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Editora

Fundação Ulysses Guimarães

CoordenaçãoEliseu Lemos Padilha

Organização

Elisiane da SilvaGervásio Rodrigo NevesLiana Bach Martins

Arte e diagramação

Riciély Soares

Revisão

Jolie de Castro Coelho

Revisão de texto

Tayana Moritz Tomazoni

Colaboração

Alexandre R. AlmoarquegAna Cristina Baptista

S237e Santos, Milton

O espaço da cidadania e outras reflexões / Milton Santos; organizado por Elisianeda Silva; Gervásio Rodrigo Neves; Liana Bach Martins. – Porto Alegre: FundaçãoUlysses Guimarães, 2011. (Coleção O Pensamento Político Brasileiro; v.3).

224 p. ISBN 978-85-64206-03-8 (Coleção completa)

ISBN 978-85-64206-06-9

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Agradecimentos Pela cessão dos direitos autorais para esta edição:

 Marie Hèléne Tiercelin Santos 

 Rafael Tiercelin Santos 

 Pela cooperação:

Editora da Universidade de São Paulo

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Palavra do presidente da Fundação.............................................................................................9

Prefácio............................................................................................................................................11

I – Cronologia da época...............................................................................................................13

II – Cronologia de Milton Santos.............................................................................................30

III – Pensamento de Milton Santos.............................................................................................37

  III.1 – 1992: a redescoberta da Natureza..............................................................41

  III.2 – A revolução tecnológica e o território: realidades e perspectivas....59

  III.3 – O espaço do cidadão.......................................................................................75

  Prefácio.................................................................................................................75

  Introdução.............................................................................................................78

  Há cidadãos neste país?.....................................................................................82

  O cidadão mutilado...........................................................................................94

  Do cidadão imperfeito ao consumidor mais-que-perfeito......................109

  O espaço sem cidadãos.......................................................................................119

  A reconstrução da individualidade..................................................................126  O espaço revelador: alienação e desalienação............................................136

  As organizações....................................................................................................145

  Do indivíduo ao cidadão.....................................................................................157

  Lugar e valor do indivíduo................................................................................161

Do modelo econômico ao modelo cívico 176

Sumário

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  Para quem é real a rede urbana?......................................................................191

  Conclusões..........................................................................................................204

  Bibliografia.........................................................................................................214  Indicações bibliográficas sobre Milton Santos.......................................225

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Palavra do presidente da Fundação

Estamos apresentando o terceiro volume da coleção O Pensamento Político Brasileiro, intitulado  Milton Santos: oespaço da cidadania e outras reflexões. Nosso objetivo é,

por meio da Fundação, ofertar a cada brasileiro mais umaferramenta de construção do conhecimento. Somos umainstituição voltada à formação política e à construção dacidadania, então só teremos cumprido plenamente nossafunção quando tivermos chegado aos quatro cantos do país.

Na coletânea O Pensamento Político Brasileiro, reunimosas obras de quinze personalidades que, por suas ideias,desenharam ou alteraram o cenário político brasileiro em suaépoca, contribuindo para a formação de uma sociedade maisparticipativa.

A Fundação Ulysses Guimarães disponibiliza, então, poresta coletânea, textos originais que enfocam o pensamentode Milton Santos para que o leitor o interprete segundo suaprópria convicção.

Milton Santos certamente se enquadra em uma dessaspersonalidades que fazem a diferença. Foi livre pensadorfocado na urbanização do terceiro mundo e defensor de umnovo modelo de globalização, recebendo, por isso, o título deDoutor Honoris Causa. Milton foi o único brasileiro a receber

o mais alto prêmio internacional em geografia o Vautrin Lud

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que já alertava, na época em que foi publicado, para umaconscientização que hoje ganha importância. Além deste

 texto, disponibilizamos o artigo  A revolução tecnológica e oterritório: realidades e perspectivas, por meio do qual Miltonapresenta suas reflexões sobre as transformações produzidaspela globalização. Também segue estes registros a íntegra deO espaço do cidadão, texto no qual o geógrafo dá o tom do que

representa o questionamento: há cidadãos neste país?Que esta publicação seja, portanto, mais um ponto de

referência para a ampliação de nossos horizontes.

Boa leitura.

Eliseu PadilhaPresidente da Fundação Ulysses Guimarães

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Milton Santos, cientista social brasileiro, ganhou projeçãointernacional como geógrafo, afirmando sua posição terceiro-mundista com uma obra que, de certa forma, revisa a deseus mestres e amigos franceses sem, no entanto, contrariar

seu próprio entendimento de mundo. Sempre manteve umdiálogo aberto com os demais campos do conhecimento.Negou a geografia de Estado, mas foi sempre defensor deuma geografia que tivesse o Estado-Nação como uma escalaprivilegiada. Para ele, toda mudança teria de passar pela

geografia nacional.A amplitude do seu pensamento, muito próximo à filosofia,

faz de Milton Santos um dos maiores pensadores do século XX. Sua capacidade de fazer prognósticos é contundente,especialmente quando aborda “o período popular da história”,

cujas características podem ser observadas hoje na revoluçãode Jasmin e em outras revoltas do mundo árabe, só para citaralguns poucos exemplos.

Mesmo não tendo sido um militante da causa dos negros,sempre ressaltou suas próprias dificuldades por ser negro no

Brasil e sempre apoiou as organizações que lutavam contra oracismo.

Toda a epistemologia produzida por Milton Santos,denominada por ele de Geografia Nova, teve três caminhosprincipais:

Prefácio

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2. Oferecer uma epistemologia que absorva ascaracterísticas do mundo do presente, definida na obra 

 Por uma Globalização, na qual considera a atualidade e apossibilidade da convergência dos momentos. O mundodessa globalização, em um primeiro momento, mostra-secomo fábula, mas se torna realidade como perversidade.Ainda assim, para ele, existe uma outra dimensão da

globalização: de ela ser uma forma de integração entrepovos e nações.3. Construir uma compreensão contemporânea sobrenosso país e o continente. Penso que essa era a dimensãode que Milton Santos mais gostava, pois o Brasil e a

América Latina foram objetos empíricos maiores de suaprodução. Prova disso é que, enquanto produzia as novas teorias, ele publicava reflexões empíricas de vanguarda,como  A urbanização brasileira,  Metrópole corporativa e fragmentada e  Brasil: território e sociedade no início do século XXI, em coautoria com Maria Laura Silveira.

Chama atenção a generosidade da sua obra, que nosimpele a pensar em transformações da sociedade e, portanto,do espaço, examinando desde os planos existenciais das

pessoas pelo “território usado”, até a dimensão da convivênciae da coexistência nos lugares, que ele define como espaçosdo acontecer solidário. Isso sem falar na revolução pragmáticaque sua obra possibilita, ao definir o espaço geográfico como“indissociável e contraditório sistema de objetos e ações”.

Penso q e Milton Santos nos dei o ma obra erdadeira

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I — Cronologia da época

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II — Cronologia de Milton Santos1926 – Nasce Milton Santos no dia 3 de maio, na cidade Brotasde Macaúbas, na Chapada Diamantina, Bahia; filho de AdalgisaUmbelina Almeida Santos e de Francisco Irineu dos Santos,ambos professores primários.

1927-1935 – Após passagem por Salvador, Ubaitaba e Itacaré,a família estabeleceu-se em Alcoçaba, cidade litorânea do sulda Bahia. Milton faz seus estudos primários com os pais, que também lhe ensinam francês. Aos oito anos é inscrito no últimoano do curso primário para obter o diploma de conclusão.

1936 – Com dez anos, faz o exame de admissão para o cursoginasial, ficando em primeiro lugar no Instituto Baiano de Ensino, tradicional colégio de Salvador. Nesse período, Milton torna-sealuno interno da instituição.

1937-1947 – Na escola, Milton destaca-se pelas suas boas notase pela participação em atividades culturais e estudantis. Foifundador do jornal manuscrito O Farol e, mais tarde, do jornal O Luzeiro, impresso, incentivando a participação dos estudantes.Ajudou a reorganizar o Grêmio Estudantil do Colégio.

1940 – A família muda-se para Salvador.

1942 – Após polêmica envolvendo estudantes universitários,ajuda a criar a Associação dos Estudantes Secundários da Bahia,

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1944 – Milton ingressa na Faculdade de Direito por influência deseu tio.

1947 –  Passa a ocupar a cadeira de Geografia do Brasil noInstituto Baiano de Ensino.

1948 – Bacharel em Direito pela UFBA.

1949 –  Presta concurso para a cadeira de Geografia Humanado Ginásio Municipal de Ilhéus, com tese que tratava dopovoamento da Bahia. Em Ilhéus desenvolve trabalhos sobre a Zona do Cacau e passa a colaborar de maneira efetiva para o jornal A Tarde, como correspondente.

1956 – Participa do Congresso Internacional de Geografia, noRio de Janeiro, encontrando-se com nomes de prestígio na área.Na ocasião, é convidado pelo geógrafo francês Jean Tricard pararealizar um curso de doutorado na Universidade de Strasbourg,

onde defende a tese O centro da cidade de Salvador.1958 –  Retorna para Salvador. Inscreve-se no concurso paralivre docência da Faculdade de Filosofia da Universidade daBahia, o qual não se realiza. Ingressa contra a Faculdade na justiça, tendo com advogado Nelson Carneiro, que ganha acausa em todas as instâncias.

1959 –  Cria-se o Laboratório de Geomorfologia e EstudosRegionais da Universidade da Bahia, grupo de pesquisaincentivado pelo reitor desta universidade e com a cooperação

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1960 – Submete-se com brilhantismo ao concurso para o qualhavia se inscrito anteriormente com a tese Os Estudos Regionais e

o Futuro da Geografia. Torna-se professor catedrático, superandopreconceitos. Publica trabalho Marianne em preto e branco, frutode sua viagem pela África.

1961 – Após a posse de Jânio Quadros, viaja com ele como indicado

do Jornal A Tarde. Também é indicado para subchefe da Casa Civilna Bahia, cargo que exerce por curto espaço de tempo.

1963 – É eleito presidente da Associação dos GeólogosBrasileiros (AGB), contando com a defesa veemente de CaioPrado Junior. Cria-se o  Boletim Baiano de Geografia, mantidoaté 1969, que publicava artigos de geógrafos do Brasil e daFrança. É nomeado presidente da Comissão de PlanejamentoEconômico (CPE) pelo governador Lomanto Junior, mas deixao cargo em 1964.

1964 –  Preso pelo regime militar. Em dezembro, deixa oBrasil, exilado. É acolhido pela França, para ser professor naUniversidade de Toulouse Le Mirail. Começa a sua longa trajetóriapelo mundo: Estados Unidos (1971-1972) no MassachusettsInstitute of Technology; Nigéria para fundação do Laboratório

de Geografia; Peru (1973) na Universidade Politécnica de Lima;Tanzânia (1974-1976) em Dar-es-Salaam; Venezuela (1975-1976);Estados Unidos (1976-1977) na Universidade de Columbia.

1970 – Tem-se início uma fase de grande produção intelectual,

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no Instituto de Geociências da Bahia,  A cidade mundial de nossos dias, que lota o auditório. Decidido a ficar no Brasil,

não consegue ser reintegrado ao quadro de professores daUniversidade da Bahia. Vai para o sul e trabalha no eixo Rio deJaneiro – São Paulo.

1979 –  Milton é contratado como professor assistente da

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1982-1985 –  Membro do comitê assessor do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)e coordenador da Comissão de Coordenação dos ComitêsAssessores do CNPq.

1984 – Com o apoio de jovens professores, submete-se aoconcurso para titular na Universidade de São Paulo (USP) e éaprovado.

1987 –  A Universidade Federal da Bahia outorga a MiltonSantos o título de Doutor Honoris Causa. Este foi o primeiro dosvinte títulos de  Doutor Honoris Causa recebidos por Milton emuniversidades do Brasil, da América Latina e da Europa.

1988-90 – Membro da Comissão de alto nível do Ministério daEducação, encarregada de estudar a situação de ensino nopaís.

1989 – Membro da Comissão especial da Assembleia Constituinte

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1991-1993 –Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduaçãoe Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).

1993-1995 –  Presidente da Associação de Pós-Graduação ePesquisa em Geografia (Anpege).

1994 –  Recebe o  Prêmio Internacional Vautrin Lud,  que

corresponde ao Nobel da Geografia. Pela primeira vez esteprêmio é concedido fora da França e dos Estados Unidos a umGeógrafo.

1996 – Os amigos reúnem-se para prestar-lhe uma homenagem

pelos seus 70 anos num Seminário Internacional em São Paulo,denominado O mundo do Cidadão. Um cidadão do mundo.

1997-1998 – Professor visitante da Universidade de Stanford, naCátedra de Joaquim Nabuco.

1998 – Diretor de Estudos em Ciências Sociais da Escola de AltosEstudos em Ciências Sociais, Paris.

2001 – Publica o livro O Brasil: Território e Sociedade no iníciodo século XXI, o último dos quarenta livros publicados. Tambémpublicou trezentos artigos em revistas científicas de diversospaíses. Falece em 24 de junho de 2001.

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III – Pensamento de Milton Santos1

“Não sou militante de coisa nenhuma,exceto de ideias”. (Milton Santos)

Milton Santos foi o pensador que se destacou no cenáriobrasileiro, não apenas pelo desempenho na sua área específica,a Geografia, mas também por sua formação humanista. Milton

ajudou a pensar o país como nação, mas o que destaca seupensamento é, ao final, o seu compromisso ético. A éticaperpassa todo seu comportamento intelectual e público. Esta éa sua originalidade no tempo do globalismo, época em que aética passa a ser um “manual” de vendedores e prestadores de

serviços para seus “usuários”.O que distingue a obra de Milton Santos na Geografiabrasileira?

Ela é uma obra de combate no campo das ideias porque,antes de mais nada, Milton foi um vigoroso pensador – ou filósofo

– capaz de provocar o estranhamento em relação ao discurso eà ação dos geógrafos profundamente vinculados ao empirismopositivista ou ao seu extremo oposto: à “...  medida que nos relacionamos de manera abstrata más nos alejamos del corazónde las cosas y um indiferencia metafísica se adueña de nosotros mientras tomam poder entidades sin sangre ni nombre próprio” 2.

O estranhamento do sujeito indignado, o ser emocionado quepertence ao grupo dos “... homens (que) estão necessariamente submetidos à emoção” 3 ou para os quais “A razão é, ou deveria ser,apenas escrava das paixões”, ou até para aqueles que percebemque não é só “no pensamento, mas por meio de todos os sentidos,

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A indignação de Milton Santos não se transforma em revolta,mas no bom combate. Ele não foi militante de um partido ou de

um movimento, mas de princípios generosos.No conjunto de sua obra, O espaço do cidadão (1987) representaum trabalho emblemático de sua indignação e de sua luta ética:“...uma reflexão do que represento, eu mesmo como pessoa, dianteda ambição de ser um cidadão integral neste país” 4 , porque “viver,tornar-se um ser no mundo, é assim, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais....” 

O artigo 1992: A redescoberta da Natureza  representa umalerta à sociedade industrializada, que sobrepõe a técnica aomeio-ambiente; é sobre a necessidade de melhor discutir asrelações e os efeitos da transformação da natureza. O artigochama a atenção para uma conscientização que estava apenas nocomeço, em 1992, mas que ainda hoje requer a reflexão e a açãode todos. Somos todos agentes nesta matéria, pois para ela nãohá espectadores.

No artigo  A revolução tecnológica e o território: realidadese perspectivas , Milton aborda as questões relacionadas com aglobalização da economia, com a transformação da sociedadeindustrial em sociedade informacional, com a emergência deum novo espaço, e com as relações ante os diferentes espaçose frente a uma nova realidade. É um texto reflexivo sobre este

novo momento da sociedade global.Ler Milton Santos é imprescindível porque sua obra tem

a capacidade de abrir todos os caminhos às investigações ereflexões.

Exige coragem, e isto ele sempre teve.

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Exige, enfim, uma profunda “religiosidade laica” , produto deuma longa aprendizagem da vida e da razão.

Exige que a ética supere o oportunismo e que sejamoscapazes de nos enxergar no outro.

Estamos convencidos de que Milton foi um homemprofundamente religioso, não no seu sentido formal, mas decompreensão do destino do homem e do valor da bondade, da

importância de assumir, com todas as suas consequências, aresponsabilidade do livre arbítrio.

Milton e sua reflexão sobre o tempo nos fazem lembrar SantoAgostinho em Confissões “... é claro e manifesto que não existemcoisas passadas e futuras: nem se pode dizer, com exatidão, que os

tempos são três: passado, presente e futuro. Mas talvez se deveriadizer, com propriedade, que os tempos são três...o presente dascoisas passadas (memória), o presente das coisas presentes (avisão) e o presente das coisas futuras (expectativas). Estas trêscoisas existem na alma e, em outro lugar, não as vejo...” 5  Era este tempo que Milton trazia à discussão.

Então, com coragem, esforço, reflexão e até com um sentimentode “religiosidade laica’’, passe à leitura de três grandes textos deMilton Santos que selecionamos para fazer parte da coletâneai O Pensamento Político Brasileiro. São eles: 1992: a redescoberta da natureza, de 1992; A revolução tecnológica e o território: realidadese perspectivas, de 1991, e o livro O espaço do cidadão, de 1987.

i Nota de transcrição

Os textos de Milton Santos transcritos nesta segunda edição da coletânea O Pensamento Polí-

5 AGOSTINHO, Santo. Solilóquios . Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. São Paulo:Editora Escala.s/d.

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III 1 1992 d b

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III.1 — 1992: a redescoberta

da Natureza6

A universidade escolhe, ela própria, os seus grandesmomentos, sem sujeição aos relógios telúricos, nem aoscronômetros do mercado ou do Estado. Este reencontro é um

desses momentos, destinado a celebrar a vontade comum darenovação e da continuidade. É isso mesmo o que significapertencer a uma geração e é essa a grande distinção dauniversidade, pois ela reúne homens e mulheres de idadesdiversas, todos dedicados a viver o seu tempo e a interpretá-lo.

Tenho a consciência desta oportunidade e daresponsabilidade que ela encerra. Esta é, sobretudo, uma ocasiãode crítica e autocrítica. A autocrítica é — no caminho — a buscade revisão do caminho. A crítica é o próprio caminho, uma visão,sempre a se renovar, do mundo que espanta as imagens batidase os conceitos surrados e propõe novas interpretações, novosmétodos, novos temas. Nesse sentido, todos estamos chamadosa filosofar e a filosofia não é mais um privilégio dos filósofos.

O tema “1992: a redescoberta da Natureza” é um desses

que a atualidade nos impõe, mas que deve ser abordadocautelosamente, já que nesse assunto a força das imagensameaça aposentar prematuramente os conceitos. Por isso,cumpre, urgentemente, retomá-los e, eventualmente, refazê-los. Nessa tarefa, não nos devemos deixar circunscrever pelosditames de uma pesquisa automática, instrumentalizada, nem

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ou, em outras palavras, para levarmos em conta o tempo quepassa e que tudo muda.

É sempre perigoso buscar reduzir a história a um esquema.Mas aqui a simplificação se impõe, com todos os seus riscos,para apontar o início de um processo e o seu estágio atual.

Referimo-nos ao que podemos chamar de Sistemas daNatureza sucessivos, onde esta é continente e conteúdo dohomem, incluindo os objetos, as ações, as crenças, os desejos, arealidade esmagadora e as perspectivas.

Com a presença do homem sobre a Terra, a Naturezaesta sempre sendo redescoberta, desde o fim de sua história

natural e a criação da natureza social, ao desencantamentodo mundo, com a passagem de uma ordem vital a umaordem racional. Mas agora, quando o natural cede lugar aoartefato, e a racionalidade triunfante se revela através daNatureza instrumentalizada, esta, portanto domesticada, nosé apresentada como sobrenatural.

A questão que se colocam os filósofos é a de distinguirentre uma Natureza mágica e uma Natureza racional. Em termos quantitativos ou operacionais, a tarefa certamenteé possível. Mas é talvez inútil buscar o momento de uma

 transição. No fundo, o advento da ciência natural (Capei, 1985,p. 19) ou o triunfo da ciência das máquinas não suprimem,na visão da Natureza pelo homem, a mistura entre crenças,mitigadas ou cegas, e esquemas lógicos de interpretação. Arelação entre teologia e ciência, marcante na Idade Média,

D i à h il

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Da natureza amiga à natureza hostil

Em resumo, essa história pode, assim, ser escrita em seumomento original e em sua resultante atual.

Ontem, o homem escolhia, em torno, naquele seu quinhãode Natureza, o que lhe podia ser útil para a renovação de suavida: espécies animais e vegetais, pedras, árvores, florestas,

rios, feições geológicas.Esse pedaço de mundo é, da Natureza toda de que ele

pode dispor, seu subsistema útil, seu quadro vital. Então hádescoordenação entre grupos humanos dispersos, enquanto sereforça uma estreita cooperação entre cada grupo e o seu meio:

não importa que as trevas, o trovão, as matas, as enchentespossam criar o medo: é o tempo do Homem amigo e da naturezaamiga. Assim como Michelet escreveu no Tableau de la France(1833): “A natureza é atroz, o homem é atroz, mas parecementender-se”.

A história do homem sobre a Terra é a história de uma ruturaprogressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se aceleraquando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobrecomo indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para tentar dominá-lo. A Natureza

artificializada marca uma grande mudança na história humanada Natureza. Agora, com a tecnociência, alcançamos o estágiosupremo dessa evolução.

Enquanto esperamos o “dia eterno” com auroras boreaisartificiais em todas as latitudes, na previsão de J. Ellul (1954),

são um incidente um momento enquanto hoje a ação antrópica

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são um incidente, um momento, enquanto hoje a ação antrópica tem efeitos continuados, e cumulativos, graças ao modelo de

vida adotado pela humanidade. Daí vêm os graves problemas derelacionamento entre a atual civilização material e a Natureza.Assim, o problema do espaço humano ganha, nos dias de hoje,uma dimensão que ele não havia obtido jamais antes. Em todosos tempos, a problemática da base territorial da vida humanasempre preocupou a sociedade. Mas nesta fase atual da história, tais preocupações redobraram, porque os problemas também seacumularam.

No começo dos tempos históricos, cada grupo humanoconstruía seu espaço de vida com as técnicas que inventava para

 tirar do seu pedaço de Natureza os elementos indispensáveis àsua própria sobrevivência. Organizando a produção, organizavaa vida social e organizava o espaço, na medida de suas própriasforças, necessidades e desejos. A cada constelação de recursoscorrespondia um modelo particular. Pouco a pouco esseesquema se foi desfazendo: as necessidades de comércio entrecoletividades introduziam nexos novos e também novos desejose necessidades, e a organização da sociedade e do espaço tinhade se fazer segundo parâmetros estranhos às necessidadesíntimas ao grupo.

Essa evolução culmina na fase atual, quando a economiase tornou mundializada, e todas as sociedades terminarampor adotar, de forma mais ou menos total, de maneira mais oumenos explícita, um modelo técnico único que se sobrepõe àmultiplicidade de recursos naturais e humanos (Santos, 1991).

mercadorias Cada lugar porém é ponto de encontro de lógicas

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mercadorias. Cada lugar, porém, é ponto de encontro de lógicasque trabalham em diferentes escalas, reveladoras de níveis

diversos, às vezes contrastantes, na busca da eficácia e do lucro,no uso das tecnologias e do capital e do trabalho.

Se o modelo técnico se tornou uniforme e a força motora — amais-valia em nível mundial — é também única, os resultadossão os mais disparatados. É assim que se definem e redefinem

os lugares: como ponto de encontro de interesses longínquos epróximos, mundiais e locais, manifestados segundo uma gamade classificações que está sempre se ampliando e mudando.

Sem o homem, isto é, antes da história, a Natureza era una.Continua a sê-lo, em si mesma, apesar das partições que o uso do

Planeta pelos homens lhe infligiu. Agora, porém, há uma enormemudança. Una,  mas socialmente fragmentada, durante tantosséculos, a Natureza é agora unificada pela história, em benefíciode firmas, estados e classes hegemônicas. Mas não é mais aNatureza amiga, e o Homem também não é mais seu amigo.

 A natureza abstrata

Dentro do atual sistema da Natureza, o homem se afastaem definitivo da possibilidade de relações totalizantes com o

seu próprio quinhão do território. De que vale indagar qual afração da Natureza que cabe a cada indivíduo ou cada grupo,se o exercício da vida exige de todos uma referência constantea um grande número de lugares? Ali mesmo, onde moro,frequentemente não sei onde estou. Minha consciência dependede um fluxo multiforme de informações que me ultrapassam ou

entorno? Sem dúvida pode-se imaginar o indivíduo como um ser

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entorno? Sem dúvida, pode-se imaginar o indivíduo como um serno mundo, mas pode-se pensar que há um homem total em um

mundo global?

“Bradamos contracertos efeitos

da exploração selvagem da

 Natureza. Mas não falamos

 bastante da relaçãotecnicamente

 fundada, as forças mundiais que

 insistem em mantero mesmo modelo de

vida...” 

   F   á   b

   i  o   A  r  a   ú   j  o   /   A  g   ê  n  c   i  a   F  o   l   h  a  s

Sem dúvida, o trabalho, entendido como sistema, é cada vez

Fomos rodeados, nestes últimos 40 anos, por mais objetos

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Fomos rodeados, nestes últimos 40 anos, por mais objetosdo que nos precedentes 40 mil. Mas sabemos muito pouco sobre

o que nos cerca. A Natureza tecnicizada acaba por ser umaNatureza abstrata, já que as técnicas, no dizer de G. Simondon(1958), insistem em imitá-la e acabam conseguindo.

Os objetos que nos servem são, cada vez mais, objetos técnicos, criados para atender a finalidades específicas. As

ações que estes objetos contêm são aprisionadas por finalidadesque, raramente, nos dizem respeito

Vivemos em um mundo exigente de um discurso, necessárioà inteligência das coisas e das ações. É um discurso dosobjetos, indispensável ao seu uso, e um discurso das ações,

indispensável à sua legitimação. Mas ambos esses discursos são,frequentemente, tão artificiais como as coisas que eles explicame tão enviesados como as ações que tais discursos ensejam.

Sem discurso, praticamente entendemos nada. Como ainovação é permanente, todos os dias acordamos um poucomais ignorantes e indefesos. A rainha Juliana, da Holanda,assistindo à demonstração de um computador eletrônicoem uma exposição em Amsterdam, exclamou: “Não possoentender isso. Nem posso entender as pessoas que entendemisso” (W. Buckinggam, 1961, p.27).

A técnica é a grande banalidade e o grande enigma, e é comoenigma que ela comanda nossa vida, nos impõe relações, modelanosso entorno, administra nossas relações com o entorno.

Se, ontem, o homem se comunicava com o seu pedaço da

exponencialmente a tensão entre a cultura objetiva e a cultura

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exponencialmente a tensão entre a cultura objetiva e a culturasubjetiva e, do mesmo modo, se multiplicam os equívocos de nossa

percepção, de nossa definição e de nossa relação com o meio.Estaremos de volta ao  mundo mágico, onde o fantasioso, o

fantástico, o fantasmagórico prometem tomar o lugar do que élógico e o engano pode se apresentar como o verdadeiro?

Diante de nós temos, hoje, possível (e frequente), com

a falsificação do evento, o triunfo da apresentação sobrea significação, ainda que reclamando uma ancoragem. Naquestão do meio ambiente, que revela essa faceta da históriacontemporânea, essa ancoragem chama-se buraco de ozônio,efeito-estufa, chuva ácida; e a ideologia se corporifica no imenso

 território da Amazônia.Num mundo assim feito, não há propriamente interlocutores,

porque só existe comunicação unilateral. Não há diálogo,porque as palavras nos são ditadas e as respostas previamentecatalogadas. Trata-se de uma fala funcional e o caráterhipnótico da comunicação é a contrapartida do “estiolamentoda linguagem pela perda progressiva da criatividade” (E.Carneiro Leão, 1987, p. 20).

No dizer de Marcuse (1964, p.95), essa linguagem

“constantemente impõe imagens  e contribui, de forma militante,contra o desenvolvimento e a expressão de conceitos”. Já que“o conceito é absorvido pela palavra”, “espera-se da palavraque apenas responda à reação publicizada e estandardizada. Apalavra torna-se um clichê e, como clichê, governa o discurso ou

A natureza da mídia

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A natureza da mídia

A mediação interessada, tantas vezes interesseira, da mídia,conduz, não raro, à doutorização da linguagem, necessária paraampliar o seu crédito, e à falsidade do discurso, destinado aensombrecer o entendimento. O discurso do meio ambienteé carregado dessas tintas, exagerando certos aspectos emdetrimento de outros, mas, sobretudo, mutilando o conjunto.

O terrorismo da linguagem (H. Lefebvre, 1971, p. 56) levaa contraverdades mediáticas, conforme nos ensina B. Kayser(1992). Este autor nos dá alguns exemplos, convidando-nos aduvidar do próprio fundamento de certos discursos das mídias.Por exemplo, “Sobre o aquecimento da terra e o efeito-estufa.Pode-se estar certo de que, apesar do contínuo crescimento do teor em CO2

 da atmosfera desde os começos da era industrial,o clima não conheceu aquecimento no século 20. As normaismedidas entre 1951 e 1980, em relação às do período 1921-1950,mostram, ao contrário, uma baixa (não significativa) de -0,3°.

De qualquer modo, a evolução é muito lenta, e dezenas de anossão necessários para que se registre uma mudança climática. Oapocalipse anunciado — fusão de glaciares, elevação do níveldo mar, etc. — não é seguramente para amanhã. Se é necessáriolutar contra a poluição, a degradação do meio ambiente, devemos

fazê-lo com os olhos abertos, com base em análises científicas enão nos limitando a gritar: ‘está pegando fogo!’”.

Se antes a Natureza podia criar o medo, hoje é o medo quecria uma Natureza mediática e falsa, uma parte da Naturezasendo apresentada como se fosse o todo.

 todos os momentos e todos os recantos da existência a serviço

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çdo mercado e do poder e constitui, juntamente com o medo, um

dado essencial de nosso modelo de vida.O império universal do medo e o império universal da

fantasia são criações sobrepostas. Já Freud (1920) escreviaque “A criação do domínio mental da fantasia tem reproduçãona criação de ‘reservas’ e ‘parques naturais’ em lugares

onde as incursões da agricultura, do trânsito ou da indústriaameaçam transformar... rapidamente a terra em alguma coisairreconhecível. A ‘reserva’ se destina a manter o velho estado decoisas que foram lamentavelmente sacrificadas à necessidadeem todos os outros lugares; ali, tudo pode crescer e expandir-

se à vontade, inclusive o que é inútil e até o que é prejudicial.O domínio mental da fantasia é também uma reserva assimrecuperada das invasões do princípio da realidade” (Leo Marx,1976, p. 12).

Quanto ao medo, lembra-nos Ramsey Clark que ele “já nos

induz a pensar mais na incolumidade do que na justiça” e FurioColombo (1973, p. 56) utiliza esse testemunho para explicaras violações da lei cada vez mais frequentes, no mundo, pelospróprios órgãos legais.

É a mídia o grande veículo desse processo ameaçadorda integridade dos homens. Virtualmente possível, pelo usoadequado de tantos e tão sofisticados recursos técnicos, apercepção é mutilada, quando a mídia julga necessário, atravésdo sensacional e do medo, captar a atenção. Muitos movimentosecológicos, cevados pela mídia, destroem, mutilam ou reprimem

significado da história atinge o seu auge. É, também, desse

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modo, que se estabelece uma dolorosa confusão entre sistemas

 técnicos, Natureza, sociedade, cultura e moral.Bradamos contra certos efeitos da exploração selvagem

da Natureza. Mas não falamos bastante da relação entre suadominação tecnicamente fundada, as forças mundiais queinsistem em manter o mesmo modelo de vida e o fato já apontado,

desde os anos 50, por G. Friedmann, de que a tecnicização estálevando ao condicionamento anárquico do homem moderno. Aracionalização da existência, tão dependente das relações atuaisentre técnica e sociedade, é um dos seus pilares.

Ontem, a técnica era submetida. Hoje, conduzida pelos

grandes atores da economia e da política, é ela que submete.Onde está a Natureza servil? Na verdade, é o homem que se torna escravizado, num mundo em que os dominadores nãoquerem se dar conta de que suas ações podem ter objetivos, masnão têm sentido. O imperativo da competitividade, uma carreira

desatinada sem destino, é o apanágio dessa dissociacão entremoralidade e ação que caracteriza a implantação em marchada chamada nova ordem mundial, onde os objetivos humanos esociais cedem a frente da cena, definitivamente, a preocupaçõessecamente econômicas, com papel hoje onímodo da mercadoria,

incluindo a mercadoria política. Não só a Natureza é apresentadaem frangalhos, mas também a moral, e, na ausência de umsentido comum, já dizia o Marx da  Miséria da filosofia, “é fácilinventar causas místicas”.

Não basta, porém, o criticismo, para exorcizar esses

A universidade e a ordem atual das coisas

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Avulta, neste ponto, o papel da Universidade nessa busca

do conhecimento. Mas essa tarefa vem sendo ameaçadaexatamente pelo prestígio crescente do cientismo e pelaimportância que este vem ganhando entre os que, atualmente,dirigem o ensino superior.

Num mundo em que o papel das tecnociências se tornaavassalador, um duplo movimento tende a se instalar. Deum lado, as disciplinas incumbidas de encontrar soluções técnicas, as reclamadas soluções práticas, recebem prestígiode empresários, políticos e administradores e desse modoobtêm recursos abundantes para exercer seu trabalho. Basta

uma rápida visita às diferentes faculdades e institutos paraconstatar a disparidade dos meios (instalações, material,recursos humanos) segundo a natureza mais ou menos mercantile pragmática do labor desenvolvido. De outro, o prestígio geradopelo processo de racionalização perversa da universidade é o

melhor passaporte para os postos de comando.Desse modo, um grave obstáculo a que se instale um

processo de reflexão consequente é o contraste crescente,na Universidade, entre os seus grandes momentos e essecotidiano tornado miserável pela ameaça já em marcha deuma gestão técnica e racionalizadora, que leva ao assassinatoda criatividade e da originalidade.

Em nome do cientismo, comportamentos pragmáticos eraciocínios técnicos, que atropelam os esforços de entendimento

fortes pelas verbas que manipulam, prestigiosos pelas relações

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que entretêm com o uso dessas verbas, e que ocupam assim a

frente da cena, enquanto o saber verdadeiro praticamente nãoencontra canais de expressão.

Como uma racionalidade burocrática perversa ameaçainvadir até mesmo aqueles recantos que não sabem viver semespontaneidade, corremos o risco de assistir ao triunfo de uma

ação sem pensamento sobre um pensamento desarmado.Nessas condições, devemos reconhecer, toda reação é

difícil e a muitos pode aparecer como um verdadeiro suicídio, já que a carreira universitária não mais precisará ser umacarreira acadêmica. O grande risco é que a recusa à coragem

e a falta de crença se convertam em rotina. Como nos libertar,então, da internalização da violência de que fala Horkheimer(1974), ou da “sujeição das almas” apontada por Lenoble (1990,p. 77) ao se referir à maneira atual de representar a Natureza?Lembremos Heisenberg (1969) ao dizer que “... na ciência, o

objeto de investigação não é a Natureza em si mesma, mas aNatureza submetida à interrogação dos homens”. Não se trata,aqui, de uma interrogação unilateral, técnica, menor, mas deuma interrogação abrangente, sequiosa de entendimento, uma tarefa intelectual.

Outrora, os intelectuais eram homens que, na universidadeou fora dela, acreditavam nas ideias que formulavam eformulavam ideias como uma resposta às suas convicções.Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com o seu tempo e nãodevem traí-lo. Foi desse modo que o filósofo francês criticava a

Num discurso endereçado à agremiação norte-americanaó

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de economistas, um economista-filósofo, Kenneth Boulding

(1969), ante os descaminhos já clamorosos de sua profissão,reclamava a necessidade de heroísmo, para pôr fim aoconformismo, fugir aos raciocínios técnicos, recusar a pesquisaespasmódica, abandonar a vida fácil e, afinal, enfrentar oentendimento do mundo.

O empenho com que nos convocam para tratar, seja comofor, as questões do meio ambiente, sem que um espaço maiorseja reservado a uma reflexão mais profunda sobre as relações,por intermédio da técnica, seus vetores e atores, entre acomunidade humana assim mediatizada e a Natureza, assim

dominada, é típico de uma época e tanto ilustra os riscos quecorremos, como a necessidade de, em todas as áreas do saber,agir com heroísmo, se desejamos poder continuar a perseguira verdade.

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III. 2 - A revolução tecnológica e o

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g

território: realidades e perspectivas7

Nas épocas de grande mudança, um dos graves problemasque se impõem aos estudiosos é o encontro do novo. Sem isso,

o seu trabalho científico e a possibilidade de uso desse trabalhoficam comprometidos. De todo modo, o presente que buscamos jamais conhecemos inteiramente. Seja isso uma desculpa parao caráter exploratório do texto que segue e que se apresentamais como uma hipótese de trabalho e uma base de discussão,

empreendidas sobretudo a partir de análise do empírico, aindaque sem desprezo pelos ensinamentos teóricos.

O fato de que o processo de transformação da sociedadeindustrial em sociedade informacional não se completouinteiramente em nenhum país, faz com que vivamos, a um

só tempo, um período e uma crise, e assegura, igualmente, apercepção do presente e a presunção do futuro, desde que omodelo analítico adotado seja tão dinâmico quanto a realidadeem movimento e reconheça o comportamento sistêmico dasvariáveis novas que dão uma significação nova à totalidade.

Nesse exercício, o ponto de vista adotado aqui é, sobretudo,o de nosso campo de estudo, isto é, o do espaço territorial, espaçohumano. Mas a interdependência, ao nível global, dos fatoresatuais de construção do mundo deve assegurar às propostas aquiavançadas um certo interesse no que toca às demais ciências

particulares pode mais facilmente suceder um processo dereintegração ou reconstrução do lodo Nesse processo de

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reintegração ou reconstrução do lodo. Nesse processo deconhecimento, o espaço tem um papel privilegiado, na medidaem que ele cristaliza os momentos anteriores e é o lugar deencontro entre o passado e o futuro, mediante as relaçõessociais do presente que nele se realizam. Desde que um enfoqueparticular se proponha com uma visão contextual, deve serpossível, através da soma de estudos setoriais, recuperar a totalidade. E a globalização das relações Sociais, assim comoo caráter aparentemente irrecorrível da modernidade atual são,por outro lado, dados que devem permitir uma visão prospectiva.

A revolução científico-técnica e suas consequências

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O período técnico-científico

A fase atual da história da Humanidade, marcada pelo quese denomina de revolução científico-técnica, é frequentementechamada de período técnico-científico (ver, por exemplo,

RICHT A, R.,  La Civilisation au Carrefour,  Paris, Editions duSeuil, 1974). Em fases anteriores, as atividades humanasdependeram da técnica e da ciência. Recentemente, porém, trata-se da interdependência da ciência e da técnica em todosos aspectos da vida social, situação que se verifica em todas

as partes do mundo e em todos os países. O próprio espaçogeográfico pode ser chamado de  meio técnico-científico  (tra- tamos do assunto em  Espaço e Método, São Paulo, EditoraNobel, 1985). Essa realidade agora se estende a todo o TerceiroMundo, ainda que em diferente proporção, segundo os países.

Na América Latina, não há país em que essas transformaçõesnão se deem, entronizando a ciência e a tecnologia comonexos essenciais ao trabalho e à vida social, ao menos para osrespec tivos setores hegemônicos, mas com repercussão sobre toda a sociedade.

Nesta nova fase histórica, o mundo está marcado pornovos signos, como: a multinacionalização das firmas e ainternacionalização da produção e do produto; a generalizaçãodo fenômeno do crédito, que reforça as características daeconomização da vida social; os novos papéis do Estado em

A percepção da simultaneidade

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O fenômeno da simultaneidade ganha, hoje, novo

conteúdo. Desde sempre, a mesma hora do relógio marcavaacontecimentos simultâneos, ocorridos em lugares os maisdiversos, cada qual, porém, sendo não apenas autônomo comoindependente dos demais. Hoje, cada momento compreende,em todos os lugares, eventos que são interdependentes,

incluídos em um mesmo sistema de relações. Os progressos técnicos que, por intermédio dos satélites, permitem afotografia do planeta, permitem-nos uma visão empírica da totalidade dos objetos instalados na face da Terra. Como asfotografias se sucedem em intervalos regulares, obtemos,

assim, o retrato da própria evolução do processo de ocupaçãoda crosta terrestre. A simultaneidade retratada é fatoverdadeiramente novo e revolucionário, para o conhecimentodo real e o correspondente enfoque das ciências do homem,alterando-lhes, assim, os paradigmas.

Unicidade técnica e da mais-valia

O espaço geográfico agora mundializado redefine-se pelacombinação desses signos. Seu estudo supõe que se levemem conta esses novos dados revelados pela modernização epelo capitalismo agrícola, pela especialização regional dasatividades, por novas formas e localizações da indústria e daextração mineral, pelas novas modalidades de produção daenergia, pela importância da circulação no processo produtivo,pelas grandes migrações, pela terciarização e pela urbanização

completamente nova. Todo esforço de conceituação exige queos novos fatores ao nível mundial (cuja lista certamente não

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esgotamos) sejam levados em conta, tanto ao nível local, comoregional ou nacional. Os estudos empíricos ganham a partirdesse enfoque.

Para a compreensão de um sem-número de realidades, eparticularmente no que se refere ao espaço, o aparecimento

de dois novos fenômenos constitui a base de explicação desua nova realidade. De um lado, o período atual vem marcadopor uma verdadeira unicidade técnica, isto é pelo fato de queem todos os lugares (Norte e Sul, Leste e Oeste) os conjuntos técnicos presentes são “grosso modo” os mesmos, apesar do

grau diferente de complexidade; e a fragmentação do processoprodutivo à escala internacional se realiza em função dessamesma unicidade técnica.

Antes, os sistemas técnicos eram apenas locais, ouregionais, e tão numerosos quantos eram os lugares ou

regiões. Quando apresentavam traços semelhantes não haviacontemporaneidade entre eles, e muito menos interdependênciafuncional. Por outro lado, a impulsão que recebem essesconjuntos técnicos atuais (ou suas frações) é única, vinda deuma só fonte, a mais-valia tornada mundial ou mundializada,

por intermédio das firmas e dos bancos internacionais. Oconhecimento empírico da simultaneidade dos eventos e oentendimento de sua significação interdependente são umfator determinante da realização histórica, ao menos para ossetores hegemônicos da vida econômica, social e política. Mas

Fluxos de informação superpostos aos fluxos de matéria

O l d i f ã di õ i d

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O papel crescente da informação nas condições atuais da

vida econômica e social permite pensar que o espaço geográficoe o sistema urbano, considerado como o esqueleto produtivoda Nação, são atualmente hierarquizados por fluxos deinformação superpostos a fluxos de matéria não propriamentehierarquizantes. Os objetos são utilizados segundo um modelo

informacional que amplia a esfera do trabalho intelectual; naverdade, os novos objetos já nascem com um conteúdo eminformação, de que lhe resultam papéis diferenciados na vidaeconômica, social e política.

A importância da informatização e da creditização do território,o novo papel dos bancos e dos diversos meios de transmissão dasmensagens, a crescente necessidade de regulação de qualquer tipo de intercâmbio (inclusive as trocas de natureza social ecultural) pelo Estado, mas também por outras instituições eorganizações em diversos níveis, o imperativo de estar sempre se

adaptando às condições, em permanente mudança, da economiainternacional, a necessidade de reconversão das economiasregionais e urbanas são alguns dos elementos a levar em contapara a construção de um quadro de reflexão, que leve em conta asespecificidades novas que, sob formas materiais aparentemente

imutáveis, respondem rapidamente às modificações sobrevindasàs relações internacionais e internas de cada país.

Uma crise e um período

A i i é tã d i d i ã

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A primeira é a questão da crise, da crise não como apenas

uma transição entre períodos, mas da crise como período. Durantea história dos países subdesenvolvidos, dentro do sistemacapitalista e da América Latina, em particular, esta é talvez aprimeira ocasião na qual estamos diante de um momento decrise e que também se define como um período, na medida em

que as variáveis que o definem são duráveis, estruturais, dandoum novo caráter às realidades que nos cercam.

Solidariedade das mutações no plano mundial

Um outro dado a sublinhar, agora, é o fato de que, maisque em qualquer outro momento da história da humanidade,há uma solidariedade das mutações em plano mundial; e essasolidariedade é, em grande parte, administrada. A administraçãoda solidariedade, seja como colaboração entre países e firmasou como nova forma de dependência, é um dado fundamentalno entendimento do que se passa. Em particular, impõe-se umamudança epistemológica, às vezes radical, consequência dasmudanças históricas mencionadas.

Conhecimento do planeta e empirização dos universais

Em terceiro lugar, e pela primeira vez na história, é possívelsaber em extensão e em profundidade o que se passa nasuperfície da Terra. Quem conhece, e para que se conhece, éoutro assunto. O fato é que apenas algumas poucas potências,

penetrado na era de ouro da teorização e do discernimento dasperspectivas: era de ouro ou nada, se não pudermos utilizar os

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instrumentos que estão diante de nós para construir um novopensamento.

O meio técnico-científico

A fase atual, chamada também de período científico, do

nosso ponto de vista particular, é, em primeiro lugar, a fase naqual se constitui, sobre territórios cada vez mais vastos, o que sechamará de meio científico-técnico, isto é, um momento históricono qual a construção ou a reconstrução do espaço se dará comum conteúdo de ciência e de técnica.

Nova composição orgânica do espaço

O fato de que o espaço seja chamado a ter cada vez maisum conteúdo em ciência e técnica traz consigo um grandeacervo de consequências, a primeira das quais, certamente, éuma nova composição orgânica do espaço, pela incorporaçãomais ampla de capital constante na instrumentalização doespaço (instrumentos de produção, sementes selecionadas,fertilizantes, pesticidas, etc.) ao mesmo tempo em que se dãonovas exigências quanto ao capital variável indispensável. Como

consequência das novas condições trazidas pelo uso da ciênciae da técnica na transformação do território, há menos empregoligado à produção material e uma maior expressão do assalariadoem formas diversas (segundo os países e segundo regiões emcada país), uma necessidade maior de capital adiantado, o que

é dado pelo crédito. De tal forma que poderíamos falar de umacreditização do território, que dará uma nova qualidade ao

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espaço.

Formas de ajustamento

Cabe, igualmente, lembrar que nesta fase se corporificaaquela antevisão de Marx, segundo a qual, ao ser vigente o

 trabalho universal, isto é, o trabalho intelectual como formade universalização da produção, teríamos uma maior área daprodução com uma menor arena da produção. Isto é, a produçãoem sentido lato, isto é, em todas as suas instâncias, se dariaem áreas maiores do território, enquanto o processo produtivo

direto se daria em áreas cada vez menores. Essa é uma tendência facilmente assinalável em muitos países da AméricaLatina. Ela é tornada possível em boa parte pela possibilidadeagora aberta à difusão das mensagens e ordens em todo o território, através dos enormes progressos obtidos com as

 telecomunicações. A creditização do território, a dispersão deuma produção altamente produtiva, não seriam possíveis sema informatização do espaço. O território é hoje possível de serusado, com o conhecimento simultâneo das ações empreendidasnos diversos lugares, por mais distantes que eles estejam. Isso

permite, também, a implantação de sistemas de cooperaçãobem mais largos, amplos e profundos, agora associados maisestreitamente a motores econômicos de ordem não apenasnacional, mas também internacional. De fato, os eventos são,hoje, dotados de uma simultaneidade que se distingue dassimultaneidades precedentes pelo fato de que são movidas por

O ajustamento do espaço às novas condições do período tem dados particulares, que são ao mesmo tempo fatores dei l t ã d l ã d U d l é d l

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implantação e de aceleração do processo. Um deles é o modeloeconômico, do qual um subtítulo é o modelo exportador queagrava a sua ação em função da dívida.

Emergência de um novo espaço

Há emergência de um novo espaço e de uma nova redeurbana. Nas fases mais recentes, constata-se, em primeirolugar, a luta pela formação de um mercado único, através daintegração territorial. Um novo momento, o atual, conhece umajustamento à crise desse mercado, que é um mercado único e

segmentado; único e diferenciado; um mercado hierarquizado earticulado pelas firmas hegemônicas, nacionais e estrangeirasque comandam o território com apoio do Estado. Não é demaislembrar que, ainda aqui, mercado e território são sinônimos. Umnão se entende sem o outro.

A Metrópole onipresente e novas categorias explicativas

Neste momento, a metrópole está presente em toda parte,e no mesmo momento. A definição do lugar é, cada vez maisno período atual, a de um lugar funcional à sociedade como um

 todo. Os lugares seriam, mesmo, lugares funcionais de umametrópole. E, paralelamente, através das metrópoles, todas aslocalizações tornam-se hoje funcionalmente centrais. O vaticíniode André SIGFRIED (Aspects du XXème Siécle) vendo em cadalugar o centro do mundo, ter-se-ia realizado.

condições de instantaneidade e de simultaneidade que somentehoje se verificam.

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Mas ao contrário do que muitos foram levados a imaginare a escrever, na sociedade informatizada atual nem o espaço sedissolve, abrindo lugar apenas para o tempo; nem este se apaga. Oque há é uma verdadeira demultiplicação do tempo, devida a umahierarquização do tempo social, graças a uma seletividade aindamaior no uso das novas condições de realização da vida social. Comisso, uma nova hierarquia se impõe entre lugares, uma hierarquiacom nova qualidade, a partir de uma diferenciação muitas vezesmaior do que ontem entre diversos pontos do território.

A simultaneidade entre os lugares não é mais apenas a

do tempo físico, tempo do relógio, mas do tempo social, dosmomentos da vida social. Mas o tempo que está em todos oslugares é o tempo das metrópoles, que transmitem a todo o território o tempo do Estado e o tempo das multinacionais. Emcada outro ponto, nodal ou não, da rede urbana ou do espaço,

 temos tempos subalternos e diferenciados, marcados pordominâncias específicas.

Nenhuma cidade, além da metrópole, “chega” a outracidade com a mesma celeridade. Nenhuma dispõe da mesmaquantidade e qualidade de informação que a metrópole.

Informações virtualmente de igual valor em toda a rede urbananão são igualmente disponíveis em termos de tempo. Suainserção no sistema mais global de informações de que dependeo seu próprio significado depende da metrópole, na maior partedas vezes. Está aí o novo princípio da hierarquia, pela hierarquia

(em relação ao emissor e controlador dos fluxos diversos). Porquehá defasagens, cada qual desses lugares é hierarquicamentesubordinado Porque as defasagens são diferentes para os

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subordinado. Porque as defasagens são diferentes para osdiversos variáveis ou fatores, é que os lugares são diversos.

As questões do centro-periferia, como precedentementecolocadas, e a das regiões polarizadas, ficam, assim,ultrapassadas. Hoje, a metrópole está presente em toda parte,

no mesmo momento, instantaneamente. Antes a metrópole nãoapenas não chegava ao mesmo tempo a todos os lugares, comoa descentralização era diacrônica: hoje a instantaneidade ésocialmente sincrônica.

Trata-se assim de verdadeira dissolução da metrópole,

condição, aliás, do funcionamento da sociedade econômica eda sociedade política. Ainda uma vez, para que e para quemé o funcionamento dessa sociedade assim constituída é umaoutra coisa, um outro problema. O fato é que estamos diantedo fenômeno de uma metrópole onipresente, capaz, ao mesmo

 tempo, pelos seus vetores hegemônicos, de desorganizar ereorganizar, ao seu talante e em seu proveito, as atividadesperiféricas e impondo novas questões para o processo dedesenvolvimento regional.

Entropia e neg-entropia no espaçoTomemos, de modo figurativo, o exemplo brasileiro. No

passado, São Paulo sempre esteve presente no país todo:presente no Rio, um dia depois em Salvador, três dias depoisem Belém, dez dias depois em Manaus, trinta dias depois...

medida em que os diversos agentes sociais e econômicos nãoutilizam o território de forma igual. Isso representa um desafioàs planificações regionais na medida em que as grandes firmas

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às planificações regionais, na medida em que as grandes firmasque controlam a informação e a redistribuem ao seu talante, têmum papel entrópico em relação às demais áreas e somente elaspodem realizar a neg-entropia. O espaço é assim desorganizadoe reorganizado a partir dos mesmos polos dinâmicos. O fato deque a força nova das grandes firmas neste período científico-

 técnico traga como consequência uma segmentação vertical do território, supõe que se redescubram mecanismos capazes delevar a uma nova horizontalização das relações que esteja nãoapenas ao serviço do econômico, mas também do social.

O dilema latino-americanoA América Latina sempre foi, desde os inícios de sua

história ocidental, um continente aberto aos ventos do mundo,enormemente permeável ao novo, em todos os momentos. Daí

a sua vulnerabilidade e a sua força. A aceitação mais fácil emais pronta dos modelos de modernização lhe tem permitidosaltar etapas, percorrendo em muito menos tempo caminhosque ao Velho Continente exigiram uma lenta evolução. Poroutro lado, esse processo de integração se tem dado à custade enormes distorções do ponto de vista territorial, econômico,social e político. O período técnico-científico começa a seimplantar no continente sob esses mesmos signos, ajuntandonovas distorções às herdadas das fases anteriores. Pode-se, todavia, imaginar, neste novo período histórico que é a fasedas organizações, e, também, a fase da inteligência, que será

se tornou irrecusável; mas a dosagem de sua combinação, nãomais a partir dos imperativos da técnica, de que a economia setornou subordinada mas a partir dos valores o que ensejaria

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 tornou subordinada, mas a partir dos valores, o que ensejariauma nova forma de pensar um porvir onde o social deixaria deser residual e à tecnologia seria atribuído um papel históricosubordinado, em benefício do maior número.

Bibliografia

RICHTAR, R. “La Civilization au Carrefour”. Paris: Editionsdu Seuil, 1974.

SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: EditoraNobel, 1985.

___________ Geography in the late twenty century: new rolefor a threatered discipline. “International social science journal”.

UNESCO 36 (4), número especial sobre “Epistemology of socialscience”, 1984.

SIEGFRIED, A. Aspectos de XXème Siècle, s/d.

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III.3 - O espaço do cidadão*

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Prefácio

Este livro já se vinha gestando em meu espírito há mais dedez anos. Em parte, pela reflexão do que represento, eu mesmo

como pessoa, diante da ambição de ser um cidadão integralneste país. Em parte, como geógrafo, à vista de como se organizaa rede de caminhos e a rede de cidades segundo hierarquias ede como se distribuem territorialmente os indivíduos, segundosuas classes so ciais e seu poder aquisitivo.

Apareceu-me, então, como ideia a explorar a de que aatividade econômica e a herança social distribuem os homensdesigualmente no espaço, fazendo com que certas noçõesconsagradas, como a rede urbana ou de sistema de cidades,não tenham validade para a maioria das pessoas, pois o seu

acesso efetivo aos bens e serviços distribuídos conforme ahierarquia urbana depende do seu lugar socioeconômico e também do seu lugar geográfico. Essa é uma das conclusõesa que penso ter chegado em meu livro O Espaço Dividido. Amobilidade ou o imobilismo no espaço aparecem, então, como

categorias de análise que somente depois iria desen volvermais a fundo.

Isso se dá nos territórios nacionais como um todo,mas também dentro das cidades, sobretudo nas enormesaglomerações urbanas do Terceiro Mundo. Este, aliás, é

Sou agradecido aos recursos que obtive da FINEP, do CNPq eda FAPESP, aos quais, por isso mesmo, este livro está em débito.

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Foi, na verdade, trabalhando sobre a realidade brasileirae com a intenção de ser nela atuante, que me passou pelacabeça a ideia de tratar a questão da cidadania pelo ângulogeográfico.

Este pequeno volume pretende contribuir para o debate

sobre a redemocratização brasileira, luta que não se esgotacom a promulgação de uma nova Constituição. Preferiria,certamente, que este livro houvesse aparecido um ano antes,mas um livro não se termina de escrever quando se quer,mas quando se pode. Alguns temas, não propriamente os de

minha especialidade, de tal forma me arrastaram que decidiconsagrar-lhes um espaço maior que o inicialmente pretendido.A questão da alienação e do seu oposto, a individualidadeforte, foi um desses problemas. O problema do individualismoe do consumo e do seu oposto, a sociabilidade na ci dadania,

foi outro desses temas. Tudo isso me distraiu de outro objetivo,este mais pessoal, que busquei com esse livro. Imaginei queseria bom, ao completar 60 anos, dar sinal de mim mesmo,lembrando de que, para o intelectual, só o trabalho assegura apossibilidade de prosseguir trabalhando.

Trabalhei muito este livro, com a intenção de oferecer umaleitura agradável e instrutiva. Não sei se obtive uma ou outracoisa. Eu próprio acabei por gostar mais de uns capítulos que deoutros e apenas não os indico para não desapontar o leitor. Massei que alguns trechos são fastidiosos e é sobretudo para estes

apon tando-me dúvidas: Cilene Gomes, Denise de Souza Elias,Sergio Gertel, Wilson dos Santos.

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Agradeço também à Maria Zélia de Oliveira, que datilogra-fou o manuscrito final, e a todas as pessoas e instituições que,de uma forma ou de outra, me encorajaram a concluir este livro,entre as quais a  Folha de S. Paulo e a Tribuna da Bahia, ondealguns destes ensaios foram publicados em forma fragmentáriae preliminar.

São Paulo, maio de 1987.

Introdução

O progresso material obtido nestes últimos anos no Brasil

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p g teve como base a aceitação extrema de uma racionalidadeeconômica, exercida pelas firmas mais poderosas, estrangeirasou nacionais, e o uso extremo da força e do poder do Estado, nacriação de condições gerais de produção propícias à forma decrescimento ado tada. Essas condições gerais da produção nãose cingiam à criação de infraestruturas e sistemas de engenhariaadequados, mas chegavam à formulação das condições políticasque assegurassem o êxito mais retumbante à conjugação deesforços públicos e privados no sentido de ver o país avançando,em passo acelerado, para uma forma “superior” de capitalismo.

Por isso, a noção de direitos polí ticos e de direitos individuais teve que ser desrespeitada, se não frequentemente, pisoteada eanulada. Sem esses pré-requisitos, seria impossível manter comopobres milhões de brasileiros, cuja pobreza viria de fato a sercriada pelo modelo econômico anunciado como redentor. Aliás,

muitos pobres acreditaram nos slogans com que se popularizouo discurso cientificista dos economistas do regime, e acabarammais pobres ainda. O modelo político e o modelo cívico foraminstrumentais ao modelo econômico. As esperanças com queeste último acenava às massas eram por demais sedutoras, e

estas massas eram despertadas para a necessidade, o interesse,a vantagem de ampliação do consumo, mas não para o exercícioda cidadania, que era cada vez mais amputada.

Colocada de fato a serviço do encontro de combinaçõesentre possibilidades técnicas mais produtivas - e logo apontadas

Assim, a compreensão do movimento social ou, pelo menos,seu equacionamento intelectual com vistas à intervenção pelo pla-nejamento - ou, simplesmente, pelas ações cotidianas do poder

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público - ganha como referência maior não propriamente a eco-nomia (o que já seria abusivo), mas as chamadas necessidadeseconômicas, o que, nas condições acima enunciadas, consisteem abandonar toda preocupação teleológica e em valorizar umpragma tismo que atribui o comando, sem base filosófica, da vida

social aos instrumentos e à sua utilização racional, em nome dolucro.

A partir da ideia de infalibilidade da ciência como fator deci-sivo da atividade produtiva em nossos dias, a ciência da economiase viu atribuir uma aura mística por conferir credibilidade atravésde uma formulação teórica, a práticas mercantis com diverso con- teúdo moral. Ao descobrir a possibilidade de novas técnicas, aciência apenas alcança ser história quando serve de base a umaação econômica planejada, isto é, à política econômica, a qualfornece as fórmulas mais adequadas à obtenção do maior lucro,

à competição entre firmas e à vitória de algumas, orientandoos consumos, justificando o comportamento indutor seletivo doEstado e das organizações internacionais, escrevendo, em suma,o manual de procedimentos indispensáveis a que, através doprogresso técnico, o processo de subordinação de firmas menores

às maiores, de países pobres a países ricos e, de um modo maisgeral, do trabalho ao capital, se aprofunde e se amplie.

Desse modo, a economia tende a se apresentar comouma técnica a mais, voltada exclusivamente para as maisdiversas modalidades de maximização do chamado econômico

Esta longa discussão sobre o economicismo nada tem dechoramingas contra os economistas, esses “técnicos da ciênciado sórdido”, no dizer de Carlyle(K. Arrow, 1976, pp. 13-14).

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O que nos desgosta são as formulações empírico-abstratas in-dispensáveis à justificação dos avanços da ideologia capitalista,e sua materialização. Esta forma de ver e de praticar a economiaestá, por exemplo, em desacordo completo com o esforço desen-volvido por economistas dos séculos XVII e XVIII, mas tambémde alguns dos seus colegas contemporâneos que guardam aantiga tradição da confraria de abraçar em um mesmo esforçode compreensão o homem, a natureza e os instrumentos de sua transformação, entre os quais se encontram fatores diversos,materiais e imateriais, analisados pelas diversas ciênciassociais. Em nome dessa interdisciplinaridade, única a dar contados fenômenos ligados à modernidade, é que sugerimos umamudança de enfoque no tratamento dos problemas humanos,ligados à recuperação do cidadão.

A ideia de modelo cívico se inclui nesse tipo novo de preocu-pações. Mas um modelo cívico autônomo e não subordinado aomodelo econômico, como existe agora. Numa democracia verda-deira, é o modelo econômico que se subordina ao modelo cívico.Devemos partir do cidadão para a economia e não da economiapara o cidadão.

O modelo cívico forma-se, entre outros, de dois componentesessenciais: a cultura e o território.

O componente cívico supõe a definição prévia de umacivilização, isto é a civilização que se quer, o modo de vida que se

não pode ser estabelecida em função dos simples mandamentosda “economia”, mas da cultura. Quando aceitamos que sejampagos salários de fome a uma boa parte da população, é certo

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que estamos longe de possuir uma verdadeira cultura.O componente territorial supõe, de um lado, uma

instrumentaçao do território capaz de atribuir a todos oshabitantes aqueles bens e serviços indispensáveis, não importaonde esteja a pessoa; e de outro lado, uma adequada gestãodo território, pela qual a dis tribuição geral dos bens e serviçospúblicos seja assegurada.

Os níveis territoriais-administrativos responderiam aos di-versos níveis da demanda social.

Nessas condições, deve-se falar de um modelo cívico-territo-rial, a organização e a gestão do espaço sendo instrumentaisa uma política efetivamente redistributiva, isto é, tendente àatribuição de justiça social para a totalidade da população,não importa onde esteja cada indivíduo. A plena realização do

homem, material e imaterial, não depende da economia, comohoje entendida pela maioria dos economistas que ajudam a nosgovernar. Ela deve resultar de um quadro de vida, material e nãomaterial, que inclua a economia e a cultura.

Ambos têm que ver com o território e este não tem apenasum papel passivo, mas constitui um dado ativo, devendo serconsiderado como um fator e não exclusivamente como reflexoda sociedade. É no território tal como ele atualmente é, que acidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta. Mudançasno uso e na gestão do território se impõem, se queremos criar um

Há cidadãos neste país?

Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a

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figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, noBrasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que não osão?

O simples nascer investe o indivíduo de uma soma

inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar nasociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo, éassumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cadaqual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, àcomida, à educação, à saúde, à pro teção contra o frio, a chuva,

as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e auma existência digna.

O discurso das liberdades humanas e dos direitos seusgaran tidores é, certamente, ainda mais vasto. Tantas vezesproclamado e repetido, tantas vezes menosprezado. É isso,

 justamente, o que faz a diferença entre a retórica e o fato.O respeito ao indíviduo é a consagração da cidadania, pelaqual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe comoum corpo de direitos concretos individualizados. A cidadaniaé uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e

investe cada qual com a força de se ver respeitado contra aforça, em qualquer circunstância.

A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nessesentido, que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva,

fonte de direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis,mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruiçãodas prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito

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de reclamar e ser ouvido.A cidadania pode começar por definições abstratas,

cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válidadeve poder ser reclamada. A metamorfose dessa liberdade teórica em direito posi tivo depende de condições concretas,como a natureza do Estado e do regime, o tipo de sociedadeestabelecida e o grau de pugnacidade que vem da consciênciapossível dentro da sociedade civil em movimento. É porisso que desse ponto de vista a situação dos indivíduos nãoé imutável, mas está sujeita a retrocessos e avanços. Oshomens, pela sua própria essência, buscam a liberdade. Nãoa procuram com a mesma determinação porque o seu grau deentendimento do mundo não é o mesmo. As sociedades, pelasua própria história, são mais ou menos abertas às conquistasdo homem.

E os Estados nem sempre coincidem com a sociedade civilmas, ao contrário, lhes refream os impulsos, e frequentementedesrespeitam os indivíduos, sob as justificativas e disfarcesmais diversos. A dialética da vida social leva em conta omovimento desses fatores: o dado institucional, o dadoeconômico, o dado cultural e o dado individual interdependeme interagem.

F. C. Weffort (1981, pp. 139-140), que o cita, mostra como, noseu clássico Citizenship and Social Class , Marshall reconheceu no

Países com tradição de cidadania8 e outros não?

A cidadania evolui através de um processo de lutas

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desenvolvidas paralelamente em diversos países, que leva dacondição de “membro da sociedade nacional” no século XVIII,ao “direito de associação” no século XIX9, até serem alcançadosos “direitos sociais” em pleno século XX10. Em um belo ensaio,Tereza Haguette (1982) descreve a evolução que começa com a

aquisição do status de cidadão, membro de uma sociedade civilreconhecida como tal, isto é, a conquista de direitos políticos individuais, prossegue com o reconhecimento dedireitos coletivos ,pertinentes aos grupos que constituem a coletividade nacionale autorizados a formar associações representativas legitimadas,

até que “um terceiro conjunto de direitos - os direitos sociais- garantiriam ao indivíduo um padrão de vida decente, umaproteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como umaparticipação na herança social”.

A própria palavra cidadão vai se impor com a grande mutação

histórica marcada na Europa com a abolição do feudalismo e oinício do capitalismo. Marx e tantos outros autores saudaram achegada do capitalismo como a abolição de vínculos de servidãoentre o dono da terra e o “seu” trabalhador e o surgimento do

8  “Com relação ao conceito de cidadania (...), uma rápida incursão histórica nos mostra que, noséculo XIX, com a emergência do Estado-nação em toda a Europa, este conceito adquiriu umimportante elemento: a qualidade de membro. Pelo simples fato de ser membro de uma Estado-nação, todos os habitantes ascendiam ao status de cidadão, apesar de que o mais elevado direitodo cidadão, o direito político de participar da construção da sociedade, se efetivaria somenteatravés do voto. Até um passado bem recente - início do século XX - este direito era reservado aalguns (...) “(T. Haguette, 1982, p. 123)9 “No século XIX o direito de associação - que representa um importante direito político - foi

 trabalhador livre, dono dos meios de produção. As aglomeraçõeshumanas, os burgos, foram o teatro principal dessa luta e o palcodessa enorme conquista. Com o homem do burgo, o burguês,

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nascia o cidadão, o homem do trabalho livre, vivendo num lugarlivre, a cidade.

Assim, como a passagem do feudalismo para o capitalismo,a do trabalho servil para o trabalho livre não se deu de uma noitepara o dia. O processo de formação da cidadania não foi tão

brutal como equivocadamente podem pensar os observadoreslongínquos da história, considerando os eventos como se fossemum ponto fixo no tempo. As relações sociais feudais e a forma de trabalho correspondente geraram, lentamente, um novo caldo decultura, assen tando as bases de um pensamento revolucionário

e de sua expansão, oferecendo à rebeldia os fundamentos deum êxito que iria desembocar em novas relações sociais e de trabalho.

As conquistas cidadãs não ficaram aí. A prática dessaporção de liberdade adquirida foi o aprendizado para novas

liberdades, até que se chegasse às ideias modernas desociedade civil, um corpo social que só existe porque há homensciosos dos seus direitos; e existe a despeito do Estado. Não foraassim e o ideário liberal não se teria alastrado na Europa e delanão se teria transferido para outros continentes. É assim que

esse projeto chega aos Estados Unidos, fazendo desse país seuprincipal bastião.

O fato, porém, é que não é lícito confundir o liberalismode Tocqueville ou o cidadão do capitalismo concorrencialcom o cidadão na era teletrônica. Impõe-se a necessidade de

os fermentos dessa mudança. As revoluções socia listas, desejosasde romper com as relações sociais impostas pelo capitalismoe de reconhecer os direitos das massas, tiveram, tam bém, um

papel dialético nessa transformação ainda que críticos atuais do

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papel dialético nessa transformação, ainda que críticos atuais doque chamam o “socialismo real” protestem contra a ausência deconteúdo liberal na promoção social empreendida no leste.

Neoliberalismo e cidadania atrofiada

A grande crise econômica em que vivemos conduziu acertos retrocessos em matéria de conquistas sociais e políticas.O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstençãoestatal na área produtiva, atribui ao estado capitalista uma

grande cópia de poder sobre os indivíduos a título de restaurar asaúde econômica e, as sim, preservar o futuro. A alegação de queo grande desemprego é necessário para aumentar o empregodaqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma recessão programada. Os “socialismos reais” também prometem, a partir das restrições atuais às liberdadesclássicas, um sistema social em que, no futuro, a intervençãoautônoma do Estado (separado da sociedade civil) seráminimizada, se não abolida, na regulação da vida social.

Um traço comum a esses países vem, todavia, do fato

de que neles houve condição para que a luta histórica pelaconquista dos direitos dos cidadãos abrangesse, ao longo do tempo, parcela considerável da população imbuída, conscienteou inconsciente, da ideia de sociedade civil e da vocaçãode igualdade. A instalação de tal estado de espírito e de tal

a vitória do consumo como fim em si mesmo, a supressão davida comunitária baseada na solidariedade social e sua super-posição por sociedades competitivas que comandam a busca de

status e não mais de valores Em tais sociedades corporativas

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 status  e não mais de valores. Em tais sociedades corporativasreina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismocomo seu portador, a cultura de massas como caldo de culturafabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienação.

Esse quadro, hoje comum a todos os países capitalistas, ganhaainda mais nitidez nos países subdesenvolvidos como o nosso.

É necessário lembrar que, para muitos países do TerceiroMundo, o empobrecimento da moralidade internacional atribuiuaos imperativos do progresso a presença de regimes fortes, as

dis torções na vida econômica e social, a supressão do debatesobre os direitos dos cidadãos, mesmo em suas formas maisbrandas.

Deixaram de ser permitidos: a defesa do direito ao trabalhoe a uma remuneração condigna, o reclamo dos bens vitais

mínimos, o direito à informação generalizada, ao voto e, atémesmo, a salvaguarda da cultura.

O não cidadão do terceiro mundo

Mas há cidadania e cidadania. Nos países subdesenvolvidosde um modo geral há cidadãos de classes diversas, há os que sãomais cidadãos, os que são menos cidadãos e os que nem mesmoainda o são. Para Tereza Haguette (1982), o escopo da cidadania“não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites”11.

finalístico, a atingir. É certo que a cidadania se realiza segundodiversas formas, mas não podemos partir do princípio de quehomens livres possam ter respostas diferentes aos seus direitos

essenciais apenas pelo fato de viverem em países diferentes A

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essenciais apenas pelo fato de viverem em países diferentes. Aprópria autora, aliás, falando do estado de bem-estar (p. 124),critica o fato de que o exercício dos direitos correspondentesseja, ainda hoje, um privilégio de alguns países.

A elaboração brasileira do não cidadãoO caso brasileiro tem de ser analisado sob essa luz, na medida

em que tais fatores, escalonados no tempo nos países do Norte,aqui aparecem e se implantam de uma só vez. A convergência devárias causas, ao mesmo tempo revolucionárias e dissolventes,iria ter um impacto fortemente negativo no processo de formaçãoda ideia da cidadania e da realidade do cidadão. Mas nesta, comoem outras questões, há uma especialidade brasileira a realçar.

Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e conco-

mitantes processos como a desruralização, as migrações brutaisdesenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora,a expansão do consumo de massa, o crescimento econômicodelirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada,a degradação

Das escolas, a instalação de um regime repressivo com asupressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituiçãorápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofiade vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa comos aspec tos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como

Brasil, o que multiplicou exponencialmente o seu potencial já porsi só negativo, sobretudo porque a classe média então criada jánascia debaixo das influências – indicadas acima. Na realidade,

tais mudanças perversas não apenas se deram paralelamente

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 tais mu danças perversas não apenas se deram paralelamente,mas sistematicamente, o que acentua a sua força ideológica,na medida em que os fenômenos correspondentes acabam porse justificar a partir de suas próprias relações causais, isto é,naturalmente. O quadro não está, certamente, completo.

Com certeza não saberíamos empreender a imensa lista devariáveis com valor explicativo, mas temos de acrescentar, pelomenos, mais duas, extremamente imbricadas com as demais.Uma é a imersão do país, desde praticamente o fim da SegundaGuerra Mundial, em um clima de guerra fria e o concomitante

engajamento em uma política econômica subordinada à AliançaAtlân tica. Essa causa é muito pouco mencionada quando sedeseja equacionar a problemática nacional, mas realmentepresente na equação política internacional e interna, nacondução da economia, na conformação da sociedade e na moral

correspondentes, tanto quan to na configuração territorial.O modelo econômico que conduziu ao chamado “milagre

econômico” vai buscar suas raízes nos mesmos postuladosque levaram à supressão das liberdades civis, acusadasentão como um fermento deletério, capaz de levar o país àanarquia. Trata-se, também, de um modelo político e social, tanto responsável pela eliminação do embrião de cidadaniaque então se desenvolvia, como pela opção de alargamentode uma nova classe média em detrimento da massa de pobres

que o “milagre” não apenas deixou de suprimir, como tambémaumentou12. O crescimento econômico assim obtido, fundado emcertos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a

agravar a concentração da riqueza e as injustiças já grandes

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agravar a concentração da riqueza e as injustiças, já grandes,de sua distribuição. Entre as pessoas e entre os lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumoimpossível de se generalizar, as linhas de crédito abertas parafortalecer os produtores ajudaram a agravar as desigualdades

e santificar as dis torções. O equipamento do país, destinadoao escoamento mais fácil e mais rápido dos produtos, serviuao modelo econômico que o gerou para a criação do modelo territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muitomais migrações de consumo que de trabalho, esvaziamentodemográfico em inúmeras regiões, concen tração da populaçãoem crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo urbanas,com a formação de grandes metrópoles em todas as regiões e aconstituição de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro noSudeste.

Além do que, para os seus moradores menos móveis, acidade é impalpável. Ela, porém, se impõe como um amontoadode signos aparentemente desencontrados, agindo, no entanto,em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ação, tornando-me impotente diante da multiplicidade das coisas queme cercam e de que posso dispor13 .

Uma sociedade multitudinária

Criava-se, assim, uma sociedade multitudinária - seria, já, umasociedade de massas ou um seu arremedo? - sem o concomitantede um real consumo de massa, pois o poder aquisitivo faltava

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por muito tempo, e agora funcionam como um fator limitativona elaboração de um projeto nacional mais consequente, jáque os pro jetos pessoais afloram e se exprimem com um vasto

componente de alienação.

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p çIsso é assim para a maioria da população, desprovida de

meios para uma análise crítica de sua própria condição.

Também é ainda mais grave para os milhões de indivíduos

que nasceram depois que tal processo se iniciou ou que a elese incorporaram sem poder distinguir aspirações pessoaislegítimas e imposições do sistema econômico e político. Trata-seaqui daquela confusão entre liberdade e dominação, de que falaMarcuse quando se refere às condições de existência no mundo

de hoje16

.A urbanização fundada no consumo é, também a matriz de

um combate entre a cultura popular que desertava as classesmédias para ir se abrigar nos bairros pobres, cultura popularhoje defendida pelos pobres, cuja pobreza impede, afinal, sua

completa imersão nessas novas formas de vida, fundadas pelomesmo consumo que levou os pobres à cidade ou nesta fezpobres os que ainda não eram.

Na cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolveme mínguam as solidariedades ancestrais. Ali onde o dinheiro se

 torna a medida de tudo, a economização da vida social impõeuma competitividade e um selvagismo crescentes. As causas dosmales aparecem como se fossem a sua solução, círculo vicioso queescancara as portas das favelas para a cultura de massas como seu cortejo de despersonalização e a substituição dos projetos

pessoais saídos da cultura, isto é, de dentro do indivíduo, poroutros projetos elaborados de fora deste mesmo indivíduo, projetosdecididos a conquistar todo mundo pela força da propaganda17.

Assim, a cultura popular, cultura “selvagem” e irracional, éb tit íd l t id t l lt d

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, p p , g ,substituída, lenta ou rapidamente, pela cultura de massas, oespaço “selvagem” cede lugar a um espaço que enquadra e limitaas expressões populares, e o que deveria surgir como sociedadede massas apenas se dá como sociedade alienada18.

Em lugar do cidadão surge o consumidor insatisfeito e, porisso, votado a permanecer consumidor. Sua dependência em re-lação aos novos objetos limita sua vocação para obter uma indivi-dualidade e reduz a possibilidade dos encontros interpessoaisdiretos e enriquecedores, porque simbólicos em sua própria

origem. A comunicação entre as pessoas é frequentementeintermediada por coisas. Frequentemente os movimentos demassa também se esgotam nas coisas, tendo uma lógica maisinstrumental que exis tencial19. As mobilizações são locais ousetoriais. A socialização ca pitalista, originária de uma divisão

de trabalho que a monetarização acentua, impede movimentosglobais e um pensamento global. A reivindicação de uns não rarorepresenta um agravo para de outro. A força da alienação vemdessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguemidentificar o que os separa e não o que os une.

17  A propósito da forma como a imprensa escrita, falada e televisionada influi sobre a mente dosindivíduos, pode ser útil a leitura de um livro didaticamente redigido: Tony Schw artz. Mídia: OSegundo Deus (São Paulo, Summus Editorial. 1986). Um enfoque filosófico do tema é oferecido porHans Magnus Enzensberger em The Consciousness Industry (New York, A Continuum Book, TheSeabury Press, 1974).18 í f í

Uma visão mais abrangente das coisas e dos fenômenos acabapor ser negada aos cidadãos comuns, em vista da concentraçãoda mídia, da sobrecarga de informações irrelevantes20  e da

 tendência a apenas ampliar certos aspectos da realidade,cuja escolha para a exibição pública é com frequência ligada

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cuja escolha para a exibição pública é com frequência ligadaao mundo da política e dos interesses. Lindbeck (1975, p. 35) já havia chamado a atenção para a dramatização que é feitasob “problemas específicos e concretos” que atraem e fixam a

atenção sobre aspectos geralmente menores dos eventos. Quemolha a televisão com algum senso crí tico já se deve ter apercebidodessa forma de manipulação dos acontecimentos.

O cidadão mutilado

É extensa a tipologia das formas de vida não cidadãs21,desde a retirada, direta ou indireta, dos direitos civis à maioria dapopu lação22, às fórmulas eleitorais engendradas para enviesar amanifes tação da vontade popular, ao abandono de cada um àsua própria sorte.

20  “Esse estado de superinformação perpétua e de subinformação crônica caracteriza nossassociedades contemporâneas.“O imediato torna, de fato, a decifração de um acontecimento ao mesmo tempo mais fácil e maisdifícil. Mais fácil porque choca de imediato, mais difícil porque se manifesta totalmente de imediato.Num sistema de informações mais tradicional, o acontecimento assinalava por seu próprio conteúdosua área de difusão. Sua rede de influências era, cada vez mais, definida por aqueles aos quais

 tocava. Seu traço era mais linear (...) estando doravante cortados os intermediários, opera-se uma

 telescopagem, e na incandescência das significações ficamos cegos.” (Pierre Nora, 1976, p. 189)21 A propósito dessa cidadania mutilada um livro recente, organizado por Maria de Lourdes M.Covre, A Cidadania Que Não Temos (São Paulo, Brasiliense, 1986), nos dá uma boa visão teórica eimpírica, a partir da realidade brasileira atual. Uma outra coletânea, A Cons trução da Cidadania,publicada pela Universidade de Brasília, em 1986, sob coordenação de João Gabriel Lima CruzTeixeira, aborda essa questão sob outra problemática.22 Só Ri d J i d i ã l i ób i d

As burocracias - estilo brasileiro - nos tratam como sefôssemos objetos, desde a filosofia do emprego às exclusõesconsagradas. O Brasil inscreve na Constituição federal que

o trabalho é um direito e a assistência social prerrogativa detodos Mas institui ao mesmo tempo o não trabalho através

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 todos. Mas institui ao mesmo tempo o não trabalho, atravésda falácia do FGTS, que encoraja a rotatividade e consagra anão assistência.

Aos desempregados somente agora são reconhecidos

direitos, e assim mesmo tão precários que ainda estão muitolonge do que é praticado em tantos outros países capitalistas.Tudo isso sem falar nos desiguais sem remédio, os desiguaisinstitucionais, o negro, o nordestino, as mulheres, cujo discurso tolerado não tem, entre tanto, merecido a resposta adequada.

Sessenta e nove por cento das mulheres brasileirasganhavam menos de dois salários-mínimos em 1982 (eram48,5% ganhando menos de um salário-mínimo), enquanto oíndice constatado para os homens era menor: 56,9% (eram30,6.% ganhando menos de um salário-mínimo). (LadislauDowbor, 1986, p. 57)

Dos brasileiros sem instrução até 30 anos de idade,cujo mon tante nacional era de 54% em 1982, uma repartiçãosegundo a cor mostra que eram 18,1% entre os amarelos; 44,4

% entre os brancos; 66,9% entre os considerados mestiços e68,6% entre os negros. (L. Dowbor, 1986, p. 53.) Mas os negrose pardos não ultrapas savam, em 1980, os 45% da população.

Os brasileiros ganhando menos de dois salários-mínimoseram 60,9% da população total em 1982. Mas o percentual

pardos e negros sendo de 0,6% e 0,1% do total respecti vamente.(PNAD, 1982e L. Dowbor, 1986, pp. 55 e 56.)

Os abusos de funcionários sem mandato

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A intervenção de entidades e funcionários sem mandato navida cotidiana das pessoas frequentemente constitui um agravoirreparável à cidadania. Isso aconteceu no regime autoritário, econtinua existindo em plena Nova República. E o que é maisgrave, sem que haja sinais de mudança para melhor. Comoclassificar o desembaraço com que os organismos fazendáriosdecidem mudar as regras do jogo financeiro e fiscal, alternandocom isso a situação de inúmeras pessoas? Quantos, valendo-se de uma simples decisão do Conselho Monetário Nacional,enriquecem de uma noite para o dia?

Certamente, porém, é muitas vezes maior o número dos queempobrecem em função de portarias ou resoluções. Ora, entre osdireitos do cidadão está o de manter todas as suas conquistas,

ob tidas pelo trabalho sob um qualquer regime político-social. Pelomenos até que este seja legalmente mudado, isto é, enquanto tem vigência jurídica, está funcionando um verdadeiro pactobom ou ruim com a sociedade, e não é lícito que as regras de jogo assim constituídas possam ser rompidas ao bel-prazer de

um funcionário. Não pode um cidadão ser empobrecido - nemenriquecido - por uma decisão não legalmente motivada, quandose vive num Estado que se proclama como Estado de direito. Odireito à integridade se inclui entre as prerrogativas inalienáveisdo cidadão e se estende do campo biológico aos da cultura, da

líti d l i t é i l i t i ô i t i l i t i l

despercebida essa forma de agir autoritária. Pois o fisco brasileironão apenas ofende a cidadania como alardeia tais ofensas,divulgando na imprensa, com ar triunfalista e desenvolto, sua

lista interminável de façanhas. Outro dia o ministro decidiusubstituir a imagem-símbolo Mas a própria designação que

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substituir a imagem-símbolo. Mas a própria designação quea Receita Federal alegremente se outorgava, com o apelido deLeão, não era apenas de um extremo mau gosto, como de enormeindelicadeza para com os contribuintes.

A ideia de que cada um de nós é, sempre, um faltoso efetivoou potencial, permanece na vida diária dos brasileiros menospor vício original da raça e mais pela falta de medidas do poderpúblico que erijam a credibilidade em uma norma, a começarpela própria credibilidade do governo. A descrença generalizadae a  priori é mais um dado legal e administrativo do que mesmomoral. Não há povos desonestos por índole. Como, porém, opróprio governo admite o contrário, não é raro se confundiremequívoco e má-fé.

De outro modo, não se justificariam os alardes nacionalmentelevantados sobre o que, de uns anos para cá, passou a se chamarde malha, grossa ou fina, branca, negra ou cinzenta, na qualse aprisionam contribuintes por simples erros na declaraçãodo imposto sobre a renda. Tranquilamente, como para provar

que este não é um simples país de cidadãos, a Receita divulgacomunicados que, impunemente, se desmentem uns aos outros,quanto ao número, à natureza e à gravidade dos equívocos, logoadjetivados como crimes. Em certos casos, registrados antesdo atual processo de redemocratização, poderia parecer claro

mana do ano ou ainda arrastar para o ano seguinte a definiçãoda situação de milhares de pessoas, a maioria das quaiscertamente sem culpa, é insuportável chicana, obra de má-

fé, e cabal desrespeito ao cidadão. Ainda que os indigitadosfossem (ou sejam) culpados esse não seria um procedimento

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fossem (ou sejam) culpados, esse não seria um procedimentocorreto e digno em uma verdadeira democracia.

A cidadania exige, de parte da adminis tração, umcomportamento respeitoso, a presunção de boa-fé em todos

os casos e a comunicação em tempo hábil dos erros supostos,para que os responsáveis possam corrigi-Ios ou se defender.Essa defesa, aliás, é frequentemente tornada difícil em certoslugares, pelo abuso de poder administrativo, quando o fiscodecide agir como legislador, policial, juiz e algoz ao mesmo

 tempo. Muita gen te prefere desembolsar a se embrenharno cipoal das leis, decretos, portarias e recomendações deentendimento impossível ao comum dos mortais.

Firmas ou instituições

As firmas hegemônicas, os bancos23, tomam o lugar dasinsti tuições governamentais. Usurpam das assembleiaseleitas um poder legislativo que não têm, impondo regras à totalidade dos cidadãos. Mediante essa invasão descabida,

a vida social é ilegalmente regulada em função de interessesprivatistas.

Que as firmas se assemelham a instituições nos paísesonde funciona o capitalismo monopolista de Estado é fato jáarquiconhecido. Mas em certos países como o Brasil, onde

Veja-se, por exemplo, o famigerado Serviço de Proteçãoao Crédito. Entidade impossível de se conceber onde hajaum mínimo de respeito pelas pessoas, em nosso país age

naturalmente e se comporta como se fosse uma verdadeirainstituição pública. Esse SPC funciona ao mesmo tempo como

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instituição pública. Esse SPC funciona ao mesmo tempo comouma central ilegal de informações e um verdadeiro tribunalprivado. Manipula as informações que obtém e que deveriam,ao menos, ser confidenciais, para julgar, condenar ou perdoar

os consumidores, segundo suas próprias regras. Veja-se o quea Folha de S. Paulo, na edição de 12 de janeiro de 1985, escrevesobre o mesmo: “O SPC é um sistema de centralização deinformações sobre clientes criado pelas associações comerciaiscom o objetivo de identificar os maus pagadores. A principal

argumentação contrária a ele é a sua força no mercado e a faltade base legal. Os críticos do serviço alegam que inicialmenteo SPC tinha uma atuação regional. Hoje, a informatização e acentralização dos dados permite que um consumidor que atraseuma pres tação em Quixeramobim, por exemplo, seja impedido

de comprar em qualquer outro ponto do país. Além disso, háabusos por parte de alguns comerciantes. Há casos de proibiçãode crédito para parentes de pessoas negativadas, ou seja: umproblema do SPC pode se transformar num verdadeiro estigma”.

O SPC não é o único a cobrar juros e ágios extorsivos e inde-

vidos, sem a mínima possibilidade de apelação. Tal prática se veri-fica até mesmo nos bancos, que, aliás, adotam regras particularesna circulação dos cheques apresentados, recusando inclusivecertos pagamentos com cheques de outras instituições bancárias,quando a Lei claramente estabelece que o cheque é irrecusável.

E o direito de atrasar? Num país onde é tão elevadoo percentual da população que tem ocupação mas nãopropriamente emprego, e a grande maioria ganha muito aquém

do mínimo necessário, a intolerância com o atraso de pagamentode bens e serviços essenciais como a água e luz, por exemplo, é,

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ç g , p p , ,certamente, inacei tável, e o é ainda mais por partir de empresaspúblicas ou concessionárias de serviços públicos.

O conceito de serviço público foi, aliás, abastardado a um

 tal ponto que as entidades fornecedoras trabalham na base dolucro, que buscam aumentar gulosamente. Os clientes, isto é, toda a população, ganharam o apelido de “usuários”.

E nem se diga que isso é próprio dos países capitalistas.Em muitos destes, há limitação de lucros para as empresasprivadas concessionárias de serviços públicos. Um exemplo?Houve considerável baixa das tarifas telefônicas nos países doNorte, consecutiva aos progressos tecnológicos. Estes tiveram,no Brasil, efeito exatamente oposto. Ora, se comparamos nossossalários e tarifas com os de países da Europa, da América doNorte e os do Japão, ficamos simplesmente aturdidos. Mesmoassim, a Bell Company, que no Canadá cobrou demais pelas tarifas telefônicas, teve de devolver dinheiro aos “usuários”...

Arregimentação e manipulação

No Brasil atual em matéria política, desde a organização dospartidos à legislação da propaganda eleitoral, desde a proporcio-nalidade da representação às modalidades de representação, tudo isso somente pode se entender se examinarmos a maneira

Dentro desse mesmo projeto, que aliás já se vinha desenvol-vendo há alguns anos, estão as diversas formas organizativassugeridas pelo Estado para arregimentar as pessoas. Uma dessas

manipulações se está dando através da profissionalização. Já foichamada a atenção para essa forma de enquadramento, tornada

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indispensável para permitir aos indivíduos o acesso a direitosque deveriam ser indiscriminadamente assegurados.

Para Wanderley Guilherme dos Santos (1979, p. 76), “a regu-

lamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicatopúblico definem, assim, os três parâmetros no interior dosquais passa a definir-se a cidadania. Os direitos dos cidadãossão decorrência dos direitos das profissões e as profissões sóexistem via regulamen tação estatal” (...); “a carteira profissional

se torna em realidade (...) uma certidão de nascimento cívico”24

.Essa prática ungida pela lei e, portanto, tornada obrigatória,

acarretou diversas consequências graves do ponto de vista social epolítico. Em primeiro lugar, seus efeitos foram devastadores sobreas políticas públicas em geral e sobre as políticas previdenciárias

em particular25, atenuando, senão eliminando, o papel ativo do24  “ Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se. não emum código de valores políticos. mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais,

 tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, sãocidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer umadas ocupações reconhecidas  e definidas em lei” (...) “A cidadania está embutida na profissão e os

direitos de cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal comoreconhecido em lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece.”(W. G. dos Santos, 1979, p. 75)25  “Ao voltar-se para a política previdenciária, portanto, o governo já trazia embutidas em sua políticaas seguintes consequências: em primeiro lugar, várias políticas sociais, Latu Sensu, que incumbe aogoverno administrar em benefício dos cidadãos - por exemplo, saúde pública, educação, saneamento,nutrição, habitação - deixavam de ter grupos específicos legítimos que por ela demandassem, visto

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entre essa prá tica e os programas de ensino, tal como agoraconstatamos, é um elemento a mais de distorção da visãode mundo. Não é de espantar que, no processo regulado de

abertura política que estamos vivendo, a incitação à criaçãode entidades de representação corporativa seja tão frequente

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de parte do poder público. Aparecem como democratizantesgraças à aparência de representatividade que oferecem, mas,na verdade, conseguem enviesar o raciocínio e a ação, isto é,

ameaçam retirar dos intelectuais os instrumentos com os quais justificam sua atividade social.

A atrofia do sindicalismo

A partir destas formas canhestras de arregimentação deprofissionais, a própria ideia de sindicalização foi prejudicada27.A sindicalização, direito político consagrado em todo o mundoocidental, é reconhecida como a forma mais adequada de quedispõe o operariado para encaminhar reivindicações materiaise imateriais, quan titativas e qualitativas. Constitui, igualmente,

um tácito reconhecimento de que a luta de classes é um dadoinseparável do capitalismo, onde a própria organização daprodução supõe uma hierarquia que não é baseada no esforçoindividual. Exercida através do sindicato, que canaliza asinsatisfações dos trabalhadores, a luta por reduzir injustiças

constitui um ato claramente político. Querer acreditar na ideiade que a atividade sindical não é e não pode ser uma atividadepolítica, para, desse modo, deixar de reconhecer e aceitar aluta de classes como coisa normal, é rematada tolice. Comodiz Otávio Ianni (1980, pp. 88-89): “(...) a greve, a luta operária,

quando um dado acontecimento ganha um caráter policial oumilitar, parecendo só isso, mesmo nesse caso ele implica o polí- tico; é fundamentalmente político. A luta econômica é sempre,

necessariamente, luta política”. Mas de tão batido e rebatido o slogan segundo o qual a luta operária é uma coisa e a luta política

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é outra, essa afirmação tendenciosa acabou por confundir umaparcela considerável da opinião pública, levando os própriospartidos e sindicatos a uma atitude prudente em relação a essa

 tese, e a uma hesi tação injustificável, pensando que, assim,diante de uma interpre tação ilegítima, melhor se legitimam28.

O reclamo de Francisco Wefiort (1981, p. 139) se entende ple-namente: “(...) Como incorporar a classe operária a uma demo-cracia de origem burguesa? (...) Como incorporar à cidadania

pessoas economicamente “dependentes”? São duas perguntasclássicas que deveriam talvez tomar um conteúdo diverso noBrasil de hoje, onde nem o liberalismo, nem a classe operária, e talvez menos ainda, nem a burguesia, apresentam a nitidez quepodemos perceber na história dos países mais modernos”29.

Certamente o sindicato não é o partido político, mas nem porisso pode deixar de ter uma ação política, mormente em paísescomo o Brasil, onde o operariado ainda não dispõe de um númeroconsiderável de direitos elementares.

28  “A percepção da existência e dos efeitos da meia-cidadania dos trabalhadores não tem sidoalcançada sem dificuldades, em especial por parte daqueles que são exatamente os maioresinteressados na questão: a esquerda e o movimento operário. A celeuma à volta da estrutura sindical,que a acompanha desde o dia de sua criação até hoje, tem servido para jus tificar num momentoa crítica mais feroz e, no momento seguinte, a adesão. Os efeitos do corporativismo sindical noplano da representação política dos trabalhadores passam ao longo das preocupações políticas

Aliás, o tratamento que, em nosso país, é dado às grevese aos grevistas indica claramente que muitos desses direitosessenciais ainda estão longe de ser aceitos. Não é apenas o

aparelho de Estado que trata os grevistas como reais criminosos.A própria imprensa, frequentemente, colabora na identificaçãod i t i t f

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dos movimentos grevistas como se fossem uma ameaça aoregime.

Cidadania urbana, cidadania ruralA cidadania que falta não é apenas urbana, mas também e

sobretudo a cidadania rural, para a qual contribuem conjunta-mente o mercado e o Estado. O homem do campo brasileiro, emsua grande maioria, está desarmado diante de uma economia

cada vez mais modernizada, concentrada e desalmada,incapaz de se premunir contra as vacilações da natureza, dese armar para acom panhar os progressos técnicos e de sedefender contra as oscilações dos preços externos e internose a ganância dos intermediários. Esse homem do campo é

menos titular de direitos que a maioria dos homens da cidade, já que os serviços públicos essenciais lhe são negados sob adesculpa da carência de recursos para lhe fazer chegar saúde eeducação, água e eletricidade, para não falar de tantos outrosserviços essenciais.

Não faltam, porém, os esforços do aparelho de Estado paralimitar, ainda mais, a cidadania rural. Esses esforços, realizadosdesde 1964 de forma racional, têm, aliás, sido eficazes30. Aindaagora, no acertado dizer de Anete Ivo (1986, p. 16), “o governopropõe uma ‘reforma agrária de conciliação’ o que equivale a

 trabalhador, através da administração do consenso, integrando-os nos limites da própria dominação”31.

Enquanto isso, os trabalhadores rurais com carteira assinada

em 1983 eram apenas 10,7% do total, enquanto em outras ativi-dades esse percentual era bem mais alto. Os índices imediatamente

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superiores, de 33,3% e 34,4%, eram registrados pela indústria deconstrução e pela prestação de serviços, alcançando a mais alta taxa na indústria de transformação (84,2%) e nos transportes e

comunicação social (84,1 %). (Anuário Estatístico do Brasil, IBGE,1984, citado por Ladislau Dowbor, 1986, p. 32.)

Estamos bem longe da situação descrita por H. Pirenne (1971,p. 160) para retratar o momento vivido na Europa pelo homem docampo, na transição para o capitalismo: “( ... ) aparece um novo tipo de camponês bem diferente do antigo. Este se caracterizavapela servidão; o novo é dotado de liberdade. Essa liberdade,resul tado da transformação econômica radical que as cidades transmi tiram à organização do campo, é copiada da liberdadereinante no meio urbano”.

Tal situação nada tem a ver com a atual. Nos anos 50 algunsescritores (que, aliás, fizeram escola) viam o campo chegando àcidade com os imigrantes rurais, a ponto de falarem em rurbani-zação, denominação rebarbativa que felizmente não pegou32.

31  “O poder estatal a partir de 1964” (...) “para viabilizar a transição da formação da ordem burguesano campo, prioriza a ação coercitiva, que se expressa pela violência do Estado, visando a aniquilaras condições de organização dos trabalhadores que ameaçam a ordem burguesa, e, por esta via, aexercer o controle sobre a força de trabalho. (Anete Ivo, 1986, p. 3)

(...) “destruindo as organizações autônomas do campesinato”, (...) destruindo e perse guindo

Hoje, com a difusão dos valores distorcidos da modernidade,valores que são frequentemente dados como se fossem valoresurbanos, a teia de relações outrora instalada nas cidades pratica-

mente se estende a toda a parte, com a industrialização daagricul tura e a modernização do campo. Os constrangimentosque se opõem a uma plena realização do indivíduo e da vida

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que se opõem a uma plena realização do indivíduo e da vidasocial estão em toda parte.

Como resposta na busca dos direitos perdidos, a procura do

novo cidadão deve se dar em toda parte e não só na cidade.A lista dos agravos à soberania do indivíduo, claros ou enco-

bertos, não para aqui. Nem temos espaço para completá-la. Masa longevidade e repetição dessas práticas, e a constância ousutileza das formas encontradas para fazê-las aceitar, trabalham

como anestesiantes, acabam por conduzir o indivíduo a sehabituar, em nome da segurança individual ou da família, dapromoção social ou do status .

Comparações internacionais

Para que servem as comparações internacionais? Sabemosdo seu valor apenas relativo e, todavia, elas revelam um interesseilus trativo e ajudam a compreender os limites à satisfação dasnecessidades essenciais nos diversos países, e podem ser umponto de par tida para a análise das situações. Segundo os

dados do Relatório sobre o Desenvolvimento no Mundo, do BancoMundial, em 1986 (esse foi o primeiro ano em que a publicaçãoapareceu em português), havia no Brasil, em 1981, um médico, emmédia, para cada grupo de 1.200 habitantes, cifra comparável àda Jordânia (1.170) e de Hong Kong (l.260). Era, assim, um índice

e República Dominicana, inferior às do México (66), das duasCoreias (68), Malásia e Venezuela (69), Chile (70), Panamá (71) ebem distanciada, portanto, do índice de 77 anos encontrado na

Espanha, Itália, Suécia, Noruega, Suíça, Holanda, França e Japão.Quanto à mortalidade, em 1984, o índice brasileiro de 8 por

é â

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1.000 é semelhante ao das Filipinas e da Jordânia. Em 1965, oíndice brasileiro era de 11 por 1.000, semelhante aos das Coreiase do Chile (que em 1984 compareciam com o índice 6, mais baixo

que o brasileiro) e aos do Paraguai e do México (índice 7 em1984, também menor que o nosso). A Malásia tinha uma taxa demortalidade de 12 por 1.000 em 1965 e de 6 por 1.000 em 1984, e aJordânia vê baixar o seu índice de 18 para 8, nesse mesmo período.

Quanto à mortalidade infantil, em 1984, o índice brasileiro

de 68 é alto, se o comparamos mesmo com o de outros paísessubdesenvolvidos: Arábia Saudita (61), México (51), Filipinas(49), Paraguai (44), Malásia (28), as duas Coreias (28) e Chile(22). O mesmo se dá com a mortalidade das crianças entre 1 e 4anos: Brasil (6), Turquia e Arábia Saudita (4), México e Jordânia

(3), Paraguai, Malásia e as duas Coreias (2).O acesso à educação também encontra o Brasil em posição

de debilidade em 1983. Somente 42% das pessoas dentro dasrespec tivas faixas de idade frequentavam escolas secundárias,cifra ultrapassada por numerosos países, por exemplo: Nicarágua(43), Costa Rica (44), Colômbia (49), Sri Lanka (56), Egito (58),Argentina (60), Peru (61), Filipinas (63), para não falar dos 85 daSuécia e dos 90 da França.

No ensino superior, em 1983, o percentual dos brasileiros de

Do cidadão imperfeito ao consumidormais-que-perfeito

A grande perversão do nosso tempo, muito além daquelasque são comumente apontadas como vícios está no papel que

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que são comumente apontadas como vícios, está no papel queo consumo veio representar na vida coletiva e na formaçãodo caráter dos indivíduos. Age de tal modo que Marx teria de

mudar a sua célebre frase, segundo a qual as religiões deviamser tidas como o ópio dos povos. Para o grande pensador alemão,a necessidade de uma ideologia global para o capitalismo teriasido coberta pelo conjunto de credos oferecidos à civilizaçãoocidental pelas respectivas religiões.

Desassistida por esse formidável arsenal posto à disposiçãoda escola e da família, a tarefa de conquista exercida pelocapital teria sido mais lenta ou menos eficaz. De um ponto devista da análise histórica e do extremo oposto ao marxismo,é Weber, o grande mestre da sociologia burguesa, quem

procurou mostrar as relações entre a ética do protestantismoe do desenvolvimento do capitalismo, ali justamente ondecresceu a mais pujante nação capitalista de todos os tempos, osEstados Unidos. Não faltou, aliás, quem, no Brasil, comparandoa evolução dessas duas nações continentais, le vantasse a

questão da primazia entre as vertentes cristãs. O Brasil teriasido mais poderosamente e mais prematuramente desenvol-vido se, como os Estados Unidos, houvesse historicamentesido pro testante e não católico... É certo que ao argumentocomumente se associam outros, como a explicação dos

O ópio: da religião ao consumo

O papel que as religiões têm jogado como estímulo ou freioaos valores desta ou daquela civilização é, hoje, dado comocerto. Todas travaram um combate singular, porque alicerçadona fé, para plantar nos espíritos, com as sementes da crença,

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um código de convivência social e, ao mesmo tempo, uma moralparticular, a cuja obediência todos deveriam se inclinar, emnome dos homens e de Deus.

Tratava-se de uma conquista dos espíritos por meios espiri- tuais, daí uma certa possibilidade de escolha ou, ao menos,de gra dações no fervor com que as pessoas se associavam, eassociam, às diversas religiões ou seitas.

Já o consumo instala sua fé por meio de objetos, aquelesque em nosso cotidiano nos cercam na rua, no lugar de trabalho,no lar e na escola, quer pela sua presença imediata, quer pelapromessa ou esperança de obtê-los. Numa sociedade tornadacompetitiva pelos valores que erigiu como dogmas, o consumo é

verdadeiro ópio, cujos templos modernos são os shopping centerse os supermercados, aliás construídos à feição das catedrais. Opoder do con sumo é contagiante, e sua capacidade de alienaçãoé tão forte que a sua exclusão atribui às pessoas a condição dealienados. Daí a sua força e o seu papel perversamente motor nasociedade atual.

A expressão “sociedade burocrática de consumo dirigido”,encontrada em Lefebvre (1975, pp. 207-208), aparece com denomi-nação semelhante, “sociedade consumista manipulada”, em A.Heller (1972, p. 70) e outros autores, e é simplesmente chamada

com a qual se popularizou. Mas a frase “consumo conspícuo”foi cunhada por Veblen, essa “frase imortal”, segundo Boulding,em seu livro The Image. Não se trata, porém, de uma simples

sociedade de consumo, mas de uma “sociedade de consumo queproduz desperdícios”, conforme I. Mezsaros (1971, p. 53).

A l ifi ã d h d di i i ã

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A glorificação do consumo se acompanha da diminuição gra-dativa de outras sensibilidades, como a noção de individualidadeque, aliás, constitui um dos alicerces da cidadania. Enquanto cons-

 trói e alimenta um individualismo feroz e sem fronteiras, o consumocontribui ao aniquilamento da personalidade, sem a qual o homemnão se reconhece como distinto, a partir da igualdade entre todos.

A moda

A necessidade de mudar nem sempre aparece como aredescoberta da personalidade forte, mas como obediência aum novo preconceito criado pelo mercado para buscar o lugarde um preconceito envelhecido e desacreditado. A necessidadede mudar aparece aqui como uma outra forma de compromisso,conforme nos lembra A. Heller (1974, p. 90).

Não é mudança para atingir o futuro, mas para permanecerno passado. A moda é um desses artifícios com o qual as coisasficam as mesmas, embora aparentando uma transformação. A

moda é manivela do consumo, pela criação de novos objetos quese impõem ao indivíduo34.

34  “Um dos caracteres mais fortes do fenômeno da moda é sua dominação. Não somos livres paranos vestir como queremos Esse constrangimento que o meio social impõe sobre o indivíduo sem

Edmond Goblot (1984, pp. 46-47) já observara, desde o iníciodo século: “O ridículo é mais difícil a afrontar do que o desprezo;a moda é mais exigente que a honra; a publicidade de suas

exigências não reduz a necessidade de sofrê-las.”Um segundo caráter da moda é sua uniformidade: cada

qual deve tornar se semelhante aos outros É preciso “fazer

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qual deve tornar-se semelhante aos outros. É preciso fazercomo todo mundo”; não devemos “nos fazer notar”. Poisfazer-se notar, não fazer como todo mundo, é se excluir do

meio social ao qual se pertence. Ser ‘um original’ é ser umapessoa isolada. O que a sociedade, em geral, e cada uma dassociedades restritas que a com põem perdoam menos é todoato pelo qual um dos seus membros dela se separa”. (EdmondGoblot, 1984, pp. 46-47)

A alienação

Em um ensaio crítico sobre Freud (“Freedom and Freud’sTheory of Instincts”), inserido no volume  Five Lectures (1970,pp. 13-14), Marcuse se refere à reificação e automatização

do ego, onde a parte consciente deste livra uma batalha emdois campos, ou seja, contra o  id, o inconsciente, e contra o superego, o mundo exterior. Se o ego tem “um papel de comandonessa luta”,(...) “suas reações ao mundo exterior e aos desejosinstintivos que emergem do  id  tornam-se crescentemente

‘automáticas’ e em consequência ‘o processo consciente deconfrontação’ cada vez mais cede lugar” a reações imediatistas,quase físicas, nas quais é menor o papel da consciência, dopensamento e dos próprios sentimentos35.

O sistema de produção para o mercado cria fenômenos histó-ricos condicionados pelos seus próprios interesses específicos.Um desses é o sistema de consumo correspondente, gerador

do que Lukács (citado por F. Riú, 1968, p. 27) considera comodireitos racionais, mas despersonalizados. Essa captura dohomem na armadilha constituída pelos bens de mercado e pelos

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serviços de mercado, na expressão de H. Braverman (1974, p.281), esse aprisionamento do indivíduo pelas coisas que elecria é que conduz à alienação, um “processo de fragmentaçãodo conhecimento e, conse quentemente, uma distorção darealidade humana” (Navarro de Britto, 1977, pA44). Alienado,o homem subutiliza suas energias intelectuais 36. (M. Salvati eB. Becalli, 1972)

É de B. Ollman (1971) a observação - feita, aliás, por outrosautores - pela qual a palavra alienação vem sendo usada segundoas mais diversas acepções. Conforme L. A. Navarro de Britto(1977) escreveu, o próprio pai-fundador da utilização modernado vocábulo, Marx a teria usado em diversos contextos. Navarrode Britto (1977, p. 344) conceitua a alienação como “o processode fragmen tação do conhecimento e, consequentemente,distorção da realidade humana”, enquanto Agnes Heller (1982,p. 55) define a alienação como uma “cisão entre a essência dohomem e a sua exis tência” (...) “resultado do desenvolvimentodas potencialidades do homem em detrimento de sua essência”.

Consequência da contra posição do homem, de um lado, e daeconomia, da política, da técnica, da cultura etc., de outro

36  A alienação é a alteridade imposta ao homem existente concreto, quando ele é privado daconsciência de sua decisão autônoma. Ele é reificado - como um cadáver ou como um escravo -,

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a fabricação de novas necessidades37  agravava a vocação aoconsumo, e esta só é parcialmente saciada para alguns, enquantopara os po bres não contemplados e para os novos pobres quese criam pelo mesmo processo econômico a revolução dasexpectativas crescentes renova a alimentação das esperanças:é a esperança dos inconscientes de sua condenação à pobreza.C i ã d bj t f õ à

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Como a criação de novos objetos oferece novas opções àsclasses médias, estas novamente aparecem como um exemploa seguir, mas na verdade um exemplo impossível. É dessaforma que o consumo prossegue o seu trabalho ideológico, umamitologia entranhada nas coisas, um ópio social mais eficazque as religiões o foram no passado, já que se alimenta daspráxis individuais e coletivas experimentadas no próprio pro-cesso de vida: o trabalho, a casa, a educação, o lazer.

O efeito-demonstração evolui da incitação da propagandapara o exemplo do vizinho38. O vizinho, próximo ou distante, é oque aparece no jornal e na televisão como vitorioso39. Vitorioso deque batalha? Trata-se de uma vitória apresentada como se fosseo prêmio a um esforço. É uma distorção da realidade, fundadanuma ideologia malsã do trabalho - já que a vida termina por

37  Já dizia Montesquieu ser difícil “que um país não possua coisas supérfluas, mas é da naturezado comércio tornar úteis as coisas supérfluas e necessárias as coisas úteis”. Que dizer do presente,quando a propaganda e o crédito propiciam ao comércio essa explosão de consumo a quepresenciamos quase inertes, diante da criação cotidiana de novas e artificiais necessidades?

Para P. Albou (1976, p.101), as “necessidades-aspirações” (...) “progressivamente se transformamem ‘necessidades-obrigações’ sob a influência de três processos principais, que são cada dia maisinterligados: a urbanização, a industrialização, a informatização”. Quanto ao crédito, J. Baudrillard(1970, p. 115) o enxerga como “um processo disciplinar de extorsão da poupança e de regulação dademanda”.38 “O valor estratégico, ao mesmo tempo que a astúcia da publicidade, é precisamente esse: o de

ensinar que a prosperidade material não depende do esforço puroe simples: de outra forma, a prosperidade seria generalizada. Ochamado ao consumo busca retardar a tomada de consciência,

mergulhando o consumidor numa atmosfera irreal, onde o futuroaparece como miragem. Se cada qual pudesse estar conscientede suas pos sibilidades reais a partir de sua situação concreta,

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o mundo da fan tasia cederia lugar ao conforto com um mundoincapaz de premiar os esforços individuais40.

Sobre o assunto ver, entre outros, Vance Packard (1953),Katona (1966), Paul Albou (1976) e P. L. Reynaud (1966). Para este,“psicologia econômica aplicada se preocupa essencialmentecom a ação concreta”. (p. 84)

O consumidor mais-que-perfeitoNo caso brasileiro, defrontamo-nos com o que se poderia de-

nominar de consumidor mais-que-perfeito. Em muitos países,as famílias são ajudadas em suas decisões de compra porassociações de defesa do consumidor: estas se encarregam, porum lado, de manter publicações periódicas que descrevem osdiversos produtos, segundo os seus fabricantes, e comparam,além dos preços, a qualidade dos produtos, seus usos específicos,sua durabilidade, bem como a disponibilidade das peças desubstituição. O comprador pode se dirigir a uma loja sabendoexatamente o que vai comprar e ajustando sua compra às·suasnecessidades; por outro lado, o consumidor é defendido, porsuas associações, contra as alterações de qualidade e outrasmil artimanhas engendradas pelos fabricantes para empurrar

d t d f it d á lid d li t l

nem sempre alerta. Sem dúvida, esses aparelhos de defesa aoconsumidor não atacam o consumo: essa não é a sua finalidade.São, desse modo, e, em última análise, indiferentes quanto à estru-

 tura do capitalismo, e até mesmo destinados a ajudá-lo, compa-rando-se, sob certos aspectos, ao chamado capitalismo popular,pelo qual haveria abertura do capital das empresas, para que os

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operários e a gente do povo possam adquirir suas ações, dando-lhes a impressão de participação lucrativa no sistema, quando,

na verdade, o grosso do resultado vai parar nas mãos dos já ricos.O fato, porém, é que as campanhas de tipo Ralph Nader de algummodo obrigam o capitalismo a aperfeiçoar o seu funcionamento.A cara hedionda do sistema torna-se um pouco menos feia.

Mas no Brasil não há nada parecido, e a suprema irrisão

é que são os próprios comerciantes que, em certas cidades,ousam simular movimentos de defesa ao consumidor. Sãopura fachada, na medida em que não existe fixação adequadade preços, controle de qualidade, garantia de continuidadeno fornecimento das peças etc. Vivemos dominados pelo

consumismo selvagem, indefesos quanto às manipulações deindústrias e de intermediários, inermes diante das práticasde “obsolescência original” que enganam fraudulentamente ocomprador com a apresentação de produtos deliberada mentedestinados a durar muito pouco. Simplesmente não temos,

diante de tais abusos, maneira nenhuma de coibi-los. E até nossentimos ridículos quando reclamados, na medida em que, emsua maioria, as reclamações não têm êxito. Talvez por isso o telefone da Sunab toca tão pouco, as delegacias de defesa daeconomia estão, praticamente, desertas de reclamantes e os

O consumo, sem dúvida, tem sua própria força ideológica ematerial. Às vezes, porém, contra ele, pode-se erguer a força doconsumidor. Mas, ainda aqui, é necessário que ele seja um verda-

deiro cidadão para que o exercício de sua individualidade possa ter eficácia. Onde o indivíduo é também cidadão, pode desafiaros mandamentos do mercado, tornando-se um consumidori f i i b i i d f

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imperfeito, porque insubmisso a certas regras impostas de foradele mesmo. Onde não há o cidadão, há o consumidor mais-que-

perfeito. É o nosso caso.

O consumidor não é o cidadão

O consumidor não é o cidadão. Nem o consumidor de bensmateriais, ilusões tornadas realidades como símbolos: a casa

própria, o automóvel, os objetos, as coisas que dão status . Nemo consumidor de bens imateriais ou culturais, regalias de umconsumo elitizado como o turismo e as viagens, os clubes eas diversões pagas; ou de bens conquistados para participarainda mais do consumo, como a educação profissional, pseudo-

educação que não conduz ao entendimento do mundo.O eleitor também não é forçosamente o cidadão, pois o eleitor

pode existir sem que o indivíduo realize inteiramente suas poten-cialidades como participante ativo e dinâmico de uma comunidade.O papel desse eleitor não cidadão se esgota no momento do voto;

sua dimensão é singular, como o é a do consumidor, esse “imbecilfeliz” de que fala H. Laborit (1986, p. 201).

O cidadão é multidimensional. Cada dimensão se articulacom as demais na procura de um sentido para a vida. Isso é o

 reproduzida  não ape nas na mente, na consciência do homem,mas também nos seus  sentidos   (...) “até que a familiaridadeopressiva com o mundo obje tal seja quebrada”.

O consumidor (e mesmo o eleitor não cidadão) alimenta-sede parcialidades, contenta-se com respostas setoriais, alcançasatisfações limitadas, não tem direito ao debate sobre os

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çobjetivos de suas ações, públicas ou privadas.

A educação corrente e formal, simplificadora dasrealidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios,subserviente às no ções de sucesso, ensina um humanismosem coragem, mais destinado a ser um corpo de doutrinaindependente do mundo real que nos cerca, condenado a serum humanismo silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma

visão sintética das coisas que existem, quando o humanismoverdadeiro tem de ser constantemente reno vado, para nãoser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivasda sociedade, necessárias ao trabalho permanente de re-composição do homem livre, para que ele se ponha à altura do

seu tempo histórico.

O espaço sem cidadãos

Deixado ao quase exclusivo jogo do mercado, o espaço vividoconsagra desigualdades e injustiças e termina por ser em sua

desprovidas de serviços essenciais à vida social e à vidaindividual. O mesmo, aliás, se verifica quando observamos asplantas das cidades em cujas periferias, apesar de uma certa

densidade demográfica, tais serviços estão igualmente ausentes.É como se as pessoas nem lá esti vessem.

O exemplo de outros

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O exemplo de outros

Onde os programas para atenuar tais fragilidades e

reverter a situação? No caso das cidades, bastaria um projetoconsequente para dotar a população desses “fixos” sociais. Eno interior, a necessidade é de criar, “artificialmente”, núcleosdestinados a servir às populações em derredor, ou fortaleceraglomerações já exis tentes, com o mesmo propósito. O fato é

que nesse sentido muito pouco tem sido feito. É verdade quenovas cidades são fundadas em zonas pioneiras, algumas deiniciativa do Estado e outras de inicia tiva privada. Mas sãocidades criadas para servir à economia e não à sociedade.Um país pobre como a Tanzânia decidiu realizar uma extensa

operação de transferência de populações, localizando uma parteconsiderável dos habitantes em lugares escolhidos para servircomo centro, de modo a poder distribuir recursos sociais atéentão inexistentes ou precários. Isso mostra que tal operaçãoé possível, quando existe vontade política. No caso brasileiro,

enquanto uma atitude semelhante não é tomada, teremos deconviver com um espaço sem cidadãos.

Modernização capitalista, terra e migrações

ponto de vista humano, a ausência de direito a um entornopermanente. Cada vez mais no Brasil as pessoas mudam delugar ao longo da existência; o número dos que vivem fora

do lugar onde nasceram aumenta de ano para ano, de umrecenseamento a outro. Condenar os indivíduos à imobilidadeseria igualmente injusto. Mas as migrações brasileiras,vistas pelo ângulo da sua causa são verdadeiras migrações

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vistas pelo ângulo da sua causa, são verdadeiras migraçõesforçadas, provocadas pelo fato de que o jogo do mercado não

encontra qualquer contrapeso nos direitos dos cidadãos. Sãofrequentemente também migrações ligadas ao consumo e àinacessibilidade a bens e serviços essenciais.

“Boias-frias” fixos em cidades e vilas próximas às zonas pro-dutoras, e “boias-frias” que vêm de longe, quando as safras re-

clamam mão-de-obra suplementar, são as vítimas mais evidentesdesse processo.

Que é essa reforma agrária da qual tanto se fala, mas cujosresultados praticamente não se veem? A sua necessidade éreconhecida e mesmo instituições internacionais que defendem

o capitalismo em qualquer circunstância recomendam-na, como, por exemplo, o Banco Mundial. Todavia, entre oscapitalistas brasileiros, uma parcela importante nem enxergao lado econômico da questão, pois a reforma agrária iria ajudara própria modernização do capi talismo. Aferrados uns ao que

consideram um direito, a propriedade de grandes latifúndiosimprodutivos, outros por mal-entendida solidariedade com ocredo capitalista, opõem-se a qualquer movimento no sentidode repartir as terras excedentes e entregá-las aos milhões decamponeses sem-terra que não pedem outra coisa senão o

O direito de morar

E o direito de morar? Confundido em boa parte da literaturaespecializada com o direito a ser proprietário de uma casa, é objetode um discurso ideológico cheio, às vezes, de boas intençõese mais frequentemente destinado a confundir os espíritos,afastando cada vez para mais longe uma proposta correta que

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p g p p qremedeie a questão. Por enquanto, o que mais se conseguiu foiconsagrar o predomínio de uma visão imobiliária da cidade, queimpede de enxergá-la como uma totalidade. O mito do direito àpropriedade da casa levou, num primeiro e longo momento, a quese construíssem casas e apartamentos para as classes médias.Mesmo assim, os preços geralmente eram (e são) exorbitantes,ainda quando os imóveis são construídos com o dinheiro público,

dinheiro acumulado com a contribuição obrigatória de todosos trabalhadores. Quem já pensou em coibir ou mesmo proibiras propagandas enganadoras que aparecem cada semana nos jornais para atiçar o interesse dos pre tendentes e, não raro, parainduzi-los em erro? Ora, diz este ou aquele tecnocrata, o custo

dessa publicidade “não ultrapassa dois a três por cento do custoda obra”, como se isso não fosse exorbi tante. E por que então nãoestabelecer um tabelamento, rígido e não dócil, para a comprae o aluguel de todos os imóveis cons truídos com o dinheiro dopovo? Nada mais natural. Os mesmos tecnocratas, presos nas

gavetas das imobiliárias ou enredados em seus raciocíniosineptos, prosseguem na busca de uma pretensa racionalidadedos negócios, quando no caso trata-se de outra coisa.

O que é bom para os pobres

para os pobres por definição oficial, aconselhada e defendidapor pseudointelec tuais, passou a autorizar a construção dehabitações tão pequenas que conduzem a toda espécie de

confinamentos e promiscuidades.Na cabeça tortuosa de tais técnicos, as pessoas têm necessi-

dades essenciais em função da classe a que pertencem. Nãof f

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foram esses mesmos que traçaram ou desenharam os famososquartos de empregada lado a lado com os quartos muito mais

amplos dos pa trões? Tais fatos, relativos à “normalidade” damoradia dos po bres, são praticamente aceitos pela sociedade,isto é, por uma classe média não culta.

Isso justifica pensar que o raciocínio economicista e imoral tomou o lugar da cultura, que levaria a preocupações mais nobres.

Os pobres e a cidade corporativa

A construção, dessa forma, de casas para os mais pobresajuda, de fato, a viabilizar a cidade corporativa.

O dinheiro que era economizado pelo BNH (e poderá tambémsê-lo pelo seu sucessor) na construção de casas populares é utili-zado na construção dos “extensores” urbanos - a expressão é doarquiteto Manuel da Silva Lemos (1986) - eles mesmos um pode-roso instrumento de apoio à especulação imobiliária.

Por meio de extensores e de programas de habitaçãopopular, a cidade aumenta desmesuradamente a sua superfície total e este aumento de área encoraja a especulação, o processorecomeçando e se repetindo em crescendo.

está sendo apresentada como salvadora, isto é, a taxação doslotes vazios como forma de obrigar a construção.

Como morar na periferia é, na maioria das cidades

brasileiras, o destino dos pobres, eles estão condenados anão dispor de serviços sociais ou a utilizá-los precariamente,ainda que pagando por eles preços extorsivos. É o mesmo que

dá C i R i d d

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se dá com os transportes. Caros e ruins. Ruins e demorados.Como conciliar o direito à vida e as viagens cotidianas entre a

casa e o trabalho que tomam horas e horas? A mobilidade daspessoas é, afinal, um direito ou um prêmio, uma prerrogativapermanente ou uma  benesse ocasional?  Como, há linhasde ônibus rentáveis e outras não, a própria existência dos transportes coletivos depende de arranjos nem sempre bem-

sucedidos e nem sempre claros entre o poder público e asconcessionárias. Aliás, com o estímulo aos meios de transporteindividuais, as políticas públicas praticamente determinama instalação de um sistema que impede o florescimento dos transportes coletivos. Enquanto isso, o planejamento urbano

convencional trabalha a partir das mesmas falsas premissase fica dando voltas em torno de si mesmo, sem encontrar umasaída que seja de interesse da população.

O direito ao entorno

E o direito ao entorno? Ele está nos livros e nos discursosoficiais, mas ainda está muito longe de uma implementação.Que dizer, por exemplo, das mudanças brutais que se operamna paisagem e no meio ambiente, sem a menor consideração

localizada, enraivecida e empobrecida, em lugar de ser ocombate por uma ecologia abrangente que retome os problemasa partir de suas próprias raízes. Estas se confundem com o

modelo produtivo adotado e que, por definição, é desrespeitadordos valores desde os dons da natureza até a vida dos homens.

E o direito aos espaços públicos, típicos da vida urbana tradi-cional? Hoje os espaços públicos (praias montanhas calçadas

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cional? Hoje, os espaços públicos (praias, montanhas, calçadasetc) foram impunemente privatizados.

Temos de comprar o ar puro, os bosques, os planos de água,enquanto se criam espaços privados publicizados, como os play-grounds ou, ainda mais sintomático, os condomínios fechadosque a gente rica justifica como necessários à sua proteção. Olazer na cidade se torna igualmente o lazer pago, inserindo a

população no mundo do consumo. Quem não pode pagar peloestádio, pela piscina, pela montanha e o ar puro, pela água,fica excluído do gozo desses bens, que deveriam ser públicos,porque essenciais.

E o direito à privacidade? Hoje os prédios se debruçam unssobre os outros, para que os incorporadores tenham um lucromaior. Quem já pensou em propor que lugares como Copacabanano Rio, Itaim-Bibi em São Paulo, ou Pituba em Salvador tenhamuma parte dos seu edifícios arrasados? Mais uma vez o racionalse vestiria na pele do irracional, tanto o nosso espírito já sehabituou à força da propaganda e do hábito, à feiúra e ao abuso.

E a poluição, que parece já se ter incorporado à definiçãodos nossos espaços urbanos? Os próprios organismos públicosdestinados a proteger a população acabam por desnorteá-la com

O resultado de todos esses agravos é um espaço empobrecidoe que também se empobrece: material, social, política, culturale moralmente. Diante de tantos abusos, o cidadão se tornaimpotente, a começar pelas distorções da representação política.A quem pode um candidato a cidadão recorrer para pedir quefaça valer o seu direito ao entorno, propondo um novo corpo deleis, decretos e regulamentos, ou velando pelo cumprimento da

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legislação já exis tente mas desobedecida?

A própria existência vivida mostra a cada qual que o espaçoem que vivemos é, na realidade, um espaço sem cidadãos.

A reconstrução da individualidadeO destino do homem é a liberdade. Sartre escreveu que “nas-

cemos condenados a ser livres”41. (1975, pp. 111 e 515)

Na história da humanidade e de cada indivíduo podemos,às vezes, pensar que os agravos à integridade do homem sãoum fato normal, intrínseco à natureza das coisas, quando são,apenas, momentos de escuridão. Em nosso mundo atual, quandoos grandes progressos científicos e técnicos não foram aindaigualados pelo conhecimento intrínseco do homem, temos razão

para ter medo, pois o processo de trabalho, isto é, da produção,é também o da objetificação e da coisificação.

Racionalidade capitalista e alienação original

cálculo racional. Racionalização e reificação são cada vez maisinterdependentes. I. Meszaros (1971, p. 55), em seu livro sobrealienação, chama a atenção para o fato de que, em nossos dias,

“a totalidade da força de trabalho está sendo envolvida em umaconfrontação cada vez mais intensa com o capital monopolista, oque acarreta consequências profundas para o desenvolvimentoda consciência social”. Trata-se da submissão manipulada aos

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pgrandes mecanismos sociais, objeto de análise de Agnes Heller

em O Quotidiano e a História. Aliás, já há trinta anos C. WrightMills (1959, p. 169) nos lembrava de que “os procedimentos sociaisracionalmente organizados não são necessariamente um meiopara aumentar a liber dade, mas um meio para a expropriaçãoda verdadeira oportunidade para a razão da capacidade de agir

como um homem livre”.Alcançamos a era em que a grande cópia de bens materiais

produzidos não significa abundância, mas contribui para a cria-ção da escassez, a época em que as possibilidades de liberação, tanto esperada e agora presente, ainda se traduzem em uma

alie nação original42.Segundo A. C. Medawar (1984), “(...) os homens não racio-

cinam sobre suas crenças, e até quando argumentam em defesado que eles são, não pensam, mas repetem, em versões revistase corrigidas, as baladas que ouviram na infância” (...) “defendemposições onde foram colocados por um capricho do destino eseguem seus caminhos com a cegueira de um satélite em órbita”.Neste mundo, onde, para nascer, as coisas já são desenhadas

como mercadorias e planejadas com símbolos, a alienação nãoé apenas resul tante, mas já nasce também quando o homemnasce43.

O próprio quadro de vida, a natureza e o entorno humano,carregado de significações sobrepostas, cheio de artifícios, é uma tela de enganos. A natureza artificializada, instrumentalizada aoextremo recusa-se a se deixar entender diretamente Os homens

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extremo, recusa se a se deixar entender diretamente. Os homensnão veem o que enxergam. Essa cegueira universal é mais que

um mistério, condena a existência a ser vivida, a despeito de cadaum de nós. Tornamo-nos joguetes no curso da vida coletiva44.

A força da pseudoconcreção, de que fala Kosik (1967), semul tiplica. O poder da falsa consciência se fortalece. O homem,oleiro do seu barro, é moldado por ele e, assim, se amesquinha

e dissolve.

A busca da desalienação

Mas será essa uma condenação final e irrecorrível?

Os objetos, força inanimada, não são outra coisa que o veículodas relações entre os homens45. Estas, que contêm o dinamismo

43  “Liberdade, o que significa? Significa que quando agimos voluntariamente nós escolhemos esabemos que estamos escolhendo, e o que estamos escolhendo; isso significa que somos nós  quemescolhemos, e fazemos isto sendo a espécie de homem que somos (...) Isso não significa que nós

 tenhamos liberdade para escolher. A liberdade reside na escolha e não em uma qualquer capacidadepor detrás da escolha para escolher diferentemente.” (S. Alexandre, 1963, p. 17)44 “Na sociedade moderna os tipos de ação racional relacionados com os fins ‘devoram completamenteos tipos de ação racional orientados ao valor. Nem a atividade produtiva nem a estrutura econômicaestão subordinadas às preferências de valor ( )” (Agnes Heller 1982 p 20)

da vida e a força da mudança, são humanas, sempre serão relaçõesessencialmente humanas. A alienação que testemunham eprovocam não pode ser eterna, nem mesmo duradoura, a menos

que os homens todos se houvessem petrificado, transformadosinapelavelmente em coisas, e isso para toda a eternidade46.

A alienação, como fábrica de enganos, se robustece e sealastra, num mundo em que os homens pouco se comunicam

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46  “A liberdade do projeto humano não é todavia uma liberdade concreta, porque as possibilidadesde escolha são restringidas pela adversidade das coisas, pelo fato de que as situações são concretase pela unilateralidade das outras liberdades. A ideologia da liberdade se transforma, assim, em umaempresa de liberação, no sentido da ampliação das possibilidades concretas de eleição.” (Victor diC ill 1968 13)

alastra, num mundo em que os homens pouco se comunicampela emotividade e se deixam mover como instrumentos. Mas

esse movimento dramático de desumanização não atinge a todos igualmente. Por isso, a convivialidade possível comove ossobreviventes do naufrágio, recupera a verdade da vida e reiniciaum movimento de redenção.

A história do homem se faz, em todos os tempos, da su-

cessão de momentos, mais ou menos longos, de obscuridade ecegueira, e de momentos de luminosidade, onde a recuperaçãoda consciência restaura o ser humano na dignidade de viver, que também é busca e escolha de caminhos, visão resplandescente dofu turo, e não apenas prisão no cotidiano vivido como preconceito,

isto é, num presente subalternizado pela lógica instrumental47.O ato de perceber ultrapassa os sentidos e ganha a razão.

É assim que se opera a metamorfose do sensorial, mudado emconhecimento. Este se alimenta da relação entre sujeito e objeto,relação em que este, permanecendo o que é e interagindo com

o sujeito, contribui para que, nessa interação, o sujeito evolua.É essa mesma evolução que permite revisitar o objeto, vendo-ode forma nova, despojando-o dos símbolos que escondem

a sua realidade profunda. É a vitória da individualidade, daindividualidade forte que ultrapassa a barreira das práxisrepetitivas e se instala em uma práxis  liberadora48.

A individualidade, um bem comum a toda a humanidade,

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, ,mas tantas vezes deixada em surdina no indivíduo, não é

um bem que pereça. Apenas adormece. Entra em colapso,desfalece ou se eclipsa, quando a sensibilidade é mutilada.Por isso sua ressurreição posterior não é um milagre. Está nopróprio plano do acontecer humano, não como o cotidiano daconduta, onde o êxito é a norma, mas como a sua inversão,

quando o essencial é a busca de valores. A individualidadenão se pode desenvolver quando o êxito é a norma essencialda vida.

O cotidiano será, um dia ou outro, a escola da desalienação.Mas, pelo fato de ser, como lembra Agnes Heller (1972, p. 17),

dominado pelo preconceito, “a unidade imediata do pensamentoe ação” que define a vida cotidiana “implica na inexistência dediferença entre ‘correto’ e ‘verdadeiro’ na cotidianidade; corretoé também ‘verdadeiro’, e por isso a atitude da vida cotidiana éabsolu tamente pragmática (p. 32).

Fábrica de preconceitos, essa natureza inferior que mutilaa consciência do homem e cria a submissão aos mecanismos demanipulação, o cotidiano é também o lugar da descoberta. Aí ohomem se recusa a reproduzir como certos os comportamentos

de ser conformismo. Os instintos segundos, inspirados pela suaexistência no mundo, que ele agora enxerga mais claramente, tomam o lugar dos instintos primeiros, ditados pelo imediatismo

e a fragmentação que provoca

49

.A alienação acaba por gerar o seu contraveneno, a desalie-nação. O homem alienado é como se lhe houvessem manietado,para roubar-lhe a ação, e imposto barreiras à visão, para cegá-

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p ç p p glo. Seus olhos são fechados para a essência das coisas. Mas

nenhum ser humano se contenta com a simples aparência50

.A busca da es sência é a sua contradição fundamental, ummovimento sem-fim que inclui o sujeito em um processodialético e o restitui a si mesmo. Aí a aparência dilui suafeição claro-escura, e nesse processo sofrido, porque atinge a

profundidade do ser, a essência do homem se revigora. Quandoa aparência se dissolve, é a essência que co meça a se imporà sensibilidade51. Essa mutação é reveladora porque permite

49  “Em importante e influente artigo escrito há cerca de dez anos, o filósofo Harry S. Frankfurtfocalizou precisamente esse fenômeno, fazendo uma distinção entre vontades, volições e desejosda  primeira ordem, que podem ser identificados nas ações e opções de uma pessoa no seu diaa dia, e desejos da  segunda ordem, ou desejos de desejos , que não coincidirão necessariamentecom os desejos da primeira ordem (só coincidirão na medida em que uma pessoa sempre desejar

 ter exatamente aqueles desejos que expressa através de suas ações). Essa ‘capacidade’ deautoavaliação reflexiva manifestada na formação dos desejos da segunda ordem é, de acordocom Frankfurt, uma característica peculiar dos humanos; assim, ele propõe, acredito de forma

convincente, definir a pessoa humana como”alguém que tem essa capacidade de formar desejos,vontades e volições da segunda ordem’’. (Albert O. Hirschman, 1983, pp. 75-76)50  “Não existe racionalidade em si, nem racionalidade absoluta. O racional de hoje pode ser oirracional de amanhã, o racional de uma sociedade pode ser o irracional de outra.” (M. Godelier,1967, p. 312)51  “(...) a liberdade humana está enraizada na sensibilidade humana; os sentidos não só ‘recebem’

abandonar o mundo do fenômeno e abordar o universo dassignificações. É assim que renasce o homem livre52.

Reverter a influência do mercadoO constrangimento do mercado sobre os indivíduos,induzindo-os a uma práxis alienante, não é, todavia,irreversível53. Ernst van der Haag (1976, p. 109) nos chama a

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g ( )atenção para aqueles autores, como, por exemplo, Friedrich

von Hayek, para quem “é irrelevante descrever como justa ouinjusta a maneira pela qual o mercado distribui as boas coisasdeste mundo entre certas pessoas. O mercado está certo.Para o seu funcionamento, a justiça é tão irrelevante para aeficiência econômica e para a ciência da economia, como o

é um computador para a ciência da meteorologia. Mas não éirrelevante para nossa atitude em relação a essas coisas. Opovo apenas tolerará um sistema social ou econômico se o per-cebe como justo”.

Como descobrir o que é justo ou injusto, em um mundo

onde a verdade é tão renitentemente sonegada que reconhecê-la depende do oportuno aproveitamento das contradições emque a própria práxis nos mergulha? É nesse sentido que sepode dizer, como G. Markus (1973, p. 63), que a alienação também pode ser desalienadora, quando o indivíduo tornado

passivo pelo modo de exis tência encontra as maneiras de se

52  “Conscientização é o método pelo qual qualquer grupo é ensinado a compreender sua condiçãoe (na unidade da teoria e da práxis ) a ser ativado politicamente em favor da transformação de suacondição. No seu contexto de esquerda, conscientização é a preparação cognitiva para a ação

l i á i ” (P t L B (1976 122J it d A H tt 1983 53)

 tornar o que é fundamentalmente, isto é, um ser ativo54. Essaredescoberta vem da oposição existencial entre o que cada qualpretende ser e o que ele é realmente. Para obtê-lo, segundo J.P. Sartre (1960, p. 202), “o homem deve lutar não apenas contrao meio social que o engendrou (...), mas também contra a suaprópria ação, na medida em que essa ação tornou-se outra”55.

A busca pelo indivíduo do futuro; a libertação dos grilhões

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que o amarram e o tornam obediente a uma realidade cruel,

somente se alcançam pela negatividade, tal como Bachelard,Sartre, Schopenhauer haviam exposto56. Dizer não é mostrar-se plenamente vivo e portador de uma existência ativa, érecuperar os po deres perdidos e levantar-se sobre os própriosescombros, reapren dendo a liberdade57. Esta, segundo V.

Ferkiss (1974, p. 208), “é a capacidade de tornar concretosos almejados futuros”. A busca da de salienação passa poresse caminho, que a história parece apontar. Para I. Meszaros(1971, pp. 26- 27), o processo histórico levou a que o poder decontrole social se transferisse do grupo para o capital, masas novas condições do capitalismo estariam devolvendo esse

55  “Um dos maiores problemas hoje é que não mais podemos honestamente assumir que aracionalidade aumentada promova o aumento da liberdade. A racionalidade é um fruto dasestruturas burocráticas e tecnológicas que cerca a nossa existência. Ser racional não é o mesmo queser razoável.” (Anne Buttimer, 1974, p. 30).“Por causa de uma organização econômica definida, isto é, sob a influência da sociedade, é que

estas necessidades essenciais se distinguem e, cada qual, apesar da extrema variedade dos seusobjetos e de suas formas, toma, para a consciência do indivíduo, o aspecto de unidade. (MauriceHalbwachs, 1912, p. 401)56“A liberdade essencial, a liberdade última e final que não pode ser arrancada de um homem, é aliberdade de dizer não, premissa básica da visão sartriana da liberdade humana. (...) Consciênciae liberdade nos são dadas conjuntamente” (William Barrett, 1962, p. 241). Lembra A. C. Zijderveld(1974 1) M S h l i h d d di ã Alb

controle ao corpo social como um todo, ainda que sob formasirracionais, graças, exatamente, à irracionalidade inerente aopróprio capital. Isto seria um dos resultados da crise profundaem que o mundo está vivendo: pobreza crescente em meio àabundância, apelo ao consumo e dificuldade para atender aesse apelo, ampliação do tempo livre para os bem empregadose imposições do tempo livre aos sem emprego. É a partirdessas contradições que se constrói um novo homem cujo

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dessas contradições que se constrói um novo homem, cujoperfil é oposto do desejado pelo capitalismo58.

O ser particular e o ser genérico

O confronto entre o “ser particular” e o “ser genérico”, defi-nidos por Agnes Heller em tantos dos seus livros59, difere do

conflito entre os próprios interesses e os da sociedade a que serefere K. Arrow (1976, p. 30)60.

58  “A quantidade crescente do tempo socialmente supérfluo” (ou ‘tempo disponível’), habitualmentechamado de lazer, faz com que seja cada vez mais absurdo e praticamente impossível manter umalarga porção da população vivendo em ignorância e apatia, divorciada do poder de sua própriainteligência.” (I. Meszaros, 1971, p. 25)59  “O indivíduo é um particular que ‘sintetiza em si mesmo’ a singularidade e a generalidadeuniversal da espécie.” (A. Heller, 1982, p.13)“O indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano-genético, quefunciona consciente e inconscientemente no homem. Mas o indivíduo é um ser singular que seencontra em relação com sua própria individualidade particular e com sua própria genericidadehumana; e, nele, tornam-se conscientes ambos os elementos. É comum a toda individualidade

a escolha  relativamente  livre (autônoma) dos elementos genéricos e particulares; mas, nessaformulação, deve-se sublinhar os termos ‘relativamente’.“Temos ainda de acrescentar que o grau de individualidade pode variar. O homem singular não épura e simplesmente indivíduo, no sentido a que se alude; nas condições de manipulação social e dealienação, ele se vai fragmentando cada vez mais ‘em seus papéis’. O desenvolvimento do indivíduoé, antes de mais nada - mas de nenhum modo exclusivamente -, função de sua liberdade fática oud ibilid d d lib d d ” (A H ll 1972 22)

Neste, último caso, pode haver compromisso dentro dasociedade atual, ainda que “em uma sociedade ideal não hajaconflito entre as aspirações pessoais de cada qual e nas própriasreações diante das aspirações coletivas (K. Arrow, 1976, pp. 10-11)”, e é por isso que, segundo este autor (p.11), ‘‘a maior parte denós se coloca em uma oposição intermediária, na qual admitimosas aspirações coletivas, esquecemo-las às vezes durante oslongos períodos em que nossas obrigações cotidianas nos in-

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longos períodos em que nossas obrigações cotidianas nos in-vadem, retomamo-las com força em outras ocasiões e, enfim, so-mos confrontados com a sua grandeza quando afirmamos nossaindividualidade em um contexto que talvez não nos convenhaperfeitamente”.

O confronto entre o homem ser particular e ser genérico

interior se desenvolve na consciência. “No caso dos grandese exemplares moralistas, dos estadistas (revolucionários) dosartistas e dos cientistas (...), não apenas sua paixão principal,mas também seu trabalho principal, sua atividade básica,promovem a elevação ao humano-genérico e a implicam emsi mesmos. Por isso, para tais pessoas, a homogeneização em“homem inteiramente” é elemento necessário de sua essência,da atividade básica de suas vidas (A. Heller, 1972, pp. 28-29). “A homogeneização em direção ao humano-genérico, acompleta suspensão do particular-individual, a transformaçãodo ‘homem-inteiramente’ é algo de excepcional na maioriados seres humanos”, diz A. Heller. Excepcional, mas nãoimpossível, cada vez que se atinge uma nova concepção demundo, uma nova ideologia, que conduza à vontade de uma transformação consciente. “Essa transformação contém,

e a consciência possível61. Esta se alarga a partir da duplicidadedo homem, unificada pelo que A. C. Zijderveld (1974) intitula de homo duplex, “um individuo único, com o seu próprio modo de

existência e, ao mesmo tempo, membro de uma espécie, um sersocial que realiza os papéis que a sociedade lhe impõe”62. Nessaótica, o homem ao mesmo tempo é homo internus  e homo externus  (A. C. Zijderveld, 1974, pp. 9-10), um ser dialético, capaz, todavia,de uma revolta que também é escolha consciente gerada pela

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de uma revolta que também é escolha consciente, gerada pelainsubmissão aos ditames de um senso comum manipulado.Assim nascem as personalidades fortes, os homens liberados, acoragem civil, o projeto.

O espaço revelador: alienação e desalienação

Na sociedade burguesa, conforme M. Bookchin (1974, p. 28)constata, “a comunidade é dividida em manadas competitivas e

é invadida por uma mediocridade espiritual de tal forma que aexis tência material do homem se torna escravizada, insegura eunilateral”.

61  “O homem é um ser inconcluso que avança entre a humanização e a desumanização.” (M. L.

Escaramilla, 1975, p. 151)“(...) devemos saber com clareza que estamos longe de urna consciência plena; e como nossaconsciência é sempre imperfeita, constantemente necessitamos da espontaneidade da ação. Oconceito de espontaneidade às vezes é dogmaticamente depreciado, como se a espontaneidadesimplesmente fosse um fazer sem finalidade, egoísta e caótico. Mas a espontaneidade é tambémo valor para seguir adiante, apesar da insuficiência da consciência. “(R. Havernann, 1967, p. 195)

A percepção do espaço é parcial, truncada e, ao mesmo tempo em que o espaço se mundializa, ele nos aparece como umespaço fragmentado, e tal como nos diz A. Frémont (1976, p. 193), temos diante de nós um espaço humanamente desvalorizado,reduzido a uma função. Pela ação sutil da família, da escola,dos  mass média, o espaço se forma, se aprende e se vive naalienação.” (A. Frémont, 1976, p. 194)

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Poder-se-ia dizer, como Kafka, que “estou separado de todas

as coisas por um espaço vazio e não alcanço mesmo os meus li-mites”?

Espaço e mercado

 No mundo de hoje, cada vez mais as pessoas se reúnem em

áreas mais reduzidas, como se o  habitat humano minguasse.Isso permite experimentar, através do espaço, o fato daescassez. A capacidade de utilizar o território não apenasdivide como separa os homens, ainda que eles apareçam comose estivessem juntos.

A unidade do prático-inerte, segundo A. Gorz, é unidade domúltiplo, unidade exterior da atividade de todos como outros ,em sua condição de outros . Por isso, segundo Sartre, cada qual termina por saber que figura como objeto no campo prático dooutro, que isso mesmo impede os movimentos do outro e os doiscampos de ação diferentes impedem que constituam um mesmoentorno. A materialidade constitui esse campo prático, portadorda escassez.

O espaço tem muito de parecido com o mercado Ambos

asseguram e enquadram diferenciações desigualizadoras, namedida em que são, ambos, criadores de raridade. E como “omercado é cego, para os fins intrínsecos das coisas”, o espaçoassim construído é, igualmente, um espaço cego para os finsintrínsecos dos homens. Daí a relação íntima e indissociávelentre a alienação moderna e o espaço.

Em que medida um espaço que nós mesmos construímos eque nos contém como coisas é o instrumento de agravação das

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que nos contém como coisas é o instrumento de agravação das

condições criadas pelo mercado? Em que medida a organizaçãode espaço é mais uma dessas organizações que conduzem aum processo de alienação? O espaço também contribui parao processo de socialização invertida a que agora assistimose é utilizado como instrumento de política cognitiva, através

da manipulação do significado, um  marketing   territorial que também é criador de anomia.

Espaço e alienação

Espaço é, na linguagem filosófica, sinônimo de objetificação,

coisificação, reificação... e o Lucien Goldmann de Lukács y Hei-degger: Hacia una Filosofía Nueva (p. 9) lembra que, para Bergsone GabeI, toda espacialização é consciência falsa. Em váriospontos de sua obra, Marx insiste no fato de que as relações entreos homens se dão como relação entre as coisas (ver, por exemplo,

F. Jakubowsky, 1971, p. 155). É a função específica dos objetivosartificiais qualificativamente diferentes das coisas naturais,segundo G. Markus (1973, p. 13). Da atividade alienada resultamobjetos alienados (B. Ollman, 1971, p. 205), esse prático-inerte

di d S “é Di b ” i i õ

ensinado, e vai pouco a pouco substi tuindo a sua ignorância doentorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário. O entornovivido é lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual.

Segundo V. Ferkiss (1974, p. 104), “não temos uma missãopredestinada a cumprir no universo, nenhum papel em um dramapré-escrito, mas somos livres para improvisar nosso própriopapel e, mesmo, para abandonar o palco, se assim decidimos”.

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Quanto maior o estranhamento e menores as possibilidades

de uma adaptação inconsciente, mais os sentidos são despertadospara a verdade que esconde os objetivos e as relações sociais.O capítulo final do livro de Raymond Ledrut (1973) se intitula “Aalienação urbana e a possibilidade de ultrapassá-la”.

Territorialidade e culturaAssim como cidadania e cultura formam um par integrado

de significações, assim também cultura e territorialidade são,de certo modo, sinônimos. A cultura, forma de comunicaçãodo indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre ohomem e o seu meio, um resultado obtido através do próprioprocesso de viver. Incluindo o processo produtivo e as práticassociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a umgrupo, do qual é o cimento. É por isso que as migrações agridemo indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a umanova e dura adaptação em seu novo lugar. Desterritorializaçãoé frequentemente uma outra palavra para significar alienação,estranhamento, que são, também, desculturização.

esse amálgama, sem o qual não se pode falar de territorialidade.Esta não provém do simples fato de viver num lugar, mas dacomunhão que com ele mantemos. O cimento regional tanto seobtém através da solidariedade orgânica quando o essencialda divisão do trabalho é praticado na área, como através dasolidariedade funcional regulada, isto é, quando a coesão daspessoas, através da produção social, do provimento de bens eserviços sociais e da circulação social exige a in terferência de

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dados especificamente institucionais, que se superpõem aosdados propriamente produtivos e asseguram o posicionamentosocial. No primeiro caso, são os valores de uso que avultam noconjunto da atividade territorial, enquanto no segundo caso sãoos valores de troca que comandam a vida produtiva e a vidasocial. Deixamos, então, uma situação em que a consciência se

criava a partir das trocas orgânicas diretas entre o homem e anatureza, para enfrentar uma nova situação, onde dados externosao orgânico se impõem, na medida em que a solidariedadeorgânica, antes vigente, é tornada impossível. Passamos doregime do orgânico ao império do organizacional. O raio de

atuação de tal organização frequentemente ultrapassa os limiteslocais, pelo fato de que os círculos de cooperação, sendo maisamplos que a área, a regulação necessária também ultrapassaesses limites, trazendo consigo, ao mesmo tempo, o germe daalienação regional. Muitas das coisas que somos levados a fazer

dentro de uma região são suscitadas por demandas externas egovernadas por fatores cuja sede é longínqua.

Esse processo é, também, o que comanda as migrações, quesão, por si sós, processo de desterritorialização e, paralelamente,

como ator, e não apenas passivamente, do seu novo quadro devida, graças às novas incitações às suas capacidades e ao seugênio criativo. A desculturização é perda, mas também doação.O novo meio ambiente opera como uma espécie de detonador.Sua relação com o novo morador se manifesta dialeticamentecomo territorialidade nova e cultura nova, que interferemreciprocamente, mudando-se paralelamente territorialidade ecultura e mudando o homem. Quando essa síntese é percebida,

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o processo de alienação vai cedendo ao processo de integraçãoe de entendimento, e o indivíduo recupera a parte do seu ser queparecia perdida.

Em seu apreciado romance The Heritage,  Siegfried Lenz(1985) se pergunta se não deveríamos suprimir as conotações

ruins da palavra “terra natal” (homeland) e, em troca, lhe dar umaespécie de pureza? É assim que ele formula a resposta: “Paramim, a terra natal não é exatamente o lugar onde nossos mortosestão enterrados; é o lugar onde temos as nossas raízes, ondepossuímos nossa casa, falamos nossa linguagem, pulsamos osnossos sentimentos mesmo quando ficamos em silêncio. É o lugaronde sempre somos reconhecidos. É o que todos desejamos, nofundo do nosso coração: sermos reconhecidos e bem recebidossem nenhuma pergunta”. Uma das passagens mais dramáticasdo livro é quando Rogalla, herói do romance, queima o museu“porque mais uma vez os obje tos começavam a ter vida própria,isto é, a servir a argumentos políticos, ainda que razoáveis.”Citado por E. V. Bunkse (1986, p. 20).

Espaço, cultura popular, desalienação

pessoas a cidade, como um todo, ao primeiro contato é impalpável,não se deixando entender apenas com o que apreendemos em suasenormes quantidades, nada mais que uma fração do todo63. Porisso, a grande maioria dos cidadãos não percebe a cidade senãopela lógica dos medos, das premonições, da sensibilidade, que seaguça com o próprio processo do trabalho64. A desconfiança cedelugar a uma dúvida metódica popular, que constitui a sementeirade que brotam visões totalizantes. Segundo P. Rimbaud (1973, p.

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283), “a cidade transforma tudo, inclusive a matéria inerte, em

elementos de cultura”. De que cultura estaremos falando? Sobrea cultura de massas, que se alimenta das coisas, ou da culturaprofunda, cultura popular, que se nutre dos homens? A cultura demassas, denominada cultura por ser hegemônica, é adversáriade consciência65.

Se as cidades fossem apenas habitadas por classes médias,empanturradas, mas ainda insatisfeitas, de coisas cujo númeroestão certas de poder ampliar, a consciência da história estaria

63  “É costume pensar uma grande cidade como um todo funcional, um sistema com suas partesinteragindo, um complexo com uma unidade ‘nodal’. Na realidade, a maioria dos moradores urbanosconduz sua atividade diária, e a sua vida inteira é vivida sem que che guem a adquirir esse sentidoglobal do seu entorno urbano. Eles consideram a aglomeração urbana como uma série de lugares -bairros, distritos, áreas -, alguns intimamente conhe cidos, outros apenas de passagem, muitos nãoconhecidos de tudo.” (Broek e Webb, 1968, p.403)64“... Marx marca a prioridade da ação sobre o saber, assim como sua heterogeneidade. Marxafirma e postula o primado do agir sobre o pensar, a primazia da existência sobre a essência. Mas

a existência de Marx não é uma subjetividade kantiana vazia; ela é, antes de tudo, trabalho. Seesta noção de trabalho coloca em destaque a especificidade da existência humana no mundo, aespecificidade da subjetividade humana, ela coloca também a união necessária e insuperável destasubjetividade com a natureza, como o mundo.“(...) a subjetividade humana é fundamentalmente intersubjetividade, comunidade, colaboração.”(A. Haguette, 1983, p. 15).

muito longe de se concretizar. Se o consumo é um emoliente, oemprego permanente anima a consumir desde já o salário futuro,e a oferta escancarada de crédito aos que se apresentam com aprova do seu ganho atual potencializa a propensão ao consumo.O investimento prospectivo que atualiza a possibilidade de obter,desde já, o consumo sonhado, enreda o indivíduo numa teiainvisível. É desse modo que ele se submete a um processo deenquadramento, que o aprofunda na sua condição de consumidor

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e esteriliza as possibilidades reais, mas apenas latentes, de uma

outra cosmovisão. O consumo escraviza as classes médias (de ummodo geral, mas felizmente não absoluto) e suprime os élans  derebeldia, a vontade de ser outro, amesquinhando a personalidade.

Na cidade sobretudo na cidade grande, a dificuldade emesmo a impossibilidade de se tornar um assalariado, graçasàs condições ao trabalho com a progressão atual do sistema técnico-produtivo, subtrai dos mais pobres a possibilidade deser um consumidor pleno.

Dentro do circuito inferior de economia, conforme tentamos

demonstrar há algum tempo (Santos, 1978), o risco de exposiçãoe a possibilidade de alienação são menores.

Em nossas cidades médias e pequenas, os boias-friasestariam vacinados contra esse mal e, portanto, mais próximosda recuperação de uma personalidade forte?

Os que vivem em casas improvisadas nas pontas de rua ouse acotovelam nos cortiços, os que vivem o dia a dia da ocupaçãoprovisória ou mal paga, os que não têm um amanhã programado,são, afinal, os que têm direito à esperança como direito e o

A sua verdadeira liberdade consiste nisso. Eles sabemque de nada adianta imaginar que um dia alcançarão os tesouros que abarrotam as casas dos ricos e da classemédia. O que eles aspiram sobretudo é alcançar, pelo menos,aqueles bens e serviços que tornam a vida mais digna. Eé diante da consciência das impossibilidades de mesmoatingir aquele mínimo essencial que os pobres descobremo seu verdadeiro lugar, na cidade e no mundo, isto é, sua

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posição social.

Há sem dúvida, os que grimpam na escala, alcançamsituações de classe média e ficam, de logo, ameaçados dealienação. Todavia, para esses poucos que atravessam abarreira da pobreza, muitos mais são os que nela permanecem

ou ingressam todo dia, aumentando a coorte dos que guardamo direito de ver e de compreender.

As classes médias amolecidas se deixam absorver pelacultura de massa e é dessa cultura de massa que retiramargumento para racionalizar sua pobre existência. Os

carentes, sobretudo os mais pobres, sequer têm o direitodessa absorção, pelo fato de que não dispõem dos recursospara adquirir aquelas coisas que transmitem e asseguramessa cultura de massa. É por isso que as cidades abri gam aomesmo tempo uma cultura de massas e uma cultura popular,

que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se subtraem, num jogo dialético sem-fim.

A cultura de massas é indiferente à ecologia social.Ela responde afirmativamente à vontade de uniformização

seu meio67. Assim, desde que imunizadas contra os fatores debanalização que o consumo, entre outras causas, carrega, aspopulações desenraizadas terminam por recons truir uma novacultura popular, que é ao mesmo tempo filosofia e, por isso,um caminho para a libertação68. Ultrapassado um primeiromomento de espanto e atordoamento, o espírito alerta se refaz,reformulando a ideia de futuro a partir do entendimento novoda nova realidade que o cerca. Como escreveu Husserl (1975,

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p. 26), “(...) o fundamento permanente do trabalho subjetivode pensar é o entorno vital”. Ou, como lembra Avineri (1970,p. 136): “a realidade que muda”, (...) “muda seu observador”.

As organizações

Entre a realização plena do indivíduo - ou, simplesmente,a vontade de ser livre - e a realização do cidadão encontram -

se as diversas organizações que estruturam a vida social.Sob o ângulo formal, a organização maior é, teoricamente,

o conjunto de normas legais, estabelecidas pelas diversasinstâncias políticas, desde a Constituição, que é a lei das leis,até as posturas municipais.

A sociedade, porém, não se rege, apenas, por leis, decretos,portarias aos níveis federal, estadual ou municipal. As relaçõesatuais entre as firmas e o poder público atribuem às empresas

um certo poder de regulação da vida social. Cada vez mais,e a cada dia que passa, as empresas ditam normas, que sãofrequentemente ainda mais rígidas que as do poder públicoe às quais o cidadão não pode resistir, sob pena de se verparalisado ou tolhido em seu coti diano. É, às vezes, mais fácilcontornar uma determinação burocrática do que infringir umadecisão de um empresário, tomada em seu próprio benefícioindividual. Já o vimos em capítulo anterior.

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Tais práticas abusivas são tanto mais chocantes quandoconcernem necessidades imediatas, irreprimíveis e inadiáveisda exis tência humana: as condições de internação numhospital, as relações com as agências de locação de casas, ascobranças de juros ilegais pelos bancos, os inúmeros outrosabusos cometidos impune e repetidamente por tantos agenteseconômicos como, por exemplo, as escolas privadas. Tudo issoestá entre as tantas formas de legislação pelos particulares,mas que obrigam ao público.

Justiça inatingível e ideologias particularesA esfera do público e a do privado se confundem de

forma in tolerável, em detrimento do indivíduo e do cidadão.Frequentemente, são abusos para os quais não há apelação,mormente pelo fato de que a justiça, a quem nesses casos

dever-se-ia poder recorrer, não está aparelhada para oferecer,em tempo hábil, o necessário respaldo. Sua falência é dupla:organizacional e ideológica, ou, pelo menos, sociológica.

O aparelho judicial brasileiro - assim como as instâncias pre-

mesmo os que dispõem de alguns recursos financeiros. Paraos pobres, a justiça é mais barreira intransponível que umaporta aberta. As manifestações de desalento e descrençaquando uma ofensa ao direito é constatada são muitas vezesmais numerosas que as palavras ou gestos de con fiança, ou,ao menos, respeito, pelo aparelho judicial-policial.

Além desses entraves propriamente processuais, contêm-se, no lado ideológico ou sociológico, com a inadequação ou

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desatualização em que se encontram muitos dos que são,oficialmente, guardiões da justiça e da paz social.

A vida em sociedade se complicou ao extremo nestesúltimos decênios, desafiando a hermenêutica, vistas asnumerosas figuras novas introduzidas no conjunto das relações

sociais. Certos preconceitos de muitos juízes - para não falar dedelegados de polícia - têm origem nessa incapacidade de captara evolução social, levando-os a agir como se ainda estivéssemosvivendo antes da modernização do país ou, mesmo, antes daSegunda Guerra Mundial.

Não é só isso. Certas comunidades desenvolvem ideologiasparticulares, reforçadas pelo espírito de clã que lhes pareceindispensável à sobrevivência do grupo (é o caso da polícia), esão tais ideologias particulares que levam os participantes dogrupo a ado tar, manter e preservar uma maneira bem específica

de ver o mundo, a sociedade civil, os demais. Tais ideologias são,frequentemente, ensinadas nas escolas de formação, vividas naprática cotidiana, reforçadas pelo uso da força. Substituindoa razão, a força funciona como um argumento respeitado pelaética de grupo Esta paradoxalmente encontra seu fundamento

Uma representatividade enviesada

As formas de distorção da condição de cidadão são extrema-mente numerosas e, em muitos casos, sutis e sofisticadas. As

relações entre a sociedade civil e o Estado tornam-se, cada vezmais, objeto de deformações e enviesamentos, mistificaçõessabiamente engendradas.

As leis eleitorais fazem parte dessa maré enchentede enganos desde a forma de investidura dos eleitos (vide

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de enganos, desde a forma de investidura dos eleitos (videsenadores biônicos) à mecânica das eleições (voto estadual oudistrital para deputados, por exemplo), à divisão do territórionacional em distritos eleitorais para privilegiar este ou aquelepartido, até a atribuição de peso elei toral às diversas parcelas,do território e da nação, na composição do Parlamento. A

questão da representatividade é crucial nas democracias,e é através de suas distorções que a vontade popular sedesfigura. Se, em todos os países democráticos, os canaispelos quais a vontade popular se manifesta se tornam àsvezes inadequados, se os partidos no poder às vezes buscam

alterar certos procedimentos em seu próprio proveito, fazem-no sob a alegação de que pre tendem o aperfeiçoamento doregime, expõem e debatem longamente as suas propostas eé inconcebível que pretendam infringir, substancialmente, asregras do jogo democrático.

Uma opinião pública amadurecida na prática representativanão se deixaria embair, e responderia negativamente nas urnas.

No caso brasileiro, os esbulhos se dão como ato de força,e até mesmo a formação dos partidos obedece a uma vontade

uma nesga de poder. Na maior parte dos longos anos de poderarbitrário, o número de organizações partidárias legais foilimitado a dois, impedindo, assim, que as diversas vertentes dopensamento político pudessem manifestar-se. Pensava-se quea abertura política traria consigo a possibilidade da criação departidos verdadeiramente representativos, cobrindo o arco-íris das ideias latentes na sociedade, com projetos políticosconsistentes. Estes teriam um papel pedagógico relevante, mos-trando à população o que deve ser uma democracia plurarista,

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 trando à população o que deve ser uma democracia plurarista,

oferecendo opções sistematicamente alinhadas, apontandopara diferentes concepções de governo e para tantos outroshorizontes capazes de justificar a ação política e de comoveras diversas parcelas da população, segundo seus interessese crenças. Se isso houves se ocorrido, cada eleição, pelas

campanhas eleitorais que a an tecedem, galvanizaria parcelasda população em torno de um ideário, capaz de permitir oacompanhamento da atividade dos elei tos, obrigando-os a umafidelidade partidária além do alcance das cúpulas partidárias,porque devida ao próprio eleitorado. De um só golpe, a atividade

parlamentar seria mais consequente e responsável, e as massaspopulares se habituariam a reunir, no seu julgamento, homense ideias, ideias e partidos, partidos e homens. A educação paraa democracia sendo feita numa prática que ultrapassa o dia daseleições e as campanhas eleitorais tantas vezes ocultadoras da

verdade, obteríamos a fusão da prática democrática com o coti-diano vivido de cada qual, o cotidiano e a vida comparecendocomo uma escola de democracia, alimentando-a, reforçando-a,aperfeiçoando-a.

Os qualificativos do voto: clientelismo, populismo, siglismo

Costuma-se, tantas vezes preconceituosamente, distinguiras regiões do país e mesmo de cada Estado pelas tendências

do voto, como se isso fosse mais um dado natural, um fato dageografia, e não o resultado de uma dada forma de organização.O Nordeste seria o paraíso, junto com o Norte, do voto “decabresto”, com eleitores seguindo cegamente a um condutor,seja ele um político importante ou um simples cabo eleitoral.

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Já o Sul e o Sudeste, segundo tais observadores, abrigariaum voto mais esclarecido, os votantes sendo mais fiéis àsideias ou aos programas, explícitos - na realidade, muitomais implícitos - dos partidos. A separação da populaçãoentre rural e urbana atribuiria a esta última uma nota mais

elevada quanto à sabedoria na escolha, o homem do camposendo menos “racional” em sua decisão de voto. Conformeos observadores têm registrado, os resultados eleitoraisdesautorizam tais raciocínios simplistas.

A verdade eleitoral ultrapassa a formulação dos cientistas

políticos, mas deixa evidente que, entre as forças propulsorasdo voto, coabitam elementos com origem distinta no tempo, ecom resul tados distintos na atualidade, tais como o clientelismo,o populismo e o siglismo. Todos os lugares conhecemmanifestações, mais ou menos amplas e consistentes, dessas

 três variáveis do voto. Igualmente os partidos, sem exceção,se beneficiam ou são prejudicados, segundo o caso, por essas três modalidades do voto.

Entendamos por clientelismo o movimento que confunde o

a participação na mesma igreja ou no mesmo clube esportivo,o mesmo amor aos animais ou à natureza podem servir comoincentivo à solidariedade. Tal movimento tanto pode serespontâneo como encorajado, e até mesmo engendrado pelo

uso científico dos meios de propaganda. Não esta ríamos, jáaqui, no domínio do populismo? Este tem por base agradarao eleitor pelas mais diversas maneiras, com promessas demudanças, setoriais ou localizadas, exercendo, dessa forma,um aliciamento dirigido a grandes grupos de pessoas, às

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vezes parcelas consideráveis das massas. Uma promessaaqui e outra ali, segundo peculiaridades do lugar ou dos seushabitantes, podem comover mul tidões, sem, todavia, obrigaros candidatos e partidos a oferecer um programa coerente. Taispromessas acenam, geralmente, para melhorias individuais

ou coletivas e realizações não empreendidas pelos governosanteriores ou por outros políticos, de tal forma que soam aosouvidos dos eleitores como atitude de oposição ao que haviaantes, e até se definem como forma de progressismo. Nãosão apenas as pessoas mais simples que fizeram uma leitura

progressista das diversas manifestações de populismo.O siglismo é mais arregimentador, mais disciplinador, mais

exigente de centralismo ou coerência. Um sistema de ideias ouprincípios pode substituir um esforço programático sistêmico.Às vezes até, este é menos propício ao levantamento de uma

bandeira. E esta é indispensável como palavra de ordem, comoelemento de imantação, como garantia da coesão e sobrevivênciado grupo. Já se vê que os  siglismos são muitos, desde os quefazem apelo a lógicas mais imediatas que o cotidiano torna

a uma escolha, feita de fora do indivíduo, entre muitos futuros.Quanto mais distante no tempo, quanto mais amplo no espaço,as contradições entre o ideário e as ações são necessárias,fazendo indispensável o aprendizado da disciplina, armado da

qual o indivíduo considera que os ajustamentos periodicamentenecessários à linha partidária são episódios menores, cujaviolência, quando esse é o caso, não lhe abala a cer teza de estarsendo conduzido pelo melhor caminho.

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Todos os partidos, todavia, e em todos os lugares deste país,salvo rara exceção, incluem coeficientes, diferentes e variáveis,de clientelismo, populismo e siglismo. Nós os separamos paraa análise, mas no mundo real estão conjuntamente presentes,como componentes que aparecem combinados, contribuindopara que a vida política não seja tão representativa quantoseria de desejar numa democracia.

O fato capital, que aqui desejamos realçar, é a contribuiçãodessas distorções para que, no Brasil, a cidadania aindanão esteja próxima mas, na verdade, distante, apesar da

propaganda que é feita, sobre os novos tempos em que jáestaríamos vivendo.

O clientelismo é um elemento da  não cidadania,  porquedis torce a orientação eleitoral, afastando o indivíduo da metada consciência possível e, portanto, afastando a sociedade da

possibilidade de uma autêntica representação.O clientelismo suprime a vontade, já que com ele o direito

real de escolher é deferido a um outro. Em nome de virtudescardeais, com a gratidão e o reconhecimento, há uma renúncia

fruto de uma tomada de posição individual como ser genérico,isto é, diante do mundo que nos move, mas que tambémdesejamos mover. Com isso, o populismo paralisa a ampliaçãoda consciência possível, reforçando a emotividade desviada.

Num país onde os mínimos materiais e ima teriais necessáriosa uma vida decente ainda estão longe de ser atingidos e ondea criação de falsas necessidades é um fato de todos os dias,há sempre algo a conquistar e, assim, sempre há aparência deconquista, tornando precária a reelaboração da personalidade

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em vista do novo.O próprio siglismo termina, igualmente, por ser uma distorção

ou, ao menos, permite-a. Trata-se de uma forma de canalizaçãodas energias intelectuais de toda a população, para atingirprimeiro aos que já estão intelectualmente dispostos e logoarrastar outros e outros, numa mesma corrente. É porque esse trabalho de arregimentação se localiza na categoria de trabalhointelectual e busca uma resposta intelectual cujo discurso sedirige à pregação de uma nova ordem social que seja boa para todos e não à satisfação de problemas puramente individuais,

ainda que ressentidos por um grande número de pessoas. Ossiglismos, sem dúvida, valem-se de ideias. Pode-se, no entanto,indagar a respeito da falta de um trabalho intelectual dinâmicoque tenha a realidade social como ponto de partida para chegaràs ideias, e onde estas busquem reproduzir o próprio sistema

das coisas e das relações sociais. É difícil abrir-se um partido aesse trabalho dinâmico dos intelectuais, reconhecendo-lhe umespaço próprio de ação a interagir - mas sem desfiguração - comos demais espaços dentro do partido. Isso, aliás, já é feito com

O número de insatisfeitos com os partidos tende somentea crescer. Os insatisfeitos formam uma margem heterogênea;porque gerados pelo desconforto criado seja pelo clientelismo,seja pelo populismo, seja pelo siglismo. Tal insatisfação, que

é, em si mesma, uma atividade intelectual, somente obterá umefeito motor quando, reunida a outras insatisfações, desembocaem algo concreto, como a formulação de uma ideia, a elaboraçãode uma proposta, a difusão de uma crítica.

Como virar pelo avesso a organização política que nos foi

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Como virar pelo avesso a organização política que nos foiconcedida? No fundo, a forma como os partidos políticos tiveramautorização para se organizar já resulta do planejamento de umademocracia que não deveria ser completa, tornando longínqua apossibilidade de existência da cidadania real.

A impossibilidade de manifestação política autêntica, adesna turação do exercício do voto, ambas consagradas pelaatual transição institucional, impõem-se sobre um quadrorural manipulado e sobre um quadro urbano marcado pormigrações brutais, forçadas pelo modelo econômico e pela

brutalização das relações de emprego, que descaracterizam oindivíduo. Ao mesmo tempo em que se dá a expansão urbana,há uma expansão exponencial do consumo, suprimindo-seuma vontade difusa de estabelecer uma democracia real,pela transmutação do quase cidadão em um consumidor

sem defesa: o processo de descidadanização do país foi sis- temático e brutal.

As sociedades de moradores

ação não se dirige para reduzir os efeitos da sociedade deconsumo, mas para nela inserir ainda mais profundamente osrespectivos protagonistas. Não tem outro sentido a defesa davalorização da propriedade individual ou as campanhas para

obtê-Ia. Cada qual no seu nível se defende dos outros, mas épara obter uma posição melhor no mercado. As so ciedadesde moradores têm um inegável papel organizativo, mas não têm fôlego para ultrapassar o funcional, deixando intactoo estrutural. Seu papel se esgota com o atendimento dos

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reclamos patrimoniais, e com isso se esgota a ação do grupo.É o mercado, afinal, que triunfa.

Trata-se de uma ação política puramente espacista, mas nãopropriamente espacial. O espaço é uno e global, funcionando se-gundo um jogo de classes que tem sua demarcação territorial.Agir sobre uma fração do território sem que a ação seja pensadade maneira abrangente, pode oferecer soluções tópicas e deeficácia limi tada no tempo, servindo sobretudo ao reforço dosdados estruturais contra os quais se imaginava combater70. Amelhoria eventual das condições de residência de parcelas das

populações urbanas mais pobres não lhes garante nem mesmoa propriedade da casa ou dos terrenos. Os pobres continuammigrantes dentro da cidade. A propriedade da casa ou do terreno é a propriedade de uma mercadoria dentro de umasociedade mercantil.

Como os pobres ainda estão muito longe de possuir todosos bens que a sociedade de consumo lhes comanda, e comoa sociedade de consumo lhes está sempre criando novas

necessidades, os seus ganhos insuficientes com frequênciaaconselham a troca da casa por dinheiro, com o qual buscamcompletar a cadeia dos obje tos buscados. Quanto a morar, bastadeslocar-se para ainda mais longe, recomeçando tantas vezes o

ciclo quantas vezes se façam necessárias.O trabalho das associações de moradores apenas precipita

ciclo, na medida em que tende a faciliar a aquisição da mercadoriacasa, e a sua valorização posterior, incluindo-se no conceito dehabitação os serviços públicos que lhes acrescentam valor. Para

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ser transcendente, a luta urbana deve enfocar a cidade como um todo e o indivíduo total.

Progredir na sociedade de consumo é, frequentemente, re-gredir na escala de valores. Somente é conquista definitiva a que

autoriza compreender uma situação, buscando-lhe os remédioses truturais que permitam ultrapassar os nossos próprios limites.

Ações que têm por base intelectual e ideológica comporta-mentos corporativos têm eficácia reduzida ou nenhuma naformulação da consciência social e como contribuição válida

ao desenvolvimento social. Marx, na  Ideologia Alemã, jálembrava o perigo de os indivíduos de uma mesma classe se tornarem inimigos na concorrência internamente travada entreeles próprios, em lugar de se organizarem para se exprimireficazmente contra a classe dominante, cuja condução da

sociedade impede que as classes dominadas busquem seucaminho, através de uma ação consequente71.

71  “Como distorção ao ser mais, o ser menos conduz, cedo ou tarde, os indivíduos a lutar contra

Do indivíduo ao cidadão

No ensaio intitulado “Ultrapassar o Conceito de Massas”,Marcuse (1980) afirma que o processo social da revolução seinstala nos indivíduos para os quais a liberação se tornou umanecessidade vital. Só aqueles que superam o nível puramenteegoístico escapam ao fato de que, no capitalismo avançado,“a própria individualidade se tornou uma mercadoria”. Essaspessoas privilegiadas ultrapassam nos fatos o conceito de

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“massas” e são “desse modo capazes de realizar um dos aspectosda liberação: a existência de indivíduos solidários tanto ao nívelda ação quanto ao nível da sensibilidade”.

Do homem solitário ao homem solidárioO papel do indivíduo não se exalta na subordinação social

ao individualismo. Individualidade e individualismo se opõem,são es tados de ser antagônicos. O dramático, porém, é que o“eu dividido” de Laing é também verdadeiro no dilema entre a

realização pessoal a despeito de todos, isto é, contra os outrose a imersão racionada e voluntária do indivíduo na comunhãosocial, isto é, no conjunto de todos, os outros também sendonós. Tal conflito, ao qual ninguém escapa, é pungentementeretratado pelo diálogo do homem consigo mesmo, tal como

vê o filósofo Rabbi Hillel: “Se não sou por mim, então quemserá por mim? E se não sou pelos outros, então o que sou?”(K. Arrow, 1976, p. 9). É o drama cotidiano do homem nasociedade atual.

por uma si tuação e a situação caracteriza seu modo de ser nomundo e compreende um lugar, um corpo, uma posição, umpassado, uma relação fundamental com os outros homens. “ Vemdaí a advertência de R. Havemann (1967, p. 174): “Enquanto a

sociedade se encontrar longe da meta da liberdade, o homemse encontrará em conflito entre a sua aspiração pessoal e osinteresses da totalidade”. Isso, no entanto, não implica em umimpasse definitivo, mas, ao contrário, em uma esperança. Poisa meta da liberdade começa no espírito do homem e a condição

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da liberdade é a imersão do indivíduo renovado numa sociedadeonde o homem é o sujeito e não o objeto. É fundamental, todavia,ultrapassar a reconstrução solitária do indivíduo e transformá-laem ação social solidária. A individualidade somente se realizano grupo72.

Nenhum egoísmo ajuda a purificar a vida social, e apenasem uma sociedade verdadeiramente humana é que asindividualidades florescem plenamente73. É a lição de Platão na República e de Marx no Manifesto, nos Manuscritos , na Ideologia Alemã e na Sagrada Família: somente na Polis, em comunidadecom outros, o homem é capaz de cultivar em todas as direções todos os seus dotes, afirmando a sua liberdade, pois não háliberdade solitária.

72  “O indivíduo plenamente desenvolvido é o resultado de uma sociedade plenamente desenvolvida.A emancipação do indivíduo não é a emancipação da sociedade, mas a superação, pela sociedade,do risco de atomização, uma atomização que alcança o seu auge nos períodos de coletivização ecultura de massa.” (Horkheimer, 1974, p. 135)73  “De todas as socializações possíveis, há uma que é sinônimo de humanização: é aquela onde a

Da personalidade ativa ao cidadão

Fazer renascer, através da coragem civil de que falaraWright Mills, o homem como  projeto  de Sartre, o indivíduo

disposto a utilizar plenamente a sua vocação de liberdade,depende, afinal, de cada um. Sartre mesmo dizia, quando daocupação de seu país, a França, pelos alemães do III Reich,que nunca havia sido tão livre. Essa é a liberdade interiorque pode conduzir à ação, mas também pode vê-la refreada

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pelo poder da força, isto é, a personalidade forte reprimidapela ausência do cidadão, ou seja, pela falta da liberdadeassegurada por lei. A cidadania é mais que uma conquistaindividual.

Uma coisa é a conquista de uma personalidade forte,

capaz de romper com os preconceitos. Outra coisa é adquirir osinstrumentos de realização eficaz dessa liberdade. Sozinhos,ficamos livres, mas não podemos exercitar a nossa liberdade.Com o grupo, encontramos os meios de multiplicar as forçasindividuais, mediante a organização. É assim que nosso

campo de luta se alarga e que um maior número de pessoasse avizinha da consciência possível, rompendo as amarrasda alienação74. É também pela organização que pessoasinconformadas se reúnem, ampliando, destarte, sua força earrastando, pela convicção e o exemplo, gente já predisposta

mas ainda não solidamente instalada nesses princípios re-dentores75.

74  “Uma organização pode obter mais informações que um qualquer indivíduo, pois cada quald b d iê i di D d ã d li i õ d

O homem livre nasce com a desalienação e se afirma nogrupo. O cidadão, porém, é uma categoria política que só temeficácia enquanto categoria jurídica. Por isso, é mais fácil chegara ser uma personalidade forte, liberada, que, mesmo, um cidadão.

Como categoria política, a cidadania pode e deve submeter-se a diversas propostas de realização: estamos no terreno de umaideia que busca, de um lado, a sua teoria e que, de outro, buscaa sua prática possível. A resposta a essas indagações resultaráde um jogo em que à filosofia até mesmo se podem misturar ou

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se opor interesses mesquinhos gastrintestinais. Trata-se, emúltima análise, de um debate em procura de uma lei e, por isso,a resposta obtida é única, fixa, estável, permanente, ainda queseja o fruto de um arranjo apenas momentâneo. Dele podemosdiscordar intimamente - e até mesmo exprimir publicamentea nossa inconformidade, mas sua eficácia durará até que oequilíbrio que a gerou ceda lugar a um outro novo. É assimque surge” e se impõe a categoria jurídica do cidadão, ou, aindamelhor, o cidadão como categoria jurídica.

Se a lei é realmente cumprida, é outro assunto. Mas, consa-grada na lei, a cidadania se define igualmente para todos. Aindaque as suas interpretações possam ser diferentes, referem-se aum mesmo e único texto.

Promulgada a lei, o discurso da cidadania todavia continua,

no objetivo de alargar as conquistas. A lei não esgota o direito. Alei é apenas o direito positivo, fruto de um equilíbrio de interessese de poder. Daí ser legítima a procura de um novo equilíbrio, istoé, de um novo direito.

o cidadão, a partir das conquistas obtidas, tem de permaneceralerta para garantir e ampliar sua cidadania.

Lugar e valor do indivíduo

“O espaço impõe a cada coisa um determinado feixe de rela-

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ções, porque cada coisa ocupa um lugar dado”.Cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como

produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no terri tório. Seu valor vai mudando, incessantemente, para melhorou para pior, em função das diferenças de acessibilidade (tempo,

frequência, preço), independentes de sua própria condição.Pessoas, com as mesmas virtualidades, a mesma formação, atémesmo o mesmo salário têm valor diferente segundo o lugarem que vivem: as oportunidades não são as mesmas. Por isso,a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em

larga proporção, do ponto do território onde se está. Enquantoum lugar   vem a ser condição de sua pobreza, um outro lugarpoderia, no mesmo momento his tórico, facilitar o acesso àquelesbens e serviços que lhes são teoricamente devidos, mas que, defato, lhe faltam.

O espaço e as classes sociais

Será possível interpretar as classes sociais, defini-las, semconsiderar a base territorial?

 também que o valor do homem, assim como o do Capital em todas as suas formas, depende de sua localização no espaço.Tal é nossa primeira proposição para debate. Se a resposta forafirmativa, então - dizemos nós - as classes sociais deveriam

classificar-se entre as “abstrações” até que cada unidade nãocorresponda a uma diversidade espacial, mas exclusivamentediversidade no interior de cada espaço considerado como entreespaços particulares, como fruto de determinações  sociaisparcialmente condicionadas (em proporção maior ou menor,

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segundo o caso) pelas condições geográficas   preexistentes.As condições “geográficas” são, indubitavelmente, condiçõessociais, porém de um tipo particular. O problema da dialé ticadas classes, não há dúvida, sempre se acha presente, mas adiversidade (enorme) de situações espaciais de classe também

cons titui um problema.Indivíduos que disponham de uma soma de capital, formação

cultural e capacidade física equivalente, ocupados num mesmo tipo de atividade - para não falar senão dessas qualidadescomuns são, sem embargo, dotados de possibilidades efetivassensivelmente desiguais conforme os diferentes pontos doespaço em que se localizem.

Isto se aplica tanto aos que vivem da venda de sua forçade trabalho quanto aos que compram esse trabalho, vale dizer,

os empresários. Se a cidade grande, sob inúmeros aspectos,é muito mais atraente, para muitos é preferível instalar-seno campo, e não na cidade, ou então numa cidade média, aoinvés de uma cidade grande. A escolha pode ser de natureza

razões econômicas resumem-se, em termos de vantagens,imediatas ou não, que conferem a cada localização um trunfoparticular para um indivíduo, ou grupo de indivíduos, emdeterminadas condições. Independente das considerações de

prestígio, do ponto de vista econômico os indivíduos, seja qualfor a sua profissão, não são recompensados igualmente (em termos de poupança efetiva, positiva ou negativa), segundoos lugares.

Tal fenômeno, no entanto, não é exclusivo dos empresários ed l i d t T bé b b

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dos assalariados permanentes. Também os pobres, os subempre-gados ou os que trabalham ocasionalmente são recompensadosem função de sua localizaçao no espaço.

O estudo da distribuição da pobreza no espaço supõe que

se pesquise a razão pela qual indivíduos dotados das mesmasvirtualidades, das mesmas capacidades potenciais, têm “valor”diferente segundo o lugar em que se encontram.

A questão deve ser desdobrada. Trata-se, antes de maisnada, de constatar tais diferenças de situação no espaço. Em

seguida, o problema requer uma explicação de maior alcance: trata-se não tanto de explicar por que as pessoas migram,quanto de saber por que elas permanecem, por que elas nãomigram. Isto é tanto mais importante quanto o fato de que nãomigrar significa amiúde condenar-se a ficar ainda mais pobre.

Para muitos, ficar equivale a empobrecer-se dia a dia.Certamente, nas condições de mutação permanente que

caracterizam a sociedade, alguns indivíduos são dotados demais mobilidade que outros. Com efeito, enquanto uns são

Classe, renda e lugar

Por mais simples que seja o exame das característicasrelativas à distribuição da população segundo seus diversos

estratos e à repartição dos serviços públicos, dos tipos decomércio, dos preços e das amenidades, pode-se inferir aexistência de uma correlação en tre a localização das pessoas e oseu nível social e de renda.

Em outras palavras, pode-se dizer que, com exceção de

alguns bolsões atípicos o espaço urbano é diferentemente

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alguns bolsões atípicos, o espaço urbano é diferentementeocupado em função das classes em que se divide a sociedadeurbana.

O fenômeno é antigo, mas na medida em que a aglomeração

evolui, aparece cada vez mais nítido. A princípio se podia falarde uma certa espontaneidade, entendendo-se por essa palavrao simples jogo dos fatores de mercado. Nos últimos decênios,porém, o jogo dos fatores do mercado é ajudado por decisõesde ordem pública, incluindo o planejamento, as operações de

renovação urbana e de remoção de favelas, cortiços e outros tipos de habitação subnormal.

Essa repartição espacial das classes sociais é um fato que severifica no espaço total do país e em cada região, mas é sobretudoum fenômeno urbano. No caso do país como um todo, ou em

cada uma das suas regiões, o que se passa é principalmentea existência de diferenciais de renda que podem acompanharas diferenças do desenvolvimento entre as regiões, embora arelação não seja mecânica.

lhes porém uma gama - diversa - de remunerações, ao mesmo tempo que os diferenciais de renda se refletem de uma formamais clara na organização do espaço interno.

Essa relação entre fração do espaço e fração da sociedadesegundo níveis de renda não pode servir de base para umaexplicação, constitui apenas um resultado. Ainda assim, asgeneralizações podem ser arriscadas pelo fato de que aspessoas não são automaticamente atingidas pelo movimentosocial e os seus reflexos no es paço. É assim que encontramosum número considerável de pessoas de alta renda em bairros

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um número considerável de pes soas de alta renda em bairrosque evidentemente empobrecem, da mesma forma que em áreasem processo de “melhoria” encontram-se pobres residuais.

Na verdade a pobreza tem suas condições espaciais,

somente se podendo falar de causas espaciais da pobreza emduas circuns tâncias: a primeira se liga a uma certa organizaçãodo espaço que, conduzindo a uma concentração da riqueza empoucas mãos, seja criadora de pobreza, e a segunda se liga aoscasos extremos de imo bilidade.

Há em todas as cidades, uma parcela da população que nãodispõe de condições para se transferir da casa em que mora,isto é, para mudar de bairro, e que pode ver explicada a suapobreza pelo fato de o bairro de sua residência não contar comserviços públicos, vender serviços privados a alto preço, obrigar

os residentes a importantes despesas de transporte. Nessecaso, pelo fato de não dispor de mais recursos, o indivíduo écondenado a permanecer num bairro desprovido de serviços eonde, pelo fato de ser um bairro pobre, os produtos e bens são

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interpretação, um princípio diretor para a construção da noçãode pobreza: o da acessibilidade - que não é a mesma em todaparte. Tal abordagem não é suscetível de esgotar a questão,pois nela toda a população de uma dada localidade é tomada em

bloco, como se todos os indivíduos tivessem os mesmos papéis,as mesmas funções, as mesmas possibilidades e as mesmasrendas.

Esse enfoque supõe que se trabalhe a partir do conhecimentoda sociedade global, de suas leis funcionais e evolutivas, e do seu

impacto num determinado ponto Cada lugar é aqui definido por

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impacto num determinado ponto. Cada lugar é aqui definido porsua própria história, ou seja, pela soma das influências acumu-ladas, provenientes do passado, e dos resultados daquelas queman têm maior relação com as forças do presente.

A segunda abordagem completa a primeira. Também aquise levam em conta parâmetros cuja escala é externa ao lugar,só que muitas vezes eles determinam uma estrutura internaespecífica a cada ponto do espaço. Haverá mesmo um fossoentre essas duas abordagens, ou serão elas complementares?Que é, nelas, o lugar?

O homem-cidadão, isto é, o indivíduo como titular dedeveres e direitos, não tem o mesmo peso nem o mesmousufruto em função do lugar em que se encontra no espaço total. Para começar, o acesso às fontes de informação não éo mesmo. Ora, na fase atual da economia, ser desinformadoequivale a estar desarmado diante das mutações tão rápidasque atingem a vida cotidiana de cada um. Esse  handicap nãovem só. É acompanhado pelas dificuldades de acesso às fontesdo poder sem contar que num mundo tendente à concentração

autoridades e as administrações com as quais se é obrigadoa transigir detêm cada vez menos o prestígio e os meios parauma ação eficaz e rápida.

Que dizer, então, da distribuição da justiça? Finalmente,a participação individual na vida social e a capacidade deinfluenciar a corrente dos acontecimenos não são as mesmasse se levam em conta as localizações individuais. Quando sefala do homem-cidadão, do homem enquanto ser político, vemautomaticamente à tona a questão do homem produtor e dohomem consumidor uma vez que o papel do Estado é também

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homem consumidor, uma vez que o papel do Estado é tambémdeterminado pelo funcionamento da economia. Na realidade,esses três aspectos não formam mais que um, visto como asdiferenças de mobilidade entre os indi víduos modificam suarespectiva situação enquanto produtor, con sumidor e cidadão,e isso num movimento de conjunto, ou seja, que afeta, de umsó golpe todas as situações até aqui tratadas analitica mente,como se fossem três. No fundo, com efeito, não há senão umaúnica situação para cada homem, a saber, a  sua  situaçãosocial, em fusão com a situação geográfica, resultante deheranças e inovações, fusão irreversível porque combinaçãoquímica em que o conjunto das variáveis que caracterizam asociedade global incide sobre o indivíduo concreto num lugardeterminado.

De resto, é dessas diferenças reais ou sentidas entreindivíduos, e da maior ou menor aceitação das condições quelhes são localmente oferecidas e ou impostas, que depende a suaforça ou a sua incapacidade para resistir à vontade de deslocar-

Se atentarmos para a situação do lugar, o problema da acessi-bilidade assume uma feição diversa para o homem produtor, ohomem consumidor e o cidadão.

A atividade de produção, com os lucros que proporcionaaos agentes, é multiplamente afetada pelas condições deacessibilidade, dependentes da localização. A distânciaem relação às estradas, bem como a qualidade e frequênciadestas, contribuem para facilitar ou então para dificultar oescoamento da produção, industrial ou agrícola (ou  mineira),e a acessibilidade aos serviços produzidos, que participam

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e a acessibilidade aos serviços produzidos, que participamcomo  inputs . Os custos e os preços locais dependem disso. Adisponibilidade de mão-de-obra vincula-se aos fatores acimacitados, os quais, contribuindo muitas vezes para a sua abun-dância ou carência, têm ainda um papel nada desprezível na

fixação do salário. Os ritmos correspondentes a cada fase doprocesso produtivo têm uma significação essencial, pois queatingem de forma particular a contabilidade de cada firma, sejao grande plan tador ou a indústria próspera, seja o pequenoartesão ou o camponês isolado.

O homem consumidor é igualmente atingido pela acessibili-dade. O grau desta última, portanto, faz com que o homem,desde que todas as condições permaneçam iguais, conformeseja ou não dotado de mobilidade, continue mais ou menosdependente das condições do mercado local. Ora, os preços

locais tendem a ser preços de monopólio quando a dimensãodo mercado é reduzida e as estradas são raras e ruins, podendoos comerciantes nesse caso, mesmo sem deliberação expressa,formar verdadeiros monopsonias ou oligopólios. Os preços de

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para utilizar a expressão de William Warntz (1967), não se exerceigualmente sobre todas as pessoas.

Espaço e valor do homem

Como certas áreas não dispõem de certos bens e serviços,somente aqueles que podem se deslocar até os lugares onde tais bens e serviços se encontram têm condições de consumi-los. Desse modo, as pessoas desprovidas de mobilidade, seja emrazão de sua atividade, seja em razão de seus recursos, devemresignar-se a não utilização de tais bens e serviços, cujos preços

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g ç ç , j p çsão, às vezes, inferiores aos de sua localidade.

Os moradores que dispõem de meios para locomover-se têm,assim, acesso mais fácil, e aqueles cuja mobilidade é limitada

ou nula devem pagar localmente mais caro, e às vezes por issomesmo renunciar ao seu uso.

Outro caso: o lazer em São Paulo

Um resultado da planificação urbana capitalista combinada

com o processo especulativo do mercado é a distribuição desigualdos equipamentos educacionais e de lazer.

No município de São Paulo, cinemas, hotéis, museus, restau-rantes e teatros estão concentrados em apenas duas zonas, quesão exatamente as zonas centrais, isto é, o Centro Histórico e oCentro Expandido.

Centro Centro

Porcentagem

das duas zonas

sobre o total

Quando sabemos que nessas duas áreas apenas residem20% da população do município, e que elas representam 14%da sua superfície, verificamos a extrema concentração dessesserviços e as dificuldades (tempo e preço dos transportes) que

residentes em outras zonas devem enfrentar para ir a um cinema,a um teatro ou a um museu.

A concentração geográfica dos teatros na metrópolepaulistana é constatada numa pesquisa de março de 1975,realizada pela Paulistur e citada por Helena Kohn Cordeiro.

Cerca de 56% desses estabelecimentos ficam dentro do

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Cerca de 56% desses estabelecimentos ficam dentro doque essa autora classifica como “Zona de transição do Centro”,formada essencialmente pela áreas da Bela Vista, de Vila Buarquee da Consolação, enquanto o centro propriamente dito somente

abriga 6,6% dos teatros. O bairro de Santa Cecília, que é tambémcentral, conta com 13,3%, e os demais bairros, reunidos, com 26,6%.

Quanto aos cinemas, é o Centro que dispõe do maior contin-gente, com 42% do total metropolitano, enquanto o conjunto ruaAugusta/avenida Paulista conta com 15,4%, e os Jardins, 8,8%.

Os demais bairros somam aproximadamente 32% (os autocinessão 2% do total). (Helena Kohn Cordeiro, 1973, p. 205)

Tal concentração dos equipamentos de lazer deve ter contri-buído para que pessoas do mesmo nível de renda e do mesmonível educacional frequentem menos os cinemas e teatros doque no Rio de Janeiro, em Recife ou em Juiz de Fora (ver RenatoR. Boschi, 1977 e Cândido Mendes, 1977). Assim também é paraos equipamentos sanitários, o acesso à escola e aos bens deconsumo imediato e indispensável

proprietários dos bens de produção, e, de outro, os portadores daforça de trabalho e, igualmente, os que se beneficiam da mais-valia coletivamente realizada dos que, com menos recompensa,a realizam. Uns e outros dividem-se no espaço, mas de maneira

distinta, pois o lugar que de têm na cidade, ou no campo, é umdado fundamental para a reprodução de sua situação original,isto é, das relações sociais desiguais.

Distribuição desigual da informação

A distância geográfica é duplicada pela distância política.

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g g p p pEsta se manifesta em dois sentidos complementares. Estar naperiferia significa dispor de menos meios efetivos para atingiras fontes e os agentes do poder, dos quais se está mal ou

insuficientemente informado.A informação é um aspecto desse desnudamento da periferia:

a aglomeração de São Paulo, capital de um Estado moderno, re-presenta por si só 92% da venda de jornais e revistas do Estado(Mahon, 1970), cuja população, todavia, é geralmente bem-

dotada do ponto de vista econômico, se comparado (o Estado)com o resto do Brasil.

No Chile, três quartos dos jornais cotidianos são publicadosem Santiago, representando 70% da tiragem nacional, e mais de70% dos seus leitores encontram-se na capital. (A. Mattelard, 1967)

A cidade grande acaba por deter o monopólio da informação.Se recentemente vimos observando uma proliferação geométricado número de emissoras de rádio e mesmo, em certos países, de

O grande número de iletrados desfavorece a periferia, dopon to de vista da informação econômica e política. Na cidade, asinformações oficiais são quase sempre deformadas pelos meiosde comunicação de massa, mas os contatos entre as diferentes

redes informativas são maiores e, por isso, a percepção dasdesigualdades é mais aguda.

Por conseguinte, a informação fabricada é econômica egeograficamente concentrada. Dispondo da exclusividade doscanais de difusão, os responsáveis pela informação descematé aos indivíduos, ao passo que estes não podem fazer subir

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suas aspirações até eles. Essa desigualdade é tanto econômicae social quanto geo gráfica. Quanto mais longe dos centros dopoder, mais difícil é fazer ouvir a própria voz.

A distância geográfica representa, assim, um handicap polí- tico, e a distância política tem um custo importante. Nas cidadespequenas, e mesmo nas médias, os organismos do Estado e asautoridades públicas dispõem não raro de um poder apenas formal,dada a inexistência, de meios financeiros e decisórios. A populaçãove-se desfavorecida em razão da fragilidade dos instrumentosadministrativos, acrescendo-se a isso a menor possibilidade, naperifena, de exercer uma pressão sobre o governo central.

A região de Rioja, estudada por Margulis (1968, p. 105), si- tuada a 1.200 quilômetros de Buenos Aires e a 120 quilômetros

da cidade mais próxima, é disso um bom exemplo. Lá, nemmesmo as leis de proteção aos assalariados se fazem valer.Somente 8% da força de trabalho percebe o salário-mínimonacional, enquanto 50% recebem apenas a metade. No entanto,

opõe-se uma difusão seletiva da informação, que tende a criarum desejo de consumir, uma nova necessidade a satisfazer,mesmo na ausência dos meios precisos.

Como disse I. Morrison (1972), a exposição à modernidade tem um efeito devastador na cultura tradicional, porque esta ées truturalmente incapaz de modificar-se para poder incorporar todas as modernizações, não tendo, por outro lado, a força pararepelir tais modernizações. A cultura moderna é vendida ao preçode des valorização das normas tradicionais. Se alguns elementos

 tradicionais permanecem intactos, o mesmo não sucede comt d A i õ tã t

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o todo. As migrações aparecem então como uma resposta a tensões para as quais o meio não oferece solução em seu arsenalinstitucional, e a migração ajuda a precipitar a desintegração. “Oimpulso migra tório, nascido numa atmosfera de coação social, não

requer muito tempo para deslocar e liberar as velhas estruturas”(Sorre, 1955). Uma vez liberado, o fluxo migratório toma-seinexaurível. Na maioria das vezes, as migrações não passamde uma resposta a essas disparidades, uma busca de equilíbrioquando o isolamento se converte num handicap insuportável.

Essa enorme braçagem da população explica-se sobretudopelo fato de que o indivíduo não possui o mesmo valor enquantoprodutor e enquanto consumidor, segundo sua posição noespaço nacional (Santos, 1974). A pobreza não é igualmentedefinida nas diferentes situações geográficas. Para cada cidadeou espaço rural, os dados objetivos (entre os quais se incluem ossalários, os preços, a qualidade e a quantidade da informação e osserviços oferecidos) e os dados real ou aparentemente subjetivos(noções de bem estar perspectivas para o futuro sentimento de

Do modelo econômico ao modelo cívico

A discussão que no Brasil se vem fazendo em funçãodas perspectivas da abertura política e da necessidade demudanças é canalizada com frequência para as questões daeconomia. Por exemplo, fala-se muito na mudança de modeloeconômico como a solução fundamental para as dificuldadesda nação, desde o pagamento da dívida externa e da dívidainterna, à retomada do crescimento e a redistribuição dasrendas pessoais e familiares. A convicção de que por aí

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alcançaremos os remédios para os males do país nem mesmoexige a explicitação do que se entende por mudança de modeloeconômico. Esta é apresentada como uma panaceia infalível,e tornada, assim, uma expressão miraculosa.

Insuficiência do modelo econômico, importânciado modelo cívico

Um modelo econômico, tomado isoladamente, e por melhor

que ele pareça, não bastará para que os grandes problemasda nação sejam solucionados. A sociedade é mais que aeconomia. Um modelo que apenas se ocupe da produção em simesma (ainda que as diversas instâncias produtivas estejamincluídas: circulação, dis tribuição, consumo), nem mesmopara a economia será operacional. A sociedade tambémé ideologia, cultura, religião, instituições e organizaçõesformais e informais, território, todas essas entidades sendoforças ati as O econômico pode parecer independente em

Modelo político e papel dos partidos

É do modelo político, considerado como abrangente de todas as ações sociais que se dão num território - e presidem às

relações desse território com o seu povo e com o resto do mundo- que se deveria ou poderia esperar um tratamento sintéticodessas variáveis interdependentes, com a formulação deprojetos de nação: tantos projetos quanto fossem os partidos. Ospartidos são, aqui, conside rados como aquilo que os define nas

democracias representativas, isto é, agrupamentos de pessoasque comungam as mesmas ideias básicas quanto ao futuro da

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nação. Esse ideário só é válido se as grandes problemáticasnacionais aparecem como um sistema coerente, baseado emuma mesma filosofia. Projetos isolados não definem um ideário,nem servem para identificar uma agremiação partidária dignadesse nome. A prova da correção de cada proposta separada ea segurança de sua exequibilidade vem, exatamente, do fato deque uma promessa não pode ser independente da outra (ou dasoutras), obrigando a uma estratégia de governo coerente quan-do o poder é alcançado. Um projeto partidário deve enunciar asrelações existentes entre as diversas propostas proclamadas edeixar evidente o calendário de sua implementação concomitante.Sem isso, os eleitores não têm, sequer, como cobrar fidelidadeaos elei tos, nem estes se obrigam a uma ação consequente. Todaforma de engodo se torna não apenas possível, mas é encorajada.

Nos países em que não há verdadeiros partidos, ou em queos partidos existentes não podem ou não querem se engajar,como é o caso do Brasil, a democracia possível pode ser louvada

ó

mesmas. Válidas por algum tempo, para alguns setores e atorese em alguns lugares, logo evidencia a sua incoerência, seja elaintrínseca, seja em função dos outros aspectos da vida social.Após festejar esta ou aquela medida, ou aplaudir tal ou qual

decisão, mais cedo ou mais tarde o país descobre que, em últimaanálise, não está sendo realmente governado.

Como a vida política mantém sua própria lógica e ospartidos - ainda que não sejam verdadeiros - são instituiçõesreais, insti tucionaliza-se um estado de coisas incapaz de levar

a mudanças positivas, já que a tão buscada representatividadese torna cada vez mais distante de ser atingida. O caso

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se torna cada vez mais distante de ser atingida. O casobrasileiro e típico. Pode-se dizer que, ao longo do século, e nãoapenas agora, o grau de cons ciência política da população e adiversidade de comportamento eleitoral no país como um todo,

mas também em cada Estado, região ou cidade, constituem umaespécie de embaraço ao surgimento de partidos claramenterepresentativos. Mas não será o contrário igualmente verdadeiro?Nos últimos decênios, o que se viu foi a criação deliberada departidos destinados a confundir a opinião pública, impedindo

a sua arregimentação em torno de ideários, tornando, dessemodo, difusos (e até mesmo confusos) o discurso político e arepresentação política. Tal como se encontra a organizaçãopartidária brasileira, cada eleição nos distancia ainda mais doideal republicano ou, pelo menos, não colabora na criação de

uma cidadania que, consciente dos seus direitos, forçasse o paísa um outro caminho partidário. Por isso acreditamos firmementeque o país apenas encontrará um remédio eficaz aos seus atuaisdesencontros a partir de um novo modelo cívico.

e a urbanização concentradora gerando metrópoles insanas.Sustentamos que tudo isso se deve em avantajada proporção,ao modelo de cidadania que adotamos. O hábito de tudo pensarem termos econômicos impede que o jogo de outras causas

seja levado em conta. O leitor deverá, pois, despir-se dospreconceitos aprendidos e mostrar tolerância para com outrosargumentos que, não sendo hegemônicos, devem merecerconsideração e debate.

A questão do salário-mínimo, por exemplo, vem sendo

 tratada como um problema contábil do interesse das firmas e jamais como o que deveria ser, isto é, um problema ligado à

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j q , , p gsobrevivência correta do trabalhador e sua família, uma questãode dignidade. O homem a quem se paga, sabidamente, muitomenos do que necessita para viver com um mínimo de decência

não é tratado pela sociedade como um verdadeiro cidadão. Seráum instrumento de trabalho, um parafuso em uma máquina, jamais uma criatura que pelo simples fato de viver é portadorade direitos.

Suprema irrisão: no Brasil todas as Constituições proclamam

que todo indivíduo tem direito ao trabalho e que ao trabalhadordeve ser pago um salário correto. A prática oposta não comove aninguém, salvo aos que carecem de força para fazer mudar essasituação aviltante. Direitos inalienáveis do homem são, também,entre outros, a educação, a saúde, a moradia, o lazer. Prover o

indivíduo dessas condições indispensáveis a uma vida sadia éum dever da sociedade e um direito do indivíduo.

Esses bens, públicos por definição, em nosso caso não o sãorealmente Para a maioria da população são bens públicos mas

deve a explosão urbana, pois é mais fácil consumir numa grandecidade que em uma pequena aglomeraçao.

A pura contemplação desse abandono a que submetemosdezenas de milhões de pessoas trata-se de crueldade inerenteao ser social brasileiro? Preferimos pensar que uma lógicaprópria à economização da vida social inclui o próprio homementre as mercadorias que são o seu entorno - e, ainda que nãopense proceder como coisa, tende a ver no outro não maisque uma coisa. É a base de uma verdadeira desculturização,

fenômeno corrosivo que acreditamos superficial e não profundo,passageiro e não permanente portanto reversível O fato é

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passageiro e não permanente, portanto reversível. O fato éque, por agora, exercita as suas consequências desastrosas,e são estas que contribuem para retardar o despertar dasconsciências e a rebelião.

Por um novo modelo cívico

Mudar o modelo econômico, ou o modelo político, tal comoé praticado, de nada valerá se um novo modelo cívico não se

instala.Utopia? O homem é multidimensional, e cada qual das suas

dimensões pode obter, de um modo relativamente autônomo,um movimento seu próprio. A consciência humana se alargaa partir de situações concretas adversas, ainda que essa

ampliação da consciência seja desigual, segundo os indivíduos.São os que avançam os que podem exercer uma liderança,ou pelo menos se colocar na dianteira das mudanças, ou dasideias de mudança e, portanto, mais perto do ideal de uma nova

pela ideia de valor, que permite o encontro com o fu turo. Aideia de recursos é restritiva e conduz às práxis repetitivas; aideia de valor alarga os horizontes, convoca a sensibilidade epermite o pensamento criador. A ideia de recursos se enraizou

numa sociedade empobrecida pelo economicismo como umveto formal a toda vontade de encontrar novas possibilidadese novas combinações. É o breviário do planejador medíocre ousubserviente, do administrador sem horizonte, a não filosofiada não mudança. Só a ideia de valor aponta para os princípios

definidores de uma ação redentora, indica uma racionalidadediferente rompida com a racionalidade do status quo. Um

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p qmodelo cívico, sobretudo em um país como o nosso - em quea figura do cidadão jamais teve apreço verdadeiro - exigirá,como premissa indispensável, essa coragem de ser que a nossa

civilização parece coibir e até proibir.

Subordinação do modelo econômico

Todo nosso esforço deve estar empenhado na codificação

desse modelo cívico, não mais subordinado ao modeloeconômico, como até agora se deu, mas um modelo cívico queoriente a ação política e alicerce a solidariedade social e aoqual o modelo econômico e todos os demais modelos sejamsubordinados.

A luta pela cidadania na Europa Ocidental e, mais tarde, nosEstados Unidos e em outros países, foi a batalha pela elaboraçãodesse modelo cívico pouco a pouco incorporado ao direito positivo.Sem dúvida, a história registra fases de eclipse ou desfalecimento

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as precondições de um Estado moderno, e a redução dasliberdades aparecia como justificativa para permitir um ritmomais acelerado das transformações. A eclosão da SegundaGuerra Mundial e o engajamento posterior do país no conflito,

ao lado dos aliados, em nome justamente da liberdade, arras touo Brasil ao movimento de redemocratização. A queda de Vargase a convocação de uma assembleia nacional constituinte desem-bocam na Carta Magna de 1946, uma lei maior já em busca damodernidade, restauradora dos direitos dos Estados e amplifica-

dora das prerrogativas municipais, agora amparadas por umamaior generosidade fiscal, com a redistribuição equitativa entretodos os m nicípios de ma parcela da arrecadação federal do

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 todos os municípios de uma parcela da arrecadação federal doimposto sobre a renda. É a esse estímulo que se deve a criaçãode centenas de novos municípios em todo o território nacional.

Era, também, um novo pacto territorial, fortalecedor da vidalocal, e que iria durar cerca de dezoito anos.

Modernização capitalista, construção de Brasília etc.

A construção de Brasília é a ocasião para que aconteça um

novo pacto territorial. Não se dirá que a obra monumental animadapela vontade férrea de Juscelino Kubitschek tenha sido encomen-dada para, deliberadamente, obter esse fim. Ela se inscreve emum movimento bem mais amplo, o da modernização de um país,cujo território devia se equipar de um modo adequado à enorme

mudança programada. Equipam-se alguns pontos privilegiadosdo território, mediante uma obra consciente de renovaçãourbana e o próprio território como um todo é chamado a ter maisfluidez. A passagem, no processo de evolução do capitalismo,

grandes investimentos em infraestrutura, que encurtam o tempodas informações e das viagens, e avantajam as atividades maisfamintas de espaço. Estas, que coincidem com os monopólios eos oligopólios, nacionais ou multinacionais, estendem a sua área

de mercado que, em muitos casos, confundir-se-á com os próprioslimites geográficos, facili tando a concentração econômica e aconcentração espacial, benefi ciando, assim, a indústria paulistae sua base territorial, que, en tão, era sobretudo a aglomeraçãopaulistana. A projetada descen tralização industrial, que iria

beneficiar o Estado de Minas Gerais, não reduziria a forçada indústria paulista, mas, ao contrário, iria reforçá-la, comofornecedora de um grande número de insumos O propósito de

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fornecedora de um grande número de insumos. O propósito delevar fábricas para Belo Horizonte e adjacências não conflitavacom os interesses paulistanos. Levadas as funções de ca pital

federal para Brasília, o Rio de Janeiro recebeu um grande dotedo governo central, recursos com os quais a cidade pôde empre-ender grandes obras de embelezamento e uma impressionanteremodelação do sistema viário, que aproximou os bairros“nobres” do centro dos negócios, revitalizando as funçõesurbanas hegemô nicas, às quais o encurtamento das distânciasoferecia melhores condições de rentabilidade. O tecido urbanodo Rio de Janeiro e também os de São Paulo e de Belo Horizontese adaptam às novas funções exigidas pelo novo estágio docapitalismo em que o país se incluía.

A essa ampliação da região polarizada, ou, para falar a lin-guagem científica da época, do centro do país, correspondemesforços paralelos para induzir ao crescimento econômico asregiões periféricas. É a fase da criação de verdadeiras entidades

mente diferentes de uma política econômica que necessitava,antes do mais, de uma política territorial.

Impasse, golpe de estado, modernização ampliada

A eclosão do movimento militar em 1964 corresponde aum impasse gerado entre a vocação modernizadora, que ogoverno Kubitschek simboliza, e as reivindicações populares.Mas sobretudo responde aos imperativos da participação doBrasil no bloco atlân tico da economia mundial. A necessidadede integrar ainda mais o país na Aliança Atlântica, integração tornada indispensável para a evolução desta última, estava a

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p p çexigir importantes transformações institucionais dentro doBrasil, direção para a qual não se encaminhavam nem o governoQuadros, nem, sobretudo, o governo João Goulart. A forma de

Estado necessária para que a integração reclamada tivesseêxito sugeria novos pactos, que deveriam ser outorgados semconsulta às forças vivas da nação e, muito menos, à populaçãocomo um todo. Apregoado como salvador das liberdadespúblicas, defensor dos interesses das classes médias e

candidato à redenção das massas oprimidas, o golpe de Estadode 1964 buscava a concentração de poder nas mãos do governocentral, de modo a facilitar a implementação dos investimentosnecessários a essa nova etapa da economia brasileira e de suaparticipação dependente na economia mundial capitalista;

e exigia a redução ou, mesmo, a eliminação dos direitos doscidadãos, de modo a que não pudesse haver protestos contramedidas que iriam se mostrar em desacordo com o interesse dasociedade nacional. A necessidade de mais concentração do

eram es colhidos segundo uma farsa eleitoral e nos principaismunicípios não havia nem mesmo essa farsa, pois os prefeitoseram, pura e simplesmente, nomeados nas grandes cidades enaquelas conside radas como de segurança nacional.

O fechamento provisório do Congresso, em 1977, para queo executivo impusesse uma mudança brutal na lei eleitoral como nascimento dos senadores biônicos, e a nova distribuição donúmero de cadeiras na Câmara Federal constituem, também, umnovo pacto territorial, na medida em que a representatividade

dos Estados e da população foi bruscamente alterada, a fim defacilitar ao governo a implementação de uma abertura política

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“lenta, gradual”, e hoje podemos dizer que incompleta. Aseleições de 1986, pela forma com que foi convocado um CongressoConstituinte, constituem um novo pacto territorial.

Pactos funcionais

Tais pactos territoriais têm sido uma peça indispensávelpara que a sociedade civil ganhe uma cara jurídica, a forma

como pode, legalmente, intervir no processo político-jurídico.Na verdade, tais pactos têm servido, com mais ou menosforça, para fazer abor tarem, na prática, os projetos da própriasociedade civil. Para isso, são mais frequentemente outorgadosdo que consentidos. Quando consentidos, a manifestação

desse consentimento é com frequência distorcida pela práticaenviesada da representação. E, em todos os casos, são pactosde natureza funcional e não estrutural. Pactos funcionaisinteressam a parcelas da população e a interesses localizados,

um pacto territorial estrutural, conjunto de propostas visandoa um uso do território coerente com um projeto de país e parteessencial desse projeto.

Tudo indica que vamos, uma vez mais, perder essa oportuni-

dade. Pacotes agrícolas, como uma reforma agrária indefinida ouum plano conjuntural de fomento à produção; pacotes urbanos,como a propositura de uma reforma urbana sem objetivo sistemá- tico; pacotes de transporte, que se apresentam desligados das ou- tras realidades geográficas; pacotes ecológicos, que não tomam

por base o fato produtivo e suas implicações regionais ou locais: sãoapenas pacotes, embriões de novos pactos territoriais funcionais,cujos desdobramentos por não manterem coerência entre si le

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cujos desdobramentos, por não manterem coerência entre si, le-varão à anulação recíproca dos resultados porventura obtidos e aofortalecimento das mazelas estruturais que dizem combater.

O território continua a ser usado como palco de açõesisoladas e no interesse conflitante de atores isolados.

Não há, desse modo, procura de uma verdadeira produtivi-dade espacial, entendida como forma de utilizar o território em umprocesso verdadeiramente redistributivo. Ao contrário, a instru-mentalização que é feita do espaço, com a utilização de recursoscoletivos, serve ao aumento de produtividades individuais e aoagravamento dos desequilíbrios, ainda que mascarada com asubstituição de um desequilíbrio por outro.

Dessa maneira instrumentalizado, o território é causa demaior desigualdade entre firmas, instituições e sobretudoentre os homens. Em lugar de se tornar o desejado instrumentode igualdade individual e de fortalecimento da cidadania, o

Estado, longo e curto prazos

No Estado moderno, os governos devem, em sua ação, levarem conta dois horizontes temporais: o do longo prazo e o do

curto prazo. O horizonte de longo prazo dá conta das grandesopções nacionais, os chamados grandes desígnios, que partemde uma vi são prospectiva do lugar a alcançar ou manter dentroda comuni dade internacional e do jogo de forças internamentedesejável, para que sejam atingidos os ideais proclamados de

liberdade, justiça e bem-estar para a população, do crescimentoeconômico adequado, da paz e do progresso sociais. Projetonacional e projeto internacional são interdependentes quando

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nacional e projeto internacional são interdependentes quandoo governo decide conduzir a nação a partir do princípio daautonomia nacional. Do contrário, quando é necessário ajustar

um ao outro, um dos dois se limita ao discurso e é o projetonacional interno que é amesquinhado, em benefício de umprojeto nacional externo, em cuja formulação tan tas vezescolaboram interesses de fora. A grande maioria dos países quehoje constituem a comunidade internacional vive no interior

desse drama, e alguns nem mesmo buscam, ainda que apenaspara uso público, justificativas para essa distorção.

O curto prazo

Quanto ao horizonte de curto prazo, é o da adaptação coti-

diana da dialética exposta acima, de modo a encontrar soluçõespara os inúmeros conflitos que aparecem, no domínio daeconomia, da sociedade, da cultura e da política, e eliminar osdesajustes que a implementação dos desígnios de longo prazo

o promotor da ótica de longo prazo. As forças armadas sãodefinidas como mantenedoras dos interesses permanentesda nação. A diferença entre regimes políticos pode, também,ser medida, sabendo-se quem define esses interesses

permanentes, se a nação, à qual, pelas autoridades civis,as forças armadas devem servir, se um projeto próprio dasforças armadas, sem consulta à nação. A Universidade, peloseu descompromisso com interesses, deveria se inscreverigualmente nessa área. Nem sempre o faz. Já os ministérios

econômicos e financeiros funcionam principalmente sob avisão do curto prazo, buscando as soluções para as questõesemergentes e os problemas do dia a dia.

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g p

Opções nacionais e organização territorial escalasgeográficas e horizontes temporais

Aparentemente, haveria também concordância entre escalasgeográficas de ação e horizontes temporais. O que se refere aoEs tado-nação caberia mais facilmente na ótica do longo prazo,num mundo internacionalizado, onde o êxito da ação de Estadose firmas depende, em grande parte, da possibilidade de avançar

no fu turo, para preparar e prever as ações necessárias. Já aosníveis de escala mais baixos, sobretudo o município, caberia aadministração do curto prazo, frequentemente confundido como cotidiano.

Trata-se de um equívoco. Há um cotidiano que se adaptaà lógica hegemônica dos propósitos do Estado e das grandesfirmas. Mas este é o cotidiano cego, preconceituoso, submissoà razão ins trumental, pela qual a individualidade murcha e a

convivência no lugar mesmo em que se vive. Essa consciênciado homem, que faz dele um verdadeiro cidadão ou nelealimenta a vontade de sê-lo, também faz parte dos desígniosfundamentais e do longo prazo, porque diz respeito à própria

essência humana.

Opções nacionais e organização territorial

As diversas escalas geográficas e os seus correspondentesníveis de governo abrigam princípios e projetos destinadosa se concre tizar no longo prazo e no curto prazo. Por isso, aorganização polí tica e a organização territorial da nação não

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podem ser consideradas como dados separados, mas devemser pensadas unitariamente, como uma organização  político-territorial que necessita ser idealizada para fornecer respostaadequada às grandes opções na cionais, tanto no plano externocomo no plano interior. Ao modelo cívico territorial estariamsubordinados todos os demais, a começar pelo próprio modeloeconômico, que, no Brasil moderno, tanto an terior à NovaRepública como agora, tiraniza os demais.

Território e cidadania

O valor do indivíduo depende, em larga escala, do lugar ondeestá, já o vimos. Em nosso país, o acesso aos bens e serviçosessenciais, públicos e até mesmo privados é tão diferencial e

Lugar e valor do indivíduo

Segundo Lösch (1954), “cada indivíduo defrontadiferenças geográficas particulares, cujo valor de controle é

mais finamente ligado à sua precisa localização do que seriaum qualquer planejamento (...)”, e desse modo “(...) se asdiferenças geográficas de preços tivessem que ser abalidasou, mesmo, congeladas, cedo elas teriam de ser substituídaspor uma planificação espacial compre ensiva, que deveriaenfrentar a enorme tarefa de levar em consideração os efeitosde milhares de localizações umas sobre as outras algo queapenas um jogo de preços em constante mudança foi ca paz de

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operar com sucesso por certo lapso de tempo” .

O que postulamos aqui é diferente. Não se trata de “igualar”

lugares por um jogo interminável de preços. Como o que acontecenum lugar influi sobre todos os demais, como a totalidade doslugares interage, o melhor, ainda uma vez, é agir sobre o queage sobre a totalidade dos lugares, isto é, a própria sociedadeconsiderada como um todo.

Para quem é real a rede urbana?

Na grande cidade, há cidadãos de diversas ordens ou classesdesde o que, farto de recursos, pode utilizar a metrópole toda,até o que, por falta de meios, somente a utiliza parcialmente,

f id d id d l l

fluxos em que, tornado mercadoria o trabalho dos outros se transforma, seja porque eles próprios tornados fluxos, podemsair à busca daqueles bens e serviços que de sejam e podemadquirir. Na outra extremidade, há os que nem podem levar

ao mercado o que produzem, que desconhecem o des tino quevai ter o resultado do seu próprio trabalho os que pobres derecursos, são prisioneiros do lugar, isto é, dos preços e dascarências locais. Para estes, a rede urbana é uma realidadeonírica, pertence ao domínio do sonho insatisfeito, embora

 também seja uma realidade objetiva.Para muitos, a rede urbana existente e a rede de serviços

correspondentes são apenas reais para os outros. Por isso são

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p p pcidadãos denominados incompletos.

As condições existentes nesta ou naquela região determinam

essa desigualdade no valor de cada pessoa, tais distorçõescontribuindo para que o homem passe literalmente a valer emfunção do lugar onde vive. Essas distorções devem ser corrigidasem nome da cidadania.

Localização, estado e mercadoA localização das pessoas no território é, na maioria das

vezes produto de uma combinação entre forças de mercadoe decisões de governo. Como o resultado é independente da

vontade dos indivíduos atingidos, frequentemente se fala demigrações forçadas pelas circunstâncias a que se alude acima.Isso equivale também a falar de localizações forçadas. Muitasdestas contribuem para aumentar a pobreza e não para a

legal - e mesmo constitucional - uma autêntica instrumentaçãodo território que a todos atribua, como direito indiscutível, todasaquelas prestações sociais indispensáveis a uma vida decente eque não podem ser objeto de compra e venda no mercado, mas

constituem um dever impostergável da sociedade como um todoe, neste caso, do Estado.

Adam Smith (1973, p. 113) já indicava para o Estado as ta-refas essenciais, que, ao seu ver, deveriam ser três: “primeiro,o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão

por parte de outras sociedades independentes; segundo, odever de pro teger, tanto quanto possível, cada membro dasociedade; e terceiro, o dever de realizar e manter certas obras

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; ,públicas e determinadas instituições públicas, as quais não secriam para servir aos inte resses individuais de um ou de poucos

indivíduos”. Esse programa mínimo, válido ainda hoje, não sepoderá exercitar sem a adequada consideração do território.

Fixos e fluxos

  O espaço é o maior conjunto de objetos existente. Se eleassocia o que, pela origem, tem idades diversas, tais coisassão todas, a cada momento, movidas e vivificadas por uma leiúnica, a lei do hoje, a que se submetem todas as relações sociais.Trata-se de uma grande lei dos movimentos de fundo, dadapelos modos de produção e seus momentos, responsável pelasmudanças grandes e gerais e pela criação de novos objetos,enquanto as relações que se estabelecem entre os homensatravés dos objetos novos e dos an tigos também se submetem

l i id d i d d d

encerram, a definição dos fluxos deriva da sua qualidade e doseu peso políticos. Tal oposição é necessária. Ela é, mesmo,indispensável, para distinguir entre o processo imediato daprodução, cuja definição é técnica, e as outras instâncias:

circulação, distribuição, consumo, cuja definição é cada vez maisdo domínio político.

Os   fixos  são econômicos, sociais, culturais, religiosos etc. Elessão, entre outros, pontos de serviço, pontos produtivos, casasde negócio, hospitais, casas de saúde, ambulatórios, escolas,

estádios, piscinas e outros lugares de lazer. Mas se queremosentender a cidade não apenas como um grande objeto, mascomo um modo de vida, há que distinguir entre os fixos públicos

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, q g pe os fixos privados. Estes são localizados segundo a lei da ofertae da procura, que regula também os preços a cobrar. Já os fixos

públicos se instalam segundo princípios sociais, e funcionamindependentemente das exigências do lucro.

Nos países capitalistas avançados, os serviços essenciaissão sobretudo, incumbência do poder público, e suadistribuição geográfica é consentânea com o provimento geral.

As distâncias porventura existentes são minimizadas por transportes escolares ou hospitalares gratuitos. Não se tratade salário indireto, pois tudo isso é devido a todos os cidadãos,com ou sem emprego, ricos ou pobres. Trata-se da busca deuma equidade social e territorial.

Outros países capitalistas como o Brasil ainda não quiseramdefinir o que são tais serviços, nem adotar um distributivismogeográfico que sirva de base à desejada justiça social.

 tais serviços deixam de se instalar. Se são frequentes as áleasclimáticas afetando a produção, e se esta é sujeita a uma variaçãoconjuntural de preços, o limiar exigido para criação desses fixosse distancia ainda mais. Por isso, certas áreas, muitas delas

sendo vastas, ficam desprovidas desses recursos essenciais.O raciocínio é válido tanto para os serviços quanto para os

bens; ele tanto é válido no campo como na periferia das cidades.

No território como um todo, nas cidades e, sobretudo,na grande cidade capitalista (São Paulo, Rio de Janeiro,Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e tantas outras),o número avultado e a extensão de movimentos diários se“organizam” na anarquia da produção capitalista segundo

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organizam na anarquia da produção capitalista, segundoa qual a localização de fixos de ordem econômica e socialestá subordinada à lei do lucro, muito mais que à eficiênciasocial. A distância entre a moradia dos pobres e seu lugarde trabalho tem a mesma explicação e o mesmo resul tado,do mesmo modo que a localização de atividades econômicascomplementares. Isso encarece os transportes urbanos e o custodas utilidades. No entanto, o poder público também colaborapara a supervalorização de certas áreas, para o melhor êxitoda especu lação, para a maior anarquia das localizações e dosfluxos, para o empobrecimento cumulativo das populações. Aoempobrecimento pela economia, isto é, pelo mercado, junta-seo empobrecimento pela má organização do território pelo poder

político.

Morar na periferia é se condenar duas vezes à pobreza.A pobreza gerada pelo modelo econômico, segmentador do

quais se tornam ainda mais pobres por terem de pagar o que,em condições democráticas normais, teria de lhe ser entreguegratuitamente pelo poder público.

“Bens e serviços públicos diferem dos bens e serviços

privados pelo fato de serem providos numa base de tudo-ou-nada e consumidos coletivamente, de tal maneira que maispara um consumidor não significa menos para um outro. Porexemplo, a limpeza de um pântano ou um projeto de controlede enchentes, quando comple tados, beneficiam a todos da

vizinhança. Uma previsão meteorológica, uma vez produzida,pode ser transmitida de boca em boca para outros usuários, semque isso represente um custo adicional. O próprio conhecimento

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pode ser um exemplo primeiro de bem público, desde que aspesquisas, os gastos de pesquisas necessários para produzi-lo

sejam feitos apenas uma vez, ao contrário dos bens de consumo,cujas unidades adicionais acrescem os custos de produção.” Estaé a definição de Emmanuel G. Mesthene (1970, PP.54-55), mas averdade é que muitos bens produzidos de forma pública e como dinheiro público são apropriados privativamente. Aliás, entreestes, certos já são produzidos para uso exclusivo de alguns. Oconhecimento científico cada vez mais se encontra nesse casoe, tomando um exemplo de Mesthene, o próprio uso das infor-mações meteorológicas pode servir a alguns e não a todos.

Cidadania e território

É impossível imaginar uma cidadania concreta que prescindado componente territorial. Vimos, já, que o valor do indivíduo de-pende do lugar em que está e que, desse modo, a igualdade dos

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Haveria, certamente, que compatibilizar as esferas do poderconcreto, segundo a sua área de ação e o grau de raridade dosbens e serviços a distribuir. A raridade, do ponto de vista social,não é um sinônimo da escassez ao alvedrio do mercado. Sua

definição viria, exatamente, da menor frequência da demanda,da desnecessidade de uma resposta imediata ou da naturezado próprio serviço, somente exequível em centros maiores, láonde outros serviços igualmente raros se instalam. Mesmo nocaso desses serviços mais raros, a política territorial deveriaprever que eles não faltassem a ninguém, quando necessários.Da mesma forma que não se justifica que um enfermo deixe deser tratado por não dispor de recursos financeiros, também éinadmissível que seja abandonado à sua sorte por motivos de

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inadmissível que seja abandonado à sua sorte por motivos dedistância. Esta teria de ser minimizada através de um serviçoeficaz de transportes, instalado adequadamente para dar

resposta às emergências.É evidente que tal programa se estenderia aos outros aspectos

da vida social e, mesmo, levaria em conta o funcionamento daeconomia, de modo que a complementaridade entre as áreasresultasse em benefício coletivo, graças a um sistema decomercialização e distribuição que assegurasse o abastecimentode todas as regiões do país, por mais distantes que estejamumas das outras as zonas de produção e as zonas de consumo.O que estamos sugerindo é a implantação de um verdadeiroplanejamento estratégico, onde as realidades locais sejam um

ponto de partida para o raciocínio dos administradores e não,apenas, o lugar de ações desencontradas e por isso mesmo,estruturalmente ineficazes.

uma tipologia de serviços a prover e de ações a desenvolver. Nãose pedirá aos ministérios federais que se ocupem da vigilâncianoturna dos bairros residenciais, nem dos municípios quediscutam as ques tões da soberania nacional ou da segurança do

 território. Mas, a cada nível de escala das ações - a ser objeto deuma definição adequada -, os recursos necessários ao exercícioefetivo das funções atribuídas devem ser inteiramente deferidosao escalão administra tivo correspondente, para que este possaelaborar um orçamento e um cronograma de gastos que atendam

cabalmente às tarefas previstas para esse dado nível de governo.O método das transferências, feitas segundo o critério exclusivodo poder concedente, não raro politiza a um nível indesejávelrelações que não deveriam ir além do âmbito administrativo A

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relações que não deveriam ir além do âmbito administrativo. Aação governamental daí resul tante é frequentemente responsávelpelas frustrações dos agentes econômicos e sociais, enquanto apopulação desatendida não tem a quem dirigir suas queixas.

Num país de enormes dimensões como é o nosso, onde asdiversidades regionais são numerosas e gritantes, nem o Estadofederal, nem mesmo os Estados federados podem atender

corretamente aos reclamos regionais da maneira unitária comoo fazem. No passado, a ação do Estado federado tanto podiaser pioneira quanto corretiva. Referimo-nos, aqui, à correçãodas consequências, nem sempre estimáveis, da ação mais geraldo governo federal ou da atividade local, mas distorcedora, de

uma grande empresa. A teia das variáveis regionais era bemmais simples e tais intervenções podiam ser eficazes. Hoje,cada sub-região oferece uma copiosa combinação de variáveis,cuja escala de ação nem sempre corresponde à do lugar. São

Federação. E exatamente naquelas onde a economia permaneceu tradicional é que o choque entre modernidade e arcaísmo se dácom maior força e com efeitos mais duros.

Nessa situação, as populações locais devem ter direito à pa-

lavra, não apenas como parcela viva da nação ou de um Estado,mas como membros ativos de uma realidade regional que lhes dizdiretamente respeito, e sobre a qual não dispõem de um recursoinstitucional para que a sua voz seja ouvida. Faltam às regiõescâmaras representativas regionais, cuja tarefa essencial seria

a de propor os modos próprios de regulação da vida regional,que é cada vez mais diferente dos demais subespaços. Graçasà amplitude das trocas e dos circuitos de cooperação, essa vida

i l d d di i à i t f ê i

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regional deve, cada vez menos, o seu dinamismo à interferênciadireta do Estado federado a que se liga. Não seriam, apenas, as

regiões metropolitanas a merecer as regalias de um nível própriode governo, mas todos os subespaços regionais. Resta, semdúvida, a questão da delimitação geográfica, da delimitação dascompetências e da natureza desse poder regional aqui proposto.Mas, aceito o princípio, os critérios para sua implementação

seriam encontrados a partir da própria realidade sócio-econômico-territorial do país e da natureza, mais abrangente, doregime político instalado, incluindo, necessariamente, o alcanceda cidadania como instituição.

Certamente o capítulo das autonomias municipais também

 teria de ser reescrito. Um certo raciocínio simplista, herdeiroda infância do municipalismo, ainda reclama a autonomiaancestral, porque, dizem os seus defensores, é histórica.Quando porém a vida municipal é intensamente imbricada à

O ente regional assim definido não é um meroajuntamento de municípios, por mais que estes sejam ligadosfuncionalmente. Trata-se de uma rede de solidariedades econflitos, surgidos em função do mesmo movimento da história

naquilo em que é abrangente, isto é, concernente ao conjunto.Nessas condições, desejar que o possível poder legislativoregional seja tirado das câmaras municipais compostopelos prefeitos, ou resultado de uma solução combinatória,é o mesmo que recusar existência real à novel região. Ao

município, segundo o esquema acima delineado, caberá o seulote de competências, correspondentes às relações que devemanter com os seus cidadãos.

O á f ã d iã i d

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Outra será a função da região e, por isso, outros devem seros seus eleitos. Nada impede, aliás, que um prefeito ou vereador

possa ter assento nos novos corpos constituídos, desde queeleito para isso, em eleição separada. O que deve ser evitadoé que sejam promovidos pelas próprias câmaras ou escolhidos,por direito original, a partir da cadeira do prefeito. Sem essaseparação de funções - que pode não consagrar a separação

das pessoas -, os organismos regionais não cumprirão as novasfunções para as quais devem ser criados.

A instrumentalidade dos limites

Tudo sendo dinâmico na vida social, os limites, as compe- tências territoriais podem ter em seu favor a tradição, masnão escapam à regra. Limites e competências administrativas,indicativos de níveis territoriais da ação pública, tudo isso é uma

No Brasil, o caso é frequente, e desse modo sedesmembraram Estados e municípios, para que se criassemnovas unidades de governo. Os objetivos perseguidos foram,em regra geral, muito parciais. Por exemplo, a criação das

regiões metropolitanas foi um desses arranjos geográficosdestinados a atribuir maior rentabilidade aos capitaisindividuais, sobretudo os capitais concentrados e novos e adar eficácia maior às tarefas correlatas de uma administraçãomodernizadora, compreensiva para com a necessidade de

formação local das condições gerais de trabalho, que essescapitais concentrados e novos exigem para sua instalaçãorentável.

E di i õ t it i i f dj ti d ti d

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Essas redivisões territoriais foram adjetivas, destinadasa melhorar esta ou aquela qualificação local, mas não

abrangentes ao social, não substantivas. A questão se inscrevena problemática mais ampla, que inclui a redemocratização dopaís, uma redemocratização não apenas eleitoral, ou mesmopolítica (ainda não atingidas), mas também econômica esocial. As soluções estão indissoluvelmente ligadas a uma

redefinição da ordem jurídica, econômica, fiscal e jurídicano âmbito da Federação e que atribuam novos conteúdosaos lugares. Não é suficiente cuidar, com exclusividade, dealterar as delimitações atuais e suas definições operacio nais,se não estivermos preocupados com o conteúdo a atribuir às

novas formas, desde a questão das competências legislativase do poder de decisão, até a disponibilidade real de recursosfinanceiros e legais, para dar a resposta imediata cabívela tudo o que for considerado direito inadiável de todos os

Geografização da cidadania

A geografização da cidadania supõe que se levem em contapelo menos dois tipos de franquias, a serem abertas a todos osindivíduos: os direitos territoriais e os direitos culturais, entre osquais o direito ao entorno.

Considerando o território como um conjunto de lugares eo espaço nacional como um conjunto de localizações (Santos,1985), temos que estas estarão sempre mudando, não obstante o

lugar fique o mesmo, em vista do constante rearranjo dos valoresatribuídos a cada lugar e às atividades e pessoas presentes.Nesse caso, urge que os processos corretivos sejam, também,permanentes, de modo a restabelecer os valores perdidos. A

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p , pdotação de recursos seria objeto de revisões constantes. Seriaa partir dessa premissa que a repartição territorial dos gastospúblicos seria estabelecida segundo re gras flexíveis, capazes decontemplar as diversas escalas geográficas da administração,dentro do objetivo redistributivista. Para cada esfera territorial,um conjunto de atribuições e de recursos capaz de assegurara cidadania em todos os seus níveis. A autonomia municipalseria redefinida, juntamente com a redefinição da alocação dosrecursos. A esse nível municipal deveria, por exemplo, caber umaautonomia de gastos em tudo o que tivesse relação com a vidacultural redefinida, para abranger todos os aspectos concernentesà realização de uma vida decente e digna para todos, naquilo

que dependa de soluções essenciais, imediatas, inadiáveis, aserem reclamadas dos poderes locais. Cultura, educação, saúde,moradia, transporte, atendimento às necessidades elementares,

í

país, graças a movimentos de fundo cuja matriz é o país comoum todo, cabendo à Federação fornecer os remédios aos malescriados no seu nível. Mas as metrópoles incidem sobre a vidaregional e estadual e são igualmente o quadro de uma vida local,

ainda que de um tipo particularmente complexo.A distribuição atual dos serviços está gritantemente em

desacordo com as exigências presentes das populações, mas também compromete o seu futuro. Para que esses serviçosconstituam um direito inseparável da condição do cidadão - isto

é, aquele que é igual em deveres e direitos a todos os demais -uma regulamentação constitucional, e não apenas legal, deve seimpor.

A C i i ã d á b l di õ

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A Constituição deverá estabelecer as condições para quecada pessoa venha a ser um cidadão integral e completo, seja

qual for o lugar em que se encontre. Para isso, deverá traçarnormas para que os bens públicos deixem de ser exclusividadedos mais bem localizados. O território, pela sua organização einstrumentação, deve ser usado como forma de se alcançar umprojeto social igualitário. A sociedade civil é, também, território,

e não se pode definir fora dele. Para ultrapassar a vaguidade doconceito e avançar da cidadania abstrata à cidadania concreta,a questão territorial não pode ser desprezada.

Há desigualdades sociais que são, em primeiro lugar, desi-gualdades territoriais, porque derivam do lugar onde cada qual seencontra. Seu tratamento não pode ser alheio às realidades terri- toriais. O cidadão é o indivíduo num lugar. A República somenteserá realmente democrática quando considerar todos os cidadãos

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defende mais o consumidor que, mesmo, o cidadão. O direitoà moradia se confunde com o direito de ser proprietário. Este termina imposto ideologicamente como o certo, como se fosseum objetivo do cidadão. A verdade, porém, é que ser dono de um

 terreno ou de uma casa nem mesmo assegura moradia estável.Os pobres que lutam desesperadamente para conquistar odireito à propriedade estão frequentemente mudando, dentro dacidade; são verdadeiros migrantes in traurbanos. Ser proprietárioé um elemento essencial na ideologia do consumidor.

A educação não tem como objeto real armar o cidadãopara uma guerra, a da competição com os demais. Suafinalidade, cada vez menos buscada e menos atingida, é ade formar gente capaz de se situar corretamente no mundo

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de formar gente capaz de se situar corretamente no mundoe de influir para que se aperfeiçoe a sociedade humana como

um todo. A educação feita mercadoria reproduz e ampliaas desigualdades, sem extirpar as mazelas da ignorância.Educação apenas para a produção setorial, educação apenasprofissional, educação apenas consumista, cria, afinal, gentedeseducada para a vida.

O título de eleitor é só um arremedo de cidadania. Quandoo sistema eleitoral impede que o voto seja representativo, nemse pode exigir que os partidos tenham projetos alternativosde nação nem que os candidatos o sejam por acreditar em umideário consequente. Votar passa a ser mais um ato de consumo

- o consumo do título de eleitor -, e não o exercício do direitode escolha de um futuro para seu país, sua região, seu lugar.Nestes, e em tantos outros casos, a satisfação imediata toma o

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bui para a formação de uma cidadania integral. A questão é muitobem colocada por H. Laborit (1974, p.16), quando escreve que sóa generalização da informação “pode dar ao cidadão a dimensãode um homem”. Para esse autor, “é importante mostrar a distinçãoentre a informação profissional, que inscreve o indivíduo em umprocesso produtivo, e a informação generalizada”. “(...) Esta nãoconcerne apenas aos fatos, mas às estruturas, às leis gerais quepermitem organizar esses fatos fora dos julgamentos de valor,dos automa tismos socioculturais, dos preconceitos, das moraise das éticas, os quais sempre são os dos mais fortes, capazes de

os impor pela po lícia, a guerra, as leis, o embrutecimento pelas mass media a alienação econômica, o obscurantismo afetivo, acegueira pela lógica da linguagem e, sobretudo, a gratificaçãohierárquica profissional.”

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hierárquica profissional.

No início da chamada Nova República, foi elaborado um pro- jeto de lei dispondo sobre o acesso dos cidadãos às informaçõesacumuladas pelo Estado, a começar pelas informações relativas acada um. Obter essa lei do Congresso ou, melhor ainda, inscreveresse princípio na Constituição seria, já, grande progresso no sen- tido, aliás, do que já foi feito nas principais democracias ociden-

 tais. Por outro lado, impõe-se uma nova maneira de transmitiras informações chamadas gerais, pelas quais o cidadão se situaem relação ao movimento da sociedade e do mundo e se tornacapaz de emitir um julgamento veraz, baseado no conhecimentodos fatos e não como agora, quando esses fatos já lhe chegam

incompletos e frequentemente deformados.Por outro lado, diz H. Karatsu (1970, p. 178), “os que recebem

a informação devem estar preparados. A maior parte da educaçãol é h j i t i d l h i t

de ser o que hoje ela é em nossa sociedade, “para que a escolaperca o seu papel atual de institucionalização perversa daquelesvalores que tornam o consumo obrigatório, estimulando umaperda progressiva da confiança em si mesmo e na comunidade”.

A educação deveria prover todas as pessoas com os meiosadequados para que sejam capazes de absorver e criticar ainformação recusando os seus vieses, reclamando contra asua fragmentação, exigindo que o noticiário de cada dia nãointerrompa a sequência dos eventos, de modo que o filme

do mundo esteja ao alcance de todos os homens. O morador-cidadão, e não o proprietário-consumidor, veria a cidade comoum todo, pedindo que a façam evoluir segundo um plano globale uma lista correspondente de prioridades, em vez de se tornar

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o egoísta local, defensor de interesses de bairro ou de rua, mais

condizentes com o direito fetichista da propriedade que com adignidade de viver. O eleitor teria sua individualidade liberada,para reclamar que, primeiro, o reconheçam como cidadão.

Numa sociedade em que a informação seja, de fato, sociali-zada, alcançaríamos aquele desígnio formulado por Nora e Minc

(1978, p. 123), isto é, a organização de um sistema de dadosconcernentes à vida social, “a partir do qual a estratégia docentro e os desejos da periferia possam encontrar um acordopelo qual a sociedade e o Estado não apenas se apoiem, masreciprocamente se produzam”. Somente a partir daí a construção

do cidadão poderia encontrar seu fundamento, e os diversosprojetos, hoje utópicos, se poderiam converter em realidade.

Do direito à cidade aos direitos territoriais

que um direito à ci dade, o que está em jogo é o direito a obterda sociedade aqueles bens e serviços mínimos, sem os quais aexistência não é digna. Esses bens e serviços constituem umencargo da sociedade, através das instâncias do governo, e sãodevidos a todos. Sem isso, não se dirá que existe o cidadão.

Todavia, nas circunstâncias atuais, o planejamento socialpar te de uma definição de recursos que é residual. Os reclamosde ordem social são atendidos com o que sobra de outrasprioridades, consideradas mais prioritárias e que, de maneira

geral, se incluem na órbita do econômico, do político, do militare do estratégico. Por isso, as somas devotadas à educação, àsaúde, à cultura, ao lazer estão sempre se reduzindo, enquantoaumentam as necessidades reais criadas pela pressão da

d id d O lt d ã défi it t

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modernidade. O resultado são os déficits permanentes ecrescentes nessas áreas.

O raciocínio tem de ser invertido. Devemos não mais partirdessa alocação enviesada dos recursos, mas de uma explícitadefinição da cidadania concreta, ou, em outras palavras, da listaefe tiva dos direitos que constituem essa cidadania e poderão ser

reclamados por qualquer indivíduo.O atraso quanto à dotação desses bens e serviços é escandalo-

samente grande. R. Guidicci os denomina de “terciários sociais”,denominação que, aliás, não exclui outras.

Para R. Guidicci (1980, p. 160), “o terciário social deveriacompreender os setores de pesquisa, de instrução em todos osníveis, de saúde, de assistência, de cultura, de turismo e de lazeretc. (...), de habitação e de administração democrática”.

fixos sociais ajudaria a mudar, em breve espaço de tempo, ascondições gerais de vida do povo brasileiro em seu conjunto.

Por isso, não devemos imaginar que o problema se resolva deuma noite para o dia. Também não se deve prometer vagamente

a atribuição de tais recursos sociais indispensáveis. O que seimpõe é, como dissemos, uma listagem consequente do que háa fazer, para que toda a população seja atendida e, a partir doque exige até hoje, estabelecer regiões e estratos sociais, umprograma credível e um cronograma de ações. A acessibilidade

compulsória aos bens e serviço sociais seria uma parteobrigatória dos diversos projetos nacionais. É nessas condiçõesque participariam dos programas partidários, os quais seriam,entretanto, diferentes, até mesmo divergentes, em função daprópria listagem (declarando o que cada qual considera como

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própria listagem (declarando o que cada qual considera comoum dever social), da ordem de atendimento e tempo necessário

à cobertura dos déficits encontrados e da forma como adistribuição se faria entre as regiões e entre as classes so ciais.Os partidos se distinguiriam também pela sua definição doque deve ser considerado como pobreza, do aporte do Estadoà sua eliminação, do tempo a utilizar para que tal pobreza seja

eliminada ou atenuada. Sem isso, ficará difícil, senão impossível,aos cidadãos, segundo sua localização e sua renda, reclamar dafacção no poder o cumprimento da promessa. Sem a possibilidadede cobrar dos eleitos realizações prometidas, a figura do cidadãoverdadeiro é inexistente. Se a proposta aqui feita vingasse, a

vida política ganharia, destarte, uma nova dimensão.Por um discurso territorial competente

Enquanto isso o discurso novo do planejamento novo mas

As pessoas a quem o planejamento se destina raramente têm acesso aos documentos finais, e ainda muito menos aosdocumentos de base. Nas circunstâncias atuais, nada é maisdifícil ao comum dos mortais que poder consultar ou mesmo veras informações que serviram de fundamento à redação do quedepois será apresentado como projeto ou plano. Estes, na maiorparte das vezes, são, na verdade, muito mais uma operação de maquillage, destinada a esconder propostas de ação setorial,substitutivas do plano global que as populações estão no direitode reclamar e de ter. A indústria dos Planos Diretores por vezes

constitui uma resposta à ingenuidade de administradoresbisonhos ou mal preparados; mas, frequente mente é umaempulhação pura e simples. No caso das metrópoles, a publicaçãode Planos Diretores municipais para os municípios da capital

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p p p pconstitui, por definição, um disparate, na medida em que um

planejamento eficaz teria de tratar do fenômeno global, que é aprópria região metropolitana, e não uma de suas partes, aindaque a mais importante.

Vemos, desse modo, que assim como nos falta um verdadeirodiscurso cívico, de que a arenga eleitoral é somente um arremedo,

falta-nos, e muito mais, um discurso territorial, do qual o plane- jamento regional e urbano constitui uma caricatura.

Há, sem dúvida, um discurso do rural, e a pregação e os ava- tares da reforma agrária são a prova. O homem que trabalha nocampo, seja o servo da gleba, seja o boia-fria vivendo na cidade,reconhece sem dificuldade o seu laço direto com a propriedadee o proprietário, numa relação de trabalho desigual. A terra, seumeio de trabalho, também lhe ensina a injustiça de sua situação,

e partidos possibilitam um desarmamento efetivo e não umaarregimentação consequente.

Trata-se de um slogan ou de uma postulação? Para permitir umdebate sisudo, esta teria de se inscrever num ou vários projetos

globais do país, tal como se devia esperar de partidos orgânicos.À falta de tais projetos, a campanha pela reforma agrária traz,

em si mesma, pela sua inorganicidade, a condição do seu próprioempobrecimento, a diminuição de sua força, e, num âmbito maislargo, a semente do retrocesso político. Mesmo assim, dela não

se dirá que não tenha efeitos ao nível da conscientização.Já na cidade, onde a socialização capitalista é de regra,

onde a cooperação entre todos é guerra de todos contra todos,quem realmente se opõe ao trabalhador como portador de

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quem, realmente, se opõe ao trabalhador como portador degrilhões? A sensibilidade da relação de oposição entre o lavradore a terra, entre o lavrador e o proprietário, não se repete na cidade.O meio de trabalho não é um pedaço tangível de gleba, mas acidade toda e não apenas a fábrica ou o escritório ou o lugarde residência. Isso dilui a percepção da contradição, ainda quea cidade seja um espaço revelador. Cada qual se compreendeexplorado, mas a elaboração do seu discurso emancipador é bemmais árdua do que no campo. Centro da ação contraditória dehostilidades tão diversas, joguete de vetores cuja cara não veeme cuja ação não podem interpretar diretamente, os cidadãos seatordoam em sua luta, frequentemente errando de alvo e, desse

modo, despendem energias que, em outras condições, teriamresultados mais eficazes.

Falta o discurso coerente da cidade, pois o discurso

homem urbano em instrumento de trabalho e não mais em sujeito.Entretanto, todos os dados estão praticamente em nossas mãos,para tentar reverter a situação.

“Trabalhamos, porém, com o que pensamos ser a liberdade e

não o é, daí a dificuldade para ‘ver’ o futuro e enxergar novas so-luções. De fato, nada é, realmente, impossível, e a impossibilidadesomente pode ser declarada após o fato.” (Marcuse, 1970, p. 63)

Ficar prisioneiro do presente ou do passado é a melhor ma-neira para não fazer aquele passo adiante, sem o qual nenhum

povo se encontra com o futuro.

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