livro historias que_se_cruzam_na_kantura

119

Upload: danilo-catalano

Post on 15-Apr-2017

384 views

Category:

Education


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura
Page 2: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

Copyright © Projeto Sí, yo puedo!Publishing by VGL Publishing

Todos os direitos reservados. Se proíbe reproduzir este livro em sua totalidade ou parcialmente, em qualquer forma ou formato. / All rights reserved, including the

right to reproduce this book or portions there of any form whatsever.

1ª tiragem – agosto de 2016 – 100 exemplaresCoordenação Editorial: Víctor Gonzales – VGL PublishingDiagramação: Diego Rodri Capa: Diego RodriSupervisão Editorial: Júnia Keiko Matsuura MearimSupervisão de Conteúdo: Adriana Rodrigues DominguesEntrevistas, transcrição e organização: Luana de Freitas GarciaTradução: Nanci Adela KirinusRevisão de Textos: Adriana Rodrigues Domingues, Felix Claudio Mendoza Achumiri, Flaubert Castro Arela, Franz Mijail Sanabria Galván, Lucia Ireyo Raimundo, Miguel Angel Saavedra Aguilar, Veronica Quispe YujraIlustração: Nathalia Ju Hyun JinFotografia: Flaubert Castro Arela, Luana de Freitas Garcia, Miguel Angel Saavedra Aguilar

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Daniela Momozaki – CRB8/7714 )

G216 Garcia, Luana de Freitas (org.)Histórias que se cruzam na Kantuta/organização de Luana de Freitas

Garcia; supervisão de Dra. Adriana Rodrigues Domingues; tradução deNanci Ade la Kirinus; ilustração de Nathalia Ju Hyun Jin São Paulo: VGL

Publishing, 2016.

ISBN 978-85 1. Territorialidade urbana - São Paulo 2. Geografia humana - São Paulo

3. Imigrantes - São Paulo 4. Sociologia urbana I. Garcia, Luana de Freitas II. Título

CDD 307.76098161

Índice para o catálogo sistemático1. Territorialidade urbana: 307.76098161

Trabalho apresentado para o Coletivo Sí, Yo Puedo! como projeto de intervenção do estágio em Psicologia Comunitária do curso de Psicologia da Universidade

Presbiteriana Mackenzie.

Page 3: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

Felix Claudio Mendoza Achumiri

Flaubert Castro Arela

Franz Mijail Sanabria Galván

Lucia Ireyo Raimundo

Miguel Angel Saavedra Aguilar

Veronica Quispe Yujra

Narradores

Page 4: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

PREFÁCIO - OUVIR E RECONTAR HISTÓRIASLuana de Freitas Garcia

“E EU, TAMBéM POSSO?” Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti e Luana de Freitas Garcia SÃO PAULO é O RETRATO DO MUNDOFelix Claudio Mendoza Achumiri

PALAVRAS QUE SAEM COMO FACASFlaubert Castro Arela

UMA OUTRA IMAGEM DO BRASILFranz Mijail Sanabria Galván

AQUI é TUDO MUITO LONGE!Lucia Ireyo Raimundo

LIVRE ATé DE SI MESMOMiguel Ángel Saavedra Aguilar

AH é? TEM QUE FAZER?Veronica Quispe Yujra

05

07

15

22

30

36

41

50

sumário

Page 5: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

5Histórias que se cruzam na kantuta

OUVIR E RECONTAR HISTÓRIAS

Este livro conta as histórias de seis imigrantes, cinco bolivianos e um peruano, que viviam em São Paulo no ano de 2015. Narra os percursos feitos por eles até chegarem ao Brasil e também relata como se deu o contato e a inserção no novo país. O título Histórias que se cruzam na Kantuta faz referência à Praça Kantuta, local frequentado por todos esses narradores. A praça é um ponto de encontro de imigrantes, bolivianos em sua maioria, e é onde ocorre uma feira gastronômica, todos os domingos, numa tentativa de preservar a identidade cultural destes que vêm ao Brasil em busca de trabalho e melhores condições de vida. Kantuta é o nome de uma flor típica do altiplano andino e suas cores – verde, amarelo e vermelho – colorem a bandeira da Bolívia. Na Praça Kantuta também se localiza a tenda do coletivo Sí, Yo Puedo! (SYP), ligação existente entre os narradores e eu, que – com supervisão da professora Adriana Rodrigues Domingues – registrei e transcriei estas histórias. Isto se tornou possível porque o SYP firmou uma parceria com a Universidade Presbiteriana Mackenzie, de modo que nós, estudantes de Psicologia do último ano, podíamos realizar o estágio de Psicologia Comunitária no Coletivo. Durante o período de estágio, observei no discurso da comunidade atendida pelo SYP, que era importante para o imigrante ser porta-voz de sua própria história, como um sujeito que tem muito a dizer sobre a realidade que vivencia. Nesta publicação, ao optar por dar voz ao imigrante, não enquadrei seu discurso em normas e padrões da língua do país de origem ou do país receptor. Os relatos orais transcritos não obedecem um padrão formal, mas estão llenos de conteúdo. Um conteúdo em que começo, meio e fim se confundem, uma vez que memórias não vêm de maneira linear e coerente.

prefácio

Page 6: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

6 Sí, yo puedo!

Assim, resgatando as experiências e as memórias dos imigrantes que se disponibilizaram a relatar os caminhos que percorreram como emigrantes e imigrantes, desde o momento em que decidiram deixar seus lares, famílias e amigos, para se enraizarem em outras terras, também pensei, senti e vivi uma experiência valiosa, que ampliou minha visão de mundo, proporcionando-me um intenso aprendizado e uma autêntica experiência intercultural. Recontar suas histórias em primeira pessoa, reproduzir seus falares ainda no processo de apropriação do novo idioma é reconhecer-lhes e respeitar o direito de contarem suas próprias histórias. É, também, uma forma de dar visibilidade às dificuldades que o imigrante enfrenta ao se inserir em uma terra estrangeira e mostrar as contribuições deste, à nossa cultura. Entendendo a dificuldade no aprendizado da Língua Portuguesa, pensei que as histórias aqui contadas poderiam atingir melhor a comunidade imigrante se pudessem ser lidas independente da apropriação que uma pessoa possui do idioma falado no Brasil, daí a necessidade de se contar estas histórias de vida também no idioma espanhol. As histórias resgatadas se cruzam na Praça Kantuta, mas se encontram e dialogam no SYP, por isso considerei essencial acrescentar ao livro outra história, que não foi registrada por meio de entrevistas gravadas, mas que foi vivenciada pelos narradores, voluntários, população atendida, pela idealizadora do SYP e por mim, ou seja, uma construção de memória escrita do coletivo desde sua concretização até o momento atual. Agradeço a todos que colaboraram com este trabalho e espero que da mesma forma que eu, os leitores se sintam inspirados pelas histórias aqui narradas.

Luana de Freitas Garcia

Page 7: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

7Histórias que se cruzam na kantuta

e eu, TamBÉm posso?Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti e

Luana de Freitas Garcia

“Sí, se puede!”, “Yo, sí puedo!”, “Yes, we can!”. Bastante ecoados pelo vasto continente americano, tais lemas remetem a histórias de lutas empreendidas por diversos grupos sociais, já que foram respectivamente utilizados por trabalhadores rurais e urbanos grevistas, por movimentos para a alfabetização de jovens e adultos impossibilitados do acesso a Educação, como os promovidos durante o governo do primeiro presidente indígena da Bolívia1 e nas campanhas presidenciais daquele que viria a ser o primeiro presidente norte-americano negro.

1 Uma das primeiras ações da gestão de Evo Morales com relação à área da Educação foi o lançamento do PlanoNacional de Alfabetização denominado “Yo, sí puedo”, tendo por base a experiência e metodologia cubana conhecida e utilizada também em outros países da região, caracterizadas pelo uso de meios audiovisuais, mediados por um docente noprocesso de ensino e aprendizagem. Seu emprego na Bolívia reduziu a taxa de analfabetismo a 3.7%, índice a partir do qual a UNESCO declarou a Bolívia como “território livre de analfabetismo” em 2014.

Page 8: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

8 Sí, yo puedo!

Essas expressões estiveram e ainda continuam associadas a buscas por avanços reais dos sujeitos, que representam minorias políticas na sociedade, no sentido qualitativo do termo, por serem recorrentemente marginalizados de direitos fundamentais que garantam condições dignas de vida. Palavras tão cheias de significado como estas foram, enfim, fontes de inspiração para a denominação de um projeto dedicado ao atendimento de imigrantes estabelecidos em São Paulo, em algumas de suas demandas relacionadas especialmente à Educação e ao Trabalho: o coletivo “Sí, Yo Puedo!”. A primeira proposta era a de se chamar “Yo, sí puedo!”, similar ao projeto de alfabetização mencionado, porém no intuito de fortalecer ainda mais a denotação afirmativa da frase, relacionada neste caso ao empoderamento dos imigrantes, preferiu-se colocar o “sí” no início. Os primeiros passos para o projeto podem ser observados em meio a própria trajetória de vida de sua idealizadora, Veronica Quispe Yujra, e de sua família. Neste e em outros casos, escutar e registrar atentamente histórias de vida é uma experiência que pode nos revelar não o sujeito isolado, mas sim situado em meio às sociedades entre as quais desenvolve suas vivências e constrói coletividades, permitindo-nos conhecer suas percepções e visões de mundo, condições de vida, bem como as estratégias individuais e comunitárias empreendidas a partir das mais diversas situações e desafios. Pois bem, vejamos o que nos trouxe sua narrativa!2 Boliviana, nascida na cidade de La Paz, Veronica chegou a São Paulo, aos oito anos de idade com sua mãe e as duas irmãs, Rocio e Maritza, de quatro e quatorze anos. Era 1989, e elas vinham para viver com o pai, que sendo alfaiate na Bolívia, viera um pouco antes a convite de um sobrinho para trabalhar em uma confecção. A decisão do encontro familiar no Brasil, no entanto, não partiu dele, mas de sua esposa, acreditando que nesse novo destino seria possível uma significativa melhoria de vida. Reunida, a família se instalou no bairro do Bom Retiro, em um apartamento localizado em frente ao Centro Cultural Oswald de Andrade, espaço que mesmo olhando defora parecia muito atrativo aos olhos de Veronica3. Por ali também

2 A transcrição mais detalhada do relato de Veronica também é uma das histórias contadas nesse livro.

3 Este centro de cultura é muito simbólico em sua trajetória de vida, já que depois de adulta Veronica retornou àquele espaço que tanto lhe atraia atenção, enquanto parte integrante de uma encenação artística.

Page 9: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

9Histórias que se cruzam na kantuta

passaram a gerenciar uma oficina de costura. Logo, apenas as meninas mais novas começaram a frequentar uma escola pública, na qual Veronica considera ter tido uma boa inserção, tanto pela recepção dos profissionais e colegas, quanto pelo aprendizado. No entanto, uma resolução da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo aprovada em 1990 as impediu de continuarem frequentando a unidade escolar, já que estavam com a situação migratória irregular. Naquela época isto aconteceu igualmente com pelo menos 400 crianças estrangeiras 4. Tal fato causou desespero em toda a família, e particularmente a ela, pelo medo de que a ausência de formação lhe levasse a se dedicar a costura enquanto única saída, algo que não correspondia às suas expectativas e desejos. Após a regularização dos documentos migratórios e já com 15 anos, cursou o supletivo almejando reverter o atraso escolar. Com a conclusão do Ensino Médio, passou a estudar em um curso técnico em enfermagem. Paralelamente aos estudos, ajudava no trabalho dos pais5. A certa altura, cansada das dificuldades na confecção, sua mãe decidiu dedicar-se a outras atividades, iniciando um comércio de pratos típicos da Bolívia na Praça do Pari, um espaço no qual a comunidade boliviana costumava se encontrar. No entanto, não tardou para que outro fato viesse a marcar a história da família: tal frequência dos novos imigrantes passou a ser alvo de protestos de moradores do bairro, os quais reivindicavam exclusividade de usoalegando serem mais antigos por ali6. Com esse episódio conflituoso a comunidade percebeu a necessidade de se organizar e estruturou a Associação Gastronômica Cultural Folclórica Boliviana Padre Bento, a qual por intermédio daSubprefeitura da Mooca, recebeu autorização para estabelecer um novo espaço de sociabilidade em São Paulo: a Praça Kantuta, no bairro do Canindé. A família Quispe Yujra não apenas colaborou na busca por este espaço, como também atuou ali com pioneirismo no

4 Fundamentada no Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/1980), a Resolução no 9, de 8 de janeiro de 1990 afirmava a necessidade de documentação regular dos estudantes estrangeiros para que pudessem acessar ao sistema escolar. Sobre as crianças e adolescentes impedidas de estudar e os esforços da sociedade civil organizada para reverter tal situação, ver: BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras! Imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Loyola, 2000.

5 Sergio Quispe Cuellar e Esperanza Francisca Yujra de Quispe.

6 Sobre isso ver: SILVA, Sidney Antônio da Silva. Uma face desconhecida na metrópole: os bolivianos em São Paulo. Travessia: Revista do migrante. Centro de Estudos Migratórios. Setembro-Dezembro de 1995, p.17.

Page 10: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

10 Sí, yo puedo!

comércio de produtos da Bolívia e na organização de festividades populares, como a Alasitas7. Enquanto sua família conquistava novas possibilidades de inserção na cidade de São Paulo, Veronica também caminhava para outras possibilidades de formação profissional. Por orientação doscolegas da escola técnica, fez cursinho preparatório almejando ingresso em uma universidade pública (ainda que muito de seu entorno por vezes lhe expressasse “ – Isso não é pra você!”, “ – Você é estrangeira!”). Enfim, cursou Odontologia na Universidade Estadual Paulista e, sucessivamente, uma pós-graduação na área de Saúde no sul do país. Seu envolvimento com o movimento estudantil duranteeste período também lhe possibilitou grande abertura a espaços universitários em diferentes lugares do país. Ao longo dessa trajetória, percebeu e vivenciou com grande incômodo a ausência de pessoas de origem boliviana ou de outros povos latino-americanos nestas instituições escolares e acadêmicas por onde passou. Observava inclusive as listas de estudantes e raramente encontrava nomes tradicionais dos países vizinhos ao Brasil. A partir desse incômodo, ao projetar sua volta a São Paulo, começou a pensar uma maneira de intervenção junto à comunidade imigrante que pudesse contribuir para ampliar seu acesso a estes espaços. Assim, deu inicio em 2012 ao projeto “Sí, Yo Puedo!”, durante a feira boliviana da Praça Kantuta, que sempre é realizada aos domingos:

7 Festividade realizada no dia 24 de janeiro em honra ao deus aymara da abundância, o Ekeko. As pessoas adquirem miniaturas dos bens desejados, visando alcançar sua realização ao longo do ano. A “Alasitas” teve início na cidade de La Paz, mas se tornou tradicional em diferentes regiões da Bolívia.

(...) Porque eu já estava com isso na cabeça e toda vez adiava e adiava. Então eu entrei no quarto da minha irmã e falei: “Ah, Rô, eu vou ir no domingo agora”. Falei, vou sair domingo agora, porque vai passando, já é março. Acho que ia sair algum curso, eu vi no amarelinho algum curso gratuito e falei: “ Ah! Vou sair para lá...”. No começo eu trazia jornais da Bolívia, do dia. Acordava às seis da manhã e imprimia os jornais do dia para deixar no mural, nossa, chegava muita gente. (...) E aí eu comecei a me apresentar e eu dizia “Eu estou aqui para dar informação a respeito de tudo, de formação, de trabalho formal...”. Eu achava que sabia um pouco mais e queria que os outros também soubessem (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada na Feira da Praça Kantuta).

Page 11: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

11Histórias que se cruzam na kantuta

Assim, a primeira atuação do projeto visava à democratização de informações, a partir de orientações sobre cursos disponíveis em diferentes instituições e as formas de acesso. Conforme relatou-nos, Veronica começou a comparecer à Praça Kantuta aos domingos, dia de realização da feira, com apenas um banquinho e as informações que considerava de interesse para a comunidade, mas não tardou muito para que ganhasse companhia. Logo se aproximaram outros voluntários, dentre eles estudantes universitários do Mackenzie, que já vinham buscando realizar ações semelhantes na Kantuta, porém sem êxito na aproximação com as pessoas. Dispostos a levar a ação adiante, lograram uma parceria com a universidade para a possibilidade de seus estudantes realizarem estágios ali. Com a sucessiva soma de esforços, já que a chegada de novos voluntários imigrantes e nacionais era constante, o “Sí, Yo Puedo!” foi se configurando como um coletivo. A forma de atuação central passou a ser por meio dos atendimentos aos domingos, das 11:00 às 17:00 horas, com orientação e auxílio para a solução de dúvidas a respeito não só de cursos técnicos, superiores e formação complementar, mas também com relação à documentação para imigrantes, reinserção escolar, revalidação dos diplomas, transferência escolar, orientação profissional, ao funcionamento dos equipamentos de saúde e inclusive quanto à oportunidades de trabalho. Além disso, o projeto identificou a necessidade e demanda dos e das imigrantes em relação ao aprendizado da Língua Portuguesa. O conhecimento do idioma se mostra cotidianamente necessário para chances mais favoráveis de inserção no Brasil, podendo lhes proporcionar maior confiança e autonomia no desenvolvimento de suas diferentes ações, inclusive com a abertura de novas possibilidades de atuação. Em outras palavras, funciona como um “capital cultural”, que pode interferir para o melhor desenvolvimento de outras formas de capitais, como o econômico e o social8. Com isso, o “Sí, Yo Puedo!” passou a oferecer cursos de

8 Sobre isso ver: BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. [Orgs] Maria Alice Nogueira, Afrânio MendesCatani. Petrópolis: Vozes, 2013.

Page 12: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

12 Sí, yo puedo!

português de nível básico. As aulas são organizadas com foco no cotidiano dos sujeitos, bem como agregam discussões relacionadas aos direitos humanos e cidadania. Também incluem passeios por equipamentos públicos de São Paulo, considerados importantes para promover a interação, integração social e vivência das diferentes culturas presentes na cidade. Atualmente o coletivo conta com 12 turmas formadas em seu curso de português, percebendo como satisfatório o fato de exalunos continuarem frequentando atividades e até mesmo de atuarem como voluntários no próprio coletivo ou em outras organizações que possuem objetivos similares9. São diversos os esforços pensados para auxiliar a comunidade a conquistar possibilidades mais favoráveis para a vida em São Paulo. Mais recentemente, por exemplo, o “Sí, Yo Puedo!” deu início a um cursinho preparatório voltado especialmente para os vestibulinhos das escolas técnicas, conforme explicou Veronica:

De fato, a turma formada no cursinho em junho de 2015 condiz com as perspectivas apresentadas nesta fala. Contava com dez estudantes frequentes, com idades variadas entre 22 e 37 anos,

(...) a ETEC é um caminho mais factível, um pouco mais rápido. Uma vez que em um ano e meio a pessoa consegue até fazer algumas contenções econômicas, ficar com a mesma roupa, consegue passar um pouco de fome. Eu brinco com eles: sapato pode durar um ano e meio e é o tempo que o curso dura, para ele ter a chance de um emprego melhor. Então você fez ETEC, depois você pode até se encaminhar para aquele outro sonho maior que é o da universidade, porque já saiu do círculo. Acho que o mais importante é conseguir tirar a pessoa do círculo. Então por causa disso, a gente mudou um pouco nosso discurso nestes três anos. No começo a gente ficava pilhando as pessoas para simplesmente largar o trabalho nas confecções e ir atrás de outro emprego, porém hoje em dia a gente não fala mais isso, porque a gente sabe que para isso são várias etapas. O que a gente sempre fala: “ – Está difícil? Não é isso que você quer fazer? Então vamos começar a construir um projeto no qual em médio prazo vocêconsiga tanto se capacitar, voltar a estudar, como procurar empregos em outras áreas” (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada na Feira da Praça Kantuta).

9 Todos os voluntários que fizeram ou ainda fazem parte do coletivo “Sí, yo puedo!” estão citados na página 118.

Page 13: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

13Histórias que se cruzam na kantuta

10 Sobre isso ver: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998; O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante. Revista Travessia, ano XIII, número especial, jan/2000.

os quais naquele momento trabalhavam na área das confecções como costureiros. Eles pretendiam prestar o vestibulinho das ETECs para cursos técnicos de Eletrônica, Mecânica, Enfermagem, Informática e Estética. Foram-lhes oferecidas aulas intensivas de Português, Matemática, História, Química, Física e Biologia ao longo de quatro sábados, ministradas por professores voluntários que são profissionais das respectivas áreas. Trata-se de uma experiência piloto relevante, já que visa atender a uma demanda real destas pessoas, que muitas vezes acabam não tendo acesso a outros cursos preparatórios. No entanto, o êxito no acesso às instituições de ensino ainda acaba dependendo da superação de barreiras burocráticas, as quais os estrangeiros são comumente submetidos, como, por exemplo, a questão das traduções de documentos, da equivalência de estudos realizados ou reconhecimento de diplomas emitidos no exterior. Além destes casos, encontramos relatos semelhantes ao longo deste livro, isto é, que consideraram o investimento em educação profissional como estratégia relevante para uma melhor inserção laboral. É importante perceber que o coletivo “Sí, Yo Puedo!” tem como um dos seus princípios que seus integrantes sejam sempre participativos em diversos eventos relacionados às questões de interesse dos imigrantes em São Paulo, promovidos por entidades da sociedade civil, ONGs ou agentes das esferas estatais. Eles levam suas vozes enquanto sujeitos que atuam para a mudança de um meio social, escutam, propõem e fazem críticas. Marcando presença e ocupando os espaços, fazem-se notados com suas ações e reivindicações. Justamente o que propõe o projeto que aqui apresentamos é romper com a “presença-ausente” que tanto pode representar o imigrante em uma sociedade, conforme analisou o sociólogo argelino, imigrante na França, Abdelmalek Sayad: por um lado, o imigrante é uma ausência no seu espaço de origem. Por outro, é uma presença comumente invisibilizada nas sociedades em que se estabelece, colocado a margem do acesso a direitos fundamentais10. A atuação do projeto pretende, portanto, a conquista e gozo

Page 14: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

14 Sí, yo puedo!

dos espaços escolares, universitários, culturais, laborais, sociais e políticos pelos imigrantes, a partir da formação destes como sujeitos ativos na construção de suas trajetórias de vida dentro de seus projetos migratórios, bem como da inserção e ocupação dos espaços da cidade que, muito comumente, podem lhes ser hostis e negar-lhes direitos. Assim, vale-se com certeza da máxima de vontade política por detrás do lema: “Sí, Yo Puedo!”.

Bianca Carolina Pereira da Silva (Bacharel e licenciada em História – UNIFESP; Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina – USP).

Julia Ferreira Scavitti (Bacharel e licenciada em Ciências Sociais – UNICAMP; Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UNIFESP).

Luana de Freitas Garcia (Graduada em Psicologia – UniversidadePresbiteriana Mackenzie).

Page 15: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

15Histórias que se cruzam na kantuta

sao pauLo É o reTraTo do muNdoFelix Claudio Mendoza Achumiri

Me chamo Felix Claudio Mendoza Achumiri e nasci em 1971. Faço parte da comunidade boliviana e morava em La Paz. A primeira vez que vim ao Brasil foi com um amigo, para visitar. Tinha um irmão aqui e fiquei um mês, depois voltei de novo para a Bolívia. No meu país, eu tinha boas oportunidades. Lá eu gostava de estudar eletrônica; fui DJ e locutor de uma rádio. Fazia isso todos os dias e ganhava o suficiente para me sustentar. Tinha uma equipe de som, mas não deu certo, porque meu parceiro foi para a Argentina atrás de melhores oportunidades. Fazia edição de vídeo para casamentos, formaturas e para aniversários de quinze anos. Até que cheguei aqui e tudo foi diferente. Hoje estou aqui por uma vida melhor. Já conheci o sistema daqui, sei como é. Moro sozinho e agora estou trabalhando como modelista em uma empresa de costura. Vim para cá há mais ou menos quatorze anos.

Page 16: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

16 Sí, yo puedo!

Uma semana atrás chegaram minha mãe, minha irmã e meu cunhado. Vieram só para me visitar. Não acreditei! Minha mãe mora na Bolívia e veio porque tinha saudades de mim. Eu não telefonava para minha família há muito tempo, fazia uns quatro anos, fiquei muito afastado. Queria que tivessem ficado por mais tempo para que eu pudesse mostrar as coisas bonitas que São Paulo tem, mas não deu tempo, tiveque acompanhá-los ao terminal rodoviário e fiquei triste com a despedida. Vim para o Brasil, pois queria conhecer pessoas diferentes, saber como eram os brasileiros. Tem gente aqui de todo lugar do mundo. São Paulo é resumo de todas as raças. É um retrato do mundo. Queria ter ido para os Estados Unidos, mas não deu certo. Ficou mais difícil entrar lá depois do ataque às Torres Gêmeas. Estou tentando mudar para caminhos diferentes do da costura. Costura é a primeira entrada, o que todo mundo faz quando chega aqui. Passa primeiro por essa fase. A pessoa tem a facilidade de não pagar o quarto e tem comida. Isso é uma herança dos coreanos. E acaba acontecendo aquelas coisas de exploração. Atualmente, as pessoas estão se tornando mais conscientes graças a essas políticas que estão voltadas para imigrantes. Aqui a prática da exploração tem mais liberdade, porque está escondida em uma casa, tudo é fechado. Aqui o pessoal fala: “Na minha casa não entra ninguém de fora e eu posso fazer o que eu quero na minha casa”. As pessoas pensam desse jeito e fazem a exploração dentro de uma casa. E quem está fora acha que é só uma família que está morando ali. Mas não é assim! Isso vai se descobrindo ao longo do tempo, por alguém que foge ou denuncia. Eu saí desse tipo de trabalho, pois tentei fazer o melhor , mas não gostei. Eu gosto de trabalhar em qualquer coisa, mas eu não gostava do que eu fazia, pois a dona falava que eu estava demorando, todavia, eu sou perfeccionista, gosto de fazer bem. Então, tive que sair de lá para fazer o que eu gosto. Agora estou trabalhando com carteira assinada, que é melhor, mas sair do ciclo da costura é muito difícil. No Brasil há facilidades com relação aos estudos. Escutei por aí que imigrantes podem fazer faculdade. Penso em continuar a estudar aqui, no curso que fazia lá, de engenharia eletrônica. Só que trabalho o dia inteiro e não é possível estudar no mesmo horário. Eu trabalho das nove da manhã às sete da noite e folgo aos sábados e domingos. Já nas oficinas dos nossos compatriotas cada um é independente, porque tem que trabalhar por produção, por isso,

Page 17: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

17Histórias que se cruzam na kantuta

alguns trabalham sábado e domingo. Se não trabalham no final de semana, os donos não dão comida nesses dias, pois eles não estão trabalhando. Cada oficina adota um esquema, faz sua própria lei interna. Para mim, existem dois tipos de empresa, aquela que adota o capitalismo extremo, que quer tudo, sem sentimento, e aquela que é humanista e vê que os trabalhadores precisam estar bem, com boa saúde, para produzir. Na humanista, os trabalhadores são mais cuidados pela empresa. Aqui em São Paulo, gosto de ir aos museus e visitar lugares que não conheço em bairros que estão mais longe do centro. Gosto de passear sozinho, no tempo livre. Convido amigos, mas eles não gostam de fazer esses passeios para lugares mais longes, porque gastam mais. A maioria fica fechado em casa por medo da rua, ficam assistindo tv e filmes. Alguns saem no sábado à noite para baladas só de bolivianos e eu não gosto muito disso. Eu prefiro conhecer lugares diferentes, gosto de conhecer outras culturas. Sempre vou ao bairro da Liberdade saber sobre os eventos que eles fazem. Eles já estão há mais de cem anos aqui e mantêm a cultura, inclusive seus filhos. Com bolivianos é diferente, os filhos nascem aqui e já não querem saber da cultura de lá. Aqui os bolivianos que trabalham nas oficinas não têm tempo de passar a cultura para seus filhos, pois começam a trabalhar às sete da manhã e às onze da noite ainda estão trabalhando. Que horas podem brincar e falar com os filhos? Por isso, os filhos têm poucos conhecimentos de lá. Na escola, eu era bom aluno. Os melhores entravam na faculdade, só que não deu certo para mim, tive que trancar por questões financeiras. Fui trabalhar e não deu certo. Engenharia tem três lemas: estudar, estudar e seguir estudando. Não dá para trabalhar. Era um curso de período integral. Aí comecei a fazer coisas diferentes, trabalhava com equipe de som, como DJ. A grana que eu tinha era pouca e, às vezes, não dava para almoçar. Quando você deixa de comer e segue estudando, você fica diferente. Não é bom! Se você está estudando tem que comer bem. Naquele tempo, eu era bem otimista, queria ser engenheiro eletrônico! Mas, eu precisava de dinheiro para ir até a universidade e para comer. Então, deixei de estudar e só trabalhei. O tempo passava e eu só pensava em continuar meus estudos. Antes de ter vindo para cá, queria ter aprendido português. Mas o jeito de falar é semelhante, então me adaptei. Eu falava devagar e os brasileiros também, para que pudéssemos nos entender. Nunca fui tímido, então aprendi aos poucos. Eu queria

Page 18: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

18 Sí, yo puedo!

trabalhar com telemarketing, pois tem trabalho de meio período e algumas vantagens, contudo é necessário falar Português fluente. Lá, eu morava tranquilo, tinha um monte de amigos, estudava e mexia com música. Assim passava o tempo! Fazia alguns cursos e ajudava minha mãe em casa. Depois que cheguei aqui, esqueci todo mundo, pois perdi telefones e endereços. Além disso, a maioria das pessoas que eu conhecia também viajou para outros países. O único problema lá é que eu não estava estudando mais, estava fazendo bicos e trabalhava em uma rádio, que colocava só as músicas do momento. Surgiu um projeto de abrir uma discoteca aqui no Brasil e eu deixei tudo de lado. Aqui sofri muito no começo. Eu pensei que quando chegasse aqui, ia fazer algo extraordinário, mas já tinha algo parecido aqui e fizemos algo só para o público boliviano. Fazíamos um tipo de música que não gostávamos, também não ganhava bem. Então, tive que entrar na costura forçosamente. Muita gente não queria me ensinar a costurar, porque diziam que não tinham tempo, pois trabalhavam e ganhavam por minuto e não dava para perder tempo. Sendo assim, agradeço a quem me ensinou. É difícil encontrar alguém disposto a te ajudar. O que não gostei do Brasil foi a surpresa que tive com as favelas e com a facilidade para se portar armas também. Todavia, eu vejo aqui a facilidade que os brasileiros têm para estudar, tem formação de graça. Lá também tem universidade de graça, mas é limitado a quem passa no exame, se você não passa na pública, tem que pagar seus estudos. E se não tem como pagar, não estuda. Como meus planos de trabalhar aqui não deram certo, tive, obrigatoriamente, que trabalhar no ramo da costura. Não gostei muito e tentei mudar. Foi passando o tempo e, agora sim, estou fora disso. Agora me sinto um pouco mais livre, melhor! Meu sonho para o futuro é ter uma profissão fixa e trabalhar nessa profissão até crescer nela, como todo mundo faz. Também, construir uma família e ficar aqui no Brasil. Queria fazer viagens pelo Brasil, conhecer de Norte a Sul. Quando falo do Brasil para outras pessoas, falo a verdade. A verdade é que quando um brasileiro conhece um estrangeiro é desconfiado, mas se te conhece bem abre os braços para te ajudar. O brasileiro é alegre, a música é alegre. Lá na Bolívia tem muita discriminação, mesmo com a mudança do presidente, só que está escondida, não está à vista. Aqui no Brasil também percebi um racismo, que é mais velado que na Bolívia. Entretanto, desde que estou aqui, pude entrar em qualquer lugar! Na Bolívia, te olhavam

Page 19: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

19Histórias que se cruzam na kantuta

dos pés à cabeça, se não gostavam, não deixavam entrar. Quando entrei na universidade lá, não era fácil, a maioria era da classe média alta e eu era de classe média, além disso, tinha a diferença da cor da pele. Eles haviam passado por escolas de alto padrão, eram de famílias que tinham dinheiro. Eu tentava procurar outros grupos que tinham menos dinheiro. Quando eu cheguei aqui falei com todo mundo. Quando via um brasileiro de pele branca ficava meio desconfiado, pensando se ele ia me rejeitar ou ia falar alguma coisa como “sai fora”, mas era o contrário. Por isso que gosto do Brasil. É diferente. O brasileiro é mais amistoso, amigo. Por isso que pessoas de todo o mundo vêm para cá e constroem uma cidade junto. O Brasil é feito de imigrantes. Quem nasceu aqui é descendente de imigrantes. Primeiro chegaram os portugueses e os espanhóis, depois os holandeses, os africanos e aí vieram os italianos, os japoneses, os judeus, entre outros. Nesses últimos tempos, chegaram os coreanos, depois os bolivianos que vieram trabalhar na área de costura. Os primeiros bolivianos que chegaram aqui não vieram para trabalhar em costura, os trabalhadores chegaram depois. Com o acordo de Livre Residência do Mercosul ficou mais fácil e o mundo latino-americano chegou aqui. Acho que cheguei muito tarde no Brasil, penso que deveria ter saído da Bolívia mais cedo. Teria tido mais oportunidades para aprender mais coisas. Agora, se volto à Bolívia,venho de novo morar aqui, pois já estou acostumado, gosto daqui. Conheço o costume dos brasileiros e o jeitinho deles. Gosto das festas, do carnaval. Uma vez, fui a um desfile de escola de samba, falei com alguns dançarinos e perguntei como podia participar, eles disseram que não tinha requisito. Eu fiquei muito alegre, queria participar, mas nunca deu. Certa vez, fui para a quadra comemorar com a Águia de Ouro e participei da festa até o amanhecer! Voltei para a casa e estava feliz. Também, sempre vou aos eventos de imigrantes. Gosto de conhecer os gostos e as comidas de várias culturas. Da Bolívia já conheço tudo, por isso, gosto de sair e conhecer outros lados. Quando vim para cá pela primeira vez, fiquei admirado com a quantidade de estradas que tinha no Brasil. Queria ficar, mas não tinha a permissão para ficar aqui. Hoje estou morando no Bom Retiro. É bom, só que o aluguel é caro. Mas aqui qualquer lugar é caro. E as condições também não são boas. Eu pago quatrocentos reais em um quartinho, que é muito pequeno, e o banheiro é compartilhado. Lá moram só bolivianos e paraguaios. Tem

Page 20: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

20 Sí, yo puedo!

famílias e tem pessoas sozinhas também. É mais fácil alugar, pois o responsável pelo imóvel não pede alguns requisitos, como ter que fazer depósito. Eu gostaria de ter minha própria casa aqui, por isso estou trabalhando. Quando você mora assim, como eu moro, está sujeito às normas dessa casa e não tem liberdade suficiente. Eu tentei trabalhar no CAMI, mas me disseram que era voluntariado, aí tive a ideia de procurar outras Ongs que faziam trabalho ajudando as pessoas. Um amigo me falou do Projeto Si, Yo Puedo!. Procurei o projeto, buscando por orientação profissional. Fui conhecendo cada pessoa e me aproximei mais do projeto. Acho importante que as pessoas saibam das coisas para que se tenha justiça. Uma vez sofri injustiça, quando trabalhava na oficina. O dono queria que eu fizesse de tudo, queria que eu fizesse outros tipos de atividade, como arrumar as luzes, consertar as máquinas e aparelhos de televisão. Eu fui trabalhar lá só para fazer o ofício da costura e ele falava: “Faça aquilo também!”. Eu fazia coisas pelas quais não era pago. Na Bolívia, tem uma comida especial para mim, a salteña. As pessoas gostam. É uma comida do lugar onde nasci. A salteña só se come de manhã, é como um café da manhã e se faz com um pouquinho de molho picante. Pode usar aquela pimenta que é chamada de dedo de moça aqui. Não tem salteña aqui igual à de lá. Quando como salteña lembro de minha família. Meu pai sempre comprava salteña para nós. Às vezes, quando nos preparávamos para o café, meu pai aparecia com uma caixa cheia de salteñas para toda a família. Todo mundo ficava alegre quando chegava esse momento. Ele fazia isso em datas especiais. Quando vejo a salteña, recordo de lá, tenho saudade! Éramos quatro irmãos. Todos os meus irmãos moram na Bolívia e a maioria casou. A gente se reunia em datas importantes. Faz três anos que eu não volto. Se eu ficar bem financeiramente, penso em dar uma voltinha por lá. Eram momentos felizes, era um jeito de nos aproximarmos mais, um espaço para ideias, piadas. A salteña é tradição na cidade de La Paz, como o pão de queijo é aqui. Estive procurando aqui alguém que faça do jeito de lá, com o mesmo sabor e textura. Tem um, conheço! Mas só encontro ele no sábado e no domingo. Originalmente, falavam que salteña era uma massa da Argentina, porque tem uma cidade lá que se chama Salta. Parece que, décadas atrás, surgiu uma massa lá que se chamava salteña, por isso o nome, e alguém trouxe para a cidade de La Paz. As

Page 21: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

21Histórias que se cruzam na kantuta

pessoas gostaram e se tornou uma tradição. Tem sabor agridoce, usam farinha de trigo, em cima tem gema de ovo para dar a cor e por dentro tem um caldo que pode estar misturado com ovo, frango, carne. Também tem salteña para veganos.

Page 22: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

22 Sí, yo puedo!

paLaVras Que saem como facasFlaubert Castro Arela

Meu nome é Flaubert Castro Arela, tenho trinta anos, sou peruano e adventista. Aqui no Brasil, eu já moro há quase cinco anos. Eu cheguei no começo para estudar engenharia da computação na Universidade Anhembi Morumbi, com uma meia bolsa de estudos que consegui na Universidad César Vallejo do Peru. Só que quando eu cheguei aqui, acabei perdendo a bolsa por descuido meu. Quandopercebi, já não tinha chance de ser aprovado no semestre, então, depois de três meses batalhando na faculdade, decidi sair e tive que trabalhar. Deixei de lado a faculdade! Mas, sempre, em meus pensamentos, queria continuar estudando. Fui procurar trabalho e no começo não achei. Não foi rápido achar trabalho. Por quê? Porque eu era formado em técnico de informática, mas sou imigrante e como eu estava indocumentado era difícil achar um trabalho para mim. As empresas não confiavam em mim. Algum tempo depois, comecei a trabalhar em vendas e

Page 23: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

23Histórias que se cruzam na kantuta

para ser sincero, já trabalhei em um pouco de tudo aqui e lá no Peru. Aqui trabalhei como ajudante de pedreiro, comerciante, vendedor de plantas medicinais, cobrador de ônibus, guia de turismo improvisado, programador em uma empresa de bordados, trabalhei em uma loja de roupas, em estamparia e em uma empresa de Helpdesk como técnico de apoio ao usuário de informática. Este foi meu último trabalho. Depois desses dois anos que estava sem buscar nada dos meus estudos, procurei uma instituição para me atualizar sobre informática para que eu continuasse a crescer na minha profissão. Tinha que me atualizar e achei o SENAC , onde paguei para me atualizar. Depois, me lancei no mercado de novo para trabalhar. Comecei a trabalhar e foi tudo tranquilo, só que quando comecei a trabalhar, meu chefe era bom, legalzinho. Acho que todo mundo passa por isso. Ele me aceitou. Eu estive trabalhando um ano com ele e ele passou a me manipular. Ele já não queria que eu trabalhasse só oito horas. Pagava-me bem, mas para mim não dava. Passei a ficar até às dez da noite e cobria os horários dos outros funcionários que não chegavam. Todavia, por mais que ele me obrigasse eu não conseguia. Ele me tentava com dinheiro. Ele pensava que quem tem dinheiro consegue e compra tudo. Às vezes, neste mundo cruel tem gente que se deixa manipular por dinheiro. Por conta da minha religião, eu não trabalho aos sábados, e quando contei para meu chefe, ele não ficou contente com isso. Ele começou a ficar ressentido. Dizia coisas como: “Ah, você não quer trabalhar comigo? Te dei a oportunidade de trabalhar aqui” ou “Eu te dei confiança para você dominar minha empresa”. Essa empresa foi a primeira que me registrou na carteira, até então eu sempre trabalhei como free lance, sem registro. E todas essas coisas, ele me jogou na cara . Ele disse que tinha me dado oportunidade de trabalhar nesse mercado e que nós, peruanos, bolivianos e paraguaios, estávamos vindo para tirar o trabalho dos brasileiros. Ele me falou assim! Eu me senti péssimo quando ele falou isso. Eu tinha vontade, não sei, de voltar para meu país. Mas, eu não queria voltar. Em casa, pensei em pedir demissão. Depois me reuni com meu chefe, que me propôs um acordo. Me disse que se eu não ia trabalhar no sábado, ele precisava de um cara para trabalhar no domingo. “Bom, eu posso, mas uma vez por mês”, respondi. Pois aos domingos estava apoiando o projeto Sí, Yo Puedo! e o CESPROM. Fui trabalhando aos domingos, até que chegou o ano passado e saí da firma, para sempre. A empresa mudou para

Page 24: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

24 Sí, yo puedo!

São Miguel e meu chefe disse que se eu quisesse, podia pedir as contas, pois ele não faria nenhum acordo. Então pedi. Quando fui no escritório, ele foi todo bonzinho e pediu desculpas pelas coisas que estava fazendo comigo. E me disse que se eu ficasse trabalhando com ele, ia aumentar meu salário. Analisei e resolvei ficar, só que, nessa época, estava estudando Português no SENAC e cheguei três vezes atrasado no trabalho, pois não conseguia sair a tempo. No final do mês, ele não me pagou o valor do vale transporte. A maioria dos trabalhadores dele se arrumam faltando dez minutos para irem embora. Essas coisas eu não fazia. Um dia eu fui junto com eles trocar minha roupa, meu chefe viu e disse que eu estava me juntando com aqueles rapazes. “Você é um cavalo! Não tá respeitando a confiança que te dei”, ele me disse. Não falei nada, mas depois, eu mesmo preparei minha carta de demissão, levei lá e ele falou “Deixa aí!”. Uma vez que saí da firma, decidi não trabalhar mais para ninguém! Porque em todas as firmas que eu trabalhei aqui no Brasil, eu me senti muito, muito explorado, mais do que lá na minha terra. Eu percebi que as empresas não fazem isso só com estrangeiro, fazem com aquelas pessoas que chegam do interior, daBahia, de Minas Gerais. Violam não só os direitos dos imigrantes, mas dos migrantes que veem do nordeste, por exemplo. Fiz um plano na minha vida e me disse: “Vou trabalhar para mim, seja qual for o risco! E vou trabalhar na minha área”. Não é tão fácil ser empreendedor, mas estou aí, com altos e baixos. Quando cheguei, morava na casa da minha tia, ela tinha a sua empresa, era próspera. Tinha uma empresa de jeans do Peru. Às vezes, ela trazia tecido cru. Depois, ela passou a confeccionar roupa. Ela ficou um ano com isso, mas o negócio não deu resultado. Depois, ela e sua família foram embora do Brasil, pois aqui, segundo ela, a educação era ruim, porque os filhos dela não sabiam nada. Lá na minha terra, aos dez anos os meninos já conseguem ler perfeitamente e sabem toda a tabela de multiplicação. Aqui, eu dei um texto para eles e seus colegas lerem e eles não conseguiram e o pior é que não sabiam a tabela de multiplicação. Na realidade, isso fez parte de uma pesquisa que realizei na Zona Leste, com estudantes que tinham entre dez e onze anos, eles respondiam algumas perguntas e ganhavam um prêmio. Logicamente, fazia a pesquisa com autorização dos pais. Antes da minha tia ir embora, chegaram meus irmãos. Um chegou para fazer práticas em Engenharia Agropecuária aqui no interior de São Paulo e o outro chegou para trabalhar, procurando

Page 25: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

25Histórias que se cruzam na kantuta

novas oportunidades. Eu passei a morar com este irmão e abri um negócio com ele, com ajuda da minha tia. Depois de um tempo, a mulher do meu irmão começou a dizer para ele que eu não fazia nada. Nossa! Quando escutei esse negócio me senti mal. Eu conversei um dia sozinho com meu irmão e disse que não ia suportar essa humilhação. Disse que ia sair e procurar meu destino. Quando minha tia estava indo, me deixou morar num quarto dela e disse que quando eu pudesse pagava. Aí os irmãos da minha tia passaram a falar mal de mim, dizendo que eu estava vivendo lá de graça. Hoje, longe dos meus familiares, aluguei um quarto e moro tranquilo. Desde então, estou morando sozinho. No momento, estou em paz! Minha única preocupação agora é minha vida profissional. Para mim, o mais importante são as pessoas que eu conheço e acho que vai ser assim sempre. Quando vejo os meninos na rua, jogando bola, com chinelo, roupa rasgada, camiseta, lembro de mim mesmo. A primeira vez que cheguei aqui no Brasil fui jogar bola com uns amigos que conhecia. No final do jogo, fizemos outro caminho para ir lanchar e passamos por uma favela. Eu pensei: “Nossa! O Brasil está catalogado como a quinta economia mundial, essas coisas não deviam ter aqui”. Vi pessoas armadas e tudo. Logicamente, eles cuidavam do bairro deles. Fiquei um pouco assustado. Parecia meu bairro lá no Peru. Isso me fez lembrar de quando eu era moleque. Eu nasci no interior do Peru, em Puquio, no departamento de Ayacucho, mas quando eu tinha cinco anos fui adotado por uma família e fui morar na cidade de Lima. Eu morei toda minha infância e adolescência em Lima. Estudei lá, trabalhei e fiz meus passeios. Um sonho que eu tinha era conhecer quase todo o Peru, explorar meu país, sua cultura, sua diversidade e as condições de vida das pessoas e eu o fiz! Demorei quase três meses para viajar pelo Peru por completo, visitei departamento por departamento, cidade por cidade. Depois tive que voltar para estudar e trabalhar. Mas eu sempre pensei que eu queria sair fora, não queria ficar no Peru, porque se eu ficasse no Peru seria como uma pessoa que fica presa em um quarto. E quando uma pessoa está trancada em um quarto não faz nada, se sente sozinho, com a mente nublada. A mesma coisa estaria acontecendo comigo se eu tivesse ficado no Peru. Então, eu saí do quarto do Peru para o exterior, para o Brasil. Agora, pretendo explorar toda a América Latina e, se Deus me permitir, a Europa. Perto dos anos 90 acontecia muito terrorismo na cidade onde eu nasci. Bom, o governo que deu esse nome a eles: terroristas!

Page 26: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

26 Sí, yo puedo!

Para mim eram grupos sociais com ideologias diferentes das do governo. É nisso que eu acredito. Acho que meu pai era parte deles, pois um dia, meu tio, brincando, disse que meu pai estava ali. Só que eu acho que eles nunca contariam a verdade para mim. Depois dessas histórias, quis saber como meu pai morreu. Foi assassinado! Meu pai foi assassinado e eu não sabia até meus dezoito anos. Depois que ele morreu, minha mãe, sozinha, não conseguia nos alimentar. Éramos três irmãos. O mais novinho tinha meses. Eu era muito travesso, enchia a cabeça da minha mãe, por isso ela mandou eu morar com o padrinho de casamento dela. Eu fui morar com essa família, que atualmente eu considero meus pais. E foi assim que fui morar em Lima. Minha mãe biológica não queria que eu e meu irmão migrássemos para outros lugares do mundo. Ela dizia: “Por que vocês querem sair, se vocês têm tudo aqui!”. Naquela época, quando eu tinha dezenove anos, minha mãe já tinha uma posição econômica bem estabelecida, mas nós queríamos buscar nosso próprio caminho. Ela dizia que se quiséssemos dinheiro, ela daria, se quiséssemos casa, ela arrumaria. Meu foco sempre foi meus estudos, até hoje em dia meu foco é terminar minha formação como engenheiro da computação. Estou batalhando, dia após dia, atrás disso. Só que uma das minhas dificuldades é a economia. Eu queria retomar na mesma universidade que estava, mas agora só pagando. Então, estou buscando outros cursos que sejam na mesma área, nem que sejam técnicos, assim posso me preparar. Meu foco foi estudar aqui no Brasil. Porém, depois que eu perdi a meia bolsa, tive que pensar como trabalhar aqui. Antes de vir para cá, passei por uma situação sentimental lá. Essa foi uma das causas, para esquecer esse envolvimento sentimental, pelas quais abandonei aquela cidade e aquele país. Eu trabalhava numa multinacional, eu era chefe, só controlava. Um ano depois que estava trabalhando lá, conheci uma menina linda, me apaixonei. A princípio ela não queria namorar comigo porque tinha um pretendente que era espanhol. Eu competi com o espanhol. Decidi conquistar ela e consegui. Meses depois de começarmos o namoro, ela me traiu com aquele espanhol. O que eu mais queria era esquecê-la, ficar longe dela, para não recair. Quando cheguei aqui, fiquei dois meses pensando nela, sentia saudades, queria pedir desculpas, não sei o porquê. Pouco a pouco fui me adaptando, conheci uma menina,

Page 27: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

27Histórias que se cruzam na kantuta

comecei a sair com amigos. E assim superei as coisas e acabei ficando aqui. Eu imaginava encontrar aqui uma cidade limpa, sem nenhum tipo de discriminação, moderna! Sem delinquência, nada dessas coisas. Eu me imaginava em um bairro limpo e numa cidade limpa dessas coisas. Mas não foi assim. Eu achei pior do que lá na minha cidade, sinceramente. Uma outra coisa é a educação nas escolas públicas, que eu qualifico como péssima. Essa foi a maior decepção para mim. Eu esperava uma educação bastante avançada. Na saúde, eu me deparei com médicos que não sabem nada. Por exemplo, eu tenho gastrite, fui consultar um doutor e ele me entregou um calmante. A adaptação aqui foi difícil por causa daquele envolvimento amoroso, não sabia se ficava ou se voltava. Outra coisa é que tinha muitos pernilongos aqui, dia e noite, e eu não conseguia dormir. Eu não gostei disso, foi feio. Por causa disso foi difícil me adaptar, eles não me deixavam dormir. No meu corpo inteiro começaram a aparecer bolinhas vermelhas e eu me assustei. Pensei: “Em que país cheguei?”. Até que me recomendaram um mosquiteiro, aí eu dormi em paz. Fui lidando também com os problemas da minha linguagem no dia a dia e fui aprendendo português com as falas dos amigos e dos vizinhos. Fui aprendendo e depois me acostumei. Depois de um ano aqui, eu voltei para o Peru e já não me acostumei lá. Na minha cidade tem muita poeira, você quase não vê nada. Aqui em São Paulo isso acontece só quando chove. Eu já estava acostumando com o clima daqui, então voltei em duas semanas. Eu vi muita facilidade nos estudos aqui, pois você pode estudar de graça com o apoio do governo. Lá se você faz vestibular e não consegue, já era pra você. Aqui, pelo menos, tem cursos no SENAC, SENAI e, além disso, tem o PRONATEC. Lá não tem isso. Você só estuda de graça se passar no vestibular. Lá tudo é cobrado, um curso de dança, por exemplo, você tem que pagar. Aqui tem mais projetos sociais. Agora isso tá mudando um pouco lá. Acho que estão copiando daqui! Uma dificuldade que eu percebi aqui, foram os meios de transporte. Foi minha dificuldade. Quando comecei a trabalhar fora, para me deslocar da minha casa para o meu trabalho, ou do meu trabalho para minha casa, era muito difícil. O ônibus demorava vinte minutos para passar. No final de semana era ainda pior, a gente ficava esperando meia hora, uma hora. Em Lima, o meio de transporte é rápido, você chega no seu ponto e já tem três ônibus

Page 28: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

28 Sí, yo puedo!

passando e você só precisa decidir qual pegar. Eu decidia pegar o ônibus mais bonito. Outra dificuldade foi a discriminação, que acontece em todo o mundo, não só nesse Brasil. Eu fui mais um que sofreu com isso. Meu chefe me discriminava e uma vez eu respondi para ele. Dizem que desde moleque, sempre quando eu falava, as minhas falas saiam como uma faca. Quando discuti com meu chefe, ele se sentiu mal ao invés de eu me sentir mal. Só falei umas cinco palavras e derrubei ele. Nunca mais ele levantou a voz ou quis me dominar. De modo geral, minhas maiores dificuldades foram o trânsito, o trabalho, o que falei do meu chefe, a discriminação e os mosquitos também, que no começo eu não sabia como combatê-los, agora sei! Têm muitas ferramentas para combater. Lá no Peru, eu tinha um artesanato feito de barro que minha mãe fez pra mim. Era a imagem de um boi. Era uma recordação de onde eu nasci. É a única cidade do mundo que tem esse tipo de artesanato, de toritos. Eu carregava esse objeto para todo lado. Na escola, eu fazia disciplinas de trabalhos manuais e tínhamos que colocar nossos trabalhos em exposição. Ganhei duas vezes a exposição, levando toritos. Eu levava o torito pra cá, pra lá, para a escola e para o trabalho. Quando criança, eu fazia artesanato e ajudava minha mãe. Eu gostava de pintar e adornar. Colocávamos umas pedras que pareciam diamantes, depois colocávamos no forno e ele ficava brilhando. Quando decidi vir para cá, meu padrasto perguntou se eu não ia levá-lo comigo, dizendo que meu companheiro iria chorar. Preferi não trazê-lo, mas depois pensei que devia ter trazido. Eu quis deixar lá e deixei. Ele falava que eu podia vendê-lo aqui. Quando estava arrumando minha mala, também pensei em trazer meu perfume, que eu gostava muito. Aqui acho que não tinha, encontrei depois, só que é caro, lá é barato. É fabricado lá. Minha tia disse que eu não devia levá-lo, pois ia ficar no aeroporto. Arrumei minhas malas e fiquei pensando que não sabia que tipo de perfume vendia no Brasil. A minha ex-namorada me acompanhou até o aeroporto e me deu um presente. Eu abri e era o perfume. O pacote completo da marca, a melhor marca de perfume de lá. Só que eu não sabia como dizer que não podia levar. Aí comecei a passar em mim para ficar com o cheiro no meu corpo. Ela perguntou porque eu estava fazendo aquilo e disse que sentia muito, mas o presente ia ficar com ela. Ela disse que ia jogar no lixo, mas não sei se era verdade. O cheiro do perfume era bom, eu gosto dos amadeirados.

Page 29: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

29Histórias que se cruzam na kantuta

Depois de um ano e meio voltei, fui com uma emoção, cheguei lá e não tinha nada no vidro de perfume, não sei quem usou. Me disseram que tinha evaporado. A única solução foi a resignação. Para finalizar, gosto de um poema, intitulado “Recomeçar”, do brasileiro Paulo Roberto Gaefke, que diz assim:

“Não importa onde você parou,em que momento da vida você cansou,o que importa é que sempre é possível

e necessário ‘Recomeçar’.

Recomeçar é dar uma novachance a si mesmo.

É renovar as esperanças na vidae o mais importante:

acreditar em você de novo.”

Page 30: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

30 Sí, yo puedo!

uma ouTra imaGem do BrasiLFranz Mijail Sanabria Galván

Sou Franz Mijail Sanabria Galván, tenho vinte e quatro anos e sou boliviano. Nasci na cidade de Potosí na Bolívia e me criei sozinho. Não conheci meu pai e quando eu tinha um ano, minha mãe foi para a Argentina trabalhar. Meus avós me criaram. Fui morando de cidade em cidade. Mudei de Potosí para Sucre e de Sucre para Cochabamba. Tudo por causa de estudo. Fiz Ensino Fundamental em Sucre, depois Ensino Médio em Cochabamba e voltei a Sucre para estudar na universidade. Estou em São Paulo há três anos. Potosí é uma cidade fria, porque fica na Cordilheira dos Andes, faz fronteira com parte do Chile. O clima é frio e por ser um clima frio as pessoas também são assim. Não é tão amigável, é mais fechada. Saímos dessa cidade em busca de um melhor clima e de um centro econômico, que naquele momento estava se desenvolvendo em Sucre. Isso foi o que contaram meus avós, pois saí de lá quando tinha dois anos. Em Sucre, fiquei até meus treze anos. Sucre é uma

Page 31: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

31Histórias que se cruzam na kantuta

cidade pequena, onde você chega a conhecer toda a cidade por ser muito pequena. O clima é temperado. Passei minha infância nos parques de lá com meus primos. Em Cochabamba houve uma mudança, pois passei a viver com meu tio. Meus avós ficaram em Sucre. Eu estava sozinho lá e penso que foi uma etapa da minha vida em que tomei consciência de mim como pessoa. Fui me tornando mais independente. Foi a etapa que mais desfrutei, pois eu auto me governava. Mas também tinha minhas restrições. Foi a melhor época! Estudei em uma universidade pública em Sucre e quando terminei, estudei Inglês por dois anos, depois vim pra cá. Na infância, eu era muito enfermito. Durante o inverno sempre adoecia, pois tinha doenças pulmonares, gripe e tosse. Isso me ajudou. Se você está doente, você valoriza mais sua saúde. Enquanto eu estava doente, meu tio, que esteve na Rússia, me emprestava alguns livros e me fazia ler. Eu não tinha nenhum interesse, lia por ler. Depois ele me perguntava o que eu tinha conseguido entender dos textos e me dizia que eu tinha que analisar as personagens, pois cada personagem tinha uma vida própria, que ia se desenvolvendo na obra. O conteúdo para um criança era muito complexo. Em todos os livros que li, sempre vi refletida uma parte de mim nas personagens. O modo como viviam, agiam, pensavam. Quando voltou da Rússia, meu tio nos trouxe outra perspectiva da vida. E isso marcou a todos. Ele trouxe a possibilidade de observar a vida de outra forma. Durante a época universitária, trabalhei com meu professor. Ele era engenheiro elétrico e eu estagiava na oficina dele, arrumando motores. Trabalhei, aproximadamente, dois anos com ele. Eu fiz graduação em mecânica industrial, pois meu avô é mecânico, então quis seguir seus passos. Terminei o curso, mas não tive tempo de trabalhar nessa área. Mas penso que o tempo de estágio com meu professor foi suficiente. Foi nessa época que se apresentou a oportunidade de vir aqui. Tinha assistido um documentário, que não era sobre o Brasil, mas dizia que quanto mais experiências você tiver em sua vida, mais conhecimento você vai adquirir. Assim, quando se apresentou a oportunidade de vir, eu a tomei, pois quanto mais experiências novas eu tiver, mais conhecimento. Esse, então, foi o motivo, não tanto o futuro econômico, porque não dou tanta importância ao dinheiro. Falei do documentário para meu tio e ele disse que se eu quisesse podia vir ficar seis meses ou um ano com ele, só para conhecer essa outra realidade que era o Brasil. Eu respondi: “Tá certo!”.

Page 32: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

32 Sí, yo puedo!

Na Bolívia, eu assisti o filme Cidade de Deus. Por causa desse filme, eu tinha criado uma outra imagem do Brasil, achei que se você chegasse aqui, você morria. Outro que assisti foi o de um moleque que sequestrava um ônibus, Parada 184. Eu conheci a Projeto Sí, Yo Puedo! quando fui perguntar sobre uma documentação. Queria regularizar meu diploma para trabalhar na área que me formei. Cheguei a averiguar no consulado e tinha que fazer muitos trâmites, muito burocráticos. Achei melhor estudar de novo. Sempre mantenho contato com meus avós, já voltei três vezes à Bolivia desde que cheguei aqui. Quando volto, lá parece muito diferente. A relação com meus parentes não mudou. A parte afetiva também não mudou nada. Mas as cidades mudaram muito. Sinto falta da Bolívia, pois lá tenho mais liberdade, talvez por ser meu país e eu poder ir a qualquer lugar. Lá você pode entrar nas diversas comunidades. Mas aqui não. Quando cheguei aqui a barreira não foi o idioma. Eu me surpreendi porque pensei que aqui as pessoas entendiam espanhol, pois como o Brasil está rodeado de países que falam espanhol, era como obrigação, não? O Brasil fica isolado do resto. Todavia, fui me adaptando e foi mais fácil. A leitura de textos e livros me ajudou bastante. Eu sabia que ia ter dificuldade pela língua, porque era diferente. Antes de chegar aqui a imagem era outra. Achava que eu ia ter dificuldade com o idioma e passar por uma possível discriminação das pessoas, mas quando cheguei aqui fui tudo ao contrário. A gente brasileira é muito acolhedora. O português é similar ao espanhol, então foi fácil entender a língua. Antes de vir pra cá, meus amigos engenheiros também haviam dito que por causa do présal tinha muita oportunidade na minha área. Minha família é uma família pequena. Meu avô tem sete filhos. Eu tenho seis tios. Também tenho uma irmã que já terminou medicina. Eu vivi com meus avós porque naquela época meus tios eram adultos, estavam estudando ou morando em outras cidades e meus avós estavam sozinhos, então fiquei com eles. Ao criarme com meus avós, consegui aprender o dialeto quechua. Aprendi muitas coisas lá com meus avós. Hoje trabalho com costura. Trabalho para meu tio. É gracioso lembrar que, durante o colégio, eu tinha um círculo de amigos que gostava de rock. Eles pediam que meu tio, que era alfaiate, fizesse calças pretas ou deixasse as calças pretas mais justas. Meu tio não queria fazer isso e foi aí que comecei a costurar. Costurava as calças

Page 33: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

33Histórias que se cruzam na kantuta

dos meus amigos. E também ganhava algum dinheiro. Trabalhei com meu avô também, na área de mecânica, sempre o ajudei. Quando decidi vir pra cá, estava em Sucre, a cidade onde atualmente minha família mora. Eu já tinha falado com eles dois meses antes da minha viagem. Estávamos aguardando a data da viagem. Na última semana, consegui me despedir dos amigos e organizar meus papéis. Eu não estava trabalhando naquele momento. Todo mundo concordou, só que minha mãe falou que eu teria que trabalhar e ganhar experiência na minha área lá na Bolívia antes de vir para o Brasil. Como eu já tinha falado com meu tio, que morava aqui, foi mais fácil convencêla de que eu iria estudar aqui. Eu gostei da gente daqui, muito alegre, sempre trata de bater papo, são amigáveis. Meus planos agora são passar no vestibular da USP e fazer a faculdade de Letras. Me falaram que na USP você tem a opção de estudar inglês, francês e russo. Posso trabalhar como intérprete ou tradutor. E posso conseguir emprego numa editora. Também quero realizar outros projetos que tenho com meus amigos na área de confecção de roupas. Eu e um grupo de amigos estamos pensando em montar uma loja online de venda de roupas. Cada amigo terá uma função, por exemplo, de cortador, desenhador, estilista, piloteiro e costureiro. Antes de vir, preenchi no formulário que eu viria para estudar. Se você vem como turista tem que comprar a passagem de ida e de volta. Em outra modalidade só precisa da passagem de ida. Quando cheguei, tirei todos os documentos aqui. Foi fácil. Eu me surpreendi! Porque a organização aqui quanto a entrega de documentação é certinha, você marca a data e eles entregam. É bastante diferente lá da Bolívia. É complicado tirar a documentação lá. Quando tirei a documentação não tinha conhecimento das instituições que auxiliam os imigrantes, mas foi mais fácil pra mim, porque meu tio já tinha toda a documentação e me orientou. Eu me considero privilegiado, porque é muito mais fácil morar com uma pessoa que você já conhece e que já está aqui há mais tempo. Eu vim de ônibus. A viagem foi legal, durante o trajeto eu tive a oportunidade, numa parada, de ter um primeiro contato com um brasileiro. Foi minha primeira experiência com a Língua Portuguesa. Os ônibus que partem de lá chegam na estação Barra Funda. Essa estação é muito lotada e quando cheguei me surpreendi, porque tinha muita, muita gente. Quando cheguei, meu tio estava me aguardando lá. Ele comprou os bilhetes do metrô e foi a primeira vez que eu passei por uma catraca e andei de metrô. Como eu tinha

Page 34: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

34 Sí, yo puedo!

medo de me perder em São Paulo, passei a tomar como ponto de referência as estações de metrô, pois uma das primeira coisas que aprendi foi me locomover pelas linhas do metrô. Meu tio me falou de um centro, onde tinham eventos culturais, com ingresso gratuito ou que custava um real, comecei a ir às apresentações de música, de teatro e passei a frequentar a Biblioteca São Paulo. Aqui você tem muitas oportunidades, é só aproveitar! Conhecer gente e fazer contatos ajuda muito. Nesses três anos, eu consegui conhecer muita gente, aprender a língua e também conhecer gente não só do Brasil, mas de outros países. Eu cheguei a trabalhar como voluntário na Copa de 2014 e conheci muita gente! Trabalhei no credenciamento. Já fiz inscrição para trabalhar no mundial da Rússia. No momento de fazer a mala, minha mãe não estava e eu enchi a mala: uma metade com livros e a outra metade com roupas. No momento de pegar a mala, minha mãe perguntou o que eu estava levando, porque estava muito pesada, e eu não disse nada pra ela, falei que eram só roupas. Quando chegamos na fronteira, ela revisou as malas e encontrou os livros. Ela quase enlouqueceu, perguntando porque eu estava trazendo tantos livros. Mas eu precisava trazer. Eu costumo ler de vez em quando, porque cada livro tem seu significado. Decidi trazer livros dos quais eu gosto muito, por exemplo, eu trouxe Dostoievski, pois gosto da literatura russa. Um autor que admiro muito é Jorge Luis Borges. Outro autor é Frederico Garcia Lorca, que morreu durante a guerra civil espanhola, foi assassinado. Ele era amigo de Salvador Dali. Trouxe também um livro de Albert Einstein, que não é sobre o conteúdo matemático, mas sobre a filosofia da teoria da relatividade. Outro autor que é um gênio é Antón Chéjov. Tenho também um livro de Nietzsche, Humano, demasiado humano, que na verdade era de minha mãe. Ela lia bastante quando morava na Argentina. A maioria dos livros que tenho tem uma numeração, isso significa que pertenceram a uma biblioteca. Lá em Sucre tinha uma biblioteca financiada por uma Ong espanhola, mas a biblioteca quebrou e para pagar as contas de luz e água, eles tiveram que vender o acervo. E a gente colaborou! Consegui comprar alguns livros. Foi dessa forma que obtive a maioria dos livros. Deixei muitos livros lá, mas os que eu trouxe são dos autores que eu mais admiro. Muitos desses livros, cheguei a compartilhar com outras pessoas, não ficaram só comigo. Eu difundi entre meus primos,

Page 35: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

35Histórias que se cruzam na kantuta

emprestei para eles. Alguns foram devolvidos, outros não. Emprestei para amigos também. Esses livros me lembram meus amigos, familiares e pessoas próximas que conheci. As relações que tive antes de vir para cá.

Page 36: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

36 Sí, yo puedo!

aQui É Tudo muiTo LoNGe!Lucia Ireyo Raimundo

Meu nome é Lucia Ireyo Raimundo, tenho cinquenta e cinco anos e sou de Bolívia. Hoje estou trabalhando de babá e estou aprendendo a fazer outras coisas, como pintar, costurar, tudo! Minha história é um pouquinho triste. Quando eu era pequena, minha mãe faleceu e as três irmãs ficaram sem mãe. Somos três irmãs. Assim, aprendi na vida, sofri tanto, fui crescendo, crescendo. Estudei um pouco e parei. Meu pai não nos fazia estudar. Assim fui crescendo e apareceu um trabalho com uma senhora que é minha conhecida, fiz contrato com ela e vim aqui ao Brasil trabalhar, para cuidar de suas duas filhas. Estou há quatro anos aqui. Tive quatro filhos, que vivem na Bolívia. Deixei meus filhos e vim sozinha pra cá. Uma esteve doente e faleceu. Ela tinha 31 anos, sua doença, era leucemia. Um vírus contagioso lhe subiu ao cérebro e ela não resistiu. Isso foi em 2014. Havia ido para a Bolívia e outra vez voltei ao Brasil para seguir trabalhando, com o coração

Page 37: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

37Histórias que se cruzam na kantuta

partido, longe de minha família. Aqui tenho amizades que me apoiam bastante. Meu filho mais velho quer que eu volte à Bolívia para que a família fique toda junta. Vamos ver se sigo aqui ou vou regressar. Só Deus sabe o que vai passar. Sei que quero continuar trabalhando. Estou um pouco triste, um pouco alegre, mas estou feliz. Fico triste quando penso em minha filha que faleceu e já não está presente. E alegre quando estou com minhas amizades. Quando nos reunimos e estamos em grupo fico um pouco alegre e me esqueço de tudo. Mas vai passar, porque isso passa, embora não se possa esquecer tão rápido. Lá na Bolívia, eu trabalhava muito, tinha um negócio e vendia cachorro-quente, frango, batata, arroz e salada. Vendia de tarde até uma da manhã. Depois, me levantava cedo para novamente ir às compras. Eu gosto de cozinhar. O povo que me conhecia lá, me pedia para que eu preparasse almoço e janta. E assim vivi! Trabalhei bastante, sem descansar. Aqui já descanso, quase não trabalho muito. Descanso sábado e domingo. E durante a semana trabalho normal, cuidando das meninas. Já trabalhei muito para ajudar os meus filhos, pagar água, comida e luz. Quando separei do pai deles, ele não ajudou. Eu morava em Santa Cruz, mas nasci em outro lugar, em Yacuiba. Como meu pai gostava de trabalhar indo de um lugar a outro, saímos de nossa casa e fomos para outra cidade, onde faleceu minha mãe, no parto. Eu tinha cinco anos. Fomos para Santa Cruz e meu pai permaneceu aí, trabalhando. Antigamente, você não podia estar conversando com um menino fora se não levava palmada, apanhava. Minha irmã teve que casar aos treze anos, pois estava conversando com um menino de dezoito anos. Mas ela não dormiu com ele, porque era muito menina. A sogra da minha irmã cuidou dela e, depois, de nós, pois meu pai foi embora com outra mulher. Crescíamos e já não havia como comprar um livro ou um lápis para mim e para minha irmã, porque meu pai não aparecia e minha irmã não trabalhava. Não terminei a escola. Ficamos sem estudar quando eu tinha oito anos. Tenho uma tia, por parte de mãe, que nos levou para morar com ela. Passamos dois anos com minha tia e ela morreu, enfarto. E assim fui crescendo, comecei a trabalhar, me casei, não me casei, me juntei. Tampouco fui feliz com esse homem, fracassei em meu matrimônio. Acabou tudo porque ele bebia muito. Depois de muito tempo voltei com ele e ia casar, mas ele não mudou e eu já

Page 38: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

38 Sí, yo puedo!

não estava acostumada, então separei mesmo. Fui amadurecendo, criando meus filhos e trabalhando. Meus filhos e meus netos são minha vida! Gostaria de voltar a casar, necessito de um companheiro para conversar. Meus filhos não querem que eu case, que eu namore, que nada! Porque eles têm medo que o homem me bata ou que eu sofra. Um brasileiro, quando eu morava em Curitiba, já tentou casar comigo, mas eu não quis, pois tinha que trabalhar aqui. Toda a família dele era muito boa comigo, mas tenho que pensar bem para ter uma relação com alguém. Em todo lugar que íamos, havia um brasileiro enamorado por mim. Todavia, eu não dava chance. Por fim, mudamos para São Paulo e aqui já não tenho namorados, só admiradores. Quando cheguei da Bolívia fui direto para Curitiba, morei cinco meses lá, depois mudamos para Cuiabá. Sempre quis vir ao Brasil para trabalhar e gostei de ter vindo, porque sempre pensava: “Eu quero ir ao Brasil!”. Porém, quando cheguei, queria ir embora, pois eu não aguentava e chorava, porque já não estava acostumada a cuidar de crianças. Eu chorava e dizia “Deus meu, o que tanto fiz para vir parar aqui?”. Todavia, vim orientada por uma ministra, membro da Igreja Messiânica, que me disse que eu deveria ficar no Brasil e juntar dinheiro para garantir meu futuro. “Aguente o que venha, mesmo que chore sangue, fique”, ela me dizia. Quando decidi vir para o Brasil, minha vida lá na Bolívia estava ruim. Estava sem dinheiro e meu negócio não dava retorno. Foi quando me falaram desse trabalho, aí eu vim. Choraram tanto por mim! E eu também chorei. Eu conhecia a tia da minha chefe, que me incentivou a vir para o Brasil acompanhar sua sobrinha. Eu vinha só por um tempo, mas eles gostaram do meu trabalho e eu sou esperta para cozinhar, então fiquei. Teve uma época que fui passar as férias na Bolívia e não voltei, fiquei lá por onze meses, trabalhando para mim, pois faço de tudo relacionado a vender. Tinha minha família também. Fiquei lá, pois a mãe da minha chefe dizia que eu só ganhava dinheiro, sem fazer nada, escutei e fiquei brava. Gosto que me falem de frente. A minha chefe trouxe outra pessoa da Bolívia, mas essa pessoa brigava muito com as meninas, pelo que me disseram. Quando liguei para uma das meninas para desejar feliz aniversário, minha chefe perguntou se eu não queria voltar. E eu voltei, mas falei que ia embora outra vez, que só ficaria três meses. Mas já estava tirando documento, então fiquei.

Page 39: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

39Histórias que se cruzam na kantuta

Não entendia muito bem o Português, falava, mas não entendia. Falava tudo errado. Fui sozinha tirar meus documentos. Fui com medo, porque eles não me entendiam. Me disseram que eu devia ir à Lapa. E eu falava para eles: “Por que você não fala espanhol? Quase não entendo nada, explica devagar para mim!”. Tinha outro boliviano lá e foi ele quem explicou onde eu tinha que ir. Não entendia nada para tirar meu RNE. Não conhecia nada, era outro idioma e é muito difícil quando você entra e não sabe nada. Aprendi assistindo tv, escutando rádio e fui aprendendo um pouquinho. Quando saía na rua me dava medo, tinha medo de que os outros falassem comigo, porque eu não entendia nada e tão pouco eu podia perguntar algo. Eu ficava perdida, não sabia como caminhar. Não sabia falar, nem entendia. Agora entendo, porque fiz um curso. Na Bolívia, meu sonho sempre foi o Brasil. Eu tentei vir três vezes com o grupo da Igreja Messiânica, mas meu marido, com quem casei depois do meu primeiro marido, não queria. Quando vim, não acreditei que estava no Brasil. Vim de ônibus. Gosto de viajar de ônibus para desfrutar a paisagem. Eu não acreditava que era eu quem estava entrando. Graças à Deus conheci várias partes do Brasil. Para mim fui um sonho. Com a minha chefe fui para o Rio de Janeiro e conheci o mar, fomos comer peixe e camarão. Nunca em minha vida tinha visto o mar, só nos filmes. Que lindo é quando o sol adentra no mar! Foi o mar mais grande que conheci. Daqui, eu gostei muito do suco de goiaba, nunca tinha tomado. Há coisas aqui que não aproveitamos lá. Há sucos de todos os tipos aqui. Lá só chupamos as frutas e não usamos para outras coisas. O suco de acerola também é bom! Quase ninguém lá conhecia acerola. Não sabiam como preparar o suco e tão pouco sabiam o que era acerola. Aqui tem muitos tipos de sopa, como de folhas verdes. Aqui é diferente! Eu gostei das coisas aqui. É fácil de comer as coisas, porque eu gosto de comer. Aqui é tudo muito longe, muito cansativo. Para caminhar tem que sair cedo. Só isso, mas você acostuma. Antes não costumava caminhar muito. Onde eu morava, eu caminhava meia quadra até onde o ônibus passava. Não estava acostumada a caminhar tanto. Lá nunca tinha andado de elevador e escada rolante, andei aqui. Santa Cruz antes era mato, mas agora está crescendo bastante. As pessoas do interior estão indo para lá. Fui de Bolívia para Curitiba, moramos em Juruena, no Mato Grosso, muito linda, muito bonita! Eu gostei. Perto de Curitiba fomos a um lugar que

Page 40: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

40 Sí, yo puedo!

fazia muito frio, então mudamos para Campo Grande e ficamos lá quase um ano. De Campo Grande viemos para São Paulo e não gostava de São Paulo, porque era tudo difícil, caminhávamos muito. Eu falo para meu filho que a Bolívia é um paraíso! É tudo perto, não se caminha muito. Sobre os brasileiros, eles nunca me incomodaram, onde eu vou sempre sou muito bem recebida, por mulheres, homens e crianças. Nunca tive problemas por ser boliviana, nunca me discriminaram. Aqui, e em todas as partes que morei, fui bem recebida. Da Bolívia, tenho guardada uma caixinha cheia de bijuterias. Essa caixinha ganhei do meu filho quando fui de férias ao meu país, havia quatro brincos dentro, mas nela guardo outras bijuterias que recebi da gente de lá. Esse meu filho já veio aqui para o Brasil. Eu dei a viagem de presente de aniversário para ele. Meu filho me deu esses brincos em um dia particular. Foi a primeira vez que eu recebi um presente assim dele, acho que quis me dar por sentir carinho. Fiquei muito contente, porque esse menino é pouco carinhoso, não é muito apegado a mim. Ele é sério, tem o jeito dele. Sempre foi assim. Digo que ele é chato, não é atencioso com as pessoas, nem gentil. Só uso os brincos em casa, não para sair, porque os fechos dos brincos caem muito na rua. E não gosto de perder nada que me dão de presente, sou muito cuidadosa! Quando uso eles, lembro do meu filho. Faz tempo que eu não coloco estes brincos, estavam bem guardados. Tudo que me regalam eu guardo com carinho. Quando vou à Bolívia, já não acostumo lá, como outros alimentos e sinto dor de estômago. Lá o tempero é muito forte, tem muito azeite e sal. Mesmo assim, do que sinto mais falta é da comida de lá. Sopa de frango caipira com mandioca, acompanhada de um arroz especial, me encanta comer. Aqui galinha caipira fica longe. Meus filhos estão com saudade de mim porque eu cozinho. Querem a comida que eu faço. Eles falam: “mãe você já não vai trabalhar!”. Para mim meus filhos não são adultos. Dizem que eu não deixo meus filhos amadurecerem. Eu tenho medo de eles virem morar aqui, pois outro dia mataram um boliviano. Assaltaram ele, queriam dinheiro e como não havia dinheiro, então o mataram. Tinha vinte equatro anos e fazia três meses que estava aqui. Lá é violento também. Eu tenho uma vizinha lá na Bolívia, que mataram seu filho, que vendia maconha. Lá é perigoso também. Só que lá matam e levam longe. Igual aqui! Matam e levam a outro lugar. Assim é.

Page 41: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

41Histórias que se cruzam na kantuta

LiVre aTÉ de si mesmoMiguel Ángel Saavedra Aguilar

Meu nome é Miguel Ángel Saavedra Aguilar e só tenho trinta e seis anos. Sou boliviano, e sim, sei costurar. Conheço o Brasil faz onze anos. Falo que conheço, porque não morei os dez anos contínuos aqui, pois voltei para a Bolívia, morei dois anos lá, depois voltei para o Brasil por um ano, voltei para a Bolívia de novo e assim foi. Nasci em La Paz, mas nem sempre vivi em La Paz. Saí de casa aos doze anos e fui morar em Beni, trabalhei como ajudante de caminhão e comecei a viajar, por isso conheço toda a Bolívia. A primeira vez que vim ao Brasil, tinha vinte e quatro anos. E penso que vir pra cá, talvez, era minha última opção. E assim era para muitos de meus amigos. Eu venho de uma família muito pobre, mas não foi esse o motivo que me fez vir para o Brasil, pois quando eu decidi vir pra cá estava num momento muito crítico emocionalmente. Lá eu sobrevivia, mas a parte emocional foi decisiva. Foi uma série de acontecimentos que me trouxe para o Brasil. Eu lembro que minha situação econômica estava tão ruim,

Page 42: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

42 Sí, yo puedo!

que eu vim com uma muda de roupa. Tinha colocado na mochila um par de sapatos, dois pares de meia, minha carteirinha de jornalista, duas camisas, uma calça, a passagem de Santa Cruz até Ciudad del Este e cinco bolivianos no bolso. Era essa minha situação. Também trouxe comigo um artigo que me deram para ler, intitulado “Masculinidades en la cultura de la globalización”. É um artigo sobre masculinidades. Era um texto que falava sobre começar a ver a violência a partir dos homens. Enxergar a violência como algo dos homens e não exclusivo das mulheres. Foi um dos primeiros documentos que recebi quando comecei a trabalhar com direitos humanos, quem me deu isso foi a pessoa que me ensinou praticamente a ler. Eu sabia ler, mas daquele jeito onde você não entende nada, só repete. Grande parte do caminho que sigo hoje se deve a essa pessoa, que é um amigo. Ele fez o maior questionamento que já recebi, perguntou O QUE EU QUERIA SER NA VIDA. Disse que eu queria ser locutor de uma rádio, só de música, e ele questionou POR QUE EU NÃO QUERIA SER UM LOCUTOR LÍDER DE OPINIÃO. Esse amigo é psicólogo, agora. Foi quem me deu a primeira chance de trabalhar em outros espaços, onde muito além de utilizar as mãos, também utilizavam “o cérebro”. Lembro que eu trabalhava de Disk Jockey numa discoteca e esse meu amigo me questionava e dizia: “ATÉ QUANDO VOCÊ VAI GANHAR SEU DINHEIRO COM SUA GARGANTA? NÃO ACHA QUE É HORA DE GANHAR DINHEIRO COM SEU CÉREBRO?”. Trabalhei com ele por muito tempo. Eu era seu secretário. Ele tinha secretário, não secretária. Então, essas folhas significam para mim, o começo de um trabalho, o começo de uma vida. Quando tenho algum problema, mando email pra ele ou ligo pelo chat e trocamos opinião. Vim lendo o artigo no caminho para o Brasil para me lembrar de onde eu saí, pois esse texto é uma autorreflexão, é um questionamento sobre o que é ser homem. Quando eu vim para o Brasil, eu não esperava encontrar nada, só queria fugir do meu país. Mas tinha uma visão do Brasil, achei que fosse um “Estados Unidos”, que tivesse só prédios e mulher pelada na rua. Quando eu estava lá, víamos o carnaval do Brasil e lá, pelo menos onde eu morava, éramos muito conservadores, acho que porque lá é frio. Vim pelo Paraguai e a primeira coisa que vi foi favela, aí me assustei e questionei: “Cadê o Brasil que me contaram?”. Quando cheguei aqui, tinham poucos bolivianos. Já tinha no Brás, onde sempre teve. E a festa dos bolivianos era numa rua pequena, que era a Rua do Glicério. No ano seguinte, começou a crise na Argentina e muita gente boliviana que morava lá veio para o Brasil. Com mais pessoas, vieram as rádios comunitárias, as festas maiores e a mão de obra ficou mais barata.

Page 43: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

43Histórias que se cruzam na kantuta

Foi nesse momento que pude perceber que tinham muitas coisas erradas, por exemplo, os lugares que “ajudavam” os migrantes começaram a cobrar, lembro muito bem de um anúncio que tinha: “APORTE VOLUNTÁRIO POR 20 REAIS”. Se você coloca um preço, não é voluntário! Antes de vir, eu sabia que ia trabalhar doze horas por dia, comer e dormir no mesmo lugar, mas em algum momento da viagem comecei a sonhar, pensei: “Vou trabalhar, conhecer outras pessoas, vou crescer lá!”. Mas, quando estava aqui há uma semana, já queria voltar para meu país, pois nunca imaginei que era tão ruim trabalhar doze horas por dia, sem sair. É quase uma prisão. Não é nem um regime semiaberto, porque você não sai de lá. Se a minha situação emocional estava difícil, estando fechado, as coisas pioraram. E o pior é que naquela época você não ganhava nada. Era trabalhar para pagar, porque eu não sabia costurar e, mesmo que eu tivesse meu irmão aqui para me ensinar, não é tão simples assim, demora um bom tempo para você aprender a costurar. Vir para este país foi minha última chance, mas no primeiro ano que eu estava aqui, eu odiei o Brasil, eu amaldiçoei tanto o Brasil! Porque tive que trabalhar muitas horas por dia para ganhar pouco. Eu não gostei mesmo, e pensei: “Não! Eu vou embora!”. Voltei para meu país e de novo tive uma recaída emocional, então tive que tomar uma decisão, que foi retornar ao Brasil. Pensei que se costurar ia me tirar de onde eu estava, iria costurar. Eu ganhava um pouco mais, as pessoas me valorizavam mais e já comecei a interagir com outras pessoas. As pessoas me chamavam para trabalhar com elas. Percebi que meu trabalho estava melhorando. Aí comecei a estudar, comecei a procurar outras coisas. No Brasil, tentei me integrar na comunidade dos migrantes, tentei entrar no círculo dos bolivianos, só que nunca consegui me integrar por completo, talvez por minha rebeldia, sou uma pessoa muito rebelde. Então, voltei para meu país por mais dois anos. Aqui tinha feito um curso de web designer, não sabia nada, mas era mais valorizado na Bolívia, me falavam: “Nossa! No Brasil? Vem trabalhar comigo!”. Só pelo fato de ter feito curso no Brasil. “Você fala Português?”, me perguntavam. Eu não falava nada, mas respondia: “Falo, falo!”. Penso que se hoje eu volto pra Bolívia, com certeza tenho um trabalho lá. Eu penso que conheço o quão difícil é a área da costura. Sei que a costura não é opção como muitas pessoas acham. Na verdade, você é empurrado para trabalhar nela. Hoje, por exemplo, estão vindo os haitianos, todo mundo fala deles, mas os bolivianos também estão chegando e em grande quantidade. Por que ninguém fala? Por que ninguém fala dos jovens que estão vindo? Eles também estão trabalhando no mesmo regime análogo à escravidão. O boliviano é visto como trabalhador escravo e o

Page 44: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

44 Sí, yo puedo!

haitiano é trabalhador por direito. É muito complicado quando as pessoas, que dizem que representam os migrantes, simplesmente os utilizam como bandeira política, pois assim só fazem medidas paliativas, pois querem ficar bem com seus amigos. De tudo acontece nessas relações utilitárias. Aqui não encontrei nenhuma facilidade quando cheguei pela primeira vez, pois não tinha documentos. Minha ideia foi sair na rua, achando que ia encontrar um serviço, achando que eu ia fazer alguma coisa, mas não, ninguém te abre a porta. Caminhei, caminhei, caminhei. Bati portas, perguntei como alugava uma casa e me disseram que precisava ter documento e conta no banco. Como tinha a carteirinha de jornalista da Bolívia, fui procurar trabalho como jornalista, mas a carteirinha não era válida aqui. Hoje é mais simples, aspas, porque você chega e tem mais facilidade de obter os documentos. Quando precisei renovar a documentação no Brasil, pedi licença de um mês no trabalho, lá na Bolívia, para vir aqui e aproveitei para fazer umas entrevistas para uma matéria sobre estupros e abusos nas oficinas de costura. Nessa época, fiquei sabendo que tinha prostituição na Rua Coimbra! Só que agendaram meus documentos para seis meses depois. Pensei: “Fico ou volto?”. Liguei e disse no meu trabalho que ia ficar aqui. De volta ao Brasil, fui em um instituto de informática, do nada, e falei: “Quero dar aula!”. Pediram meu currículo, eu entreguei e me deram a oportunidade. Tive que dar aula, em português, para brasileiros e topei. Nas primeiras três turmas que peguei para dar informática, eles pagaram para me ensinar português, porque eu perguntava mais pra eles, do que eles perguntavam pra mim. Nisso, percebi a necessidade de se falar português, porque conseguia até falar, mas não me comunicar. Agora consigo entender quando as pessoas fazem piadas e brincam, naquela época não conseguia entender. Agora sou consultor, dou consultoria para microempreendedores, no campo das relações humanas, pois tenho conhecimentos em comunicação e experiência na área, que adquiri quando trabalhei com um dos melhores psicólogos da Bolívia. Também fiz cursos aqui de PNL, Coaching Sistémico e Design Thinking, o que me deu mais ferramentas ainda. Quando há problemas com produtividade, então eles me ligam e eu vou lá tentar resolver problemas. Eu cobro por solucionar problemas. Não dou conselhos, dou consultoria. Uma das coisas que eu mais gosto é me comunicar com as pessoas e perguntar, vivo fazendo isso e cobro por fazer isso. É bem legal! Entrei no mercado dos microempreendedores quando fiz um curso de empreendedorismo no SEBRAE, que te dá muitas ferramentas, mas para quem está começando não se aplica, porque a pessoa precisa de outros conhecimentos e disciplinas, uma vez que

Page 45: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

45Histórias que se cruzam na kantuta

entendo que o início para um microempreendedor, na maioria das vezes, é a informalidade. É nesse sentido que vejo que não se aplica. Tenho um programa de rádio, em espanhol, que é uma cópia de um programa de rádio que tínhamos lá na Bolívia, onde falávamos de direitos humanos. Eu sempre trabalhei com direitos humanos, desde 1999. É uma área que me identifico muito. E quando vim para o Brasil, me identifiquei ainda mais por causa da discriminação no acesso ao trabalho e também pela desigualdade social que tem aqui. No início, o programa era uma cópia, um programa chato que todo mundo ouvia, mas ninguém escutava. Então, fizemos um contato via skype com um amigo que mora na Argentina e do nada virou outro formato. Agora é um programa mais dinâmico, falo de tudo, desde educação até folclore. O foco é que as pessoas discutam seus problemas e em primeira pessoa. Penso que é hora de acabar com o discurso perfeito, com o politicamente correto. Mesmo que a pessoa não seja formada, não tenha um conhecimento além da sua experiência de vida, acho importante ouvir as pessoas e parar de ser guru. Em um primeiro momento procurei a Praça Kantuta para ministrar cursos lá, mas a direção da época disse: “Não!”. Fiquei muito decepcionado, pois eles falavam que faziam as coisas, mas não tinham a “cabeça aberta”. Depois conheci a Jobana Moia, que me indicou a Veronica e, assim, conheci o Projeto Sí, Yo Puedo! e passei a ser voluntario lá. No projeto, a cada final de turma, temos as formaturas e numa formatura fizeram uma peça de teatro. Depois numa outra turma, não sabíamos o que fazer para a formatura, aí resolvi fazer uma apresentação em stand-up e gostaram. O teatro foi uma coisa que apareceu do nada em minha vida. Não sou um artista, mas um aprendiz. Penso muitas coisas e não tenho onde falar. Gosto do teatro, porque posso falar o que eu quero, as pessoas podem concordar ou discordar, podem me amar ou me odiar. O teatro pra mim é um espaço criativo, onde sou eu mesmo. Tomara que as pessoas não se conformem nunca. Acho que a certeza de que está fazendo a coisa certa é um problema. Penso que a dúvida e a curiosidade são as melhores coisas! E o segredo é não se fechar, não pensar que porque sou assim, vou acabar assim. Gosto de um grafite que diz: “Livre até de mim mesmo”. Não somos artistas, mas somos a arte. Falando em preconceito, eu achava que não tinha, mas aqui tem preconceito também, penso que eu nunca sofri preconceito. Tenho uma experiência muito legal com relação ao preconceito, uma vez quando eu estive dando aulas, uma pessoa mudou de turma porque eu era boliviano. Era o que eu pensava. A pessoa falou na diretoria que ia trocar de turma, porque o professor parecia não saber o conteúdo. Eu falei para diretora que se eu não sabia, não seria na primeira aula que me diriam que não

Page 46: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

46 Sí, yo puedo!

sei. Eu achei que era preconceito. Foi muito difícil pra mim. Eu entrei em depressão. Olhei-me no espelho e falei: “O que de diferente tenho?”. Mas depois, foi engraçado, levei um amigo boliviano lá na escola e ele me falava que tinha uma amiga muito legal. “Ela me ajuda em tudo, entende o que eu falo”, ele me dizia. Na formatura, ele me convidou e me apresentou a amiga dele e era aquela menina que eu achava que tinha preconceito comigo. Foi um choque pra mim. Aí eu fiquei pensando: “Será que o preconceito estava nela ou em mim?”. Porque se ela fosse preconceituosa nunca teria virado amiga do meu amigo, mas ela o ajudava. Outra experiência que tive com relação ao preconceito, foi quando comecei a frequentar o Projeto Sí, Yo Puedo!. Passei a pegar o ônibus que ia para Edu Chaves, onde tinha muito boliviano, e foi quando percebi o preconceito que tinha de verdade. As pessoas maltratavam os bolivianos dentro do ônibus. Antes eu não pegava este ônibus. Quando eu subia no ônibus, já começavam com piadinhas. Eu dava dez reais para o motorista e ele dizia que não tinha troco, eu dizia que podia esperar e ele dizia que eu podia descer. Eu ficava chateado e reclamava, pois eu estava pagando, e ele insistia que não tinha troco e dizia que eu devia descer. Se eu fosse brasileiro, ele não fazia isso. Aí eu descia do ônibus. Foi quando pude ver o preconceito de algumas pessoas. Eles falavam com os bolivianos coisas como: “Fica lá no fundão! Você tá fedendo!”. Coisas duras. “Tem que tomar banho!”, diziam. Recentemente, morreu um amigo meu e disseram que mataram ele porque boliviano costuma andar com dinheiro. Disseram que foi latrocínio. Mentira! Conheço meu amigo e ele nunca teve dinheiro, pegava o dinheiro que ganhava e mandava pra Bolívia. Não se vestia bem, não tinha carro, nem uma bicicleta ou um tênis bom ou celular. Sempre questionei o discurso que muitas pessoas têm quando falam que o boliviano tem dinheiro guardado em casa, pois para mim as pessoas podem guardar o dinheiro onde quiserem. A obrigação do Estado é dar segurança, não só para os bolivianos, mas para a população em geral. Este meu amigo morava num bairro da periferia. A parte mais dura é ouvir que é “um casoexcepcional”. Outro questionamento meu é entender por que, se os bolivianos “têm dinheiro em casa”, tem cada vez mais bolivianos morando nos bairros da periferia. E pior ainda, desde quando a vítima é culpada?Possibilitaram-nos abrir contas em bancos, porque bolivianos guardam dinheiro em casa, mas, não podemos guardar dinheiro em casa? Somos os responsáveis por sermos roubados? Eu tenho direito de guardar dinheiro onde eu quiser. Por que vão me obrigar a reforçar um sistema ganancioso que é o banco. Colocam a culpa na sociedade e não acho que deva ser assim. Digo isso, pois ouço muito dizer: “É que eles guardam dinheiro em

Page 47: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

47Histórias que se cruzam na kantuta

casa”. Outra, quantas pessoas precisam morrer? Tem que se tornar algo comum para que se faça alguma coisa? O discurso repetitivo não serve para os migrantes, não queremos nada a mais, simplesmente queremos o que todo ser humano quer, mas o Estado e as lideranças, lamentavelmente, não querem, pois muitos sobrevivem à custa dos migrantes. Acho que com relação à imigração, o maior problema não é chegar ao Brasil, o problema é antes de você sair do seu país. O Brasil tem seus problemas, mas acho que falta uma cultura de migração na Bolívia. Falta uma educação para o mundo. Você não é preparado para sair de lá. No meu país não tem uma cultura de emigração. Ouvi falar que no Uruguai tem uma cultura da migração, pois te preparam para sair do país, e isso pode se perceber quando um estrangeiro chega aqui, a primeira coisa que ele faz éaprender o idioma. Porém, de onde eu venho, na minha região pelo menos, as pessoas vêm para cá pensando em ganhar dinheiro, então aceitam tudo. Boliviano é visto como mão de obra barata. Em muitos lugares, onde eu já fui, as pessoas querem me pagar menos e acho que o motivo é o fato de eu ser boliviano. Tem um preconceito muito grande contra bolivianos no sentido profissional. Boliviano é igual costura. Tudo bem que eu sei costurar, mas isso não me impede de aprender outras coisas. Acho que a mídia dirige muito a visão com relação ao povo boliviano, boliviano profissional não é notícia, boliviano escravo é notícia. O mais triste é que na comunidade de imigrantes acontece a mesma coisa. Às vezes, as pessoas acham que aprender o idioma é a última coisa a se fazer, mas é o contrário, aprender o idioma é a primeira coisa a se fazer. O idioma é primeiro passo para a integração do imigrante. Na minha visão, olhamos o Brasil não como um lugar de oportunidades, mas um lugar onde se vai ganhar dinheiro. Se os imigrantes chegam e fazem parte da desigualdade é complicado para o próprio Estado, por isso acho que deveriam ter políticas voltadas para formação do imigrante quanto ao idioma. Hoje, eu acho que ter imigrado foi a melhor decisão que tomei. Sou muito grato ao Brasil, eu amo o Brasil por ter me dado uma segunda chance. Quando comecei a pensar que aqui eu tinha uma oportunidade, mudou toda minha vida. Se eu tiver que voltar a costurar, volto, mas vou continuar procurando outras coisas. Costurar virou mais uma ferramenta do que algo ruim pra mim. Aqui conheci muitas pessoas legais, tive oportunidades e penso que ainda vou ter muitas oportunidades. Acho que vou viver fazendo ponte entre o Brasil e a Bolívia. Algo com que não concordo, é que as pessoas te olhem com superioridade, que venham te ensinar, como se o boliviano não soubesse de nada. Ou talvez, eu me sinta inferior. Tenho muita dificuldade com o poder.

Page 48: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

48 Sí, yo puedo!

Você diz que todo mundo é igual, mas na realidade não é assim. Como todo mundo pode ser igual, se nós imigrantes nos discriminamos entre nós? Sou uma pessoa, por exemplo, que não acha ruim a costura. Não sou contra a costura, sou contra o sistema que favorece a desigualdade social e, por consequência, o trabalho análogo à escravidão. Não gosto de ser politicamente correto, mas tudo bem. Falam da costura como se você não pudesse ser costureiro, mas se você é psicólogo, você pode ser psicólogo. Penso que o problema não são as horas de trabalho, pois se você trabalha numa multinacional, com certeza não vai trabalhar oito horas, a pergunta é: Por que não falam deles? A questão principal é a desigualdade social. Ainda continuamos num sistema academista, colocamos o “título” antes do ser humano. “Você não estudou, então você não presta!”. Como se um “título” te fizesse uma pessoa melhor. Para mim, se for doutor ou morador de rua dá na mesma. Mesmo que as pessoas digam que não, elas chegam e te olham com superioridade. Os estudiosos vêm e ficam nos pesquisando, querendo saber sobre nossos problemas, acredito que são masoquistas e que gostam de ouvir histórias tristes, mas ao final acabam dizendo: “Vocês, imigrantes, têm direitos”, “vocês têm que lutar pelos seus direitos”. Eu penso que eles acham que somos muito tolos, mas não somos tão burros assim, sabemos que temos direitos. A questão é por que não exercemos nossos direitos. Será que este sistema hipócrita, onde os intelectuais da “pseudo-esquerda” são favorecidos e gozam de lugares privilegiados, na verdade não prejudica o exercício dos nossos direitos? Pois é muito cômodo questionar quando sua roupa é feita por mão de obra barata. Também acho uma perda de tempo, por exemplo, ter uma campanha para o voto, quando em dez anos que conheço o Brasil, só no ano passado ouvi falar da constituinte. É como se eu quisesse construir uma casa, mas não tenho o terreno. A mesma coisa é o voto, você quer ter direito ao voto, mas sem ter uma constituinte. Precisa ter uma mudança na Constituição, já que esta impede a participação política dos imigrantes. Hoje estamos discutindo o impeachment da Dilma e há pessoas que querem que volte a ditadura. Os meios de comunicação vendem que a ditadura teve suas partes boas. Mas se ditadura volta quem vai se ferrar são os pobres, não é o Faustão ou o Luciano Huck. Nós compramos o que a mídia nos vende. Continuamos assistindo a Globo, continuamos rindo da desgraça dos outros. Não posso exercer minha liberdade se fico preso à televisão. Na internet, eu posso exercer melhor minha liberdade de escolha. Achei errado que quem votou na Dilma não foi aos protestos, pois existe uma militância cega, que não enxerga ou não quer enxergar os erros, não digo que devam tirar a Dilma de lá, mas protestarem em busca de mudança. Você acaba votando pelo menos pior, é o que acontece na

Page 49: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

49Histórias que se cruzam na kantuta

Bolívia também. A democracia é aquela democracia que outros países nos ensinaram, mas por que temos que nos submeter a um modelo que foi imposto? Eu penso que as coisas aqui no Brasil estão mudando muito. A questão política está muito legal aqui hoje. Eu venho de um país muito politizado e acho que hoje estamos discutindo mais a política e isso é um avanço.

Page 50: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

50 Sí, yo puedo!

aH É? Tem Que faZer?Veronica Quispe Yujra

Meu nome é Veronica Quispe Yujra, sou dentista, e estou com trinta e cinco anos. Pertenço à comunidade boliviana e nasci na cidade de La Paz. Vim muito criança para cá, com quase oito anos. Acho que vim numa imigração parecida às demais, que é movida pelas questões econômicas, mas com a diferença de que quem tomou a decisão de migrar, naquela época, foram meus pais. Meu pai veio primeiro, em 1988 ou 1989, pouco depois da redemocratização do Brasil. E em 1992, a gente veio para cá junto com a minha mãe. Eu lembro que foi uma viagem bem difícil. Como éramos três filhas, minha mãe e meu pai tentaram juntar o dinheiro que tinham, só que meu pai tinha feito uma negociação aqui, que foi comprar meia oficina de costura, então já tinha investido tudo. Uma lembrança bem forte que eu guardo dessa viagem é que na fronteira faltou dinheiro para uma passagem, pois não aceitaram que eu não pagasse. Então, eu me lembro dos meus pais tirando as alianças de casamento e vendendo na fronteira mesmo para conseguirem comprar essa passagem.

Page 51: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

51Histórias que se cruzam na kantuta

Como meu pai já tinha estado aqui e acho que passado a pior fase dessa imigração, como trabalhador, como operário, quando a gente chegou, até que a gente teve algumas regalias. A gente chegou e já tinha um teto. Ele tinha alugado um apartamento no Bom Retiro, já tinha umas duas ou três máquinas. Então foi só chegar e começar a trabalhar! Ele já tinha alguns fornecedores na época e minha mãe começou a pôr ordem, no sentido de estruturar a cozinha, estruturar a casa. E simplesmente começou a funcionar como qualquer outra oficina, de chamar gente para trabalhar e morar junto. Enquanto isso, a gente foi sendo criado. Quando chegamos, minha irmã mais velha já tinha 14 anos e foi a primeira das filhas a realmente sentar na máquina e trabalhar. Eu comecei a ter que aprender com tempo, mas sempre gostei mais da parte de administração do que do trabalho com a própria costura, então ajudava mais nessa coisa de intermediação com as lojas, na hora de fechar as contas e fazer o cálculo do pagamento dos costureiros. E assim, foram se passando dez anos da nossa vida. Meus pais tiveram, durante dez anos, oficina de costura, tiveram quase doze pessoas trabalhando e umas quinze máquinas. Mas, nesses dez anos, a única coisa que meus pais faziam era colocar o dinheiro para girar. Quando chegava o final do ano, a maioria dos costureiros viajava para Bolívia e meu pai tinha que pegar dinheiro emprestado e, às vezes, até vender máquinas para pagar as pessoas. Antigamente, os costureiros preferiam receber de uma única vez vários meses do que receber todo mês, porque aí ele ia embora com aquele total. Nessa época, era quando a gente passava mais fome, não tinha nenhum costureiro em casa. Minha mãe não tinha dinheiro e não se trabalhava esse mês. Pouco a pouco, meuspais perceberam que lucro mesmo não estava tendo naquela oficina. Todo mundo trabalhava muito e nunca tinha dinheiro para gente. Eu brinco hoje em dia, que a oficina dos meus pais faliu porque eles não conseguiram explorar as pessoas, porque se a gente pensa nessa rede de exploração que é montada, você só sobrevive se você realmente explora. Depois de muitas brigas, minha mãe chegou à conclusão de entregar o apartamento e foi bem de repente que ela falou para meu pai que não queria mais. Assim que a gente chegou, no primeiro ano, a gente ficou sem estudar, porque tinha a questão do idioma. No ano seguinte, meu pai procurou as escolas próximas lá no Bom Retiro para tentar nos matricular, aí a gente viu como era difícil, naquela época, a questão da matrícula de imigrantes sem documentação. Meu pai tinha documentação, mas acho que ele estava esperando fazer três anos para virar permanente, para depois fazer um processo chamado reunião familiar, para que pudesse trazer seus filhos e sua mulher para o país. Ele ficou esperando mais

Page 52: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

52 Sí, yo puedo!

um ano e ficamos sem estudar. Quando passou um ano e a gente tentou estudar novamente, ele também não podia tirar nossos documentos ainda, porque ele descobriu que era um dinheirão para cada um. Nós tivemos muito sorte, porque uma escolinha lá do Bom Retiro recebeu minha irmã mais nova e eu fui para segunda série, já tinha feito a segunda série, mas eles acharam melhor eu repetir. Só que para minha irmã mais velha, que precisava de Ensino Médio, não teve jeito. Nenhuma escola permitia a matrícula dela e ela ficou mais um ano sem estudar. Na verdade, nunca mais ela voltou a estudar, depois daquela época ela voltou a estudar já adulta. E tudo em função da barreira criada pela burocracia. Por volta de 1994 saiu uma ratificação pelo ECA, que dizia que o acesso à escola não podia ser negado, mas até então, muita gente sofreu com isso. Inclusive eu, acho que na sexta série, quando baixou um decreto que todo mundo tinha que apresentar os documentos e eu e minha irmã não tínhamos documento, fomos retiradas da escola. Acho que coisas como essas que me fizeram pensar em alguma forma de orientar as pessoas, para que situações como essa não se repetissem e por isso, hoje, nós temos o projeto Sí, Yo Puedo!. Da minha época da escola, tenho lembranças bem positivas. Sempre falo que sou de uma geração que não vivenciou o bulling, bulling não, a xenofobia. Bulling todo mundo acaba sofrendo com brincadeirinhas, essas coisas assim. Mas, xenofobia mesmo eu não sofri. Na minha escola tinham alguns estudantes bolivianos e filhos de bolivianos e os alunos eram sempre solidários. Eu aprendi português com os meus próprios amigos. Acho que acaba sendo mais difícil hoje. Nessa de terem me barrado na sexta série, em meados da década de 1990, a gente tinha que pagar taxas diárias por estarmos aqui indocumentados, aí meus pais perceberam que era mais fácil a gente sair do país e voltar para a Bolívia e fazer de conta que estávamos entrando de novo. Foi nesse ano que fizemos o primeiro retorno para a Bolívia. Passamos quinze dias lá, quando voltamos já demos entrada no processo de regularização. E aí consegui obter meu certificado da sexta série. Mas já tínhamos perdido outro ano e eu estava me achando muito velha para a série na qual eu estava. Descobri que tinha supletivo e fui fazer supletivo aos quatorze anos. Acho que nessa época amadureci muito, pois eu tinha quatorze anos e o mais novo da sala tinha vinte e seis anos. Foi quando percebi que muita gente vai atrás de seus sonhos já com mais idade. Conheci gente da área da saúde. Nessa época me aproximei do instituto de formação chamado Dom Bosco. Lá encontrei amigos que me estimulavam a continuar os estudos. Depois que meu pai faliu, a gente foi morar no Brás. Fomos para

Page 53: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

53Histórias que se cruzam na kantuta

uma casa de dois cômodos e as máquinas ficavam empilhadas no quintal. Meu pai e minha mãe se olhavam e perguntavam: “E agora em que vamos trabalhar?”. Ele alugou um box no Brás e começou a vender roupa. Minha mãe ficou sabendo que tinha um ponto de encontro de bolivianos, que era lá no Pari e viu a possibilidade de vender comida lá. Nessa época descobri a escola técnica gratuita e fiz a prova para o curso de enfermagem e passei. Muita coisa da minha vida foi por alguém que me falou, me deu orientação e me ajudou. Meus pais já achavam uma grande façanha eu estar fazendo curso técnico e eles achavam que eu seria técnica de enfermagem e seríamos felizes para sempre! Quando eu estava terminando o técnico, todos os meus amigos começaram a falar que tínhamos que fazer cursinho para entrar na faculdade. E eu: “Ah é! Tem que fazer?”. Para mim era sempre: “Tem que fazer? Então tá”. Assim que me formei, consegui um trabalho e paguei um cursinho, mas sem noção do que eu queria fazer. Sempre falava para meus pais que depois de me formar eu não queria ninguém estranho circulando na minha casa, porque era pior que pensão. Na pensão você sabe que as pessoas estão de passagem, mas, na oficina, tinha gente que chegava a ser morador de anos e de repente ia embora. Sempre falava para minha mãe que não queria isso na minha vida. Acabei chegando na faculdade, fiz uma pública, em São José do Campos. Me envolvi no movimento estudantil e comecei a viajar muito para alguns congressos e eventos. Foi quando percebi que encontrava poucos de mim na universidade. Sempre acompanhava as listas de vestibulares e enxergava pouquíssimos sobrenomes espanhóis e ainda menos andinos. Me perguntava porque esse pessoal não estava estudando. Esse foi um pensamento que desde a faculdade vinha me perseguindo. E cheguei à conclusão que era por falta de informação. Por isso, desde a faculdade, eu alimentava a ideia de fazer um projeto que desse informações para os jovens e, que assim como eu, tivessem acesso ao ensino superior e outras formas de trabalho mais dignas. Um dia, em 2012, sentei lá na Praça da Kantuta e comecei a fazer o atendimento, no sentido de orientar quem quisesse alguma orientação. O que fortalece é o fato de que algumas pessoas querem orientação, por isso que o projeto continua. Todo mundo achava que eu tinha feito universidade porque tinha me naturalizado, mas não! Não é preciso se naturalizar para estudar em universidade pública. Então, são essas informações que, às vezes, parecem óbvias pra gente, mas que podem transformar a vida de algumas pessoas. Na Bolívia, morávamos em um bairro pobre, em uma casa relativamente grande. Não tinha encanamento e para tomar banho

Page 54: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

54 Sí, yo puedo!

tínhamos um poço, onde, às vezes, a gente pegava água. O banho lá era todo um ritual. Como é um país frio, tinham lugares que você pagava para tomar uma chuveirada e a gente fazia isso uma vez por mês. Durante a semana, todas as crianças entravam numa bacia grande cheia de água e tomavam banho juntas. Lembro muito da ausência da minha mãe, não do carinho, mas da presença física. Como ela trabalhava como vendedora de mercado público, de manhã ela ia em um mercado e de tarde em outro. Saía cinco da manhã e chegava meia-noite. Minha irmã mais velha que cuidava mais da gente. O dia que a gente via minha mãe era no sábado. Só que no sábado, ela começava a ver as coisas erradas que a gente tinha feito. Lembro que perto da data de a gente vir para o Brasil, minha mãe estava passando por um momento ruim ou era uma ansiedade de vir embora, ou a questão econômica, porque ela trabalhava, trabalhava e nunca tinha dinheiro. Tenho pouquíssimas lembranças de momentos de lazer com a minha mãe lá na Bolívia. Nossa diversão era ir à Igreja aos domingos. Tenho poucas lembranças do meu pai, porque ele veio para cá quando eu tinha cinco anos. Depois de dois anos, foi que reencontrei meu pai aqui. O que sei sobre o porquê dele ter vindo para o Brasil é o que minha mãe conta. Na época, tinha um sobrinho do meu pai que já morava aqui e trabalhava com costura e como meu pai era alfaiate foi chamado para trabalhar aqui. A decisão foi muito mais da minha mãe do que do meu pai. Meu pai até que tava contente com a vidinha e com o trabalhinho que ele tinha lá. Ele tinha sua própria alfaiataria. Naquela época tinha movimento, pois os homens usavam mais roupa social, não usavam jeans, por exemplo. Porém, o pagamento era pouco para cobrir o aluguel e levar dinheiro para casa. Adorávamos meu pai, porque ele entregava encomenda e comprava iogurte, que era luxo pra gente. Pra gente aquilo era uma coisa de outro mundo. Mas, quem comprava nosso material da escola e nossas roupas era minha mãe. Quando meu pai fez um pé de meia no Brasil e estava pretendendo voltar, minha mãe colocou ele contra a parede e disse que iríamos para o Brasil. Minha mãe acreditava, e em vários lugares do mundo se acredita, que como você passa a noite do réveillon é como vai ser seu ano. E no último dia do ano minha mãe trabalhou até tarde e pediu que eu e minhas irmãs esperássemos ela com a carne – lá não comemos peru. Estávamos olhando em direção ao ponto de ônibus e quando ela chegou, não desceu do ônibus, desceu de um táxi cheia de mala. “De onde saíram essas malas?”, nos perguntávamos. Ela chegou, olhou pra gente e perguntou se estávamos prontas e nós não entendemos nada. As malas estavam vazias e ela começou a colocar coisas de cozinha, panelas e pratos dentro. Colocava

Page 55: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

55Histórias que se cruzam na kantuta

nossos casacos em outra mala e olhava pra gente dizendo: “A gente vai viajar pro Brasil, não falei para vocês?”. A gente começou a chorar e nisso passou a meia-noite. Em fevereiro a gente veio para cá. Eu não tenho recordação de que eu tivesse alguma expectativa antes de vir para o Brasil, mas lembro que minha irmã mais velha, que já tinha quatorze anos, chorava e dizia que não queria vir. Ela já tinha um círculo de amizade, toda uma vida lá. Ela não sabia o que ia fazer aqui sem amigos. Já minha mãe, acho que ela tinha certeza que aqui teria oportunidade de mobilidade social. Acho que a expectativa dela era trabalhar o mesmo tanto que trabalhava lá, mas que aqui ela conseguisse juntar dinheiro e fazer com que os filhos estudassem mais que ela. A gente notou muito abundância aqui. Lembro do nosso deslumbramento com relação ao tamanho das coisas no Brasil. Aqui o que se chamava de viela, lá era avenida! O tamanho das guloseimas que tinham para crianças também nos impressionou. Tudo era em pacote, tudo chocolate grande! Isso para gente era muito diferente. Parece que até hoje é, porque, esses dias, chegou a filha de uma amiga minha e ela ficou impressionada com o tamanho dos ovos de páscoa. Ela disse que lá o ovo de páscoa é do tamanho de um ovo de galinha. Lá tudo é pequeno. O iogurte também, lá não existia essa coisa de copo, era só no saquinho. A mesma coisa em relação ao óleo e ao arroz. Lá você não comprava óleo por litro, você ia na vendinha e comprava 250ml, você podia levar até seu próprio potinho para colocar o óleo. Como não tinha dinheiro abundante, não tinha aquela coisa da compra mensal, você ia comprando conforme o dinheiro ia entrando na casa e você ia precisando. Uma dificuldade foi o idioma, se bem que eu não senti muito, mas minha irmã mais velha e minha mãe sentiram. Minha mãe é de conversar muito na rua, de negociar! E aqui ela não podia fazer isso. Lembro que ela ficava triste. Outra barreira que a gente sentiu, foi a dificuldade de não conseguir colocar minha irmã mais velha na escola. É uma coisa que meus pais levam até hoje como culpa, porque naquela época ela deixou de estudar e parou. No ano passado que ela voltou, mas ela perdeu uns vinte anos, sendo que ela sempre foi boa aluna. Tanto que três anos depois que ela estava aqui, meu pai pensou em mandála de volta para que ela continuasse os estudos. E foi quando ela começou a namorar e se casou, aos dezoito anos. É uma frustração que meus pais têm. Outra barreira, acho que era a questão de alugar casa. O apartamento que morávamos aqui estava alugado no nome de um coreano que tinha uma oficina lá antes. Nosso primeiro ano no apartamento foi ótimo, mas no segundo, a imobiliária descobriu que não era mais o coreano que morava lá e quiseram renovar o contrato. Meu pai encontrou

Page 56: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

56 Sí, yo puedo!

o fiador, só que o aluguel de oitocentos reais foi para dois mil. E ele acabou aceitando. A imobiliária aceitou fazer o contrato com o documento provisório que ele tinha. Quando a gente percebeu que dois era muito caro, meu pai passou a procurar um imóvel mais barato. Qual foi a surpresa? Nenhuma imobiliária aceitava o documento provisório dele. A gente ficou preso naquele apartamento, que era um elefante branco, e isso foi um dos fatores que acabou levando a gente à falência, então tinha que trabalhar muito, muito para pagar o apartamento e os funcionários. Agora minha vida tomou um rumo totalmente diferente! Meus sonhos para o futuro é ser, quem sabe, umas das primeiras doutorandas de uma universidade pública daqui e lecionar em alguma universidade. Além desse sonho pessoal, é conseguir ver que os serviços públicos, principalmente os de educação e saúde conseguiram se adequar para receber pessoas de fora. Tenho uma amiga que chegou com os filhos. O filho dela tem sete anos, e ela foi chamada na escola porque ele não conversa, só que a língua materna dele não é o português, então ele não vai conversar mesmo! Que trabalho é feito para adaptar essa criança aqui? Não é feito nenhum, se joga a criança e ainda se cobra que ele se comporte como as outras. Quando eu ver que as escolas estão preparadas para valorizar a interculturalidade e que estão preocupadas em proporcionar um período de adaptação na própria escola para essas crianças, acho que vai tá bom! Do ano passado para cá a gente pode dizer que existe uma rede de assistência ao imigrante, porque até ano passado não existia nada. Com a criação do CRAI, com a criação antes da Coordenação de Políticas para Imigrante, que apesar de eu achar que tá desviando das atribuições, tá fazendo alguma coisa. E com a criação do CIC Imigrante, agora, eu consigo enxergar o mínimo de rede, lógico que falta articulação, mas já existe essa rede. Agradeço meus pais pelas ideias de superação e de certeza que a gente poderia estudar. É uma coisa que vejo muito nos pais de imigrantes, podem ser podres de ricos ou os mais pobres de todos, sempre desejam que o filho estude. Poucos vão dizer que desejam que os filhos sejam ricos do nada ou que ganhem na loteria. Muitos vão desejar que a riqueza venha com a formação. Quando eu era adolescente, ganhei um aguayo da minha mãe, mas nunca utilizei. Nessa época, eu estava bem no conflito de até que ponto ser imigrante é bom ou não. Se por um lado, tem a riqueza de você conhecer outra cultura, por outro lado, na fase da adolescência é muito sofrido ser diferente. Então, tudo em você é diferente! O jeito que teus pais te tratam e as coisas que você pode fazer são diferentes. Quando ganhei o aguayo, acho que nos meus quinze anos, eu achei horroroso! Pensei: “Meu! Para

Page 57: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

57Histórias que se cruzam na kantuta

que eu quero um negócio desse?”. Até porque o aguayo é utilizado lá na Bolívia para as mulheres carregarem coisas, é uma manta que serve como se fosse uma bolsa das mulheres andinas. As mulheres andinas não têm bolsa, elas têm um aguayo. Se precisar levar alguma coisa, elas abrem a manta, colocam a coisa no meio, enrolam e colocam nas costas, inclusive crianças. Eu achava isso horrível! Tanto tempo passou depois que eu ganhei essa manta, que eu redescobri o valor da minha cultura, redescobri um pouco do orgulho de ser de outro país e de como isso traz a história dos meus, de todo o sacrifício e de toda essa coragem de largar o seu país para tentar a vida em outro lugar. E eu fui descobrindo isso à medida que fui ficando adulta. Depois de me formar, acabei participando de um grupo de dança onde a gente discutia como a dança estava relacionada com história da Bolívia. Teve um ano em que fizemos uma Mostra Cultural Boliviana na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Fiquei encarregada da sala de audiovisual e tinha que procurar documentários para exibição. Teve um documentário, Altiplano Boliviano, que foi feito pelos olhos de um brasileiro que foi morar na Bolívia e ele tentou fazer um resgate cultural de como a história de lá e o desenvolvimento cultural em cima das danças folclóricas influenciam a forma de ocupação das comunidades aqui a partir das danças, das festas e de tudo mais. Ele entrevistou uma historiadora de lá e ela falou do aguayo. Ela falou que antigamente quando não existia a língua escrita, o aguayo escrevia um pouco da história das comunidades, então cada comunidade tinha uma cor, um formato, as figuras. Quando os Incas invadiram essa região do Altiplano Boliviano e encontraram a comunidade aimará, que é povo originário, eles queimaram todos os aguayos da região para tirar essa marca deles. A historiadora fala que é como se alguém chegasse hoje e queimasse uma biblioteca. Depois eles se reergueram e o aguayo se tornou útil. Toda família na Bolívia tem um aguayo, todo casal, toda mulher. Quando eu soube disso eu quase chorei. Então, o aguayo que ganhei da minha mãe tem muito o significado da redescoberta. O documentário que mencionei também fala do jeito dos andinos, que geralmente são introvertidos, são calados, são muito na deles e então você vê as mantas que eles fazem e são um arcoíris de cores, de alegria! É um tipo de linguagem! Hoje em dia, tenho muito orgulho de ter um. Minha mãe deu um para minha irmã mais velha, me deu um e acho que vai dar para minha irmã mais nova também, porque isso é normal, toda mulher tem que ter um aguayo. Eu brinco que o aguayo é um dos artefatos de exportação que mais sucesso faz, mas que por respeito, não se explora muito. Uma amiga minha ficou abismada ao perceber o quanto o aguayo

Page 58: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

58 Sí, yo puedo!

remete a mulher e com o fato de as mulheres lá na Bolívia carregarem suas compras, mesmo que o homem esteja ao lado, porque o homem não vai carregar nada no aguayo! Você anda pela cidade lá e vê casais. As mulheres estão sempre com um aguayo bem grandão atrás e o homem sem nada. Acho que os aguayos podiam servir de revolução, porque eu poderia utilizar meu aguayo de outra forma, não só para carregar.

Page 59: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

59Histórias que se cruzam na kantuta

Page 60: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

HISTORIAS QUE SE CRUZAN EN LA KANTUTA

Español

Trabajo presentado para el Colectivo ¡Sí, Yo Puedo! como proyecto de intervención de las prácticas en Psicología Comunitaria de la facultad de

Psicología de la Universidad Presbiteriana Mackenzie.

Supervisión: Adriana Rodrigues Domingues Entrevistas y transcripción: Luana de Freitas Garcia Revisión: Adriana Rodrigues Domingues, Felix Claudio Mendoza Achumiri, Flaubert Castro Arela, Franz Mijail Sanabria Galván, Lucia Ireyo Raimundo, Miguel Angel Saavedra Aguilar, Veronica Quispe Yujra Traducción: Nanci A. Kirinus Revisión: Veronica Quispe Yujra Diseño: Nathalia Ju Hyun Jin Imágenes: Flaubert Castro Arela, Luana de Freitas Garcia y Miguel Angel Saavedra Aguilar

Page 61: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

PREFACIO - ESCUCHAR Y RECONTAR HISTORIAS Luana de Freitas Garcia

Y YO, ¿TAMBIéN PUEDO?Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti y Luana de Freitas Garcia SÃO PAULO: EL RETRATO DEL MUNDOFelix Claudio Mendoza Achumiri

PALABRAS QUE SALEN COMO CUCHILLOSFlaubert Castro Arela

OTRA IMAGEN DE BRASILFranz Mijail Sanabria Galván

¡AQUÍ TODO ES MUY LEJOS! Lucia Ireyo Raimundo

¡LIBRE!, INCLUSO DE SÍ MISMOMiguel Ángel Saavedra Aguilar

¿AH,SÍ? ¿HAY QUE HACER?Veronica Quispe Yujra

62

64

72

79

87

93

98

108

sumario

Page 62: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

62 Sí, yo puedo!

ESCUCHAR Y RECONTAR HISTORIAS

Este libro nos cuenta las historias de seis inmigrantes, cinco bolivianos y un peruano, que vivían en São Paulo el año de 2015. Narra sus recorridos hasta la llegada a Brasil y también relata cómo cómo fue el contacto y la inmersión en el nuevo país. El título Historias que se cruzan en la Kantuta se refiere a la plaza Kantuta, lugar frecuentado por todos estos narradores. La plaza es un lugar de encuentro de los inmigrantes, bolivianos en su gran mayoría, y es donde se realiza una feria gastronómica, todos los domingos, con el objetivo de preservar la identidad cultural de los que vienen a Brasil en busca de trabajo y mejores condiciones de vida. Kantuta es el nombre de una flor típica del altiplano andino y sus colores – verde, amarillo y rojo – pintan la bandera de Bolivia. En la Plaza Kantuta también está ubicada la carpa del Colectivo Sí, Yo Puedo! (SYP ), relación existente entre los narradores y yo, que – con supervisión de la profesora Adriana Rodrigues Domingues – registré y transcribí estas historias. Esto ha sido posible porque el SYP firmó una sociedad con la Universidad Presbiteriana Mackenzie, de modo que nosotros, estudiantes de Psicología del último año, pudimos realizar las prácticas de psicología comunitaria en el colectivo. Durante mi periodo de prácticas, noté en el discurso de la comunidad atendida por el SYP, que era importante para el proprio inmigrante que fuera portavoz de su propia historia, como un sujeto que tiene mucho que decir acerca de la realidad que vive. En esta publicación, al optar por dar voz al inmigrante, no fijé su discurso en reglas y estándares lingüísticos del país de origen o del país receptor. Los relatos orales transcritos no siguen un estándar formal, sin embargo son ricos por sus contenidos. Un contenido donde principio, medio y final se confunden, ya que memorias no surgen de manera linear y coherente.

prefacio

Page 63: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

63Histórias que se cruzam na kantuta

De esta manera, rescatando las experiencias y las memorias de los inmigrantes que se dispusieron a relatar sus caminos recorridos como emigrantes e inmigrantes, desde el momento que decidieron dejar sus hogares, familias y amigos, para que se enraizaran en otras tierras, también pensé, sentí y viví una experiencia valiosa, que amplió mi visión del mundo, y que me proporcionó un intenso aprendizaje y una autentica experiencia intercultural. Recontar sus historias en primera persona, reproducir sus hablas todavía en proceso de apropiación del nuevo idioma y reconocerles y respetarles el derecho de que cuenten sus propias historias es, también, una forma de dar visibilidad a las dificultades que el inmigrante enfrenta hacer parte de una tierra extranjera y mostrar su aporte a nuestra cultura. Cuando entendí las cuestiones del aprendizaje de la lengua portuguesa se me vino a la mente que las historias aquí contadas podrían alcanzar mucho más a la comunidad inmigrante en general, si pudiesen ser leídas independientemente de la apropiación que una persona posee del idioma hablado en Brasil, entonces la necesidad de contar estas historias de vida en español. Las historias rescatadas se cruzan en la Plaza Kantuta, pero se encuentran y dialogan en el SYP, por esto consideré esencial añadir al libro otra historia, que no ha sido registrada a través de las entrevistas grabadas, sino que ha sido vivenciada por narradores, voluntarios, población atendida, idealizadora del SYP y por mí, es decir, una construcción de memoria escrita del colectivo desde su realización hasta el momento actual. Agradezco a todos que colaboraron con este trabajo y espero que de la misma forma que yo, los lectores se sientan inspirados por las historias aquí narradas.

Luana de Freitas Garcia

Page 64: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

64 Sí, yo puedo!

¿Y Yo, TamBiÉN puedo?Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti yLuana de Freitas Garcia

“¡Sí, se puede!”, “¡Yo, sí puedo!”, “Yes, we can!” Bastante repetidos por el vasto continente americano, dichos lemas nos remiten a las historias de luchas emprendidas por diversos grupos sociales, una vez que han sido respectivamente utilizados por trabajadores rurales y urbanos huelguistas, por movimientos para la alfabetización de jóvenes y adultos imposibilitados al acceso a la Educación, como los fomentados durante el gobierno del primer presidente indígena de Bolivia1 y en las campañas presidenciales de aquel que sería el primer presidente norteamericano negro.

1 Una de las primeras acciones de la gestión de Evo Morales relacionadas al área de la Educación fue el lanzamiento del Plan Nacional de Alfabetización denominado “Yo, sí puedo”, que tenía como base la experiencia y metodología cubana conocida y utilizada también en otros países de la región, caracterizadas por el uso de medios audiovisuales, mediados por un docente en el proceso de enseñanza y aprendizaje. Su empleo en Bolivia redujo la tasa de analfabetismo al 3.7%, índice a partir del cual UNESCO declaró Bolivia como “territorio libre de analfabetismo” en 2014.

Page 65: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

65Histórias que se cruzam na kantuta

2 La transcripción más detallada del relato de Veronica también forma parte de una de las historias contadas en este libro.

Esas expresiones han sido y siguen siendo relacionadas a las búsquedas por avances reales de los sujetos, que representan minorías políticas en la sociedad, en el sentido cualitativo del término, por ser recurrentemente marginalizados de derechos fundamentales que garantizan condiciones dignas de vida. Palabras tan llenas de significados como estas fueron, por fin, fuentes de inspiración para la denominación de un proyecto dedicado a atender inmigrantes establecidos en São Paulo, y por algunas de sus demandas relacionadas especialmente a la Educación y al Trabajo: el colectivo “¡Sí, yo puedo!”. Su primera propuesta era que se llamase “¡Yo, sí puedo!”, similar al proyecto de alfabetización mencionado, pero con la intención de fortalecer aún más la denotación afirmativa de la frase, relacionada en este caso con el empoderamiento de los inmigrantes, se prefirió poner el “sí” al inicio. Los primeros pasos para el proyecto pueden ser observados a través de la trayectoria de vida de su idealizadora, Veronica Quispe Yujra, y de su familia. En este y en otros casos, escuchar y registrar atentamente historias de vida es una experiencia que puede revelarnos no al sujeto aislado, sino al sujeto ubicado dentro de las sociedades que desarrollan sus vivencias y construye colectividades, permitiéndonos conocer sus percepciones y visiones del mundo, condiciones de vida, y las estrategias individuales y comunitarias emprendidas a partir de las más variadas situaciones y desafíos. Entonces, ¡Veamos lo que nos trajo su narrativa!2 Boliviana, nacida en la ciudad de La Paz, Veronica vino a São Paulo a los ocho años de edad con su madre y dos hermanas, Rocio y Maritza, de cuatro y catorce años. Era 1989, y ellas vinieron para vivir con el padre, que antes era sastre en Bolivia, y vino a Brasil un poco antes a través de la invitación de un sobrino para trabajar en un taller de costura. Sin embargo, la decisión para el encuentro familiar en Brasil, no surgió de él, sino de su esposa, que creía que en ese nuevo destino sería posible una significativa mejora de vida. Reunida, la familia se estableció en el barrio del Bom Retiro, en un apartamento ubicado frente al Centro Cultural Oswald de Andrade, espacio que

Page 66: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

66 Sí, yo puedo!

les pareció muy atractivo a los ojos de Veronica3. Por allí también pasaron a gestionar un taller de costura. Luego, solo las chicas menores comenzaron a frecuentar una escuela pública, donde Veronica hoy considera haber tenido una buena inserción, tanto por la recepción de los profesionales y compañeros, como por el aprendizaje. Sin embargo, una resolución de la Secretaria de la Educación del Estado de São Paulo aprobada en 1990 les impidió que continuaran frecuentando la unidad escolar, ya que estaban con su situación migratoria irregular. Por aquella época pasó lo mismo por lo menos con 400 niños y niñas extranjeros4. Tal hecho provocó gran desesperación en toda la familia, y particularmente a ella, por miedo a que la ausencia de formación la llevase a dedicarse a la costura como única salida, algo que no correspondía a sus expectativas y deseos. Tras la regularización de los documentos migratorios y ya con 15 años, hizo la equivalencia para que pudiera revertir el retraso escolar. Al terminar la escuela, empezó a hacer un curso técnico en enfermería. Paralelamente a los estudios, ayudaba en el trabajo de los padres5. En cierto momento, y cansada de las dificultades en el taller, su madre decidió dedicarse a otras actividades, iniciando un comercio de platos típicos de Bolivia en la Plaza del Pari, un espacio donde la comunidad boliviana solía encontrarse. Sin embargo, no tardó para que otro hecho viniera a marcar la historia de la familia: la frecuencia de los nuevos inmigrantes comenzó a ser blanco de protestas de los habitantes del barrio, donde reivindicaban exclusividad de uso y decían que habían llegado antes allí6. Con ese episodio conflictivo la comunidad notó la necesidad de organizarse y estructuró la Associação Gastronômica Cultural Folclórica Boliviana Padre Bento, que por intermedio de la Subprefeitura da Mooca, recibió la autorización para que se

3 Este centro de cultura es muy simbólico en su trayectoria de vida, una que vez que después de adulta Veronica volvió a aquel espacio que tanto le llamaba la atención, como parte integrante de una escena artística.

4 Fundamentada en el Estatuto del Extranjero (Ley 6815/1980), la Resolución no 9, de 8 de enero de 1990 afirmaba la necesidad de documentación regular de los estudiantes extranjeros para que pudiesen acceder al sistema escolar. Sobre los niños y adolescentes impedidos de estudiar y los esfuerzos de la sociedad civil organizada para revertir tal situación, ver: BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras! Imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Loyola, 2000.

5 Sergio Quispe Cuellar y Esperanza Francisca Yujra de Quispe.

6 Acerca de eso ver: SILVA, Sidney Antonio da Silva. Uma face desconhecida na metrópole: os bolivianos em São Paulo. Travessia: Revista do migrante. Centro de Estudos Migratórios. Setembro-Dezembro de 1995, p.17.

Page 67: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

67Histórias que se cruzam na kantuta

7 Festividad realizada el día 24 de enero en honor al dios aimara de la abundancia, el Ekeko. Las personas adquieren miniaturas de los bienes deseados, buscando alcanzar su realización a lo largo del año. La “Alasitas” inició en la ciudad de La Paz, pero se volvió tradicional en diferentes regiones de Bolivia.

estableciera un nuevo espacio de sociabilidad en São Paulo: la Plaza Kantuta, en el barrio del Canindé. La familia Quispe Yujra no solo colaboró en la búsqueda por este espacio, sino también actuó allí con pionerismo en el comercio de productos de Bolivia y en la organización de festividades populares, como las Alasitas7. Mientras su familia lograba nuevas posibilidades de inserción en la ciudad de São Paulo, Veronica también caminaba hacia otras posibilidades de formación profesional. Por orientación de sus compañeros de la escuela técnica, hizo un curso preparatorio para ingresar a la universidad pública (aunque muchos le decían a ella que “ – ¡Eso no es para ti!”, “ – ¡Eres extranjera!”). Por fin, cursó Odontología en la Universidad Estadual Paulista y, sucesivamente, un postgrado en el área de Salud en el Sur del país. Su implicación en el movimiento estudiantil durante este período también le posibilitó gran apertura a los espacios universitarios en diferentes lugares del país. A lo largo de esa trayectoria, notó y vivió con gran incomodidad la ausencia de personas de origen boliviana o de otros pueblos latinoamericanos en estas instituciones escolares y académicas por donde pasó. Observaba incluso las listas de estudiantes y raramente encontraba nombres tradicionales de los países vecinos a Brasil. A partir de esa incomodidad, al planear su regreso a São Paulo, comenzó a pensar una manera de intervención junto a la comunidad inmigrante que pudiese contribuir para ampliar su acceso a estos espacios. Entonces, inició en 2012 el proyecto “¡Sí, Yo Puedo!”, durante la feria boliviana de la plaza Kantuta, que siempre se realiza los domingos:

(...) Porque yo ya lo tenía en mi cabeza y toda vez lo postergaba y postergaba. Entonces yo pasé a la habitación de mi hermana y le dije: “- Ah, Ro, voy a ir el domingo ahora”. Se lo dije así porque ya iba pasando el mes de marzo. Creo que iba a salir un curso gratuito que había visto en el amarelinho y le dije: “- ¡Ah! Voy a ir allá...”. Al inicio yo llevaba periódicos de Bolivia, del día. Me despertaba a las seis de la mañana e imprimía los periódicos del día para dejarlos en un mural, por Dios, llegaba mucha gente. (...) Y entonces comencé a presentarme y les decía “- Estoy aquí para dar informaciones acerca de todo, de formación, de trabajo formal...”. Yo creía que sabía un poco más y quería que los otros también lo supiesen (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada en la Feria de la Plaza Kantuta).

Page 68: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

68 Sí, yo puedo!

De esa forma, la primera actuación del proyecto buscaba la democratización de informaciones, a partir de orientaciones acerca de cursos disponibles en diferentes instituciones y las formas de ingreso. Como nos contó, Veronica comenzó a comparecer a la Plaza Kantuta los domingos, día de realización de la feria, solo con un banquito y las informaciones que consideraba de interés para la comunidad, pero no tardó mucho para que captase compañía. Enseguida se aproximaron otros voluntarios, entre ellos había varios estudiantes universitarios del Mackenzie, que ya realizaban actividades parecidas en la Kantuta, pero sin mucho éxito en la aproximación a los inmigrantes. Dispuestos a llevar la actividad adelante, lograron una contrapartida con la universidad permitiéndoles a sus estudiantes que realizasen prácticas allí. Con la sucesiva suma de esfuerzos, una vez que la entrada de nuevos voluntarios inmigrantes y brasileros era constante, el “¡Sí, Yo Puedo!” se convirtió en un colectivo. La forma de actividad central ha sido a través de la atención todos los domingos, desde las 12:00 a las 17:00, con orientación y ayuda para aclarar dudas acerca no solo de cursos técnicos, superiores y formación complementaria, sino también con relación a la documentación para inmigrantes, reinserción escolar, revalidación de los diplomas, transferencia escolar, orientaciones profesionales, sobre el funcionamiento de los equipos de salud e incluso en cuanto a las oportunidades de trabajo. Además de eso, el proyecto identificó la necesidad y demanda de los y de las inmigrantes con relación al aprendizaje de la lengua portuguesa. El conocimiento del idioma se muestra cotidianamente necesario para que haya oportunidades más favorables de inserción en Brasil, que les proporcione mayor confianza y autonomía en el desarrollo de sus diferentes acciones, incluso con la apertura de nuevas posibilidades de actuación. En otras palabras, funciona como un “capital cultural”, que puede contribuir con el desarrollo de otras formas de capitales, como el económico y el social8. Con esto, el “¡Sí, Yo Puedo!” comenzó a ofrecer cursos de portugués de nivel básico. Las clases son organizadas enfocadas en lo cotidiano de los sujetos, así como también agregan discusiones

8 Acerca de esto ver: BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. [Orgs] Maria Alice Nogueira, Afrânio Mendes Catani. Petrópolis: Vozes, 2013.

Page 69: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

69Histórias que se cruzam na kantuta

9 Todos los voluntarios que formaron o todavía forman parte del colectivo “¡Sí, yo puedo!” están mencionados en la página 118.

relacionadas a los derechos humanos y ciudadanía. También incluyen paseos por lugares públicos de São Paulo, considerados importantes para promover a interacción, integración social y vivencia de las diferentes culturas presentes en la ciudad. Actualmente el colectivo posee 12 grupos formados en este curso de portugués, y se nota de forma satisfactoria el hecho que exalumnos siguen frecuentando actividades e incluso actúan como voluntarios en el propio colectivo o en otras organizaciones que poseen objetivos similares9. Son muchos los esfuerzos pensados para ayudar la comunidad a conquistar posibilidades más favorables para la vida en São Paulo. Recientemente, por ejemplo, el “¡Sí, Yo Puedo!” inició un preparatorio dirigido especialmente para los vestibulinhos de las escuelas técnicas, como señala Veronica:

(...) la ETEC es un camino más factible, un poco más rápido. Ya que en un año y medio uno consigue hacer algunas contenciones económicas, quedarse con la misma ropa, soporta pasar un poco de hambre. Yo bromeo con ellos: los zapatos puede durar un año y medio y es el tiempo que el curso dura, para que tengan una oportunidad de empleo mejor. Entonces después del ETEC, uno puede incluso encaminarse para aquel otro sueño que es el de la universidad, porque ya salió del círculo. Creo que lo más importante es conseguir sacar la persona del círculo. Entonces por cuenta de eso, nosotros cambiamos un poco nuestro discurso a lo largo de estos tres años. Al comienzo solo provocábamos a la gente para simplemente dejar los trabajos en los talleres e ir a buscar otro empleo, pero hoy en día no hablamos más eso, porque sabemos que para que eso ocurra hay varias etapas. Lo que siempre hablamos es: “– ¿Está difícil? ¿No es lo que quieres? Entonces vamos a comenzar a construir un proyecto donde en el medio plazo consigas tanto capacitarse, volver a estudiar, como buscar empleos en otras áreas” (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada en Feria de Plaza Kantuta).

De hecho, el grupo formado en el preparatorio de junio de 2015 condijo con las perspectivas presentadas con lo que estamos diciendo. Contaba con diez estudiantes frecuentes, con edades variadas entre 22 y 37 años, y que en aquel momento trabajaban en el área de los talleres como costureros. Ellos pretendían intentar

Page 70: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

70 Sí, yo puedo!

10 Acerca de esto ver: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998; O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante. Revista Travessia, ano XIII, número especial, jan/2000.

el vestibulinho de las ETECs para cursos técnicos de Electrónica, Mecánica, Enfermaría, Informática y Estética. Les ofrecieron clases intensivas de portugués, Matemáticas, Historia, Química, Física y Biología a lo largo de cuatro sábados, dictadas por profesores voluntarios que son profesionales de las respectivas áreas. Se trata de una experiencia piloto relevante, pues busca atender a una demanda real de estas personas, que muchas veces no tienen acceso a otros cursos preparatorios. Sin embargo, el éxito del ingreso a las instituciones de enseñanza aún depende de la superación de barreras burocráticas, en las cuales los extranjeros son sometidos, como, por ejemplo, a la cuestión de las traducciones de documentos, la equivalencia de estudios realizados o reconocimiento de diplomas emitidos en el exterior. Además de estos casos, encontramos relatos similares a lo largo de este libro, es decir, que consideraron la inversión en educación profesional como estrategia relevante para una mejor inserción laboral. Es importante notar que el colectivo “¡Sí, Yo Puedo!” tiene como uno de sus principios que sus integrantes sean siempre participativos en diversos eventos relacionados a los temas de interés de los inmigrantes en São Paulo, promovidos por entidades de la sociedad civil, ONGs o agentes de las esferas estatales. Ellos cargan sus voces como sujetos que actúan para el cambio de un medio social, escuchan, proponen y hacen críticas. Marcando presencia y ocupando los espacios, y están presentes con sus acciones y reivindicaciones. Lo que propone el proyecto que aquí presentamos es que rompa con la “presencia-ausencia” que tanto puede representar el inmigrante en una sociedad, conforme lo señaló el sociólogo argelino, inmigrante en Francia, Abdelmalek Sayad: por un lado, el inmigrante es una ausencia en su lugar de origen. De otro lado, es una presencia comúnmente invisible en las sociedades que se establece, puesto al margen del acceso a los derechos fundamentales10. La actuación del proyecto pretende, por lo tanto, la

Page 71: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

71Histórias que se cruzam na kantuta

conquista y gozo de los espacios escolares, universitarios, culturales, laborales, sociales y políticos por los inmigrantes, a partir de la formación de ellos como sujetos activos en la construcción de sus trayectorias de vida dentro de sus proyectos migratorios, así como también la inserción y ocupación de los espacios de la ciudad que, muy comúnmente, les pueden ser hostiles y negarles derechos. En este sentido, se vale seguramente la máxima de voluntad política por detrás del lema: “¡Sí, Yo Puedo!”.

Bianca Carolina Pereira da Silva (Graduada en Historia – UNIFESP; Maestría por el Programa de Postgrado en Integración de Latinoamérica – USP).

Julia Ferreira Scavitti (Graduada en Ciencias Sociales – UNICAMP; Maestría por el Programa de Postgrado en Ciencias Sociales – UNIFESP).

Luana de Freitas Garcia (Graduada en Psicología - Universidad Presbiteriana Mackenzie).

Page 72: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

72 Sí, yo puedo!

sao pauLo: eL reTraTo deL muNdoFelix Claudio Mendoza Achumiri

Me llamo Felix Claudio Mendoza Achumiri, nací en 1971. Formo parte de la comunidad boliviana y vivía en La Paz. La primera vez que vine a Brasil fue con un amigo, solo para visitar. Tenía un hermano aquí y me quedé un mes, después regresé a Bolivia. En mi país, tenía buenas oportunidades. Allá, me gustaba estudiar electrónica; fui DJ y locutor de una radio. Hacía esto todos los días y ganaba lo suficiente para mantenerme. Tenía un equipo de sonido, pero no salió bien, porque mi socio se fue a Argentina a buscar mejores oportunidades. Yo hacía ediciones de videos para matrimonios, ceremonias de graduación y cumpleaños de quince años. Y cuando llegué aquí todo fue diferente. Hoy estoy aquí por una vida mejor. Ya he conocido el sistema de aquí, sé cómo funciona. Vivo solo y ahora estoy trabajando como modelista en una empresa de costura. Hace más o menos catorce años que vine para acá.

Page 73: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

73Histórias que se cruzam na kantuta

Hace una semana llegaron mi madre, mi hermana y mi cuñado. Vinieron solamente para visitarme. ¡No podía creerlo! Mi madre, que vive en Bolivia, vino porque me extrañaba. Yo no llamaba a mi familia desde hacía mucho tiempo, hacía unos cuatro años, me quedé muy alejado. Quería que se hubieran quedado por un tiempo más largo para que pudiera mostrarles las cosas bonitas que hay en São Paulo, pero el tiempo no fue suficiente, tuve que acompañarlos a la terminal de buses y me puse muy triste con la despedida. Vine a Brasil porque quería conocer personas diferentes, saber cómo eran los brasileños. Aquí hay gente de todos los lugares del mundo. São Paulo es como un resumen de todas las razas. Es un retrato del mundo. Me gustaría haber ido a los Estados Unidos, pero no funcionó. Resultó mucho más difícil entrar allá después de las Torres Gemelas. Estoy intentando cambiar para un camino diferente de la costura. La costura es el primer paso, lo que todos hacen cuando llegan aquí. Se pasa primero por esta fase. La persona tiene más facilidad porque no tiene que pagar por una habitación y comida. Eso es una herencia de los coreanos. Y pasan aquellas cosas de explotación. Actualmente, las personas se están volviendo más conscientes gracias a esas políticas que son dirigidas a los inmigrantes. Aquí la práctica de la explotación tiene más libertad, porque está escondida en una casa, todo es cerrado. Aquí las personas hablan: “En mi casa no entra nadie que sea de fuera y puedo hacer lo que quiero en mi casa”. Las personas piensan de ese modo y hacen la explotación dentro de una casa. Y quien está fuera cree que es solo una familia que está viviendo allí. ¡Pero no es así! Eso se va descubriendo a lo largo del tiempo, por alguien que huye o lo denuncia. Yo salí de ese tipo de trabajo, pues intenté hacer algo mejor, pero no me gustó. Me gusta trabajar con cualquier cosa, pero no me gustaba lo que yo hacía, pues la dueña decía que me estaba demorando, pero soy perfeccionista, me gusta hacerlo bien. Entonces, tuve que salir de allá para hacer lo que me gustaba. Ahora trabajo registrado con libreta laboral, que es mucho mejor, pero salir del ciclo de la costura es muy difícil. En Brasil hay facilidades con relación a los estudios. Escuché que los inmigrantes pueden hacer la universidad. Pienso en seguir estudiando aquí lo que hacía allá, que era ingeniería electrónica. Pero trabajo todo el día y no es posible estudiar con

Page 74: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

74 Sí, yo puedo!

este horario. Trabajo de las nueve de la mañana a las siete de la noche y descanso los sábados y domingos. En los talleres de nuestros compatriotas cada uno es independiente, porque tiene que trabajar por producción, por eso, algunos trabajan los sábados y domingos. Si no trabajan los fines de semana, los dueños no les dan comida en esos días, pues ellos no están trabajando. Cada taller adopta un esquema, hace su propia ley interna. Para mí, existen dos tipos de empresa, aquella que adopta el capitalismo extremo, que quiere todo, sin sentimiento, y aquella que es humanista y ve que los trabajadores necesitan estar bien, con buena salud, para que produzcan. En la humanista, los trabajadores son mejores cuidados por la empresa. Aquí en São Paulo, me gusta ir a los museos y a visitar lugares que no conozco, a los barrios que están más lejos del centro. Invito a mis amigos, pero a ellos no les gusta hacer estos paseos más lejanos, porque se gasta más. La mayoría se queda encerrada en la casa por miedo a la calle, se quedan viendo la tele y películas. Algunos salen los sábados por la noche a las fiestas donde solo hay bolivianos, no me gusta mucho eso. Prefiero conocer lugares diferentes, me gusta conocer otras culturas. Siempre voy al barrio Liberdade saber acerca de los eventos que ellos hacen. Ellos están hace más de cien años aquí y mantienen la cultura, incluso sus hijos. Con los bolivianos es diferente, los hijos nacen aquí y ya no quieren saber de la cultura de allá. Aquí los bolivianos que trabajan en los talleres no tienen tiempo de pasar la cultura a sus hijos, pues comienzan a trabajar a las siete de la mañana y a las once de la noche todavía siguen trabajando. ¿A qué hora pueden jugar y hablar con sus hijos? Por eso, los hijos saben muy poco acerca de allá. En la escuela, yo era un buen alumno. Los mejores entraban en la universidad, pero para mí no salió bien, y tuve que dejarla por razones financieras. Fui a trabajar y por eso no funcionó. Ingeniería tiene tres lemas: estudiar, estudiar y seguir estudiando. No se puede trabajar. Era un curso de período integral. Entonces comencé a hacer cosas diferentes, trabajaba con equipo de sonido como DJ. La plata que yo tenía era poca y, a veces, no alcanzaba ni para almorzar. Cuando dejas de comer y sigues estudiando, te pones diferente. ¡No es bueno! Si estás estudiando hay que comer bien. En aquel tiempo, yo era muy optimista, ¡quería ser ingeniero electrónico! Pero necesitaba dinero para ir a la universidad y para comer. Entonces, dejé de estudiar y solo trabajé. El tiempo pasaba y yo solo pensaba en seguir mis estudios.

Page 75: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

75Histórias que se cruzam na kantuta

Antes de venir a Brasil, quería haber aprendido el portugués. Pero la forma de hablar era parecida, entonces me adapté. Para que pudiéramos entendernos yo hablaba despacio y los brasileños también. Nunca he sido tímido, entonces aprendí poco a poco. Yo quería trabajar en telemarketing, pues tengo trabajo de media jornada y algunas otras ventajas, pero se necesitaba hablar portugués fluente. Allá yo vivía tranquilo, tenía un montón de amigos, estudiaba y trabajaba en la música. De esa forma me pasaba el tiempo. Hacía algunos cursos y ayudaba a mi madre en la casa. Después que llegué aquí, me olvidé de todos, pues perdí los números de teléfonos y direcciones. Además de eso, la mayoría de las personas que yo conocía también se fueron a otros países. El único problema allá es que yo ya no estudiaba más, estaba haciendo algunos trabajos extras y trabajaba también en la radio, que solamente ponía las músicas del momento. Surgió un proyecto para abrir una discoteca aquí en Brasil y dejé todo. Aquí sufrí mucho al inicio. Pensaba que cuándo llegase aquí, iba a realizar algo extraordinario, pero ya había algo parecido aquí e hicimos algo solo para el público boliviano. Hacíamos un tipo de música que no nos gustaba, y tampoco ganábamos bien. Entonces, tuve que entrar en la costura forzosamente. Mucha gente no quería enseñarme a costurar, porque me decían que no tenían tiempo, pues trabajaban y ganaban por minuto y no se podía perder tiempo. Por eso, agradezco a quien me lo enseñó. Es difícil encontrar a alguien dispuesto a ayudarte. Lo que no me gustó en Brasil fue la sorpresa que tuve al saber de las favelas y por la facilidad para portar armas también. Por otro lado, veo aquí la facilidad que los brasileños tienen para estudiar, hay formación gratis. Allá también hay universidad gratis, pero es limitado a los que pasen en el examen, si no pasa, hay que pagar por sus estudios. Y si no hay como pagar, no se estudia. Como mis planes de trabajar aquí no funcionaron, tuve, obligatoriamente, que trabajar en la costura. No me gustó mucho e intenté cambiar. El tiempo pasó y, ahora sí estoy fuera de eso. Ahora me siento un poco más libre, ¡Mejor! Mi sueño para el futuro es tener una profesión fija y trabajar en esa profesión hasta desarrollarme en ella, como todos lo hacen. También, construir una familia y vivir en Brasil. Quería hacer viajes por el Brasil, conocer el norte y el sur. Cuando hablo de Brasil a otras personas, digo la verdad. La verdad es que cuando un brasilero conoce a un extranjero es desconfiado, pero si te conoce bien abre los brazos para ayudarte.

Page 76: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

76 Sí, yo puedo!

El brasilero es alegre, la música es alegre. Allá en Bolivia hay mucha gente escondida, no está a la vista. Aquí en Brasil noté también el racismo, que es más velado que en Bolivia. Pero desde que estoy aquí, pude entrar en cualquier lugar. En Bolivia te miraban de los pies a la cabeza, si no les gustabas, no te dejaban entrar. Cuando aprobé en la universidad allá, no era fácil, la gran mayoría era de la clase media alta y yo era de la clase media, además de eso, había la diferencia del color de la piel. Ellos habían pasado por escuelas de alto nivel, venían de familias con mucho dinero. Yo intentaba buscar a otros grupos que tenían menos dinero. Cuando llegué aquí hablé con toda la gente. Cuando veía a un brasilero de piel blanca me ponía un poco desconfiado, pensaba si él me iría a rechazar o iría a decirme algo como “vete de aquí”, pero era todo lo contrario. Por eso me gusta Brasil. Es diferente. El brasilero es más amistoso, amigo. Por eso es que personas de todo el mundo vienen a Brasil y construyen juntos la ciudad. Brasil está hecho de inmigrantes. Quien nació aquí es descendiente de inmigrantes. Primero llegaron los portugueses y los españoles, después los holandeses, los africanos y por último los italianos, japoneses, judíos y tantos otros. En estos últimos tiempos, llegaron los coreanos, después los bolivianos que vinieron a trabajar en el área de la costura. Los primeros bolivianos que aquí llegaron no vinieron a trabajar en costura, los trabajadores llegaron después. Con el acuerdo de Libre Residencia del Mercosur se volvió más fácil y el mundo latinoamericano llegó aquí. Creo que llegué muy tarde a Brasil, pienso que debería de haber salido antes de Bolivia. Habría tenido más oportunidades para aprender más cosas. Ahora, si regreso a Bolivia, vendré a vivir nuevamente aquí, pues ya estoy acostumbrado, me gusta aquí. Conozco las costumbres de los brasileños y la forma de ser de ellos. Me gustan las fiestas, el carnaval. Cierta vez, fui a un desfile de las escola do samba, hablé con algunos danzarines y les pregunté cómo podría participar y ellos me contestaron que no había requisitos. Me puse muy contento, quería participar, pero nunca ha sido posible. Una vez, fui a la cuadra conmemorar con el “Águia de Ouro”, ¡y participé de la fiesta hasta el amanecer! Volví a la casa y estaba contento. También siempre voy a los eventos de los inmigrantes. Me gusta conocer los gustos y las comidas de varias culturas. De Bolivia ya conozco todo, por eso me gusta salir a conocer otros lados. Cuando vine por primera vez, me quedé admirado por la cantidad de carreteras que había en Brasil. Quería quedarme, pero

Page 77: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

77Histórias que se cruzam na kantuta

no tenía permiso para eso. Hoy estoy viviendo en Bom Retiro. Es bueno, pero el alquiler es caro. Pero aquí todo lugar es caro. Y las condiciones tampoco son buenas. Pago cuatrocientos reales por un cuarto que es muy pequeño, y el baño es compartido. Allá viven solo bolivianos y paraguayos. Hay familias y hay personas solas también. Es más fácil alquilar, pues el responsable por el inmueble no pide algunos requisitos, como tener que hacer el depósito. Me gustaría tener mi propia casa aquí, para eso estoy trabajando. Cuando vives de esa forma, como vivo, estás sujeto a las normas de esa casa y no tienes la libertad suficiente. Intenté trabajar en el Centro de Apoyo al Migrante – CAMI, pero me dijeron que era voluntariado, entonces tuve la idea de buscar otras ONGS que hacían trabajos ayudando a las personas. Un amigo me contó del Colectivo ¡Sí, Yo Puedo!. Procuré el colectivo, buscando por orientación profesional. De poco a poco conocí cada persona y me acerqué más del proyecto. Me parece importante que las personas sepan de las cosas para que haya justicia. Una vez sufrí injusticia, cuando trabajaba en el taller. El dueño quería que yo hiciese todo, quería que hiciera otros tipos de actividades, como arreglar las luces, arreglar las máquinas y aparatos de televisión. Fui a trabajar allá solo para hacer el oficio de costura y él me decía: “Haz aquello también”. Hacía cosas por las cuales no recibía paga. De Bolivia hay una comida especial para mí, la salteña. A las personas les gusta. Es una comida del lugar de dónde nací. La salteña solo se come en el desayuno y se la hace con un poquito de salsa picante. Puedes utilizar aquella pimienta de aquí que es llamada “dedo-de-moça”. No hay salteña aquí como las de allá. Cuando como salteña recuerdo a mi familia. Mi padre siempre compraba salteña para nosotros. A veces, cuando nos preparábamos para el desayuno, mi padre aparecía con una caja llena de salteñas para toda la familia. Todos nos quedábamos muy contentos cuando llegaba ese momento. Él lo hacía en fechas especiales. Cuando veo la salteña, recuerdo de allá, y extraño mucho. Éramos cuatro hermanos. Todos mis hermanos viven en Bolivia y la mayoría se casó. Nosotros nos reuníamos en fechas importantes. Hace tres años que no vuelvo. Si me mejoro financieramente, pienso ir allá a pasear. Eran momentos felices, era una forma para que nos aproximáramos más, un espacio para ideas, chistes. La Salteña es tradición en la ciudad de La Paz, como el pan de queso lo es aquí. Estuve buscando a alguien que la haga de la misma forma que allá, con el mismo sabor y textura. ¡Hay una, la conozco! Pero solo la

Page 78: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

78 Sí, yo puedo!

encuentro los sábados y no los domingos. Originalmente, hablaban que la salteña era una masa de Argentina, porque hay una ciudad allá que se llama Salta. Parece que, décadas atrás, surgió una masa allá que se llamaba salteña, por eso el nombre, y alguien la trajo para la ciudad de La Paz. A las personas les gustó y se volvió una tradición. Tiene un sabor agridulce, usan harina de trigo, y por arriba tiene yema de huevo para dar el color y poner dentro de un relleno que puede estar mezclado con huevo, pollo, carne. También hay salteñas para veganos.

Page 79: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

79Histórias que se cruzam na kantuta

paLaBras Que saLeN comocucHiLLos

Flaubert Castro Arela

Mi nombre es Flaubert Castro Arela, tengo treinta años, soy peruano y adventista. Aquí en Brasil, vivo desde hace casi cinco años. Inicialmente, vine para estudiar ingeniería de la computación en la Universidad Anhembi Morumbi, tenía una beca parcial de estudios que conseguí en la Universidad César Vallejo de Perú. Pero cuando llegué aquí, la perdí, por puro descuido mío. Cuando lo noté, ya no tenía chances de ser aprobado en el semestre, entonces, después de tres meses batallando para mantener la facultad, decidí salir y tuve que trabajar. ¡Dejé la facultad a un lado! Pero, siempre, en mis pensamientos, quería seguir estudiando. Fui a buscar trabajo y al inicio no lo encontré. No fue algo rápido encontrar trabajo. ¿Por qué? Porque yo era graduado como técnico de informática, pero soy inmigrante y como estaba indocumentado era difícil encontrar un trabajo para mí. Las empresas no confiaban en mí. Tiempos después, comencé a trabajar con ventas y para ser

Page 80: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

80 Sí, yo puedo!

sincero, ya he trabajado con un poco de todo aquí y allá en Perú. Aquí trabajé como ayudante de albañil, comerciante, vendedor de plantas medicinales, cobrador de autobús, guía de turismo improvisado, programador en una empresa de bordados, trabajé en una tienda de ropas, con estampas y en una empresa de Helpdesk como técnico de apoyo al usuario de informática. Este fue mi último trabajo. Después de esos dos años que estaba sin buscar nada de mis estudios, procuré una institución para actualizarme sobre informática. Para poder continuar creciendo en mi profesión tenía que actualizarme, y encontré al SENAC, dónde pagué para actualizarme. Después, volví al mercado de trabajo nuevamente. Comencé a trabajar y fue todo tranquilo, pero cuando empecé a trabajar mi jefe era bueno, “legalzinho”. Creo que todos pasan por eso. Él me aceptó. Estuve trabajando un año con él, y entonces, pasó a manipularme. Él ya no quería que yo trabajase solo ocho horas. Me pagaba bien, pero para mí no daba. Comencé a quedarme hasta las diez de la noche y cubría los horarios de los otros empleados que se ausentaban. Y por más que no me obligara, yo no podía decirle no. Él me tentaba con dinero, pensaba que quien tiene dinero consigue y compra todo. A veces, en este mundo cruel hay gente que se deja manipular por dinero. A causa de mi religión, no trabajo a los sábados, y cuando le conté a mi jefe, a él no le gustó eso. Se quedó resentido. Decía cosas como: “Ah, ¿No quieres trabajar conmigo?”, “Te di la oportunidad de trabajar aquí” o “Te di confianza para que dominaras mi empresa”. Esa empresa fue la primera que me registró en la libreta de trabajo, hasta entonces siempre he trabajado como free lance, sin registro. Y todas esas cosas, él se me las echó en cara. Él dijo que me había dado la oportunidad de trabajar en ese mercado y que nosotros, peruanos, bolivianos y paraguayos, venimos para sacar el trabajo a los brasileños. ¡Me dijo así! Me sentí pésimo cuando me habló de esa manera. Yo tenía ganas… no lo sé… de volver a mi país. Pero, no quería regresar. En mi casa, pensé en renunciar y dejar el empleo. Después me reuní con mi jefe, que me propuso un acuerdo. Me dijo que si yo no iba a trabajar el sábado, entonces necesitaba de alguien para trabajar el domingo. “Bueno, yo puedo, pero una vez al mes”, le contesté. Pues a los domingos estaba apoyando al colectivo ¡Sí, Yo Puedo! Y al CESPROM. Trabajé los domingos, hasta el año pasado y salí de la empresa, para siempre. La empresa se mudó para São Miguel y mi jefe dijo que si yo quisiera, podría renunciar, pues él no haría ningún acuerdo. Entonces renuncié. Cuando fui a

Page 81: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

81Histórias que se cruzam na kantuta

la oficina, él estaba muy simpático y se disculpó por las cosas que me había hecho. Y me dijo que si yo trabajase con él, iba a aumentar mi sueldo. Analicé y resolví quedarme, pero en esa época, estaba estudiando portugués en el SENAC y me retrasé por tres veces al trabajo, pues no lograba salir a tiempo. Al final del mes, él no me pagó el valor del transporte. La mayoría de sus trabajadores ya se arreglaban faltando diez minutos para irse. Esas cosas yo no lo hacía. Un día fui junto con ellos a cambiar de ropa, mi jefe lo vio y me dijo que yo me estaba juntando a aquellos muchachos. “¡Eres un caballo! No estás respetando la confianza que te doy”, me dijo. No le dije nada, pero después, yo mismo hice mi carta de despido, se la llevé y él habló: “¡Déjala ahí!”. Una vez que salí de la empresa, ¡Decidí no trabajar para nadie más! Porque en todas las empresas que trabajé aquí en Brasil, me sentí muy, muy explotado, más que allá en mi tierra. Noté que las empresas no lo hacen solo con extranjeros, lo hacen también con aquellas personas que llegan del interior, de Bahia, de Minas Gerais. Violan no solo los derechos de los inmigrantes, sino de los migrantes que vienen de nordeste, por ejemplo. Hice un plan en mi vida y me prometí: “Voy a trabajar para mí, ¡Sea cuál sea el riesgo! Y voy a trabajar en mi área”. No es fácil ser emprendedor, pero estoy intentando, con sus altos y bajos. Cuando llegué, vivía en la casa de mi tía, ella tenía su empresa, era próspera. Tenía una empresa de jeans del Perú. A veces, ella traía tejido crudo. Después, ella empezó a confeccionar ropa. Se quedó un año con eso, pero el negocio no resultó. Después, ella y su familia se fueron de Brasil, pues aquí, según ella, la educación era mala, porque sus hijos no sabían nada. Allá en mi tierra, a los diez años los chicos ya consiguen leer perfectamente y saben toda la tabla de multiplicación. Aquí, di un texto para que ellos y sus colegas leyeran y no lo lograron y lo peor es que no sabían la tabla de multiplicación. En realidad, eso formaba parte de una investigación que realicé en Zona Leste, con estudiantes que tenían entre diez y once años, ellos respondían a algunas preguntas y ganaban un premio. Lógicamente, la hacía con la autorización de los padres. Antes de irse mi tía, llegaron mis hermanos. Uno llegó para hacer prácticas en Ingeniería Agropecuaria aquí en el interior de São Paulo y el otro llegó para trabajar, buscando nuevas oportunidades. Pasé a vivir con este hermano y abrí un negocio con él, con la ayuda de mi tía. Después de un tiempo, la mujer de mi hermano comenzó

Page 82: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

82 Sí, yo puedo!

a decirle a él que yo no hacía nada. ¡Por Dios! Cuando lo escuché me sentí muy mal. Conversé un día solito con mi hermano y le dije que no iba a soportar esa humillación. Le dije que iba a salir y a buscar mi destino. Cuando mi tía estaba yéndose, me dejó vivir en una habitación de ella y dijo que cuando yo pudiese la pagaría. Entonces los hermanos de mi tía comenzaron a hablar mal de mí, diciéndome que estaba viviendo gratis. Hoy, lejos de mis familiares, alquilé una habitación y vivo tranquilo. Desde entonces, vivo solo. En el momento, ¡Estoy en paz! Mi única preocupación ahora es mi vida profesional. Para mí, lo más importante son las personas que conozco y creo que será siempre así. Cuando veo a los chicos que viven en la calle, jugando a la pelota, con chinelas, ropa deshecha, camiseta, me acuerdo de mí mismo. La primera vez que vine a Brasil fui a jugar a la pelota con unos amigos que conocía. Al final del juego, hicimos otro camino para irnos a comer algo y pasamos por una favela. Y pensé: “¡Dios Mío! Brasil está catalogado como la quinta economía mundial, esas cosas no debían de pasar aquí”. Vi a personas armadas y todo eso. Lógicamente, ellos cuidaban de su barrio. Me quedé un poco asustado. Parecía mi barrio allá en Perú. Eso me ha hecho recordar de cuando yo era niño. Nací en el interior de Perú, en Puquio, en el Departamento de Ayacucho, pero cuando yo tenía cinco años fui adoptado por una familia y fui a vivir en la ciudad de Lima. Viví toda mi infancia y adolescencia en Lima. Estudié allá, trabajé e hice mis paseos. Un sueño que yo tenía era conocer casi todo Perú, explorar mi país, su cultura, su diversidad y las condiciones de vida de las personas, ¡Y así lo hice! Tardé casi tres meses para recorrer Perú por completo, visité departamento por departamento, ciudad por ciudad. Después tuve que volver para estudiar y trabajar. Pero siempre pensé que quería marcharme, no quería quedarme en Perú, porque si yo me quedase sería como una persona que está presa en una habitación. Y cuando una persona está encerrada en un sitio no hace nada, se siente solo, con la mente nublada. Lo mismo estaría pasando conmigo si me hubiera quedado en Perú. Entonces, salí de la habitación de Perú para el exterior, para Brasil. Ahora pretendo explorar toda Latino América y si Dios me permite, Europa también. Alrededor de los años 90, había terrorismo en la ciudad donde nací. El gobierno dio ese nombre a ellos: ¡Terroristas! Para mí eran grupos sociales con ideologías diferentes a las del gobierno. Es

Page 83: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

83Histórias que se cruzam na kantuta

en eso que creo yo. Me parece que mi padre era parte de ellos, pues un día, mi tío, bromeando, me dijo que mi padre estaba allí. Pero creo que ellos nunca me contarían la verdad. Después de esas historias, quise saber cómo murió mi padre. ¡Fue asesinado! Mi padre fue asesinado y yo no lo supe hasta mis dieciocho años. Después que él se murió, mi madre solita no conseguía alimentarnos. Éramos tres hermanos. El menor tenía solo algunos meses. Yo era muy travieso, molestaba a mi mamá, por eso ella me mandó a vivir con su padrino de matrimonio. Fui a vivir con esa familia, que actualmente considero mis padres. Y de esa forma fui a vivir a Lima. Mi madre biológica no quería que mi hermano y yo migrásemos para otros lugares del mundo. Ella decía: “¿Por qué quieren salir si tienen todo aquí?”. En aquella época, cuando yo tenía diecinueve años, mi madre ya tenía una posición económica bien establecida, pero nosotros queríamos buscar nuestro propio camino. Ella decía que si quisiésemos dinero, ella nos daría, si quisiésemos casa, ella la conseguiría. Mi foco siempre ha sido mis estudios, hasta ahora mi foco es terminar mi formación como ingeniero en computación. Estoy batallando, día tras día en busca de eso. Pero una de mis dificultades es la economía. Yo quería retomar en la misma universidad que estaba, pero ahora solo pagando. Entonces, estoy buscando otros cursos que sean en la misma área, ni que sean técnicos, de esa manera puedo prepararme. Mi foco fue estudiar aquí en Brasil. Pero, después que perdí la beca, tuve que pensar como trabajar aquí. Antes de venir para acá, pasé por una situación sentimental allá. Esa fue una de las causas, para olvidarme de esa implicación sentimental, por las cuales abandoné aquella ciudad y aquel país. Yo trabajaba en una multinacional, era jefe, solo controlaba. Un año después que estaba trabajando allá, conocí a una chica linda, me enamoré. Al inicio ella no quería nada conmigo porque tenía un pretendiente que era español. Competí con el español. Decidí conquistarla y lo conseguí. Meses después que comenzamos la relación, ella me traicionó con aquel español. Lo que más quería era olvidarla, alejarme de ella, para no volver. Cuando llegué aquí, me quedé dos meses pensando en ella, la extrañaba, quería pedirle disculpas, ni sé por qué. Poco a poco fui adaptándome, conocí a una chica, comencé a salir con amigos. Y de esa forma superé las cosas y al final me quedé acá.

Page 84: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

84 Sí, yo puedo!

Imaginaba encontrar aquí una ciudad limpia, sin ningún tipo de discriminación y moderna. Sin delincuencia, nada de esas cosas. Me imaginaba en un barrio limpio y en una ciudad limpia. Pero no fue de esa forma. Me pareció peor que allá en mi ciudad, sinceramente. Una cosa es la educación en las escuelas públicas, que la califico como pésima. Esa fue la decepción más grande para mí. Esperaba una educación muy desarrollada. En la salud, me deparé con médicos que no saben nada. Por ejemplo, tengo gastritis, fui a consultar un doctor y él me dio solo un calmante. La adaptación aquí fue difícil por causa de aquella implicación amorosa, no sabía si me quedaba o regresaba. Otra cosa es que había muchos mosquitos aquí, día y noche, y no podía dormir. No me gustó nada eso, fue horrible. Por cuenta de eso resultó difícil adaptarme, no me dejaban dormir. En todo mi cuerpo aparecieron pelotitas rojas y me asusté. Pensé: “¿En qué país estoy?”. Hasta que me recomendaron una protección para mosquitos, desde entonces dormí en paz. Fui lidiando también con los problemas de mi lenguaje en el día a día y fui aprendiendo portugués hablando con los amigos y con los vecinos. Aprendí y después me acostumbré. Tras un año aquí, volví a Perú y ya no me acostumbraba más allá. En mi ciudad tenía mucho polvo, casi no se ve nada. Aquí en São Paulo eso pasa solo cuando llueve. Ya estaba habituado con el clima de aquí, entonces volví en dos semanas. He visto mucha facilidad en los estudios aquí, pues uno puede estudiar gratis con el apoyo del gobierno. Allá si no haces vestibular y no lo consigues, ya no hay nada más. Aquí, por lo menos, hay cursos en SENAC, SENAI y, además de eso, hay PRONATEC. Allá no hay eso. Solo estudias gratis si pasas en vestibular. Allá todo es cobrado, un curso de danza, por ejemplo, tienes que pagar. Aquí hay más proyectos sociales. Ahora eso está cambiando un poco allá. ¡Creo que están copiando de aquí! Una dificultad que tuve aquí, fueron los medios de transporte. Cuando comencé a trabajar afuera, para moverme de mi casa hacia mi trabajo, o de mi trabajo a mi casa, era muy difícil. El bus demoraba veinte minutos para pasar. El fin de semana era aún peor, esperábamos media hora, una hora. En Lima, el medio de transporte es rápido, llegas a tu parada y ya tienes tres buses pasando y solo necesitas decidirte cual vas a tomar. Yo decidía tomar el bus más bonito. Otra dificultad fue la discriminación, que ocurre en todo el mundo, no solo en Brasil. Fui uno más que sufrió con eso. Mi jefe me

Page 85: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

85Histórias que se cruzam na kantuta

discriminaba y una vez le contesté. Dicen que desde niño, siempre cuando yo hablaba, mis palabras salían como un cuchillo. Cuando discutí con mi jefe, en lugar de yo sentirme mal, él se sintió mal. Solo le dije unas cinco palabras y lo derrumbé. Nunca más él me levantó la voz o quiso dominarme. De modo general, mis mayores dificultades fueron el tránsito, el trabajo, lo que conté de mi jefe, o sea, la discriminación y los mosquitos también, que al comienzo no sabía cómo combatirlos, ¡Ahora lo sé! Hay muchas herramientas para combatirlos. Allá en Perú, yo tenía una artesanía hecha de barro que mi madre hizo para mí. Era la imagen de un buey. Era un recuerdo de dónde nací. Es la única ciudad del mundo que tiene ese tipo de artesanía, de toritos. Yo cargaba ese objeto para todo lado. En la escuela, yo hacía las materias de trabajos manuales y teníamos que exponer nuestros trabajos. Gané dos veces la exposición, llevando toritos. Yo llevaba el torito para acá, para allá, para la escuela y para el trabajo. Cuando era niño, yo hacía artesanías y le ayudaba a mi madre. Me gustaba pintar y adornar. Poníamos unas piedras que parecían diamantes, después las poníamos en el horno y quedaban brillantes. Cuando decidí venir para acá, mi padrastro me preguntó si no iba a llevarlo conmigo, diciéndome que mi compañero iría a llorar. Preferí no traerlo, pero después pensé que debía haberlo traído. Quise dejarlo allá y lo dejé. Él me decía que yo podría venderlo aquí. Cuando estaba arreglando mi maleta, también pensé llevar mi perfume, que me gustaba mucho. Aquí creo que no había, lo encontré después, pero es caro, allá es barato. Es fabricado allá. Mi tía dijo que yo no debía llevarlo, pues iba a quedarse en el aeropuerto. Arreglé mis maletas y me quedé pensando que no sabía qué tipo de perfume se vendía en Brasil. Mi exnovia me acompañó hasta el aeropuerto y me dio un regalo. Lo abrí y era el perfume. El paquete completo de la marca, la mejor marca de perfume de allá. Y yo no sabía cómo decirle que no podía llevarlo. Entonces comencé a pasarlo en mí para quedar con el olor en mi cuerpo. Ella me preguntó porque yo estaba haciendo aquello y le dije que lo sentía mucho, pero el regalo iba a quedarse con ella. Ella me dijo que iba a echarlo en la basura, pero no sé si era verdad. El olor del perfume era bueno, me gustan los leñosos. Después de un año y medio volví, me fui con gran emoción, llegué y ya no había nada en el vidrio de perfume, no sé quien lo usó. Me dijeron que se había evaporado. La

Page 86: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

86 Sí, yo puedo!

única solución fue la resignación. Para finalizar, me gusta un poema, titulado “Recomeçar”, del brasilero Paulo Roberto Gaefke, que dice así:

“Não importa onde você parou,

em que momento da vida você cansou,o que importa é que sempre é possível

e necessário ‘Recomeçar’.

Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo.

É renovar as esperanças na vidae o mais importante:

acreditar em você de novo.”

Page 87: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

87Histórias que se cruzam na kantuta

oTra imaGeN de BrasiLFranz Mijail Sanabria Galván

Soy Franz Mijail Sanabria Galván, tengo veinticuatro años y soy boliviano. Nací en la ciudad de Potosí en Bolivia y me crié solo. No conocí a mi padre y cuando tenía un año, mi madre se fue a Argentina a trabajar. Mis abuelos me criaron. Fui viviendo de ciudad en ciudad. Me mudé de Potosí a Sucre y de Sucre a Cochabamba. Todo a causa del estudio. Hice la Educación primaria en Sucre, después la secundaria en Cochabamba y volví a Sucre para estudiar en la universidad. Estoy en São Paulo desde hace tres años. Potosí es una ciudad fría, porque queda en la Cordillera de los Andes, hace frontera con parte de Chile. El clima es frío y por ser un clima frío las personas también son de esa manera. No son tan amigables, son más cerradas. Salimos de esa ciudad en busca de un mejor clima y de un centro económico, que en aquel momento estaba desarrollándose en Sucre. Eso fue lo que me contaron mis abuelos, pues salí de allá cuando tenía dos años. En Sucre, me

Page 88: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

88 Sí, yo puedo!

quedé hasta mis trece años. Sucre es una ciudad pequeña, donde uno puede conocer toda la ciudad por ser muy pequeña. El clima es templado. Pasé mi infancia en los parques de allá con mis primos. En Cochabamba hubo un cambio, pues pasé a vivir con mi tío. Mis abuelos permanecieron en Sucre. Yo estaba solito allá y pienso que fue una etapa de mi vida que tomé consciencia de mí como persona. Me volví más independiente. Fue la etapa que más disfruté, pues me autogobernaba. Pero también tenía mis restricciones. ¡Fue la mejor época! Estudié en una universidad pública en Sucre y cuando la terminé, estudié inglés por dos años, después vine para acá. En la infancia, yo estaba muy enfermito. Durante el invierno siempre me enfermaba, pues tenía enfermedades pulmonares, gripe y tos. Eso me ayudó. Si estás enfermo, das más valor a tu salud. Mientras yo estaba enfermo, mi tío, que estuvo en Rusia, me prestaba algunos libros y me los hacía leer. Yo no tenía ningún interés, los leía por leer. Después él me preguntaba lo que había conseguido entender de los textos y me decía que tenía que analizar los personajes, pues cada personaje tenía una vida propia, que iba desarrollándose en la obra. El contenido para un niño era muy complejo. En todos los libros que leí, siempre vi reflejada una parte de mí en los personajes. El modo en cómo vivían, actuaban y pensaban. Cuando regresó de Rusia, mi tío nos trajo otra perspectiva de la vida. Y eso nos marcó a todos. Él trajo la posibilidad de observar la vida de otra forma. Durante la época universitaria, trabajé con mi profesor. Él era ingeniero eléctrico y yo hacia las prácticas en su taller, arreglando los motores. Trabajé, aproximadamente, dos años con él. Me gradué en mecánica industrial, pues mi abuelo es mecánico, entonces quise seguir sus pasos. Terminé el curso, pero no tuve tiempo de trabajar en esa área. Pero pienso que el tiempo de prácticas con mi profesor fue lo suficiente. Fue en esa época que se me presentó la oportunidad de venir aquí. Había visto un documental, que no era sobre Brasil, pero hablaba que cuanto más experiencias tienes en tu vida, más conocimiento vas a adquirir. De ese modo, cuando se me presentó la oportunidad de venir, yo la tomé, pues cuanto más experiencias nuevas tengo, más conocimiento. Ese, entonces, fue el motivo, no tanto el futuro económico, porque no doy tanta importancia al dinero. Le conté a mi tío acerca del documental y él me dijo que si quisiera podría venir y quedarme seis meses o un año con él, solo para conocer esa otra realidad que era Brasil. Le respondí: “Tá certo!”.

Page 89: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

89Histórias que se cruzam na kantuta

En Bolivia, vi la película Cidade de Deus. A causa de esa película, yo me había creado otra imagen de Brasil, creía que si llegase aquí, uno se moriría. Otra que vi fue la de un muchacho que secuestraba un autobús, Parada 184. Conocí el Colectivo ¡Sí, Yo Puedo! cuando fui a preguntar sobre una documentación. Quería regularizar mi diploma para trabajar en el área que me gradué. Fui a averiguar al consulado y había muchos trámites por hacer, todo muy burocrático. Me pareció mejor estudiar nuevamente. Siempre mantengo contacto con mis abuelos, ya he regresado tres veces a Bolivia desde que llegué aquí. Cuando vuelvo, todo allá parece muy diferente. La relación con mis parientes no cambió. El aspecto afectivo tampoco cambió. Pero las ciudades cambiaron mucho. Siento falta de Bolivia, pues allá tengo más libertad, tal vez por ser mi país y poder ir a cualquier lugar. Allá puedes entrar en las diversas comunidades. Pero aquí no. Cuando llegué aquí la barrera no fue el idioma. Me sorprendí porque pensaba que las personas entendían español, pues como Brasil está rodeado de países que hablan español, era como obligación, ¿No? Brasil queda aislado del resto. Pero fui adaptándome y se volvió más fácil. La lectura de textos y libros me ayudó bastante. Yo sabía que iba a tener dificultades por la lengua, porque era diferente. Antes de llegar aquí la imagen era otra. Creía que iba a tener dificultades con el idioma y pasar por una posible discriminación de las personas, pero cuando llegué fue todo lo contrario. La gente brasileña es muy acogedora. El portugués es similar al español, entonces fue fácil entender la lengua. Antes de venir para acá, mis amigos ingenieros también me habían dicho que a causa del presal había mucha oportunidad en mi área. Mi familia es una familia pequeña. Mi abuelo tiene siete hijos. Yo tengo seis tíos. También tengo una hermana que ya terminó medicina. Viví con mis abuelos porque en aquella época mis tíos eran adultos, estaban estudiando o viviendo en otras ciudades y mis abuelos estaban solitos, entonces me quedé con ellos. Al vivir con mis abuelos, conseguí aprender el dialecto quechua. Aprendí muchas cosas allá con ellos. Hoy trabajo con costura. Trabajo para mi tío. Es chistoso recordar que, durante el colegio, yo tenía un círculo de amigos que les gustaba el rock. Ellos pedían a mi tío, que era alfayate, que hiciese pantalones negros o que dejara los pantalones negros más

Page 90: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

90 Sí, yo puedo!

ajustados. Mi tío no quería hacerlo y entonces comencé a costurar. Costuraba los pantalones de mis amigos. Y también ganaba algún dinero. Trabajé con mi abuelo también, en el área de mecánica, siempre lo he ayudado. Cuando decidí venir a Brasil, estaba en Sucre, la ciudad donde actualmente vive mi familia. Dos meses antes de mí viaje yo ya les había comunicado. Estábamos aguardando la fecha del viaje. En la última semana, conseguí despedirme de los amigos y organizar mis papeles. Yo no trabajaba en aquel momento. Todos estaban de acuerdo, pero mi madre dijo que yo tendría que trabajar y ganar experiencia en mi área allá en Bolivia antes de venir para Brasil. Como ya había hablado con mi tío, que vivía aquí, fue más fácil convencerla que yo iría a estudiar aquí. Me gustó la gente de aquí, muy alegres, siempre tratan de charlar, son amigables. Mis planes ahora son pasar por el preuniversitario de la USP y hacer la facultad de Letras. Me dijeron que en USP tienes la opción de estudiar inglés, francés y ruso. Puedo trabajar como intérprete o traductor. Y puedo conseguir empleo en una editorial. También quiero realizar otros proyectos que tengo con mis amigos en el área de confección de ropas. Un grupo de amigos y yo pensamos en montar una tienda online de venta de ropas. Cada amigo tendrá una función, por ejemplo, de cortador, diseñador, diseñador, pilotero y costurero. Antes de venir, llené un formulario que vendría para estudiar. Si vienes como turista tienes que comprar el pasaje de ida y de vuelta. En la otra modalidad solo necesitas del pasaje de ida. Cuando llegué, saqué todos los documentos aquí. Fue fácil. ¡Me sorprendí! Porque la organización aquí con relación a la entrega de documentación es correcta, marcas la fecha y ellos te la entregan. Es muy diferente de Bolivia. Es complicado sacar la documentación allá. Cuando saqué la documentación no tenía conocimiento de las instituciones que ayudan a los inmigrantes, pero fue más fácil para mí, porque mi tío ya tenía toda la documentación y me orientó. Me considero privilegiado, porque es mucho más fácil vivir con una persona que ya conoces y que está aquí hace más tiempo. Vine en autobús. El viaje fue muy bueno, durante el trayecto tuve la oportunidad, en una parada, de tener un primer contacto con un brasileño. Fue mi primera experiencia con la lengua portuguesa. Los buses que parten de allá llegan en la estación Barra Funda. Esa estación está siempre muy llena y cuando llegué me sorprendí, porque había mucha, mucha gente. Cuando llegué, mi tío estaba

Page 91: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

91Histórias que se cruzam na kantuta

aguardándome ahí. Él compró los billetes del metro y fue la primera vez que pasé por un molinete y tomé el metro. Como yo tenía miedo de perderme en São Paulo, comencé a tomar como punto de referencia las estaciones de metro, pues una de las primeras cosas que aprendí fue a moverme por las líneas del metro. Mi tío me habló de un centro, donde había eventos culturales, con entradas gratuitas o que costaban un real, comencé a ir a las presentaciones de música, de teatro y empecé a frecuentar la Biblioteca São Paulo. Aquí tienes muchas oportunidades. ¡Es solo aprovechar! Conocer gente y hacer contactos ayuda mucho. En esos tres años, conseguí conocer mucha gente, aprender la lengua y también conocer gente no solo de Brasil, sino de otros países. Llegué a trabajar como voluntario en la Copa de 2014 y, ¡Conocí mucha gente! Trabajé en la acreditación. Ya hice inscripciones para trabajar en mundial de Rusia. En el momento de armar la maleta, mi madre no estaba y la llené: una mitad con libros y la otra mitad con ropas. Al cargar mi maleta, mi madre me preguntó qué estaba llevando, porque estaba muy pesada, y yo no le dije nada, le hablé que eran solamente ropas. Cuando llegamos a la frontera, ella revisó las maletas y encontró los libros. Ella casi se volvió loca, me preguntó por qué estaba trayendo tantos libros. Pero yo necesitaba traerlos. Yo acostumbro a leer a veces, porque cada libro tiene su significado. Decidí traer los libros de aquellos que me gustan mucho, por ejemplo, traje Dostoievski, pues me gusta la literatura rusa. Un autor que admiro mucho es Jorge Luis Borges. Otro autor es Federico García Lorca, que murió durante la guerra civil española, fue asesinado. Él era amigo de Salvador Dalí. Traje también un libro de Albert Einstein, que no es acerca del contenido matemático, sino sobre la filosofía de la teoría de la relatividad. Otro autor que es un genio es Antón Chéjov. Tengo también un libro de Nietzsche, Humano, demasiado humano, que en realidad era de mi madre. Ella leía mucho cuando vivía en Argentina. La mayoría de los libros que tengo tienen una numeración, eso significa que pertenecieron a una biblioteca. Allá en Sucre había una biblioteca financiada por una ONG española, pero la biblioteca quebró y para pagar las cuentas de luz y agua, ellos tuvieron que vender el acervo. ¡Y la gente colaboró! Conseguí comprar algunos libros. Fue de esa forma que obtuve la gran mayoría de los libros. Dejé muchos libros allá, pero los que traje son de los autores que más admiro.

Page 92: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

92 Sí, yo puedo!

Muchos de esos libros los compartí con otras personas, no se quedaron solo conmigo. Los difundí entre mis primos, se los presté a ellos. Algunos fueron devueltos, otros no. Los presté a amigos también. Esos libros me hacen recordar a mis amigos, familiares y a personas cercanas que conocí. Las relaciones que tuve antes de venir a Brasil.

Page 93: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

93Histórias que se cruzam na kantuta

¡aQuÍ es Todo muY LeJos!Lucia Ireyo Raimundo

Me llamo Lucia Ireyo Raimond, tengo cincuenta y cinco años y soy de Bolivia. Hoy trabajo como niñera y estoy aprendiendo a hacer otras cosas, como pintar, costurar, ¡todo! Mi historia es un poquito triste. Cuando yo era pequeña, mi madre falleció y las tres hermanas nos quedamos sin madre. Somos tres hermanas. De esa forma, aprendí con la vida, sufrí mucho y fui creciendo, creciendo. Estudié un poco y paré. Mi padre no nos hacía estudiar. Y de esa forma seguí creciendo y surgió un trabajo con una señora que es mi conocida, firmé un contrato y vine con ella a Brasil para trabajar, para cuidar de sus dos hijas. Estoy desde hace cuatro años aquí. Tuve cuatro hijos, que viven en Bolivia. Los dejé y vine solita para acá. Una de ellas estuvo enferma y falleció. Ella tenía 31 años, su enfermedad era leucemia. Un virus contagioso le subió al cerebro y ella no resistió. Eso pasó en 2014. Había ido a Bolivia y otra vez regresé a Brasil para seguir trabajando, con mi corazón partido,

Page 94: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

94 Sí, yo puedo!

lejos de mi familia. Aquí tengo amistades que me apoyan mucho. Mi hijo mayor quiere que yo regrese a Bolivia para que la familia se quede toda junta. A ver si sigo aquí o si regreso... Solo Dios sabe lo que va a pasar. Sé que quiero seguir trabajando. Estoy un poco triste, un poco alegre, pero estoy feliz. Me pongo triste cuando pienso en mi hija que falleció y ya no está presente. Y alegre cuando estoy con mis amistades. Cuando nos reunimos y estamos en grupo me quedo un poco alegre y me olvido de todo. Pero va a pasar, porque eso pasa, aunque no se pueda olvidar tan rápido. Allá en Bolivia, yo trabajaba mucho, tenía un negocio y vendía hot dog, pollo con papas, arroz y ensalada. Vendía en la tarde hasta la una de la mañana. Después, me levantaba temprano para nuevamente ir por las compras. Me gusta cocinar. Las personas que me conocían allá, me pedían que yo preparase el almuerzo y la cena. ¡Y de esa manera viví! Trabajé mucho, sin descansar. Aquí ya puedo descansar, casi no trabajo mucho. Descanso el sábado y el domingo. Y durante la semana trabajo normal, cuidando de las chicas. Ya he trabajado mucho para ayudarles a mis hijos, pagar el agua, la comida y la luz. Cuando me separé del padre de ellos, él no me ayudó. Yo vivía en Santa Cruz, pero nací en otro lugar, en Yacuiba. Como a mi papá le gustaba trabajar yendo de un lugar a otro, salimos de nuestra casa y fuimos a otra ciudad, donde mi madre falleció, en el parto. Yo tenía cinco años. Fuimos a Santa Cruz y mi padre permaneció allí, trabajando. Antiguamente, no podías charlar con un chico fuera si no llevabas palmadas, te pegaban. Mi hermana tuvo que casarse a los trece años, pues estaba conversando con un muchacho de dieciocho años. Pero ella no se acostó con él, porque era muy niña. Su suegra la cuidó y, después, cuidó de nosotras, pues mi padre se fue con otra mujer. Crecíamos y ya no había para comprar un libro o un lápiz para mi hermana y yo, porque mi padre no aparecía y mi hermana no trabajaba. No terminé la escuela. Nos quedamos sin estudiar, yo tenía ocho años. Tengo una tía, por parte de madre, que nos llevó para vivir con ella. Pasamos dos años con mi tía y ella se murió pronto, de infarto. Fui creciendo, comencé a trabajar, fui a vivir junto con una persona. Pero no fui feliz con ese hombre, fracasé en mi matrimonio. Todo se terminó porque él bebía mucho. Después de mucho tiempo volvimos e íbamos a casarnos, pero él no cambió y yo ya no estaba

Page 95: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

95Histórias que se cruzam na kantuta

acostumbrada, entonces nos separamos de verdad. Fui madurando, criando a mis hijos y trabajando. ¡Mis hijos y mis nietos son mi vida! Me gustaría volverme a casar, necesito de un compañero para conversar. Mis hijos no quieren que yo me case, que me enamore, ¡Que nada! Porque ellos sienten miedo que el hombre me pegue o que yo sufra. Un brasileño, cuando yo vivía en Curitiba, ya había intentado casarse conmigo, pero yo no quise, pues tenía que trabajar aquí. Toda su familia era muy buena conmigo, pero tengo que pensar muy bien para tener una relación con alguien. En todo lugar que íbamos, había un brasileño enamorado de mí. Pero yo no les daba chance. Por fin, nos mudamos a São Paulo y aquí ya no tengo novios, solo admiradores. Cuando llegué de Bolivia fui directo a Curitiba, viví cinco meses allá, después nos mudamos a Cuiabá. Siempre quise venir a Brasil a trabajar y me gustó haber venido, porque siempre pensaba: “¡Quiero irme a Brasil!”. Pero, cuando llegué, quise irme, pues no aguantaba y lloraba, porque ya no estaba acostumbrada a cuidar de niños. Lloraba y decía “¿Dios mío, que he hecho para venir aquí?”. Sin embargo, vine orientada por una ministra, miembro de la Iglesia Mesiánica, que me dijo que yo debería quedarme en Brasil y juntar dinero para garantizar mi futuro. “Aguante lo que venga, aunque llores sangre, quédate”, me decía ella. Cuando decidí venir a Brasil, mi vida allá en Bolivia era mala. Yo estaba sin dinero y mi negocio no daba retorno. Entonces me hablaron de este trabajo, y vine. ¡Lloraron tanto por mí! Y yo también lloré. Conocía la tía de mi jefe, que me animó a venir a Brasil a acompañar a su sobrina. Yo vendría solo por un tiempo, pero a ellos les gustó mi trabajo, yo soy muy lista para cocinar, entonces me quedé. Hubo una época que fui a pasar las vacaciones a Bolivia y no volví, me quedé allá por once meses, trabajando para mí, pues hago de todo lo relacionado a vender. Tenía mi familia también. Me quedé allá, pues la madre de mi jefe decía que yo ganaba dinero, sin hacer nada, lo escuché y me puse muy brava. Me gusta que me hablen de frente. Mi jefe trajo otra persona de Bolivia, pero esa persona peleaba mucho con las chicas, por lo que me dijeron. Cuando le llamé a una de las niñas para desearle feliz cumpleaños, mi jefe preguntó si yo no quería volver. Y volví, pero le dije que iba a regresar otra vez, que solo me quedaría tres meses. Pero ya estaba sacando el documento, entonces me quedé. No entendía muy bien el portugués, hablaba, pero no lo

Page 96: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

96 Sí, yo puedo!

entendía. Hablaba todo mal. Fui sola a sacar mis documentos. Fui sintiendo miedo, porque ellos no me entendían. Me dijeron que yo debía ir a Lapa. E yo les decía: ¿Por qué no hablas español? Casi no entiendo nada, ¡Explícame más despacio! Había otro boliviano allá y él fue quien me explicó donde yo tendría que ir. No entendía nada para sacar mi RNE. No conocía nada, era otro idioma y es muy difícil cuando entras y no sabes nada. Aprendí mirando la tele, escuchando la radio y fui aprendiendo un poquito. Cuando salía a la calle me daba miedo, tenía miedo de que los otros hablasen conmigo, porque no entendía nada y tampoco yo podía preguntarles algo. Me quedaba perdida, no sabía por dónde caminar. No sabía hablar, ni entendía. Ahora entiendo, porque hice el curso. En Bolivia, mi sueño siempre ha sido Brasil. Intenté venir tres veces con el grupo de la Iglesia Mesiánica, pero mi segundo marido, no quería. Cuando vine, no me creía que estaba en Brasil. Vine en bus. Me gusta viajar en bus para disfrutar del paisaje. Yo no creía que era yo quien estaba entrando. Gracias a Dios conocí varias partes de Brasil. Para mí fue un sueño. Con mi jefe fui a Rio de Janeiro y conocí el mar, fuimos a comer pescado y camarón. Nunca en toda mi vida había visto el mar, solo en las películas. ¡Qué lindo es cuando el sol se adentra en el mar! Fue el mar más grande que conocí. De aquí, me gustó mucho el jugo de guayaba, nunca lo había tomado. Hay cosas aquí que no aprovechamos allá. Hay jugos de todos los tipos aquí. Allá solo chupamos las frutas y no las usamos para otras cosas. ¡El jugo de acerola también es rico! Casi nadie allá conocía la acerola. No sabían cómo preparar el jugo y tampoco sabían lo que era. Aquí hay muchos tipos de sopa, como los de hojas verdes. ¡Aquí es diferente! Me gustaron las cosas de aquí. Es fácil comer las cosas, porque me gusta comer. Aquí todo es muy lejos, muy cansador. Para caminar hay que salir temprano. Solo eso, pero uno se acostumbra. Antes no tenía la costumbre de caminar mucho. Donde yo vivía, caminaba solo media cuadra hasta donde el bus pasaba. No estaba acostumbrada a caminar tanto. Allá nunca había ido en ascensor y escalera mecánica, aquí fui. Santa Cruz antes era mata, pero ahora está creciendo mucho. Las personas del interior están yéndose para allá. Fui de Bolivia para Curitiba, vivíamos en Juruena, en Mato Grosso, ¡Muy linda, muy bonita! Me gustó. Cerca de Curitiba fuimos a un lugar que hacía mucho frío, entonces nos mudamos para Campo Grande y nos

Page 97: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

97Histórias que se cruzam na kantuta

quedamos allá casi un año. De Campo Grande venimos a São Paulo y no me gustaba São Paulo, porque era todo difícil, caminábamos mucho. ¡Yo le digo a mi hijo que Bolivia es un paraíso! Todo es cerca, no se camina mucho. Sobre los brasileños, ellos nunca me molestaron, donde voy siempre soy muy bien recibida, por mujeres, hombres y niños. Nunca he tenido problemas por ser boliviana, nunca me discriminaron. Aquí, y en todas las partes que viví, fui muy bien recibida. De Bolivia, tengo guardada una cajita llena de bisuterías. Esa cajita me la regaló mi hijo cuando me fui de vacaciones a mi país, había cuatro aretes dentro, pero en ella guardo otras bisuterías que recibí de la gente de allá. Ese hijo mío ya vino a Brasil. Yo le regalé el viaje por su cumpleaños. Mi hijo me dio esos aretes en un día particular. Fue la primera vez que yo recibí un regalo así de él, creo que quiso dármelos por sentir cariño. Me puse muy contenta, porque ese chico es poco cariñoso, no es muy apegado a mí. Él es serio, es su forma de ser. Siempre ha sido de esa manera. Le digo que es fastidioso, no es atencioso con las personas, ni gentil. Solo uso los aretes en casa, no los uso para salir, porque los cierres de los aretes se caen mucho en la calle. No me gusta perder nada que me regalan. ¡Soy muy cuidadosa! Cuando los uso, me acuerdo de mi hijo. Hace tiempo que no me pongo esos aretes, estaban bien guardados. Todo lo que me regalaron, lo guardo con cariño. Cuando voy a Bolivia, ya no me acostumbro allá, como otros alimentos y siento dolor de estómago. Allá los condimentos son muy fuertes, con mucho aceite y sal. Pero aun así, lo que más extraño de allá es la comida. Sopa de gallina campera con yuca, acompañada de un arroz especial, me encanta comer. Aquí la gallina campera queda lejos. Mis hijos me extrañan porque yo cocino. Quieren la comida que hago. Ellos me dicen: “¡Mamá ya no vas a trabajar!”. Para mí mis hijos no son adultos. Dicen que no dejo que mis hijos maduren. Tengo miedo que ellos vengan a vivir aquí, pues el otro día mataron un boliviano. Lo asaltaron, y querían dinero y como no tenía dinero, entonces lo mataron. Tenía veinticuatro años y hacía tres meses que estaba aquí. Allá es violento también. Tengo una vecina allá en Bolivia, que le mataron a su hijo, que vendía marihuana. Allá es peligroso también. Pero allá matan y los llevan lejos. ¡Igual aquí! Matan y los llevan a otro lugar. Así es.

Page 98: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

98 Sí, yo puedo!

LiBre iNcLuso de si mismoMiguel Angel Saavedra Aguilar

Mi nombre es Miguel Ángel Saavedra Aguilar y solo tengo treinta y seis años. Soy boliviano, y sí, sé costurar. Conozco Brasil hace once años. Hablo que conozco, porque no viví los diez años continuos aquí, pues volví a Bolivia, viví por dos años allá, después regresé a Brasil por un año, volví a Bolivia nuevamente y así seguí. Nací en La Paz, pero no siempre viví en La Paz. Salí de casa a los doce años y fui a vivir al Beni, trabajé como ayudante de camión y comencé a viajar, por eso conozco toda Bolivia. La primera vez que vine a Brasil, tenía veinticuatro años. Y pienso que venir para acá, tal vez, era mi última opción. Y así lo era para muchos de mis amigos. Vengo de una familia muy pobre, pero no ha sido esa la razón que me hizo venir a Brasil, pues cuando decidí venir hacia aquí, estaba en un momento muy crítico emocionalmente. Allá yo sobrevivía, pero la parte emocional fue decisiva. Fue una serie

Page 99: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

99Histórias que se cruzam na kantuta

de acontecimientos lo que me trajo a Brasil. Me acuerdo que mi situación económica estaba tan mala, que vine con una muda de ropa. Había puesto en la mochila un par de zapatos, dos pares de medias, mi tarjeta de periodista, dos camisas, un pantalón, el pasaje de Santa Cruz hasta Ciudad del Este y cinco bolivianos en el bolsillo. Esa era mi situación. También traje conmigo un artículo que me dieron para leer, titulado “Masculinidades en la cultura de la globalización”. Es un artículo sobre masculinidades. Era un texto que hablaba sobre comenzar a ver la violencia a partir de los hombres. Ver la violencia como algo de los hombres y no exclusivo de las mujeres. Fue uno de los primeros documentos que recibí cuando comencé a trabajar con derechos humanos, quien me lo dio fue una persona que me enseño prácticamente a leer. Yo sabía leer, pero de aquella forma donde no entiendes nada, solo repites. Grande parte del camino que sigo hoy se debe a esa persona, que es un amigo. Él me ha hecho el mayor cuestionamiento que ya he recibido, me preguntó: QUÉ QUERÍA SER YO EN LA VIDA. Le dije que yo quería ser locutor de una radio, solo de música, y él me cuestionó POR QUÉ NO QUERÍA SER YO UN LOCUTOR LÍDER DE OPINIÓN. Ese mi amigo es psicólogo ahora. Fue quien me dio la primera oportunidad para trabajar en otros espacios, donde, más allá de utilizar las manos, también se utilizaba “el cerebro”. Me acuerdo que yo trabajaba de Disk Jockey en una discoteca y ese mi amigo me cuestionaba y me decía: “¿HASTA CUÁNDO VAS A GANAR TU DINERO CON TU GARGANTA? ¿NO CREES QUE SEA LA HORA DE GANAR DINERO CON TU CEREBRO?”. Trabajé con él por mucho tiempo. Yo era su secretario. Él tenía secretario, no secretaria. Entonces, esas hojas significan para mí, el comienzo de un trabajo, el comienzo de una vida. Cuando tengo algún problema, le mando un e-mail o le llamo por el chat e intercambiamos ideas. Vine leyendo el artículo por el camino hacia Brasil para acordarme de donde salí, pues ese texto es una autorreflexión, es un cuestionamiento acerca de lo que es ser hombre. Cuando vine a Brasil, no esperaba encontrar nada, solo quería huir de mi país. Pero tenía una visión de Brasil, pensaba que era un “Estados Unidos”, que tenía solo edificios y mujeres desnudas en la calle. Cuando yo estaba allá, veíamos el carnaval de Brasil y allá, por lo menos donde yo vivía, éramos muy conservadores, creo que porque allá es frio. Vine por Paraguay y la primera cosa que vi fue la favela, entonces me asusté y cuestioné: “¿Dónde está el Brasil que me hablaron?”.

Page 100: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

100 Sí, yo puedo!

Cuando llegué aquí, había pocos bolivianos. Ya los veía en el barrio de Brás, donde siempre hubo bolivianos. Y la fiesta boliviana era en una calle pequeña, que era la Rua do Glicério. Al año siguiente, comenzó la crisis en Argentina y mucha gente boliviana que vivía allá vino a Brasil. Con más personas, vinieron las radios comunitarias, las fiestas más grandes y la mano de obra quedó más barata. En ese momento pude notar que había muchas cosas que no estaban bien, por ejemplo, los lugares que “ayudaban” los migrantes empezaron a cobrar, recuerdo muy bien de un anuncio que decía: “APORTE VOLUNTÁRIO DE 20 REAIS”. ¡Si pones un precio, no es voluntario! Antes de venir, no sabía que iría a trabajar doce horas por día, comer y dormir en el mismo lugar, pero en algún momento del viaje comencé a soñar, pensaba: “¡Voy a trabajar, conocer a otras personas, voy a crecer allá!”. Pero, después de una semana que estaba aquí, ya quería volver a mi país, pues nunca he imaginado que era tan malo trabajar doce horas por día, sin salir. Es casi una prisión. No es ni siquiera un régimen semiabierto, porque no sales de allá. Si mi situación emocional estaba difícil, estando encerrado, las cosas empeoraron. Y lo peor es que en aquella época no ganaba nada. Era trabajar para pagar, porque yo no sabía costurar y, aunque tuviese a mi hermano aquí para enseñarme, no es tan simple así, demora un buen tiempo para que aprendas a costurar. Venir a este país fue mi última chance, pero en el primer año que estaba aquí, lo odié, ¡Lo maldije tanto! Porque tuve que trabajar muchas horas por día para ganar poco. De hecho no me gustó, y pensé: “¡No! ¡Me marcho!”. Regresé a mi país y de nuevo tuve una recaída emocional, entonces tuve que tomar una decisión, que fue la de retornar a Brasil. Pensé que si ir a costurar iba a sacarme de donde yo estaba, iría a costurar. Yo ganaba un poco más, las personas me valorizaban más y ya comencé a interactuar con otras personas. Las personas me llamaban para trabajar con ellas. Percibí que mi trabajo estaba mejorando. Entonces comencé a estudiar, comencé a buscar otras cosas. En Brasil, intenté integrarme en la comunidad de los migrantes, intenté entrar en el círculo de los bolivianos, pero nunca logré integrarme por completo, tal vez por mi rebeldía, soy una persona muy rebelde. Entonces, volví a mi país por otros dos años. Aquí había hecho un curso de web designer, no sabía nada, pero era más valorizado en Bolivia, me decían: “¡Por Dios! ¿En Brasil? ¡Ven a trabajar conmigo!”. Solo por el hecho de haber realizado un curso

Page 101: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

101Histórias que se cruzam na kantuta

en Brasil. “¿Hablas Portugués?”, me preguntaban. Yo no hablaba nada, pero respondía: “Falo, falo!”. Pienso que si hoy regresara a Bolivia, seguro tendría un trabajo allá. Pienso que conozco lo cuán difícil es el área de la costura. Sé que la costura no es opción como muchas personas creen. En realidad, eres empujado para trabajar en ella. Hoy, por ejemplo, están viniendo los haitianos, todos hablan de ellos, pero los bolivianos también están llegando y en gran cantidad. ¿Por qué nadie habla? ¿Por qué nadie habla de los jóvenes que están viniendo? Ellos también están trabajando en igual régimen análogo a la esclavitud. El boliviano es visto como trabajador esclavo y el haitiano es trabajador por derecho. Es muy complicado cuando las personas, que dicen que representan los migrantes, simplemente los utilizan como bandera política, pues así solo hacen medidas paliativas, pues quieren estar bien con sus amigos. Sucede de todo en esas relaciones utilitarias. Aquí no encontré ninguna facilidad cuando llegué por primera vez, pues no tenía documentos. Mi idea fue salir a la calle, creía que iba a encontrar un servicio, creí que iba a hacer algo, pero no, nadie te abre la puerta. Caminé, caminé, caminé. Toqué las puertas, pregunté cómo alquilaba una casa y me dijeron que necesitaba tener documento y cuenta en el banco. Como tenía la identificación de periodista de Bolivia, fui a buscar trabajo como periodista, pero la identificación no era válida aquí. Hoy es más simple, porque llegas y tienes más facilidad de obtener los documentos. Cuando necesité renovar la documentación en Brasil, pedí licencia de un mes en el trabajo, allá en Bolivia, para venir aquí y aproveché para hacer algunas entrevistas para una materia sobre violaciones sexuales y abusos en los talleres de costura. En esa época, ¡me enteré que había prostitución en la Rua Coimbra! Solo que agendaron mis documentos para seis meses después. Pensé: “¿Me quedo o regreso?”. Les llamé y les dije en mi trabajo que iba a quedarme aquí. De vuelta a Brasil, fui en un instituto de informática, de la nada, y les dije: “¡Quiero dar clases!”. Me pidieron mi currículo, se lo entregué y me dieron la oportunidad. Tuve que dar clases, en portugués, para brasileños y lo acepté. Los primeros tres grupos que tuve para dar informática, ellos pagaron para enseñarme el portugués, porque yo le preguntaba más para ellos, que ellos a mí. En eso, percibí la necesidad de hablar portugués, porque conseguía hablar, pero no comunicarme. Ahora consigo entender cuando las

Page 102: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

102 Sí, yo puedo!

personas cuentan chistes y bromean, en aquella época no lograba entender. Ahora soy consultor, doy consultoría para microemprendedores, en el campo de las relaciones humanas, pues tengo conocimientos en comunicación y experiencia en el área, que adquirí cuando trabajé con uno de los mejores psicólogos de Bolivia. También hice cursos aquí de PNL, Coaching Sistémico y Design Thinking, lo que me dio aún más herramientas. Cuando hay problemas en productividad, entonces ellos me llaman y voy allá a intentar resolver problemas. Yo cobro por solucionar problemas. No doy consejos, doy consultoría. Una de las cosas que más me gusta es comunicarme con las personas y hacerles preguntas, vivo haciendo eso y cobro por hacerlo. ¡Es muy bueno! Ingresé al mercado de los microempresarios cuando hice un curso de emprendimiento en SEBRAE, que te da muchas herramientas, pero para alguien que esté comenzando no se aplica, porque la persona necesita de otros conocimientos y materias, ya que entiendo que el inicio para un microempresario, en la mayoría de las veces, es la informalidad. Es en ese sentido que veo que no se aplica. Tengo un programa de radio, en español, que es una copia de un programa de radio que teníamos allá en Bolivia, donde hablábamos de derechos humanos. Siempre he trabajado con derechos humanos, desde 1999. Es un área que me identifico mucho. Y cuando vine a Brasil, me identifiqué aún más a causa de la discriminación al acceso al trabajo y también por la desigualdad social que hay aquí. Al inicio, el programa era una copia, un programa fastidioso que todos oían, pero nadie escuchaba. Entonces, hicimos un contacto por skype con un amigo que vive en Argentina y de la nada se convirtió a otro formato. Ahora es un programa más dinámico, hablo de todo, desde educación hasta folclore. El foco es que las personas discutan sus problemas y en primera persona. Pienso que es la hora de acabar con el discurso perfecto, con el políticamente correcto. Aunque la persona no sea graduada, no tenga un conocimiento más allá de su experiencia de vida, creo importante oír las personas y parar de ser maestro. En un primer momento busqué la Plaza Kantuta para dar cursos allá, pero los directores de ese momento me dijeron: “¡No!”. Me quedé muy decepcionado, pues ellos hablaban que hacían las cosas, pero no tenían una “mente abierta”. Después conocí a Jobana Moya, que me recomendó a Veronica y, de esa forma, conocí el Proyecto ¡Sí, Yo Puedo! y pasé a ser voluntario allá. En el proyecto,

Page 103: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

103Histórias que se cruzam na kantuta

con cada final de grupo, tenemos las entregas de los certificados y una vez hicieron una pieza de teatro. Después en otro grupo, no sabíamos que hacer para, entonces resolví hacer una presentación en stand-up y les gustó. El teatro fue algo que apareció de la nada en mi vida. No soy artista, pero un aprendiz. Pienso muchas cosas y no tengo donde hablar. Me gusta el teatro, porque puedo hablar lo que quiero, las personas pueden concordar o discordar, pueden amarme u odiarme. El teatro para mí es un espacio creativo, donde soy yo mismo. Ojalá que las personas no se acomoden nunca. Creo que la seguridad de que se está haciendo lo correcto es un problema. ¡Pienso que la duda y la curiosidad son las mejores cosas que hay! Y el secreto es no cerrarse, no pensar que porque soy de esa forma, voy siempre a serlo. Me gusta un grafitis que dice: “Libre incluso de mí mismo”. No somos artistas, pero somos el arte. Con relación al prejuicio, yo creía que no lo había, pero aquí lo hay también, pienso que nunca lo he sufrido. Tengo una experiencia muy interesante relacionada al prejuicio, una vez cuando estaba dando clases, una persona quiso cambiarse de grupo porque yo era boliviano. Era lo que yo pensaba. La persona comunicó a la dirección que iba a cambiar de grupo, porque el profesor parecía no saber el contenido. Le contesté a la dirección que si yo no sabía, no sería en la primera clase que me lo dirían eso. Me pareció que era prejuicio. Fue muy difícil para mí. Me puse muy mal y deprimido. Me miré en el espejo y dije: “¿Qué tengo de diferente?”. Pero después, fue chistoso, llevé a un amigo boliviano a la escuela y él me contaba que tenía una amiga muy buena. “Ella me ayuda en todo, entiende lo que hablo”, él me lo decía. En su fiesta de graduación, él me invitó y me presentó a su amiga y era aquella chica que yo creía que tenía prejuicio conmigo. Fue un choque para mí. Entonces me puse a pensar: “¿Será que el prejuicio estaba en ella o en mí?”. Porque si ella fuera prejuiciosa nunca se habría vuelto amiga de mi amigo, pero ella lo ayudaba. Otra experiencia que tuve con relación al prejuicio, fue cuando comencé a frecuentar el Colectivo ¡Sí, Yo Puedo! Comencé a tomar el bus que iba para Edu Chaves, donde había muchos bolivianos, y entonces noté el prejuicio que había de verdad. Las personas maltrataban a los bolivianos dentro del bus. Antes yo no tomaba este bus. Cuando subía en el bus, ya se comenzaba a oír los chistes. Yo alcanzaba diez reales al chofer y él me decía que no tenía vuelto, yo le decía que podía esperar y él me decía que yo podía bajar. Me quedaba fastidiado y reclamaba, pues yo estaba pagando,

Page 104: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

104 Sí, yo puedo!

y él insistía que no tenía vuelto y me decía que yo debía bajar. Si yo fuese brasileño, él no lo haría. Entonces yo bajaba del bus. Fue cuando pude ver el prejuicio de algunas personas. Ellos hablaban con los bolivianos cosas como: “¡Quédate allá al fondo del bus! ¡Hueles mal!”. Cosas duras. “¡Hay que ducharse!”, decían. Recientemente, se murió un amigo mío y me dijeron que lo mataron porque el boliviano tiene la costumbre de andar con dinero. Dijeron que fue latrocinio. ¡Mentira! Conozco a mi amigo y él nunca ha tenido dinero, lo que ganaba lo enviaba a Bolivia. No se vestía bien, no tenía auto, ni una bicicleta o una zapatilla buena o celular. Siempre cuestioné el discurso que muchas personas tienen cuando dicen que boliviano tiene dinero guardado en casa, pues para mí las personas pueden guardar el dinero donde quieran. La obligación del Estado es dar seguridad, no solo para los bolivianos, sino para la población al general. Este mi amigo vivía en un barrio de la periferia. La parte más dura es oír que es “un caso excepcional”. Otro cuestionamiento que hago, es entender por qué, si los bolivianos “tienen dinero en casa”, hay cada vez más bolivianos viviendo en los barrios de la periferia. Y peor todavía, ¿desde cuándo la víctima es culpable? Nos posibilitaron abrir cuentas en bancos, porque los bolivianos guardan dinero en casa, pero, ¿No podemos guardar dinero en casa? ¿Somos los responsables por ser robados? Tengo derecho de guardar dinero donde yo quiera. ¿Por qué van a obligarme a reforzar un sistema ganancioso que es el banco? Ponen la culpa en la sociedad y no creo que deba de ser de esa manera. Lo digo porque oigo mucho decir: “Es que ellos guardan dinero en casa”. ¿Cuántas otras personas tendrán que morir? ¿Tendrá que volverse algo común para que se haga algo? El discurso repetitivo no sirve para los migrantes, no queremos nada extra, simplemente queremos lo que todo ser humano quiere, pero el Estado y los liderazgos, lamentablemente, no quieren, pues muchos sobreviven a costas de los migrantes. Creo que con relación a la inmigración, el mayor problema no es llegar a Brasil, el problema viene antes de salir de su país. Brasil tiene sus problemas, pero creo que le falta una cultura de migración en Bolivia. Falta una educación para el mundo. Uno no es preparado para salir de allá. En mi país no hay una cultura de emigración. Oí decir que en Uruguay hay una cultura de emigración, pues te preparan para salir del país, y eso puede notarse cuando un extranjero llega aquí, la primera cosa que él hace es aprender el idioma. Pero, de donde vengo, en mi región al menos, las personas

Page 105: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

105Histórias que se cruzam na kantuta

vienen para acá pensando en ganar dinero, entonces aceptan todo. El boliviano es visto como mano de obra barata. En muchos lugares, donde ya he ido, las personas quieren pagarme menos y creo que el motivo es el hecho de ser boliviano. Existe un prejuicio muy grande en contra los bolivianos en el sentido profesional. Boliviano es igual a costura. Está bien que yo sepa costurar, pero eso no me impide de aprender otras cosas. Creo que la televisión direcciona mucho la visión respecto al pueblo boliviano, pues boliviano profesional no es noticia, boliviano esclavo es noticia. Lo más triste es que en la comunidad de inmigrantes pasa lo mismo. A veces, las personas creen que aprender el idioma es la última cosa, pero es todo lo contrario, aprender el idioma es la primera cosa que hay que hacer. El idioma es el primer paso para la integración del inmigrante. En mi visión, vemos Brasil no como un lugar de oportunidades, sino un lugar donde se va a ganar dinero. Si los inmigrantes llegan y hacen parte de la desigualdad es complicado para el propio Estado, por eso creo que debería de haber políticas direccionadas para la formación del inmigrante cuanto al idioma. Hoy, creo que haber inmigrado fue la mejor decisión que he tomado. Estoy muy agradecido de Brasil, lo amo por haberme dado una segunda oportunidad. Cuando comencé a pensar que aquí tenía una oportunidad, cambió toda mi vida. Si tuviera que volver a costurar, volvería, pero voy a seguir buscando otras cosas. Costurar se convirtió más en una herramienta que algo malo para mí. Aquí conocí muchas personas buenas, tuve oportunidades y pienso que todavía voy a tener muchas oportunidades. Creo que voy a vivir haciendo puente entre Brasil y Bolivia. Algo que no estoy de acuerdo, es que las personas te miren con superioridad, que vengan enseñarte, como si el boliviano no supiera de nada. O tal vez, yo me sienta inferior. Tengo mucha dificultad con el poder. Me dicen que todos somos iguales, pero no es realidad, no es así. ¿Cómo todos pueden ser iguales, si nosotros los inmigrantes nos discriminamos entre nosotros? Soy una persona, por ejemplo, que no cree la costura como algo malo. No estoy contra la costura, estoy en contra del sistema que favorece la desigualdad social y, en consecuencia, del trabajo análogo a la esclavitud. No me gusta ser políticamente correcto, pero está bien. Hablan de la costura como si no pudieses ser costurero, pero si eres psicólogo, puedes ser psicólogo. Pienso que el problema no son las horas de trabajo, pues si trabajas en una multinacional, seguro

Page 106: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

106 Sí, yo puedo!

no vas a trabajar ocho horas, la pregunta es: ¿Por qué no hablan de ellos? La cuestión principal es la desigualdad social. Todavía continuamos en un sistema academicista, ponemos el “título” antes del ser humano. “No estudiaste, ¡Entonces no eres nada!”. Como si un “título” te convirtiera en una persona mejor. Para mí, si eres doctor o sin techo da igual. Aunque las personas digan que no, ellas se aproximan y te miran con superioridad. Los estudiosos vienen y se ponen a investigarnos, queriendo saber acerca de nuestros problemas, creo que son masoquistas y que les gusta oír historias tristes, pero al final te dicen: “Ustedes, inmigrantes, tienen derechos”, “ustedes tienen que luchar por sus derechos”. Pienso que ellos creen que somos muy tontos, pero no somos tan burros, sabemos que tenemos derechos. La cuestión es el porqué de no ejercer nuestros derechos. ¿Será que este sistema hipócrita - dónde los intelectuales de la “pseudo-izquierda” son favorecidos y gozan de lugares privilegiados - en realidad no perjudica el ejercicio de nuestros derechos? Pues es muy cómodo cuestionar cuando su ropa es hecha por mano de obra barata. También me parece una pérdida de tiempo, por ejemplo, que haya una campaña para el voto, cuando en diez años que conozco Brasil, solo el año pasado oí hablar de la constituyente. Es como si yo quisiera construir una casa, pero no tengo terreno. Lo mismo pasa con el voto, quieres que tengas derecho al voto, pero sin haber una constituyente. Necesita haber un cambio en la Constitución, ya que esta impide la participación política de los inmigrantes. Hoy estamos discutiendo el impeachment de Dilma y hay personas que quieren que vuelva la dictadura. Los medios de comunicación venden que la dictadura tuvo sus partes buenas. Pero si la dictadura regresa quien va a sufrir son los pobres, y no el Faustão o Luciano Huck. Nosotros compramos lo que los medios de comunicación nos venden. Continuamos viendo la Globo, continuamos riéndonos de la desgracia de los otros. No puedo ejercer mi libertad si me quedo atrapado a la televisión. En internet, puedo ejercer mejor mi libertad de elección. Me parece malo que quien votó a Dilma no fue a las protestas, pues existe una militancia ciega, que no ve o no quiere ver los errores, no digo que deban sacar a Dilma de allá, pero que protesten en busca de cambios. Votas por lo menos peor, es lo que pasa en Bolivia también. La democracia es aquella democracia que otros países nos enseñaron, ¿pero por qué tenemos que someternos a un modelo que nos fue impuesto? Pienso que las cosas aquí en Brasil están cambiando mucho. La

Page 107: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

107Histórias que se cruzam na kantuta

cuestión política está muy buena aquí hoy. Vengo de un país muy politizado y creo que hoy estamos discutiendo más la política aquí en Brasil y eso es un avance.

Page 108: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

108 Sí, yo puedo!

¿aH sÍ? ¿HaY Que Hacer?Veronica Quispe Yujra

Mi nombre es Veronica Quispe Yujra, soy dentista, y tengo treinta y cinco años. Pertenezco a la comunidad boliviana y nací en la ciudad de La Paz. Vine desde muy niña para acá, tenía casi ocho años. Creo que vine de una inmigración parecida a las demás, que es movida por cuestiones económicas, pero la diferencia es que quienes tomaron la decisión de migrar, en aquella época, fueron mis padres. Mi papá vino primero, en 1988 o 1989, poco después de la redemocratización de Brasil. Y en 1991, nosotros venimos para acá junto con mi madre. Me acuerdo que fue un viaje muy difícil. Como éramos tres hijas, mis padres intentaron juntar el dinero que tenían, pero mi padre había hecho una negociación aquí, o sea, había comprado medio taller de costura, entonces ya había invertido todo lo que había ahorrado. Un recuerdo muy fuerte que guardo de ese viaje, es que en la frontera nos faltó dinero para un pasaje, pues no aceptaron que yo no pagase. Entonces, me acuerdo de mis padres

Page 109: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

109Histórias que se cruzam na kantuta

sacaron sus anillos de matrimonio y los vendieron en la frontera para comprar el pasaje que faltaba. Como mi papá ya había estado aquí dos años, pienso que había pasado la peor fase de esa inmigración, como trabajador, como obrero. Cuando mis hermanas, yo y mi mami llegamos, tuvimos incluso algunas ventajas. Nosotros llegamos y ya teníamos un techo. Él había alquilado un departamento en Bom Retiro, y ya tenía dos o tres máquinas. ¡Entonces llegamos y ya empezamos a trabajar! Él ya tenía algunos proveedores en la época y mi madre solo puso todo en orden, organizando la cocina, y la casa. Y simplemente comenzó a funcionar como cualquier otro taller, llamando a gente para trabajar y vivir juntos. Mientras tanto, nosotras íbamos siendo criadas. Cuando llegamos, mi hermana mayor ya tenía 14 años y fue la primera de las hijas en realmente sentarse en una máquina de costura y trabajar. Yo tuve que aprender con el tiempo, pero siempre me gustó más la parte de administración que del trabajo directo con la costura, entonces ayudaba más en esa cosa de mediación con las tiendas, y también a la hora del cierre del mes y de hacer el cálculo del pago de los costureros. Y de esa forma, pasaron diez años de nuestra vida. Mis padres tuvieron, durante diez años, el taller de costura, tuvieron casi doce personas trabajando y cerca de quince máquinas. Pero, en esos diez años, la única cosa que mis padres hacían era poner el dinero a girar. Cuando llegaba el fin de año, la mayoría de los costureros viajaban a Bolivia y mi padre tenía que prestarles dinero y, a veces, incluso vender máquinas para pagar a las personas. Antiguamente, los costureros preferían recibir de una sola vez varios meses que cobrar todos los meses, porque de esa forma ellos se iban con aquel total. En esa época, era cuando más sentíamos hambre, no había ningún costurero en casa. Mi madre no tenía dinero y tampoco se trabajaba ese mes. Poco a poco, mis padres notaron que no se estaba obteniendo lucro en aquel taller. Todos trabajaban mucho y nunca había dinero para nosotros. Siempre bromeo que el taller de mis padres quebró porque ellos no consiguieron explotar a las personas, porque si pensamos en esa red de explotación que está montada, uno solo sobrevive si realmente explota al otro. Después de muchas peleas, mi madre decidió entregar el departamento y fue muy de repente que ella le dijo a mi padre que ya no quería más aquello. El primer año, cuando recién llegamos, nos quedamos sin

Page 110: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

110 Sí, yo puedo!

estudiar, porque estaba la cuestión del idioma. Al año siguiente, mi padre buscó algunas escuelas cercanas allá en Bom Retiro para intentar matricularnos, entonces vimos cómo era difícil en aquella época eso de la matrícula de inmigrantes sin documentación. Mi papá tenía la documentación, pero creo que él estaba esperando completar tres años para volverse permanente, y entonces haría un proceso llamado reunión familiar, para que pudiese traer sus hijos y su mujer al país. Él se quedó esperando un año más y nos quedamos sin estudiar. Cuando se pasó un año y nosotras intentamos estudiar nuevamente, él tampoco podía sacar nuestros documentos, porque él descubrió que era mucho dinero que necesitaba para cada documento. Nosotras tuvimos mucha suerte, porque una pequeña escuela allá de Bom Retiro recibió a mi hermana menor y a mí. Fui para el segundo año de primaria, que yo ya lo había hecho, pero a los directores les pareció mejor. Pero para mi hermana mayor, que necesitaba de la Educación Secundaria, no fue posible. Ninguna escuela permitía su matrícula y ella se quedó un año más sin estudiar. En realidad, ella ya no volvió a estudiar, después de mucho tiempo ella volvió a estudiar ya adulta. Y todo por cuenta de la barrera creada por la burocracia. Alrededor de 1994 se aprobó una ratificación por ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente, que decía que el acceso a la escuela no podía ser negado, pero hasta entonces, mucha gente fue perjudicada. Incluso yo, que en el sexto año, cuando surgió un decreto que todos tenían que presentar los documentos mi hermana y yo aún no teníamos documentos, y fuimos retiradas de la escuela. Creo que cosas como esas que me hicieron pensar en alguna forma de orientar las personas, para que situaciones como esa no se repitieran y por eso, hoy, tenemos el proyecto ¡Sí, Yo Puedo! De la época de la escuela tengo buenos recuerdos, muy positivos. Siempre hablo que soy de una generación que no vivió el bullying, o mejor, bullying no, la xenofobia. Pues Bulling todos acaban sufriendo con los chistes, y esas cosas. Pero, xenofobia yo no sufrí. En mi escuela había algunos estudiantes bolivianos e hijos de bolivianos y los alumnos eran siempre solidarios. Yo aprendí el portugués con mis propios amigos. Creo que es más difícil hoy. Con esto de estar impedida de seguir el sexto año, a mediados de la década de 1990, nosotros tuvimos que pagar tasas diarias por estar en Brasil sin documentos, entonces mis padres notaron que era más fácil salir del país y regresar a Bolivia, y hacer de cuenta que estábamos entrando nuevamente. Fue en ese año

Page 111: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

111Histórias que se cruzam na kantuta

que hicimos el primer retorno a Bolivia. Pasamos quince días allá, cuando regresamos ya comenzamos el proceso de regularización. Y entonces conseguí obtener mi certificado del sexto año. Pero ya habíamos perdido un año más y me sentía muy vieja para hacer el año que había parado. Descubrí que existía la posibilidad de hacer una especie de equivalencia (que en Brasil se llama Supletivo), la hice a los catorce años. Creo que en esa época maduré mucho, pues yo tenía catorce años y el más joven de mi curso tenía veintiséis años. Fue cuando noté que mucha gente va detrás de sus sueños, no importa la edad. Conocí a personas del área de la salud. En esa época me acerqué de un instituto de formación que se llamaba Dom Bosco. Allá conocí a amigos que me animaron a seguir los estudios. Después que la empresa de mi padre quebró, nosotros fuimos a vivir al Brás. Fuimos a una casa de dos habitaciones y las máquinas quedaron amontonadas en el patio. Mis padres se miraban y se preguntaban: “¿Y ahora en qué vamos a trabajar?”. Él alquiló un box en Brás y comenzó a vender ropas. Mi madre supo que había un punto de encuentro de bolivianos, que quedaba en Pari y vio la posibilidad de vender comida allá. En esa época descubrí la escuela técnica gratuita e hice la prueba para el curso de enfermería y fui aprobada. Muchas cosas ocurrieron en mi vida porque alguien me dijo, me orientó y me ayudó. A mis padres les parecía una gran hazaña que yo estuviese haciendo el curso técnico y ellos creían que yo sería técnica de enfermería, ¡Y seríamos felices para siempre! Cuando yo estaba terminando el técnico, todos mis amigos comenzaron a decir que teníamos que hacer el preparatorio para entrar en la facultad. Y yo pensé: “¿Ah, sí? ¿Hay que hacerlo?”. Para mí siempre fue de esa forma: “¿Hay que hacer? Entonces, ¡Adelante!”. Tan pronto me gradué, conseguí un trabajo y pagué un preparatorio para el vestibular, pero ni idea de lo que yo quería hacer. Siempre les decía a mis padres que después de graduarme, no iba a querer nadie extraño circulando en mi casa, porque era peor que pensión. En una pensión sabes que las personas están por poco tiempo, pero, en el taller, había gente que llegaba a vivir por años y de repente se marchaba. Siempre le decía a mi madre que no quería eso para mi vida. Llegué a la Universidad, hice una universidad pública, en São José dos Campos. Me metí en el movimiento estudiantil y viajé mucho para algunos congresos y eventos. Fue cuando noté que encontraba pocos como yo en la universidad. Siempre acompañaba las listas de vestibulares y veía poquísimos apellidos españoles y

Page 112: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

112 Sí, yo puedo!

menos aún los andinos. Me preguntaba por qué esas personas no estaban estudiando. Ese ha sido un pensamiento que desde la facultad me perseguía. Y concluí que era por falta de información. Por eso, desde la facultad, yo alimentaba la idea de hacer un proyecto que ofreciese informaciones para los jóvenes, para que como yo, tuviesen acceso a la educación superior y otras formas de trabajo más dignas. Un día, en 2012, me senté en la Plaza Kantuta y comencé a hacer el atendimiento, para orientar a quien quisiese alguna orientación. Lo que fortalece esta idea es el hecho de que algunas personas quieren orientación, por eso el proyecto continúa. Todos pensaban que yo había hecho la universidad porque me había naturalizado, ¡Pero, no! No es necesario naturalizarse para estudiar en una universidad pública. Entonces, son esas informaciones que, a veces, parecen obvias para nosotros, pero pueden transformar la vida de algunas personas. En Bolivia, vivíamos en un barrio pobre, en una casa relativamente grande. No había canalización, para ducharnos había un pozo, de donde, a veces, buscábamos el agua. Ducharse allá era un verdadero ritual. Como es un país frio, había lugares que pagabas para ducharse y lo hacíamos una vez al mes. Durante la semana, todos los niños entraban en un balde grande lleno de agua y nos duchábamos juntos. Recuerdo mucho la ausencia de mi madre, no del cariño, sino de la presencia física. Como ella trabajaba como vendedora del mercado público, por la mañana iba a un mercado y por la tarde a otro. Salía a las cinco de la mañana y llegaba a la medianoche. Mi hermana mayor era quien nos cuidaba. El día que veíamos a mi madre era el sábado. Pero el sábado, ella empezaba a ver las cosas malas que habíamos hecho. Me acuerdo que cerca de la fecha de irnos a Brasil, mi madre estaba pasando por un mal momento o era la ansiedad por salir de Bolivia, o la situación económica, porque ella trabajaba, trabajaba y nunca tenía dinero. Tengo poquísimos recuerdos de momentos de descanso con mi madre allá en Bolivia. Nuestra diversión era ir a la Iglesia los domingos. Tengo pocos recuerdos de mi papá, porque él se fue a Brasil cuando yo tenía cinco años. Después de dos años, lo reencontré aquí en Brasil. Lo que sé sobre él, porqué haber venido a Brasil, es lo que mi madre nos cuenta. En la época, había un sobrino de mi padre que ya vivía aquí y trabajaba con costura y como mi padre era sastre, lo llamaron para trabajar aquí. La decisión de irse a Brasil fue más por parte de mi madre que de mi padre. Pues él

Page 113: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

113Histórias que se cruzam na kantuta

estaba contento con su vida y trabajo que tenía en Bolivia. Él tenía su propia sastrería. En aquella época había movimiento, pues los hombres usaban más ropas sociales, no usaban jeans, por ejemplo. Sin embargo, el pago era poco para cubrir el alquiler y llevar dinero para casa. A mi padre le queríamos mucho, porque él entregaba las encomiendas de ropa y nos compraba yogurt, que era lujo para nosotras. ¡Aquello nos parecía una cosa de otro mundo! Pero, quien nos compraba el material de la escuela y nuestras ropas era mi madre. Cuando mi padre ganó una plata en Brasil y estaba pretendiendo regresar, mi madre lo puso entre la espada y la pared y le dijo que nos iríamos a Brasil. Mi madre creía, y en varios lugares del mundo se creía, que como pasas la noche de réveillon es como va a ser su año. Y el último día del año mi madre trabajó hasta tarde y nos pidió que mis hermanas y yo la esperásemos con la carne – allá no comemos pavo. Estábamos mirando hacia la parada de bus y cuando ella llegó, no bajó del bus, bajó de un taxi con muchas maletas. “¿De dónde salieron esas maletas?”, nos preguntábamos. Ella vino, nos miró y nos preguntó si estábamos listas y no entendimos nada. Las maletas estaban vacías y ella comenzó a poner cosas de cocina, ollas y platos dentro. Ponía nuestros sacos y ropas en otra maleta y nos miraba diciéndonos: “Vamos a viajar a Brasil, ¿No les dije?”. Comenzamos a llorar y en eso pasó la medianoche. En febrero nos vinimos para acá. No tengo recuerdo de mis expectativas antes de venir a Brasil, pero me acuerdo que mi hermana mayor, que ya tenía catorce años, lloraba y decía que no quería venir. Ella ya tenía un círculo de amistades, toda una vida allá. Ella no sabía lo que iba a hacer aquí sin amigos. Pero mi madre, creo que estaba segura que aquí tendría oportunidades de movilidad social. Creo que su expectativa era trabajar lo mismo que trabajaba allá, pero aquí ella conseguiría juntar dinero y hacer que sus hijas estudiasen más que ella. Notamos mucho la abundancia aquí. Me acuerdo de nuestro deslumbramiento en cuanto al tamaño de las cosas en Brasil. Aquí, lo que se llamaba de pequeña calle, ¡Allá era avenida! El tamaño de las golosinas que había para los niños, también nos impresionó. Todo era en paquetes, todos chocolates grandes. Eso para nosotras era muy diferente. Me parece que hasta ahora lo es, porque, un día, llegó la hija de una amiga mía y ella se quedó impresionada con el tamaño de los huevos de Pascua. Ella contaba que allá el huevo de chocolate es del tamaño de un huevo de gallina. Allá todo es

Page 114: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

114 Sí, yo puedo!

pequeño. El yogurt también, allá no existía eso en vaso de plástico, era solamente en una bolsita. Lo mismo en relación al aceite y al arroz. Allá no se compraba aceite por litro, ibas a la tienda y compraba 250ml, podías llevar incluso tu propio recipiente para echar el aceite. Como no había dinero abundante, no había compras mensuales, ibas comprando de acuerdo al dinero que entraba en casa e ibas necesitando. Una dificultad fue el idioma, pero yo no lo sentí tanto, mi hermana mayor y mi madre lo sintieron más. Mi madre tenía el hábito de conversar mucho en la calle, ¡De negociar! Y aquí ella no lo podía hacer. Recuerdo que ella se ponía triste. Otra barrera que sentimos, fue la dificultad de no conseguir poner a mi hermana mayor en la escuela. Es algo que mis padres cargan hasta ahora como culpa, porque en aquella época ella dejó de estudiar y paró. El año pasado que ella volvió, pero perdió cerca de veinte años, y ella siempre había sido buena alumna. Así es que después de tres años que estábamos aquí, mi padre pensó en mandarla de vuelta a Bolivia para que ella continuase los estudios. Pero fue cuando ella comenzó a relacionarse y se casó a los dieciocho años. Ha sido una frustración que mis padres cargan. Otra barrera, creo que era la cuestión de alquilar una casa. El departamento que vivíamos aquí estaba alquilado con el nombre de un coreano que tenía un taller allá antes. Nuestro primer año en el departamento fue óptimo, pero el segundo, la inmobiliaria descubrió que no era más el coreano que vivía allá y quisieron renovar el contrato. Mi padre encontró el fiador, pero el alquiler pasó de ochocientos reales para dos mil. Y termino por aceptarlo. La inmobiliaria aceptó hacer el contrato con un documento provisorio que él tenía. Cuando nos dimos cuenta que era muy caro, mi padre empezó a buscar un inmueble más barato. ¿Y la sorpresa? Ninguna inmobiliaria aceptaba el documento provisorio de él. Nosotros nos quedamos atrapados en aquel departamento, que era un elefante blanco, y eso ha sido uno de los factores que nos llevó a la quiebra, entonces había que trabajar mucho, mucho para pagar el departamento y a los empleados. ¡Ahora mi vida tomó un rumbo totalmente diferente! Mis sueños para el futuro es ser, quizá, una de las primeras doctoradas de una universidad pública de aquí y dar clases en alguna universidad. Además de ese sueño personal, es conseguir ver que los servicios públicos, principalmente los de educación y salud puedan adecuarse para recibir personas de fuera. Tengo una amiga

Page 115: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

115Histórias que se cruzam na kantuta

que llegó con los hijos. Su hijo tiene siete años, y ella fue llamada a la escuela porque él no conversa, pero la lengua materna de él no es el portugués, ¡Entonces, de hecho, no va a conversar! ¿Qué trabajo se realiza para adaptar a ese niño aquí? Nada se hace, lo ponen en la escuela y esperan que él se porte como los otros niños. Cuando vea que las escuelas están preparadas para valorizar la interculturalidad y que estén preocupadas en proporcionarles un período de adaptación en la propia escuela para esos niños, creo que estará muy bueno! Del año pasado hasta hoy podemos decir que existe una red de asistencia al inmigrante, porque hasta el año pasado no existía nada. Con la creación del CRAI - Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes, con la creación antes de la Coordinación de Políticas para Inmigrante, que a pesar de parecerme que están desviando las atribuciones, noto que se está haciendo algo. Y con la creación del CIC Imigrante - Centro de Integração e Cidadania do Imigrante, ahora, puedo ver un mínimo de red, lógico que falta articulación, pero ya existe esa red. Agradezco a mis padres por las ideas de superación y de seguridad que podíamos estudiar. Es algo que veo mucho en los padres de inmigrantes, pueden ser muy ricos o los más pobres de todos, siempre desean que su hijo estudie. Pocos van a decir que desean que sus hijos sean ricos de la nada o que ganen en la lotería. Muchos van a desear que la riqueza venga con la formación. Cuando yo era adolescente, recibí un aguayo de mi madre, pero nunca lo utilicé. En esa época, yo estaba justo en el conflicto de que hasta qué punto ser inmigrante era bueno o no. Si por un lado, tienes la riqueza de conocer otra cultura, por otro lado, en la adolescencia es muy sufrido ser diferente. Es difícil cuando, ¡Todo en ti es diferente! La forma que tus padres te tratan y las cosas que puedes hacer son diferentes. Cuando recibí el aguayo, creo que en mis quince años, ¡Me pareció horrible! Pensé: “¿Para qué quiero algo así?”. Pues el aguayo es utilizado allá en Bolivia para las mujeres cargaren cosas, es una manta que sirve como si fuese una bolsa de las mujeres andinas. Las mujeres andinas no tienen cartera, ellas tienen un aguayo. Si necesitas llevar algo, ellas abren la manta, ponen la cosa al medio, la envuelven y ponen en las espaldas, incluso niños. ¡Eso me parecía horrible! Pasó tanto tiempo desde que recibí esa manta, que volví a descubrir el valor de mi cultura, volví a descubrir un poco del orgullo de ser de otro país y de cómo eso trae la historia de los

Page 116: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

116 Sí, yo puedo!

míos, de todo el sacrificio y de todo el coraje de dejar a su país para intentar la vida en otro lugar. Y yo fui descubriendo eso a medida que me fui volviendo adulta. Después de graduarme, participé de un grupo de danza donde discutíamos cómo la danza estaba relacionada con la historia de Bolivia. Hubo un año que hicimos una Muestra Cultural Boliviana en el Taller Cultural Oswald de Andrade. Me encargaron la sala de audiovisual y tenía que buscar documentales para la muestra. Había un documental, Altiplano Boliviano, que había sido hecho por los ojos de un brasileño que fue a vivir a Bolivia y él intentó hacer un rescate cultural de cómo la historia de allá y el desarrollo cultural de las danzas folclóricas influenciaron la forma de ocupación de las comunidades aquí a partir de las danzas, fiestas y de todo lo demás. Él entrevistó a una historiadora de allá y ella habló del aguayo. Ella Dijo que antiguamente cuando no existía la lengua escrita, el aguayo escribía un poco de la historia de las comunidades, entonces cada comunidad tenía un color, una forma, las figuras etc. Cuando los Incas invadieron esa región del Altiplano Boliviano y encontraron la comunidad aimara, que es el pueblo originario, ellos quemaron todos los aguayos de la región para sacar esa marca de ellos. La historiadora habla que es como si alguien llegase hoy y quemase una biblioteca. Después ellos se reconstruyeron y el aguayo se volvió útil. Toda familia en Bolivia tiene un aguayo, toda pareja, toda mujer. Cuando supe de eso casi lloré. Entonces, el aguayo que recibí de mi madre posee un significado de redescubrimiento. El documental que mencioné también habla de la forma de los andinos, que generalmente son introvertidos, son callados y entonces ves las mantas que ellos hacen y son un arcoíris de colores, ¡De alegría! ¡Es una forma de lenguaje! Hoy en día, tengo gran orgullo en tener un aguayo. Mi madre le dio uno a mi hermana mayor, me dio uno y creo que dará a mi hermana menor también, porque eso es normal, toda mujer tiene que tener un aguayo. Yo bromeo que el aguayo es uno de los artefactos de exportación que más éxito tiene, pero por respeto, no se explota mucho. Una amiga mía quedó perpleja al notar como el aguayo remite a la mujer, y con el hecho de que las mujeres allá en Bolivia carguen sus compras, aunque el hombre esté a su lado, porque el hombre no va a cargar nada en el aguayo. Andas por la ciudad allá y ves las parejas. Las mujeres están siempre con un aguayo muy grandote atrás y el hombre sin nada. Creo que los aguayos podrían

Page 117: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

117Histórias que se cruzam na kantuta

servir de revolución, porque yo lo podría utilizar de otra forma, no solo para cargar cosas.

Page 118: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

118 Sí, yo puedo!

Aos nossos alunos cidadãos do mundo que nos presentearam com sua confiança e nos permitiram participar de sua transformação pessoal. À todos nossos voluntários, que até agora deixaram um pouco de seu tempo e amor nas nossas atividades, serão aqui identificados pelo primeiro nome, pois essa é a maior marca deixada por cada um. adriana, alberto, ana, angela, angelo, angelica, Bianca, carol, carolina, cesar, cinthya, claudia, cristina, dayse, eloá, erika, felix, fernando, flávia, flaubert, francisco, franz, Grecia, isabel, ivan, Jaime, Jane, Jenny, Jorge, Jorgito, Josefina, Josué, Juan, Júlia, Júnia, Katia, Laís, Letícia, Lúcia, Luis, Luisinho, Luana, maíra, marcel, márcia, margareth, maricela, may, miguel, monica, moreno, Nanci, oscar, pacheco, patrícia, priscila, raíssa, rakel, renald, ricardo, rocio, rodrigo, ronald, sandra, santiago, sidney, solange, sonia, Vera, Vèronique, Victor, Vinicius, Vítor, Wendy, Wilbert, Willy, Wilson. “Que venham muitos mais!”

aGradecimeNTos

Page 119: Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

119Histórias que se cruzam na kantuta

CAMI - Centro de Apoio e Pastoral do Migrante

CESPROM - Centro Scalabriano de Promoção do Migrante

CIC - Centro de Integração da Cidadania

CRAI - Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes

ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente

ETEC - Escola Técnica Estadual

PNL - Programação Neurolinguística

PRONATEC - Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

RNE - Registro Nacional de Estrangeiro

SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

USP - Universidade de São Paulo

LISTA DE SIGLAS