação deverá ocorrer no decorrer da existên-

30 Ao leitor interessado em compreender a Paideia, sugerimos ir aos textos dos próprios filósofos clássicos Sócrates, Platão, Aris-tóteles e, também aos sofistas. Texto mais recente, publicado originalmente em 1936 é considerado referência para aqueles que buscam adentrar na Paidéia: a formação do homem grego, pois estudo aprofundado realizado por Werner Jaeger.31 A humanistas desdobra-se em humanismo. O Renascimento europeu revisita e amplia o humanismo latino, vindo a influenciar o projeto de educação do iluminismo.

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cia, tal poderia se dar com a elite – os demais, ocupados com o trabalho manual, não disporiam de tempo para o que essa educação requer. Per-dura na humanitas32, desde a paideia grega, como formação ancorada em valores que irão reverberar na sociedade.

A Bildung é o projeto de educação que emerge no contexto do Iluminismo, cujo ideário filosófico e pedagógico visa a formação esté-tico e moral da humanidade. A visada aqui é de que, através da com-preensão racionalizada, o sujeito e o espírito de uma nação atinjam o esclarecimento33, estando preparados para a vida pública. Preparar-se para a vida pública implica em dedicação na formação, também na au-toformação34. Podemos constatar o desejo de um sujeito para desenvol-ver suas potencialidades, seus valores individuais e valores coletivos no romance de Goethe (2009). Mas, os dilemas que ocorrem no percurso autoformativo do personagem, de outro modo, se revelaram também como impasses para Rousseau: como educar a criança (que por nature-za é boa) que viverá em sociedade corrompida?35

Reconhecemos nos três projetos de formação, aqui sinteticamente abordados, o cuidado para com as dimensões culturais, com a vida ética e para com a vida política/pública. Pode-se perceber nuances entre tais projetos. Na bildung, em continuidade a paideia grega, é acrescida a autoformação e a educação estética. Também, encontramos no pensa-mento filosófico e pedagógico de Rousseau e Kant, o chamamento tam-bém aos pais, à sociedade e aos governantes, sobre a coresponsabilidade na educação. Embora concebendo que a responsabilidade da educação deve ser compartida, a pergunta pela tarefa do professor é posta.

Na paideia grega ao professor cabia a formação do cidadão, vi-sando contribuir para a excelência do humano em seu pupilo. Na bil-dung o professor deve, com o uso da razão, ocupar-se com o desen-

32 Dentre os teóricos da educação do período da Roma Antiga, Catão muito contribuiu com a formação do caráter; Marco Terêncio enfatizava as virtudes pietas, honestitas e austeritas; Quintiliano ressaltava que a educação deveria ocorrer num espaço de alegria e o discurso como principal conteúdo. Sêneca compreendia que a escola deveria ensinar para a vida.33 Na “Resposta a pergunta: o que é o Esclarecimento?” (1974), Immanuel Kant, filósofo prussiano, além de apresentar o significado de esclarecimento e analisa-lo no contexto do Iluminismo, traça distinções entre a razão pública e a razão privada.34 Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (Goethe, 2009), é um exemplo da bildungsroman e neste acompanhamos a traje-tória de um personagem em seu percurso autoformativo. 35 Rousseau enfrenta essa questão e a desenvolve – gerando outras –nos livros Do contrato social ou princípios de direito público (1973) e Emílio ou da educação (1995).

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volvimento do sujeito, ser o promotor da ciência, de outro modo, estar atento às dimensões epistemológica, ética e estética.

As investigações iniciais na área da filosofia revelaram coinci-dências com processos educativos. Mesmo que na Modernidade tenha ocorrido o surgimento de novas ciências, também a ruptura entre filo-sofia e educação36, o diálogo entre essas fazia questão.

Considerações sobre a condução do exercício docente em processos educativos

Anteriormente apresentamos projetos pedagógicos porque pres-supostos da filosofia e da educação constitutivos da história da educa-ção ocidental. Pretendendo retomar a emergência do conceito diálogo no percurso de pesquisadora docente, recuperaremos algumas constata-ções e surpresas no contexto da educação.

Bem, a formação inicial do professor apresenta algumas possibili-dades teóricas para a compreensão do que pode ser a tarefa docente. Ante-riormente procuramos apresentar confluências entre filosofia e educação, sobretudo quanto a núcleos identificadores de cada projeto pedagógico.

Ao adentrar no universo da docência, vamos colocando em exer-cício – em ação – aquilo que entendemos ser a nossa tarefa. Procuramos estar atentos para com o conhecimento específico, para as relações entre sujeitos, para os fins da ação educacional. No entanto, ao colocarmo-nos em movimento, além das teorias e pressupostos que estudamos durante a formação inicial, algo mais se faz presente: o outro, também os outros. E com a presença/em presença destes, novas questões vão se colocando.

De diversas maneiras, sendo para quem opte por enfatizar um ou outro aspecto da educação, do ensino e aprendizagem, chamamos atenção aqui para além da relação sujeito e objeto externo. Queremos aqui destacar, pensar um pouco sobre nossa disposição – nossos pressu-postos – na condução do educar.

36 Paulatinamente, a filosofia deixou de ocupar-se com a função pedagógica, desenvolvendo-se como sistemas filosóficos e, a peda-gogia buscou aportes em ciências como psicologia, sociologia, biologia para pensar o ensino e aprendizagem.

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1.1 Racionalidade orientadora nos processos educativosO exercício da docência pode propiciar ao professor a necessi-

dade de querer pesquisar sobre os pressupostos de racionalidade que orientam sua prática. Nesta oportunidade – docência – é possível querer identificar, compreender, decidir sobre o paradigma de racionalidade que queremos como norteadores de nossa ação pedagógica. Faremos aqui uma breve menção a dois modelos de racionalidade: discussão so-bre o conceito de racionalidade: filosofia da consciência e teoria da ação comunicativa habermasiana37.

A decisão em abordar esses dois modelos recai sobre o fato de apresentarem grandes diferenças. Em ambientes de educação formal, por vezes constatamos a ênfase na educação para o indivíduo, o domí-nio da técnica e a preparação para o mercado do trabalho. Noutras, a preocupação para a formação dos sujeitos, para o trabalho em direção a autonomia do educando. Abaixo apresentamos um quadro síntese acer-ca dessa problemática.

Quadro 1 - Paradigmas: filosofia da consciência e teoria da racionalidade habermasiana

Fonte: Adaptado de Hermann (1996).

37 A escolha por esses dois paradigmas tem forte inspiração no texto de Hermann (1996).

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conceito de racionalidade: filosofia da consciência e teoria da ação comunicativa habermasiana37.

A decisão em abordar esses dois modelos recai sobre o fato de apresentarem grandes diferenças. Em ambientes de educação formal, por vezes constatamos a ênfase na educação para o indivíduo, o domínio da técnica e a preparação para o mercado do trabalho. Noutras, a preocupação para a formação dos sujeitos, para o trabalho em direção a autonomia do educando. Abaixo apresentamos um quadro síntese acerca dessa problemática. Quadro 1 - Paradigmas: filosofia da consciência e teoria da racionalidade habermasiana

Razão centrada no sujeito Razão inscrita potencialmente na linguagem

Filosofia da consciência Linguagem

Atitude objetivante do sujeito; que se dirige a si e ao mundo exterior

Atitude mediada pela linguagem, participantes da interação coordenam seus planos pelo entendimento, através de acordos entre si sobre algo do mundo

Ação pedagógica, com fundamento formulado no âmbito da subjetividade

Ação pedagógica com fundamento na intersubjetividade (linguagem é condição que possibilita a construção do sujeito)

DIFERENÇA

Relação instrumental (sujeito-objeto) Relação comunicativa ou dialógica (sujeito-sujeito)

Razão solipsista Constitui a razão num processo dialógico

Fonte: Adaptado de Hermann (1996).

37 A escolha por esses dois paradigmas tem forte inspiração no texto de Hermann (1996).

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O diálogo aparece como força – e estratégia – motriz para o apri-moramento do sujeito. Isso propiciado pelo empenho que deve realizar ao enunciar, também pelo reconhecimento dos demais sujeitos e pela partilha de concepções e experiências de mundo.

Pelo diálogo é possível que cada sujeito se sinta coparticipe no mundo. A diversidade de pontos de vista, de saberes, o estabelecimento de normas acordados – via diálogo - permitem o sentido de pertenci-mento ao mundo e responsabilidade para com o mesmo.

Assim, do cotidiano, com o exercício da docência, conceitos como escolha, deliberação, agir racional, responsabilidade, tipos de discursos (dedutivos, dialéticos, retóricos ou poéticos) – presentes na filosofia da ação de Aristóteles – nos levaram a pensar no significado de diálogo na contemporaneidade, nos fazendo pesquisar a teoria comuni-cativa de Habermas.

Diálogos

Nesta parte apresentaremos diversas facetas do diálogo. Como neste ensaio a proposta é de retomar percursos do professor pesquisa-dor, traremos abordagens na disposição em que foram se revelando, em que foram adquirindo significados. As considerações sobre o diálogo estão assim dispostas: 1) na interlocução com os pares; 2) como método do mestre e; como inerente a vida na ágora digital.

Diálogo enquanto interlocução com os pares

Acima abordamos duas concepções de racionalidade que podem estar subjacentes no processo educativo. Enquanto uma dá ênfase ao solipsismo (filosofia da consciência) a outra (teoria da ação comunica-tiva habermasiana) valoriza a intersubjetividade.

Tornar-me professora pesquisadora, num caminho que iniciou na licenciatura e filosofia, passando pela docência no ensino fundamental

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e médio, estendeu-se por outros trajetos. Enveredar-me em outras tri-lhas, muitas vezes foi impulsionado por inquietações, pela necessidade, oriunda do próprio exercício da docência, de compreender aspectos da educação.

Ingressar e cursar Especialização possibilitou a interlocução com colegas e, nesta etapa, no compartilhar e analisar experiências. Quando no Mestrado, novas aprendizagens quanto a possibilidades de diálogo. Nossa experiência empreendia, orientados pela reflexão teórica, em: a) compartilhar e analisar experiências; b) desenvolver a própria escrita e levar para a comunidade de pares. Na fase de doutoramento, somou-se àquelas a responsabilidade da palavra no movimento com outros. O di-álogo foi sendo experienciado na forma de escritas em co-autoria. Tex-tos foram sendo articulados com pessoas imersas em outras instituições de ensino, também de outras áreas. Experiência profícua, pois diálogos ocasionaram textos escritos.

Tal exercício – diálogos – contribui para a tarefa de orientação, pois nesta precisamos saber escutar, acompanhar e propor encaminha-mentos junto ao orientando.

Diálogo como método do mestre

Quando pensamos na importância do diálogo para a formação, precisamos voltar à Grécia do tempo de Sócrates (469a.C. - 399a.C.) por diversas razões. Uma, porque nessa época o logos se manifestava na oralidade (Heidegger, 2001). Os filósofos e demais pessoas livres, se assim o desejassem, iam até a ágora ateniense (praça pública) e lá, uns com os outros, dispunham-se a pensar. Além disso, porque a maiêutica socrática foi o método pelo qual Sócrates, em diálogo, provocava trazer à luz as ideias de seu interlocutor.

Outra peculiaridade do procedimento de Sócrates era ensinar o que não se sabe. Em nossa época isso pode parecer estranho e aqui cabe justamente a diferença entre educador e instrutor. Enquanto este

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ensina o que sabe, àquele almeja movimentos entre saber e ignorância. Diálogo implica a predisposição dos interlocutores para adentrarem em alguma questão e seu constante (re) posicionamento.

Para que o leitor possa, de certa forma, conhecer a maiêutica socrática, destacamos intenções, movimentos que estão no diálogo Alcibíades I (Platão). Cabe ressaltar que, no início desse diálogo, Al-cibíades pergunta a Sócrates porque de sua aproximação, por que está propondo entrar em diálogo neste momento (105b-e38). A isso Sócra-tes responde que quando mais jovem Alcibíades não estava disposto para escutar.

Isto é relevante porque, como mencionamos anteriormente, é preciso disposição para o diálogo. No transcorrer do diálogo, vamos observando que Sócrates (mestre) lança questões que ainda Alcibíades não havia reconhecido. Mais adiante (108b) Sócrates pergunta como Alcibídes define “o melhor” e, frente aos titubeios de Alcibíades, o mes-tre provoca/convida: “para saber é preciso buscar [...] há busca quando crê ignorar [...]“ (109d). Neste trecho Sócrates ainda dá pistas de que as respostas estão em cada um – o saber não está no outro. Para conhecer é preciso aprender e descobrir.

Sócrates, na posição de mestre, em diálogo com Alcibíades, pro-voca este a pensar sobre quem que pode ensinar (111b) e sobre o mo-vimento pergunta/resposta, Sócrates posiciona-se “palavras que saem de tua boca [respostas] não podes atribuir a quem pergunta [no caso, a Sócrates, o mestre] ... e queres ensinar o que não sabe depois de ter-se desaprendido de aprender.” (113c). O que aqui parece estar em questão é: como querer ocupar o lugar de mestre se não quis continuar empe-nhado em aprender? Ainda, como querer ensinar se não reconhece que sabe nem o caminho necessário para saber? É necessário reconhecer-se como alguém que diz.

A tarefa do mestre está ainda em fazer o interlocutor ver quando

38 Posto que aqui estamos fazendo menção a uma obra clássica da filosofia, optamos por identificar os trechos a que nos referimos ao modo usual em obras clássica na área. Isto assim foi estabelecido para que o leitor, quando pesquisando a mesma obra em diversos idiomas, ou independentemente da edição que tenha em mãos, possa identificar o trecho.

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este quer ficar no lugar de quem não sabe. Como isto? Provocando o interlocutor a contestar, tendo como procedimento a demonstração e a prova.

Sócrates (no lugar de mestre) pergunta: “afirmamos que estamos dispostos a ser melhores?” (124b). Para ser melhor é preciso: dar-se conta que ignora; enfrentar a pergunta/dúvida; ousar responder.

Quase ao final desse diálogo, Alcibíades diz:

Bem, mas sim, eu gostaria de acrescentar que cor-remos o risco de mudar nossos papéis, Sócrates: eu tomarei o teu e tu o meu. Porque não há como evitar que a partir de hoje eu te instrua e tu deixe de me instruir [ou, que a partir de hoje eu te con-duza e tu deixe de me conduzir] (135e, tradução livre).

Com isso vimos que, em Sócrates, mestre é aquele que cuida do cuidado de si do outro.

O diálogo é inerente à vida na ágora digital39

Até o momento apresentamos algumas considerações sobre edu-cação no contexto da educação formal. Além disso, quando evidencia-mos o diálogo, o fizemos primeiramente como interlocução com os pa-res, depois em sua relação com a tarefa do mestre. Cumpre-nos ampliar considerações sobre a presença do diálogo e seu papel formativo.

Em pesquisa doutoral (Santos, 2013) investigamos em profundi-dade, e de modo ampliado, o conceito de diálogo. Analisamos a edu-cação, e projetos de educação, em ambientes digitais de aprendizagem. Percorremos alguns séculos em busca de significados de educação e modos de trabalhar em educação no ocidente. Em nosso longo cami-nho, chegamos à Atenas (via textos e imagens), buscamos vestígios em 39 As considerações dessa seção são oriundas da pesquisa que se encontra no livro Ágora digital: o cuidado de si no caminho do diálogo entre tutor e aluno em um ambiente digital de aprendizagem, de Santos (2013).

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textos de filósofos, de historiadores, de sociólogos, de urbanistas e até mesmo em livros de arqueologia. O que encontramos: pessoas na ágora.

O que havia na ágora ateniense que nos fez tecer relações com a educação? Havia pessoas conversando, pessoas passeando, pessoas trocando mercadorias, cambiando bens culturais e simbólicos.

Conhecer um espaço de efervescência de cultura, de diversidade de pessoas, apresentou-se como possibilidade para repensar os espaços digitais de aprendizagem. Dado que na ágora ateniense ocorriam trocas diversas, que este era um espaço de profusão de acontecimentos como o desenvolvimento da filosofia – sim, ali os filósofos se encontravam, dia-logavam, levou-me a um novo olhar para com a educação a distância.

A partir disso, cunhamos o conceito de ágora digital como espaço ampliado da educação. A vida em espaços digitais pode ser considerada como relevante no projeto formativo pois nestes, sujeitos exercitam seu protagonismo, apresentam seus pensamentos, interagem. Enfim, vivem em comunidades e são chamados a posicionarem-se.

Ambientes digitais promovem a vida em comunidades. Assim, colaboram para o exercício do diálogo, para a formação ética e polí-tica dos sujeitos. Favorece ainda a formação estética, pois dispõe de recursos para despertar a sensibilidade. Pensar em ambientes digitais como ágora digital é reconhecer que diversas facetas, pessoas, pontos de vista, estão presentes em nossa existência. Ter a disposição para o diálogo, aqui também, com tantos diversos, pode ser mais um elemento em nossa formação.

Considerações finais

Refazendo o trajeto de docente pesquisadora, identificamos que o conceito de diálogo sobressaia em diversas etapas. Ora quando bus-cando compreender as imbricações da filosofia e educação ainda na gra-duação, até os dias atuais.

Ao longo do texto, por vezes em seus meandros, fomos apresen-

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tando que o professor é pesquisador. Isso pode se dar quando planeja a aula que vai ministrar, quando reflete ocupar-se em refletir sobre algu-ma questão como, por exemplo, a racionalidade que dá sustentação a seu fazer pedagógico, até mesmo pela escolha do método – por exem-plo, o diálogo.

O professor pesquisador na pós-graduação não se constitui indi-vidual/isoladamente. Necessita projetos de pesquisa, orientandos, per-tencimento a comunidade acadêmica. Nessas diversas, evidenciam-se as intersubjetividades. Pesquisar implica ter um tema, desenhar e rede-senhar a pesquisa, ter na conversação e discussão jovens pesquisadores (pesquisar é não só aprofundar em discussão teórica, contempla ainda a formação de pesquisadores).

Além desse duplo compromisso: para com o tema e para com a formação de pesquisadores, outro compromisso social/público se apre-senta: publicar. Isto pode ser entendido para além do ato em si de es-crever, como um dedicar-se ao compartilhar processos e resultados da pesquisa.

Nosso empenho está – porque não se encerra com o ponto final deste texto - em trazer à tona a relevância do diálogo para a formação enquanto projeto filosófico e pedagógico cujo telos é o aprimoramento do que é humano no homem. É lembrar que, mesmo que em alguns momentos a educação tenha adquirido caráter instrumentalizador, po-demos recuperar as dimensões éticas, estéticas e políticas no campo educacional.

Programas de Pós-graduação em Educação podem constituir-se como espaços de diálogos. O alargamento de horizontes pode se dar também pela interlocução interdisciplinar. A abordagem e análise de determinada questão desenvolvendo-se com aproximação de discus-sões empreendidas pelos colegas, o pensar conjuntamente – dialogar -, a defesa, bem como a revisão de concepções pode ser um contributo para a educação. Sobretudo em tempos que clamam por convivência solidária.

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Educação permanente e a possibilidade de Auto-Organização Profissional

Melania Sartori Villani40

Marina Patrício de Arruda41

Início da Conversa

O artigo aqui apresentado diz respeito a uma revisão bibliográ-fica e resultado da soma de contribuições de diferentes autores organi-zadas no período de construção da dissertação de mestrado que incluiu discussões sobre Educação Permanente e Auto-organização. A busca de artigos científicos sobre os referidos termos se deu na base de dados: BVS, Medline, Lilacs e Scielo, Banco de Teses da CAPES, no perío-do entre 2005 a 2012. Para a localização dos artigos foram utilizadas as seguintes palavras-chaves: educação permanente, auto-organização e prática profissional. Também foram incluídos nessa revisão, artigos e livros publicados no Brasil. A técnica utilizada foi de análise da bi-

40 Mestre em Educação pela Universidade do Planalto Catarinense - UNIPLAC.41 Doutora em Serviço Social. Pós-Doutora em Educação.

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bliografia encontrada e compreendeu a leitura, seleção, fichamento e arquivo dos tópicos de interesse para a pesquisa em pauta.

O artigo de revisão descreve e discute conhecimentos científicos já publicados. Dessa forma:

A pesquisa bibliográfica pode ser considerada um procedimento formal com método de pensamento reflexivo que requer um tratamento científico e se constitui o caminho para se conhecer a realidade ou para descobrir verdades parciais. (MARCONI e LAKATOS, 2001, p. 34).

A Educação Permanente é bastante utilizada no campo da saúde como alternativa de transformação do trabalho. Trata-se de um proces-so pedagógico, proposto a partir de um espaço para pensar e rever o fazer profissional. A educação, por sua vez, é compreendida não ape-nas como uma exigência da vida em sociedade, mas sim um processo capaz de prover os sujeitos de conhecimento e das experiências cultu-rais, científicas, morais e adaptativas tornando-os capacitados a atuar no meio social, mundial e planetário, ou seja, ela depende também da articulação dos saberes (PASCHOAL 2007).

A formação do sujeito compromissado com o presente e futuro do mundo em que vive, está diretamente relacionado ao processo au-to-organização, o qual abre caminho para a possibilidade de refletir, criticar, analisar, ponderar, decidir, responsabilizar-se, posicionar-se e assumir-se frente às questões encontradas no cotidiano de sua prática profissional (PAIXÃO 2013)

Um processo de auto-organização pessoal e social considera o in-divíduo como dependente de fatores exógenos ou hetero-organizativos, os quais estão diretamente relacionados às influências adquiridas por meio do processo educativo que se estabelece em vários espaços, dentre os quais o familiar, o escolar e, também, o profissional (MACHADO 2007). O texto a seguir, está organizado de acordo com o levantamento bibliográfico realizado.

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Conceituando Auto-organização

No decorrer dos anos, muitas interpretações vêm sendo construí-das a respeito do conceito de auto-organização. Inerente a isso, Matura-na e Varela (1997) discutiram sobre a autopoiese, que seria o processo de se produzir continuamente a si mesmo, uma organização na orga-nização. Dessa forma, autopoiese representa a organização comum a todos os seres vivos, o que nas palavras dos autores im¬plica considerar que: “Um sistema é vivo porque é um sistema autopoiético.” (MATU-RANA, VARELA 1997)

Sobre essa nova concepção, Maturana e Varela (2001) esclare-cem que o conhecimento é mesmo entendido como um processo. Mas, para eles, toda “experiência cognitiva inclui aquele que conhece de um modo pessoal, enraizado em sua estrutura biológica”. A construção do conhecimento, portanto, tem como referência básica a autopoiese (au-tos: próprio; poiein: fazer, portanto, auto-fazer-se, fazer sozinho).

A autopoiese, por isso, compreende a rede de processos de pro-dução em que cada componente do organismo vivo, em relação de in-terdependência com outros componentes e em situações de afastamento do equilíbrio do sistema, possi¬bilita a emergência e a transformação dos comportamentos e das estruturas da rede e do organismo como um todo. (MATURANA;VARELA, 1997; CAPRA, 2002).

Conforme Capra (2002, p. 88): “Auto, naturalmente, significa ‘si mesmo’, e poiese – significa ‘criação’, ‘construção’. Portanto, auto-poiese significa ‘autocriação’.”

Com base no exposto acima, evidencia-se que os sistemas vivos possuem a capacidade de auto-organizar-se, de auto-produzir-se, po-dendo alcançar níveis de desenvolvimento superiores aos que estava, sendo que a condição necessária para esse processo é o afasta¬mento do equilíbrio do sistema vivo, o que permite afirmar que no equilíbrio não ocorre esse movimento. (MORSCHBACHER, 2007)

Seguindo a lógica desse pensamento, Capra (2002) destaca ainda que nessa constante ação de auto-organização compreende-se que:

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[...] o processo da vida – a incorporação contínua de um padrão de organização auto-poiético numa estrutura dissipativa – é identificado com a cog-nição, o processo de conhe¬cer [...] a mente não é uma coisa, mas sim um processo – o próprio processo da vida (p. 144).

Para o autor “a auto-organização é a emergência espontânea de novas estruturas e de novas formas de comportamento em sistemas abertos, afastados do equilíbrio, caracterizados por laços de realimenta-ção internos” (CAPRA, 2002, p. 80).

Sendo assim, ele apresenta três principais características dos sis-temas auto-organizadores, que são: a possibilidade de criação de novas estruturas e de novos com-portamentos; a emergência dessas novas es-truturas e comportamentos em situações em que o sistema se encontra afastado do equilíbrio; e a interconexidade não-linear dos componentes do sistema (CAPRA, 2002).

Outra autora que aprofundou os seus estudos sobre a Teoria da Auto-Organização foi Clara Costa Oliveira. No livro “A Educação como Processo Auto- Organizativo” (OLIVEIRA, 1999) no qual a au-tora traz múltiplas reflexões sobre o assunto e sua aplicação, traz estas referências no intuito de questionar a auto formação dos adultos como uma prática possível.

Ao compreender que a Educação Permanente conduz o profissio-nal a considerar sua auto-formação como meta a ser seguida por toda a sua vida. Nesse sentido, vale ressaltar o entendimento do sujeito no contexto da complexidade de Morin (2005), que o percebe como sendo aquele capaz de se auto-eco-organizar e estabelecer relações com o ou-tro, transformando-se continuamente.

A autoformação de acordo com Galvani (2002), não é concebi-da como um processo isolado. A autoformação é um componente da formação considerada como um processo tripolar, fundamentado por três pólos principais: si (auto formação), os outros (hetero formação),

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as coisas (eco formação). Não se trata da ego formação propalada por uma visão individualista mas aparece como o surgimento de uma cons-ciência original na interação com o meio ambiente. A auto formação se caracteriza pela estreita ligação entre reflexividade e interação entre a pessoa e o meio ambiente (GALVANI, 2002)

Considerando o pressuposto de que somos também seres auto-observacionais, Oliveira (2001) enfatiza que conosco ocorrem proces-sos holísticos de aprendizagem e alguns desses processos são processos de auto aprendizagem. Sendo assim, enquanto vivemos, estamos con-tinuamente a aprender a partir de perturbações que nos surgem no nos-so cotidiano, ou a partir de perturbações internas. Estas aprendizagens resultam em condutas diferenciadas, modos de significar o mundo pela ação que estão, por seu lado, a construir o mundo comunitário humano no qual, todos fazem parte e, onde se é educado (OLIVEIRA, 2001).

A auto-organização entendida aqui, relaciona-se aquilo que cons-titui um sistema a partir de elementos diferentes, sendo uma unidade e uma multiplicidade, ao mesmo tempo, não podendo, transformar-se o múltiplo em um, nem o um em múltiplo (PAIXÃO, 2013).

Nessa perspectiva, pode-se pensar a organização, segundo Morin (2010, p.350), a partir do princípio hologramático, em que não só a parte está no todo como o todo está na parte, o princípio dialógico, em que os antagonismos aparecem como estimuladores e reguladores, e o princípio da organização recursiva, cujos efeitos e produtos aparecem como necessários à sua própria causa e produção. A auto-organização aparece como processo permanente e indissociável de desorganização e reorganização em que há uma interdependência entre ordem/desordem/interações/organizações (MORIN, 2010).

O prefixo autos vem possibilitar a compreensão da autonomia organizativa. Presente na escala da mais simples célula, reconhecida como unidade viva elementar, a autonomia celular nos leva a compre-ender a ideia de uma organização que se organiza a si mesma ou se auto-organiza. E é essa mesma auto-organização que está inscrita na

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corporeidade humana, trazendo uma maior complexidade na sua cons-tituição (MORIN 2000).

Isso significa que, dada à capacidade e a necessidade da cons-tante auto-organização dos sistemas vivos, esses necessitam estar em constante processo de conhecer, de aprender e de interagir com o meio ambiente, a fim de que essa capacidade ocorra efetivamente, garantin-do, assim, a sua sobrevivência. Nesse contexto de mudanças, emergem novos entendimentos acerca da vida e da realidade, que através da au-to-organização, instiga, também, o repensar da educação com base em preceitos mais co-erentes e atentos às necessidades pós-modernas, ca-pazes de ressignificar a prática pedagógica alicerçados nos princípios da autopoiese, singularidades, solidariedade, respeito, responsabilida-de, ética, entre outros aspectos (MORSCHBACHER, 2007).

Nessa perspectiva, Morin (2001) apresenta um conceito diferen-ciado e aprofundado, o qual denomina de auto-eco-organização, que concebe o sistema como uma organização viva, rodeada por um ecos-sistema, que necessita ser considerado em seu ambiente. Como os sis-temas operam em rede, na qual cada componente ajuda a produzir e a transformar os outros, o fluxo constante de energia e matéria que ocorre dentro e fora do organismo permite sua adaptação, desenvolvimento e evolução, mantendo a circularidade global da rede (MORIN, 2002)

Um sistema é auto-eco-organizador porque se au-to-organiza, se autoproduz a partir de suas rela-ções com o meio, tendo, ao mesmo tempo, neces-sidade de extrair do meio exterior energia, matéria e informação, ou seja, os próprios componentes constituintes de sua organização, o que lhe con-fere sua condição autopoiética (MORAES, 2004, p. 86).

Segundo Moraes (2004), coloca que cada organismo tem a ca-pacidade intrínseca de se auto-organizar, de reconstruir-se e como co-nhecer e aprender requerem interpretação, criação e auto-organização

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por parte dos aprendizes, sujeitos ativos em sua interação com o mundo e a realidade que os certa, as situações de desequilíbrio, que requerem processos de auto-organização, são produtivas no desenvolvimento da aprendizagem.

Apesar dos autores utilizarem uma perspectiva biológica, é pos-sível se pensar no desenvolvimento do conhecimento por meio da auto organização. Esta visão é diferenciada e propicia uma reflexão acerca dos aspectos voltados para a educação (OLIVEIRA, 1999).

No que diz respeito à área de saúde, a principal contribuição da auto organização seria no sentido de se compreender a diversidade de fatores que, quando reconhecidos e administrados pelo próprio sujeito, podem favorecer o processo de construção da saúde e prevenção de doença.

Neste sentido, a auto organização não tem a pretensão de subs-titui ou corrigir os conhecimentos específicos de cada área e disciplina científica, mas contribuir para uma visão integral do ser humano que perpasse as diversas disciplinas que estudam os diversos aspectos deste ser, de modo a integrar as possibilidades já existente e trabalhadas e transcender para outras que surgirão (OLIVEIRA, 1999).

Construímos nossas aprendizagens em cima do que advém de fora, mas somos criadores do nosso mundo, pois também transforma-mos nosso mundo interno para que a aprendizagem aconteça, “não há mundo para nós a não ser mediante nossa leitura de mundo” (ASS-MANN, 1998).

A Educação Permanente em Saúde e o processo de Auto Organização

A educação constitui parte da vida das pessoas, pois, desde o nas-cimento, aprende-se e ensina-se algo a alguém, num processo contínuo, dinâmico e interativo, que visa a aprender a ser, aprender a fazer, apren-der a conhecer e aprender a viver juntos, características que fundamen-

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tam a educação. Por meio da educação, o homem evolui, pelo fato de pensar e usar esse pensamento para transformar o mundo em que vive (MORIN, 2000). Para tanto, o essencial é perceber o “inacabamento ou a inconclusão do homem”, tal como coloca Paulo Freire. Nesse sentido, ele ainda exemplifica:

O cão e a árvore também são inacabados, mas o homem se sabe inacabado e por isso se educa. Não haveria educação se o homem fosse um ser acabado […] é um ser na busca constante de ser mais e, como pode fazer esta auto-reflexão, pode descobrir-se como um ser inacabado, que está em constante busca. Eis aqui a raiz da educação (FREIRE, 1979, p. 14).

Nesse contexto, entendemos que o objetivo principal é o de in-centivar a pessoa para “estar à altura de aproveitar e explorar, do co-meço ao fim da vida, todas as ocasiões de atualizar, aprofundar e enri-quecer estes primeiros conhecimentos, e de se adaptar a um mundo em mudança” (DELORS, 1996, p. 77)

A educação que vislumbramos é uma educação que promova o bem-estar dos indivíduos envolvidos em seus processos e portanto lhes potencia a saúde. Assim, compreende-se a conectividade entre o senti-do de educação ao longo da vida e a saúde, pois através do ganho de conhecimentos, por aprendizagens rotineiras e formação, se potenciam no indivíduo os conhecimentos sobre si mesmo e sobre a sua saúde. (GOMES 2013)

A educação dos profissionais da saúde, especialmente na saúde pública, merece atenção especial, no sentido de prepará-los para vi-ver no mundo de rápidas transformações, no qual precisam conciliar as necessidades de desenvolvimento pessoal com as do trabalho e as da comunidade que prestam serviços. (PASCHOAL, 2007)

A Saúde Pública, em sua representação de nível primário com a implantação da Estratégia de Saúde da Família, amostra desta pesquisa,

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é evidenciada por necessitar cada vez mais de profissionais preparados para trabalhar em rede, para o qual precisam conciliar as necessidades de desenvolvimento profissional e pessoal. O profissional comprome-tido com as demandas da comunidade apresenta postura pró-ativa para resolução dos problemas. Princípios como responsabilidade, autonomia e a criatividade, levam à reflexão acerca da importância das relações sociais que asseguram a qualidade dos serviços em saúde.

A ideia de educação permanente é muito antiga. Fazendo-se uma retrospectiva na história da humanidade, percebe-se que o homem sem-pre se preocupou com a própria formação e atualização para atender às demandas e poder viver em sociedade. Mostra-se nesse fato então, a importância da educação que por sua vez sempre esteve ligada aos inte-resses e ideologias. O mesmo processo ocorreu e está acontecendo com a educação permanente, que sempre esteve e continua em consonância com os interesses do capital (LAMPERT, 2004)

No mundo contemporâneo, ela surgiu para atender ao desenvol-vimento tecnológico da indústria. A educação permanente traz contro-vertidas interpretações pelo motivo de excessos de terminologia e uma vasta gama de posicionamentos. Ela teve seu inicio a partir da Segunda Guerra Mundial, consequência do capitalismo, onde setores econômi-cos inteiros foram industrializados. Apostava-se que a educação e a cul-tura de massa seriam fatores chaves para o desenvolvimento econômico (LAMPERT, 2004)

O introdutor do tema no Brasil foi Pierre Furter, professor fran-cês que teve suas obras traduzidas no Brasil e Moacir Gadotti, brasi-leiro que foi até Genebra para estudar sobre o assunto. Tendo por base a condição humana, Gadotti evidenciava que a Educação Permanen-te possibilita reler constantemente a realidade, na qual somos sempre aprendizes.

Pierre Furter sugere o termo educação permanente para respon-der ao fato de que “o homem é um ser inacabado, que tende à perfeição e, por isso, se educa”; em consequência, a educação torna-se um pro-

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cesso contínuo que só termina com a morte. Para Furter, a prática dessa educação contínua deve ser objeto de reflexão, pois traz, em qualquer situação, o germe da mudança. Desta forma, o aludido autor não vincu-la a educação aos aspectos econômicos; afirma, apenas, que as funções sociais da educação devem ser submetidas ao caráter contínuo da evo-lução humana (FURTER, 1974)

Com a finalidade de proporcionar esta reflexão, a Educação Per-manente em Saúde, surge com um papel muito específico a partir de uma habilidade de aprendizagem contínua, desenvolvida pelo sujeito durante sua vida, por meio de suas relações pessoais, profissionais e sociais, no intuito de transformar-se, conforme ocorrem as mudanças do mundo. Dado que, na Educação Permanente, estão inseridas a Edu-cação Continuada e a Educação em Serviço, entende-se por Educação Continuada todas as ações educativas desenvolvidas após a gradua-ção, com o propósito de atualizar, aprimorar e adquirir conhecimentos, mediante atividades de duração definida e de metodologias formais. E como Educação em Serviço considera-se as ações educativas desenvol-vidas durante o processo de trabalho (PASCHOAL, 2007)

Dessa maneira, a Educação Permanente torna-se uma exigência na formação do profissional, pois requer dele novas formas de enca-rar o conhecimento. Atualmente, não basta ‘saber’ ou ‘fazer’, é preciso ‘saber fazer’, interagindo e intervindo, e essa formação deve ter como características: a autonomia e a capacidade de aprender constantemen-te, de relacionar teoria e prática e vice-versa. Tendo em vista a insepa-rabilidade do conhecimento e da ação(MORIN, 2002)

Esta contextualização leva à compreensão de que a formação profissional com qualidade deve ter uma sólida base de formação geral, em contínua construção, num processo de Educação Permanente, pois, desse modo, ocorre a complementação para a formação integral dos profissionais, de maneira que possam também atender seus pacientes de maneira integral (PASCHOAL, 2007)

Como se observa, os princípios da auto-organização contrapõe-

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se ao modelo tradicional de aprendizagem e suge¬re novas perspectivas à compreensão de aprendizado e, até mesmo, de educação. Dessa ma-neira, observa-se a pertinência de relacionar a auto-organização com a educação, pois apresenta uma concepção que questiona e busca superar os paradigmas predominantes e que propõe um novo conceito de apren-dizagem e também de vida (MORSCHBACHER, 2007)

Assim, torna-se relevante relacioná-la às concepções de apren-dizagem presentes na educação, com o intento de, além de responder, satisfatoriamente, ao questionamento norteador do trabalho e da prática educacional se possa ressignificá-los de maneira didático-pedagógica. A auto-organização relaciona-se, também, a outras teorias e propõem novas formas de pensamento, que tendem a transcender as perspectivas anteriores. Conforme já mencionado anteriormente, a partir da Auto-or-ganização, os sujeitos que aprendem mantêm-se em constante ato de aprender e viver (MORSCHBACHER, 2007)

Desafios da Prática Profissional em Saúde

A diversidade, as inovações e todo o conhecimento encontrados na nova dinâmica social apresentada pela sociedade contemporânea, mostram grandes desafios para a educação e formação profissional, mais especificamente para área da saúde.

No âmbito da saúde deve-se pensar numa educação para a com-plexidade, que auxilie na religação do saberes. Os saberes e as experi-ências devem ser compartilhados de forma a evitar o domínio de uma disciplina sobre as outras para, consequentemente, proporcionar um cuidado adequado capaz de atender as necessidades dos usuários res-peitando e aceitando as diferenças entre todos os envolvidos que impli-ca numa relação dialógica que considere a dinamicidade da realidade/sistema(EDDRMANN 2004)

A reflexão da prática profissional, principalmente na área da saúde e realizada no pequeno grupo constrói um caminho para que os

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trabalhadores se envolvam no processo de construção da integralida-de, um dos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde). Os profis-sionais necessitam preparar-se para oferecer, de forma conjunta, ações de promoção, proteção, prevenção, tratamento e reabilitação. Para isso, eles precisam refletir criticamente sobre seu processo de trabalho, via-bilizando estratégias para o reconhecimento de suas práticas integrais (CECCIM, 2005).

Os trabalhos em equipes multiprofissionais na saúde remetem à complexidade e promovem experiências que exigem o encontro com as fronteiras disciplinares, com as diferenças e com as vulnerabilida-des das pessoas. O profissional, na integração disciplinar, oscila entre o “isolamento paranóico” e a “fusão esquizofrênica” (CAMPOS, 2000, p.230). Ou seja, desafiado pelas dificuldades nessa prática, muitas ve-zes, ele encontra-se numa rotina confusa e desgastante, com polariza-ções que vão desde atitudes e ações isoladas até uma sobreposição dos limites das disciplinas.

Ao contextualizar o princípio da integralidade, apresentado pelo Sistema de Saúde atual no nosso país, evidencia-se uma situação para-doxal. Existem contradições no cotidiano dos serviços, principalmente no que tange aos trabalhos realizados por equipes multiprofissionais, diante da proposta de processos inter e transdisciplinares. Os trabalha-dores, na relação inter- profissional, acessam suas distintas formações disciplinares na realização das tarefas e encontram dificuldades na sua prática coletiva. É necessária a integração de diferentes paradigmas, conceitos e lógicas sobre a definição de saúde-doença pelas das diver-sas profissões no mesmo local de trabalho (COELHO, 2002).

Não podemos negar que o campo da saúde pública, ainda é mar-cado por conflitos de naturezas epistemológicas e de relações de poder entre as diversas áreas profissionais e suas respectivas lógicas. Paim (2000, p. 52) ressalta que

[...] o sujeito, é representado como um sistema aberto também fechado no exercício entre as fron-

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teiras disciplinares, e que com rigor científico e tolerância, os profissionais podem interdisciplina-rizar, realizar ações intersetoriais e trabalhos em equipes sem maiores conflitos.

Morin (2002), por sua vez, dá destaque a intersubjetividade como um elemento do sistema e como estratégia na realização das tare-fas coletivas, como, por exemplo, pela mediação reflexiva que, na pro-dução subjetiva entre os profissionais, gera novas estratégias e novas invenções. Estratégia que é aberta e reorganiza o caos, que comporta a variabilidade, encontrando recursos e desvios, operando regressos e afastamentos, enfrentando o imprevisto (MORIN, 2002).

É nas equipes multiprofissionais, no processo e organização des-se pequeno grupo, onde todos se conhecem e reconhecem em seus mo-dos de existência e nas diferenças e semelhanças que podem emergir estratégias e melhores práticas. Conforme citado acima por Morin, é exatamente a intersubjetividade entre eles que a experiência reflexiva propicia o reconhecimento e a legitimação das lógicas singulares, po-dendo viabilizar a integração dos saberes.

Diversos pensadores e pesquisadores em saúde já buscaram com-preender o trabalho coletivo em equipes multiprofissionais neste con-junto sistêmico e complexo do Sistema Único de Saúde – SUS. Essas distintas formas de relacionamento entre as disciplinas geram diferen-tes processos e organizações no trabalho entre os profissionais. Essa prática segmentada que aparece no processo de trabalho interprofissio-nal das equipes vem colidir com a possibilidade da integralidade da assistência a ser prestada (SEVERO, 2010)

O ser humano é ao mesmo tempo, plenamente físico e metafísi-co, biológico e metabiológico que se mantêm na aventura humana da dialógica entre ordem, desordem, interações e organização. No entanto, no modelo biomédico o corpo humano é considerado uma máquina que pode ser analisada em termos de suas partes e que, ao concentrar-se

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em partes cada vez menores do corpo perde frequentemente de vista o paciente como ser humano (MORIN, 2002)

Nesse particular, essa é talvez a mais séria deficiência da forma-ção profissional na área da saúde. Ganhou-se em detalhe, mas perdeu-se a totalidade. A ciência dilacerou o ser humano em mil fragmentos e sobre cada fragmento constituiu um saber especializado.

No campo da saúde, a produção de técnicas cuidadoras são a alma de todo serviço de saúde, embora nem sempre sejam reconhecidas como tal. É frequente a crença de que o objeto de trabalho em saúde é a cura, a proteção e a promoção da saúde. No entanto, a cura, a proteção e a promoção se constituem a finalidade de um processo de trabalho em saúde, que somente podem ser alcançados a partir de atos individuais ou coletivos, onde se conjugam saberes e práticas. Portanto, o objeto de todo processo de trabalho em saúde está centralizado, certamente, na produção de cuidado (MERHY, 1998).

A construção de práticas inovadoras em saúde exige o desloca-mento da intervenção dos profissionais exclusivamente sobre a doença para uma intervenção sobre a vida das pessoas. Nesta perspectiva, o objeto, a finalidade e os instrumentos do processo de trabalho em saúde necessitam ser reconfigurados (SEVERO, 2010)

No processo de transformação de um modelo de cuidado que aprisiona para outro que liberta, vê-se que a equipe de trabalho tem pa-pel fundamental. Barros, (2007) ressalta a importância da construção de novos olhares para o cuidado, onde seja possível a transformação social do papel dos profissionais em sua prática.

Nessa discussão, a partir de um processo dialógico, observamos que a contribuição da transdisciplinaridade na questão da saúde coleti-va e no princípio da integralidade é paradigmática. É necessário que a saúde seja entendida como sistema aberto, complexo e auto-eco-orga-nizado. O sistema aberto, desde a ótica tanto do sujeito ator quanto do sujeito concebido que é caracterizado por diferentes níveis de realidade, percepções, ideias e conceitos (MORIN, 2002),

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Como decorrência, emerge a concepção da integração sujeito-objeto e o entendimento de que o ser humano não pode ser capturado por uma única disciplina. É necessário lidar com as contradições en-contradas no cotidiano do trabalho, pois “Nada como desafios impostos pela vida para estimular sujeitos a reconhecerem pontos de quebra ou de contradição em suas teorias” (CAMPOS, 2000, p.864).

Essas reflexões colocam-nos frente à necessidade de agilizar o processo interdisciplinar nas equipes multiprofissionais, pois, diante de um contexto complexo e multifacetado, o processo de trabalho precisa da integração e diálogo entre diversos atores e seus saberes disciplina-res. É a ação modulando o saber e o fazer (PINHEIRO, LUZ, 2003).

A equipe multiprofissional favorece a reflexão sobre o papel pro-fissional e o processo de trabalho no interior das instituições por meio dos espaços de diálogos e percepções sobre as atividades e as dificulda-des na integralidade das ações. Sujeitos e disciplinas dialogando, com rigor e tolerância, sobre as distintas lógicas dos Sujeitos e das discipli-nas fazem emergir saberes/objetos transdisciplinares, tecidos a múlti-plas mãos (SEVERO, 2010)

A reflexão acontece na comunicação entre os elementos perce-bidos separadamente que formam o quebra-cabeça, através da inter-dependência entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, as partes entre si (MORIN, 2001). Nesse processo grupal, interprofissional e interdisciplinar que a intercomunicação entra nas re-lações humanas, construindo um mosaico caleidoscópico de vivências que nos desafiam à complexidade.

A experiência de trabalho na saúde coletiva sugere que deve-mos buscar novas estratégias e dispositivos que possam se configurar em práticas eficazes de humanização e acolhimento aos trabalhadores em saúde que, considerando o princípio da integralidade, revertam em melhoria na atenção integral ao usuário. O desafio é compreender e explicar esse processo de circuito cognitivo-prático do qual faz parte o trabalhador, desafio da integralidade lança-nos ao “desafio da comple-xidade” (SEVERO, 2010)

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Considerações finais

Com base na revisão acima apresentada, percebe-se que os estu-dos encontrados sobre as categorias pesquisadas apresentam diferentes compreensões mas que permitiram a organização de uma boa síntese para as pesquisas sobre formação profissional.

Educação Permanente, conforme o próprio nome indica, é um processo permanente de busca alternativas e soluções para os proble-mas reais vivenciados no cotidiano por pessoas e grupos, seja no traba-lho, na escola, no convívio social.

Essa estratégia pode ser entendida como um processo que in-fluenciará a reflexão e transformação das práticas existentes nos servi-ços, facilitando o enfrentamento e modificação da realidade por meio de uma relação de troca efetiva de experiências e de novos conheci-mentos. De um modo geral, o processo educativo não visa um fim em si mesmo, é sempre um processo inacabado, por isso a retomada do caminho é benvinda.

Ao relacionarmos educação e saúde, identificamos a necessidade de pensar numa educação ampliada e fundamentada na teoria da com-plexidade, onde os saberes e as experiências dos profissionais sejam compartilhados de maneira que não exista o domínio de uma disciplina sobre as outras, buscando sempre um uma articulação entre essas áreas que embora distintas são complementares.

A construção desse artigo de revisão reuniu artigos e livros de autores importantes sobre temas que têm sido amplamente discutidos nas pesquisas em Educação e Saúde configurando-se uma importante reflexão sobre a necessidade de mudança de pensamento e da prática profissional em saúde.

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Avaliação de desempenho e por performance: Limites e Possibilidades

Siomaraci Ferraz da Silva Bressan42

Lurdes Caron43

Início da Conversa

Apresentamos neste artigo um histórico sobre a avaliação de desempenho e por performance no contexto educacional, nas esferas nacional, estadual e municipal, delineando os encaminhamentos sobre o processo decorrente de políticas para a educação brasileira definidas por organismos internacionais voltados para o capital.

Relacionamos políticas educacionais no que dizem respeito à avaliação de desempenho e por performance com ênfase para alguns dos sistemas avaliativos existentes na educação brasileira e suas conse-quências para as escolas públicas. A leitura teve por objetivo refletir de que forma essa avaliação serve de instrumento e garantia de equidade na educação escolar.

No Brasil, há algumas décadas, quando se mencionava a avalia-ção, referia-se quase que exclusivamente àquela feita pelo professor, na sala de aula, com a intenção de verificar os conhecimentos dos alunos e avaliar sua aprendizagem. Com o tempo, esse procedimento sofreu

42 Mestre em Educação pela UNIPLAC.43 Doutora em Educação.

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modificações pertinentes como a avaliação da aprendizagem de ensino, interna e externa, institucional, autoavaliação, avaliação de sistemas, todas organizadas a partir de políticas públicas com vistas à qualidade do ensino e garantia de inclusão.

Nessa perspectiva, se faz necessário compreender o procedimen-to histórico que fez aparecer instituições financeiras internacionais, como Banco Mundial, por exemplo, para que se possa entender o modo como as políticas educacionais, em especial os processos de avaliação da qualidade da educação nacional têm sido desenvolvidos e implemen-tados em solo brasileiro.

O Banco Mundial (BM), criado em julho de 1944, a partir da realização da Conferência de Bretton Woods, nos Estados Unidos, no Estado de New Hampshire, tinha como objetivo fornecer empréstimos com prazos mais longos para o setor privado e ajudar na reconstrução das economias destruídas pela guerra. Os acordos foram válidos para as nações capitalistas comandadas pelos Estados Unidos, que aparecia como potência econômica e militar. Esse processo desdobrou-se com a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Inter-nacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), conhecido tam-bém como Banco Mundial, criado para recuperação e reconstrução da economia mundial (PEREIRA, 2012).

O Banco Mundial, instituído para ser o estabilizador da nova ordem econômica, financiou projetos nessa área e suas políticas for-taleceram a hegemonia dos Estados Unidos, porque se pautaram nas condições de domínio e poder. Desde então, sua influência nas questões econômicas, políticas e sociais vêm sendo sentidas principalmente pe-los países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, dentre eles os da América Latina e do Caribe. Na educação, diferentes são os programas direcionados por esse organismo aos países que assumem empréstimos com o BM. Para manter a aplicação de seus recursos, o referido Banco institui uma espécie de avaliação diagnóstica.

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Ao fixar um corpo de representantes como seu grupo de trabalho em determinada região, o Ban-co Mundial colhe diagnósticos de situações espe-cíficas, divulgando-os como modelos a serem se-guidos. E mais, a sua presença diária permite uma constante avaliação do devedor, no que se refere a sua capacidade de pagamento da dívida, monito-ramento e fiscalização quanto ao uso correto dos recursos, além de pressioná-lo para adotar com-portamentos adequados aos princípios do Banco, mas lesivos ao país. A posse de diagnósticos lo-cais permite que se apropriem das singularidades e as generalizem, e que se suprimam a história e a cultura da população local (SILVA, 2003, p. 287).

Está presente nessas ações a concepção capitalista de educação de seus mentores e organizadores que atribuem à educação a tarefa de formar mão de obra adequada às mudanças relacionadas ao mercado de trabalho. Desse modo, o mesmo modelo adotado para avaliar a ca-pacidade de pagamento das dívidas contraídas também é usado para avaliar o desenvolvimento dos projetos educacionais com tendência a formar pessoal especializado para suprir a demanda de trabalhadores ao serviço do capital.

A preocupação maior incide sobre a economia, garantindo uma falsa promessa de redução da pobreza. Assim, as ações realizadas pelos governos para garantir as oportunidades educacionais, mesmo sendo propostas essenciais, especificamente as direcionadas aos alunos menos favorecidos economicamente, parecem não ter alcançado a escola.

Silva (2000, p. 82) faz críticas sobre as escolas públicas de ge-renciamento empresarial, as quais mostram “[...] resultados condizen-tes aos prescritos pelo Banco Mundial”, propiciando a produtividade e competitividade, designando a escola para “[...] formar consumidores dos produtos industrializados e importados, além de formar trabalhado-res cordatos e eficientes, à disposição da rotatividade do livre mercado”.

Nesse sentido, todo planejamento educacional se realiza por

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meio do setor econômico, sem que haja a participação de educadores atuantes no cotidiano escolar. Historicamente, o professor possui pouca autonomia para seguir o próprio caminho. Isso tem favorecido a desi-lusão com a educação por parte de professores e alunos sobre todo o trabalho pedagógico executado na escola. Sendo o Brasil um país que usufrui dos empréstimos do BM, consequentemente aceita as suas in-tervenções, deixando de lado o fator humano, do ser de direitos iguais para privilegiar a lógica do capital, que se funda no lucro e na competi-ção. Segundo Silva (2000, p. 79),

O Banco Mundial assumiu um papel político de-cisivo na definição e indução do modelo de desen-volvimento econômico e político, estendendo as ações e estratégias de disciplinamento dos investi-mentos para o setor educacional público. No caso da educação básica, o Banco passou a elaborar documentos políticos de definição conceitual e a induzir medidas e propostas voltadas para a redu-ção do papel do Estado; a transferência dos servi-ços públicos para o setor privado e a implantação de medidas voltadas para a institucionalização da indústria na educação.

Para os sistemas financeiros internacionais, a educação pública é considerada como um serviço igual aquele oferecido por empresas comerciais, promovendo, dessa forma, a educação como mercadoria. Como entende Pino (2001, p. 81), “[...] a educação sai da esfera do di-reito social e passa a ser uma aquisição individual, uma mercadoria que se obtém no mercado segundo os interesses de cada um”.

A influência do Banco Mundial, inclusive na educação, está ex-posta com a priorização de reformas educacionais que seguem a receita ditada por essa instituição econômica, a exemplo da municipalização do ensino estadual, formação de professores, educação a distância, ava-liação por desempenho e tantas outras. Diante da influência do BM, a escola deixa de ser espaço de construção do aprender, da sistematização

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do conhecimento, do lugar de se fazer amizades, desenvolver a solida-riedade, o companheirismo, a cooperação e especificamente de se for-mar cidadania, tornando-se o espaço de formação de um contingente de trabalhadores reserva para atender às regras do mercado competitivo. Para Mészáros (2005, p. 16): “Uma sociedade que impede a emancipa-ção só pode transformar os espaços educacionais em shopping center, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro”.

No campo educacional, a política da avaliação institucional se tornou um dos instrumentos fundamentais dos dirigentes do Banco Mundial. Particularmente no Brasil, a ação dessa instituição estabe-lece a necessidade de controlar os indicadores e certificar se as re-gras estipuladas estão sendo cumpridas, postura que tende a garantir mais financiamentos desse mesmo Banco. Segundo Silva (2000, p. 109-110),

As ações previstas têm como estratégia construir, nos gestores nacionais, uma mentalidade racio-nal e a capacidade de avaliar e interpretar siste-maticamente os resultados escolares, a eficácia das escolas e a produtividade do sistema, o que contribuirá para melhoria e a consolidação do Sis-tema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, implantado desde 1989.

A avaliação aplicada pelo Banco Mundial, caso não seja condi-zente aos objetivos estabelecidos, prevê a punição e suspensão de em-préstimos. E seguindo a lógica dos interventores, a educação brasileira se tornou espaço de competição injusta quando são aplicadas regras e esquecidas as desigualdades sociais. Com isso, surge uma educação autoritária, que contribui para a formação da sociedade capitalista, regi-da por um sistema de modo de produção também capitalista. Segundo Brandão (2001, p. 97), “[...] afirmar como ideia o que nega como prá-tica é o que move o mecanismo da educação autoritária na sociedade desigual”. E pela lógica neoliberal é que os governos mantêm as deci-

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sões para o fortalecimento das competições, permanecendo alheios ao universo dos problemas sociais.

No entanto, para a formação humana, cada vez menos os governos federal, estadual e municipal disponibilizam recursos. Em decorrência disso, ainda se encontra profissionais que necessitam de formação vol-tada para a qualidade, no sentido de uma educação cidadã. Dessa forma, se faz necessário que se compreenda as funções da avaliação, não como produto final e sim voltada para emancipação, para que se possa refletir sobre as mudanças educacionais, que são reflexos das transformações ocorridas nos campos políticos e econômicos (SILVA, 2000).

Com base em Afonso (2009, p. 49), a partir da década de 1980, o interesse pela avaliação foi incentivado por governos neoconservadores e neoliberais, o que originou a conhecida expressão “Estado avaliador”. Para o mesmo autor, “[...] o Estado vem adaptando um ethos competi-tivo, neo-darwinista, passando a admitir a lógica do mercado”. Desse modo, a avaliação surge como mecanismo de controle e responsabiliza-ção e, “[...] como pré-requisito para que seja possível a implementação desses mecanismos”.

O mesmo autor, referindo-se aos estudos de Walford (1990), ressalta que “[...] esta ideologia da privatização, ao enaltecer o ca-pitalismo de livre mercado, conduziu a alterações e mudanças fun-damentais no papel do Estado, tanto ao nível local, como em nível nacional”. Todavia, para diminuir as despesas públicas, adotou-se uma forma de gerenciamento que conduz à criação de estruturas de controle e responsabilização mais elaborados, dentre elas, a avalia-ção. Em outra perspectiva, não seria possível criar indicadores e me-dir a performance dos sistemas sem ter objetivos claros e definidos (AFONSO, 2009, p. 49). Como consequência da adesão a essas po-líticas neoliberais, a ideia de eficiência nos indicadores mensuráveis passa a ser o exemplo a ser seguido em razão das mudanças neolibe-rais e neoconservadoras.

Nessa perspectiva, Silva (1994, p. 21), afirma que “[...] o dis-

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curso da qualidade total44 [...] reprime e desloca o discurso da igual-dade/desigualdade, da justiça/injustiça, da participação política numa esfera pública de discussão e decisão”. Para o mesmo autor, isso torna “[...] quase impossível pensar numa sociedade e numa comunidade que transcendam os imperativos do mercado e do capital”.

Assim, de forma geral, o neoliberalismo obriga-nos a conviver em um ambiente onde a competitividade é o molde a ser seguido, des-preocupando-se do compromisso com o humano. Pode-se dizer que, depois do domínio quase exclusivo do neoliberalismo, as consequên-cias da exclusão, a exemplo da fome, da submoradia, das condições indignas, passam a ser desconsideradas. Ou seja, a exclusão seria so-mente o resultado anunciado para os que não tiveram competência para lidar com os novos tempos. Conforme Freitas (2007, p. 969), “[...] To-dos concordamos em que isso não é desejável, mas meras políticas de equidade apenas tendem a ocultar o problema central: a desigualdade socioeconômica”.

Essa ocultação, de certa forma, se direciona para dois sentidos, de um lado, o do insucesso dos alunos pelo trabalho desenvolvido no interior da escola e, do outro, por problemas referentes ao meio em que vivem esses alunos. Para Freitas (2007), se as políticas de equidade estivessem voltadas a ações que visassem, pelo menos, diminuir as de-sigualdades sociais, estariam levando em conta o nível socioeconômico como elemento indispensável nos estudos de avaliação do desempenho dos alunos.

Mas, isso precisa ser pensado de um modo a se conquistar quali-dade de ensino diferente do que se espera sob a lógica do mercado. Essa mudança também se dá por meio das avaliações, mas estas precisam ser revistas quanto aos objetivos e metodologias. Da forma como têm

44 “O programa ‘Escola de Qualidade Total’ (EQT) tem sido desenvolvido no Brasil por Cosete Ramos, coordenadora adjunta do Núcleo Central de Qualidade e Produtividade subordinado ao Ministério da Educação. Mesmo em se tratando de uma proposta que ainda não possui ampla difusão no Brasil, ela resume grande parte das características centrais dos programas de Total Quality Control (TQC) aplicados em algumas instituições educativas norte-americanas. Deste modo, a Escola de Qualidade Total começa a evidenciar-se como a tentativa mais séria de aplicar os princípios empresariais de controle de qualidade no campo pedagógico” (GENTILI, 1994, p. 142-143).

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sido aplicadas em Lages, por exemplo, enfatiza-se mais a divisão entre escolas que têm desempenho considerável e outras que não conseguem atingir os números esperados, ou seja, umas geralmente aparecem em primeiro lugar, outras, nos últimos lugares. Trata-se de um modo de avaliar que preconiza a diferenciação, a disputa, e não o conhecimento pautado no desenvolvimento dos alunos no decorrer do ano letivo. A responsabilização se torna, nesse sentido, fator preponderante no am-biente escolar.

Silva (1994, p. 22) ressalta ainda que

Os ‘consumidores/as’ da educação, numa edu-cação redefinida como mercado, podem acabar descobrindo tarde demais que a mão invisível do mercado” não pode ser responsabilizada pelos de-feitos e fracassos simplesmente porque não pode ser localizada (SILVA, 1994, p. 22).

Concordamos com o autor quando nos reportamos à sala de aula e constatamos as diversas formas de exclusão (evasão escolar, repe-tência...) reproduzidas no cotidiano escolar, principalmente quando tais questões tendem à exigência de qualidade ou à falta da mesma. Quem mais sofre é exatamente aquele que não tem, e assim os entraves pre-sentes no campo educativo continuam sem solução.

O neoliberalismo, conforme podemos observar, não caracteriza somente um sistema econômico, ele também contribui para que se es-tabeleça uma forma de ver a vida, de sentir, de se relacionar com as pessoas. Isso acaba influenciando nessas relações e começa a transfor-mar cada sujeito em adversário do outro. A individualidade preponde-ra quando os laços de solidariedade são esquecidos, ou talvez nunca apreendidos. Isso mostra a necessidade de se manter as aparências, o que para Freitas (2005, p. 141), corresponde a dizer que “A qualidade, portanto, é um processo de reflexão compartilhada e coletiva que impli-ca que sejam assumidos compromissos locais com ela”.

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Dessa qualidade implica o processo da avaliação de desempenho e por performance na conjuntura política, econômica e social na con-temporaneidade, que desafia os sistemas de ensino nacional, estadual e municipal a definir efetivas políticas educacionais, entre as quais se insere o sistema de avaliação.

O sistema de ensino, a partir da década de 90 do século passado, com a influência neoliberal, vem desenvolvendo projetos de avaliação como forma de garantir o desempenho escolar do aluno. O neoliberalis-mo associado aos princípios do mercado e de produtividade econômica na geração de renda. Na lógica da concorrência, conforme já destacado, geram-se consequências para a educação. Isso significa, conforme An-dreoli (2002), que a escola é desafiada para mudanças, na maioria das vezes sem nenhum questionamento.

A política do neoliberalismo presente na educação tende à redu-ção de elementos importantes ao processo educacional: menos recur-sos financeiros; ensino fundamental a cargo dos Estados e municípios; educação infantil e educação de jovens e adultos (EJA) sob incumbên-cia municipal; privatização e municipalização do ensino, cujos custos são repassados aos municípios e às escolas, a exemplo do programa “Amigos da Escola”, divulgado na mídia (que isenta o Estado de sua responsabilidade para com a educação); a divisão do ensino médio em educação regular e profissionalizante; Parâmetros Curriculares Nacio-nais (PCNs) com visões distorcidas (ao mesmo tempo em que apresenta uma preocupação com as questões sociais, também possui um caráter de ajustamento ao sistema de qualidade total); modificação do termo igualdade social para equidade social (não é demonstrado maior inte-resse pela igualdade como direito de todos, mas apenas em amenizar a desigualdade); privatização das universidades e outras tantas situações relacionadas ao sistema de educação (ANDRIOLI, 2002).

Gentili (1995), ao tratar sobre o neoliberalismo, ressalta que esse sistema privatiza tudo, até mesmo o êxito e o fracasso social e as pes-soas são responsabilizadas por isso. Se não obtiveram êxito, foi porque

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não mostraram esforço suficiente, portanto terão que competir em uma sociedade na qual só os melhores vencem. Importante lembrar que uma das ações desencadeadas por esse sistema econômico foi a Conferência Mundial sobre “Educação para Todos”, realizada na cidade de Jomtien, Tailândia, em março de 1990, na qual estiveram presentes 155 governos que assinaram uma declaração Mundial, comprometendo-se a garantir a todas as pessoas a educação básica, erradicando o analfabetismo para se ter uma vida digna e propondo-se a buscar uma sociedade mais humana e justa.

Dessa conferência resultou a Declaração de Jomtien, considera-da um dos essenciais documentos mundiais sobre educação. Todavia, os organismos internacionais que interferem nas questões econômicas, sociais e políticas dos países que assinaram acordos com esses órgãos financiam as questões atreladas à educação. Isso nos leva à necessidade de refletir sobre a importância de os educadores questionarem a vali-dade desses acordos para o sistema educacional e os objetivos desses organismos em exigirem adequações políticas e econômicas para a edu-cação nacional brasileira.

Quando se trata de avaliação, caso deste trabalho, entendemos que não se pode mensurar, quantificar conhecimentos, o que tem sido feito pelo sistema nacional de ensino e de modo particular nos Estados e municípios, situação que caracteriza um processo para conhecer quem é capaz de resolver uma prova, sem procurar entender de que modo esse aluno consegue ou não apropriar-se dos conhecimentos.

Essa situação, conforme depreendemos, decorre de um processo desencadeado com mais ênfase a partir da referida Conferência Mun-dial de Educação para Todos. Segundo Torres (2001), esse encontro não foi apenas uma tentativa de garantia de uma educação básica, mas uma forma de se obter uma visão renovada para que a educação prevista no acordo seja alcançada.

Educação básica foi, então, um termo de consen-so no qual se mesclaram as visões, prioridades

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e agendas de cada um dos sócios internacionais, de Jomtien, dos países e dos inúmeros especia-listas nacionais e internacionais por cujas mãos passaram as sucessivas versões dos documentos. Como tal, é um termo atravessado por incoerên-cias e contradições, segundo revelam os próprios documentos de Jomtien e aqueles produzidos posteriormente pelas diversas agências sobre a Educação para Todos. Um termo que já tinha vida e usos próprios (e diversos) nos diferentes países antes de Jomtien e ao qual, como vimos, não era fácil atribuir um novo significado somente acres-centando a ele o nome de “visão ampliada” (TOR-RES, 2001, p. 15).

Para a mesma autora, a ampliação da visão da educação básica foi interpretada não como uma ampliação do conceito e da forma de ser percebida, e sim de aumentar o número de anos definidos como escolaridade obrigatória. Assim, segundo Torres (2001, p. 16), devi-do à iniciativa das agências internacionais e seu comando global da Educação para Todos, torna-se difícil esclarecer sua atuação nos países que assinaram os acordos para a educação decorrentes de empréstimos financeiros com os países hegemônicos.

O que se percebe é um sistema regulador que se mantém vigilan-te para que as metas propostas aos países signatários sejam cumpridas, lembrando que essas metas voltam-se mais para os resultados bons ou insuficientes, com o estabelecimento de ações paliativas que melhorem os índices numéricos, e não efetivamente o aprendizado dos alunos, o que percebemos quando pensamos na sala de aula e na Educação Bási-ca proposta às escolas públicas brasileiras.

Se nem mesmo a expressão usada para identificar os primeiros anos de escolarização obrigatória é clara quanto ao que se deseja, po-demos pensar que as ações organizadas para que se cumpra essa mo-dalidade de educação também sejam obscuras quanto aos encaminha-mentos e aos resultados, contribuindo para a manutenção de processos educativos excludentes.

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A Declaração de Nova Delhi, em 1993, realizada na capital da Ín-dia, deu continuidade ao debate e renovou os compromissos assumidos em Jomtien. Reconhece as fundamentais dificuldades que os países de grande população encontram, dentre elas a educação, responsabilidade da sociedade, ou seja: governos, famílias, comunidades e organizações não-governamentais. Contudo, embora essas prerrogativas, as políticas públicas desenvolvidas para a educação dos países periféricos conti-nuam a manter um ensino excludente e a valorizar a formação para o mercado de trabalho (RABELO, SEGUNDO e JIMENEZ, 2009).

Em 2000, adotando a trajetória e as determinações das confe-rências anteriores, o Fórum de Dakar, no Senegal, reuniu os governos de 180 países e 150 organizações não-governamentais para reiterar os compromissos estabelecidos em Jomtien e prorrogar até 2015 o pra-zo para o cumprimento das metas previstas em 1990 e reafirmadas em 2000 (SOBRAL, SOUSA e JIMENEZ, 2009).

O citado documento foi reeditado com o compromisso de afirmar as necessidades educacionais; alcançar, até 2015, 50% de melhora nos níveis de alfabetização de adultos; extinguir, até 2005, as disparidades entre gêneros; garantir a qualidade da educação para todos; atender às necessidades básicas de aprendizagem, reduzir a pobreza mundial pela metade e outros. O documento deixa clara a universalização da educa-ção básica quando propõe,

Melhorar todos os aspectos da qualidade da edu-cação e assegurar a excelência de todos, de modo que resultados de aprendizagem reconhecidos e mensuráveis sejam alcançados por todos, princi-palmente a alfabetização, cálculo e habilidades essenciais para vida (UNESCO, 2001, p.10).

Esses delineamentos combinam com os interesses dos empresá-rios em ter um novo perfil de trabalhador com competência técnica ade-quada à produção do mercado. Observamos também nesse documen-to, dentre as normas a serem seguidas, a intenção de “[...] realizar um

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monitoramento mais efetivo e regular do progresso em atingir metas e objetivos de EPT incluindo avaliações periódicas” (UNESCO, 2001, p. 10). Assim, a intenção da universalização do ensino fica assegurada por um sistema de avaliação que tende a garantir que as reformas sejam concretizadas. Nesse sentido, o BM com a implementação de um siste-ma de avaliação mantém controle e monitoramento na educação. Para Silva (2009), a qualidade social da educação escolar não combina com,

[...] limites, tabelas, estatísticas e fórmulas numé-ricas que possam medir um resultado de proces-sos tão complexos e subjetivos, como advogam alguns setores empresariais, que esperam da es-cola a mera formação de trabalhadores e de con-sumidores para os seus produtos (SILVA, 2009, p. 225).

A avaliação nesse contexto histórico se dá de modo a valorizar os mais capacitados, em detrimento daqueles que possuem déficits de aprendizado. Essa defasagem na aprendizagem não é característica da pessoa, porque envolve todo um contexto social, político e econômico de desigualdades que acaba por se refletir nas camadas mais empobre-cidas economicamente da população. No entanto, se faz necessário que se busque a escola de qualidade social, que contemple o contexto que envolve a forma de viver e as perspectivas das famílias e dos alunos com a educação, com a intenção de promover o ensino e a aprendiza-gem significativa e democrática.

Retomamos a década de 1990, por ter sido ela uma das mais significativas em termos de ajustamento e desencadeamento de polí-ticas neoliberais para os países da América Latina e do Caribe. Duas propostas foram formuladas pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), juntamente com a UNESCO, Educación e Conoci-miento: eje de la transformación produtiva com equidad e Focalización y pobreza, em 1992 (OLIVEIRA, 2001). Essas propostas levaram em consideração o atrelamento da educação com o setor produtivo, eviden-

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ciando seu caráter de mercadoria e de punição para os que não conse-guem alcançar resultados satisfatórios, sejam eles alunos, professores ou mesmo instituições de ensino. Observa-se nesse sentido que a ava-liação tende a ser utilizada para a competitividade. E, para se conquistar a qualidade vale tudo, até mesmo instigar a disputa entre unidades de ensino, seus alunos e professores. E com isso pretende-se fortalecer a democracia e a cidadania.

Em 1998, iniciaram as atividades destinadas à avaliação externa de acordo com o preconizado pelas políticas internacionais, sendo que cada país recebeu material impresso, com formulários para que pudes-sem enviar relatórios sobre os indicadores utilizados para a avaliação. Nesse contexto de argumentos presentes nos documentos internacio-nais foi aprovada a lei que decide as normas e confirma a situação do ensino no Brasil em seus 92 artigos que representam um momento de consideráveis expectativas para o ensino brasileiro.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei nº 9394/96, foi aprovada pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso e o Ministro da Educação Paulo Renato de Souza, em vinte de dezembro de 1996. Após sua edição, muitos problemas se destacaram, inclusive com a interpretação da mesma no que diz res-peito à omissão do Estado quanto a vários problemas relevantes que permeiam a educação, a exemplo do interesse em continuar com o pen-samento habitual que impede uma educação de qualidade, pois o inte-resse ainda está em manter os indivíduos como meros expectadores da realidade na qual estão imersos.

Para Saviani (1997, p. 226-227), a Lei de Diretrizes e Base da Educação é uma regulamentação com a qual a educação pode ficar aquém, além ou igual à situação atual. “[...] Ela sinaliza também para o fato de que a organização escolar não é obra da legislação. Ambas são produto da sociedade no seio da qual entram em interação”.

A LDB de 1996, quando trata da Organização da Educação Na-cional, em seu Art. 9º, determina as competências da União sobre a ava-liação, sua obrigação em relação à educação, e define que a União tem

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como intenção a determinação de prioridades para a qualidade de ensi-no. Mas isso não quer dizer que o ranqueamento entre escolas por meio de controle e responsabilização garantam essa qualidade. É necessário considerar a realidade escolar antes de qualquer comparação. Mesmo porque, a comparação realizada por meio das avaliações do modo como têm sido desenvolvidas não estabelece uma correção do que necessita ser repensado na questão da qualidade educacional. Há necessidade de se considerar outros fatores que incorporem tanto a parte interna da escola quanto a externa para que esse processo comece a fazer algum sentido positivo para a escola.

Conforme Abicalil (2002, p. 269-270), em análise aos estudos de Silva (1996):

A comparação teria de se apoiar numa avaliação que levasse em consideração, variáveis relacio-nadas com uma gama de objetivos educacionais, assim como os elementos materiais, humanos, técnicos e metodológicos dispostos para sua con-secução. Se a escolaridade não se justifica ou se valida apenas pelos resultados acadêmicos, temos que ser coerentes quando comparamos os siste-mas de ensino.

Diante disso, observam-se os impasses que dificultam o processo de avaliação nos âmbitos nacional, estadual e municipal. Para melhor compreender os sistemas estaduais de avaliação, no entanto, cabe ques-tionar os propósitos, as consequências e as formas usadas no sentido da promoção da qualidade educacional e ainda entender a responsabilida-de das políticas públicas que são anunciadas e formuladas nas esferas estaduais, no caso, aqui específico, do Estado de Santa Catarina, o que torna necessário conhecer a implantação da Proposta Curricular estadu-al no que trata da avaliação escolar.

A partir de 1988, com a participação de educadores, foram re-alizadas diversas discussões no Estado de Santa Catarina sobre siste-

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matização e implementação da Proposta Curricular para as escolas da rede estadual de ensino. A organização do trabalho consta em vários cadernos que se apresentam na seguinte ordem: entre 1988 e 1990, os jornais encaminhados aos educadores do Estado que resultaram na Ver-são Preliminar da Proposta Curricular de Santa Catarina, publicada em 1991, na qual se destaca a apresentação dos pressupostos filosóficos e metodológicos, os conteúdos programáticos para os componentes cur-riculares e as concepções de avaliação. Entre 1995 e 1997, os trabalhos das equipes destinadas à atualização da Proposta Curricular resultaram em três cadernos intitulados “Disciplinas Curriculares da Educação Básica”; “Formação Docente: Magistério e Temas Multidisciplinares”, ambos editados em 1998 (THIESEN, 2007).

Para o mesmo autor, o trabalho que surgiu na própria Secretaria de Estado de Educação (SED), em 1988, com a participação de profes-sores e gestores, teve como objetivo pensar sobre as mudanças sociais e políticas que estavam acontecendo naquele momento. Amparado pelo governo do Estado, o grupo envolvido nas discussões buscava mudan-ças, inclusive nas condições de trabalho. Diante de todo o movimento, a Proposta Curricular se fortaleceu com os anseios dos profissionais da educação do Estado.

Na época desses estudos, a proposta de governo em Santa Catari-na assumiu uma postura condescendente para a reformulação curricular das escolas públicas, com revisão de conteúdos e encaminhamentos aos professores. Assim, entre 2000 e 2001, foi elaborado o caderno Dire-trizes 3, Organização da Prática Escolar na Educação Básica (SANTA CATARINA, 2001). Somente em 2003 é que foram retomadas as dis-cussões apresentadas no caderno denominado de “Estudos Temáticos”, publicado em 2005, que abrange uma série de textos com abordagens teórico-metodológicas para as diversas especialidades da educação bá-sica e profissional (SANTA CATARINA, 2005).

A primeira edição da Proposta Curricular de Santa Catarina foi o

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“[...] momento em que se pretendeu dar ao currículo escolar catarinense certa unidade a partir da contribuição das concepções educacionais de-rivadas desse marco teórico” (SANTA CATARINA, 1998, p. 7).

Na segunda edição dessa diretriz curricular, procurou-se rever os conteúdos a partir da versão de 1991. Essa edição contempla “Uma Pro-posta Metodológica” que se refere aos procedimentos didático-peda-gógicos. A avaliação caracteriza outro elemento desse processo e deve ser pensada a partir dos conteúdos e métodos apresentados na Proposta, conforme o texto do próprio documento. Assim,

[...] indicamos a superação da concepção de ava-liação autoritária, classificatória, domesticadora e excludente. Para isso, assume-se a concepção da avaliação como diagnóstico, processo e ins-trumento que subsidie nossa ação no sentido da emancipação, da autonomia, da humanização, ou seja, da inclusão de cada um e todos os nossos educandos num processo de aprendizagem e de-senvolvimento satisfatórios. Portanto, indicamos que a avaliação tenha um caráter participativo, significando a oportunidade em que o educando e o educador de posse dos resultados, discutam, re-flitam e se autocompreendam no processo de en-sino aprendizagem (SANTA CATARINA, 1998, p. 42).

Percebemos que as discussões realizadas durante o processo de elaboração da Proposta Curricular de Santa Catarina demonstram uma preocupação com a avaliação, que assume outra perspectiva, a de ser um instrumento facilitador da aprendizagem. Nesse sentido, observa-mos que nenhum dos documentos referentes à Proposta Curricular cata-rinense contempla discussões referentes às avaliações externas. Se essa modalidade avaliativa faz parte do sistema de ensino, é necessário que se questione as lógicas que a percorrem. Diante desse contexto, Bour-dieu e Saint-Martin (1998, p. 195) entendem que,

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O sistema de classificação oficial propriamente escolar [...] preenche uma função dupla e contra-ditória: permite realizar uma operação de classi-ficação social mascarando-a: ele serve simulta-neamente de intermediário e de barreira entre a classificação de entrada, que é abertamente social, e a classificação de saída, que se quer exclusi-vamente escolar. Enfim, ele funciona segundo a lógica da denegação: ele faz o que faz sob mo-dalidades que tendem a mostrar que ele não faz (BOURDIEU E SAINT-MARTIN, 1998, p. 195).

Contudo, se na avaliação houver uma intencionalidade madura, comprometida com a aprendizagem do aluno, ela própria pode ser ava-liada. Para garantir o seu propósito, é necessário que se mantenha como sistema aberto, preparado para outras intervenções que venham a ga-rantir o seu objetivo, que é o de oportunizar ao aluno a apropriação de conhecimentos possíveis de emancipação e de cidadania.

Políticas de avaliação educacional de desempenho e por performance no Brasil

Dizer que a avaliação de desempenho e por performance, nos últimos anos, vem se tornando assunto de considerável repercussão, apresentando diversas iniciativas que reforçaram sistemas desse tipo em todos os níveis e modalidades de ensino, concretizando uma efe-tiva política de avaliação educacional. Até a década de 90 do século passado, as políticas públicas eram formuladas e colocadas em prática sem qualquer parâmetro sistemático. Até então, pouco se falava em um indicador que possibilitasse saber se os procedimentos avaliativos exis-tentes originavam resultados desejados ou não.

Desse modo, em decorrência das políticas de descentralização, o Estado passou a aumentar o controle e a regulação das políticas públicas destinadas a medir a qualidade da educação no país, o que interferiu nas

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políticas públicas organizacionais que, a partir de 2005, determinaram algumas regras básicas para que se mensurasse a aprendizagem nas es-colas em virtude do baixo índice de desempenho dos alunos brasileiros. Devido a essa preocupação sobre as metas de qualidade da educação no Brasil surge, a partir de 2007, o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), indicador elaborado para mensurar a aprovação e reprovação dos estudantes, criado pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) (INEP/MEC, 2012).

Dos processos avaliativos estabelecidos pelo governo federal destacam-se o SAEB, “[...] implantado no país em 1990” e que “[...] tem como objetivo fornecer informações aos gestores públicos acerca da qualidade da educação básica e, com isso, subsidiá-los na elaboração das políticas públicas de educação” (GRAÇA, 2010, p. 491). Esse Sis-tema constitui-se em instrumento de monitoração das políticas públicas de desenvolvimento educacional. Com base nos resultados e informa-ções coletadas por meio do SAEB, os órgãos governamentais, entre eles o MEC, juntamente com as secretarias estaduais e municipais de educação, devem definir ações para suprir as deficiências identificadas no sistema educacional e que permitam corrigi-las.

Outro modo de avaliação que o MEC implantou em 1998 foi o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM),

[...] que avalia o desempenho individual do alu-no ao término do ensino médio, visando aferir o desenvolvimento das competências e habilida-des necessárias ao exercício pleno da cidadania. A prova, interdisciplinar e contextualizada. É composta por uma redação e uma parte objetiva (CASTRO, 2009, p. 7).

Assim, ao nos referirmos sobre o exercício pleno da cidadania, não podemos nos esquecer de que esse exame deixa de lado os fatores econômicos e sociais que são necessários à trajetória escolar e social dos alunos. Nesse contexto, de acordo com Sousa (2003, p. 182),

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[...] cabe ainda observarmos que, tal como se apresenta, o ENEM, tende, no limite, a prejudicar os alunos oriundos de escolas que contam com precárias condições de funcionamento, oferecidas pelo poder público, que, tradicionalmente, aten-dem à população pobre.

Essa política pública contempla apenas os alunos do ensino mé-dio. Por isso, com o objetivo de envolver os alunos da educação básica do ensino fundamental, em 2005 foi instituída a Prova Brasil, por meio da qual os municípios brasileiros passaram a preparar os dados específi-cos de seus sistemas de ensino no contexto da avaliação de desempenho e por performance, levando em consideração os resultados da Prova Brasil para a obtenção do cálculo do Ideb. Destacamos que os resulta-dos obtidos na Prova Brasil e no Ideb podem fazer parte da avaliação institucional nas escolas, contudo, ressaltamos que não se esgota e nem se resume ao desempenho dos alunos somente essa medida.

A Prova Brasil objetiva complementar informa-ções do Saeb, na medida em que seus resultados emitem, além da média de proficiência obtida nos testes, dados de distorção idade-série, média de horas-aula diária, percentual de docentes com curso superior e o Ideb de cada escola participan-te da avaliação. A Prova Brasil utiliza o mesmo teste padronizado do Saeb e os questionários de contexto aplicados aos diretores, alunos e profes-sores. No entanto, distingue-se quanto ao públi-co-alvo e abrangência: avalia todos os alunos de 4ª e 8ª séries do ensino fundamental de escolas públicas localizadas em áreas urbanas em turmas com no mínimo 20 alunos matriculados (GRA-ÇA, 2010, p. 491-492).

No discurso governamental, sub influências oriundas de políticas neoliberais, o IDEB, o SAEB e a Prova Brasil têm como objetivo fun-

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damental avaliar a qualidade do ensino básico oferecido pelos sistemas de educação brasileira e não o aluno (INEP, 2013). Nessa perspecti-va, podemos dizer que todas essas ações avaliativas indicam o desen-volvimento institucional da avaliação de desempenho como elemento necessário para subsidiar o processo de acompanhamento de políticas públicas responsáveis para nortear o aprimoramento da qualidade da educação, esquecendo do aluno em processo de formação.

Todavia, é importante refletir sobre isso, a exemplo de Carvalho (2003), ao entender que,

[...] não se pode, da mesma forma, aceitar sem críticas o verdadeiro culto aos números que pare-ce vir ganhando corpo em nosso sistema escolar. As estatísticas, as taxas, os índices, os gráficos e as tabelas são cada vez mais tomados como si-nônimo de verdade final e incontestável, como prova cabal desta ou daquela afirmação ou como arma em disputas de poder, privilégios e prestígio (CARVALHO, 2003, p. 233).

Faz-se necessário, portanto, cuidados em relação ao que signifi-cam essas avaliações, porque as mesmas captam aquilo que está acon-tecendo em um determinado momento e de forma fragmentada. Saber o que realmente acontece na escola, o que perpassa todo o processo educacional vai depender de uma série de pesquisas adicionais que a es-cola poderá realizar para se mostrar resultados mais condizentes com a realidade particular de cada uma. Isso implica num trabalho coletivo da comunidades escolar em estar refletindo sobre os problemas escolares que interferem no processo educativo do cotidiano escolar.

Para Abicalil (2002, p. 268-269), os principais instrumentos de avaliação “[...] somam uma fantástica base de dados sobre o resultado dos alunos em diversos níveis/etapas de educação escolar, cuja utili-zação principal tem sido a do mero ‘ranqueamento’ de resultados”. O núcleo da divulgação dos dados obtidos nesse processo é apenas a com-

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paração de resultados, não enfatiza a qualidade nem ao menos prioriza e contribui para a correção dos encaminhamentos necessários.

Os resultados dessas avaliações, entretanto, são expostos nas es-colas e nos meios de comunicação com o intuito de responsabilizar a escola pelas consequências do insucesso dos alunos, acreditando-se que com a exposição desses indicadores pode-se ter avanços no sentido da qualidade do ensino escolar.

Sistemas nacionais e internacionais de avaliação expõem e confrontam as desigualdades educati-vas entre coletivos e escolas públicas e privadas, entre municípios, estados, nações, Norte-Sul. Avaliações das desigualdades educacionais medi-das e quantificadas cada vez com maior requin-te e expostas pela mídia, mostrando a vergonha das diversidades de qualidade de nossa educação (ARROYO, 2010, p. 1382).

Enquanto isso, os professores e até mesmo os alunos continuam a ser responsabilizados, como que retomando a expressão de Werneck (1992), “se você finge que ensina eu finjo que aprendo”, ou seja, profes-sores e alunos são, de acordo com a lógica do Estado, os responsáveis por não termos um sistema escolar apropriado para superar as desigual-dades de nosso país.

Por sua vez, o governo brasileiro continua a instituir programas avaliativos para mensurar alunos, professores, escolas, classificá-los, quantificá-los e, então, tomar medidas pontuais, mas que não resolvem os problemas reais que entravam o sistema de ensino educacional no sentido da qualidade da educação, sendo uma das políticas governa-mentais nesse sentido o IDEB, instituído pelo Ministério da Educação e Cultura.

Para o governo brasileiro, o IDEB foi organizado em 2007 com o intuito de agregar o aspecto pedagógico dos resultados das avalia-ções em larga escala do INEP, com a probabilidade de resultados subs-tanciais, facilmente assimiláveis, e que consentem em traçar metas de

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qualidade educacional para os sistemas. O indicador é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e médias de desempenho nas avaliações do INEP e SAEB para as unidades da federação e para o país, bem como a Prova Brasil – para os municípios (INEP/MEC, 2012).

Com base nesses dados, podemos perceber que a avaliação é unificada. Não difere nas escolas e não considera se estão localizadas em diferentes territórios, porque os resultados são distintos, causando distanciamento no processo que corresponde a um sistema educacional de qualidade comparável a outro, de qualidade questionável. Segundo Vianna (2002, p. 64),

A evolução da avaliação educacional no Brasil com o objetivo de verificar a eficiência de profes-sores, currículos, programas e sistemas, além de desempenho educacional, entre outros aspectos, como seria desejável, ainda está para ser pesqui-sada e analisada.

Concordamos com o autor, considerando que esses resultados são poucos para que se possa falar de qualidade. São indicadores mo-mentâneos e revelam que naquele ano, naquela avaliação, os alunos não conseguiram responder. Mesmo porque, os estudantes poderiam produ-zir diferentes resultados se os testes fossem realizados também em ou-tros momentos. Entendemos como necessário uma analise da realidade social do aluno e do contexto escolar para se obter dados condizentes com o que se desenvolve na sala de aula, com a aprendizagem cotidia-na dos alunos e não somente aos moldes da Prova Brasil e SAEB, por exemplo.

A avaliação aplicada em cada município faz-se necessária, se-gundo o discurso do Estado, para a construção de um elemento analí-tico, isto é, indicadores que tragam resultados que contribuam para a melhoria da qualidade do ensino. Segundo o MEC45 ,

45 Retirado do site <http://portalideb.inep.gov.br/>. Acesso em 28 abr. 2012.

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O Ideb foi criado em uma escala de zero a dez que sintetiza dois conceitos igualmente impor-tantes para a qualidade da educação: aprovação e média de desempenho dos estudantes em língua portuguesa e matemática. O indicador é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obti-dos no Censo Escolar, e médias de desempenho nas avaliações do Inep, o Saeb e a Prova Brasil (BRASIL/MEC, 2012).

Entendemos que enquanto processo social, a política pública avaliativa é tomada a partir da ideia da ação de diferentes sujeitos que desenvolvem suas atribuições, e cujo percurso segue uma lógica cons-tituída em contextos mais significativos do que aqueles concebidos no campo da educação para medir valores de aprendizagem.

Cabe ressaltar, ainda que avaliação é um processo. E avaliar é uma atividade indispensável e neces-sária, mas a metodologia utilizada no processo, os critérios, os interesses e o uso dos resultados apontam a direção que se quer imprimir à educa-ção pública em todo território nacional (SILVA, 2000, p. 110).

Para a mesma autora, não se discute a importância do ato avalia-tivo, mas a forma como essa prática está se fazendo nos meios educa-cionais. Isso é o que nos faz questionar e pensar outras possibilidades para que uma educação de qualidade possa se efetivar no campo educa-cional. Para Sordi (2009, p. 11),

As crianças precisam de uma escola pública de boa qualidade. E a resposta a este chamamento so-cial não pode prescindir da participação dos ato-res da escola. A saída é aprender a avaliar de um modo que nos faça sentido e assim, desestabilizar a cultura avaliativa que nos desconforta, pela pro-posição de uma outra alternativa.

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As políticas públicas de aplicação de avaliações de desempenho realizadas para obter resultados numéricos, sem que haja uma preocu-pação com a qualidade efetiva da educação, esclarecem que o objetivo do governo reside na avaliação como mecanismo de controle e respon-sabilização. Torna-se necessário promover uma forma de avaliação vol-tada para a aprendizagem sem direcionar culpados pelos resultados.

E nesse jogo de transferência de compromisso que acontece na educação na tentativa de achar culpados em relação ao desempenho de alunos, a escola se tornou espaço de discussões, favorecendo a sua des-qualificação e consequente desumanização. Nesse contexto, a avaliação é vista como o pivô da qualidade, adaptada para atender às cobranças estabelecidas pelo contexto nacional e mundial. Freitas nos adverte, neste sentido, que,

Boa parte dos problemas que estamos enfrentando com a educação básica nacional advém do próprio formato ideológico do projeto liberal hegemôni-co, agora “sob nova direção”: ele reduz qualidade a acesso – supostamente como uma primeira etapa da universalização. Mas, antes de ser uma etapa em direção à qualidade plena da escola pública, é um limite ideológico, como bem aponta Ala-varse (2007). Os liberais admitem a igualdade de acesso, mas como têm uma ideologia baseada na meritocracia, no empreendedorismo pessoal, não podem conviver com a igualdade de resultados sem competição. Falam de igualdade de oportu-nidades, não de resultados (FREITAS, 2007, p. 967-968).

A avaliação de desempenho e por performance depende do es-forço pessoal, desconsiderando as desigualdades sociais. Sob essa pers-pectiva, oportuniza-se educação para todos e quem não alcança bons resultados é porque não teve interesse. No interior das escolas ainda encontramos grande número de alunos oriundos das camadas populares

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que são desacreditados, como se estivessem condenados a não ter aces-so ao saber, acreditando que não terão chance alguma de transformar a própria realidade, ou seja, não têm ideia de que isso possa ser mudado. Dessa forma, caso não aprendam o conteúdo que a escola apresenta, aprenderão a obedecer, sem interferir na realidade que os cerca.

Nos discursos dos governos federal, estaduais, municipais, a educação é prioridade, mas podemos perceber que na prática isso não se confirma, ou seja, que a política educacional é realizada conforme a lógica e manutenção do poder do capital, representando-se em entraves para possibilidades de mudanças.

Essa forma de exclusão que está presente na escola, Freitas (2007, p. 968), a denomina de “eliminação adiada”, segundo a qual os alunos são afastados para salas de aceleração, educação de jovens e adultos e outros programas desenvolvidos nas escolas para atender aos alunos que “não possuem capacidade suficiente” (grifo nosso) para aprender no cotidiano e por isso precisam de reforços. Para esse mesmo autor,

[...] a base da construção das novas formas de ex-clusão, que agora atuam longitudinalmente, por dentro do sistema, sem necessidade de excluir fi-sicamente o aluno no início da escola básica, por reprovação. Os processos de avaliação informal vão construindo “trilhas de progressão diferencia-das” no interior das salas de aula e das escolas. Do ponto de vista do sistema, a exclusão foi interna-lizada a custos menores - tanto econômicos como políticos (FREITAS, 2007, p. 973).

A voz da igualdade, daqueles que lutam por uma educação que esteja voltada para todos se cala diante da política educacional adota-da pelo governo, que segue os moldes de educação de outros países, desrespeitando a realidade nacional. Seguir os ditames da política ne-oliberal impede o fortalecimento da democracia e da cidadania. Dessa forma, as políticas de responsabilização continuam a fortalecer a ex-

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clusão na escola, com as diferentes avaliações de desempenho que vem sendo aplicadas, que mensuram o grau de conhecimento do aluno, mas não consideram o processo desenvolvido em sala de aula, as interações e mediações desse aluno com o saber que possui e o que é veiculado na escola.

Diante desse contexto, Afonso (1999, p.148), esclarece que,

[...] a avaliação é acionada como suporte de pro-cessos de responsabilização ou de prestação de contas relacionados com os resultados educacio-nais e acadêmicos, passando estes a ser mais im-portantes do que os processos pedagógicos.

A escola que apresenta evolução nos índices de avaliações tem por mérito o trabalho do diretor, do professor e dos alunos que se empe-nharam para que isso acontecesse, mas as que não conseguiram atingir os índices são responsabilizadas pelo fracasso escolar. Com a intenção de mudar esse quadro, um conjunto de medidas é lançado com a pre-tensão de informar de forma comparativa e classificatória como se en-contram as escolas no contexto educacional e, conforme os resultados obtidos, são definidas, pelos governos, as políticas públicas para as es-colas de modo generalizado. Como os resultados nem sempre são con-dizentes com a realidade de cada uma das unidades escolares avaliadas, os alunos continuam sem aprender, mas são cada vez mais avaliados, ou seja, mensurados.

Segundo Freitas (2007), é necessário saber se a aprendizagem da escola de periferia está alta ou baixa e entendemos que isso deva ser aplicado para todas as escolas. O que não pode acontecer, no entanto, é usar o resultado como base para um procedimento de responsabiliza-ção. Nesse sentido o autor também questiona,

Mas e as condições de vida dos alunos e professo-res? E as políticas governamentais inadequadas? E o que restou de um serviço público do qual

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as elites, para se elegerem, fizeram de cabide de emprego generalizado, enquanto puderam, sem regras para contratação ou demissão? O que di-zer da permanente remoção de professores e es-pecialistas a qualquer tempo, pulando de escola em escola? O que dizer dos professores horistas que se dividem entre várias escolas? O que dizer dos alunos que habitam as crescentes favelas sem condições mínimas de sobrevivência e muito me-nos para criar um ambiente propício ao estudo? Sem falar do número de alunos em sala de aula (FREITAS, 2007, p. 971-972).

Nessa direção, escolher a avaliação de desempenho como base para detectar o nível da aprendizagem dos alunos, sem considerar as inúmeras variáveis expostas por Freitas, torna-se um equívoco, por não apresentar a real situação dos alunos. Segundo Freitas (2007), a esco-la poderá favorecer outros elementos, por meio do senso escolar, que possam contribuir para uma visão mais aprimorada sobre a realidade de cada escola. Deve-se observar, no entanto, que todo trabalho escolar seja de comprometimento, principalmente com os alunos desfavoreci-dos economicamente e aos quais há necessidade de mais dedicação e uma visão diferenciada de todos os envolvidos com a educação perante essas variáveis que dificultam, na maioria das vezes, o trabalho escolar. O que precisa ser repensado, portanto, são as formas para garantir a qualidade e a equidade tão desejada. Saviani (1997, p. 238) diz que,

Enquanto prevalecer na política educacional a orientação de caráter neoliberal, a estratégia da resistência ativa será a nossa arma de luta. Com ela nos empenharemos em construir uma nova re-lação hegemônica que viabilize as transformações indispensáveis para adequar a educação às neces-sidades e aspirações da população brasileira.

Precisamos, conforme entende Saviani (1997), resistir aos refle-

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xos da ideologia neoliberal. Isso pode se dar de diferentes maneiras e uma delas é por meio do trabalho em sala de aula, na manutenção de um pensamento crítico que perceba as orientações mercadológicas embuti-das nas políticas públicas educacionais e resistir a essas determinações. As condições materiais, físicas e humanas da escola do modo como vêm sendo disponibilizadas não favorecem mudanças. Mas o educador que consegue superar essas barreiras e perceber que muitos programas, a exemplo da avaliação por desempenho ou performance, são oportu-nos à hegemonia neoliberal podem questionar, discutir, e cobrar dos órgãos que instituem esses sistemas de avaliação quanto às suas metas, às ações decorrentes dos resultados obtidos.

Entendemos que manter uma resistência ativa requer o pensar criticamente sobre o que vem sendo colocado para a educação. No caso desta dissertação, nos propusemos a questionar e analisar o processo avaliativo externo desencadeado pela SEML quanto às ações praticadas por essa Secretaria de Educação para a qualidade do ensino ministrado nas escolas públicas municipais.

Ao questionarmos, nos colocamos do lado de quem percebe que por trás de um complexo sistema de avaliação existem interesses que vão além da escola, além da sala de aula, ultrapassam o que podemos chamar de intencionalidade educativa no sentido de formar sujeitos ca-pazes de pensar, de refletir, de exigir mudanças que se contraponham à ideologia e concepções vigentes. Por meio dessa resistência, da pesqui-sa, da disponibilização de estudos aos educadores do sistema municipal é possível pensar na mudança e que ela seja significativa para o contex-to escolar e, por consequência, para a sociedade. Ao perceber que um sistema como o que foi desenvolvido para as escolas públicas munici-pais lageanas não foi claro quanto aos objetivos e ações, acreditamos na perspectiva de mudar, de ver outra possibilidade para a educação que seja diferente do que vem sendo praticado.

Precisamos da avaliação certamente. Todavia, ela deve estar a favor da escola, do professor, do aluno no sentido de estabelecer outro

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parâmetro que não seja o de culpar ora um ora outro (professor, aluno, direção). A avaliação, conforme entendemos, precisa revelar o que não vai bem e permitir ações voltadas para o redirecionamento de esforços que garantam a todos os alunos oportunidades de adquirir o conheci-mento formal veiculado na escola, respeitando o tempo de cada um e as peculiaridades que formam cada sujeito.

Isso significa ir contra a ideia de que formas excludentes conti-nuem a fazer parte do sistema, contra o ranqueamento ou classificação de escolas, a responsabilização de professores e indução de currícu-los mínimos, juntamente com a gratificação por desempenho. Gentili (1995) pondera que, em uma sociedade onde haja democracia não pode haver desigualdades entre o acesso à escola e nem diferença de serviços prestados por ela, recriminando as qualidades determinadas pela escola pública e pela escola privada. Segundo o autor, faz-se necessário modi-ficar a qualidade dos sistemas de ensino no que diz respeito ao direito comum e não apenas a uma pequena parcela da população, pois “[...] qualidade para poucos não é qualidade é privilégio” (GENTILI, 1994, p. 177).

Em análise, podemos dizer que o destaque na competitividade exerce considerável importância e, por isso, certos modos avaliativos são instituídos no sentido de medir a potência da aprendizagem dos estudantes em relação às demandas do mercado. A avaliação, por con-seguinte, caracteriza-se como processo contábil que classifica os alu-nos por números, quanto ao seu rendimento escolar, a exemplo de um sistema financeiro no qual há os que possuem dinheiro e os que não o têm. Na escola, sob essa perspectiva, há os que aprendem e os que não conseguem aprender.

Os alunos são avaliados como produtos e o controle de quali-dade precisa estar de acordo com as exigências do mercado. E então nos perguntamos: os produtos (alunos) que não estiverem conformes ao padrão de qualidade serão deixados de lado? Ou quem sabe, devolvidos para as fábricas? Se pensarmos desse modo, os que não acompanham

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o padrão exigido pelo mercado são devolvidos pela escola à sociedade, que também os exclui, restando a esses sujeitos a marginalidade social, o trabalho informal, quando não a miséria ou marginalização. Os alunos que conseguem bom desempenho, segundo essa lógica, serão os futu-ros competidores por uma vaga no trabalho formal, o que nem sempre renderá bons salários ou dignidade de vida, porque a competição e o contingente de reserva servem para a manutenção da produção capita-lista com menores custos.

E o respeito pelo tempo de aprendizagem de cada aluno? Sa-bemos que cada sujeito possui um tempo próprio para aprender. Nem sempre se consegue isso no período de aulas estabelecido, nem com os programas ou políticas públicas educacionais existentes. Há alunos que necessitam mais estímulos e isso os sistemas de avaliação, conforme são organizados, não conseguem prever ou prover, até porque existe um prazo para aprender, quem não consegue os resultados esperados nesse período é excluído ou devolvido à sociedade também excludente.

Afonso (2000) nos esclarece que as funções da avaliação têm que ser consideradas no contexto das mudanças educacionais, econômicas e políticas, pois ela é uma atividade política. A compreensão das polí-ticas adotadas pelo governo precisa, nesta concepção, levar em conta o processo histórico mais longo e o panorama político-pedagógico e culturalmente definido pelo que se quer alcançar. Há que se considerar as políticas públicas avaliativas em um processo que venha a contribuir para o crescimento integral do aluno. Para isso, entendemos a necessi-dade de se pensar sobre o sistema de avaliação que envolve as escolas brasileiras e analisar se ele atende às especificidades da educação na-cional de fato.

Consequências da avaliação de desempenho e por performance

As discussões sobre a avaliação de desempenho e por performan-ce que se fazem presentes no meio educacional têm favorecido o levan-

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tamento de uma série de questões (resultados, uso dos resultados...) que envolvem todo esse processo, apresentando, na maioria das vezes, críti-cas a esses sistemas de avaliação que demonstram fracasso nos seus ob-jetivos. Por outro lado, essas avaliações apresentam sucesso de algumas escolas quando divulgadas na mídia, em contrapartida, desmotivam o trabalho educacional de outras unidades de ensino.

Para Siqueira (2002), por meio de condições apropriadas, a ava-liação de desempenho pode contribuir significativamente para a busca da excelência organizacional. Nesse sentido, se faz necessário repensar nas situações que envolvem a avaliação de desempenho para estabele-cer uma espécie de equilíbrio entre dados quantitativos e qualitativos, tendo como referência a aplicabilidade dos critérios utilizados. Portan-to, para que uma avaliação desse tipo tenha sucesso nos seus objetivos, seus resultados devem ser realmente utilizados para mudanças efetivas no contexto escolar no sentido da qualidade de ensino e de aprendiza-gem inclusiva.

Na escola, a avaliação de desempenho está atrelada às políticas públicas neoliberais, por meio de competição, comparação e responsa-bilização e cópia dos modelos empresariais. Abicalil (2002, p. 269) nos diz que “Avaliar pode pressupor a comparação, que, por sua vez, pres-supõe a identidade de critérios. Esta questão remete a outra questão: O que um aluno aprende é comparável com o que outro aluno aprende?”

Toda avaliação requer aprimoramento para que seja implementa-da e incorporada a um plano de ação e tal procedimento seja bem suce-dido, sobretudo para descrever objetivamente as extensões de desempe-nho do avaliado (SIQUEIRA, 2002). Podemos dizer que as avaliações são observadas por meio de tratamento estatístico dos dados, deixando de lado as causas da má avaliação, ocasionando pouco resultado para o avanço do desempenho dos que foram avaliados.

Para Siqueira (2002, p. 70), “A avaliação de desempenho não é uma fita métrica, como pretendem muitos especialistas da área, com a qual se possa medir a altura, a largura, o comprimento e a profundida-

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de do comportamento do ser humano”. Para esse autor, a avaliação de desempenho é uma forma de ampliar o desempenho em busca de uma interação de todos com um propósito comum.

No entanto, os especialistas em testes entendem que os mesmos têm suas restrições, e não podem ser utilizados como o único dado para se tomar decisões importantes. Freitas (2011, p. 13), analisa essa situa-ção tendo por base estudos de Koretz (2008), e, ressalta que, “Basica-mente, a discussão sobre os limites dos testes tem sua origem na falta de entendimento sobre as suas bases: testes não dão uma medida direta e completa do desempenho educacional de um aluno”.

Nas escolas municipais de Lages (SC), objeto do nosso estudo, observamos que há ausência de discussões a respeito das avaliações realizadas pela SEML para se obter o nível de desempenho dos alu-nos. Importante lembrar que essas avaliações foram realizadas por doze anos, mantendo-se a preocupação maior com resultados, sem analisar de forma mais intensa o que esses resultados poderiam apresentar em termos de mudanças qualitativas para as escolas.

Quando a avaliação se refere ao desempenho de uma escola, isso se torna complexo, porque esclarecer o desempenho escolar, segundo Freitas (2007, p. 979), “[...], implica ter algumas familiaridades com o seu dia-a-dia, o que não é possível para o sistema de avaliação em larga escala realizado pela Federação ou pelos estados [incluímos nesse caso também os municípios], distantes da escola”.

Nesses casos, a avaliação poderá contribuir para solidificar dis-criminações, que geram injustiças e, sobretudo, tenderá a fortalecer há-bitos e tradições enraizados na organização escolar. A performance dos alunos pode ser comprometida pelo envolvimento daquele momento, estado emocional, distrações no momento da prova. Também não se pode esquecer que as avaliações podem ser consideradas sem nenhuma contribuição quando se usa muito tempo para preparar os estudantes para as provas que serão aplicadas em dia e hora determinados. Em Lages, as avaliações ocorreram em períodos focalizados em apresentar

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resultados. As escolas, nesse processo, na preocupação de se manterem nos níveis elevados, acabam deixando de lado os seus verdadeiros ob-jetivos com a educação.

O que podemos observar é que no contexto educacional, a ava-liação de desempenho e por performance em geral tem sido aplicada sem que haja um efetivo entendimento da sua significação quanto ao objetivo e utilização desse processo como ferramenta que possibilite qualidade educacional. Como afirma Siqueira (2002, p. 80), “[...] a ava-liação de desempenho não é ciência, e pode gerar problemas quando mal utilizada”.

Assim, nos questionamos: E os alunos? Como são direcionados a todas essas avaliações? Estamos sabendo avaliá-los? Oportunizamos condições para que sejam realmente avaliados? A relevância de tais questões se faz pertinente quando, na questão avaliativa, coloca-se de forma inadequada a realidade de cada escola, o que não condiz com o cotidiano de sala de aula, porque os conteúdos são desarticulados e diferentes do que foi proposto ou o que está no Projeto Político Pedagó-gico (PPP) de cada unidade escolar.

Veiga (1998, p. 01, 02) reforça que o PPP “[...] vai além de um simples agrupamento de planos de ensino e de atividades diversas. Esse tipo de projeto não é algo que é construído e em seguida ar-quivado ou encaminhado às autoridades educacionais como prova do cumprimento de tarefas burocráticas”. Isso caracteriza uma reflexão constante sobre os problemas que envolvem a escola e só pode ser realizado por quem faz parte dela, porque esta não pode ser conduzida de cima para baixo, na lógica de quem dita as regras e mantém o con-trole. O Projeto Político Pedagógico, nesse caso, tende a ser uma fer-ramenta de conscientização dos educadores sobre as determinações de órgãos externos que favorecem uma educação excludente. Para tentar reverter esse processo, entendemos como necessário rever os objeti-vos estabelecidos pelo sistema capitalista para a escola. Nas palavras de Freitas (2010, p. 94), faz-se

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Importante frisar, portanto, que a forma da avalia-ção existente nas escolas está intimamente ligada à forma escolar constituída pelo sistema capitalista a partir de seus objetivos educacionais. Somente uma alteração nestes objetivos, poderá gerar uma nova concepção de escola e, consequentemente, uma nova concepção e prática de avaliação. Neste processo, cumpre função especial a matriz forma-tiva que orienta a concepção de educação (FREI-TAS, 2010, p. 94).

Enquanto não houver mudança nos objetivos dessas avaliações, os alunos continuarão sendo mensurados, sem que o Estado, a escola e demais envolvidos com a educação se preocupem com os “nós” encon-trados principalmente no sistema avaliativo externo, cujos objetivos são o de angariar elementos para os governantes desenvolverem políticas públicas paliativas, em acordo com os interesses do capital. A contra-partida seria, conforme já mencionado, rever os objetivos e direcionar os processos avaliativos para a obtenção de dados que possibilitem pro-postas de ações e investimentos para a qualidade da educação na sua totalidade.

Diante dessa perspectiva, percebemos que os alunos são avaliados somente em função do desempenho escolar ou da possibilidade de re-ter informações ou conhecimentos que lhe são transmitidos no decorrer do ano letivo, sem que as avaliações e avaliadores se preocupem com a performance na absorção do conhecimento e muito menos se as potencia-lidades dos alunos foram desenvolvidas, respeitando a individualidade.

Segundo Mészáros (2005, p. 48), somente “[...] a mais ampla das concepções de educação nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança verdadeiramente radical”. Diante disso, podemos dizer que a escola não pode continuar só a transmitir conhecimento, mas preci-sa ensinar a aprender, possibilitando novos caminhos e principalmente orientando o aluno para que este desenvolva um olhar crítico e construa a sua cidadania.

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Isso implica na reflexão consciente do professor, na maneira de ensinar, nas modificações e transformações necessárias para se desen-volver um ensino de qualidade. Além disso, é necessário que tanto alu-no quanto professor compreendam as transformações ocorridas em re-lação ao conhecimento na sociedade em que vivem, tendo em vista que a essência da mudança e do próprio processo de modernização está no ser humano, uma vez que ele determina sua autonomia e precisa estar consciente da relação de reciprocidade com o social.

Para Almeida (2003), a sociedade global apresenta-se como uma totalidade “[...] complexa, contraditória e aberta”. No que se refere à educação, mudou a gestão das escolas, transformou-se a relação peda-gógica, apareceram novos recursos pedagógicos, em especial os meios de comunicação, no entanto ainda permanecem as estruturas fundamen-tais da forma escolar organizada nos séculos XVI e XVII.

O papel da educação é supremo tanto para a ela-boração de estratégias apropriadas, adequadas a mudar as condições objectivas de reprodução, como para a auto-mudança consciente dos indi-víduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente (MÉSZÁROS, 2005, p. 22) (grifos do autor).

Para isso, se faz necessário romper com a lógica do capital, cons-truir outra prática pedagógica que esteja integrada com outro projeto de sociedade, na qual a avaliação seja pensada em um sentido bem diferen-te do regulação e exclusão de alunos do processo pedagógico da escola.

O professor e a avaliação de desempenho e performance

Diante de todas as alterações ocorridas no processo avaliati-vo a partir dos anos 90 do século passado, nos indagamos como se encontram os professores para enfrentar as constantes mudanças no

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campo educacional? Entre as inúmeras modificações nesse sistema, destaca-se a exigência de curso superior aos professores no sentido de prepará-los conforme uma nova concepção de currículo, avalia-ção, gestão, no intuito de formar o aluno adequado com a oferta de uma educação de qualidade que prepare o mesmo para o mundo do trabalho.

Segundo Veiga e Viana (2010, p. 16), no entanto, “[...] a nossa es-cola pública não proporciona ao aluno uma formação de qualidade para suprir as exigências do mercado global, e muito menos a formação que defendemos, aquela comprometida com a emancipação desse aluno”. E isso implica em reconhecer que existem falhas nas escolas, inclusive nas instituições de ensino superior, portanto formadoras de professores. Conforme palavras de Freitas (2007, p. 975),

[...] há de se reconhecer, igualmente, que há fa-lhas nas políticas públicas, no sistema sócio eco-nômico etc. Portanto, esta é uma situação que, à espera de soluções mais abrangentes e profundas, só pode ser resolvida por negociação e responsa-bilização bilateral: escola e sistema.

Nessa perspectiva, podemos dizer que muitas vezes os profes-sores chegam às salas de aula despreparados quanto ao contingente de mudanças que se apresenta no cotidiano escolar. Isso os torna pouco confiantes e resistentes à mudanças. Ao observarmos a prática pedagó-gica desenvolvida nas escolas públicas, a formação do professor consti-tui fator importante para determinar a qualidade de ensino. Formar pro-fessores atuantes, que preparem os alunos para encarar as contradições sociais é um caminho que precisa ser trilhado por meio da construção de conhecimento que responda aos desafios da sociedade contemporâ-nea. Para tanto, se faz necessário investir na formação de professores e, para isso, carecemos de vontade política.

Freitas (1992, p. 03) assinala também que,Boa parte dos problemas relativos à formação

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do educador no Brasil não depende de grandes formulações teóricas — ainda que estas possam ajudar e tenham seu lugar. São questões eminen-temente práticas: seja no interior das agências for-madoras (em especial, escolas normais e universi-dades), seja no interior das agências contratantes (secretarias de educação e Ministério da Educa-ção, em especial).

Para o autor, há muitos conhecimentos referentes à formação do professor. O que precisaria ser feito, na verdade, seria possibilitar a sua prática. Conforme Freitas (1992, p. 03), “[...] O que sabemos, hoje, sobre formação de professores, se fosse concretizado, produziria uma mudança substancial em nossas escolas”. Nesse sentido, se faz necessá-rio compreender o que se mostra contra ou a favor da formação dos pro-fessores, o que está ligado às influências internacionais e considerar as transformações sociais que estão acontecendo na contemporaneidade.

Freitas (1992) entende que,

Enquanto o Estado não mediar uma ação conjunta entre escolas normais, universidades (principais agências formadoras) e secretarias de educação (principal agência contratante) não reverteremos este quadro. Isto passa por uma transformação global de toda a legislação que regulamenta a for-mação e atuação deste profissional, com o objeti-vo de garantir formação de qualidade e valoriza-ção profissional (FREITAS, 1992, p.10).

Diante disso, a formação terá que ser pensada por meio de uma política que incorpore tanto as agências formadoras como as agências que contratam para que aconteçam as possíveis transformações. Nessa perspectiva, segundo Freire (2009, p. 47),

[...] é preciso conhecer as principais tendências que se colocam no campo da formação docente

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para avaliarmos a intencionalidade formativa das agências formadoras, bem como dos sistemas de ensino que procuram por meio destas responder aos desafios do sistema socioeconômico.

Contudo, a lei que impera é a do negócio, que ronda a educação e passa cada vez mais a exigir uma formação rápida para atender às de-terminações do mercado. Diante disso, Silva (2003, p. 298) observa que “Na universidade pública, o tempo da pesquisa passou a ser ditado pelo tempo do mercado e pelas necessidades deste. É preciso abreviar-se, o mercado não espera!”. Essa exigência acaba possibilitando que todos sigam as determinações do mundo dos negócios.

Conforme Goodson (2008), as atuais modificações existentes no ensino partem do seguinte pressuposto:

[...] já que tudo não vai muito bem com as escolas (o que é verdade), reformas e mudanças só podem ajudar a melhorar a situação (o que é falso). Man-tém-se também a premissa de que a enunciação clara de objetivos, apoiada por uma bateria de tes-tes acompanhada por estratégias de prestação de contas e confirmada por uma série de incentivos financeiros e pagamentos por resultados obtidos, vai inevitavelmente melhorar os padrões escola-res (GOODSON, 2008, p. 108).

As mudanças ocasionadas pelo sistema educativo, conforme pode-mos perceber, não contribuem efetivamente para a qualidade dos resulta-dos apresentados por instituições formadoras. Podemos entender que nem sempre os impasses que causam a transformação estão ligados à questão da formação profissional. Borges (2010, p. 37) entende que “[...] sendo um professor comprometido com uma educação verdadeiramente eman-cipatória prima por ser um detentor de saberes acadêmicos profissionais que vão muito além do seu repertório cotidiano da sala de aula, isto é, ele é capaz de superar o que ensina”. Para Abicalil (2002, p. 261, 262),

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A relação entre formação profissional e profici-ência dos alunos não se limita à escolaridade do professor, que na maioria dos estados e dos muni-cípios, em qualquer das redes de ensino, é maior do que a exigida por lei. Interferem outros fatores como tempo em que trabalha como professor e tempo em que trabalha na escola. A experiência acumulada, tecida nos desafios diários enfrenta-dos pelos professores, tenderá a ser mais valoriza-da para a qualificação profissional, à medida que for refletida e sistematizada na relação teoria ver-sus prática, superando o estágio de conhecimento do exercício profissional, para o estágio de apro-priação e pleno controle desse exercício por meio da reflexão/ação/reflexão.

Dessa forma, podemos afirmar que as políticas públicas não favorecem a formação do professor. Muitas vezes, a desvalorização profissional com salários baixos contribui para que os professores te-nham acúmulo de atividades e carga horária excessiva. Além do mais, podemos considerar que os afazeres burocráticos exigidos pela escola acabam impossibilitando que esse profissional tenha tempo livre para investir no aperfeiçoamento pessoal e, acima de tudo, impedem um maior envolvimento na relação entre professor e aluno e do professor com a comunidade escolar. Podemos enfatizar também que questões relacionadas às políticas públicas, seu entendimento e formulação não são discutidas entre os professores, ou seja, eles acabam acatando o que lhes é imposto pelo sistema, sem ao menos entender o porquê do que está sendo exigido.

Sendo assim, diante das avaliações de desempenho e por perfor-mance, os gestores e professores se defendem como podem. Dada a im-portância dos seus resultados, acabam muitas vezes deixando os alunos que não alcançam performance mediana fora do processo avaliativo. Fernandes (2007), reforça que, com mecanismos de responsabilização, os gestores na tentativa de melhorar o ensino, acabam encontrando

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outras estratégias para apresentar os resultados que por vezes podem ser alterados. Com isso, poderá haver exclusão de alunos do processo avaliativo. Observamos que resultados elevados nas avaliações podem ou não serem indicadores confiáveis. O foco demasiado nas avaliações pode muitas vezes propiciar desinteresse tanto no ensinar quanto no aprender. Silva (2003, p. 298), contribui com o nosso pensamento, afir-mando que,

O que importa é alcançar os resultados/rendimen-tos escolares definidos a priori. Não importa se o aluno de fato se apropria de saberes e de conhe-cimentos que se traduzam em processos eman-cipatórios e de cidadania. Desconsideram-se as funções clássicas da escola, que é desenvolver as relações ensinar e aprender, pensar e fazer, par-tindo-se do princípio de que todos têm condições de aprender, ainda que seja no seu próprio ritmo (SILVA, 2003, p. 298).

Pensar em uma escola de qualidade é deixar que o fazer pedagó-gico seja regido por profissionais da educação e não por uma política ligada aos interesses de organizações internacionais, despreocupando-se com a educação para todos, desrespeitando as individualidades de cada aluno.

Diante disso, refletir sobre o fazer pedagógico e sobre os profis-sionais que estão à frente do processo educativo seria um dos passos fundamentais para buscar qualidade para a escola. Mas, constatamos, segundo os estudos de Paul e Oliveira Barbosa (2008), que entre os alu-nos mais pobres as possibilidades de ter um professor mais experiente são 50,76% menores do que aqueles de posição social ou cultural mais elevada. A esse processo, denomina-se de “perversidade do efeito do-cente”, se considerar que o professor é um dos fatores decisivos para o sucesso escolar dos alunos. Nesse sentido, para os mesmos autores, os professores com mais experiência na educação apresentam maior faci-

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lidade de trabalhar com alunos que apresentam dificuldades e carências na aprendizagem. Contudo,

Os alunos que mais necessitam de professores ex-perientes e estáveis são os que recebem os profes-sores menos experientes e com maior rotativida-de. Em países que são tão desiguais socialmente, os sistemas escolares parecem estar contribuindo para aprofundar essas desigualdades. Por ironia, isso está associado ao grupo de agentes sociais cujo discurso tem os tons mais críticos em rela-ção ao funcionamento das escolas e às políticas educacionais, os professores (PAUL e OLIVEIRA BARBOSA, 2008, p. 131).

Concordamos com os autores, porque na realidade em que esta-mos envolvidos profissionalmente consta-se que os professores mais experientes e com mais titulações encontram-se ocupando outros car-gos, fora de sala de aula. Entendemos que essa experiência poderia fa-cilitar a aprendizagem dos alunos que estão com dificuldades de apren-dizagem e contribuir para a almejada qualidade da educação.

Nessa perspectiva, o próximo capítulo descreve a “avaliação ex-terna” do sistema de ensino municipal de Lages (SC), estudo efetuado para compreender o modo como esse processo foi desenvolvido neste município desde sua implementação em 2001 até o ano de 2012.

Considerações finais

O presente estudo objetivou refletir de que forma a avaliação de desempenho e por performance serve de instrumento e garantia de equi-dade na educação escolar. Esta modalidade de avaliação no contexto educacional, nas esferas nacional, estadual e municipal, tem passado por encaminhamentos decorrentes de políticas para a educação defini-das por organismos internacionais mais voltados para o capital.

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No Brasil por muito tempo, ao se falar em avaliação significava, a aplicada pelo professor na sala de aula com o intuito de verificar a aprendizagem do aluno. No decorrer da história da educação o pro-cesso de avaliação da aprendizagem assume características da política interna e externa, institucional, auto avaliação e avaliação de sistemas organizados que no discurso político objetiva a qualidade da educação e a garantia de inclusão a todo o cidadão ao acesso e permanência a e na escola, o que por vezes, fica a desejar.

A política da avaliação institucional passou a ser um dos instru-mentos fundamentais do setor econômico. O Banco Mundial subsidia projetos educacionais exercendo influência principalmente, sobre os países, “ditos mais pobres”. No Brasil essa a influência estabelece a ne-cessidade de controlar os indicadores e a certificação do cumprimento das regras estipuladas para garantir a continuidade dos financiamentos.

Sobre a educação também, incide a política do neoliberalismo que não define somente um modelo de sistema econômico, mas, sim, estabelece uma forma de ver a vida, de sentir e se relacionar com as pessoas e o mundo que a cerca. A individualidade exerce predomínio sobre a coletividade, e restringe os laços de solidariedade. Fato este, que interfere na educação e imprime um caráter de avaliação competiti-va que se expressa na valorização dos mais capacitados em detrimento daqueles educando que apresentam déficits de aprendizagem.

Finalizando, pode-se dizer que a avaliação de desempenho e por performance na contemporaneidade vem sendo tema de considerável repercussão educacional e social que interferem nas mais diferenciadas iniciativas em todos os níveis e modalidades de ensino o que vem carac-terizando uma efetiva política de avaliação educacional. Assim sendo, a avaliação de desempenho e por performance depende de esforço pesso-al e social tendo em vista a inclusão de todos os educandos, com direito a voz e ao pleno exercício da cidadania.

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233Itinerários de Práticas Docentes no Ensino Superior: Saberes e Experiências

“Ainda Não”: Alfabetização na Educação de Jovens e Adultos, tecnologias e suas implicações no processo de aprendizagem

Wanderléa Pereira Damásio Maurício46

Início de Conversa

A alfabetização de jovens e adultos, no Brasil, aponta fragilidades que demonstram ações ainda não consolidadas no âmbito educacional. Para Pinto (1982, p. 79), “o adulto é o membro da sociedade ao qual cabe a produção social, a direção da sociedade e a reprodução da espé-cie”. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística (IBGE, 2010), 14,6 milhões de cidadãos acima de 10 anos são analfabetos.

Tendo em vista esses dados, este artigo tem como objetivo re-fletir sobre a Alfabetização de Jovens e Adultos no âmbito educacio-nal. Sujeitos com idade entre 20 e 70 anos, que desconhecem os signos linguísticos, encontram-se há dois anos na mesma turma e sentem o reflexo das dificuldades da leitura e escrita. As cópias de textos são

46 Doutora em Educação.

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dominadas pelos mesmos, mas a leitura e a interpretação estão ausentes nesse processo.Este fato empírico foi constatado pelo grupo de Estágio Curricular de uma Universidade Pública, mais precisamente no Curso de Pedagogia, e serviu como instrumento para que se possa discutir e refle-tir sobre as práticas de ensino que permeiam esta modalidade de ensino.

O que faz com que esses sujeitos ainda desconheçam a capaci-dade de “utilizar e refletir sobre a informação escrita” (MASSAGÃO, 2010) por tantos semestres? Levando em conta que a escola vem modi-ficando sua prática pedagógica, com o advento das tecnologias, que são utilizadas massivamente nas Unidades escolares, o que contribui para o afastamento dos sujeitos da escola?

Na década de 1980, o que se instaurava no campo da educação era a questão do currículo. Era perceptível que este conceito estava no plano geral de discussão de qualquer temática na educação. Moreira (1990) lembra os movimentos em torno do currículo como foco princi-pal da educação nesse período. Já na década de 1990, a gestão tornou-se o foco das discussões e foi formalizada como o cerne para a melhoria da qualidade do ensino. Nóvoa (2011), em suas palestras, chamava a atenção sobre o quanto o conceito de gestão estava instalado no bojo das discussões. Na década de 2000, as Tecnologias tomaram o lugar da gestão e se constituíram no instrumento que daria conta das problemáti-cas educacionais. Lévy (1998, p. 26) já lembrava que a utilização multi-forme dos computadores para o ensino estava se propagando na escola, na casa, na formação profissional e contínua. Entretanto, o currículo, a gestão, as tecnologias não foram elementos suficientes para a mini-mização da fragilização do processo de aprendizagem. Dessa forma, chega-se ao século XXI com dados alarmantes sobre os sujeitos jovens e adultos que ainda não estão alfabetizados.

A prática pedagógica vem sendo acompanhada, durante um lon-go percurso, pelos educadores, e presenciam-se, nos espaços educati-vos, metodologias arcaicas e afastadas da realidade dos processos de aprendizagem dos sujeitos. Práticas tradicionais que reforçam a repe-tição do saber ou, como diz Freire (2006), a “educação bancária”. A

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construção do conhecimento parece não despertar nos sujeitos a dia-logicidade. Escrever é apenas um reforço, como se esta questão desse conta da apropriação da linguagem e da leitura do mundo.

Não se desconsidera o vasto conhecimento na linguagem oral desses sujeitos, ao contrário, este processo caminha lado a lado na cons-trução do conhecimento. Mas o que se verifica, na empiria observada, são apenas as cópias e os registros de repetição. Isso significa a ausên-cia de um trabalho coletivo, inovador, dialógico, provocador e interven-cionista, mediado pelo educador. Tal iniciativa inexiste nesse cenário. Na realidade, parece se estabelecer uma visão ingênua de que essa defi-ciência pode ser superada, comprovando a existência de uma sociedade fragilizada, que persiste no abandono desses sujeitos, bem como na não ruptura com uma sociedade dominante.

2 Ainda Não: perspectivas que permeiam a possibilida-de de mudança, a potencialização do saber

O termo Ainda não, conforme se apresenta no presente texto, tem origem no filósofo Boaventura dos Santos (2006, p. 117), quando o mesmo afirma que “Ainda-Não é a consciência antecipatória, [...] é, por um lado, capacidade, (potência) e, por outro, possibilidade (potencia-lidade).” Buscou-se empregar este termo para ampliar o olhar sobre a atual situação que persiste na Alfabetização de Jovens e Adultos. Vis-lumbrando-se uma possibilidade de refletir sobre a questão da apren-dizagem dos sujeitos, bem como sobre a prática pedagógica dos pro-fessores que atuam nessa modalidade, considera-se várias vertentes de inovação no âmbito pedagógico: a realidade dos sujeitos, a tecnologia como meio e possibilidade de mudança, a aproximação com conteúdos que interagem na realidade dos mesmos e a mediação-intervenção no processo de aprendizagem entre educador e sujeito.

Para Santos (2006, 116), “o Não é a falta de algo e a expressão da vontade de superar esta falta. O ainda-Não é a categoria mais completa,

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porque exprime o que existe apenas como tendência, um movimento latente no processo de se manifestar”.

Ainda-Não equivale a poder provocar a mudança, minimizar a exclusão e alavancar saltos positivos para a vida desses educandos. No-vamente se evoca Santos(2006, 117), que afirma que “a possibilidade é o movimento do mundo”. Os momentos dessa possibilidade são a ca-rência (manifestação de algo que falta), a tendência (processo e sentido) e a latência (o que está na frente desse processo).

Pronunciando-se sobre o assunto, Massagão (2010, p. 144) con-ceitua alfabetismo como:

[...] a capacidade de compreender, utilizar e refle-tir sobre a informação escrita que abrange desde o conhecimento rudimentar de elementos da lin-guagem escrita até as operações cognitivas com-plexas que envolvem a integração de informações textuais e dessas com os conhecimentos e visão de mundo aportados pelo leitor.

Graças aos movimentos de grupos e às políticas perpetuadas nesta modalidade de ensino, aos poucos, algumas ações foram sendo apresen-tadas, como possibilidades de mudanças, visualizando um cenário pro-missor para esta modalidade, tendo em vista que, como diz Laffin (2006), “não há tempos definidos de aprendizagem, mas a aprendizagem a qual-quer tempo da vida dos sujeitos”. Ainda-Não é um termo que possibilita a vontade de fazer acontecer, atitude de provocar a mudança, problematizar e apresentar resultados de melhoria nas práticas pedagógicas.

Mas afinal, quem são esses sujeitos jovens e adultos incluídos nesses cenários da EJA? Para Arroyo (2005: p. 23),

[...] são sujeitos que não tiveram acesso, na in-fância e na adolescência, ao ensino fundamental, ou dele foram excluídos ou dele se evadiram. O Direito para jovens e adultos à educação continua sendo visto sob a ótica da escola, da universali-

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zação do ensino fundamental, de dar novas opor-tunidades de acesso a esses níveis de ensino não-cursados no tempo tido em nossa tradição como oportuno para a escolarização.

Considera-se fundamental discutir sobre tal problema, embora se saiba que as políticas para a EJA ainda são fragmentadas. Há uma ques-tão norteadora dessa pesquisa: quais são os processos formativos que possibilitam a compreensão dos saberes desses sujeitos? O interesse por esta problemática surgiu quando do acompanhamento da pesqui-sadora, durante dois anos, de acadêmicos da prática de ensino, visua-lizando práticas pedagógicas sem significados que persistem em fazer os sujeitos da EJA continuarem, por vários semestres, repetindo sem a capacidade de compreender a informação escrita, utilizá-la e refletir sobre ela. (MASSAGÃO, 2010).

Saberes para a prática pedagógica e aprendizagem dos sujeitos da EJA

Vários estudiosos, como Freire, Pinto, Maturana, Arroyo discutem elementos constitutivos que evocam os saberes necessários para a EJA. Julga-se interessante apresentar, aqui, o pensamento de alguns deles.

No entendimento de Freire (2005, p. 66), quando o educador pas-sa a oferecer situações de conteúdos que favorecem a memorização, a educação se torna um ato de depósito e, neste ato, os educadores são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, o educador faz comunicados, que se memorizam e se repetem. Freire (2005) dá o nome de “educação bancária”, como forma de apresentar um cenário ainda bastante utilizado nas práticas pedagógicas dos pro-fessores. Para este autor, na visão bancária da educação, o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que eles julgam nada saber. Assim, na qualidade de “doação que se fundamenta numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão” (FREIRE, 2005, p. 67), o saber

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passa a ser um depósito de informações. Já Tortajada&Peláez (1997, p. 141) fazem a seguinte afirmação:

Sin negar La importância de La dimensión infor-macional o comunicacional em lãs sociedades Del futuro, lo cierto es que el elemento común sub-jacente a los diversos aspectos de funcionamiento de las sociedades emergentes es el tecnológico. As tecnologias são estratégias que podem ofere-cer possibilidades de extensão.

Nessa perspectiva, Maturana (2001, p. 31) diz que todo ato de conhecer faz surgir um mundo. O autor lembra que toda reflexão, in-clusive a que se faz sobre os fundamentos do conhecer humano, ocorre necessariamente na linguagem, que é a maneira particular de ser huma-nos e estar no fazer humano.

Concorda-se igualmente com Santos (2006, p. 118) quando esse autor declara que “a possibilidade é o movimento do mundo [...] por um lado conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança; por outro, definir princípios de ação que promovam a realização dessas condições”.

Dando sua contribuição para a discussão sobre o tema, Mclhuan (1969, p. 128), o grande pensador da era digital, enfatizava que “a edu-cação tem que se desviar da instrução, da imposição de estereótipos, para buscar a descoberta – indo à sondagem e exploração bem como ao reconhecimento da linguagem das formas.” O referido autor ainda salienta que “os jovens de hoje querem papéis - PAPÉIS.” Isto signi-fica total comprometimento. Eles não querem objetivos ou empregos fragmentados e especializados. As tecnologias têm papel fundante no processo de aprendizagem.

Por sua vez, Pinto (apud GADOTTI, 2005, p. 250) salienta que “a educação é um processo, portanto é o decorrer de um fenômeno (a formação do homem) no tempo, ou seja, é um fato histórico. Porém, é histórico em duplo sentido: primeiro, no sentido de que representa a

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própria história individual de cada ser humano; segundo, no sentido de que está vinculada à fase vivida pela comunidade em sua contínua evo-lução [...].” Percebe-se, na fala do referido autor, que os conhecimentos prévios destes sujeitos devem ser valorizados.

Desta forma, defende-se o diálogo (Freire) e a circularidade (Ma-turana) como instrumento de criticidade nesta pesquisa e nos contextos da EJA. A temática de estudo planejada segue com amplo roteiro de pensar os trabalhos por meio da investigação da história desses sujeitos. Para Freire (2002, p. 130),

[...] do ponto de vista metodológico, a investiga-ção que desde seu início, se baseia na relação sim-pática, de que falamos, tem mais esta dimensão fundamental para a sua segurança – a presença crítica de representantes do povo desde seu co-meço até sua fase final, a da análise da temática encontrada, que se prolonga na organização do conteúdo programático da ação educativa, como ação cultural libertadora.

Conclui-se citando mais uma vez Santos (2006, p. 107), para quem “o princípio da incompletude de todos os saberes é condição da possibilidade de diálogo e debate epistemológico entre diferentes for-mas de conhecimentos”. Neste viés de contextos formativos da EJA, a tematização, a investigação e a problematização constituem um tripé de convicções que vão atuar na efetivação de uma prática pedagógica inclusiva, em que os atores são partícipes de processo educativo.

Empiria observada: reflexões acerca das práticas pedagógicas que insistem na continuidade do Não.

Esta pesquisa, de cunho exploratório, foi realizada por meio da observação da pesquisadora, durante três semestres, de seis turmas de Alfabetização de Jovens e Adultos, tendo como alvo as práticas peda-

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gógicas de seis professores efetivos e contratados pelo Poder Públi-co Municipal, contando com a participação de estagiários do Curso de Pedagogia de um Centro Universitário Público em SC. A dinâmica se apresentou da seguinte maneira: os educandos estagiários observaram, em oito encontros, salas de aulas da EJA e fizeram cinco intervenções, por meio de um projeto de ações norteadas por referencial teórico. O foco inicial era perceber como a prática pedagógica das professoras de sala de aula potencializava a aprendizagem dos sujeitos aprendizes.

Caminhos construtivos que provocam os sujeitos a ressignificar seu processo de aprendizagem

Todos os professores da EJA eram graduados em Pedagogia, mas não tinham a experiência e nem formação nessa modalidade de ensi-no. Durante as observações dessas práticas pedagógicas, constatou-se que eram professores reproduzindo uma “educação bancária” (Freire, 2005), pois a constância se dava na cópia e repetição de conteúdos. Não se verificou um planejamento ou plano de trabalho para as aulas, sendo que os assuntos eram colocados no quadro negro e os exercícios levavam à decoreba. Confirmam-se assim as palavras de Arroyo (2005, p. 48,), para quem os jovens e os adultos que chegam a EJA “[...] são náufragos ou vítimas do caráter pouco público de nosso sistema esco-lar”. As práticas vivenciadas são fruto da ausência do poder público na formação dos educadores. O “Não” evidenciado por Santos (2006) é interpretado pela pesquisadora como negação de possibilidades. De acordo com uma fala de um sujeito da EJA (com 60 anos):“Sei escrever bem, mas não leio nada, não entendo as letras”. Percebeu-se, nessas ob-servações, que havia a insistência dos professores em continuar negan-do aos sujeitos a possibilidade de compreender, utilizar a informação escrita e refletir sobre ela.

Os estagiários traziam para as reuniões do grupo estas situações que, então, eram discutidas com o respaldo dos referenciais teóricos.

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Cada momento observado era analisado pelo grupo e dessa forma a construção do projeto ia se constituindo, tendo em vista que, mesmo o conhecimento mais sofisticado, se estiver totalmente isolado, deixa de ser pertinente (MORIN, 2002, p. 30). Efetivamente, a prática pedagó-gica, quando instaurada de forma contextualizada, pode ressignificar e transformar a realidade dos sujeitos.

Nas intervenções eram focados a realidade dos sujeitos, as pro-blemáticas, os assuntos abordados e as tecnologias como meio para efetivar uma prática pedagógica que fosse significativa aos educandos. Isto porque, no entendimento de Caio Prado Junior (apud SCHAEFER, 1985, p. 23), “sem a visão do conjunto, não se tem a visão das relações e sem a visão das relações não se tem a visão do conjunto”.

Ainda no que se refere às intervenções iniciais dos estagiários, houve mudança na forma como se constituiria o grupo, ou seja, os mes-mos foram fazendo círculos, trabalhos em grupos e individuais. Assim, iniciou-se um processo natural de organização e constituição das aulas. Quanto a esse aspecto, Morin (2002, p. 24) reafirma a necessidade de “formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de seu tempo.” Para o referido autor, um saber só é pertinente se é capaz de se situar num contexto. Materiais pedagógicos, quebra-cabeças, jogos, projetor multimídia, computador, fichas, foram utilizados na continuidade das dinâmicas, uma vez que,de acordo com Pinto (2001, p.39), “todo o em-penho de uma sociedade subdesenvolvida num esforço de crescimento deve consistir em desenvolver seusfundamentos materiais para que, so-bre estes, se possa edificar uma educação mais adiantada, que reverterá em maior desenvolvimento destes mesmos fundamentos”.

Percebia-se que havia motivação e também diálogo, e que a in-teratividade era uma constância no processo de aprendizagem. Nesse sentido, Silva (2007, p. 82) destaca “a superação do sistema unidirecio-nal em favor do sistema de trocas, de intercâmbio, de conversação, de feedback entre os implicados no processo de comunicação”. Ainda-Não era o foco de mudança dos estagiários, pois eles compreendiam que no

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meio educativo dessas turmas havia a manifestação de possibilidades. Maturana (2001, p. 36) afirma que para gerar uma explicação cientifi-camente validável, é necessário entender o conhecer como ação efetiva que permita a um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o seu mundo. Assim, o que se percebia era o cresci-mento dos educadores-estagiários e a presença normal das professoras, que olhavam com “desconfiança” cada etapa. Intensificava-se a cons-ciência antecipatória (SANTOS, 2006), a capacidade e potencialidade dos sujeitos. A dinâmica de grupo, que inicialmente não se observava nas aulas, deu lugar a equipes de trabalho, apresentação de pesquisas. As tecnologias, como a câmera fotográfica e as imagens por meio do computador, até então desconhecidas pela maioria dos sujeitos, passa-ram a fazer parte das intervenções dos alunos educadores.

Considerações finais

A Educação de Jovens e Adultos exige de cada educador uma abertura para a realidade dos sujeitos que dela participam. Os saberes encontrados nas professoras observadas nas práticas pedagógicas cons-tituem ainda a permanência de uma prática de negação. O Não que está embutido nessas práticas formaliza certa visão fragmentada, que pode ser interpretada como desconhecimento da história de vida desses su-jeitos, ausência do olhar crítico das educadoras para o Ainda-Não, ou seja, para a possibilidade de mudança do processo de vidas dos sujeitos, e também ausência do Poder Público quando consente que se estabele-çam, na educação, práticas fragmentadas. Pode-se dizer que a ausência do Estado se fortalece quando se estabelece o fracasso dos sujeitos no processo de aprendizagem.

Diante das empirias observadas e das proposições concretizadas pelos estagiários, foi possível comprovar que o processo de aprendiza-gem exige práticas pedagógicas alicerçadas em comprometimento, na possibilidade de utilização de meios tecnológicos, na intervenção do

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educador, na dialogicidade, em propostas de estudos inovadoras, em estratégias pedagógicas envolvendo jogos, materiais diversos, na inte-ratividade e na problematização.

O que configura a reprovação dos sujeitos, por tantos semestres, na mesma etapa - de alfabetização-, é a ausência de professores forma-dos para atender a essa demanda, a descontinuidade do planejamento das aulas, a concepção de uma educação bancária manifestada pelos professores titulares dos alunos da EJA, além da ausência de um projeto que contemple elementos necessários à alfabetização dessa modalidade de ensino. Os alunos estagiários perceberam que, em virtude da idade dos sujeitos, das dificuldades visualizadas, mesmo com a memória das aulas intensificada em cada encontro, o tempo em sala de aula não era suficiente para a continuidade dos estudos.

Ainda- Não se constitui na possibilidade da formação dos educa-dores que trabalham com sujeitos jovens e adultos, na seleção dos pro-fessores por parte do Poder Público, que deve exigir educadores quali-ficados e que estejam abertos à compreensão dos elementos básicos que provocam os educandos à continuidade dos estudos, bem como lhe dão o direito ao conhecimento, com capacidade de compreender, utilizar e refletir sobre a informação escrita. Ainda-Não é uma nova possibilidade de rever as questões aqui em discussão.

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Tempus Fugit: Qual o tempo da escola?

Carmen Lúcia Fornari Diez 47

Geraldo Balduíno Horn 48

Carlos Fermino de Paulo 49

Início de Conversa

Toca o sino ou soa a campainha, ou chega a hora de... : sob a lide-rança de um estudante, todos entram, sentam, fazem os mesmos gestos, esperam ou agem do mesmo modo. Após o tempo convencionado todos juntam seus pertences, levantam e saem.

Esta é uma narrativa caricaturada do dia-a-dia da escola. De como o tempo atravessa a vida de alunos e professores: a nossa vida.

Como permitimos e institucionalizamos tal clivagem?Uma das narrativas sobre o julgamento de Sócrates enfatiza o

momento no qual um personagem público vira a clepsidra d’água e anuncia: agora falará Sócrates, filho de Sofronisco! Nos tribunais gre-gos a clepsidra media o tempo que o réu possuía para a sua defesa.

47 Professora do PPGE – UNIPLAC48 Professor do PPGE - UFPR49 Professor da Rede Estadual do Estado do Paraná, Mestre pela UNIPLAC

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Além desse instrumento, também o gnômon de sol era utilizado, sendo atribuído a Anaximandro um sistema de marcação científica dos qua-drantes.

Os gregos significavam o tempo comum, chronos em vários sen-tidos. Havia a representação de um tempo primevo, em equilíbrio e repouso, não-tempo, não-infinito, mas imutável enquanto existiu, como o da existência da raça de ouro, quando “...nem temível velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos...” (HESÍODO,1996, p.31)

As raças de prata, dos ‘hipoctônicos’ - hypó e tonikós, (exprimin-do escassez de energia) e de bronze, revelavam um retrocesso em rela-ção às de ouro, porque correspondiam ao período das invasões dóricas, período considerado ‘das trevas’. Elas foram sucedidas pela raça dos heróis, e raça de ferro, na trajetória para o período clássico, quando o tempo passou a Aion, patamar de sagrado e juiz.

Na verdade, no período mítico Aion significava apenas a época da vida, e chronos duração do tempo, tempo como um todo, inclusive o infinito.

Originariamente, a primeira concepção era mais limitada, pois referia-se a um tempo individual. Foi no séc. V. a.C. que os trágicos gregos realizaram a extensão, de ‘período da vida’ para ‘de uma ex-tremidade à outra da vida’. A visão mais ampla de vida transportou à palavra o conceito de ‘vida sem fim’, e por consequência, de eternidade.

Assim, o mesmo vocábulo Aion, o teve seu significado ampliado, reunindo as acepções, tanto de duração da vida (no sentido individual), como duração eterna e eternidade ou vida eterna.

Conforme WHITROW (1997), para Parmênides (c.540-480 a.C.), passado e futuro eram inconcebíveis. Na conhecida afirmação ‘O Ser é o que é e é impossível que não seja’, há uma ontologia relaciona-da ao tempo e ao movimento, conduzindo às inferências da existência de apenas um ‘ser’, mundo da realidade, eterno, imóvel e infinito, sem início ou fim, percebido pela razão, portanto verdadeiro. Entre o ‘não ser’ e o ‘ser’ está o mundo da aparência com tempo e o movimento per-ceptíveis pelos sentidos, consequentemente, ilusórios.

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Outros pré-socráticos também já haviam especulado sobre a te-mática. Se para Anaxágoras (499-428 a.C) o homem era ‘a medida de todas as coisas’, sua interpretação em relação às mudanças espaciais ou temporais implicava — conforme Aristóteles (384-322 a.C), — que todas as coisas estavam em um todo que repousava em um tempo infini-to, sendo a inteligência que lhes imprimia o movimento. (ARISTOTE. Physique, IV-250b, 1931) O aforismo de Anaxágoras é analisado por Platão como

[...] la manera como las cosas se le presentam a un hombre es la verdad para él, y el modo como se presentam a outro es la verdad para éste. Ninguno de los dos puede achacar error al uno outro, pues si uno ve las cosas de una manera son de esa ma-nera para él, auque le parezcan diferentes al veci-no. La verdad es meramente relativa. (GUTHRIE, 1995, p.80)

O nous — inteligência —, uma das homeomerias (infinitas partí-culas homogêneas que se constituíam em elementos primordiais), seria o motor que deslocaria as coisas da imobilidade eterna para a finitude.

Antífono (c.480-411 a.C.) entendia o tempo como apenas um con-ceito elaborado pela mente, sem existência substantiva, podendo ser resu-mido como invenção de mais um padrão de medida. (WHITROW, 1997)

Empédocles (492-432), também conforme a leitura de Aristóte-les, afirmava que movimento e repouso se realizam alternadamente: o movimento quando o amor produzia a unidade a partir do múltiplo, ou o ódio produzia o múltiplo a partir da unidade, havendo o repouso nos tempos intermediários.

Em Zenão de Elea (c.490-430 a.C.), o tempo está formado de partículas temporais indivisíveis.

Outras interpretações mostram tempos cíclicos, progressivos, li-neares, finitos, infinitos, apenas produzidos pela razão, ou ainda combi-nações diversas dentre estas formas.

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Na filosofia platônica, o tempo é cópia, imagem ou sombra de uma ‘realidade verdadeira’. O mundo fenomênico, sensível, é feito de aparências, das coisas imperfeitas, e como tal, em fluxo constante. O tempo é concebido como a imagem móvel da eternidade, ou ainda, de uma ‘presença’ que não passa. Idealidade e perfeição dos arquétipos são imutáveis, estão em repouso, prescindem de qualquer deslocamento. Apesar do repouso e da perfeição, diferencia-se do primevo vivido pela ‘raça de ouro’, porque traz o elemento do eterno, e constitui o outro extremo do repouso porque é o fim, o não-tempo e o não-movimento posterior ao tempo e ao movimento. Com a definição do fim, embora pareça aproximar-se de Parmênides, também dele se distancia.

Diôgenes de Laêrcio (séc.III a.C.) registrou que, na concepção de Platão (428-367 a.C.), o fim Supremo é a assimilação a Deus, na eter-nidade. Assim, o tempo foi criado como uma imagem da eternidade. O universo permanece para sempre em repouso, mas o tempo consiste no movimento do céu. A noite, o dia, os meses e o resto são partes do tempo; por isso o tempo não existe sem a natureza do universo, pois só enquanto existe o universo existe também o tempo. (DIÔGENES LAÊRTIUS, L.III –73, 1977, p.102)

No mundo sensível que se dirige ao fim supremo há movimento e tempo. Após a assimilação, na perfeição, é desnecessário mudar e haverá o equilíbrio e o repouso eternos.

Aristóteles conceituou com maior rigor o sentido do tempo para o homem da polis grega e consequentemente para a filosofia que lá se materializou. Nos dez livros que integram a Física, tangencia análises de objetos diversos, e no Livro IV Física torna-se o foco principal. Ela-borando o conceito de movimento, nele se ancora para explanar sobre o tempo, inferindo que qualquer movimento do cosmo ou da mente se dá de modo simultâneo a uma temporalidade.

No primeiro argumento sobre o movimento ser eterno, Aristóte-les afirma: “Nous disons, on le sait, que le mouvement est l’entéléchie du mobile en tant que mobile, il est donc nécessaire qu’existent pre-

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mièrement les choses Qui ont la puissance de mouvoir selon chaque mouvement.” (ARISTOTE, Physique IV-251a, [1931])

Não obstante ser o repouso a característica da matéria, esta coisa amorfa tem a potencialidade da forma, cuja realização depende do ato, ou seja, o movimento é resultante do ato do ser que atualiza a potência. Neste ponto o estagirita trata da existência do motor primeiro e do prin-cípio da causalidade, das várias formas de movimentos e causas. (Phy-sique VII) A sucessão, daí decorrente, na percepção de WHITROW (1997), não se resume a uma sucessão em si, mas a de um movimento cuja numeração que os seres lhe atribuíram definem-na como tal.

Aristóteles se pautava pela não abstração, e atinha-se com determinação nos fatos aparentes, concretos. Por isso contestava a ideia de Parmênides sobre o vazio, idéia insustentável porque nega-da pela própria materialidade do mundo. Para GUTHRIE (1995) tal concepção

Era contraria al sentido común. sin embargo, consciente e la grand autoridad a que tenia que oponerse, formuló su oposición com ousadía, en cierto modo infantil, pues según Aristóteles, le dio la forma seguinte: ‘Lo que no es existe lo mismo que lo es.’ ( p.71)

Uma questão geral da física aristotélica, como filosofia da natu-reza, é a análise das diversas possibilidades de movimento, passagem da potência ao ato, realização de uma possibilidade. Aristóteles distin-gue quatro espécies de movimentos: substancial mudança de forma, nascimento e morte; qualitativo mudança de propriedade; quantitativo acrescimento e diminuição; e espacial mudança de lugar, condicionan-do todas as demais espécies de mudanças.

Na Ética a Nicômacos, na passagem em que trata de examinar o bem supremo, diz Aristóteles:

[...] o termo ‘bem’ tem tantas acepções como ‘ser’ (este é igualmente predicado da categoria de subs-

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tância, como de Deus e da razão, da de qualidade — por exemplo, das diversas formas de excelên-cia —, da de quantidade — por exemplo, do que é moderado —, da de relação — por exemplo, do útil —, da de tempo — por exemplo, da opor-tunidade —, e da de lugar — por exemplo, da lo-calidade conveniente etc), (ARISTÓTELES, EN, 1096)

Aqui, então, kairós passa a ter o sentido de oportunidade, oca-

sião, tempo conveniente, vantagem e/ou tempo presente. Neste sentido, é possível imaginar que esse tempo aristotélico, como uma das condi-ções para a manifestação do bem, possa significar o momento certo de se praticar uma ação, o tempo oportuno, como uma sazonalidade em relação à qual antes ou depois seriam impróprios.

Epicuro (342-270 a.C.) negava a causalidade por entender que o movimento do universo é aleatório, o que se evidencia pela diferente velocidade de queda dos objetos. A casualidade do cosmos transposta ao homem define o direito ao livre arbítrio no agora, pois no amanhã — exceto a morte —, tudo é incerto. Tal incerteza diz que, apesar do livre arbítrio que é consoante à espontaneidade, a liberdade é relativa porque está à mercê da incerteza. “E a presunção de que além, do âm-bito da observação direta os próprios tempos mínimos concebidos pela razão apresentarão continuidade de movimento não é verdadeira. [...] É verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se apreende por meio da mente.” (DIÔGENES LAÊRTIUS, Livro X – 62, 1977, p.297)

Epicuro asseverava que a alma é corpórea, composta por partí-culas minúsculas, átomos extremamente “lisos e arredondados” que lhe conferem a condição de sutil. Tais átomos estão localizados dispersa-mente por todo o corpo no qual é a alma que garante a sensação. Toda-via, ela morre, deixa de existir. Como o vazio, o incorpóreo, não existe em si. O vazio não é ativo nem passivo, somente, permite que corpos em movimento transitem através dele. (DIÔGENES LAÊRTIUS Livro

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III, 1977)Diôgenes de Laêrtius tratou ainda do pensamento estóico, regis-

trando que Crísipos (c. 281-208 a.C.), Apolôdoros (séc.II a.C.) e Po-seidônios (185-109 a.C.) teorizaram sobre o vazio infinito como sinô-nimo de incorpóreo, significando aquilo que não contém corpos, apesar de poder contê-los. Neste sentido, definiam o tempo como incorpóreo e medida de movimento. (DIÔGENES LAÊRTIUS, L.VII 132–141, 1977, p.211-213) Crísipos definia o tempo como intervalo do movi-mento em relação ao qual se determina sempre a medida da velocidade maior ou menor.

Inversamente à interpretação casual, na de causalidade e suces-são temporal estão presentes os conceitos de passado, presente e futuro, conceitos que constituem a ideia de tempo cotidianizado.

A clepsidra era composta por dois vasos superpostos com inter-comunicação por uma boca estreita. A água passava em do recipiente superior ao inferior. De seu aperfeiçoamento surgiu a ampulheta. Estes instrumentos, com maior ou menor sofisticação, chegando a movimen-tar sistemas de rodas e engrenagens, foram os recursos utilizados até quase fins da Idade Média. Os primeiros relógios mecânicos, do século XI, possuíam apenas um ponteiro e habitualmente se localizavam nas torres das igrejas para serem vistos por todos. “O primeiro relógio pú-blico foi visto em Milão, em 1309, na torre de Santo Eustórquio. (Enc. Trópico, s.d., 222)

As concepções gregas sobre o tempo pautaram as reflexões me-dievais. Estas, centradas nas questões teológicas, enfatizaram o eterno aión em relação ao qual o chronos e constituía em mero e transitório instrumental.

Ampulhetas eram usadas nos mosteiros do medievo das pedago-gias trivium e quatrivium, sob os conceitos de tempus, aeternitas e ae-vum, utilizados por retóricos romanos e doutores da Igreja para pensar o tempo. Trata-se das filosofias de Plotino, Santo Agostinho e Tomás de Aquino, autores que alocaram o tempo na alma. Tempus, aeternitas e

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aevum eram as três palavras latinas conhecidas dos eruditos e retóricos romanos foram retomadas pelos doutores da Igreja para pensar o tempo.

A significação tempus é bastante ampla, designando desde a ideia de tempo no sentido genérico — duração —, até as frações ou porções do tempo, tais como as noções de época, período, hora, instan-te, estação do ano, e especialmente momento favorável, oportunidade, ocasião, nesta última acepção num sentido muito próximo do kairós grego.

A segunda palavra, aeternitas ou aeternus significa a eternidade na acepção de duração indefinida no tempo, como em Cícero, mas que é utilizada pelos pensadores cristãos para tratar de uma ordem transcen-dente ao tempo.

Próximo de tempus, aevum, era empregado pelos romanos para designar desde o tempo em sua duração continuada e ilimitada (Ho-rácio) até as frações ou partes do tempo, como a duração da vida (Cí-cero), época, idade, geração (Tito Lívio), e que os cristãos reservaram para designar uma ordem intermediária entre o tempo e a eternidade, a exemplo de São Tomás, que alojava no aevum os anjos.

Assim, para Plotino (c. 205- c. 270), o tempo é algo real na alma. Esta, mede, numera e relaciona; o nominalista Ockham (c..1280 -c.1349), também preocupado com a Teologia, escreveu “Do movimen-to, lugar, tempo, razão, predestinação e presciência de Deus” (De motu, loco, tempore, praedestinatione e praescientia Dei.

Na Idade Média a visão cristã permeou a reflexão filosófica sobre o tempo, tendo sido a formulada pelo teólogo e filósofo Santo Agosti-nho(354-430 d.C.), a mais relevante. Em sua teoria, ele aponta para dois aspectos que considera fundamentais para compreensão do conceito de tempo: o tempo concebido como ‘movimento da criação’ e o tempo como ‘realidade’. Esses elementos estão estreitamente interrelaciona-dos quando conceituamos o tempo. Para Santo Agostinho, o tempo é um foi que já não é. É um agora, que não é; o agora não pode se deter, pois se isso acontecesse não seria tempo. É um será que ainda não é.

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O tempo não tem dimensão; quando se vai capturá-lo, dissipa-se. “...o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe: ‘o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro’. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas ‘o pretérito longo’ outra coisa não é senão ‘a longa lembrança do passado”.(S. AGOSTINHO, 1996, p.337)

Em Santo Agostinho, as dificuldades acerca da compreensão do sentido do tempo aumentam quando este é concebido como algo ex-terno, relacionado a coisas, objetos. O tempo agostiniano é um tempo radicado na alma, isto é, a alma e não os corpos, é a verdadeira ‘medida’ do tempo. Para ilustrar esse entendimento, ele afirma:

Vou recitar um hino que aprendi de cor... A vida deste meu ato divide-se em ‘memória’, por causa do que já recitei, em ‘expectação’, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presen-te e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada, passa inteiramen-te para o domínio da memória. (SANTO AGOS-TINHO, 1996, p.337).

O futuro é, para Santo Agostinho, o que se espera, o passado o que se recorda e o presente é aquilo a que se está atento. Isso é o tem-po, mas não como medida fundada nas coisas e fatos e sim na direção tomada por Plotino, do tempo como prolongamento sucessivo da vida da alma ou na ótica platônica de tempo como manifestação ou imagem móvel de uma Presença que não passa. Se de um lado a ideia agostinia-na de tempo admite a alma como fundamento real e verdadeira medida do tempo, de outro não admite pensar que o tempo preexista a Deus ou que é anterior a tudo, pelo contrário, por ser Deus causa suprema de tudo, há que se admitir que o tempo foi também criado por Deus. Mas, é preciso um certo cuidado para não tomar em mesmo sentido o tipo

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de duração chamado ‘eternidade’ e o tipo de duração chamado tempo, pois são heterogêneos, isto é, a eternidade é uma presença ‘simultânea’ e permanente, enquanto o tempo é efêmero.

A concepção de Tomás de Aquino (1225-1274) se pauta nos ei-xos movimento, sequência e contingência, os mesmos que aduz para ar-razoar sobre a existência divina. Cinco são as vias que conduzem argu-mentativamente a Deus; são tantas as provas, quantas forem as espécies de fatos a explicar. A primeira via argumenta com o fato do movimento, o qual reclama um primeiro motor, que mova sem ser movido, confor-me já advertia Aristóteles. A segunda via parte do fato das causas em sequência, em cuja série tem de haver uma primeira causa incausada. A terceira prova considera o fato de que as coisas que se apresentam no mundo são contingentes e que, nesta condição, não existiriam, se não houvesse um ser não contingente. O quarto argumento, evoca os graus de perfeição constatados nos seres que se conhece, e que postulam um grau máximo de perfeição. Finalmente, toma como ponto de partida a ordem do mundo, dada como um fim intencional: ”...de outra parte, como as coisas sem conhecimento não têm capacidade de querer um fim, deve-se admitir que a ordem do mundo prova a existência de um ordenador exterior a ele — Deus.”

É possível observar que as teorias gregas acerca do tempo, es-pecialmente as formuladas por Aristóteles e Platão, em muito se as-semelham às teorias modernas que podem ser divididas entre os que defendem uma visão ‘absolutista’, do tempo como uma realidade in-dependente e os que defendem a concepção ‘relativista’, ou seja, que o tempo existe como relação e não enquanto realidade ‘per si’.

A descoberta do pêndulo, por Galileu Galilei (1564-1642), assina-lou uma data importantíssima para a relojoaria. O isocronismo do pên-dulo, aplicado aos medidores do tempo, possibilitou a obtenção de uma mecânica com vibração constante, regular. Desse momento em diante, todos os relógios passaram a ser construídos com base neste princípio.

Nos séculos XVI e XVII a noção de um universo orgânico, vivo,

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e espiritual foi substituída pela metáfora da máquina, semântica que a Revolução científica permitiu dominar a modernidade.

Em Les mots et les choses: une archeologie des sciences hu-maines, Foucault analisou os deslocamentos operados nesta época. A ordem ou a comparação generalizada só se estabelecia conforme o en-cadeamento da razão. O semelhante, antes tido como categoria funda-mental do saber, foi dissociado por análise realizada em termos de iden-tidade e de diferença. A comparação foi reportada à ordem; requeria o pensamento ordenado, que se movimenta naturalmente do simples ao complexo. Destarte, este tempo, denominado por Foucault como Era da Representação, emergiu das seguintes modificações, que alteraram o próprio saber: a análise ocupou o locus da hierarquia analógica; a prova da comparação substituiu a semelhança; o discernimento tomou o lugar da proximidade assemelhadora. Sob o antigo paradigma das similitudes, admitia-se de início o sistema geral de correspondências e cada singularidade estava no interior do conjunto permitindo um infi-nito jogo das similitudes. Em oposição, o novo fundamento acreditava na possibilidade, tanto de uma enumeração completa, como da determi-nação pontual de passagens sequenciais necessárias para a obtenção de um conhecimento absolutamente exato das identidades e diferenças. A atividade do espírito não mais consistiria em aproximar as coisas entre si, mas em discernir, ou seja, consolidava-se de estabelecer identidades, e sendo assim, o discernimento impunha a comparação, a localização da diferença.

Nesse tempo é conhecido como da revolução científica, que é associada aos nomes de Descartes, Copérnico, Galileu e Newton. Con-forme CAPRA (1999),

O programa de Galileu oferece-nos um mundo morto: extinguem-se a visão, o som, o sabor, o tato e o olfato, e junto com eles vão-se também as sensibilidades estética e ética, os valores, a quali-dade, a alma, a consciência, o espírito. A experi-

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ência como tal é expulsa do domínio do discurso científico. É improvável que algo tenha mudado mais o mundo nos últimos quatrocentos anos do que o audacioso programa de Galileu. Tivemos de destruir o mundo em teoria antes que pudéssemos destruí-lo na prática.

Os principais representantes das concepções absolutista e re-lacionista de tempo na modernidade são, respectivamente, Newton (1642-1727) e Leibniz(1646-1716). Ambas as concepções consideram que o tempo é contínuo, ilimitado e não-isotrópico. A visão sobre o tempo é assim descrita por Newton num dos esclarecimentos dos ‘Prin-cipia’. Primeiro analisa o tempo absoluto. O tempo absoluto, verdadei-ro e matemático, por si e por sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com nada externo e também se lhe dá o nome de duração. O tempo relativo é descrito por Newton da seguinte maneira: o tempo relativo, aparente e comum, é uma medida sensível e externa... da du-ração por meio do movimento, a qual é comumente usada em vez do tempo verdadeiro. Resumidamente, pode-se dizer que Newton funda-menta sua idéia do tempo numa perspectiva absolutista, isto é, o tempo é algo independente das coisas enquanto as coisas tendem a mudar, o tempo não muda.

Leibniz, ao contrário, defendeu a concepção relacional de tempo. Em ‘Os fundamentos metafísicos da matemática’, ele afirma que o tem-po é a ordem de existência das coisas que não são simultâneas. Assim o tempo é a ordem universal das mudanças, quando não levamos em conta as classes particulares de mudança. A magnitude do tempo é a du-ração, em outras palavras, o tempo significa uma ordem de sucessões. PRIGOGINE (1977, p.193) avalia que

[...] a monadologia leibniziana pode ser traduzida em linguagem dinâmica: o Universo é um siste-ma integrável. [...] Leibniz, pai da dinâmica, não ignorava certamente o que Whitehead sublinhou:

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as forças newtonianas só estabelecem relações puramente exteriores entre as massas, das quais constituem apenas o suporte indiferente; elas são incapazes de causar um devir que não seja eterna e monótona repetição de uma verdade invariante.

O conceito de tempo da Teoria da Relatividade de Einstein (1879-

1955) se aproxima de Leibniz e se opõe a Newton, pois este entendia que o tempo era independente do universo, enquanto Leibniz afirmava ser o tempo derivado dos eventos, um aspecto do universo, a visão que hoje prevalece, desde que a teoria de Einstein passou a ser vista como uma parte essencial da física, é a de que o tempo é um aspecto do uni-verso que depende do observador.

Uma importante consequência da teoria especial da relatividade de Einstein é que um relógio que se desloque parecerá funcionar lentamente com-parado a um relógio similar em repouso com rela-ção ao observador, e quanto mais a velocidade do relógio que se desloca se aproximar da velocida-de da luz, mais lentamente ele parecerá marchar. Esse aparente lenteamento de um relógio que se desloca é chamado de ‘dilatação do tempo’. De todas as consequências da teoria de Einstein, foi esta que pareceu a muita gente a mais difícil de aceitar, uma vez que entra em conflito com nos-sa intuição do tempo ditada pelo senso co¬mum. (WHITROW, 1997, p.194)

Para Whitrow (1997) a história, ainda, relação da visão de tempo com as transformações tecnológicas. As transformações materiais oca-sionadas por revolução industrial e descobertas científicas já haviam ditado a crença no progresso, progresso pensado como um movimento de melhoria crescente em direção a um infinito, não do sentido místico, mas no de inesgotabilidade das possibilidades de produção de conforto e bens materiais. Aliás, a teoria de Darwin, sobre a evolução, divulgada

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em 1859, substituiu no pensamento humano a hegemonia da religião pelo mito da ciência.

A teoria geral da relatividade, ampliou o princípio da relatividade para incluir observadores em qualquer forma de movimento acelerado, a relatividade especial sendo vista como um importante caso particular dessa teoria mais abrangente. Também nesta teoria o pressuposto clás-sico de que cada evento ocorre num único tempo, o mesmo para todos os observadores, não se mantém. Isso poderia respaldar a ideia de uma única escala temporal cósmica para o universo físico seria inverdade. Tal ideia, contudo, seria errônea, conforme evidenciaram as descober-tas neste século em cosmologia.

Em 1924, o astrônomo E. P. Hubble, usando um super telescópio instalado em Mount Wilson, na Califórnia, mostrou que o plano de fun-do geral do universo é formado não pelas estrelas, mas pelas galáxias, uma das quais é o sistema estelar da Via Láctea. Em 1929 descobriu que as galáxias estão em recessão ou afastamento sistemático umas em relação às outras, provocando uma revolução em relação à concepção de universo quase tão grande quanto a ocasionada pela revolução co-pernicana. Em vez de um modelo estático global do cosmo, revelou que o universo está em expansão, sendo a velocidade relativa do afas-tamento das galáxias proporcional às distâncias que as separam umas das outras - ‘lei de Hubble’. Essa descoberta estimulou muitas pesqui-sas em cosmologia teórica, baseadas em grande parte na teoria geral da relatividade de Einstein. Como resultado disto, ressurgiu a idéia da existência de sucessivos estados do universo, associados com uma es-cala temporal de amplitude universal. Isto ocorreu porque em todos os modelos do universo considerados havia um conjunto definido de ob-servadores hipotéticos particularmente significativos, a saber, os que estariam situados nas galáxias individuais e se moveriam com elas. Os tempos locais associados a esses observadores, conjugados para produ-zir um tempo universal, é chamado de “tempo cósmico”.

Em analogia à visão de progresso, a visão de tempo linear sobre-

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pujou, o entendimento de outras interpretações científicas posteriores, como a da relatividade de Einstein ou a quântica, de Planck(1858-1947). A sucessão e mecanização temporalidades, gestos, atitudes, pensamen-tos, práticas, incluindo as educativas, tornaram-se assentes na cultura ocidental sendo materializadas nas ‘instituições austeras’, assim deno-minadas por Foucault, face a se transformarem em instrumentos disci-plinares, formadores de corpos úteis e dóceis. Essa anatomia política se organizou da convergência gradativa de uma infinidade de práticas diversas, esparsas, pequenas, difusas e sutis, com diferentes origens e localizações, aparentemente insignificantes, mas com um potencial de reprodução e expansão, que permeou todo o corpo social. Técnicas que determinaram modalidades de investimento político no corpo, que face à diversidade, multiplicidade e extremidade de onde surgem, sem alar-de, criaram uma microfísica do poder, pois “A disciplina é a anatomia política do detalhe.” (FOUCAULT, 1984, p. 98 )

Enquanto no período feudal, o controle se dava pelo espaço, pois a inscrição do homem relacionava-se às suas raízes, à sua localização espacial, ao seu pertencimento a uma determinada terra, a nova socie-dade estabeleceu para o homem outras dimensões de tempo e espaço, bem como uma nova relação com métodos e instrumentos de produção. O tempo dos indivíduos foi colocado no mercado, trocado por salário e transformado em tempo de trabalho, parâmetro universalizado de troca, cálculo de preços, de identificação de normalidade, de nível de utilida-de, docilidade e de educação. Surgiu um novo estilo de vida humana com novo ritmo, novas relações e novas localizações. No Século XIX, houve redução das festas e do tempo de descanso, e a adoção do contro-le da economia do trabalhador.

As instituições que organizaram ‘sequestro’ e fixação dos homens numa rede múltipla, privando-os de seu tempo de liberdade para um tem-po de trabalho, formaram a infraestrutura ideal que permitiu, à nova so-ciedade, seu crescimento acelerado. O mesmo controle e tempo da fábri-ca foi deslocado para escolas, hospitais, prisões, reformatórios, orfanatos.

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A sociedade disciplinar se operacionalizou por procedimentos ou estratégias específicas do novo tempo: as instituições de sequestro rea-lizam a exploração da totalidade do tempo, que nas sociedades desen-volvidas poderia ser comparada ao sistema de consumo e publicidade, e, além do controle temporal, o controle dos corpos. As várias institui-ções de sequestro oferecem funções diferentes, mas, curiosamente, em todas, está implícita a disciplina da existência, que supera as suas fina-lidades, enquanto instituições especializadas em áreas diversas como produção, ensino, correção e castigo. Esta superação verifica-se atra-vés de “...polimorfismo, polivalencia, indiscreción, no discreción, de sincretismo de esta función de control de la existencia.”(FOUCAULT, 1991, p. 133)

Assim se constitui uma economia dos corpos, formando-os, valo-rizando-os, através do controle do tempo. O corpo se converte em obje-to de formatação, reforma, correção, transformação, qualificação. Tem-po transformado em tempo de trabalho: corpo transformado em corpo de trabalho. Para atender as necessidades destas classes inferiores, sem excesso de custos para o Estado, e discipliná-las, foram utilizadas as estratégias de substituição da caridade pela filantropia, higienização, educação, hibridação entre organismos públicos e privados para a for-mação de uma infra-estrutura necessária à criação do ‘dispositivo disci-plinar’, que se tornou o sustentáculo da nova ordem social.

O primeiro procedimento da disciplina é a de distribuir os cor-pos no espaço, enclausurando-os para evitar dispersão e desordem, destinando um lugar para cada indivíduo por quadriculamento, o que evita a circulação e a aglomeração, localizando funcionalmente os corpos individualizados e separados por alas de numerações e identi-ficações. Ainda, distribuir os corpos em espaço serial, por ordem de classificação, em filas e colunas, cujos pontos de cruzamento permi-tem identificar a localização individual e uma rede de relações possí-veis de se estabelecer.

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Foucault (1984), fala da homogeneinização dos indivíduos, lado a lado, sob vigilância do professor. As filas nas salas, corredores e pátios definem a colocação dos indivíduos por tarefas, resultados de provas, idades, valores ou méritos. Tal organização permitiu a separação do sistema de ensino individual para o de grandes grupos, economizando tempo e aumentando o número de alunos em relação a cada professor. O sistema escolar transformou-se numa máquina de transmissão de co-nhecimentos, mas do mesmo modo, máquina de vigilância, hierarquiza-ção, distribuição de recompensas e imposição de castigos. A disciplina obtém, pela organização de ‘quadros vivos’, uma transformação das aglomerações inúteis e potencialmente perigosas, em multiplicidades ordenadas.

O segundo aspecto da disciplina refere-se ao controle da ativida-de em relação ao tempo cíclico, contabilizado, fracionado e sinalizado, fiscalizado e cadenciado. A disciplina centra-se no positivo da força útil, no máximo de aproveitamento do tempo na passagem de uma ope-ração à outra, o que permite utilizar exaustivamente o corpo. O corpo mecânico vai sendo substituído, através dessa técnica de sujeição, pelo corpo natural que aspira o durável, tornando-se objeto de novas formas de poder e oferecendo-se a novos saberes. Ao inverso do corpo da físi-ca especulativa, da animalidade ou da racionalidade, ele é o corpo do exercício, manipulado pela autoridade, treinado e útil.

Foucault mostra como se desenvolveu uma economia para gerir as existências dos indivíduos, com o intuito de capitalização de seus tempos (utilização, acumulação e transformação em lucro). Esta se ex-plicita em quatro processos:

Dividir o período de aprendizado em segmentos sucessivos, que devem ser ministrados gradativamente, sem que uma nova etapa se ini-cie antes que a anterior se tenha completado;

Organizar uma sequência das atividades mais simples para as atividades mais complexas; Esta-belecer o término com uma verificação (prova),

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para aferir o nível atingido, se equiparado a outros indivíduos, e diferenciar as capacidades de cada um; Seriar as séries, enquadrando cada indivíduo de acordo com sua fase, sua antiguidade e o que lhe é conveniente. Ao final de cada série ou subsé-rie outras se iniciam, criando leques, De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria.(FOUCAULT, 1984, p.144)

O poder disciplinar é exercido não como forma violenta que mu-tila, apossa-se, reduz forças ou atua ostensivamente e repressivamente sobre as populações. Ao contrário, concretiza sua função é adestrar, me-diante procedimentos modestos, multiplicando as forças e atuando sub-tilmente pela decomposição até as instâncias microfísicas. A disciplina é uma técnica de poder que cria o indivíduo, utilizando-o como objeto e instrumento de seu exercício.

Nas sociedades rurais e na pequena indústria doméstica a noção de tempo estava ligada às necessidades de subsistência do preparo da terra, do plantio e dos cuidados até a colheita. A questão tempo-trabalho tornou-se mais complexa com revolução industrial, quando a execução de uma determinada tarefa foi ligada a um valor em dinheiro, pela ven-da do trabalho. Com a locação dos braços para a produção, a orientação passou a realizar-se pelo relógio. Assim, o tempo se transformou em dinheiro, uma vez que traduz em números o que é material: resultado do trabalho. Ora, se o tempo é dinheiro quando aplicado no trabalho, o que se transforma em dinheiro é o trabalho medido pelo tempo-relógio e não o tempo do relógio como simples unidade de medida. Portanto, o trabalho é uma categoria temporal independentemente do relógio, pelo fato de constituir o elemento fundante de toda a sobrevivência humana quer seja primitiva quer seja moderna. Todavia, a clareza conceitual perdeu seu delineamento na vida prática. Na proporção em que a so-ciedade se industrializou, a disciplina do trabalho se impôs criando a cultura da economia do tempo: tempo que é trabalho é dinheiro.

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Heisenberg (1901-1976), em Física e Filosofia (1995), para mos-trar como a nova física aniquilou noções basilares do pensamento tra-dicional, evoca os argumentos de Kant, sustentáculo da concepção de modernidade. Kant elaborou, como parâmetro de aferição do conhe-cimento, o conceito de ‘julgamentos sintéticos a priori’ afirmando que fundamentariam ‘qualquer metafísica futura’ que pudesse ser conside-rada ciência e, para provar a existência de tais julgamentos, utilizou as categorias espaço e tempo, o princípio de causalidade e, posteriormen-te acrescentou os princípios de conservação da matéria, gravitação e, de igualdade entre ação e reação. A ciência contemporânea derrubou o centro argumentativo dos ‘julgamentos sintéticos a priori’:

A teoria da relatividade modificou nossos pontos de vista sobre espaço e tempo e, de fato, reve-lou características inteiramente novas de espaço e tempo, das quais nada transparece nas formas kantianas a priori da intuição pura A lei da causa-lidade não mais é aplicável à teoria quântica e a lei da conservação da matéria perdeu sua validade no caso das partículas elementares. (HEISENBERG, 1995, p. 69)

Apesar das novas teorias, muitas práticas sociais persistem, tais como a condenação do ócio, necessidade de utilidade e racionalização do tempo e, dentre outras, o tempo-escola que se mantém com suas disciplinas, destituídas de seu sentido na realidade pós-industrial, evi-denciando o anacronismo da educação-instituição.

Assmann (1998), analisando as implicações da visão de tempo para a educação, afirma que a obsessão pelo tempo exato decorre da razão instrumental, exemplificando a materialização dessa ratio no re-lógio atômico:

O de último grito utiliza o átomo de césio, com seus 55 elétrons, cada um deles com dois hemis-férios que se mexem o tempo todo. Dizem que o

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elétron de césio muda de posição exatamente 9 bilhões, 192 milhões, 631 mil e 770 vezes (que fulgurante exatidão para quem aspira controlar tudo). Este seria, portanto, o tamanho exato do segundo. Um relógio atômico com essa base se adiantaria em apenas um segundo em 3 milhões de anos. (p.207)

À descrição desse requintado produto da tecnologia, Assmann acrescenta: “Tempo suficiente para não equivocar-se nenhum segundo no exercício da razão e do poder, já que nesse prazo devem caber todas as vidas e mundos cujo domínio se possa ambicionar.” (Idem: 207-208)

A física quântica emergiu para responder às questões que, nem a física clássica nem a relativa conseguiam operar. Sua possibilidade de teorização partiu das conquistas da relatividade. A variedade de even-tos, como disse Eistein (1976), obrigam a ciência a inventar novos con-ceitos. Assim, essa concepção da física, olha a matéria como estrutura granular, composta de partículas elementares — os quanta elementares de matéria. Se, na teoria da relatividade, o tempo é curvo (indicando que duas paralelas se encontram no espaço), na visão quântica, o tempo é irregular e imprevisível.

A Física Quântica busca elaborar as regularidades enfocando aglomerados e não unidades; não descreve propriedades, mas probabili-dades. “A teoria quântica criou também particularidades novas e essen-ciais de nossa realidade. A descontinuidade substituiu a continuidade.” (EINSTEIN, 1976, p.236)

Para mostrar a importância de Einstein no deslocamento da visão clássica, Prigogine (1997) lembra a o evento ocorrido na Sociedade de Filosofia de Paris, em 6 de abril de 1922, quando Henri Bergson ten-tou defender, contra Einstein, a multiplicidade dos tempos vividos co-existentes na unidade do tempo real, defender a evidência intuitiva que nos faz pensar que essas durações múltiplas participam de um mesmo mundo. Eis a resposta de Einstein: “[...]rejeita sem apelo, por incompe-

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tência, o `tempo dos filósofos’, certo de que experiência alguma vivida pode salvar o que a ciência nega.” (PRIGOGINE, 1997: 135 )

O autor cita, ainda, a troca de cartas entre Einstein e seu grande amigo Besso. Este, interrogava Einstem sobre a irreversibilidade e sua relação com as leis da física. E Einstein respondeu-lhe: a irrever-sibilidade não passa de uma ilusão, suscitada por condições iniciais improváveis. Este diálogo sem saída repetiu-se até que, numa última carta, na altura da morte de Besso, Einstein escreveu: “Michele me precedeu de pouco para deixar este mundo estranho. Isso não tem importância. Para nós, físicos convencidos, a distinção entre passado, presente e futuro não é mais que uma ilusão, ainda que tenaz”. (in: PRIGOGINE, 1997: 191)

Atualmente, a física reconhece o tempo irreversível das evolu-ções para o equilíbrio, o tempo ritmado das estruturas cuja pulsão se alimenta do mundo que as atravessa, o tempo bifurcante das evoluções por instabilidade e amplificação de flutuações, e mesmo esse tempo do microcosmos que manifesta a indeterminação das evoluções físicas. Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos, rami-ficados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A histó-ria, seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, não poderá nunca ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único, quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace os caminhos de um progresso ou de uma degradação.

De acordo com o mesmo autor, o mundo das trajetórias reversí-veis permanece na nova física e constitui uma referência conceitual e técnica necessária para definir e descrever o domínio onde a instabili-dade permite introduzir a irreversibilidade, quer dizer, uma ruptura da simetria nas equações em relação ao tempo.

Assim, o mundo reversível não é mais então que um caso parti-cular, e a dinâmica, aceita a entropia, o que permite a descrição do mun-do complexo dos processos diversos, de modo que é possível, verificar no nível macroscópico a inércia monótona dos estados de equilíbrio,

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mas pode também perceber a singularidade das estruturas dissipativas nascidas de um desvio do equilíbrio e, finalmente, a história, o caminho evolutivo singular compassado por uma sucessão de bifurcações.

À reversibilidade inteiramente ideal da dinâmica clássica opõem-se dois estilos de devir que a irreversibilidade à qual a dinâmica alar-gada dá sentido, permite pensar. Um, suspenso do passado, corre mais provavelmente para o equilíbrio; o outro está aberto a um futuro mais propriamente histórico: é o das estruturas dissipativas que constituem a chance das singularidades aleatórias.

Prigogine, o físico das estruturas dissipativas, resgata a lógica que lhe permitiu tal descoberta:

[...] nenhuma necessidade lógica impunha que, na natureza, existissem realmente estruturas dis-sipativas; foi preciso o fato cosmológico de um universo capaz de manter certos sistemas longe do equilíbrio para que o mundo macroscópico fosse um mundo povoado de observadores, isto é, uma natureza. Esse esquema não traduz, pois, uma verdade de ordem lógica ou epistemológica, mas a condição dos homens de seres macroscó-picos num mundo mantido longe do equilíbrio. Ele traduz também a verdade histórica da físi-ca, a qual se constituiu a propósito da descrição de comportamentos reversíveis e deterministas e lhes atribui hoje não mais o papel de realida-de fundamental mas o de quadro de referência. Parece essencial que esse esquema não suponha algum modo ou momento fundamental: cada um dos três modos entra na cadeia das implicações, o que traduz o novo tipo de coerência interna à qual pode aspirar a física contemporânea. (PRIGOGI-NE, 1997: 195)

A física contemporânea inventou o tempo irreversível, pois, se apenas existissem as trajetórias monótonas e reversíveis, de onde viriam os processos irreversíveis que criam a vida? O autor diz que a ciên-

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cia “sabia” que o tempo é irreversível, e é por isso que a descoberta da estabilidade fraca das trajetórias de certos sistemas constituiu fonte de inovação, oportunidade aproveitada para um alargamento da dinâmica.

Transpondo ao ser essa potencialidade para causar e/ou provocar eventos, seria possível aproximá-la ao conceito heideggeriano de exis-tencialidade — ou transcendência. Esta, ao lado de facticidade e ruína, compõe o fundamento da existência inautêntica. A existencialidade se configura nas ações, dos sujeitos em direção à apropriação das coisas do mundo, portanto, em um poder-ser. Nessa qualidade de existir o ser-aí é atravessado por possibilidades diversas, dentre as quais,

[...] a morte é a possibilidade mais própria, já que diz respeito à essência da existência, vale dizer, o poder-ser do Homem. É intransponível, no senti-do de que a morte é a última possibilidade da exis-tência, mas que aniquila a própria existência. [...] O `viver para a morte’ , portanto, constitui o au-têntico sentido da existência. (REALE, III, p.587)

Viver essa morte, antecipando-a, não biologicamente, mas na consciência, é vivenciar a angústia, experimentar os conflitos entre as possibilidades diversas e os projetos, os desejos relativos ao futuro e os vínculos que prendem ao cotidiano, à acomodação, e ao passado. Aí emerge a questão da temporalidade como dimensão existencial. Desta reflexão, Heidegger elabora sua concepção de tempo, na qual passa-do, presente e futuro diferem da visão tradicional, de forma que “Os significados do tempo usados pelo pensamento comum e na ciência (a databilidade e a medida científica do tempo) constituem tempo inautên-tico, já que remetem à existência lançada entre as coisas do mundo.” (REALE, III: 589)

A temporalidade extática se constitui do movimento recíproco do enlace e do sair fora, entre futuro que institui o poder-ser, passado que institui o ser-no-mundo fáctico, e o presente, que institui a ruína (ou queda).

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O futuro é o advir, no qual o Dasein já está projetado, ou seja, não é fim para o qual se dirige, indefinidamente, no presente; o passa-do, como haver sido, é um acontecido presente; o presente, como pre-sentificar, é o agora-aqui da vivência em face com os outros e as coisas. Assim, em relação ao ser, o que foi, também é futuro; o que é porque foi, não é passado.

O sentido primordial da existencialidade é o devir, pois é nele que se funda a projeção do ser para fora de si mesmo, e como ser e mundo não são separáveis, o ser deve se projetar para fora de si, mas no, com e do mundo.

El “pre-ser-se” se funda en el advenir. El “ya-en” está denunciando que entraña el sido. El “ser cabe...” se hace posible en el presentar. Después de lo dicho se prohibe de suyo tomar el “pre” y el “ya” de acuerdo com la compresión vulgar del tiempo. El “pre” no mienta “precedencia” en el sentido de “aún no ahora, pero sí posteriormente”; ni tampoco significa el “ya” un “ya no ahora”, pero sí anterior-mente. [...] (HEIDEGGER, 1997, p.355)

Heidegger resume os vários tempos no tempo intratemporal, no interior do qual outros tempos existem ou são derivados. Ele contém o modo de compreensão do tempo, que desvinculado da preocupação cotidiana, conduz à compreensão do tempo disponibilidade. “Agora” indica o instante, mas também, com “aqui”, “então”, “outrora”, “ainda não” e “outrora, “já não mais”, co-implicam-se mutuamente.

Na linguagem de Heidegger, enquanto o ser-aí responder ao ape-lo do Ser, ele será sempre ao mesmo tempo jogado na sua época e nunca completamente prisioneiro dela, numa relação de historicidade.

Heidegger acusa a tradição de atribuir uma essência supra-tem-poral ao ser-aí. Ou seja, Heidegger estaria afirmando que o ser-aí não é, mas que ele se faz.

O ser-aí existe e temporaliza-se como finito, em vista do projeto

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existencial para a possibilidade mais própria, irremissível e insuperá-vel, ou a morte. A temporalidade originária é o sentido ontológico do todo estrutural do ser-aí, uma vez que sentido só há para o ser-aí, o objetivo a ser atingido, o sentido de ser em geral, deve ser investigado sob o signo da finitude.

O ser-aí é transcendência por existir originariamente, ao modo de êxtases temporais — por isso, este ente que existe, nunca simplesmente é, porque sempre se ultrapassa — o que lhe dá o privilégio ontológico de compreender o ser, e não simplesmente perceber o ôntico.

A hermenêutica heideggriana realiza um deslocamento em rela-ção à metafísica tradicional, transpondo o que anteriormente era consi-derado necessário e imutável, para um tempo contingencial e subjetivo. Daí a propriedade da reflexão, cujo mote pode ser expresso como `o tempo é Dasein e Dasein é tempo’.

O paradigma da causalidade que dava aporte às disciplinas está superado. Segundo Einstein e Infeld (1976), as partículas representam condensações de um campo contínuo presente em todo o espaço, o que permite interpretar o universo como teia infinita de eventos correla-cionados, e todas as teorias dos fenômenos naturais passam a ser me-ras criações da mente humana, esquemas conceituais que representam aproximações da realidade, pois não há realidade até o momento em que ela é percebida pelo observador. Dependendo do ajuste experimen-tal, vários aspectos complementares da realidade se tornaram visíveis. A observação, em si, gera os paradoxos. Por isso a realidade é fruto do trabalho mental e ela tenderá a ter os contornos de quem a observa e que escolhe o quê e o como observar. É a mente que se vê refletida na matéria. O real é uma metáfora com a qual o cientista pode criar e ampliar significados e valores na busca por entendimento e propósito...

O aprofundamento desta visão de Einstein e da física quântica, levou Barbour (1999) a elaborar a teoria da inexistência do tempo, lem-brando Antífono e Anaxágoras. O físico inglês, Julian Barbour resume seu raciocínio:

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[...] um objeto pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Na física quântica, até você pro-var que o objeto está em apenas um lugar, ele está por toda a parte. E é um princípio que se torna ainda mais complicado, bonito e surpreendente quando diz que vários objetos podem estar em um único lugar ao mesmo tempo. Aplicada a todo o Universo, essa teoria possibilita a existência de vários ‘agoras’ num único instante. O que a mecâ-nica quântica diz é que há várias versões de você por toda parte. No mundo da mecânica quântica ocorrem em você bilhões de coisas nesse momen-to, mas haverá sempre um outro no qual você não entrará. Somos prisioneiros do agora em que vi-vemos. (p.11)

Do vir-a-ser aristotélico como passagem da potência ao ato —, passando pelos constructos científicos diversos — ao ser-aí tempora-lizado para projetar-se, as várias teorizações sobre o tempo mostram o quanto o homem, este ser finito, tem preocupação com sua finitude, buscando superá-la, não apenas com as tecnologias que enfocam o bios, mas também com hermenêutica, metafísica, teleologias e nas infinitas possíveis reflexões das quais a razão não dá conta, mas que podem dis-por do abrigo da linguagem.

Quando Einstein falava em inventar conceitos está indicando que, antes do estudo empírico dos fatos, o extraordinário foi pensado e enunciado, como forma inusitada de descrição da realidade. Apenas posteriormente à criatividade é que as leis foram formuladas.

É por isso que o paradoxo do tempo não podia ser resolvido com um mero apelo ao senso comum ou com modificações ad hoc das leis da dinâmi-ca. Não bastava nem mesmo localizar a fraqueza oculta do edifício clássico. Era preciso que essa fraqueza, a sensibilidade às condições iniciais do caos determinista ou as ressonâncias de Poinca-

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ré, assumisse um sentido positivo, se tornasse a origem de uma nova linguagem, a fonte de novas questões físicas e matemáticas. Este é o significa-do do diálogo com a natureza que identificamos ao conhecimento científico. Ao longo deste diá-logo, transformamos o que aparece inicialmente como um obstáculo em estruturas conceituais que conferem um novo significado à relação entre aquele que conhece e o que é conhecido. (PRI-GOGINE, 1997, p.65)

Os conhecimentos que surgiram, portanto, se opõem tanto ao de-terminismo, como à arbitrariedade do acaso exclusivo. A concepção da nova física corresponde a uma nova forma de inteligibilidade para representações impossíveis na visão clássica. Elas estão associadas à instabilidade e, quer no microcosmo, quer no macrocosmo, descrevem os eventos enquanto condições de possibilidades, não redutíveis a con-sequências necessárias ou previsíveis de leis deterministas.

Enfim, Tempus fugit significa o tempo foge e evoca a concepção utilitária do tempo que voa, que não volta, que é dinheiro, que deve ser aproveitado, etc.

Do Kairós socrático herdamos o sentido de oportunidade, oca-sião, tempo conveniente e de vantagem, mas o adaptamos à lógica da disciplina pela disciplina, à economia de produção de homens dóceis e ágeis, produtos que possibilitam a consolidação de uma escola que não define o tempo mas é por ele definida. Hora-aula, número de palavras, de linhas, de páginas, ou caracteres bem como quantificações diversas inclusive avaliações de 0 a 10, insuficiente a suficiente em verdade tra-duzem o tempo-disciplina, que deve ser contido (reprovações), permiti-do fluir (aprovações) ou incentivado a correr (prêmios, elogios).

Diante desta lógica perversa, optamos por evocar a literatura de Jorge Luiz Borges no poema que fala do âmago do grande drama antro-pológico que é a finitude humana:

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E no entanto, no entanto...negar a sucessão do tempo, negar o eu, negar o universo astronômico

são desesperos aparentes e consolos secretos... O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.

O mundo, desgraçadamente, é real; e eu, desgraçadamente, sou Borges

A reflexão realizada permitiu perceber que está ocorrendo um deslocamento sem precedentes da visão de mundo, através da física. É possível cogitar que os enunciados criam a realidade, mas entende-se, também, que tangenciam essa realidade e, igualmente são dela deriva-dos. A única indicação obtida conduz à leitura de que os significados compartilhados podem ser materializados. Assim, da mesma forma que a economia disciplinar e o tempo-lucro tecem a trama da exclusão, é possível, a partir da elaboração de novas representações, construir uma outra escola, do tempo etéreo, da corrida cuja única regra é a de que cada ser tem seu ritmo e que todos vencem.

Quanto às verdades científicas, quanto ao tempo verdadeiro, de-lega-se à fala do especialista:

Quaisquer palavras ou conceitos que foram cria-dos no passado, frutos da interação do homem com o mundo, não são, de fato, precisamente defini-dos no que se refere a seu sentido; isso quer dizer que não sabemos exatamente quão longe palavras e conceitos nos ajudarão a achar nosso caminho no entendimento do mundo. Frequentemente, sa-bemos que eles podem ser aplicados em um domí-

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nio amplo de experiências interiores e exteriores mas, na prática, jamais saberemos os limites de sua aplicabilidade. Isso é verdade mesmo para os conceitos mais simples e para os mais gerais como ‘existência’, e ‘tempo e espaço’. Portanto, jamais será possível chegar-se, pela razão pura, a alguma verdade absoluta. (HEISENBERG, 1995, p. 72)

A negação do tempo é também a esperança de sua superação, bem como de anulação das determinações mais trágicas da condição humana. Precedendo a negação, pairavam no pensamento as suspeitas que acompanharam o homem pari passu à sua história. No que diz res-peito ao tempo, elas se manifestaram em relação à eternidade e à efe-meridade. Em torno desse binômio permanência-contingência, incan-sáveis buscas foram realizadas, desde os tempos primevos, sem que o enigma do tempo fosse desvendado. Todavia, se essa procura constante não atingiu o alvo mesmo de garantir a permanência, trouxe um cresci-mento da inteligibilidade que permite valorizar a própria contingência, e que, apesar do constante insucesso, obstina-se a continuar desconfian-do e indagando... e nessas lides, construindo.

Finalizando, ousamos parafrasear Borges para pensar o tempo da Escola:

O tempo é também a substância de que professores e alu-nos somos feitos. O tempo é um rio que nos arrebata, mas nós somos o rio; é um tigre que nos destroça, mas nós somos o tigre; é um fogo que nos consome, mas nós somos o fogo.

O mundo, desgraçadamente, é real; nós, desgraçadamente ou felizmente dependendo de cada olhar , somos a Escola

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