livro - falácias e mitos do desenvolvimento social

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Bernardo Kliksberg

FALCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIALTraduo: Sandra Trabucco Valenzuela

FALCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Bernardo Kliksberg Capa: Edson Fogaa Preparao de originais: Carmen Tereza da Costa Reviso: Maria de Lourdes de Almeida Composio: Dany Editora Ltda. Coordenao editorial: Danilo A. Q. Morales

ISBN: 85-249-0823-8Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorizao expressa do autor e do editor. by Autor Direitos para esta edio CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 Perdizes 05009-000 So Paulo-SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 e-mail: [email protected] www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil novembro de 2001

SUMRIOPrlogo de Jorge Werthein (Unesco) .................................................. Introduo .........................................................................................CAPTULO 1

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Dez falcias sobre os problemas sociais da Amrica Latina ........... 13CAPTULO 2

Confrontando as realidades da Amrica Latina: pobreza, desigualdade e deteriorao da famlia............................................ 47CAPTULO 3

Como reformar o Estado para enfrentar os desafios sociais do sculo XXI? ....................................................................................... 69CAPTULO 4

Capital social e cultura. Chaves esquecidas do desenvolvimento . 105CAPTULO 5

tica e economia. A relao esquecida ............................................ 149CAPTULO 6

O crescimento da criminalidade na Amrica Latina: um tema urgente ............................................................................................... 157 Bibliografia ........................................................................................ 167

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PRLOGOEste o quarto livro de Bernardo Kliksberg que a UNESCO edita no Brasil, o que permite conferir-lhe crescente credibilidade e respeito. De fato, seus estudos, reflexes e propostas sobre polticas de desenvolvimento social em geral e, de forma mais especfica, sobre a situao social da Amrica Latina tm despertado o mais vivo interesse do pblico e dos especialistas e estudiosos na rea de polticas pblicas. Esse xito crescente se deve em grande parte viso prospectiva de suas idias e solidez de suas teses que se apiam em bases tericas de qualidade inquestionvel, em farta documentao e evidncias recolhidas de inmeras experincias em curso. No apenas isso. Os estudos de Kliksberg tm a vantagem de indicar caminhos e explorar possibilidades e alternativas com vistas reduo dos ndices de pobreza na Amrica Latina. Neste livro esto inseridos seis estudos recentes de Bernardo Kliksberg Dez Falcias sobre os Problemas Sociais da Amrica Latina; Confrontando as Realidades da Amrica Latina: pobreza, desigualdade e deteriorao da famlia; Crescimento da Criminalidade na Amrica Latina; Capital Social e Cultura; tica e Economia e Como Reformar o Estado para Enfrentar os Desafios Sociais do Sculo XXI. Em todos eles, sobressai o ethos da reduo da pobreza que constitui um dos principais eixos norteadores da obra de Kliksberg. Da a sua insistncia em desfazer mitos e equvocos e de alertar sobre as conseqncias de abordagens ortodoxas do pensamento econmico. No primeiro estudo, sobre as falcias do desenvolvimento, Kliksberg, com rara clareza, desfaz mitos e equvocos da ortodoxia econmica, contrapondo argumentos e indicando alternativas; no segundo, apon-

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ta as conseqncias do modelo vigente no processo de deteriorao da famlia; em seguida, chama a ateno para o crescimento da criminalidade e da violncia, mostrando a coincidncia entre a evoluo dos ndices de violncia e a deteriorao dos dados sociais bsicos, em que pese outros fatores que devem tambm ser considerados; no quarto estudo, discute a importncia do capital social e cultural das comunidades como condio imprescindvel para o sucesso de projetos de desenvolvimento; no artigo seguinte, examina as relaes entre tica e economia, alertando como o problema da tica e da moral tem sido negligenciado no planejamento das polticas econmicas da Amrica Latina; e no ltimo, procura repensar o papel do Estado, de forma a prepar-lo para enfrentar os desafios mais urgentes do desenvolvimento social e econmico. So seis estudos indispensveis para a redefinio das polticas sociais pblicas na Amrica Latina. Se esta redefinio no se operar nos prximos anos, seguramente a incerteza em relao ao futuro se ampliar e colocar em risco aspiraes e ideais de grande legitimidade popular. Como diz Kliksberg no incio do artigo sobre as falcias do desenvolvimento, hora de ouvir as pessoas. No se pode mais pensar em polticas pblicas sem considerar a dimenso subjetiva, sem a conscincia de que todos devem e podem participar, pois a essncia de uma poltica de desenvolvimento a melhoria da qualidade de vida. Jorge Werthein Diretor da UNESCO no Brasil

INTRODUO

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INTRODUOAs cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois latino-americanos est abaixo da linha de pobreza. A situao das crianas ainda pior: seis de cada dez so pobres. Os jovens se encontram numa situao difcil. A taxa de desemprego juvenil duplica a elevada taxa de desemprego geral, superando em muitos pases os 20%. Apenas um de cada trs jovens cursa o ensino mdio (contra quatro de cada cinco no sudeste asitico). Formou-se um vastssimo contingente de jovens que tiveram de abandonar seus estudos mas que tambm no tm lugar no mercado de trabalho. Os problemas de sade so delicados. Um tero da populao da regio carece de gua potvel, condio preventiva bsica. Tambm h srios dficits quanto aos sistemas de esgoto. Cerca de 18% dos partos so realizados sem assistncia mdica de qualquer tipo. A taxa de mortalidade materna cinco vezes a dos pases desenvolvidos. Sob o embate da pobreza, as famlias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. quase seis vezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade moderada. Surge intensamente ligada a fatores como o aumento do desemprego juvenil, baixa educao, e deteriorao da famlia. A tudo isso soma-se a expanso rpida de um novo tipo de pobreza, amplos setores das classes mdias sofreram uma queda socioeconmica pronunciada e constituem os chamados novos pobres. Assim, entre outros casos, na Argentina, que contava com uma grande classe mdia, estima-se que sete milhes de pessoas dos estratos mdios se transformaram em pobres na dcada de 90 (por 38 milhes de habitantes), e processos similares se observam em muitos outros pases. Estes dados significam sofrimento humano em grandes propores. O documento base da Reunio de Bispos Catlicos de todo o Con-

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tinente (XXVIII Assemblia do CELAM, maio de 2001) ressalta a crescente pauperizao que est se abatendo sobre a maioria da populao em todos os povos em que ns vivemos. Destaca entre suas causas os efeitos da globalizao econmica descontrolada e o crescente endividamento externo e interno, com cargas que em vrios pases superam atualmente um tero de seu Produto Interno Bruto. O que est acontecendo? Por que no se cumpriram os prognsticos feitos no incio dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certas polticas, os resultados econmicos e sociais estavam assegurados? O que fracassou? Por que um Continente com recursos naturais privilegiados, com fontes de energia baratas e acessveis em grande quantidade, com grandes capacidades de produo agropecuria, com uma tima localizao geoeconmica, e que tinha um bom desenvolvimento educativo h dcadas atrs, tem indicadores sociais to pobres? Por que, ainda, uma dimenso que todas as anlises coincidem em assinalar como grande entrave para o progresso da regio, seus altos nveis de desigualdade, em vez de melhorar, piorou, constituindo-se a Amrica Latina na zona mais polarizada do planeta? O pensamento convencional parece ter esgotado sua possibilidade de dar respostas a interrogaes como as indicadas. Faz-se necessrio recuperar o que foi uma das maiores tradies deste Continente, a capacidade de pensar de forma criativa e por conta prpria, aprendendo da realidade e buscando caminhos novos. Esta obra tenta estimular e contribuir para uma discusso desse tipo. Se sairmos dos mbitos de anlise estticos, que esto gerando permanentemente polticas que so mais do mesmo, e que, por extenso, no resolvem os problemas, possvel que surjam vias renovadoras. O livro apresentado percorre cinco momentos de anlise diferenciados. No primeiro, colocam-se em foco dez falcias que hoje impedem um pensamento independente criativo em matria de desenvolvimento na Amrica Latina e tm srias conseqncias sobre as polticas pblicas. No segundo, examina-se um plano da difcil situao da populao: os impactos que a pobreza est tendo sobre a famlia. No terceiro e no quarto, examinam-se as possibilidades de respostas inovadoras nos dois campos: a reforma do Estado e das polticas sociais, bem como o papel que pode desempenhar a sociedade civil, se mobilizar o grande capital social latente na regio, e se potencializar sua cultura. Finalmente, o ltimo momento est dedicado necessidade de tornar a

INTRODUO

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refletir sobre os vnculos entre tica e economia, que foram marginalizados nas ltimas dcadas. Trata-se, atravs destas abordagens, de mostrar a necessidade de incorporar novas dimenses ao debate sobre o desenvolvimento para melhorar sua qualidade e poder fazer emergir polticas muito mais efetivas em termos da meta final de sociedades democrticas: a dignidade e desenvolvimento de seus povos. Os erros cometidos em termos de mbitos conceituais desmentidos pela realidade, polticas baseadas neles que demonstraram ser incompetentes para o bem-estar humano e para o crescimento econmico sustentado, e um dogmatismo agudo que impediu o arrazoamento autocrtico tiveram custos muito fortes para a populao. hora de repensar coletivamente o desenvolvimento, de forma aberta, sem falcias, mitos nem tabus. Isso uma exigncia que dia a dia, nas ruas, dos mltiplos rostos da dura pobreza latino-americana: as crianas de rua, as crianas que trabalham, as mes humildes que ficaram sozinhas frente do lar, os jovens sem oportunidades de trabalho, os indgenas e populaes afro-americanas discriminadas, os deficientes semi-abandonados, os idosos desprotegidos. Ouamos seu clamor e vamos tentar, todos juntos, o quanto antes, devolver-lhes a esperana. Bernardo Kliksberg

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Captulo 1 DEZ FALCIAS SOBRE OS PROBLEMAS SOCIAIS DA AMRICA LATINAHora de ouvir as pessoas O que os latino-americanos pensam sobre o que est acontecendo na regio? Ao serem questionados sobre algo to concreto como se eles acreditavam estar vivendo melhor ou pior que seus pais, apenas 17% afirmaram que viviam melhor, pois a grande maioria sentia que sua situao havia piorado (Latn Barmetro, 1999). Esta resposta evidencia um profundo sentimento de descontentamento. A maioria tem muito claro no continente quais so as causas de sua inconformidade. Encontram-se bem conscientes delas. E distinguem perfeitamente causas aparentes de outras mais profundas. Ao serem interrogados sobre se crem que a democracia prefervel a qualquer outro sistema de governo, demonstram um apoio macio ao sistema democrtico e a seus ideais. Dois teros preferem-no, e apenas 20% continuam exibindo inclinaes ao autoritarismo. No entanto, quando se aprofunda, expressam que esto fortemente insatisfeitos com o modo como a democracia est funcionando em seus pases. Somente 35% esto satisfeitos com seu funcionamento. Na Unio Europia, apenas para efeito de comparao, a cifra de 47%, na Dinamarca de 84%. Os latino-americanos escolheram a democracia como forma de vida e a respaldam de forma consistente, porm democraticamente esto bastante descontentes com seu desempenho concreto.

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Entre as causas de insatisfao, algumas so polticas, mas as econmico-sociais tm um peso decisivo. A grande maioria considera que os problemas vinculados com a pobreza vm piorando. Referem-se a carncias em oportunidades de trabalho, acesso sade, educao de boa qualidade, incerteza trabalhista, baixos salrios. Acrescentam a isso temas como o agravamento da corrupo, a delinqncia e o trfico de drogas. Alm disso, revelam que sentem ser esta uma regio onde h grandes desigualdades e se ressentem agudamente dessa situao. Os dois nicos pases cujas mdias de satisfao com o desempenho do sistema democrtico revelam-se maiores que as da Unio Europia so Costa Rica e Uruguai, onde mais de 60% da populao mostrase satisfeita com seu funcionamento. Ambos os pases se caracterizam por possuir os mais baixos nveis de desigualdade de toda a regio e por terem desenvolvido alguns dos mais avanados sistemas de proteo social da mesma. As pesquisas refletem que a populao est clamando por mudanas, atravs da democracia e no por outro meio, que permitam enfrentar os agudos problemas sociais. Os avanos nesse caminho parecem encontrar obstculos formidveis na regio, a julgar-se pelos limitados resultados alcanados. Alguns tm a ver com a existncia de fortes interesses criados e de privilgios que se beneficiam da manuteno da situao vigente. Outros, com dificuldades derivadas da insero econmica da regio na nova economia internacional. Outros, ainda, com o funcionamento defeituoso de instituies e organizaes bsicas. A estes e aos demais que podem ser acrescentados, soma-se a circulao profusa de certas falcias sobre os problemas sociais que levam adoo de polticas errneas e a empreender caminhos que afastam a sada do longo tnel ao qual se submete boa parte da populao. No so o nico fator de atraso, mas claramente seu peso muito forte em setores com muita influncia na tomada de decises obstrui seriamente a busca de alternativas renovadoras e a passagem para uma nova gerao de polticas econmicas e sociais. O objetivo deste trabalho chamar a ateno sobre estas falcias, para estimular a discusso ampla e aberta sobre as mesmas, visando a sua superao. Apresentamos a seguir algumas das principais, ao mesmo tempo que procedemos anlise de alguns de seus efeitos no desenho de polticas e examinamos sua consistncia. Trata-se, sobretudo, de buscar coloc-las em foco e convidar uma reflexo coletiva sobre elas.

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1. Primeira falcia: a negao ou a minimizao da pobreza Existe uma intensa discusso metodolgica sobre como medir a pobreza na regio. Entretanto, apesar dos resultados diversos que surgem de diferentes medies, os estudos tendem a coincidir em dois aspectos centrais: a) as cifras de populao localizada sob a linha de pobreza so muito elevadas; b) h uma tendncia consistente ao crescimento das referidas cifras nos ltimos vinte anos. As cifras se deterioraram severamente nos anos 1980, melhoraram discretamente em parte dos ano 1990, porm nos anos finais da dcada aumentaram significativamente. Em seu conjunto, a pobreza maior no ano 2000 do que a que a regio apresentava em 1980, tanto em termos de nmero de pobres, como no percentual que representam os pobres sobre a populao total. A Cepal estima, em seu Panorama Social de Amrica Latina 2000, que a populao em situao de pobreza cresceu, de 1997 at incio de 2000, de 204 milhes a no menos de 220 milhes. Analisando a estrutura da fora de trabalho em oito pases da regio que compreendem 75% de sua populao total (Brasil, Chile, Colmbia, Costa Rica, El Salvador, Mxico, Panam e Venezuela), a Cepal constata que 75% da populao que possui ocupao recebe uma renda mdia que na maioria dos pases no suficiente por si s para tirar da pobreza uma famlia de tamanho e composio tpica. A evoluo da pobreza na Amrica Latina foi a seguinte, conforme cita o BID (1998):Grfico 1 Evoluo da pobreza na Amrica Latina 1970-1995160 150 140 130 120 110 100 90 80 70 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994

Fonte: BID, Informe de progresso econmico e social, 1998. Nota: Linha de pobreza de 2 (ppp ajustado) em dlares de 1985 per capita.

Milhes de pessoas

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Como se pode observar, a partir dos anos 1980 se produz uma firme elevao do nmero de pessoas que ganham menos de dois dlares dirios. Verrier (1999) assinala que em toda a Amrica havia, entre 1970 e 1980, 50 milhes de pobres e indigentes, mas que em 1998 j eram 192 milhes. A Comisso Latino-Americana e do Caribe para o Desenvolvimento Social, presidida por Patricio Aylwin (1995), considera que se encontra em situao de pobreza quase a metade dos habitantes da Amrica Latina e do Caribe. Diversas medies nacionais assinalam com as diferenas prprias de cada realidade a extenso e a profundidade da pobreza. Um informe detalhado sobre a Amrica Central (PNUD/Unio Europia, 1999) indica que so pobres: 65% dos guatemaltecos, 73% dos hondurenhos, 68% dos nicaragenses e 53% dos salvadorenhos. As cifras relativas populao indgena so ainda piores. Na Guatemala, esto abaixo da linha de pobreza 86% da populao indgena frente a 54% dos no-indgenas. Na Venezuela, estimava-se a pobreza entre 70% e 80% da populao. No Equador, 62,5%. No Brasil, estima-se que 43,5% da populao ganha menos de dois dlares dirios e que 40 milhes de pessoas vivem na pobreza absoluta. Ainda em pases onde tradicionalmente as cifras de pobreza tm sido baixas, como na Argentina, o Banco Mundial estimou que encontra-se na pobreza quase um tero da populao e 45% das crianas. Nas provncias mais pobres como as do nordeste, a taxa de 48,8%. Um dos tantos indicadores do grau de rigidez da pobreza latinoamericana proporcionado pelas projees sobre nveis de educao e renda. A Cepal (2000), baseando-se base nelas, afirma que dez anos de escolaridade parecem constituir o umbral mnimo para que a educao possa cumprir um papel significativo na reduo da pobreza; com um nvel educativo inferior a dez anos de escolaridade e sem ativos produtivos, so muito poucas as probabilidades de superar os nveis inferiores de renda ocupacional. A mdia de escolaridade na regio estimada em 5,2 anos, virtualmente a metade do mnimo necessrio para se ter condies de emergir da pobreza. Diante dessas realidades, a alternativa lgica partir delas e tratar de encontrar vias inovadoras para enfrent-las. Entretanto, no discurso pblico latino-americano das duas ltimas dcadas, reiterou-se a tendncia de alguns setores a optar por outra via, a negao ou minimizao do problema. A falcia funciona atravs de diversos canais. Um deles a relativizao da situao. Pobres h em todos os lugares, costuma

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afirmar um mandatrio de um pas latino-americano frente ao crescimento das cifras de pobreza em seu pas durante sua gesto governamental. Em relao ao aspecto econmico-social, o conveniente sempre desagregar os dados e ter uma perspectiva comparada e histrica para saber qual a situao real. Os pases desenvolvidos tm efetivamente tambm percentuais de populao situados abaixo da linha de pobreza. Porm, h vrias diferenas. Por um lado, as cifras diferem de modo bastante acentuado. A populao pobre nesses pases normalmente inferior a 15%. muito diferente possuir entre um sexto e um stimo da populao em situao de pobreza e ter quase a metade nesse estado. No apenas uma diferena quantitativa, outra escala que implica considerveis diferenas qualitativas. Nos pases desenvolvidos fala-se de ilhas de pobreza, ou de focos de pobreza. Em vastas reas da Amrica Latina muito difcil refletir a realidade com essa linguagem. A pobreza extensa, diversificada, e tem atualmente inclusive uma forte expresso nas classes mdias, em que a deteriorao de suas bases econmicas gerou um estrato social em crescimento denominado os novos pobres. No h focos de pobreza a erradicar, mas um problema muito mais amplo e generalizado que requer estratgias globais. Por outro lado, a comparao estrita poderia levar a identificar que a brecha ainda muito maior. As linhas de pobreza utilizadas nos pases desenvolvidos so muito mais altas que as empregadas normalmente na Amrica Latina. Assim, a difundida tendncia a medir a pobreza considerando pobres aqueles que ganham menos de dois dlares por dia bem questionvel. Em todos os pases da regio, a linha de pobreza est muito acima dessa cifra. Outra passagem usual do discurso negador a afirmao de que pobres existiram sempre, portanto no se entende por que tanta nfase em relao situao atual. Ali a falcia adquire o tom da historicidade. Um dos arrazoamentos mais utilizados quando se trata de relativizar um problema grave tirar-lhe a base histrica. A pobreza existiu na Amrica Latina desde a sua origem, mas o tema : quais so as tendncias presentes? Em que direo apontam, esto diminuindo, estancando ou aumentando? Nos ltimos vinte anos parecem haver suficientes evidncias para preocupar-se. Os indicadores experimentaram uma deteriorao; com altos e baixos e variaes nacional, as cifras cresceram. So muito poucos os casos em que houve redues considerveis.

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A falcia de desconhecer ou relativizar a pobreza no incua. Tem severas conseqncias em termos de polticas pblicas. Se h pobres em todos os lugares, e sempre existiram, por que dar ao tema to alta prioridade? H que atenuar os impactos, mas no assustar-se. Basta com polticas de conteno de rotina. A poltica social no a mais importante. uma carga da qual no possvel desprender-se, mas como se trata de enfrentar um problema que sempre existir e todos os pases o tm, preciso cuidado com superestim-lo. O enfoque conduz a polticas sociais de muito baixo perfil e a uma desierarquizao de toda a rea social. Em algumas das expresses mais extremas da falcia, procurou-se na dcada passada eliminar das agendas de reunies importantes a pobreza, vendo-a, j em si, como demasiadamente carregada de conotaes. Alm de conduzir a polticas absolutamente incapazes de enfrentar as realidades de pobreza, a falcia exposta entranha um importante problema tico. No s no oferece solues aos pobres, o que leva perdurao e acentuao de situaes de excluso humana antiticas, que vai ainda mais longe, atravs da minimizao e relativizao, est questionando a prpria existncia do pobre. 2. Segunda falcia: a falcia da pacincia Com freqncia, o arrazoamento explcito ou implcito que se desenvolve diante dos problemas sociais por parte de setores influentes gira em torno da necessidade de uma certa pacincia histrica. Tratase de etapas que devem suceder-se umas s outras. Haver uma etapa de apertar os cintos, mas logo vir a reativao e, posteriormente, ela se derramar aos desfavorecidos e os retirar da pobreza. O social deve esperar, e preciso entender o processo e ter pacincia enquanto as etapas ocorrem. Independentemente do amplo questionamento que h hoje, sobretudo esta viso do processo de desenvolvimento, queremos enfatizar aqui um de seus elementos. A mensagem que est sendo enviada de fato que a pobreza pode esperar. Realmente pode esperar? A realidade indica que a mensagem tem uma falha de fundo; em muitos casos, os danos causados pela espera so simplesmente irreversveis, depois no haver conserto possvel. Vejamos: uma boa parte do peso da pobreza recai na Amrica Latina sobre as crianas e adolescentes. Em 1997, segundo a Cepal (2000), 58% das crianas menores de cinco anos da regio eram pobres, o mes-

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mo acontecia com 57% das crianas de seis a doze anos, e com 47% dos adolescentes de 13 a 19 anos. Formando os menores de vinte anos, em seu conjunto, 44% da populao da regio, representavam, por sua vez, 54% de todos os pobres. As cifras verificam que efetivamente, como foi sublinhado pelo Unicef, na Amrica Latina a maioria dos pobres so crianas e a maioria das crianas so pobres. Essa no uma situao neutra. Como destaca Peter Tonwsed, a pobreza mata. Cria fatores de risco que reduzem a expectativa de vida e pioram sensivelmente a qualidade de vida. As crianas so os pobres da Amrica Latina, como se viu, e ao mesmo tempo, por natureza, as mais vulnerveis. Sobre essas crianas pobres operam vrios fatores que so geradores, entre outros aspectos, do que se denomina um alto risco alimentar, insuficincias no mais elementar a possibilidade de que possam alimentar-se normalmente. Os resultados de dficits desta ordem causam danos mltiplos. Estima-se que nos primeiros anos de vida se desenvolvem boa parte das capacidades cerebrais. A falta de uma nutrio adequada gera danos de carter irreversvel. Pesquisas do Unicef (1995) sobre uma amostragem de crianas pobres determinaram que, aos cinco anos, metade das crianas dessa amostra apresentava atrasos no desenvolvimento da linguagem; 30%, atrasos em sua evoluo visual e motora, e 40%, dificuldades em seu desenvolvimento geral. A desnutrio causa ainda dficits no peso e estatura das crianas e isso repercutir acentuadamente em seu desenvolvimento. Entre os fatores geradores de risco alimentar encontram-se: a falta de recursos da famlia, o carter monoparental da mesma e a baixa educao das mes. Existe uma forte correlao estatstica entre estes fatores e a desnutrio infantil. Na Amrica Latina atual, os trs fatores tm significativa incidncia. Como indicamos, numerosas famlias possuem renda inferior ao imprescindvel. Estima-se que cerca de 30% dos lares esto sob a responsabilidade apenas da me; em sua grande maioria trata-se de lares humildes e o nvel educativo das mes pobres muito baixo. A pobreza do lar pode significar que muitas mes estaro, por sua vez, desnutridas durante a gravidez. provvel ento que o filho tenha anemia, dficits de macronutrientes essenciais e peso baixo. Isso pode ameaar sua prpria sobrevivncia ou atentar contra seu desenvolvimento futuro. Se, alm disso, a me est sozinha frente da famlia, ter de lutar duramente para obter renda. Suas possibilidades de dedicao criana nas crticas etapas iniciais sero limitadas. O fator edu-

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cativo influir ainda em aspectos muito concretos. Assim, as mes com baixa escolaridade tero pouca informao sobre como atuar apropriadamente com respeito ao aleitamento materno, como fazer uma dieta adequada, como cuidar da higiene alimentar, como administrar alimentos escassos. Em 1999, em dez de dezesseis pases da regio, 40% a 50% das crianas urbanas em idade pr-escolar faziam parte de lares cujas mes no tinham completado o ensino fundamental (primrio). Nas zonas rurais, em seis de dez pases analisados, o percentual era de 65% a 85%; nos quatro restantes, 30% a 40%. Ao verificar apenas as crianas menores de dois anos de idade, em 1997, de 20% a 50% das crianas da grande maioria dos pases viviam em lares com renda por morador inferior a 75% do valor da linha de pobreza e cuja me no tinha completado o ensino fundamental (primrio). A ao combinada destes e outros fatores leva ao sombrio panorama captado pela Cepal (2000): No ano 2000 estima-se que aproximadamente 36% do total de crianas menores de dois anos da Amrica Latina esto em situao de alto risco alimentar. Os quadros nacionais so alarmantes em diversos pases. Na Nicargua, estimativas do Ministrio da Sade (1999) indicam que 59% das famlias cobrem menos de 70% das necessidades de ferro requeridas pelo ser humano, 28% das crianas com menos de cinco anos sofrem de anemia devido ao pouco ferro que consomem, 66 crianas em cada cem apresentam problemas de sade por falta de vitamina A. 80% da populao nicaragense consome apenas 1700 calorias dirias, quando a dieta normal deveria ser no inferior a 2125 calorias. Na Venezuela, uma criana de sete anos dos estratos altos pesa em mdia 24,3 kg e mede 1,219 m. Uma criana da mesma idade dos setores pobres pesa somente 20 kg e mede 1,148 m. Embora em pases com tanto potencial alimentar, como o caso da Argentina, as estatsticas informam que na grande Buenos Aires, uma das principais reas populacionais, uma em cada cinco criana est desnutrida. Muitos dos pases da regio possuem importantes possibilidades naturais de produo de alimentos. Contudo, como vimos, um tero das crianas menores apresenta nveis de deficincia alimentar pronunciada. Isso parece difcil de se entender. Influenciam fatores como os identificados pela Organizao Pan-americana da Sade (OPS) e pela Cepal em pesquisa conjunta (1998): Observa-se em quase todos os pases da regio um crescimento de doenas no transmissveis crnicas associadas com alimentao e nutrio. As medidas de ajuste implementadas pelos pases afetaram a disponibilidade nacional de

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alimentos e tiveram repercusses negativas sobre o poder de compra dos grupos mais pobres ameaando a segurana alimentar. Assim como a falta de alimentao causa danos no-reparveis posteriormente, o mesmo ocorre com outras expresses da pobreza, como os dficits que enfrentam os desfavorecidos na regio em dois aspectos bsicos: a gua potvel e a existncia de rede de saneamento e sistema de esgoto. Ambos so elementos decisivos para a sade. Amplos setores da populao pobre tm dificuldades muito grandes para obter gua potvel ou tm de compr-la a preos muito elevados. Ainda carecem de instalaes sanitrias adequadas, o que significar graves riscos de contaminao atravs das galerias subterrneas e de contaminao do meio ambiente em que se localiza a moradia. Segundo os clculos da OPS, cerca de um tero da populao da regio carece de gua potvel e/ou rede de esgoto; 30% das crianas menores de seis anos vivem em moradias sem acesso gua potvel; 40% das moradias no possuem sistemas adequados de coleta de lixo e esgoto. Numa anlise por pases, observam-se dados como os que seguem, que descrevem as percentagens de crianas menores de cinco anos de idade que viviam em residncias sem conexo com sistemas de evacuao de esgoto em 1998 (Cepal, 2000): Paraguai, 87%; Bolvia, 66%; Brasil, 59%; Honduras, 47%; El Salvador, 45%; Venezuela, 26%; Mxico, 24%. A ao desses fatores gera mortalidade infantil e riscos graves de sade, como os contgios e infeces intestinais. Em onze pases, a diarria uma das duas principais causas de morte em crianas com menos de um ano. Novamente trata-se de danos de carter irreparvel. A falcia da pacincia, com respeito pobreza, nega de fato a anlise da irreversibilidade dos danos; leva a polticas em que, sob a idia de que as coisas se consertam depois, no se d a prioridade que corresponderia a questes elementares para a sobrevivncia. Novamente, alm das ineficincias que significam essas polticas em qualquer viso a longo prazo de uma sociedade, h uma falta de tica fundamental. Frente pobreza, deveria aplicar-se uma tica da urgncia; no possvel esperar diante de problemas to vitais como os descritos. Esta falcia desconhece o carter de urgncia desta e de outras carncias bsicas. 3. Terceira falcia: com o crescimento econmico suficiente O pensamento econmico ortodoxo de grande difuso na regio lana a mensagem bsica de que todos os esforos devem ser voltados

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para o crescimento. Dirige os olhares aos prognsticos sobre o aumento do produto bruto e o produto bruto per capita. Desperta as expectativas de que tudo est bem se eles crescerem num bom ritmo. Prope explicitamente, como se mencionou, que alcanando as metas importantes de crescimento, todo o restante se resolve. O mesmo fluir para baixo, atravs do famoso efeito derrame, e isso solucionar os restos que possam existir no campo social. O sculo XX ensinou muito duramente mais de uma vez que o ltimo juiz que decidir se as teorias sobre o desenvolvimento so vlidas ou no, no seu grau de difuso, mas o que conta so os fatos. Eles desmentiram fortemente que a realidade funcione como a ortodoxia supe que deveria funcionar. As promessas feitas para a Amrica Latina, no incio dos anos 1980, sobre o que ocorreria ao aplicar o modelo convencional no foram cumpridas na prtica. Descrevendo os produtos concretos do que se chama a forma de fazer economia, que a Amrica Latina escolheu nos anos recentes, assinala Ricardo French Davis (2000): O resultado uma forte instabilidade do emprego e da produo, uma maior diferenciao entre ricos e pobres e um crescimento mdio modesto: apenas 3% neste decnio, e com uma profunda desigualdade. Efetivamente, os dados indicam que o crescimento foi muito discreto, no se derramou automaticamente, a desigualdade aumentou de modo significativo, a pobreza no se reduziu. Diante deste juzo da realidade, no caberia rever o arrazoamento usual? Joseph Stiglitz (1998) sugere que chegou a hora de faz-lo. Refere-se viso geral, de cujos componentes essenciais um a idia de que o crescimento basta. Argumenta: Muitos pases aplicaram as recomendaes intelectualmente claras, embora no raro difceis no aspecto poltico, do Consenso de Washington. Os resultados no tm sido, porm, totalmente satisfatrios. Isto apresenta vrias explicaes. Ser porque alguns no seguiram corretamente as receitas econmicas? Talvez. Entretanto, eu argumentaria que a experincia latino-americana sugere que deveramos reexaminar, refazer e ampliar os conhecimentos acerca da economia de desenvolvimento que so tomados como verdade enquanto planejamos a prxima srie de reformas. A experincia da Amrica Latina e de outras regies do globo indica que o crescimento econmico imprescindvel; muito importante tratar de aumentar o produto total de uma sociedade. So fundamentais ainda o desenvolvimento das capacidades tecnolgicas, da competitividade e um clima de estabilidade econmica. No entanto,

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ensina tambm que simplificar extremamente o tema do desenvolvimento e de suas dimenses sociais aventurar que o crescimento econmico sozinho produzir os resultados necessrios. O informe do Banco Mundial sobre a pobreza no ano 2000, que expressa a poltica oficial dessa instituio, prope a necessidade de passar de uma vez a uma viso mais ampla da problemtica do desenvolvimento. Comentando seu enfoque diferencial, aponta um influente meio, o jornal Washington Post (2000): A publicao do Informe Mundial de Desenvolvimento do Banco Mundial representa um significativo dissenso do consenso sustentado entre economistas de que o melhor meio para aliviar a pobreza impulsionar o crescimento econmico e que a nica via para faz-lo atravs de mercados livres e abertos. O Informe destaca que mesmo uma dcada aps as economias planejadas da Europa Oriental terem sido desmanteladas e o comrcio e investimento global terem alcanado nveis recordes, 24% da populao mundial recebe renda inferior a um dlar dirio. A concluso ineludvel, de acordo com os economistas e especialistas em desenvolvimento do Banco, que enquanto o crescimento econmico possa ser um ingrediente necessrio para reduzir a pobreza, no poder faz-lo sozinho. Outro informe posterior do Banco Mundial, A qualidade do crescimento (2000), produzido por outras equipes do mesmo, prope tambm vigorosamente o mesmo tipo de argumento bsico. Afirma Vinod Thomas, diretor do Instituto do Banco (The Economist, 2000): A experincia dos pases em desenvolvimento e tambm dos industrializados mostra que no meramente mais crescimento, e sim um melhor crescimento o que determina em que medida aumenta o bem-estar, e o bem-estar de quem. Pases com renda e crescimento similares obtiveram nas ltimas trs dcadas conquistas muito diferentes em educao, sade e proteo do meio ambiente. Sugere-se que decisiva a estrutura do crescimento, suas prioridades, vias de desenvolvimento, setores beneficiados. A falcia de que o crescimento basta transmite a viso de que se estaria avanando se o produto bruto per capita subir, e que os olhares devem estar voltados para o mesmo. A ONU desenvolveu na ltima dcada um corpo conceitual amplamente difundido no mbito internacional, o paradigma do desenvolvimento humano, que ataca de modo radical este arrazoamento. O crescimento s no basta, ele necessrio mas no suficiente; assim, caberia iniciar uma discusso maior. Perguntar-nos quando realmente uma sociedade avana e quando est retrocedendo. Os parmetros definitivos, a sugesto, devemos encontr-los

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no que est acontecendo com as pessoas. Aumenta ou diminui a expectativa de vida? Melhora ou piora a qualidade de vida? A ONU apresentou um ndice de desenvolvimento humano que veio sendo aperfeioado ano aps ano, o qual inclui indicadores que refletem a situao de todos os pases do mundo em reas tais como: expectativa de vida, populao com acesso a servios de sade, populao com acesso a gua potvel, populao com acesso a servios de coleta de esgoto e detritos, escolaridade, mortalidade infantil, produto bruto per capita ponderado pela distribuio de renda. Os ordenamentos dos pases do mundo segundo suas conquistas em desenvolvimento humano, que vm sendo publicados anualmente pela ONU, atravs do PNUD, revelam um quadro que em diversos aspectos no coincide com o que decorre dos simples recordes de crescimento econmico. As concluses resultantes enfatizam que quanto maior o crescimento e mais recursos existirem, ampliam-se as possibilidades para a sociedade, mas a vida das pessoas, que a finalidade ltima, no pode ser medida por algo que um meio, deve ser medida por ndices que reflitam o que ocorre em mbitos bsicos da vida cotidiana. A falcia de que o crescimento basta est em definitivo transformando um meio fundamental, mas apenas um meio, em um fim ltimo. preciso desmistific-la e retomar um debate a fundo sobre o que est ocorrendo com o cumprimento dos fins. Amartya Sen ilustra os limites desta falcia, analisando vrias situaes reais. Realiza a comparao que se reflete no grfico a seguir. Como se observa, os trs primeiros pases do grfico o Estado de Kerala, na ndia (com 33 milhes de habitantes), China e Sri Lanka tinham um produto bruto per capita muito reduzido. Os outros trs frica do Sul, Brasil e Gabo tinham um produto bruto cinco a quinze vezes maior que o dos anteriores. Contudo, a populao vivia mais anos nos trs pases pobres: 71, 69 e 72 anos, contra 63, 66 e 54 anos. O crescimento econmico sozinho no era o fator determinante num dos indicadores mais fundamentais para verificar se uma sociedade avana, no mais bsico: a expectativa de vida. Que outras variveis intervinham neste caso? Sen identifica aspectos como as polticas pblicas, que garantiam nos trs primeiros pases um acesso mais amplo a insumos fundamentais para a sade, como a gua potvel, as instalaes sanitrias, a eletricidade e a assistncia mdica. Ainda as melhores possibilidades em matria de educao, por sua vez, inci-

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Grfico 2 Produto Nacional Bruto e Expectativa de vida em pases selecionados (1992) 80 71 70 69 72 63 66 54 50 40 30 20 1000 10 0 300 Kerala 470 540 500 0 China Sri Lanka frica do Sul Brasil Gabo 2670 2770 4450 5000 4500

60 3500 3000 2500 2000 1500

Expectativa de vida

PNB per capita

Fonte: Amartya Sen, Mortality as indicator of economic success and failure. The Economic Journal, jan. 1998.

dente na sade. Junto a isso, um aspecto central era a melhor distribuio da renda nas trs primeiras sociedades. Tudo isso levou a que os pases supostamente mais pobres em termos de renda fossem mais bemsucedidos na sade e na expectativa de vida. Sen afirma: Eles registraram uma reduo muito rpida das taxas de mortalidade e uma melhora das condies de vida, sem um crescimento econmico notvel. 4. Quarta falcia: a desigualdade um fato da natureza e no um obstculo para o desenvolvimento O pensamento econmico convencional tendeu a eludir uma discusso frontal a respeito da desigualdade e seus efeitos sobre a economia. Apoiou-se para isso com freqncia na sacralizao do U invertido de Kusnetz. De acordo com o mesmo, a desigualdade simples-

PNB per capita (em dlares)

Expectativa de vida (anos)

4000

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mente uma etapa inevitvel da marcha para o desenvolvimento. Na primeira fase do mesmo, produzem-se polarizaes sociais, que depois vo-se moderando e reduzindo. Alguns economistas convencionais mais extremos chegam ainda mais longe, e propem que essa acumulao de recursos em poucas mos favorecer o desenvolvimento ao criar maiores capacidades de investimento. Esta discusso tem particular transcendncia para a Amrica Latina, porque considerada por unanimidade a regio mais desigual do planeta. Se a tese dos ortodoxos mais inflexveis estivesse correta, a regio deveria ter contado com taxas de investimento muito altas, dadas as acumulaes em poucas mos que gerou. Isso no se observa. Tampouco parece ser uma mera etapa do caminho ao desenvolvimento. Na Amrica Latina, a desigualdade instalou-se e no s no se moderou, mas apresenta uma tendncia consistente para o crescimento, particularmente nas duas ltimas dcadas. O U invertido parece no funcionar para a regio. Na verdade, Kusnetz nunca pretendeu que fosse aplicvel mecanicamente aos pases no-desenvolvidos. Como tem ocorrido com freqncia, alguns de seus supostos intrpretes fizeram claro abuso de suas afirmaes. Seus trabalhos referiam-se observao dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha num perodo que compreendeu da primeira metade do sculo XIX at o final da Primeira Guerra Mundial. Adverte expressamente sobre o risco de generalizar as concluses que extraiu. Afirma (1970): perigoso utilizar simples analogias; no podemos afirmar que posto que a desigual distribuio da renda conduziu no passado, na Europa Ocidental, acumulao de economias necessrias para formar os primeiros capitais, para assegurar o mesmo resultado nos pases subdesenvolvidos preciso, portanto, manter e inclusive acentuar a desigualdade na distribuio da renda. E enfatiza em afirmao que na Amrica Latina faz muito sentido hoje: muito provvel que os grupos que recebam rendas superiores em alguns dos pases hoje subdesenvolvidos apresentem uma propenso de consumo muito maior e uma propenso economia muito menor do que as que apresentam os mesmos grupos de renda nos pases hoje desenvolvidos durante suas primeiras fases de crescimento. Alm de ter desvirtuado o pensamento real do prprio Kusnetz, a falcia difundida com respeito desigualdade choca-se fortemente com os dados da realidade. A desigualdade latino-americana transformouse em nvel internacional num caso quase de laboratrio dos impactos

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regressivos da desigualdade. Diante da pergunta de por que um continente com tantas potencialidades econmicas e humanas gerou resultados econmicos to discretos e dficits sociais to agudos, uma das respostas com crescente consenso cientfico que um dos fatores fundamentais em contrrio tem sido o peso da desigualdade e seu crescimento. Assim, apontam Birdsall, Ross e Sabot (1996) sobre a regio, a associao entre um crescimento lento e uma elevada desigualdade deve-se em parte ao fato de que essa elevada desigualdade pode constituir em si um obstculo para o crescimento. Operam ativamente na Amrica Latina entre outros cinco tipos de desigualdades, a saber: um a iniqidade na distribuio de renda. 5% da populao possui 25% da renda nacional; por outro lado, 30% da populao tem apenas 7,5% da renda nacional. a maior brecha do planeta. Medida com o coeficiente Gini de ineqidade em renda, a Amrica Latina tem 0,57, quase trs vezes o Gini dos pases nrdicos. Em mdia, a metade da renda nacional de cada pas da regio vai para as mos dos 15% mais ricos da populao. No Brasil, os 10% mais ricos possuem 46% da renda, enquanto os 50% mais pobres, apenas 14% da mesma. Na Argentina, enquanto em 1975 os 10% mais ricos recebiam oito vezes mais renda que os 10% mais pobres, em 1997 a relao tinha mais que duplicado, era 22 vezes maior. Outra desigualdade acentuada a que aparece em termos de acesso a ativos produtivos. A extremamente ineqitativa distribuio da terra em alguns dos maiores pases da regio, como Brasil e Mxico, uma de suas expresses. Uma terceira desigualdade a que rege no campo do acesso ao crdito, instrumento essencial para poder criar oportunidades reais de desenvolvimento de pequenas e mdias empresas. H na Amrica Latina 60 milhes de PYMES, que geram 150 milhes de empregos. No entanto, apenas tm acesso a 5% do crdito. Uma quarta iniqidade a que surge do sistema educativo. Os diferentes estratos socioeconmicos dos pases alcanam recordes muito diversos em anos de escolaridade. A desero e a repetncia provocadas pelas condies socioeconmicas do lar minam diariamente a possibilidade de que os setores pobres completem seus estudos. Segundo a Cepal (2000), no Brasil repetiam os dois primeiros anos do ensino fundamental 41% das crianas pertencentes aos 25% de menor renda da populao, e por sua vez apenas 4,5% das crianas dos 25% com maior renda. Ainda, tinham completado o ensino fundamental (de 1 a 8 srie) aos vinte anos de idade apenas 8% dos jovens pertencentes aos 25% de menor renda, contra 54% dos 25% de maior renda. Tomando pases da regio (BID, 1998), surgia

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que os chefes de famlia dos 10% de renda mais elevada tinham 11,3 anos de educao, os dos 30% mais pobres, apenas 4,3 anos. Uma brecha de sete anos. Enquanto na Europa a brecha de escolaridade entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres de dois a quatro anos, no Mxico de dez anos. A desigualdade educativa ser um fator muito importante na iniqidade na possibilidade de conseguir emprego e nos salrios a serem recebidos. Os setores desfavorecidos estaro em condies muito desfavorveis nesse item devido sua frgil carga educativa. A fora de trabalho ocupada da regio apresenta uma marcante estratificao. Segundo a Cepal (2000), h um nvel superior que so 3% da populao empregada que possui quinze anos de escolaridade, um nvel intermedirio que so os 20% da fora de trabalho que possui entre nove e doze anos de escolaridade, e os 77% restantes que tm apenas 5,5 a 7,3 anos de estudo nas cidades e 2,9 nas zonas rurais. Uma quinta e nova cifra de desigualdade est surgindo das possibilidades totalmente diferenciadas de acesso ao mundo da informtica e Internet. A grande maioria da populao no tem meios nem a educao requerida para conectar-se com esse mundo, fazendo parte assim de uma nova categoria de analfabetismo, o analfabetismo ciberntico. Todas estas desigualdades geram mltiplos efeitos regressivos na economia, na vida pessoal e familiar, e no desenvolvimento democrtico. Entre outros, segundo demonstram numerosas pesquisas: reduzem a formao de poupana nacional, estreitam o mercado interno, conspiram contra a sade pblica, impedem a formao em grande escala de capital humano qualificado, deterioram a confiana nas instituies bsicas das sociedades e na liderana poltica. O aumento da desigualdade , por outro lado, uma das causas centrais do aumento da pobreza na regio. Birdsall & Londoo (1998) estimaram econometricamente que seu crescimento entre 1983 e 1995 duplicou a pobreza, que a mesma teria sido a metade do que foi se a desigualdade tivesse continuado nos nveis anteriores, elevados porm menores. A desigualdade latino-americana no um fato natural prprio do caminho do desenvolvimento como pretende a falcia. a conseqncia de estruturas regressivas e polticas erradas que a potencializaram. Barbara Stallings (Cepal, 1999) considera que as reformas econmicas aplicadas nos ltimos anos agravaram as desigualdades entre a populao e sublinha que possvel afirmar sem nenhuma dvida que os noventa so uma dcada perdida quanto reduo das j alarmantes diferenas sociais existentes na regio com mais desigualdade do mundo. Altimir (1994), depois de analisar dez pases, prope que h ba-

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ses para supor que a nova modalidade de funcionamento e as novas regras de poltica pblica destas economias possam implicar maiores desigualdades de renda. Albert Berry (1997) indica: A maioria dos pases latino-americanos que introduziram reformas econmicas prmercado, no curso das ltimas duas dcadas, sofreram tambm srios incrementos na desigualdade. Esta coincidncia sistemtica no tempo dos dois eventos sugere que as reformas foram uma das causas da degradao na distribuio. Por sua vez, a outra dimenso da falcia tambm desmentida pela realidade. A desigualdade no se modera ou atenua sozinha. Pelo contrrio, a instalao de circuitos de desigualdade em reas-chaves possui uma tendncia contaminante, propicia a gerao de circuitos similares em outras reas. Entre outros casos, ilustra o fato a dificuldade, apesar de todos os esforos, em melhorar a situao educativa da populao pobre. As desigualdades em outras reas como ocupao e renda conspiram contra as reformas educativas. Ainda, as desigualdades em educao reforam, como j se viu, as brechas no mercado de trabalho. Os circuitos perversos de desigualdade mostram alm disso uma enorme capacidade reprodutora. Eles se automultiplicam. Sem aes em contrrio, as polarizaes tendem a crescer e ampliar-se. Isso mostrado pela conformao crescente em numerosas sociedades de uma dualidade central: includos e excludos. 5. Quinta falcia: a desvalorizao da poltica social Um renomado ministro da Economia da Amrica Latina, ao ser questionado sobre a poltica social em seu pas, respondeu: A nica poltica social a poltica econmica. Estava refletindo toda uma atitude quanto poltica social que teve conseqncias profundas no continente. H uma tendncia a v-la como um complemento menor de outras polticas maiores, como as que tm a ver diretamente com o desenvolvimento produtivo, os equilbrios monetrios, o crescimento tecnolgico, a privatizao etc. Caberia a ela atenuar os impactos transitrios que as anteriores produzem na sociedade. Deveria atacar focalizadamente os desajustes sociais mais irritveis para reduzi-los. No fundo, a partir deste arrazoamento, ela percebida como uma concesso poltica. Como a pobreza gera forte inquietude poltica, a poltica social faria o trabalho de acalmar os nimos e mostrar que esto se fazendo coisas nesse fronte, mas o corolrio conseqente : quanto

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menos concesses, melhor. Os recursos destinados ao social deveriam ser muito limitados e destinados a fins muito especficos. Albert Hirschman, em certa oportunidade, chamou esta forma de abordar o tema de polticas pobres para pobres. D lugar a reduzir o social a metas muito estreitas, a constituir uma institucionalidade social frgil em recursos, e pessoal, afastada dos altos nveis de deciso. Por outro lado, tambm altamente vulnervel. Diante de redues oramentrias, mostra escassa capacidade para defender sua situao e normalmente candidata preferida para os cortes. Esta viso, ainda sob outro aspecto, supe em si um questionamento implcito da legitimidade da poltica social. desviar recursos de destinos mais importantes, por presso poltica. Refletindo a situao, uma experiente ministra da rea social de um pas latino-americano narrou a respeito para uma platia internacional: No ramos convidados ao gabinete onde eram tomadas as decises econmicas mais importantes. Depois de muitos esforos, conseguimos ser convidados. Claro que apenas com direito a voz, no a voto. Considerar a poltica social nestes termos: de uma categoria inferior, concesso poltica, uso subotimizante de recursos, conforma uma falcia que est afetando seriamente a regio. Em primeiro lugar, como se pode relegar o social num contexto como o latino-americano, em que praticamente uma a cada duas pessoas est abaixo da linha de pobreza e expressa diariamente de mil maneiras seu descontentamento e seu protesto por essa realidade? Atender ao social no uma concesso, em numa democracia tratar de fazer com que os direitos fundamentais de seus membros sejam respeitados. O que est em jogo, no fundo, como defende a ONU, uma questo de direitos humanos violados. Como ressalta o Informe de Desenvolvimento Humano 2000, do PNUD: A erradicao da pobreza constitui uma tarefa importante dos direitos humanos no sculo XXI. Um nvel decente de vida, nutrio suficiente, assistncia mdica, educao, trabalho digno e proteo contra as calamidades no so simplesmente metas do desenvolvimento, so tambm direitos humanos. As polticas sociais so essenciais para a populao na regio e estratgias para a estabilidade do prprio sistema democrtico. Ao consultar-se a populao, ela no pede que se reduzam, estreitem ou eliminem, mas, ao contrrio, exige maciamente que se reforcem, ampliem e se incorporem novas polticas.

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Em segundo lugar, difcil sustentar no incio deste novo sculo que se trata de uma destinao de recursos de pouca eficincia. Destinar recursos para assegurar-se de que todas as crianas concluam o primeiro ciclo do ensino fundamental (antigo primrio), para elevar a taxa de trmino do ensino fundamental (de 1 a 8 srie), para desenvolver o sistema de educao superior, ineficiente? As medies economtricas do resultados muito diferentes. A taxa de retorno em educao uma das mais altas possveis para uma sociedade. Hoje, a competitividade dos pases est fortemente ligada ao nvel de capacitao de sua populao. Alguns dos pases mais bem-sucedidos do planeta nos mercados internacionais esto exportando basicamente produtos como high tech totalmente baseados no capital educativo que souberam desenvolver. A absoro de novas tecnologias, a inovao local a partir delas, a pesquisa e desenvolvimento, o progresso tecnolgico dependem todos dos nveis de educao alcanados. Os clculos demonstram, assim, entre outros casos, que um dos investimentos macroeconomicamente mais rentveis que um pas pode fazer investir na educao de meninas. Acrescentar anos de escolaridade s meninas desfavorecidas aumentar seu capital educativo e, atravs dele, reduzir as taxas de gravidez na adolescncia, de mortalidade materna, de mortalidade infantil e morbidade. Todas elas esto correlacionadas estatisticamente com os anos de escolaridade da me. Nas condies latino-americanas, estender a possibilidade de acesso gua potvel a toda a populao um investimento deficiente? O retorno ao faz-lo ser significativo em termos de sade pblica, o que logo repercutir na produtividade da economia. Na verdade, toda a terminologia utilizada est equivocada e novamente vemos um erro semntico no casual. Assim como existiam aqueles que no queriam ouvir falar da palavra pobreza, na falcia que desvaloriza a poltica social, chegou-se a que toda a discusso a respeito seja feita em termos de gasto social. Na realidade, no h tal gasto. Bem gerenciados, os recursos para o social constituem, na grande maioria dos casos, investimento de um alto retorno. Hoje difcil discutir as evidncias de que o investimento social gera capital humano e que o mesmo se transforma em produtividade, progresso tecnolgico e decisivo para a competitividade. Na verdade, a poltica social bem delineada e eficientemente executada um poderoso instrumento de desenvolvimento produtivo. Como sugere Touraine (1997): Em vez de compensar os efeitos da lgica econmica, a polti-

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ca social deve ser concebida como condio indispensvel do desenvolvimento econmico. Em terceiro lugar, discutiu-se a gravidade do tema da desigualdade na Amrica Latina. Superada a falcia que a nega ou minimiza, como se pode reduzi-la? Uma das vias fundamentais possveis numa democracia uma agressiva poltica social que amplie fortemente as oportunidades para os pobres em setores cruciais. Dever estar integrada, entre outras, por polticas que universalizem possibilidades de controle de fatores de risco-chaves em sade na regio, como a gua, o saneamento, a eletricidade, o acesso assistncia mdica; que atuem sobre os fatores que excluem parte da populao do sistema educativo; que assegurem servios pblicos de boa qualidade para todos. A poltica social pode ser uma chave para a ao contra a desigualdade, provendo uma base mnima de bens e servios indispensveis e contribuindo, assim, para abrir as oportunidades e romper crculos perversos. Em vez de uma poltica social borralheira, como prope a falcia, o que a Amrica Latina precisa de uma nova gerao de polticas sociais com letra maiscula. Isso implica dar prioridade efetiva s metas sociais no desenho das polticas pblicas; procurar articular estreitamente as polticas econmicas e as sociais; montar uma institucionalidade social moderna e eficiente; destinar recursos apropriados; formar recursos humanos qualificados no social; fortalecer as capacidades de gerncia social, e hierarquizar em geral esta rea de atividade pblica. A metfora que se ouve em toda a regio descreve bem a situao. Afirma que a poltica social atualmente a assistncia pblica que recolhe os mortos e feridos deixados pela poltica econmica. A falcia examinada cultiva e racionaliza esta situao inaceitvel. preciso uma poltica social que potencialize o capital humano, base essencial de um desenvolvimento econmico sustentado. um tema tico, poltico e, ao mesmo tempo, de lucidez histrica. Como aponta Birdsall (1998): provvel que as taxas de crescimento da Amrica Latina no sejam superiores a 3% ou 4%, muito distantes das necessrias, enquanto no se contar com a participao e a contribuio da metade da populao que est compreendida nos percentuais mais baixos de renda. 6. Sexta falcia: a maniqueizao do Estado No pensamento econmico convencional circulante, tem-se feito um esforo sistemtico de vastas propores para deslegitimar a ao

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do Estado. Associou-se a idia de Estado com corrupo, com incapacidade para cumprir eficientemente as mnimas funes, com grandes burocracias, com desperdcio de recursos. A viso apia-se em graves defeitos existentes no funcionamento das administraes pblicas em numerosos pases da Amrica Latina, mas foi muito mais alm disso e maniqueizou o Estado em seu conjunto. Projetou a imagem de que toda ao tratada no terreno pblico seria negativa para a sociedade, e, por sua vez, a reduo ao mnimo das polticas pblicas e a entrega de suas funes ao mercado a levaria a um reino da eficincia e soluo dos principais problemas econmico-sociais existentes. Alm disso, criou a concepo de que existia uma oposio de fundo entre Estado e sociedade civil e havia que escolher entre ambos. Como em outros campos, hoje possvel manter uma discusso sobre o tema para alm das ideologias. O instrumental metodolgico das cincias sociais atuais traz evidncias muito concretas que permitem estabelecer como funciona a realidade. A viso demonstrou ser errada. O Estado sozinho no pode fazer o desenvolvimento, e na Amrica Latina a ao estatal tem apresentado agudos problemas de burocratizao, ineficincia e corrupo. Entretanto, o processo de eliminao de numerosas funes do Estado, de reduo a nveis mnimos em muitos casos de suas capacidades de ao, como ocorreu com freqncia nas reas sociais, o enfraquecimento em geral do papel das polticas pblicas, e a entrega de suas funes ao mercado, no levou ao reino ideal suposto. Os problemas estruturais das sociedades latinoamericanas e de outras do mundo em desenvolvimento continuaram se agravando, a corrupo acompanhou tambm com freqncia os processos de privatizao. Identificou-se como uma lei operante que sempre que houver um corrupto no Estado, haver, por sua vez, um corruptor no setor privado, ou seja, o tema excede qualquer simplificao. O funcionamento sem regulao do mercado levou ao aprofundamento das brechas, particularmente das de iniqidade. Deu-se uma forte tendncia, sob as novas regras de jogo, constituio de monoplios que significaram, na prtica, a imposio de cargas muito pesadas aos consumidores e s pequenas e mdias empresas, liquidando com estas ltimas. A impresso que as duas polarizaes conduziram a becos sem sada. O Estado sozinho no pode resolver os problemas, mas sua minimizao agrava-os. Essa a concluso, entre muitas outras vozes, do Banco Mundial no final desta dcada. Em seu informe especial dedicado ao papel do Estado (1998), ressalta como idia fundamental que

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sem um Estado eficiente o desenvolvimento no vivel, e prope uma srie de diretrizes orientadas a reconstruir a capacidade de ao do Estado. Por seu lado, autores como Stiglitz e outros chamaram a ateno para as falhas do mercado, sua tendncia a gerar desigualdades e cartelizao para maximizar lucros e seus desvios especulativos quando no h eficientes controles regulatrios, como ocorre em Estados to fragilizados pelas reformas das ltimas dcadas como os da regio. Causticamente, afirma uma autoridade mundial em como gerenciar com eficincia, Henry Mintzberg (1996), com respeito concepo de que se poderia prescindir do Estado e a viso de que tudo o que se faz no Estado ineficiente e no setor privado, eficiente: o modelo representa a grande experincia dos economistas que nunca tiveram de gerenciar nada. Hoje h um ativo retorno busca de uma viso mais equilibrada no debate internacional de ponta sobre o tema do desenvolvimento e do papel do Estado. Impossvel desconhecer a importncia das polticas pblicas num contexto histrico em que a segunda economia do mundo, o Japo, est colocando em marcha, uma aps a outra, sucessivas iniciativas de interveno ativa do Estado para dinamizar a economia, a mais recente (outubro de 2000) injetando 100 bilhes de dlares para tal efeito. Amartya Sen (1998) ressalta sobretudo o papel decisivo que tem exercido a poltica pblica no campo social em algumas das economias de melhor desempenho a longo prazo do mundo. Sublinha: De fato, muitos pases da Europa Ocidental conseguiram assegurar uma ampla cobertura de assistncia social com a assistncia sade e educao pblica de maneiras at ento desconhecidas no mundo; o Japo e a regio do Leste da sia tiveram um alto grau de liderana governamental na transformao tanto de suas economias como de suas sociedades; o papel da educao e da assistncia mdica pblica foi o eixo fundamental para contribuir para a mudana social e econmica no mundo inteiro (e de forma bastante espetacular no Leste e Sudeste asiticos). Uma rea totalmente decisiva para a economia e para a sociedade a da sade. Toda sociedade democrtica tem a obrigao de garantir a seus membros o direito assistncia mdica, o direito mais bsico. Alm disso, melhorar os nveis de sade da populao exerce toda ordem de impactos favorveis sobre a economia, entre muitos outros aspectos em reduo de horas de trabalho perdidas por doena, aumento da produtividade no trabalho, queda nos custos ligados a doenas etc. O recente informe sobre a sade mundial 2000 da Organizao Mundial da Sade (OMS, 2000) estabelece o primeiro ranking dos pases do mundo, segundo o desempenho de seus sistemas de sade. Entre ou-

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tros, constri um ndice muito significativo para essas medies: os anos que, em mdia, uma pessoa vive com boa sade, sem doenas. No topo da lista encontram-se pases como Japo (74,5 anos), Sucia (73 anos), Canad (72 anos) e Noruega (71,7 anos). Em todos esses pases, o Estado tem uma participao fundamental, tendo construdo uma ampla rede de proteo. No Japo, o gasto pblico de 80,2% do gasto total em sade; na Sucia de 78%; na Noruega, de 82%, e no Canad, de 72%. O gasto pblico per capita em sade ultrapassa em todos eles os 1300 dlares anuais. O contraste com a atual situao em diversos pases latino-americanos marcante. O gasto pblico per capita em sade no Brasil de 208 dlares; no Mxico, de 172, no Peru, de 98. Os anos de vida saudvel chegam em mdia a apenas 59 anos no Brasil, embora o pas seja uma das maiores potncias industriais do mundo. Por sua vez, ao procur-lo na lista de desempenho dos sistemas de sade da OMS, o Brasil aparece em 125 lugar. O carter crucial da ao estatal em campos-chaves como sade e educao, pressupondo uma ao bem gerenciada e transparente, surge com toda a fora de uma pesquisa recente (Financial Times, 2000), que mostra o que ocorre quando se fixam como poltica alfandegria os servios em reas de populao pobre, sob a idia de compartilhar custos e de financiamento comunitrio, reduzindo assim as responsabilidades do Estado. Na Tanznia, seguindo as condies do Banco Mundial, foram introduzidas tarifas para o ensino primrio. O resultado, segundo indica a Igreja Evanglica Luterana da Tanznia, foi um imediato descenso na assistncia s escolas e a reduo do oramento total para as mesmas metade do previsto. Em Zimbbue, a condicionalidade centrou-se em que deveriam cobrar taxas nos servios de sade, mas que os pobres estariam isentos disso. Uma avaliao do prprio Banco Mundial concluiu que apenas 20% dos pobres puderam conseguir as licenas para iseno necessrias. Em Gana, ao impor taxas na escola, 77% das crianas da rua de Accra, que assistiam s aulas, abandonaram as escolas. A falcia da maniqueizao do Estado leva a conseqncias muito concretas: ao deslegitimar sua ao deixa aberto o terreno para sua debilitao indiscriminada e para o desaparecimento paulatino de polticas pblicas firmes em campos cruciais como os sociais. Causa, assim, danos irreparveis a vastos setores de famlias, aumentando a pobreza e a desigualdade e limitando as possibilidades de um crescimento sustentado. Os dados da realidade sugerem que h outro caminho. Em alguns dos pases mais bem-sucedidos econmica e socialmente, um

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dos pilares de suas economias um Estado ativo de alta eficincia. Uma de suas caractersticas principais contradiz um dos eixos da falcia. um Estado coordenado estritamente com a sociedade civil. A falsa oposio Estado Sociedade Civil, que preconiza a falcia como um fato, neles desmentida. Os laos de cooperao so mltiplos e surge uma ao integrada. Tambm na Amrica Latina algumas das sociedades com melhores cifras de eqidade, menores ndices de pobreza e melhores taxas de desenvolvimento tiveram como base dessas conquistas Estados bem organizados, com burocracias consideradas eficientes, como Costa Rica, Uruguai e o Chile democrtico. imprescindvel reformar e melhorar a eficincia estatal e erradicar a corrupo. Porm, para isso, necessrio avanar em outra direo totalmente diferente da falcia. No satanizar o Estado, mas ir construindo administraes pblicas descentralizadas, transparentes, abertas participao comunitria, bem gerenciadas, com carreiras administrativas estveis, fundadas no mrito. 7. Stima falcia: a incredulidade sobre as possibilidades de contribuio por parte da sociedade civil O pensamento econmico circulante envia s vezes explicitamente, e com freqncia implicitamente, uma profunda mensagem de desvalorizao do possvel papel que pode desempenhar a sociedade civil nos processos de desenvolvimento e na resoluo dos problemas sociais. Sua nfase est totalmente voltada para o mercado, a fora dos incentivos econmicos, a gerncia de negcios, a maximizao de utilidades como motor do desenvolvimento, os sinais que podem atrair ou afastar o mercado. O mundo da sociedade civil percebido como um mundo secundrio, de segunda linha com respeito ao que ocorre no mundo importante conformado pelos mercados. Desse enfoque surgiro polticas pblicas de apoio muito limitado, quase simblico e por cortesia s organizaes da sociedade civil, e uma desconfiana forte em depositar nelas responsabilidades realmente importantes. A falcia arrazoa em termos de uma dualidade bsica: Estado versus mercado. Nos fatos, a situao muito mais matizada. Existe um semnmero de organizaes que no so nem uma coisa nem outra. Foram criadas com finalidades diferentes, os atores sociais que se encontram por trs delas so outros, e as metodologias que utilizam no so de Estado nem de mercado. Este mundo compreende, entre outras: as organiza-

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es no-governamentais em contnuo crescimento na Amrica Latina que foram denominadas com freqncia de terceiro setor e que realizam mltiplas contribuies no campo social; os espaos de interesse pblico, que so frmulas especiais muito usadas nos pases desenvolvidos onde numerosas Universidades e hospitais foram fundados por eles trata-se de empreendimentos a longo prazo animados por numerosos atores pblicos e privados, modelos econmicos que no so de mercados tpicos como as cooperativas, que tm alta presena em diversos campos, e o amplo movimento de luta contra a pobreza desenvolvido em toda a regio pelas organizaes religiosas, crists, protestantes e judaicas que esto na primeira linha da ao social. A realidade no s o Estado e o mercado como pretende a falcia. Inclusive alguns dos modelos de organizao e gesto social e geral mais efetivos de nosso tempo foram desenvolvidos nesta vasta rea diferente de ambos. Todas estas organizaes possuem um grande peso e uma forte participao na ao social no mundo desenvolvido. Arrecadam recursos considerveis, a elas so delegadas funes crescentes por parte do Estado, esto inter-relacionadas com a ao pblica de mltiplas formas. Esto baseadas fortemente em trabalho voluntrio. Mobilizam milhares e milhares de pessoas que dedicam anonimamente considerveis horas para levar adiante seus programas. Trazem importantes contribuies ao Produto Bruto Nacional com trabalho no-remunerado em pases como Canad, Holanda, Sucia, Noruega, Dinamarca, Espanha, Israel e outros. Assim, em Israel, que aparece entre os primeiros do mundo nesta matria, uma em quatro pessoas faz trabalhos voluntrios semanalmente, produzindo bens e servios de carter social, constituindo parte do pessoal paramdico nos hospitais, auxiliando pessoas invlidas, idosos, famlias desfavorecidas e outros setores com dificuldades. Tambm aumentou no mundo desenvolvido a participao empresarial no apoio ao social da sociedade civil. As contribuies e iniciativas empresariais de solidariedade foram incrementadas e o crescimento de sua responsabilidade social passou a fazer parte cada vez maior da legitimidade da prpria empresa. A afirmao feita h anos por Milton Friedman, o guru da Escola de Chicago, de que a nica responsabilidade da empresa privada produzir utilidades para seus acionistas, tem sido refutada constantemente por empresrios proeminentes e hoje rejeitada maciamente pela opinio pblica dos pases desenvolvidos. Na Amrica Latina, a situao tende a ser muito diferente. Existe um imenso potencial de trabalho voluntrio que caso fosse adequadamente convocado e se se criassem condies propcias, poderia cum-

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prir papis bastante significativos. Esforadamente, setores da sociedade civil esto tentando mobiliz-lo e constante o surgimento de mltiplas iniciativas. Porm, tudo isso , apesar das desconfianas e da incredulidade que surgem do arrazoamento desvalorizador, que alimenta, por sua vez, erros grosseiros nas polticas. No h, assim, entre outros aspectos, apoios pblicos firmes s iniciativas da sociedade civil de ao social e os incentivos fiscais so muito reduzidos. Alm disso, o movimento de responsabilidade social empresarial fraco e as contribuies muito reduzidas comparativamente. A proporo dos lucros empresariais dedicados a fins de interesse pblico muito menor em relao dos pases avanados. notvel o trabalho que, mesmo com todas estas limitaes, levam adiante numerosas organizaes, entre elas as de f j mencionadas, para conseguir auxiliar nas dificuldades de sobrevivncia de extensos setores da populao. No fundo, o que o pensamento econmico convencional est fazendo atravs de sua desvalorizao das possibilidades da sociedade civil fechar a passagem para o prprio ingresso do conceito de capital social. Diversas pesquisas de anos recentes, desde os primeiros estudos de Putnam e Coleman, at os efetuados em diversas realidades nacionais de todo o planeta, revelam que h fatores cruciais para o desenvolvimento que no tinham lugar no pensamento econmico ortodoxo, como os agrupados na idia de capital social. So eles: o clima de confiana entre as pessoas de uma sociedade e com respeito a suas instituies e lderes, o grau de associatividade, ou seja, a capacidade de criar esforos associativos de todo tipo e o nvel de conscincia cvica, a atitude quanto aos problemas coletivos, desde cuidar da limpeza dos lugares pblicos at pagar os impostos. Estudos do Banco Mundial atribuem ao capital social e ao capital humano dois teros do crescimento econmico dos pases e diversas pesquisas do conta dos significativos impactos do capital social sobre a performance macroeconmica, a produtividade microeconmica, a governabilidade democrtica, a sade pblica e outras dimenses1. Desenvolver o capital social significa fortalecer a sociedade civil atravs de polticas que melhorem a confiana, que, segundo dizem os mesmos estudos, em sociedades polarizadas muito fortemente erodida pela desigualdade. Tambm implica propiciar o crescimento da1. Pode-se encontrar a apresentao de uma srie de pesquisas recentes sobre o capital social e seus impactos em: Kliksberg, B. El capital social e la cultura. Claves olvidadas del desarrollo. Buenos Aires, Instituto de Integracin Latinoamericana/Intal/BID, 2000.

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associatividade e contribuir para fazer amadurecer a conscincia cvica. O arrazoamento econmico convencional tem estado amarrado a idias muito estreitas sobre os fatores que contam, que no consideram estes elementos, ou que os relegam. Por trs da falcia da incredulidade sobre a sociedade civil, encontra-se uma rejeio mais ampla da idia de que h outros capitais que se deve ter em conta, como o social. Um fechado reducionismo economicista obstrui a passagem para ampliar a viso do desenvolvimento com sua incorporao e para extrair as conseqncias conseguintes em termos de polticas de apoio ao fortalecimento e potencializao das capacidades latentes na sociedade civil.

8. Oitava falcia: a participao sim, mas no! A participao da comunidade de forma cada vez mais ativa na gesto dos assuntos pblicos surge nesta poca como uma exigncia crescente das grandes maiorias da sociedade na Amrica Latina e outras regies. Os avanos da democratizao, produto de longas lutas histricas dos povos, criaram condies de livre organizao e expresso, que dispararam esta sede por participao. Por outro lado, existe hoje uma convalidao mundial crescente da superioridade em termos de efetividade da participao comunitria sobre as formas organizativas tradicionais de corte vertical ou burocrtico. No campo social, isso muito visvel. Os programas sociais fazem melhor uso dos recursos, conseguem ser bem-sucedidos no alcance de suas metas e criam autosustentabilidade, se as comunidades pobres s quais se deseja favorecer participam desde o incio e ao longo de todo o seu desenvolvimento e compartilham do planejamento, da gesto, do controle e da avaliao. Assinala a respeito Stern, o economista-chefe do Banco Mundial, resumindo mltiplos estudos da instituio (2000): Ao longo do mundo, a participao funciona: as escolas operam melhor se os pais participam, os programas de irrigao so melhores se os camponeses participam, o crdito trabalha melhor se os solicitantes participam. As reformas dos pases so muito mais efetivas se forem geradas no pas e dirigidas pelo pas. A participao prtica e poderosa2.

2. Apontam-se diversos dados e pesquisas sobre a superioridade gerencial da participao em: Kliksberg, B. Seis tesis no convencionales sobre participacin en instituciones y desarrollo. Revista do Instituto Internacional de Gobernabilidad, n. 2, Barcelona, dez. 1998.

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Dois recentes trabalhos: Superando a pobreza humana, do PNUD (2000), e The voices of the poor, do Banco Mundial (2000), baseado numa gigantesca pesquisa com 60 mil pobres de 60 pases, chegam a similar concluso em termos de polticas: preciso dar prioridade para investir e fortalecer as organizaes dos prprios pobres. Eles carecem de voz e voto real na sociedade. Fortalecer suas organizaes lhes permitir participar de modo muito mais ativo e recuperar terreno em ambas as dimenses. Prope-se, entre outros aspectos: facilitar sua constituio, apoi-las, dar possibilidades de capacitao a seus lderes, fortalecer suas capacidades de gesto. Na Amrica Latina, o discurso poltico tende cada vez mais a reconhecer a participao. Seria claramente antipopular enfrentar a presso pr-participao to forte na sociedade, e com argumentos to contundentes a seu favor. Entretanto, os avanos reais quanto implementao efetiva de programas com altos nveis de participao comunitria so muito reduzidos. Continuam predominando os programas chave na mo e impostos verticalmente, onde quem tem poder de deciso ou os que desenham so aqueles que sabem e a comunidade desfavorecida deve acatar suas diretivas e ser sujeito passivo deste. Tambm so comuns os programas em que se fazem fortes apelos quando se trata de programas participativos, quando na verdade h um mnimo contedo real de interveno da comunidade na tomada de decises. O discurso diz sim participao na regio, mas os fatos com freqncia dizem no. Os custos desta falcia so muito fortes. Por um lado, est sendo desperdiada uma enorme energia latente nas comunidades pobres. Ao serem mobilizadas, como ocorreu em experincias latino-americanas reconhecidas como o caso de Villa El Salvador, no Peru, as escolas Educo, em El Salvador, ou o oramento municipal participativo, em Porto Alegre3 , os resultados so surpreendentes. A comunidade multiplica os recursos escassos, somando a eles incontveis horas de trabalho, e geradora de contnuas iniciativas inovadoras. Alm disso, a presena da comunidade um dos poucos meios que previne efetiva3. O caso de Villa El Salvador analisado com detalhes por Carlos Franco em seu trabalho La experiencia de Villa El Salvador: del arenal a un modelo social de avanzada. In: Kliksberg, B. Pobreza, un tema impostergable. Nuevas respuestas a nivel mundial. 4. ed. Buenos Aires/Caracas, Fondo de Cultura Econmica, 1997. Sobre o caso do oramento municipal participativo em Porto Alegre, ver o texto de Zander Navarro, La democracia afirmativa y el desarrollo redistributivo: el caso del presupuesto participativo em Porto Alegre, Brasil. In: Jarquin, E. & Caldera, A. (comp.). Programas sociales, pobreza y participacin ciudadana. Washington, BID, 2000.

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mente contra a corrupo. O controle social da mesma sobre a gesto uma grande garantia a respeito que se perde ao impedir a participao. Por outro lado, o divrcio entre o discurso e a realidade claramente percebido pelos pobres e eles se ressentem disso com descontentamento e frustrao. Limitam-se, assim, as possibilidades de programas em que se oferea a participao genuna, porque as comunidades esto escaldadas pelas falsas promessas. O sim, mas no est baseado em resistncias profundas a que definitivamente as comunidades pobres participem, que se disfarcem diante de sua ilegitimidade conceitual, poltica e tica. Chegou a hora na regio de coloc-las em foco e enfrent-las. 9. Nona falcia: a esquivana tica A anlise econmica convencional sobre os problemas da Amrica Latina extrapola normalmente a discusso sobre as implicaes ticas dos diferentes cursos de ao possveis. Pareceria tratar-se de um tema tcnico, mas de carter neutro, em que apenas devem predominar arrazoamentos custo benefcio para resolv-lo. A situao, porm, muito diferente. O tema tem a ver com a vida das pessoas e as consideraes ticas deveriam estar, por extenso, absolutamente presentes. Do contrrio, estar-se-ia incorrendo no grande risco sobre o qual previne um dos maiores filsofos da nossa poca, Charles Taylor. Taylor (1992) afirma que h uma declarada tendncia a que a racionalidade tcnica, a discusso sobre os meios, substitua a discusso sobre os fins. A tecnologia um meio para alcanar fins, que, por sua vez, devem ser objeto de outra ordem de discusso. Se a discusso sobre os fins desaparecer, como pode estar ocorrendo, previne Taylor, e a racionalidade tecnolgica predomina sobre a racionalidade tica, os resultados podem ser muito regressivos para a sociedade. Na mesma direo assinalou recentemente outro destacado pensador, Vaclav Havel, presidente da Repblica Tcheca (2000): necessrio reestruturar o sistema de valores no qual nossa civilizao descansa, e advertiu que os pases ricos, por ele chamados de euro-americanos, devem examinar sua conscincia. Segundo ele, estes pases impuseram as orientaes atuais da civilizao global e so responsveis por suas conseqncias. Estas vozes proeminentes sugerem um debate a fundo sobre os temas ticos do desenvolvimento. O chamado tem razes em realidades intolerveis. A ONU (2000) chama a ateno para a imprescindibilidade

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de um debate desta ordem num mundo onde perecem diariamente 30 mil crianas por causas evitveis, imputveis pobreza. Afirma que se reage indignamente, e isso correto, diante de um nico caso de tortura, mas se passa por alto diariamente ante essa aniquilao em grande escala. O Fundo de Populao Mundial (2000) ressalta que morrem todo ano 500 mil mes durante a gravidez, mortes tambm em sua grande maioria evitveis e ligadas falta de assistncia mdica. Noventa e nove por cento delas ocorrem nos chamados pases em desenvolvimento. Na Amrica Latina, imprescindvel debater, entre outros temas: o que acontece com as conseqncias ticas das polticas; qual a eticidade dos meios empregados, se eticamente lcito sacrificar geraes; por que os mais fracos, como as crianas e os idosos, so os mais afetados pelas polticas aplicadas em muitos pases; a destruio de famlias est gerando a pobreza, e outras questes similares. uma regio onde, como se tem visto, a maioria das crianas pobre, onde milhares de crianas vivem nas ruas, marginalizadas pela sociedade e onde, enquanto a taxa de mortalidade de crianas menores de cinco anos, em 1997, era no Canad de 6.9 em cada 1000, atingia na Bolvia 82.8, no Equador 57.7, no Brasil 45.9 e no Mxico 36.4 (Organizao Panamericana da Sade, 2000). Na Amrica Latina, 17% dos partos so realizados sem qualquer tipo de assistncia mdica e com os conseqentes resultados em termos de mortalidade materna, que cinco vezes maior em relao dos pases desenvolvidos; ressalte-se que possuem cobertura apenas 25% das pessoas maiores de idade. Surgem de tudo isso problemas ticos bsicos: o que mais importante? Como destinar recursos? No deveriam ser reestudadas as prioridades? No h polticas que deveriam ser descartadas por seu efeito letal em termos sociais? Ao denunciar-se a fraqueza da falcia que esquiva a discusso tica, ela toma com freqncia o rosto do pragmatismo. Argumenta-se que impossvel discutir tica quando no h recursos. Entretanto, mais do que nunca, quando os recursos so escassos deveria debaterse a fundo sobre as prioridades. Nos pases em que esse debate ocorre, os resultados costumam ser muito diferentes em termos de prioridades e de resultados sociais daqueles onde o assunto evitado. Quanto mais recursos existirem, melhor, e se deve fazer o possvel para aumentlos, mas pode haver mais e continuar destinados sob os padres de alta desigualdade prprios da Amrica Latina. A discusso sobre as prioridades finais a nica que garante um uso socialmente racional dos recursos. A Comisso Latino-Americana e do Caribe, presidida por

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Patricio Aylwin (1995), realizou uma anlise sistemtica para a Cpula social mundial de Copenhague sobre que recursos faziam falta para resolver as brechas sociais mais importantes da regio. Concluo que no so to quantitativos como se supe imaginariamente e que uma parte importante deles pode ser obtida reordenando prioridades, fortalecendo um sistema fiscal progressivo e eficiente, e gerando pactos sociais para aumentar os recursos para reas crticas. Num artigo do jornal New York Times, o renomado filsofo Peter Singer (1999) sustenta que no possvel que os estratos prsperos das sociedades ricas se livrem do peso de conscincia que significa a convivncia com realidades macias de abjeta pobreza e sofrimento no mundo, e que devem encarar de frente sua situao moral. Sua sugesto totalmente extensiva aos estratos similares da Amrica Latina. 10. Dcima falcia: no h outra alternativa Uma argumentao preferida no discurso econmico ortodoxo a alegao de que as medidas que se adotam so as nicas possveis, que no haveria outro curso de ao alternativo. Portanto, os graves problemas sociais que criam so inevitveis. A longa experincia do sculo XX plena em fracassos histricos de modelos de pensamento que se auto-apresentaram como o pensamento nico. Parece demasiadamente complexo o desenvolvimento, para que se acredite que s existe um nico caminho. Por outro lado, em diferentes regies do globo os fatos no favoreceram o pensamento nico. Resumindo a situao, afirma William Pfaff (International Herald Tribune, 2000): O consenso intelectual sobre as polticas econmicas globais foi rompido. Na mesma direo, refletindo a necessidade de buscar novas vias, opina Felix Rohatyn (Financial Times, 2000), atual embaixador dos Estados Unidos na Frana: Para sustentar os benefcios (do atual sistema econmico) nos Estados Unidos e globalmente, temos de transformar os perdedores em ganhadores. Se no o fizermos, provavelmente todos ns nos transformaremos tambm em perdedores. Amartya Sen (2000), por sua vez, destaca: Tem havido demonstraes recentes no s frente s reunies financeiras internacionais, mas tambm na forma de protestos menos organizados, mas intensos em diferentes capitais, desde Jacarta e Bangcoc at Abidj e Mxico. As dvidas acerca das relaes econmicas globais continuam vindo de diferentes confins do planeta e h suficiente razo para ver estas dvidas sobre a globalizao como um fenmeno global; so dvidas globais, no uma oposio localizada.

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O clamor por mudanas nas regras do jogo globais que afetam duramente os pases em desenvolvimento muito intenso. Compreende uma agenda muito ampla, desde temas pelos quais j clamou o papa Joo Paulo II, colocando-se frente de um vasto movimento mundial que exige o perdo da dvida externa para os pases mais pobres, passando pela exigncia pelas fortes barreiras aos produtos dos pases em desenvolvimento, at o tema muito direto de que a ajuda internacional ao desenvolvimento foi reduzida (de 50 para 60 bilhes de dlares nos anos 1990) e est em seu menor ponto em muitas dcadas. O presidente do Banco Mundial, Wolfensohn (2000), qualificou este fato como um crime. Destacou tratar-se de cegueira dos pases ricos que destinam somas insignificantes para auxiliar o desenvolvimento e no se do conta do que est em jogo. Defendendo a necessidade de uma poltica global alternativa, o PNUD (2000) assinala que se deve formular uma nova gerao de programas centrados em fazer com que o crescimento seja mais propcio aos pobres, este orientado a superar a desigualdade e destaque a potencializao dos pobres. As receitas antiquadas de complementao do crescimento rpido com o gasto social e redes de assistncia demonstraram ser insuficientes. O economistachefe do Banco Mundial, Stern (2000), tambm sugere: o crescimento econmico maior em pases onde a distncia entre ricos e pobres menor e o governo possui programas para melhorar a eqidade, com reforma agrria, impostos progressivos e bom sistema de educao pblica. Todos eles vo alm do pensamento nico. Neste ambiente, a falcia de que no h outra alternativa resulta cada vez mais insustentvel na Amrica Latina atual. Por um lado, no plano internacional, como se v, comea a haver uma cada vez mais ativa busca de alternativas diferentes. Por outro lado, h no cenrio histrico presente pases que obtiveram desempenhos altamente bem-sucedidos nos planos econmico e social, seguindo alternativas diferentes do pensamento econmico ortodoxo preconizado na regio; temos, entre eles: Canad, vrios pases do Sudeste asitico, como Coria do Sul, Japo, os pases nrdicos, Noruega, Sucia, Dinamarca, Finlndia, Israel, Holanda, e outros. No entanto, o argumento fundamental a prpria realidade. O pensamento nico produziu resultado muito duvidoso na Amrica Latina. A Cepal (2000) descreve assim a situao social presente: Por volta do final dos anos 1990, as pesquisas de opinio mostram que percentuais crescentes da populao declaram sentir-se submetidos a condies de risco, insegurana, e indefesos. Isso encontra amparo na evoluo do mercado de trabalho, no desdobramento da ao do Estado,

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nas novas formas institucionais para o acesso aos servios sociais, na deteriorao experimentada pelas expresses tradicionais de organizao social e nas dificuldades da micro e pequena empresa para conseguir um funcionamento que as projete econmica e socialmente. Refletindo o desencanto com as polticas aplicadas em muitos casos, uma pesquisa macia do Latn Barmetro (2000) encontra, como descreve Mulligan (Financial Times, 2000), resumindo seus resultados, que os latino-americanos esto perdendo a f uns nos outros, bem como em seus sistemas polticos e nos benefcios da privatizao. Com respeito a este ltimo ponto, a pesquisa informa que 57% no esto de acordo com o argumento de que a privatizao beneficiou seu pas. Para muitos, diz Marta Lagos, diretora da pesquisa, a privatizao significa custos mais altos e virtualmente o mesmo nvel de servios. A populao latino-americana no aceita a falcia de que no h outras alternativas seno as que conduzem necessariamente a altssimos custos sociais e ao desencanto. Aparece em seu imaginrio com fora crescente que possvel, como o fizeram outros pases no mundo, avanar com as singularidades de cada pas, e respeitando suas realidades nacionais quanto a modelos de desenvolvimento com eqidade, desen